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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS RODRIGO DANTAS BASTOS NA ROTA DO FOGO: ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA EM SÃO PAULO CAMPINAS 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RODRIGO DANTAS BASTOS

NA ROTA DO FOGO:

ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA EM SÃO PAULO

CAMPINAS

2018

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RODRIGO DANTAS BASTOS

NA ROTA DO FOGO:

ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA EM SÃO PAULO

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientadora: ARLETE MOYSÉS RODRIGUES ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO RODRIGO DANTAS BASTOS, E ORIENTADA PELA PROFª LIVRE DOCENTE ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

CAMPINAS

2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos Trabalhos de Defesa de Tese composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 26 de Março de 2018, considerou o candidato Rodrigo Dantas Bastos aprovado.

Professora Livre Docente Arlete Moyses Rodrigues - Presidente

Professor Dr. Wagner de Melo Romão

Professora Dra. Mariana de Azevedo Barretto Fix

Professora Dra. Isabel Aparecida Pinto Alvarez

Professor Dr. Everaldo Santos Melazzo

A Ata de Defesa, assinada pelos Membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a professora Arlete Moysés por sua paciência, dedicação, cuidado e

amizade ao longo desses anos de aprendizado e de orientação.

Agradeço também os professores Wagner Romão, Mariana Fix, Everaldo Melazzo,

Isabel Alvarez, Jesus Ranieri e Airton Leite.

Também a todos e todas que passaram pelos colóquios do LACAM – o Laboratório

da Casa da professora Arlete Moysés.

Àqueles que fizeram uma leitura atenta e generosa, em especial Sandro Barbosa e

Thiago Tenório.

Aos amigos, amigas e familiares que me apoiaram e que entenderam as minhas

dificuldades ao longo deste percurso. Em especial Luiz Madio, Helio Wicher Neto e

Peterson Pessoa.

À Fabíola Andrade, por tudo.

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“Talvez não se tenha reparado que o fogo é muito mais um ser social do que um ser natural.” (Gastón Bachelard, A psicanálise do fogo, 1999, pg. 15)

“É evidente que as melhorias (improvements) das cidades, que acompanham o progresso da riqueza e são realizadas mediante a demolição de bairros mal construídos, a construção de palácios para bancos, grandes casas comerciais etc., a ampliação das avenidas para o tráfego comercial e de carruagens de luxo, a introdução de linhas de bondes urbanos etc., expulsam os pobres para refúgios cada vez piores e mais superlotados. Por outro lado, qualquer um sabe que o alto preço das moradias está na razão inversa de sua qualidade e que as minas da miséria são exploradas por especuladores imobiliários com lucros maiores e custos menores do que jamais o foram as de Potosi.” (Karl Marx, O capital, Livro I, cap. 23, 2013, pg. 732).

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RESUMO

Esta tese, ao descrever o fogo como uma das formas pelas quais se dá a despossessão em São Paulo, analisa as implicações deste processo para o capital que investe na cidade e defende que o aumento excepcional e generalizado dos preços dos imóveis urbanos (2009-2014) foi um reflexo da elevação do patamar mínimo da renda absoluta urbana – ou renda absoluta nacional de monopólio excepcional na produção do espaço urbano. O período que corresponde a esta elevação é identificado como uma fase de superespeculação imobiliária, que pode ser identificada a partir do ano de 2009, passa a mostrar sinais de esgotamento em 2012 e se estende até 2014. Embora esta elevação apresente-se de imediato na forma monetária e quantitativa dos preços, corresponde a um aumento qualitativo dos poderes de monopólio dos proprietários jurídicos em ofertar e dispor de seus imóveis urbanos para as atividades da construção. Este incremento das rendas urbanas e dos poderes da propriedade imobiliária criou as condições para uma transferência de valor aos proprietários jurídicos de imóveis, que, excepcionalmente nesta fase de febre especulativa, estiveram em posição de praticar preços de monopólio de modo generalizado no mercado imobiliário nacional. Considerando a particularidade histórica e geográfica do regime jurídico da propriedade imobiliária no Brasil – não absolutizado no território nacional como ocorre nos países do Norte – argumenta-se que o aumento das rendas urbanas teve como um de seus efeitos uma intensificação da insegurança da posse da moradia informal. Em São Paulo, foi possível verificar este aumento da insegurança da posse sobretudo no conjunto de favelas classificadas sob risco de incêndio pelo Programa Municipal de Prevenção contra Incêndios em Assentamentos Precários (PREVIN). Verificou-se que nestas favelas não existe a perspectiva de futura legitimação da posse efetiva pelo Estado, uma vez que esses territórios são excluídos das ações institucionais de regularização fundiária de interesse social que poderiam converter seus posseiros em proprietários jurídicos. Nestes lugares, uma tecnologia política de controle do espaço urbano militarizado – também chamada de securitização urbana ou novo urbanismo militar – utiliza-se da guerra ao crime semi-organizado ou desorganizado do tráfico varejista de drogas para legitimar as violências da despossessão. Na expansão geográfica da propriedade jurídica da terra e dos imóveis urbanos, os circuitos financeiros da acumulação de capital com a especulação imobiliária em São Paulo pressupõem a continuidade da assim chamada acumulação primitiva, neste caso especificamente baseada na rapinagem e na violência contra legítimos possuidores de moradias autoconstruídas em territórios sob disputa em cidades do Sul Global. O fogo, deste modo, passa a ser descrito não apenas enquanto um elemento da natureza, mas como uma prática social que, no caso das favelas incendiadas, implica táticas e estratégias de punição que recaem sobre os condenados da terra urbana, castigos que operam em paralelo com técnicas de exercício de poder na promoção de uma violência urbicida direcionada contra a população de parcelas do espaço em que as rendas urbanas são altamente capitalizadas. Por fim, conclui-se que o aumento do poder de monopólio da propriedade imobiliária capitalista redimensionou o poder da classe social dos proprietários fundiários e sua representação política, tanto na sociedade civil como nas instituições do Estado.

Palavras-chave: Incêndios; Sociologia urbana – São Paulo (SP); Política urbana; Direito urbanístico.

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ABSTRACT This thesis describes fire as one of the ways in which dispossession takes place in São Paulo, analyzes the implications of this process for the capital that invests in the city and argues that the exceptional and generalized increase of real estate prices in Brazil (2009-2014) was a reflection of absolute urban ground rent minimum level elevation – or absolute national ground rent exceptional monopoly in the production of urban space. The period that corresponds to this elevation is described as a phase of real estate super-speculation, which can be identified since the year 2009, shows signs of exhaustion in 2012 and extends until 2014. Although this increase immediately presents itself in the monetary and quantitative form of prices, it corresponds to a qualitative increase of legal owners monopoly powers to offer and dispose of their urban properties for construction activities. This increase in urban ground rent and in the powers of real estate ownership created the conditions for a transfer of value to legal real estate owners, who, exceptionally at this stage of speculative fever, were able to practice monopoly prices in a general way in the national real estate market. Considering the historical and geographical particularity of the real estate property legal regime in Brazil – not absolutized over national territory as it occurs in countries and cities of the North – it is argued that this exceptional increase of urban rent has determined a tendency of increasing insecurity of tenure in informal settlements. In São Paulo, it was possible to verify this intensification of insecurity of tenure especially in the favelas (slums) classified as fire risk by the Municipal Program for Fire Prevention in Precarious Settlements (PREVIN). It was verified that in these favelas there is no prospect of future legitimation of land ownership by the State, since these territories are excluded from institutional actions that could turn possessors into legal owners. In these places, a political technology of militarized urban space - also called urban securitization or new military urbanism - uses the war against semi-organized and disorganized drug trafficking retailer to legitimize violence towards dispossession. In the geographical expansion of legal ownership of urban land, the financial circuits of capital accumulation with real estate speculation in São Paulo presuppose the continuity of the so-called primitive accumulation, in this case specifically based on plunder and violence against homeowners in territories under dispute in cities of the Global South. Fire is thus described not only as an element of nature, but as a social practice which, in the case of slums, entails tactics and strategies of punishment that fall on the condemned of urban land, punishments operating in parallel with techniques of exercise of power in the promotion of urbicide violence against parcels of urban space whose rents are highly capitalized. Finally, it is concluded that the increase in monopoly powers of capitalist urban property has reshaped the power of land owners social class and their political representation, both in civil society and in State institutions.

Key words: Fires; Urban Sociology – Sao Paulo (SP); Urban Policy; Urban Law.

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LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 01: Incêndio destrói construções em Paraisópolis, na Vila Andrade, zona

sul de São Paulo (10.set.2012). Foto: Diogo Moreira/Frame/AE

IMAGEM 02: Operários trabalham em obras do programa Minha Casa Minha Vida

no complexo São Vicente, em Mauá, Região Metropolitana de São Paulo

(04.ago.2012). Foto: Leonardo Wen / Folha Imagem

IMAGEM 03: Foto aérea do Google Maps em que estão identificados os registros de

ocorrência de incêndio em favelas de São Paulo e as variações do índice FIPEZAP

por bairro, no período de 2005 a 2014 (blog fogonobarraco).

IMAGEM 04: Foto aérea do Google Maps com identificação das favelas “Piolho”,

“Comando” e “Buraco Quente”, localizadas entre a Avenida Roberto Marinho e o

Aeroporto de Congonhas (blog fogonobarraco).

IMAGEM 05: Fotografia de incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em 08/09/2014.

IMAGEM 06: Fotografia de incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em 08/09/2014.

IMAGEM 07: Fotografia do hidrante, instalado a pedido dos agentes comunitários

do PREVIN, sem água no momento do incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em

08/09/2014.

IMAGEM 08: Cena extraída do Trailer do documentário “Limpam com fogo”.

IMAGEM 09: Deusa Fides, que na mitologia romana simboliza a confiança, a

promessa ou a garantia dada pela palavra.

IMAGEM 10: Roma, extensão do grande incêndio de 64 d.c.

IMAGEM 11: Roma, extensão do grande incêndio de 64 d.c.

IMAGEM 12: Gravura do grande incêndio de Londres, 1666.

IMAGEM 13: Extensão do grande incêndio de Londres, 1666.

IMAGEM 14: Mapa com a extensão do Grande Incêndio de Chicago (1871)

IMAGEM 15: Fotografia de Chicago alguns dias após o Grande Incêndio (1871)

IMAGEM 16: Cartaz de chamada para reunião no segundo dos três dias (8, 9 e 10

de outubro) do Grande Incêndio de Chicago (1871).

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LISTA DE TABELAS

TABELA 01: Variação do Índice FIPE-ZAP para vendas de imóveis residenciais em

São Paulo (jan/2008 a out/2017).

TABELA 02: Dados do Corpo de Bombeiros sobre os incêndios em favelas, de 1993

a 2010, extraídos da pesquisa de Ana Paula Bruno (2012).

TABELA 03: Registros de ocorrência de incêndios em favelas – Dados CPI, 2012.

TABELA 04: Causas diretas dos incêndios em favelas de São Paulo. Dados do

Corpo de Bombeiros (Bruno, 2012).

TABELA 05: Favelas incendiadas por localização – centro expandido, operações

urbanas consorciadas e entorno das marginais (Bruno, 2012).

TABELA 06: Assentamentos do PREVIN (Ciclos 1, 2, 3 e 4). Relatório de

Acompanhamento de 03/09/2012 do Plano de Implantação do Programa de

Prevenção a Incêndios em Assentamentos Precários (PREVIN) nas Subprefeituras.

TABELA 07: Lista de Votação – Instalação da CPI dos incêndios na Câmara

Municipal de São Paulo

TABELA 08: Quadro explicativo das diferentes rendas fundiárias urbanas de acordo

com a conceituação de Samuel Jaramillo González (2009).

TABELA 08: Terminologia resumida dos desastres – Política Nacional de Proteção e

Defesa Civil (PNPDC)

TABELA 09: Totais anuais de precipitação total (mm). Dados da estação de São

Paulo, Mirante de Santana (2005-2015). Fonte: www.inmet.gov.br

TABELA 10: Matriz 01 – Espaço como categoria chave, significados possíveis

(Harvey, 2006b).

TABELA 11: Matriz 02 – Matriz espacial para as categorias do sistema teórico

marxiano (Harvey, 2006b).

TABELA 12: Matriz 03 – Matriz espacial para a especulação imobiliária em São

Paulo, elaborada a partir de Harvey (2006b).

TABELA 13: Rendas urbanas.

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LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 01: Variação do Índice FIPE-ZAP para vendas de imóveis residenciais em

São Paulo – 229,98% (jan/2008 a out/2017)

GRÁFICO 02: Dados do Corpo de Bombeiros sobre os incêndios em favelas de

1993 a 2010 extraídos da pesquisa de Ana Paula Bruno (2012).

GRÁFICO 03: Dados anuais de precipitação (mm). Mirante de Santana, São Paulo

(2005-2015).

GRÁFICO 04: Esquema de imbricação aditiva e competitiva das rendas urbanas.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................ 15

1. Os incêndios em favelas de São Paulo .................................................... 29 1.1. Fogo no barraco ........................................................................................... 35

1.2. O Programa Municipal de Prevenção contra Incêndios (PREVIN) .............. 48

1.3. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal ............. 53

1.4. A classificação e a hierarquização das instituições de Defesa Civil ............ 56

1.5. Clima e risco de incêndio ............................................................................. 61

1.6. Incêndios e valorização ................................................................................ 66

2. A renda da terra na produção do espaço urbano ................................... 68

2.1. Preço, valor e renda da terra ........................................................................ 69

2.2. Espaço: lógica e ontologia ............................................................................ 73

2.3. Rendas urbanas e especulação imobiliária .................................................. 81

2.4. Capital fictício, lucros fictícios e rendas urbanas .......................................... 90

2.5. O capital a juros e os sistemas nacionais de crédito habitacional e

imobiliário....................................................................................................... 92

2.6. Estoques imobiliários .................................................................................. 101

2.7. Os ciclos da capitalização da renda da terra urbana no Brasil ................... 104

3. Os direitos de posse e de propriedade da terra e dos imóveis em São Paulo ..................................................................................................................... 113 3.1. Posse, fogo e propriedade na Lei de Terras de 1850 ................................ 113

3.2. O urbanismo contra o fogo ......................................................................... 117

3.3. Legal e ilegal .............................................................................................. 124

3.4. Economicismo e juridicismo ....................................................................... 128

3.5. Regularização fundiária de interesse social ............................................... 129

3.6. A regulação jurídico-urbanística da exceção .............................................. 133

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4. O fogo como tecnologia política: guerra, castigo e recompensa ........ 140

4.1. O fogo mitológico: o suplício de Prometeu ................................................. 141

4.2. O fogo na história das cidades ................................................................... 146

4.3. O fogo e a guerra na colonização de São Paulo ........................................ 155

4.4. O fogo na favela como crime e como castigo ............................................. 164

4.5. O fogo como desastre na favela: doutrina do shock ................................... 168

4.6. Do suplício pelo fogo à sanção normalizadora das remoções .................... 170

4.7. Urbicídio: militarização e securitização ....................................................... 172

Conclusões ........................................................................................................... 178

Referências Bibliográficas .................................................................................. 188

 

 

 

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IMAGEM 01: Incêndio destrói construções em Paraisópolis, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo (10.set.2012). Foto: Diogo Moreira/Frame/AE

IMAGEM 02: Operários trabalham em obras do programa Minha Casa Minha Vida no complexo São Vicente, em Mauá, Região Metropolitana de São Paulo (04.ago.2012). Foto: Leonardo Wen / Folha Imagem

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INTRODUÇÃO

Esta tese é o resultado de uma pesquisa sobre os incêndios em favelas de São

Paulo como uma das formas da despossessão1 (Harvey, 2005) no período que se

passou a considerar uma fase de superespeculação imobiliária2, identificada com

um boom excepcional e generalizado nos preços praticados no mercado imobiliário

nacional, sobretudo entre os anos de 2009 a 2014.

Esta elevação extraordinária dos preços dos imóveis urbanos, como será exposto a

partir do Capítulo 02, é o reflexo do incremento da renda absoluta urbana (Jaramillo

González, 2009), ou renda absoluta nacional de monopólio excepcional (Carcanholo,

2013) dos imóveis urbanos, que corresponde aos poderes excepcionais de

monopólio dos proprietários em ofertar e dispor de suas propriedades para as

atividades da construção no território nacional. Ao longo da tese, argumenta-se que

este aumento excepcional da renda absoluta urbana produziu efeitos no sentido de

uma intensificação da insegurança da posse da moradia informal, observável,

sobretudo no caso de São Paulo, no conjunto de favelas classificadas sob risco de

incêndio pelo Programa Municipal de Prevenção contra Incêndios em

                                                                                                               1 Ou desapropriação da propriedade privada do trabalhador. Optei aqui por chamar despossessão (expressão contida nas traduções de David Harvey para o termo em inglês dispossession) ou destituição da posse considerando que na legislação brasileira e na linguagem jurídica adota-se uma diferenciação entre posse e propriedade: a propriedade da casa, da terra e dos demais imóveis se transmite mediante a transferência dos títulos jurídicos registrados em Cartórios de Registro de Imóveis. Por este motivo a legislação do Direito positivo que orienta as decisões do Poder Judiciário no Estado brasileiro não reconhece a ocupação como forma de propriedade; não se requer habitar para ser considerado proprietário, mas obter o título jurídico alienável (matrícula ou transcrição) registrado no cartório competente. O posseiro, habitante ou morador é aquele que tem direito sobre a posse do espaço; o direito de propriedade é obtido somente pelo registro de um titulo jurídico reconhecido pelas instituições do Estado. 2 Considera-se nesta tese o período de elevação abrupta nos preços dos imóveis urbanos como uma fase de superespeculação (também identificada como um boom imobiliário excepcional, que corresponde a uma ‘valorização imobiliária’ generalizada) para se referir aos anos de 2009 a 2014, em que se registrou uma variação média superior a 200% nos preços de venda de imóveis residenciais em São Paulo, de acordo com os dados da FIPE-ZAP (estes dados serão melhor abordados mais adiante).

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Assentamentos Precários (PREVIN). Este aumento das rendas urbanas, como se

argumenta nas conclusões, implica também um aumento do poder da classe social

dos proprietários jurídicos de imóveis (os proprietários fundiários), com reflexos na

sua representação política na sociedade civil e nas instituições do Estado.

O fogo, como destacou Bachelard (1999), é muito mais um ser social do que um ser

natural. Diferente da água das chuvas, inundações e enchentes, o fogo dos

incêndios pode ser provocado por meio de atos incendiários criminosos, conduta

tipificada pela legislação penal. Mas se a recorrência desses incêndios em favelas3

do município de São Paulo comunica-se de algum modo com a temporalidade e a

espacialidade desta fase de superespeculação imobiliária, explicar estas conexões

implica traçar a sua economia política.

***

A recorrência de atos incendiários em favelas de São Paulo nesta fase de

superespeculação imobiliária levantava a questão da relação entre a distribuição

geográfica desses incêndios no território do município e a ‘valorização imobiliária’4

das propriedades urbanas neste período. Esta questão foi lançada em imagens e

mapas em setembro de 2012 no blog colaborativo fogo no barraco5, que inicialmente

atingiu forte repercussão na internet e nas redes sociais. A plataforma digital

oferecia a possibilidade de sobrepor, a partir da base de informações

georreferenciada do Google Maps, duas camadas (layers) de dados: uma delas

marca os pontos de localização geográfica de registros de ocorrência de incêndio

                                                                                                               3 Estas favelas são classificadas como assentamentos informais, precários ou subnormais (este último pela denominação do IBGE), mas importa aqui não apenas a nomeação institucional do lugar, definida pela informalidade de sua construção, edificação, propriedade, posse e urbanização, mas inclusive pela sua condição e estigma de gueto, espaço de exclusão social ou enclave no espaço urbano (Wacquant, 1993). 4 A precisão teórica a respeito do uso da expressão valorização imobiliária será problematizada a partir do Capítulo 2, em que serão indicadas as diferenças conceituais entre o valor, os preços e a renda da terra urbana. Nesta fase da exposição adota-se aqui a expressão ainda entre aspas. 5 O projeto fogo no barraco foi um blog colaborativo que reuniu informações e denúncias sobre incêndios ocorridos em favelas e construções informais na Grande São Paulo. Foi disponibilizado um mapa interativo da Região Metropolitana de São Paulo, em que era possível sobrepor ‘camadas’ (layers) que informavam a localização dos incêndios ocorridos, a localização das favelas existentes e a localização dos bairros com maior ‘valorização imobiliária’.

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em barracos e favelas; a outra, apresenta os dados divulgados pela FIPE-ZAP

(Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas e ZAP imóveis) de variação de preço

do metro quadrado dos imóveis residenciais por distrito do Município de São Paulo.

O trabalho colaborativo de coleta de dados e de aperfeiçoamento da plataforma

prometido pelos realizadores, no entanto, não seguiu o impulso inicial que o animou

até ser removido da web em 2016.

IMAGEM 03: Mapa dos incêndios em SP (2005 – 2014). Fonte: Blog Fogo no barraco. In: http://fogonobarraco.laboratorio.us/

A correlação entre esses incêndios e o aumento dos preços dos imóveis seria

também aventada nos debates da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da

Câmara Municipal de São Paulo especificamente instituída em março de 2012 para

tratar da questão dos incêndios em favelas. Em dezembro deste mesmo ano, o

relatório final da CPI concluiu, contudo, pela ausência de nexos entre interesses

imobiliários e as ocorrências de incêndios em favelas.

Esses incêndios, que se somavam a remoções e despejos forçados no mesmo

período, foram frequentemente associados à especulação imobiliária. Mas o que

vem a ser esta chamada especulação imobiliária? Partiu-se da compreensão de que

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a capitalização da renda da terra urbana no Brasil, observada empiricamente a partir

das novas formas de intermediação financeira do mercado imobiliário brasileiro,

tornava a propriedade de imóveis cada vez mais um ativo financeiro, processo que

tende a se intensificar na medida em que aumenta a circulação de capital a juros

pelo mercado de terras (Harvey, 2013a). A ampliação do sistema de crédito vinha

acompanhada de uma escalada dos preços do imobiliário, recolocando alguns

outros conflitos sociais pelo espaço, como a segregação, a periferização, a

verticalização, a sobrecarga da infraestrutura pública, entre outros.

No mesmo dia em que a imprensa noticiava mais um caso de incêndio em favela no

município de São Paulo, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC)

divulgava a inédita marca atingida pelo setor imobiliário em estoque de terras. De

acordo com o informe publicado pela CBIC em sua página na internet, em 11 de

setembro de 2012, estes estoques já passavam a funcionar não apenas como

insumo na produção imobiliária, mas também enquanto ativos financeiros das

empresas capitalizadas6:

o estoque acumulado do setor atingiu R$ 209,4 bilhões (incluindo permutas). Esses ativos podem ser vistos como uma forma de aumentar o caixa, em casos de extrema necessidade. De acordo com fonte que preferiu não se identificar, Tenda, PDG e Rossi estão no grupo de incorporadores que tem vendido terrenos7.

O projeto “fogo no barraco”8 fazia a cartografia deste fogo cruzado: sobrepunha a

localização dos incêndios com o mapa da ‘valorização imobiliária’ em bairros e

regiões do município. À primeira vista, os incêndios aparentemente coincidiam com

os espaços da ‘valorização’ mais expressiva dos imóveis, muitas vezes onde havia

projetos de obras públicas e/ou de promotores imobiliários no entorno. O primeiro

destes casos a ser investigado pelo Ministério Público foi o incêndio da favela do

Piolho, na Rua Sonia Ribeiro, Zona Sul de São Paulo. De acordo com a portaria que

instaurou a investigação pelo GAECO (Grupo Especial de Combate ao Crime

                                                                                                               6 Topalov define os promoteurs immobiliers (promotores imobiliários) como “agentes sociais que fazem a gestão de um capital imobiliário de circulação pela fase de transformação da mercadoria habitação” (Topalov, 1974: 15). 7 Disponível em : http://www.cbic.org.br/sala-de-imprensa/noticia/construtoras-mantem-r-209-bilhoes-de-terrenos-em-estoque Câmara Brasileira da Industria da Construção, publicado em 11 de setembro de 2012. 8 Até 2016, quando foi removido da web, o blog esteve disponível em: http://fogonobarraco.laboratorio.us/

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Organizado), havia indícios de que o incêndio fora “criminoso” e podia estar

relacionado “com interesses da especulação imobiliária”9. Além dos incêndios, um

primeiro mapeamento promovido pelo Observatório das Remoções10 apontou

aumento expressivo dos casos de despejos forçados principalmente de populações

que vivem em assentamento informais, favelas, cortiços, etc. Mas, afinal, o que

exatamente é a especulação imobiliária? Ou, formulado de outro modo, como e

sobre o que se especula com o imobiliário? Se a capitalização da renda da terra

urbana tem tornado a propriedade imobiliária cada vez mais um ativo financeiro, o

fundamento destes ativos – o que dá lastro aos títulos de direitos abstratos,

convertíveis e circuláveis – são as terras e as formas de renda que se pode obter

com elas (Harvey, 2013a). Um caminho, portanto, foi observar a movimentação dos

negócios e dos preços da terra urbana. Além de Harvey, autores como Lipietz (1982)

e Topalov (1974) também ofereciam referenciais de apoio teórico para entender

regularidades no funcionamento da renda da propriedade da terra e sua relação com

o processo de urbanização, ainda que de um ponto de vista dos países do Norte

(Santos, 2010). Ainda assim, se a teoria da renda não oferece uma explicação geral

sobre os usos e os preços da terra urbana (Harvey, 2013a), como explicar que as

cidades brasileiras tenham se tornado mais caras em tão pouco tempo, de modo tão

acelerado?

A pesquisa desenvolvida no mestrado11 observou que, a partir de março de 2009, o

programa de crédito habitacional Minha Casa Minha Vida12 solucionava o problema

                                                                                                               9 Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/09/11/gaeco-investiga-se-incendio-em-favela-de-sao-paulo-foi-tentativa-de-homicidio.htm 10 Iniciativa dos laboratórios de pesquisa da FAU/USP LabHab e LabCidade, em parceira com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o SAJU da Faculdade de Direito da USP, o Escritório Modelo da PUC SP, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e movimentos de moradia como a CMP, a UMM e a FLM. As informações sobre estas remoções são coletadas com base em informações divulgadas na imprensa e mediante denúncias. 11 Dissertação de mestrado defendida no Departamento de Sociologia da Unicamp, intitulada “Economia política do imobiliário: o programa Minha Casa Minha Vida e o preço da terra urbana no Brasil”, em 30 de março de 2012, sob orientação da Professora Arlete Moysés Rodrigues. 12 O programa Minha Casa Minha Vida subsidia as prestações conforme a faixa salarial das famílias. O subsídio para a demanda pública até 3 salários mínimos chegou a 95% do valor total dos contratos na fase 2 do programa, proveniente de recursos do Orçamento Geral da União. Ainda assim estes contratos representam apenas uma parte do programa, que também financia outras faixas salariais com outras condições de juros e subsídios.

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da “demanda efetiva”13, ou “solvabilidade da demanda” (Ribeiro, 1997) para os

lançamentos de promotores imobiliários com ações e títulos comercializados nas

bolsas de valores. Esta solução funcionou para aquecer o mercado da promoção

imobiliária em um primeiro momento – em um segundo momento também, pois

houve a segunda fase do programa, lançada em dezembro de 2010. Neste intervalo

de tempo, houve uma alta extraordinária nos preços da terra e dos imóveis urbanos,

que estiveram de algum modo ligadas ao consumo produtivo na formação e na

mobilização de estoques fundiários.

Por reflexo da elevação dos preços da terra urbana para a construção, a segunda

fase do programa (Minha Casa Minha Vida 2, com investimentos programados até

2014) ampliou não apenas o contingente de consumidores mas também o preço-

limite das unidades comercializadas no âmbito do programa entre o agente

financeiro (Caixa Econômica Federal) e os mutuários14. Acirrar ainda mais esta

tendência significaria expandir novamente o crédito ao consumo ou revisar as

condições atuais de contratação, “atualizando” o valor dos contratos e ampliando

mais uma vez as faixas salariais que regulamentam o acesso aos benefícios15.

                                                                                                               13 Em economia política, a questão da “demanda efetiva” é tratada inicialmente por Say, que se destaca por sua análise do processo produtivo na determinação da demanda. Esta produção é entendida enquanto criação de utilidade, em uma teoria do valor-utilidade que estabelece o principio da soberania do consumidor e atribui à demanda a responsabilidade por todo o equilíbrio econômico (Tapinos, 1983). A consideração de que a produção gera a sua própria demanda, de que oferta e demanda regulam os preços sob uma tendência geral de equilíbrio econômico, ficou conhecida como lei de Say. Em Marx, o preço de uma mercadoria será determinado não pela oferta e procura, mas deverá encontrar seu fundamento na efetividade das condições gerais da produção. Estas condições, sob o modo de produção capitalista, tendem a crises e rupturas e não ao equilíbrio econômico. A evolução da oferta e a demanda podem influenciar no preço, podem fazer com que o preço tenha uma flutuação, mas esta flutuação no entanto ocorre em torno de um eixo, constituído pelo valor (Salama & Valier, 1978). Isto é o que se poderia chamar de determinação tendencial da oferta e da procura pelo valor.

14 Com o Minha Casa Minha Vida 2, no final de 2010, foi revisado, no âmbito do Conselho Gestor do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) o preço de contratação para o financiamento das unidades produzidas pelo programa. Unidades negociadas a 80 mil passaram para um teto de 130 mil reais, enquanto as negociadas a 130 mil passaram a 170 mil reais. 15 A Caixa Econômica Federal firma contratos de mútuo no âmbito do programa em que as condições de segurança da posse trazem garantias especiais às instituições financeiras em caso de insolvência. Estes contratos preveem expressamente a possibilidade de despejos extrajudiciais por falta de pagamento, reservando a propriedade dos ativos físicos (dos imóveis construídos com os recursos do programa) até a quitação total da dívida. Em outras palavras, os imóveis do programa podem ser retomados pela CEF e transferidos a outros mutuários – que precisam terminar de pagar as prestações para se tornarem, ao final, proprietários dos títulos que conferem direitos a suas casas.

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Depois do crash financeiro de setembro de 2008 (que seguiu uma onda de despejos

forçados nos EUA entre 2006 e 2007, principalmente nos bairros de população mais

pobre em cidades do sul dos EUA, quando muitos devedores insolventes do

mercado de hipotecas foram despejados de seus imóveis de moradia), e de uma

série de disjunções e irrupções em diferentes países (Irlanda, Espanha, Grécia,

etc.), começavam a aparecer sinais de desaceleração da economia mundial. As

projeções oficiais do Fundo Monetário Internacional – FMI para o crescimento em

2012 já sofriam queda e eram estimadas em 3,5%. Em julho, a previsão que era de

4,1% caiu para 3,9%, e continuou a recuar16. De acordo com o relatório concluído

em 06 Julho de 2012, as explicações para esta desaceleração deveriam buscar

respostas na economia da China, sobretudo nas repercussões (spillover effects) da

baixa do investimento no mercado imobiliário chinês17 (Ahuja & Myrvoda, 2012).

Autores como Harvey (2011), Arantes (2012) e outros ressaltam que o crescimento

econômico chinês das últimas décadas dependeu em larga escala da acelerada

urbanização ocorrida no país – que veio acompanhada de transformações

significativas no mercado de bens e títulos imobiliários e precedida de uma lenta e

gradual reforma agrária nas décadas de 80 e 90 (Nabuco, 2013; Dwyer, 2012; Qian,

2002).

Harvey (2011), na esteira de Henri Lefebvre (1969), destaca-se pela posição

especial que confere ao mercado imobiliário e ao desenvolvimento urbano na

organização espacial e nas crises do capitalismo. Uma das contribuições de Harvey

a este respeito é o que ele chama de um estudo sobre a movimentação geográfica

dos “fluxos de capital”, em especial a correlação que estes fluxos estabelecem com

a produção capitalista do espaço (Harvey, 2011). No caso do Brasil, esta

reorganização dos fluxos de capital promovida a partir da crise financeira mundial de

2008 atingiu de modo específico o mercado de terras. Ainda em 2012, analistas

apontavam que o ritmo de crescimento da promoção imobiliária vinha caindo depois

                                                                                                               16 Em reunião do Banco de Compensações Internacionais (BCI), realizada na Basiléia em 2012, o presidente chinês Hu Jintao, a respeito da desaceleração da economia chinesa, disse que “a economia mundial está hoje em lenta recuperação e ainda existem fatores desestabilizantes e incertezas. O impacto da crise ainda está longe de terminar”. In: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,bcs-veem-economia-global-perto-da-recessao,126139,0.htm. 17 In: Articles IV Consultation, The Spillover Effects of a Downturn on China’s Real State Investment, IMF, 2012

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de alguns anos de euforia no mercado imobiliário brasileiro, de uma alta

generalizada nos preços dos imóveis urbanos e de uma significativa mobilização da

força de trabalho empregada nos canteiros de obras sobretudo a partir de 2009.

Esta desaceleração podia ser notada, por exemplo, com a diminuição do

crescimento nos números gerais de lançamentos de novos imóveis e com a relativa

estabilização nos preços, mas ainda estava longe de indicar crise ou estagnação no

setor. A aceleração e a euforia iniciais eram aos poucos substituídas por certa

precaução: se os anos de 2005, 2006 e 2007 foram notáveis pela escalada de

investimentos, o ano de 2012 já se notabilizou pelo excesso de capital concentrado

e centralizado.

Rafael Menin, então diretor executivo de produção da MRV18, em declaração à

Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), reclamava ainda em setembro

de 2012 que “a atualização da faixa de preços do 'Minha Casa, Minha Vida' não

aconteceu". Um novo aumento no preço limite das unidades do programa significaria

uma possibilidade não somente de alargar o campo de possíveis consumidores mas

também de reduzir os riscos de inadimplência. Ainda assim, a empresa – que se

notabilizou por ser a maior construtora do programa – continuou a crescer, porém

menos. "Nos últimos anos, crescemos três dígitos, então, de fato, diminuímos o

ritmo, mas não paramos de crescer"19.

No dia 27 de setembro de 2012, o Ministério das Cidades enviava ao Conselho

Curador do FGTS20 proposta de revisão das regras no financiamento habitacional do

Minha Casa Minha Vida, com novos investimentos do FGTS e do Orçamento Geral

da União. As mudanças anunciadas seguiam justamente a direção de flexibilizar as

normas de contratação, alargando os benefícios em juros e subsídios ao segmento

classificado como “classe média”21. Direcionadas a uma suposta “nova classe

                                                                                                               18 O nome MRV é formado pelas iniciais dos nomes dos sócios da empresa, criada em 1979, Mário Lúcio Pinheiro Menin, Rubens Menin Teixeira de Souza e Vega Engenharia Ltda. 19 In: http://www.cbic.org.br/sala-de-imprensa/noticia/construtoras-mantem-r-209-bilhoes-de-terrenos-em-estoque 20 As regras de financiamento habitacional do programa Minha Casa Minha Vida são decididas no âmbito do Conselho Gestor do FGTS (a maior parte dos recursos financeiros mobilizados nas operações da Caixa Economia Federal são provenientes deste fundo). 21 In: http://www.cidades.gov.br/index.php/o-ministerio/noticias/2153-ministerio-das-cidades-propoe-alteracoes-no-mcmv-ao-conselho-curador-do-fgts

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média”22 (Pochmann, 2012), nestas mudanças o Estado intervinha como mediador

na liberalização, na capacidade de romper ou ultrapassar as barreiras para o livre

fluxo de capital por meio do acesso ao crédito de consumo pessoal (Carcanholo &

Sabadini, 2009).

Em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo, o ex-presidente do SECOVI-SP, João

Crestana, disse a respeito:

Está começando a ficar difícil utilizar o programa, porque a classe média subiu de patamar. Ou você retira a classe média, o que é uma temeridade, ou ajusta para que possa atender mais gente. O governo está muito sensível a isso.23

Esta sensibilidade de que fala Crestana também pôde ser percebida no programa

governamental da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE, ligado à Presidência

da República), chamado Vozes da Classe Média24, lançado alguns dias antes, em

20 de setembro de 2012.

Contudo, a partir de 2013 com o fim do ciclo de baixa dos juros, é dado início a um

período de contração do crédito e redução de investimentos, que culmina no ajuste

fiscal de 2015, com reflexos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e no

Programa MCMV, cortes que inicialmente representaram em torno de 25 bilhões de

reais (de um total de 69 bilhões), dos quais 6,9 bilhões se referiam às linhas de

crédito subsidiado do programa habitacional. A decisão do conselho gestor do

FGTS, em maio de 2015, no sentido de reduzir o teto dos financiamentos de 750 mil

para 400 mil reais, também era uma forte indicação desta tendência. Em 2015,

embora houvesse sinais de início de um ciclo de redução dos preços de

comercialização dos produtos imobiliários, os agentes do mercado (corretores,

gestores de vendas) não necessariamente caracterizavam as novas vendas a

preços reduzidos como “desvalorização”, mas como descontos e preços

promocionais, de “saldões”, “feirões”, “liquidações” e “queimas de estoque”, um

preço que é reduzido considerando apenas o custo de “armazenamento” do

estoque.                                                                                                                22 Pochmann argumenta que as melhorias no rendimento salarial dos trabalhadores não modificaram a estrutura de classes no Brasil; o trabalho assalariado continua na base da pirâmide social e sua participação na renda nacional não aumentou, ao contrário, proporcionalmente foi reduzida frente aos rendimentos da propriedade (Pochmann, 2012). 23 In: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1158671-minha-casa-minha-vida-muda-para-atingir-classe-media.shtml 24 In: http://www.sae.gov.br/site/wp-content/uploads/Vozes-Classe-Media_20SETFinal.pdf

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Organizações patronais do setor da construção e da incorporação imobiliária

passaram a alertar a partir de 2014 para um quadro de perda de postos de trabalho.

Neste período, o Sindicato da Indústria da Construção Civil (SINDUSCON)

manifestou expectativas quanto ao lançamento de uma terceira fase do programa

Minha Casa Minha Vida, sob o argumento de que a expansão do crédito ao

consumo seria necessária para manter e mesmo para expandir os patamares da

demanda efetiva por unidades construídas, considerando a “capacidade adquirida”

pelas empresas do setor em ofertar produtos imobiliários no mercado.

Além da perda dos postos formais no setor, resultado de um número maior de

demissões em relação a contratações, destacam-se ainda situações características

de superexploração e de precarização das condições de trabalho da construção no

setor imobiliário. Vale ressaltar a decisão da presidência do Supremo Tribunal

Federal (STF), de 23 de dezembro de 2014, que acatou pedido de Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADIN), promovida pela Associação Brasileira de

Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), e suspendeu a publicação da chamada “Lista

Suja” do Trabalho Escravo (Portaria Interministerial n. 2/2011), que recomendava o

veto à concessão de crédito público por instituições da administração federal a

empresas autuadas e condenadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por

infrações administrativas relativas a condições análogas ao trabalho escravo.

Empresas do setor que terceirizam as atividades da construção, como a MRV por

exemplo, já haviam sido condenadas e conseguiram liberar financiamentos mediante

decisões liminares em outras instâncias antes da decisão do STF.

Neste sentido, esta pesquisa se orientou em torno do objetivo geral de pesquisar os

sentidos desta chamada superespeculação imobiliária em São Paulo. Este objetivo

requereu, por um lado, um estudo mais amplo sobre o mercado imobiliário brasileiro,

suas recentes transformações (Fix, 2011) e o novo aparato regulatório do Estado

que interliga o habitacional, o imobiliário e o financeiro (Royer, 2009). Este olhar

poderia iluminar as conexões existentes entre os circuitos financeiros e os circuitos

de produção do ambiente construído nas cidades. Neste ponto, uma hipótese que se

quis inicialmente investigar era de que o recente boom imobiliário iniciado em 2009

estava relacionado com o movimento dos fluxos de capital nos negócios com a terra

urbana e suas consequências na oferta e na demanda da construção, da

incorporação, do parcelamento, da retenção especulativa dos estoques imobiliários,

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assim como de linhas de crédito, etc. As políticas públicas (monetárias e fiscais) de

ampliação do crédito público subsidiado ao consumo pessoal da habitação, como o

Programa Minha Casa Minha Vida, criavam condições para a realização destes

investimentos, induzindo um aquecimento do mercado interno não apenas mediante

o endividamento do trabalho assalariado e do Estado, mas também à custa de

transformações do espaço urbano e do ambiente construído.

Outro ponto de observação privilegiado foi o Estado, a forma política da sociedade

capitalista (Hirsh, 2010), nos seus papéis desempenhados no processo de

urbanização capitalista e na regulação25 do direito de uso e de construção no solo

urbano (Topalov, 1974, Harvey, 1985, Lojkine, 1997; Maricato, 2009; Rodrigues,

2011). Sobre a regulação do Estado brasileiro, foi feito um levantamento da

legislação existente com base nas informações divulgadas nos sites oficiais, nas

esferas federal, estadual e municipal. No Município de São Paulo, por exemplo,

projeto de lei enviado à Câmara Municipal em 2012 propunha alterações na lei

específica que regula o uso e a ocupação do solo, mais especificamente nas zonas

especiais classificadas como ZEIS – zonas especiais de interesse social. Dentre as

modificações estavam a revisão das faixas salariais dos beneficiários e os índices e

parâmetros construtivos. A tendência da proposta do Executivo municipal era

flexibilizar as regras de verticalização nas áreas vazias aptas à construção, com isso

aumentando o aproveitamento dos terrenos estocados nas periferias. A

verticalização, a depender da localização no espaço urbano, pode gerar um conjunto

de outros problemas de sobrecarga na infraestrutura e na demanda por outros

serviços urbanos à custa dos fundos públicos do Estado e/ou dos fundos semi-

públicos compostos de recursos extraídos diretamente da classe trabalhadora

(Oliveira, 1998).

                                                                                                               25 Hirsch (2010) utiliza um conceito ampliado de regulação; ao incluir a teoria materialista do Estado, argumenta, resolve um “buraco cego” frequentemente criticado na teoria da regulação. Nesta perspectiva, “o processo de acumulação de capital está sempre inscrito na regulação, e tem no Estado o seu centro institucional, mesmo que a sua função e a sua importância variem historicamente em correspondência com o regime de acumulação e o modo de regulação respectivos. E, simultaneamente, a regulação depende do curso e do desenvolvimento do processo de acumulação. As ideias que consideram a economia como sendo dirigida pela “política” – ou vice-versa - , são por isso fundamentalmente falsas. ‘Acumulação’ e ‘regulação’ formam uma unidade determinada pelas respectivas práticas sociais e possuem dinâmicas próprias; elas formam assim uma unidade contraditória” (Hirsch, 2010: 110).

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Esta pesquisa esteve voltada também ao objetivo de fazer uma revisão bibliográfica

da obra de David Harvey, seus textos mais recentes e em especial seus trabalhos

sobre a questão da renda da terra. Importava aqui resgatar também leituras da

sociologia urbana marxista e de textos específicos a respeito da teoria da renda da

terra para o caso específico das terras de uso urbano. O ponto de chegada deste

objetivo da pesquisa foi encontrado na obra do economista colombiano Samuel

Jaramillo González (2009; 2011), que, escrevendo de um ponto de vista da América

Latina, parte dos pressupostos de uma “Teoria do Valor Trabalho Abstrato” para

propor uma teoria da renda do solo urbano. Na visão de Harvey (2011), a renda da

terra ajuda não apenas na análise e descrição do circuito da distribuição dos

rendimentos obtidos na produção capitalista do espaço, mas também fornece

material teórico para problematizar as transformações na organização espacial das

cidades no capitalismo.

Por uma opção metodológica, não foram realizadas entrevistas individuais como

estratégia de pesquisa. Esta opção se explica em parte pelo objetivo geral desta

investigação, que se propôs a relacionar uma questão aparentemente local e

específica com a totalidade da produção e reprodução do espaço urbano, articulada

em suas múltiplas escalas. De outra parte, devido ao método de pesquisa adotado,

foram concentrados esforços na utilização do recurso à abstração teórica26 como

modo de descrever as determinações mais gerais do fenômeno estudado.

O aumento das despossessões na fase de superespeculação imobiliária, à primeira

vista, aparece como produto de ações específicas de indivíduos especuladores,

ligados direta ou indiretamente ao ramo imobiliário, sujeitos estes que personificam

as figuras do capitalista e do proprietário de imóvel. Nesta tese, contudo, este

fenômeno foi analisado não a partir de um individualismo metodológico centrado em

identificar e descrever os agentes dessas despossessões, mas enquanto parte

                                                                                                               26 A justificativa de Marx (2013) para o recurso à abstração teórica na análise das formas econômicas pode ser lida no Prefácio da Primeira Edição de O Capital, Livro I. “A forma de valor, cuja figura acabada é a forma-dinheiro, é muito simples e desprovida de conteúdo. Não obstante, o espírito humano tem procurado elucidá-la em vão há mais de 2 mil anos, ao mesmo tempo em que obteve êxito, ainda que aproximado, na análise das formas muito mais complexas e plenas de conteúdo. Por quê? Porque é mais fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula que o compõe. Além disso, na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração deve substituir-se a ambos. Para a sociedade burguesa, porém, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular. Para o leigo, a análise desse objeto parece se perder em vãs sutilezas. Trata-se, com efeito, de sutilezas, mas do mesmo tipo daquelas que interessam à anatomia micrológica” (Marx, 2013: 78).

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integrante do processo geral de produção e reprodução do espaço urbano numa

perspectiva que considerou a especificidade da apropriação de mais-valor nas

formas de renda da terra urbana e os efeitos desta especulação imobiliária

excepcional no território do município de São Paulo.

Neste sentido, o primeiro Capítulo aborda a questão dos incêndios em favelas de

São Paulo no período identificado como superespeculação imobiliária, em especial

entre os anos 2009 e 2014. Esta descrição inicial apresenta os dados produzidos por

Bruno (2012), com base sobretudo em registros do Corpo de Bombeiros da Polícia

Militar do Estado de São Paulo, com o objetivo de identificar possíveis correlações

com o aumento especulativo dos preços dos imóveis urbanos. O capítulo também

trata das favelas incendiadas que fizeram parte do Programa Municipal de

Prevenção contra Incêndios em Assentamentos Precários (PREVIN) e do modo

como esta questão foi abordada de diferentes pontos de vista na Comissão

Parlamentar de Inquérito (CPI) que transcorreu no ano de 2012 na Câmara

Municipal de São Paulo.

O segundo Capítulo apresenta os pressupostos da teoria da renda da terra adotados

para a análise da produção do espaço urbano e, a partir deles, problematiza o

período identificado como superespeculação imobiliária. A hipótese central é que a

elevação abrupta dos preços dos imóveis identificada a partir de 2009 está fundada

em uma elevação generalizada do patamar mínimo da renda absoluta urbana

(Jaramillo González, 2009), ou renda absoluta nacional de monopólio excepcional

(Carcanholo, 2013), elevação esta que proporcionou uma transferência de valor para

os proprietários jurídicos de imóveis, que estiveram em condições de praticar preços

de monopólio em um contexto de excessiva concentração de capital fictício

(Carcanholo e Nakatani, 2015) centralizado no complexo financeiro-imobiliário

(Aalberts, 2016a; Rolnik, 2015).

O terceiro Capítulo se concentra na verificação do fenômeno dos incêndios urbanos

na história geográfica dos direitos de posse e de propriedade de terras e imóveis

urbanos no Brasil e particularmente em São Paulo. Este histórico tem como ponto de

partida a Lei de Terras devolutas de 1850 e segue até a Medida Provisória

759/2016, convertida na Lei Federal 13.465/2017, para apontar os limites e as

possibilidades das medidas jurídicas e urbanísticas do Estado capitalista no que diz

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respeito à regulação dos poderes dos proprietários em disponibilizar suas terras e

imóveis urbanos para as atividades da construção.

O quarto e último Capítulo aprofunda a hipótese central deste trabalho ao identificar

o fundamento histórico e geográfico dos poderes de monopólio dos proprietários

jurídicos na continuidade das práticas de acumulação primitiva, ou acumulação por

despossessão (Harvey, 2005), que desde a colonização de São Paulo são baseadas

direta ou indiretamente no saque e na violência contra os legítimos possuidores da

terra. As remoções que se utilizam dos incêndios como tática de guerra contra os

direitos de posse dos moradores de favelas cuja presença é deslegitimada, são

identificadas como um urbicídio (Graham, 2016), isto é, uma eliminação em cidades

do Sul Global de formas de uso e ocupação do solo de determinados grupos

populacionais localizadas em parcelas do espaço urbano em que as rendas

fundiárias são altamente capitalizadas.

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1. OS INCÊNDIOS EM FAVELAS DE SÃO PAULO

De março a dezembro de 2012, a questão dos incêndios em favelas foi objeto de

uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal de São Paulo. Ao

longo dos trabalhos desta comissão, movimentos sociais de moradia, associações e

representantes de moradores de favelas atingidas por incêndios denunciaram não

apenas a destruição e o terror provocados pela recorrência desses incêndios, mas

sobretudo os conflitos com as instituições e agentes municipais em torno das

modalidades de apoio, assistência e atendimento habitacional aos atingidos, bem

como as ameaças e violências contra a segurança da posse dos moradores desses

lugares. No discurso desses movimentos sociais, de ativistas políticos e de

representantes de moradores, esta insegurança da posse estaria ligada, direta ou

indiretamente, à intensa especulação imobiliária por que passava a cidade de São

Paulo naqueles anos, representada pelo aumento extraordinário dos preços dos

imóveis, favorecendo a aprovação e implementação de projetos imobiliários e obras

públicas, ou mesmo cumprindo um papel higienista de eliminar a presença de

determinadas favelas do espaço urbano.

No documentário “Limpam com fogo”27, imagens e relatos de atingidos e

desabrigados por esses incêndios contam histórias de lugares e pessoas que

tiveram suas casas e identidades28 consumidas pelo fogo. Os realizadores do

documentário, que inicialmente pesquisavam denúncias de compra de votos para as

eleições proporcionais de vereadores municipais em favelas da cidade, relataram

publicamente diversas ameaças sofridas no sentido de intimidar e constranger a

                                                                                                               27 Num cinema documentário produzido via financiamento coletivo, os realizadores do filme traçam uma narrativa que conta essa história por meio de imagens e depoimentos de moradores, acadêmicos, políticos, vereadores, pesquisadores, jornalistas, representantes de movimentos sociais, etc. 28 Os boletins de ocorrência registrados pela Policia Civil tornam-se inventários de documentos de identidade (RG) destruídos nos incêndios.

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equipe de filmagem nas atividades de coleta de imagens e relatos dos moradores a

respeito dessas ocorrências de incêndios.

No Morro do Piolho29, relatos e denúncias de ações deliberadas de grupos armados

não fardados impediam atingidos de acessar suas casas, de tentar recuperar ou

salvar pessoas e bens, ou mesmo na tentativa desesperada de apagar o fogo;

interrupções no abastecimento de água devido ao racionamento inviabilizavam as

ações de combate ao fogo pelo Corpo de Bombeiros; falhas nos hidrantes instalados

no âmbito do programa municipal de prevenção e combate a incêndios em favelas

(PREVIN30) dificultavam ou impediam os zeladores comunitários, a brigada de

incêndio local e os bombeiros de agir contra o incêndio.

IMAGEM 04: Foto aérea do Google Maps com identificação das favelas do Piolho, Comando e Buraco Quente, entre a Avenida Roberto Marinho e o Aeroporto de Congonhas. Fonte: Blog Fogo no barraco. In: http://fogonobarraco.laboratorio.us/

                                                                                                               29 O Morro do Piolho está na área de abrangência da Operação Urbana Água Espraiada e interfere parcialmente com o projeto de implantação da estação “Brooklin Paulista” do traçado do Monotrilho (Linha 17-Ouro do Metro de São Paulo), que interliga a região do Morumbi (linha amarela), o Campo Belo (linha lilás), o Aeroporto de Congonhas até o Jabaquara (linha azul). 30 O Programa de Prevenção contra Incêndios em favelas do Município de São Paulo será abordado com mais detalhes mais adiante.

Buraco  Quente  

Piolho  

Comando  

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IMAGEM 05: Fotografia de incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em 08/09/2014. Fonte: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2014/09/535489.shtml

IMAGEM 06: Fotografia de incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em 08/09/2014.

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Fonte: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2014/09/535489.shtml

IMAGEM 07: Fotografia do hidrante, instalado a pedido dos agentes comunitários do PREVIN, que estava sem água no momento do incêndio na favela do Piolho, CMI-SP, em 08/09/2014. Fonte: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2014/09/535489.shtml

Na favela do Moinho31, último enclave remanescente na região central da cidade, o

documentário retrata ainda episódios e discursos a respeito da implosão dos

escombros do antigo Moinho Fluminense que funcionava no local, executada por

uma demolidora contratada em regime de emergência pela Prefeitura de São Paulo

no dia 01 de janeiro de 2012. Representantes da associação de moradores

relataram que esta demolição teria sido uma ação velada para “ocultação de

cadáveres” soterrados após um dos incêndios no local.

Estas e outras muitas ameaças que não vinham apenas do risco de incêndio, mas

da incerteza sobre um conjunto de violências que fizeram de muitas dessas favelas

                                                                                                               31 A favela do moinho é a única favela incluída no PREVIN localizada na região central da cidade de São Paulo, sob o viaduto Orlando Murgel, no bairro do Bom Retiro. A área é objeto de disputa judicial pela posse e propriedade da terra e de suas construções. A associação de moradores contestou judicialmente a reintegração da posse do local utilizando o instituto da usucapião como matéria de defesa considerando que o tempo da ocupação confere direitos legítimos aos posseiros para reivindicar o reconhecimento da propriedade jurídica da terra. A ocupação existe há mais de 30 anos.

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incendiadas cenários de guerra urbana e de generalização do medo, atingindo aos

poucos e pacientemente a resistência dos moradores, quando não resultando em

despossessão.

IMAGEM 08: Extraída do trailer do documentário “Limpam com fogo”. Fonte: In: https://www.youtube.com/watch?v=I5YpqOjsHw4

O documentário ainda mostra um pouco do que foi a CPI dos incêndios na Câmara

Municipal de SP, que concluiu pela ausência de nexos entre os “interesses

imobiliários” alegados nas reivindicações e a recorrência de incêndios, baseada em

relatórios inconclusivos da: (i) Polícia Civil e Científica; do (ii) Corpo de Bombeiros

da Polícia Militar do Estado de São Paulo32; e da (iii) Coordenadoria de Defesa Civil

do Município de São Paulo.

O relatório final da CPI atribuiu a recorrência de incêndios desastrosos em favelas

de São Paulo a fatores da natureza e eventos climáticos extremos como a baixa

umidade do ar e a falta de chuvas, assim como a fatores relacionados à

vulnerabilidade ambiental e à precariedade das condições edilícias e urbanísticas

das construções.

                                                                                                               32 Particularmente em São Paulo, o Corpo de Bombeiros é ainda subordinado à Policia Militar, ao contrário de todos os outros Estado do país exceto o Paraná, apesar dos movimentos pró autonomia dos Bombeiros e, no caso do Estado de São Paulo, da proposta de emenda constitucional de autoria do Deputado Estadual Cel. Telhada (PSDB).

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Nesse aspecto atentamos para os relatos dos três principais agentes, ou seja, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil (Coordenação). Pela documentação apresentada e pelas oitivas realizadas, nosso entendimento, mesmo que de forma não totalmente conclusiva, pois reconhecemos que carece de mais elementos para um entendimento cabal da questão, é de que as ocorrências aconteceram em razão de uma somatória de fatores, como, por exemplo, o clima (calor), a baixa umidade, a falta de chuva, a sobrecarga de energia em instalações elétricas precárias, uso de botijões de gás e principalmente a madeira, largamente utilizada nas construções, materiais de fácil combustão.” (…) “Entendemos também que não se pode falar em incêndio criminoso, motivado por interesses imobiliários, pois até o presente momento não há nada que comprove, nem tão pouco indique tal motivação. Muito pelo contrário, o que verificou-se é que na maioria das ocorrências, as áreas atingidas não são de alta valorização imobiliária. (Trecho do Relatório final da CPI dos incêndios. Volume V do Processo RDP 08-006/2012, Volume V, fls. 811).

Na fala dos vereadores municipais entrevistados para o filme, aqueles que votaram

pela aprovação do relatório da comissão não necessariamente negavam o direito à

moradia, mas argumentavam no sentido de deslegitimar a posse na favela sob risco

de incêndio e justificar a necessidade de remoção, remanejamento ou

reassentamento da população que reside nessas áreas. A negativa não era

precisamente contra o direito à moradia, mas contra o exercício deste direito nessas

localizações.

Contudo, esta conclusão do relatório, que descarta a hipótese de ações incendiárias

motivadas por interesses de agentes do setor imobiliário, não foi aprovada por

unanimidade pelos membros da CPI. O relatório contou com o voto em separado de

apenas um dos membros da comissão, a vereadora Juliana Cardoso (PT). Os

argumentos contra a conclusão do relatório apoiavam-se em dados a respeito da

‘valorização imobiliária’ nas localizações com maior frequência de incêndios em

favelas.

Dos últimos incêndios que ocorreram neste ano, nove foram em áreas que aumentaram seus valores pelo mercado imobiliário. Segundo a Fundação de Pesquisas Econômicas- FIPE, a região de Ermelino Matarazzo, zona leste da capital, foi a campeã de valorização do metro quadrado de apartamentos entre janeiro de 2008 e novembro de 2011. É naquela região que está localizada a favela de São Miguel Paulista. Outra favela localizada em área com grande valorização é a favela Comunidade de Vila Prudente, incendiada em agosto de 2012. Ela localiza-se ao lado de um grande Shopping Center e muito próxima de um grande terminal de transporte coletivo a ser inaugurado brevemente. Em situação semelhante estão a favela do Morro do Piolho, em Campo Belo e Favela Moinho na região central. As favelas Alba e Buraco Negro também estão na rota do mercado imobiliário. Curiosamente, áreas que possuem mais favelas, são as que tem menor incidências de incêndios. Na zona sul da Cidade de São Paulo, nos distritos do Capão Redondo, Grajaú, Jardim Ângela e Campo Limpo, áreas que aglomeram 21% das favelas da capital, não ocorreu nenhum incêndio. E, através do mesmo estudo da FIPE já citado anteriormente, verificamos que a região do Grajaú

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teve, de 2008 a 2011 uma desvalorização de 25,7% do valor do metro quadrado dos apartamentos. (Processo RDP 08-006/2012, Volume V, fls. 826-827).

Conrado Ferrato, um dos idealizadores e co-autor do documentário, acompanha há

alguns anos a história destes incêndios e diz o seguinte:

O que move os processos de urbanização/reurbanização em São Paulo é a lógica da indústria de imóveis, que lucra mais quanto mais caro forem os preços. Assim, o que for indesejado, o que atrapalhar a valorização, é eliminado. Isso afeta todos e a classe média começa a sentir os efeitos disso agora, mas as comunidades mais pobres sofrem com isso já tem muito tempo. Quando falamos que a especulação está por trás dos incêndios não estamos querendo dizer que construtoras e incorporadoras acenderam um fósforo, queimaram as favelas e construíram um prédio no lugar – isso é uma simplificação grosseira. É algo mais sutil. Pense que um bairro que vem se valorizando está passando por muitas obras, que atraem mais interesses para essa região. Esses interesses envolvem coisas como melhorias de mobilidade, lazer e segurança – esse último quase sempre se traduz em uma vigilância sobre as favelas da região. Essa vigilância impede a consolidação dessas comunidades, que mantêm um caráter construtivo precário, com paredes de papelão e madeira e alta densidade de moradias, todos os fatores que contribuem para um grande incêndio. Não se trata de tacar fogo, mas de deixar queimar. Segundo os dados levantados, existe sim uma influência do clima nos incêndios. Um clima mais seco cria um ambiente mais propício para a propagação do fogo. Porém, ele não é o único fator e a importância dada a ele em 2012 foi muito exagerada. Basta ver que no ano seguinte houve uma queda de aproximadamente 70% no número de incêndios em favela na cidade de São Paulo. Essa variação abrupta já é suficiente para perceber que existem fatores mais importantes que o clima quando se fala em incêndios em favela na cidade de São Paulo. O clima é culpado muito útil porque ele é inócuo – ninguém controla o clima, é uma fatalidade. Incêndios em favelas não são fatalidades – eles são construídos, respondem a uma lógica perversa e existem responsáveis por eles.33

1.1. FOGO NO BARRACO

Em 2012, o blog fogonobarraco traçava uma cartografia deste fogo cruzado:

sobrepôs a localização dos incêndios em favelas com o mapa da ‘valorização

imobiliária’ em bairros da Região Metropolitana de São Paulo – RMSP. Os dados

utilizados na plataforma on-line baseavam-se nas variações de preços dos imóveis

por distrito do município, medidos em pesquisa da FIPE-ZAP imóveis entre os anos

de 2008 e 2012, período em que se registrou os aumentos mais significativos nos

                                                                                                               33 Entrevista concedida para reportagem da Revista Carta Capital, em junho de 2014. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia/documentario-expoe-o-que-esta-por-tras-de-incendios-nas-favelas-de-sao-paulo-7454.html

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preços dos imóveis urbanos. No acumulado de janeiro de 2008 até outubro de 2017,

a variação do índice FIPE-ZAP para São Paulo atingiu a marca de 229,98%.

GRÁFICO 01: Variação do Índice FIPE-ZAP para vendas de imóveis residenciais em São Paulo – 229,98% (jan/2008 a out/2017)

Fonte: FIPE-ZAP (http://fipezap.zapimoveis.com.br/)

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TABELA 01: Variação do Índice FIPE-ZAP para vendas de imóveis residenciais em São Paulo – 229,98% (jan/2008 a out/2017)

Mês Ano Valor Variação Variação Mensal janeiro 2008 61.59 0 0 fevereiro 2008 62.08 0.8 0.8 março 2008 62.93 2.17 1.36 abril 2008 64.03 3.96 1.75 maio 2008 65.09 5.68 1.66 junho 2008 66.24 7.55 1.77 julho 2008 67.36 9.37 1.69 agosto 2008 68.33 10.95 1.44 setembro 2008 69.05 12.11 1.04 outubro 2008 69.69 13.15 0.93 novembro 2008 70.65 14.72 1.38 dezembro 2008 72.02 16.93 1.93 janeiro 2009 73.09 18.68 1.5 fevereiro 2009 74.1 20.31 1.38 março 2009 74.94 21.68 1.14 abril 2009 76.31 23.89 1.82 maio 2009 77.71 26.18 1.84 junho 2009 79.38 28.89 2.15 julho 2009 80.94 31.41 1.96 agosto 2009 82.46 33.88 1.88 setembro 2009 83.58 35.7 1.36 outubro 2009 84.64 37.43 1.28 novembro 2009 85.97 39.58 1.56 dezembro 2009 87.55 42.16 1.85 janeiro 2010 89.03 44.56 1.69 fevereiro 2010 90.42 46.81 1.56 março 2010 91.88 49.18 1.62 abril 2010 93.4 51.65 1.66 maio 2010 94.68 53.73 1.37 junho 2010 96.19 56.18 1.59 julho 2010 98.12 59.32 2.01 agosto 2010 100 62.37 1.91 setembro 2010 101.93 65.5 1.93 outubro 2010 103.95 68.77 1.98 novembro 2010 106.33 72.64 2.29 dezembro 2010 108.56 76.27 2.1 janeiro 2011 110.37 79.21 1.67 fevereiro 2011 112.55 82.75 1.97 março 2011 114.85 86.47 2.04 abril 2011 117.63 90.99 2.42 maio 2011 120.71 95.99 2.62 junho 2011 123.81 101.02 2.57 julho 2011 126.58 105.52 2.24 agosto 2011 128.75 109.05 1.72 setembro 2011 131.28 113.15 1.96 outubro 2011 133.72 117.11 1.86 novembro 2011 135.96 120.75 1.68

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dezembro 2011 137.83 123.79 1.38 janeiro 2012 139.51 126.52 1.22 fevereiro 2012 141.34 129.49 1.31 março 2012 143.17 132.45 1.29 abril 2012 144.9 135.26 1.21 maio 2012 146.63 138.07 1.19 junho 2012 148.38 140.92 1.2 julho 2012 150.33 144.09 1.32 agosto 2012 152.43 147.5 1.39 setembro 2012 154.78 151.32 1.54 outubro 2012 156.5 154.1 1.11 novembro 2012 158.31 157.04 1.16 dezembro 2012 159.58 159.11 0.8 janeiro 2013 161.01 161.43 0.9 fevereiro 2013 162.33 163.56 0.82 março 2013 163.76 165.89 0.88 abril 2013 165.57 168.83 1.11 maio 2013 167.29 171.62 1.04 junho 2013 169.08 174.52 1.07 julho 2013 171.22 178.01 1.27 agosto 2013 173.32 181.41 1.22 setembro 2013 175.37 184.74 1.18 outubro 2013 177.51 188.21 1.22 novembro 2013 179.82 191.96 1.3 dezembro 2013 181.78 195.15 1.09 janeiro 2014 183.14 197.36 0.75 fevereiro 2014 184.27 199.19 0.62 março 2014 185.57 201.3 0.71 abril 2014 186.97 203.57 0.75 maio 2014 188.3 205.74 0.71 junho 2014 189.8 208.17 0.79 julho 2014 191.24 210.5 0.76 agosto 2014 192.59 212.7 0.71 setembro 2014 193.36 213.95 0.4 outubro 2014 193.94 214.9 0.3 novembro 2014 194.45 215.71 0.26 dezembro 2014 195.11 216.8 0.34 janeiro 2015 196 218.24 0.46 fevereiro 2015 197.09 220 0.55 março 2015 198.13 221.69 0.53 abril 2015 198.87 222.9 0.38 maio 2015 199.21 223.46 0.17 junho 2015 199.4 223.75 0.09 julho 2015 199.6 224.09 0.1 agosto 2015 199.74 224.3 0.07 setembro 2015 199.9 224.56 0.08 outubro 2015 199.97 224.68 0.04 novembro 2015 200.04 224.79 0.04 dezembro 2015 200 224.74 -0.02 janeiro 2016 200.04 224.79 0.02 fevereiro 2016 200.2 225.06 0.08

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março 2016 200.27 225.16 0.03 abril 2016 200.4 225.38 0.07 maio 2016 200.64 225.78 0.12 junho 2016 200.6 225.7 -0.02 julho 2016 200.5 225.54 -0.05 agosto 2016 200.2 225.06 -0.15 setembro 2016 200.15 224.98 -0.02 outubro 2016 200.39 225.37 0.12 novembro 2016 200.53 225.59 0.07 dezembro 2016 200.82 226.06 0.14 janeiro 2017 200.83 226.07 0.01 fevereiro 2017 201.2 226.67 0.18 março 2017 201.57 227.28 0.18 abril 2017 202.11 228.15 0.27 maio 2017 202.18 228.26 0.03 junho 2017 202.12 228.17 -0.03 julho 2017 202.11 228.16 0 agosto 2017 202.48 228.76 0.18 setembro 2017 202.9 229.45 0.21 outubro 2017 203.24 229.98 0.16

Fonte: FIPE-ZAP (http://fipezap.zapimoveis.com.br/)

Contudo, a ferramenta digital do blog deparava-se com alguns limites explicativos

quanto à relação entre o aumento do preço dos imóveis (‘valorização imobiliária’) e

as ocorrências de incêndios. Um deles é a própria série histórica iniciada em 2008.

Se há nexos entre esses incêndios e o período de aumentos extraordinários nos

preços dos imóveis urbanos (superespeculação), uma série histórica mais

abrangente poderia demonstrar esta hipótese, uma vez que permitiria comparar com

períodos anteriores em que não se constatou os mesmos aumentos expressivos nos

preços do solo urbano.

Deste modo, uma conclusão precipitada poderia sugerir que, a partir da

sobreposição dos layers (ocorrência de incêndios e índices de preços FipeZap), os

incêndios coincidem com os espaços e com a temporalidade da valorização

imobiliária, isto é, nos lugares da cidade em que houve aumentos extraordinários

nos preços dos imóveis ao longo do período de superespeculação.

A bibliografia que estuda e pesquisa as transformações recentes no mercado

imobiliário brasileiro de um ponto de vista crítico destaca um aprofundamento das

relações entre o mercado imobiliário e o mercado financeiro desde meados da

década de 2000-2010, com a participação ativa de incorporadores, construtores,

gestores de fundos e investidores do mercado de títulos financeiros, que passam a

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investir, centralizar, monopolizar e gerenciar estoques de terras edificáveis e de

bens imóveis em uma escala geográfica até então nunca antes alcançada (Ver Fix,

2011). Este aprofundamento podia ser observado também a partir da ampliação das

linhas de crédito ao consumo e de instrumentos de capitalização dos sistemas

nacionais de crédito imobiliário (SFI) e habitacional (SFH) (Ver Royer, 2010). O

crescimento generalizado dos preços e um conjunto de transformações nos agentes

do ramo imobiliário e no espaço urbano de São Paulo e outras cidades brasileiras

neste período reforçaram as análises de que a propriedade de bens imóveis no

Brasil se tornava cada vez mais um ativo financeiro, processo que tende a se

intensificar na medida em que aumentam os investimentos de capital no mercado de

terras (Harvey, 2013a).

Considerando a complexidade de fatores que incidem sobre a variação quantitativa

do preço dos imóveis urbanos, isto é, as suas qualidades ativas de trazer na forma

de renda da terra retornos ao capital investido, pode-se inicialmente afirmar que este

mapeamento realizado pelo blog fogonobarraco disse mais sobre a geografia e a

distribuição espacial das ocorrências de incêndios em favelas na cidade do que

sobre as suas causas ou seus agentes causadores, ainda que a associação das

imagens conduza a esta conclusão.

O aumento dos preços de imóveis e de suas diferentes rendas urbanas é um

fenômeno mais amplo e mais complexo que está situado em um plano que,

inicialmente, se poderia chamar de “estrutural” da economia urbana, mediado de

diferentes maneiras, sobretudo nas dimensões jurídica, institucional e política do

Estado. A explicação baseada na teoria da renda do solo urbano (Jaramillo

González, 2009) indica que aumentos nos preços dos imóveis (descritos como

‘valorizações’) podem ser provocados por dinâmicas “estruturais”, como por exemplo

o aumento da demanda por espaço construído, combinados a oscilações

“conjunturais” no movimento geral do mercado imobiliário, ou ainda a

particularidades das empresas do ramo, da legislação local ou regional e seus

instrumentos urbanísticos e ambientais, das redes e equipamentos de infraestrutura

urbana ofertados pelo Estado, entre outros fatores que interferem na composição

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das rendas urbanas34. Além disso, sobre cada lote ou gleba em área urbana se dá

uma combinação de diferentes rendas, cada qual ligada a um processo

socioeconômico distinto. Da imbricação (“aditiva” e/ou “competitiva”) entre estas

rendas configura-se uma “renda total” para cada imóvel na cidade, cuja capitalização

permite que sejam trocados por um preço no mercado assim como um capital em

busca de retorno financeiro na forma de juros (Idem).

Na bibliografia pesquisada sobre os incêndios em favelas de São Paulo, a tese

defendida por Ana Paula Bruno (2012) contém um levantamento de dados produzido

a partir do cruzamento de dados primários coletados pelo Corpo de Bombeiros da

Policia Militar do Estado de São Paulo (CBPMESP) para o período entre 1993 e

2010, acrescido de informações divulgadas em jornais e veículos de mídia. Neste

levantamento, não há indicações de que incêndios em favelas são exatamente uma

novidade do período de superespeculação mais recente, em que se pode identificar

aumentos extraordinários nos preços dos imóveis, sobretudo a partir de 2009.

Do ponto de vista desta análise quantitativa dos registros de incêndios em favelas de

São Paulo, e pressupondo uma validade minimamente razoável dos dados

apresentados pelo CBPMESP, é possível inferir que em alguns anos houve de fato

aumento de ocorrências ao longo do período estudado pela autora (1993-2010), sem

contudo representar uma tendência de elevação contínua ou abrupta nos anos em

que se constatou a maior elevação nos preços dos imóveis (a partir de 2009),

conforme se pode observar na tabela e gráfico a seguir. Ainda assim, há que se

ponderar que estes números apresentados pela autora são limitados ao ano de 2010

e compreendem todas as ocorrências de incêndio em favelas registradas pelo Corpo

de Bombeiros, sem diferenciá-las por suas causas e seus agentes causadores,

tampouco pelo grau de intensidade desses desastres.

TABELA 02: Dados do Corpo de Bombeiros sobre os incêndios em favelas de 1993 a 2010

Ano Barraco Favela Soma (Barraco + Favela) 1993 149 18 167 1994 174 45 219 1995 156 41 197

                                                                                                               34 Jaramillo González (2009), em Hacia una Teoria de la Renda del Suelo Urbano, identifica três modalidades de movimento dos preços da terra: (i) movimentos estruturais gerais, (ii) movimentos conjunturais gerais e (iii) movimentos estruturais particulares.

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42  

1996 154 33 187 1997 147 29 176 1998 141 52 193 1999 146 59 205 2000 139 59 198 2001 159 65 224 2002 125 54 179 2003 118 82 200 2004 94 41 135 2005 88 67 155 2006 113 43 156 2007 43 77 120 2008 52 78 130 2009 52 69 121 2010 53 57 110

Fonte: Dados do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo extraídos de Bruno (2012)

GRÁFICO 02: Dados do Corpo de Bombeiros sobre os incêndios em favelas de 1993 a 2010

Fonte: Dados do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo extraídos de Bruno (2012)

Os dados apresentados na CPI dos incêndios pelo vereador Floriano Pesaro (PSDB)

e utilizados para basear o relatório final desta comissão apontam para uma redução

0  

50  

100  

150  

200  

250  

1993   1995   1997   1999   2001   2003   2005   2007   2009  

Barraco  

Favela  

Soma  

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gradativa do número geral de ocorrências desde a institucionalização de ações no

âmbito da Prefeitura do Município de São Paulo que culminariam na criação, em

2009, do Programa Municipal de Prevenção e Combate a Incêndios em Favelas

(PREVIN), cujo projeto de lei data de 2001.

TABELA 03: Registros de ocorrência de incêndios em favelas (Dados CPI, 2012)

Ano Incêndios 2001 224 2002 169 2003 200 2004 185 2005 151 2006 156 2007 120 2008 130 2009 129 2010 31 2011 79 2012 69

Fonte: Volume V, autos do processo administrativo da CPI dos incêndios, página 16.

Uma possível explicação para estes dados apresentados na conclusão do relatório

final da CPI pode ser identificada no fato de que, pelo menos até o ano de 2009,

foram considerados os dados da “soma” dos dois conjuntos de ocorrências de

incêndios registrados pelo Corpo de Bombeiros: os incêndios sob as rubricas

“barraco” e “favela” foram considerados sem identificar a diferenciação entre eles.

Nesta classificação, o primeiro se refere a incêndios de menores proporções que

não atingem mais de um “barraco”, enquanto o segundo se limita a identificar

ocorrências de maiores proporções, sem contudo escalonar ou diferenciar o grau de

intensidade, como por exemplo pelo número de moradias destruídas, desabrigados,

desalojados, mortos, feridos, etc. Enquanto se verifica uma redução gradativa no

número de pequenas ocorrências em “barraco”, os incêndios em “favelas”

apresentaram aumentos com picos sobretudo nos anos de 2003, 2007 e 2008, sem

contudo apresentar uma tendência de queda ou aumento contínuo ao longo do

período que corresponde à superespeculação com o preço dos imóveis, que são os

ativos financeiros da capitalização da renda fundiária urbana.

Como pondera Bruno (2012: 136), os dados coletados pelo CBPMESP não

permitem uma análise da severidade e do impacto dos incêndios classificados na

rubrica “favela”, uma vez que a informação sobre o número de domicílios atingidos

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não é sistematizada ou sequer coletada por esta instituição. Do ponto de vista

institucional a coleta destas informações não se refere a atividades do Corpo de

Bombeiros, mas da Coordenadoria de Defesa Civil do Município. Até por este

motivo, o trabalho de Ana Paula Bruno não se limita ao ponto de vista quantitativo da

análise deste fenômeno, avançando para uma análise qualitativa sobre as formas

institucionais de regulação jurídica e urbanística do problema.

Em 2016, dados divulgados pela Coordenadoria de Defesa Civil do Município de

São Paulo indicavam que, entre 2009 e 2016, ocorreram 535 incêndios em favelas

de São Paulo. Dentre os quais foram 387 no período compreendido entre 2009 e

2012 (Gestão Gilberto Kassab) e 148 no período subsequente de 2013 a 2016

(Gestão Fernando Haddad), a princípio uma redução de 61% nos registros de

ocorrência de incêndio em favelas da capital paulista35. Estes dados, no entanto,

também não diferenciam os registros, como já apontado, por grau de intensidade e

quantidade de desabrigados, desalojados, mortos, feridos, perdas, danos, etc.,

tampouco por mês/ano ou por localização nos distritos do município, ou mesmo por

suas causas diretas e seus agentes causadores.

Além disso, apesar do crescimento em termos absolutos das ocorrências de

incêndio registradas sob a rubrica “favelas”, Ana Paula Bruno ressalva que “seu

crescimento não é expressivo se tomado em relação ao crescimento dos domicílios

e da população que reside em favelas no município” (Bruno, 2012: 146). O

crescimento das ocorrências de incêndio, se observada em termos relativos ao

crescimento da população e ao adensamento das favelas no período, pode significar

apenas variações na qualidade dos dados demográficos produzidos ou mesmo

variações aleatórias na quantidade de incêndios registrados (Idem).

No entanto, observe-se que, pela classificação do Corpo de Bombeiros a respeito

dos incêndios em favelas no município de São Paulo, na maior parte das

ocorrências não se identifica a causa direta do incêndio (61,18%). As causas diretas

identificadas com maior frequência referem-se a instalações elétricas inadequadas

(14,68%) e a atos incendiários (10,48%)36. Estes últimos são aqueles incêndios

                                                                                                               35 Dados divulgados em 2016 pela Coordenadoria de Defesa Civil do Município no site da Prefeitura de São Paulo. 36 Estes dados referem-se aos registros de incêndios para os anos de 1994, 1998, 2001, 2002 e 2003 (Bruno, 2012: 150).

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provocados intencionalmente e passíveis de caracterização de conduta dolosa

tipificada pelo Código Penal Brasileiro como “ato de causar incêndio” no seu artigo

250.

TABELA 04: Causas diretas dos incêndios em favelas de São Paulo (dados referentes aos anos de 1994, 1998, 2001, 2002 e 2003)

Causas diretas dos incêndios Número absoluto % sobre o total de

registros

Desconhecida / sem informação 175 61,18%

Instalação elétrica 42 14,68%

Ato incendiário 30 10,48%

Brincadeira de criança 8 2,79%

Negligência com vela 8 2,79%

Displicência na cozinha 7 2,44%

Prática de ações criminosas 5 1,74%

Displicência de fumantes 3 1,04%

Vazamento de gás (GLP) 3 1,04%

Ignição espontânea 2 0,69%

Uso de fósforo ou isqueiro 1 0,34%

Líquidos inflamáveis 1 0,34%

Raios 1 0,34%

Total de registros 286 100%

Fonte: Dados do Corpo de Bombeiros extraídos da pesquisa de Bruno, 2012.

Além dos incêndios que se iniciam por acidentes e eventos “involuntários”, Ana

Paula Bruno (2012: 95 e 96), partindo de Mike Davis37 (2006) em Planeta Favela

(Planet Slum), considera três hipóteses gerais para atos incendiários “voluntários”.

Isto é, provocados intencionalmente, considerando voluntário ou involuntário no que

diz respeito a dolo e culpa, o que não necessariamente exclui ou caracteriza a

criminalização. Considerando relatos e similitudes de casos em outras cidades

                                                                                                               37 Davis menciona as ações incendiárias (“demolições a quente”) que ocorreram em Manila, nas Filipinas, sobretudo no ano de 1993, quando a cidade passou por uma elevação acentuada nos preços dos imóveis localizados no entorno da zona portuária em expansão.

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46  

capitalistas integradas ao mercado mundial, em que a terra urbana e os imóveis

podem se tornar ativos financeiros assemelhados ao capital, pode-se inicialmente

sistematizar estas hipóteses de ato incendiário voluntário da seguinte maneira, por

autoria da conduta criminosa dolosa:

1. Proprietários e/ou promotores imobiliários, possivelmente por meio de

encomendas a profissionais e/ou empresas de segurança e/ou vigilância

privada, como tática para promover uma “higienização” do lugar e uma

consequente elevação das rendas urbanas;

2. Milícias ou gangues vinculadas direta ou indiretamente a partidos políticos

e/ou representantes políticos locais para “furar a fila” da demanda por

habitação social oferecida pelo Estado, de modo a comprar votos e/ou apoio

político sobretudo nas eleições proporcionais. No caso de São Paulo, para o

cargo de vereador municipal;

3. Supostos ou falsos “líderes da comunidade”, associados ou não ao “crime

organizado, semi-organizado ou desorganizado” (Lopes de Souza, 2016),

com o objetivo de controlar as listas de beneficiados que obtém apoio do

poder público e com isso se apropriar de possíveis indenizações ou da

posição de poder conferida pelo acesso a programas de moradia e de

assistência social aos atingidos;

Exceto na hipótese de incêndio voluntário como tática de higienização do lugar para

obter maiores rendas urbanas para os agentes da promoção imobiliária (1), nas

outras duas possibilidades (2 e 3) a motivação para a prática do ato incendiário

voluntário requer necessariamente a existência de uma oferta de habitação de

interesse social pelo Estado mediante programas de atendimento habitacional, seja

por meio de contratação de linhas de crédito subsidiadas por bancos públicos ou

outras formas de mútuo, seja por meio de pagamento por órgãos públicos de uma

quantia em dinheiro referente a um auxílio aluguel para os atingidos (é o caso dos

programas de Aluguel Social e Parceria Social) e outras formas específicas de

assistência social aos atingidos.

Sobre a distribuição geográfica das ocorrências, a pesquisa de Bruno (2012) aponta

para uma maior proporção de incêndios em favelas localizadas: (i) no Centro

Expandido; (ii) nos Perímetros de Operações Urbanas Consorciadas (OUC); e (iii) no

entorno das marginais, conforme detalhado na tabela a seguir. Estes dados sugerem

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que existe uma concentração das ocorrências de incêndio em favelas de modo não

associado à temporalidade da superespeculação no ciclo da acumulação de capital,

mas sim à distribuição desses lugares no espaço urbano, fatores que incidem na

composição das rendas fundiárias acrescidas (rendas diferenciais e de monopólio

associadas à localização urbana) e não de modo generalizado no território do

Município (renda absoluta38).

TABELA 05: Favelas incendiadas por localização (Centro expandido, OUC e entorno das marginais)

Total de favelas

Favelas incendiadas

Quantidade de incêndios

Favelas incendiadas /

favelas

No centro expandido

39 9 19 23,1% Centro expandido

Fora do centro expandido

1887 56 103 3,0%

No Perímetro de OUC’s

283 29 71 10,2% Operações Urbanas Consorciadas

(OUC’s) Fora do Perímetro de OUC’s

1643 36 51 2,2%

Em áreas lindeiras às marginais

49 14 32 28,6%

Entorno das marginais

Fora de áreas lindeiras às marginais

1877 51 91 2,7%

Fonte: Dados extraídos da pesquisa de Bruno, 2012.

Diante desses dados a respeito da localização das favelas incendiadas, conclui a

autora:

Comparados esses dados à distribuição das favelas paulistanas por esses mesmos territórios, percebe-se que a presença de favelas incendiadas é proporcionalmente superior à presença de favelas em geral. Integram a região do Centro Expandido 2% das favelas paulistanas (13,8% das favelas incendiadas), o entorno das marginais, 2,5% (21,5% das favelas incendiadas), e os perímetros de OUC’s, 14,7% (44,6% das favelas incendiadas). (Bruno, 2012: 195)

                                                                                                               38 As diferenças entre as modalidades de renda fundiária urbana serão explicadas no capítulo seguinte.

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48  

1.2. O PROGRAMA MUNICIPAL DE PREVENÇÃO CONTRA INCÊNDIOS

(PREVIN)

O relatório da CPI destaca a existência e implementação do Programa Municipal de

Prevenção contra Incêndios em Assentamentos Precários (PREVIN). Embora este

programa municipal tenha início no ano de 2001 com a Portaria n. 589/2001/SEHAB

(aplicação de verbas de atendimento habitacional para o atendimento de famílias

atingidas por incêndios em favelas), o projeto de lei n. 558/2001, de autoria do

vereador Celso Jatene (então filiado ao PTB), que instituía o programa de prevenção

e combate a incêndios em favelas no âmbito da Administração Pública Municipal,

somente foi aprovado e se tornou lei com a promulgação da Lei Municipal n.

15.022/2009. Ainda assim, as ações institucionais deste programa foram

efetivamente implementadas apenas a partir de 2010, com a edição do Decreto n.

51.816, que criou a “Câmara Executiva de Prevenção e Combate a Incêndios no

Município de São Paulo” no âmbito da Secretaria de Coordenação das

Subprefeituras (Bruno, 2012: 259).

O PREVIN, uma vez operacionalizado nas instituições municipais, passa então a

classificar e eleger locais em situação “crítica” de vulnerabilidade de acordo com o

risco39 de incêndio. No Relatório Final da Câmara Executiva de Prevenção e

Combate a Incêndios no Município de São Paulo, apresentado à época na CPI, em

2012, consta que o programa já atuava em 51 favelas do município de São Paulo,

tendo o primeiro ciclo de implantação do programa sido iniciado em abril de 2011.

Ressalve-se que este universo não corresponde à totalidade das favelas atingidas

por incêndio, mas apenas àquelas incluídas no PREVIN.

Ciclo Assentamentos Período de implantação

Primeiro Ciclo 20 Abril 2011 a Dezembro de 2011

Segundo Ciclo 17 Julho de 2011 a Abril de 2012

Terceiro Ciclo 7 Novembro de 2011 a Agosto de 2012

Quarto Ciclo 7 Marco de 2012 a Dezembro de 2012

                                                                                                               39 Sobre a relação entre risco e legitimação, ver Niklas Luhmann e sua teoria sociológica do risco. In: Luhmann, Niklas. Risk: a sociological theory. Aldine de Gruyter, New York, 1993.

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49  

TOTAL 51

.

Assentamentos do Primeiro Ciclo - PREVIN

Subprefeitura Assentamento Logradouro 01 Logradouro 02

Cidade Ademar Garoupas Rua das Garoupas Rua dos Robalos

Butantã São Remo Av. São Remo Av. Corifeu de Azevedo

Marques

Campo Limpo Jardim Elga Rua Luiz Gonzaga Freire -

Capela do Socorro “ZR” R Alziro Pinheiro Magalhães Rua Ricardo Macedo

Casa Verde Francisco do Amaral II Rua Serrana Fluminense Rua Francisco Eugênio

Amaral

Ermelino Matarazzo Keralux IV Rua Mamonas Rua Lucas Gonçalves

Brasilândia/Freguesi

a

Hugo Ítalo Merigo Av. Hugo Ítalo Merigo Rua Talhamar

Guaianases Estanilau de Toledo Piza Rua Estanislau de Toledo

Piza

Rua Theotônio Pavão

Ipiranga Heliópolis – Gleba F Rua Maciel Parente Rua dos Pilões

Itaquera A. E. Carvalho Rua Zorrilho Rua Pacarana

Itaim Paulista Favela d’Avó / da União Av. Marechal Tito, 3199 Rua Dr. Gil Martins (final)

Jabaquara Guian / Corruíras Rua Guian, altura do n. 120 Rua Corruíras, altura do n.

200

M’Boi Mirim Alto da Baronesa – Jd. Angela Estrada da Baronesa Av. Nova Arcadia

Mooca Ass. Sto Antonio de Canindé Rua Com. Nestor Pereira

Pirituba/Jaraguá Jardim Taipas Rua João Gomes Mendonça

80

Rua Dirce Gomes de Souza

Perus Recanto dos Humildes – Jd. da

Paz

Rua Violeta Silvestre Av. da Mina

Santo Amaro

(piloto)

Sonia Ribeiro – Morro do Piolho Rua Sonia Ribeiro Av. Jornalista Roberto

Marinho

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50  

Santo Amaro Levanta Saia – Jd. Aeroporto Av. Jornalista Roberto

Marinho

Rua Ipiranga

Sé Comunidade do Moinho Al. Dino Bueno Viaduto Eng. Orlando Murgel

Vila Prudente Vila Prudente Rua João Afonso Viaduto Grande São Paulo

Total Primeiro Ciclo + Piloto

20

Assentamentos do Segundo Ciclo - PREVIN

Subprefeitura Assentamento Logradouro 01 Logradouro 02

Cidade Ademar Coréia Rua Jose Antonio Martins Rua Silvio Esteves

Butantã Uirapuru – Joaquim Santana Av. Joaquim Santana Rua Juraci Gomes dos Santos

Campo Limpo Guerreiro Rua Guerreiro -

Capela do Socorro Alto da Alegria ou Belmira I e II Av. Belmira Marin Av. Antonio Carlos Benjamin

Casa Verde Complexo Cabuçu I Av. General Penha Brasil Rua Gervásio Leite Rebelo

Freguesia do Ó Cidade Baixa Av. Dep. Cantidio Sampaio Rua Marcelino José de Freitas

Guaianases Rua Maria Amália de Assunção Rua Aldeia dos Machacalis Rua Baltazar Barroso

Ipiranga Boqueirao Rua Dom Macário Rua Eugenio Falk

Itaquera Maria Luiza Amaricano Av. Maria Luiza Americano Rua Rangel de Souza

Itaim Paulista Tijuco Preto Av. Córrego Tijuco Preto

Jabaquara Cidade de Santos Rua Cidade de Santos Rua Dr. Mario de Campos

M’Boi Mirim Parque Europa Av. Hungria Rua Hercília Gonçalves

Santos

Penha Esperantinópolis Esperantinópolis

Pirituba/Jaraguá Jardim Sydney II Rua Caxambu do Sul Av. Raimundo Pereira

Magalhães

Perus Parque Anhanguera Rua de Figueiredo Rua Antonio da Costa

Magueta

Santo Amaro Comando Av. Jornalista Roberto Rua Estevão Baião

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51  

Marinho

Vila Prudente Ilha das Cobras Rua João Afonso Viaduto Grande São Paulo

Total Segundo Ciclo

17

Assentamentos do Terceiro Ciclo - PREVIN

Subprefeitura Assentamento Logradouro 01 Logradouro 02

Cidade Ademar Abacateiro Rua Ponte de Moraes Av. Augusto de Castro

Butantã Arpoador Rua Juliante Vigne Av. Asdrúbal da Cunha

Campo Limpo Jardim Olinda Rua Nina Stocco -

Freguesia do Ó Gato Preto I e II Rua Aristeu Valente Rua Antenor Oliveira e Silva

Jabaquara Americanopolis Rua Sepins Rua Francisco Solimeno

M’Boi Mirim Chácara Bananal - Bombeiro Rua da Carvoeira Rua dos Bombeiros

Vila Prudente Sinhá Estrada da Barreira Grande Av. Nova Brasilia

Total Terceiro

Ciclo

7

Assentamentos do Quarto Ciclo - PREVIN

Subprefeitura Assentamento Logradouro 01 Logradouro 02

Cidade Ademar Ingaí Estrada do Alvarenga Rua Rodrigues de Medeiros

Butantã Jaqueline (Morro da Fumaça) Rua Valentim Seitz Rua Denis Chaudet

Campo Limpo Vila Praia Rua Maximino Maciel Rua Dr. Luiz Migliano

Freguesia do Ó Recanto das Estrelas Rua dos Cooperadores Rua Estevão Andrade Silva

Jabaquara Alba Rua Alba

A definir A definir

Vila Prudente Tanque Itápolis Rua São José do Divino Av. Arq. Vila Nova Artigas

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52  

Total Quarto

Ciclo

7

TABELA 06: Assentamentos do PREVIN. Fonte: Relatório de Acompanhamento de 03/09/2012 do Plano de Implantação do Programa de Prevenção a Incêndios em Assentamentos Precários (PREVIN) nas Subprefeituras.

O plano de ação que consta do Relatório da Câmara Executiva do PREVIN

(Processo RDP 08-006/2012, fls. 751) considerou apenas três conjuntos de

atividades: (i) peças de comunicação (folders, cartazes, cartilhas); (ii) remuneração

de zeladores comunitários escolhidos dentre os moradores cadastrados e; (iii)

colunas e ramais de alimentação para a instalação de hidrantes voltados para o

combate direto ao fogo pelo Corpo de Bombeiros da Policia Militar do Estado de São

Paulo. Neste planejamento das ações custeadas pelo programa foram

desconsideradas obras de compartimentação, afastamento e rotas de fuga, sob a

justificativa de que dependeriam de prévia aprovação de projeto específico para

cada assentamento.

Para as atividades implementadas no âmbito do PREVIN, os recursos financeiros

eram provenientes do Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura

(FMSAI), criado pela Lei Municipal n. 14.934, de 18 de junho de 2009, que autorizou

o Poder Executivo do Município a celebrar convênios e contratos com o Estado de

São Paulo, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia (ARSESP) e a

Companhia de Saneamento Básico (SABESP). No âmbito do município, esta lei

passa então a regular a questão do saneamento no esteio da Lei federal n. 11.445,

publicada em janeiro de 2007, que estabeleceu novas diretrizes nacionais para a

prestação dos serviços públicos de saneamento básico pelos entes da federação.

Com base nessa legislação e no convênio firmado entre esses órgãos públicos, os

recursos que alimentavam o FMSAI eram provenientes de repasses efetuados pela

SABESP, referentes a um percentual de 7,5% calculado sobre a receita bruta obtida

a partir da exploração dos serviços de abastecimento de água e esgotamento

sanitário no Município de São Paulo.

O PREVIN passou a contar com aporte orçamentário do FMSAI após a criação do

programa em lei municipal específica em 2009. De acordo com a prestação de

contas aprovada pelo Conselho Gestor do FMSAI, foram disponibilizados no ano de

2012 as quantias de R$ 853.618,00 (oitocentos e cinquenta e três mil e seiscentos e

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53  

dezoito reais) para os serviços do primeiro ciclo de intervenções e R$ 2.080.168,00

(dois milhões, oitenta mil e cento e sessenta e oito reais) para os serviços do

segundo, terceiro e quarto ciclos de intervenção, sendo que esta última quantia foi

utilizada apenas parcialmente, num total de R$1.354.477,00, (hum milhão, trezentos

e cinquenta e quatro mil quatrocentos e setenta e sete reais), sendo o saldo do

empenho cancelado40.

De acordo com o informado na CPI pela superintendente de HABI/SEHAB, Elizabeth

França, em depoimento registrado nos autos da CPI na reunião ordinária de 12 de

dezembro de 2012, todo o universo dos assentamentos precários incluídos nas

ações do PREVIN estava excluído dos programas e projetos de regularização

fundiária de interesse social do município. Tratava-se de favelas condenadas à

remoção, que, por serem classificadas como áreas de risco de incêndio, entravam

como demanda prioritária para programas e projetos habitacionais de atendimento

provisório e/ou definitivo nos termos das resoluções do Conselho Municipal de

Habitação.

1.3. A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NA CÂMARA MUNICIPAL

DE SÃO PAULO

A instalação da CPI dos incêndios na Câmara Municipal de São Paulo foi objeto de

requerimento publicado em 27 de março de 2012, de autoria do Vereador Ricardo

Teixeira, líder do Partido Verde (PV), sob a justificativa de:

(...) apurar as causas e responsabilidades pela recorrência de incêndios em favelas no município de São Paulo, bem como as providências que o poder público vem adotando para prevenir novos ‘sinistros’ e o efetivo cumprimento das finalidades dos programas e projetos de assistência a essa população.

TABELA 07: Lista de Votação – Instalação da CPI dos incêndios VEREADOR PARTIDO VOTO ABOU ANNI PV SIM ANTONIO CARLOS RODRIGUES PR NÃO ADILSON AMADEU PTB NÃO AGNALDO TIMÓTEO PR NÃO ALFREDINHO PT NÃO ANIBAL DE FREITAS PSDB SIM ARSELINO TATTO PT NÃO

                                                                                                               40 De acordo com a Nota Técnica da Secretaria Executiva do FMSAI, anexo integrante da Resolução n. 29, de 31/03/2016.

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ATILIO FRANCISCO PRB SIM AURÉLIO MIGUEL PR NÃO CARLOS NEDER PT NÃO CELSO JATENE PTB NÃO CHICO MACENA PT NÃO CLAUDINHO DE SOUZA PSDB SIM CLAUDIO FONSECA PPS SIM CLAUDIO PRADO PDT SIM DALMIN SILVANO PV SIM DAVID SOARES PSD SIM DOMINGOS DISSEI PSD SIM EDIR SALES PSD SIM ELISEU GABRIEL PSB SIM FLORIANO PESARO PSDB SIM FRANCISCO CHAGAS PT NÃO GILSON BARRETO PSDB SIM GOULART PSD SIM ITALO CARDOSO PT NÃO JAMIL MURAD PCdoB SIM JOSÉ AMÉRICO PT NÃO JOSÉ FERREIRA (ZELÃO) PT NÃO JOSÉ POLICE NETO PSD SIM JOSÉ ROLIM PSDB SIM JULIANA CARDOSO PT NÃO JUSCELINO GADELH PSB SIM MARCO AURÉLIO CUNHA PSD SIM MILTON FERREIRA PSD SIM MILTON LEITE DEM SIM NATALINI PV SIM NOEMI NONATO PSB SIM PAULO FRANGE PTB SIM QUITO FORMIGA PR NÃO RICARDO TEIXEIRA PV SIM ROBERTO TRIPOLI PV SIM SENIVAL MOURA PT NÃO SOUZA SANTOS PSD SIM USHITARO KAMIA PSD SIM

SIM NÃO TOTAL DA VOTAÇÃO 28 16

RESULTADO APROVADA

Fonte: Site da Câmara Municipal de São Paulo

A comissão, uma vez instituída, inicia uma série de requerimentos em que se pede o

envio de relatórios e documentos, bem como o comparecimento de representantes

dos órgãos competentes para apresentarem esclarecimentos perante a Câmara

Municipal. Os ofícios e relatórios apresentados pelos Distritos da Polícia Civil

Judiciária como resposta aos requerimentos da CPI dos incêndios compõem os

primeiros quatro volumes do processo administrativo número 08-0006/2012.

Atendem ao pedido de verificação de registro de ocorrências de incêndios em

favelas nos últimos 05 anos nos seus respectivos distritos policiais.

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Dentre uma infinidade de boletins de ocorrência, destaca-se o registro da recorrente

queima dos documentos de identidade (RGs) dos moradores dessas favelas

incendiadas, retratado pelos moradores da favela do Moinho na “Carta Aberta” cujo

título é “Identidades Perdidas” (Processo RDP 08-006/2012, Volume III, fls. 569).

Apenas alguns poucos laudos periciais sobre a averiguação das causas dos

incêndios constam dos autos da CPI. O laudo pericial 19.303/10, por exemplo,

referente a incêndio em favela sob o Viaduto da Rua Cap. Pacheco Chaves com a

Avenida Henry Ford, apresenta considerações finais inconclusivas quanto às causas

do desastre.

Fundamentados nas evidências técnicas constatadas e corroboradas no local dos fatos, como também embasados nos informes coligidos, infere este perito subscritor que a causa mais provável para o aparecimento das chamas foi resultante de um curto circuito na cablagem elétrica, ou mesmo um coto de vela deixado acesso, ou mesmo um ato intencional praticado por algum meliante. (Processo RDP 08-006/2012, Volume I, fls. 129)

Na investigação dos atos incendiários, também foram abertos inquéritos mais

amplos em três esferas distintas no ano de 2012. Não apenas os inquéritos

instaurados para investigar as ocorrências em especifico, que apenas remotamente

resultaram em processo penal e ainda assim para processar e culpabilizar

moradores, sem que se tenha notícia de sequer um processo penal aberto para

investigar atos incendiários dolosos. Além do inquérito parlamentar (CPI), uma

investigação mais ampla sobre a autoria destes eventos e uma suposta ligação com

a ação organizada de promotores imobiliários foi objeto de inquérito criminal do

Ministério Publico do Estado de São Paulo a partir de 2012. Ana Paulo Bruno (2012)

também destaca a abertura alguns anos antes de outro inquérito criminal para

investigar denúncias de uma suposta relação com o crime organizado ou semi-

organizado do tráfico varejista de drogas.

Contudo, os procedimentos jurisdicionais e parlamentar que investigaram essas

ocorrências não chegaram a desfechos ou provas que pudessem confirmar a

existência de nexos causais entre os incêndios e a suposta conduta de indivíduos

ligados, direta ou indiretamente, seja ao mercado imobiliário, seja ao mercado

varejista das drogas ilícitas. As perícias da polícia científica em geral não concluíram

por indiciamento e também não necessariamente quantificaram as perdas e danos,

tampouco identificaram as causas dos incêndios. Quando acionadas, recorreram ou

a fatores “extraindividuais” (descarga elétrica, materiais combustíveis, etc.) ou a

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conflitos individuais ou familiares isolados (usuários de drogas, álcool, toco de

cigarro, briga de casal, etc.) para explicar a ocorrência dos incêndios. Sem com isso

instruir os inquéritos com elementos que fundamentassem a apresentação de

denúncias-crime na forma jurídica do processo penal.

1.4. A CLASSIFICAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DA DEFESA CIVIL

Se as favelas representaram desde a Constituição Federal de 1988 uma demanda

pública específica por políticas habitacionais e fundiárias do Estado, no sentido de

prover para estes lugares e seus moradores de direitos básicos de cidadania, diante

da permanência dos mais variados riscos entraram necessariamente na agenda das

instituições da defesa civil, voltadas a promover a segurança ambiental contra

desastres e catástrofes. As favelas sob risco de incêndio, embora não sejam

mapeadas como áreas de risco conforme levantamento dos aspectos geológicos do

solo41, demandam por ações dos órgãos públicos responsáveis pelas ações de

Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros em atividades como salvamento, resgate e

apoio aos atingidos (desabrigados, desalojados, mortos, feridos, perdas, danos,

etc.).

Até 2012, a legislação federal que tratava das práticas de defesa civil estava limitada

a autorizar transferências de recursos entre órgãos da Administração Pública para o

atendimento aos atingidos, desabrigados e desalojados em razão dos efeitos dos

desastres e para ações institucionais de prevenção e contenção dos riscos e

ameaças que novos desastres poderiam desencadear. Estas transferências são

necessárias e requisitadas em casos de desastres reconhecidos nacionalmente pelo

Ministério da Integração Nacional mediante decreto de Estado de Emergência ou

Estado de Calamidade Pública. Os dados mais consolidados que se tem sobre

monitoramento, estudados pela sociologia dos desastres (Valencio, 2010a), são os

referentes a estas situações mais graves e de maior impacto que demandaram

intervenção federal.

                                                                                                               41 Em São Paulo, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) elabora e atualiza este mapa para áreas sob risco de deslizamento, enchentes, etc.

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57  

A consolidação da legislação federal relativa às práticas institucionais de defesa civil,

instituída pela Lei Federal 12.608, de 12 de abril de 2012, criou a Política Nacional, o

Sistema Nacional e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil. A lei federal de

2012 autorizou também a criação de um sistema integrado de informações em

plataforma digital com o objetivo de monitorar a ocorrência desses eventos e integrar

as ações institucionais dos órgãos responsáveis pela defesa civil nos diferentes

entes da federação (União, Estados e Municípios/Distrito Federal). Para monitorar os

desastres ocorridos em território brasileiro, foi revisada e padronizada a classificação

e a codificação CODAR, com o objetivo de uniformizar os registros de ocorrência de

desastres.

Um “desastre”, na terminologia adotada pela Política Nacional de Proteção e Defesa

Civil (2012), pode ser definido como:

• Resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais e ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais.

• A intensidade de um desastre depende da interação entre a magnitude do evento adverso e a vulnerabilidade do sistema e é quantificada em função de danos e prejuízos.

(Glossário. Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, pg. 09. In: www.mi.gov.br)

A favela é o “sistema receptor vulnerável” em que ocorre o “evento adverso” no caso

de um incêndio. Um incêndio em uma favela corresponde a um tipo de desastre na

classificação da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDC), codificação

CODAR – HT.IED / 21.405.

Trata-se de um desastre de natureza tecnológica, classificado como “incêndio em

edificações com grandes densidades de usuários”, em que estão presentes técnicas

rudimentares de construção, materiais combustíveis como a madeira, ligações

elétricas precárias, etc. Pode estar associado, quanto a sua evolução e a sua

intensidade, a causas naturais relacionadas à intensa redução das precipitações

(estiagens CODAR - NE.SES/12.401, secas CODAR - NE.SSC/12.402 e queda da

umidade relativa do ar CODAR - NE.SQU/12.403).

Por se tratar de uma legislação recente e que depende da institucionalização de

suas medidas programáticas nos órgãos públicos das diferentes esferas da

federação, verifica-se que no Estado de São Paulo, e não apenas no Município, não

há uma padronização desses registros de acordo com as definições e codificações

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da PNPDC que possibilite a avaliação comparativa das séries históricas de

ocorrências de desastres do tipo incêndio urbano no período pretendido.

Na PNPDC, os desastres são classificados em termos de intensidade, evolução e

origem, podendo ser de pequeno, médio, grande e muito grande porte, estar

relacionados a causas naturais, antropogênicas ou mistas. A ocorrência de um

desastre, nesses termos, não se limita às áreas urbanas definidas e identificadas

pela legislação urbana e ambiental e pelas instituições de defesa civil como “áreas

de risco”. Um desastre pode ocorrer fora dessas áreas de risco, como é o caso de

incêndios urbanos, a exemplo do que se passa nas favelas paulistanas, e ainda

assim acionar mecanismos institucionais de proteção e defesa civil dos atingidos.

Ao adotar a doutrina internacional de redução de riscos de desastres (Agência de

Redução do Risco de Desastres das Nações Unidas – UNISDR/ONU), a legislação

nacional e os manuais institucionais de Defesa Civil (Glossário, Atlas, Anuário)

passaram a padronizar a terminologia adotada para a nomeação, classificação e

hierarquização dos desastres ocorridos no país.

TABELA 08: Terminologia dos Desastres - PNPDC

Nível I

Acidente. Desastre de pequeno porte no que se

refere aos danos, prejuízos e consequências para

os afetados. Aporte de recursos existentes do

Município.

Nível II

Desastre de médio porte. Danos e prejuízos

significativos. Aporte de recursos existentes do

Município.

Nível III

Desastre de grande porte. Requer recursos do

Estado e/ou da União para reforçar os recursos do

Município.

Intensidade do

Desastre

Nível IV

Desastre de muito grande porte. Requer ação

coordenada dos três níveis do Sistema Nacional de

Defesa Civil e, em alguns casos, de apoio

internacional.

Evolução do

desastre Por somação de

efeitos parciais Numerosas ocorrências e/ou acidentes

semelhantes, quando somadas ao término de um

determinado período, definem um desastre muito

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59  

importante

Graduais de evolução

crônica

Desastre que evolui por etapas de agravamento

sucessivo

Súbitos de evolução

aguda

Desastre caracterizado pela velocidade e pela

violência dos eventos causadores. Pode ser

inesperado ou apresentar características cíclicas

ou sazonais.

Naturais

Provocados por fenômenos e desequilíbrios da

natureza, fatores externos à ação humana. Estes

fatores podem ser de origem sideral (meteoros,

asteroides, etc.) ou relacionados à biocenose

(pragas) e à geodinâmica terrestre interna ou

externa. A redução intensa nas precipitações

(chuvas) é relacionada à geodinâmica terrestre

externa e pode compreender os casos de secas,

estiagens, quedas da umidade relativa do ar e

incêndios florestais.

Humanos

(Antropogênicos)

Provocados por ação ou omissão. Homem como

agente causador. Podem ser de natureza social,

biológica ou tecnológica. Os desastres

antropogênicos de natureza tecnológica

compreendem os incêndios urbanos em

ecossistemas vulneráveis.

Origem do

Desastre

Mistos

Quando ações ou omissões humanas contribuem

para intensificar, agravar ou complicar desastres

naturais e vice-versa.

Fonte: Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Terminologia Resumida. Elaboração própria.

Esta terminologia dos desastres tipifica as situações e os casos de desastre por

critérios elegidos pelas instituições e órgãos responsáveis pela elaboração da

política nacional (no caso, o Conselho Nacional e Secretaria Nacional).

Nesta lógica formal da política de proteção e defesa civil, os incêndios em favelas

têm como “causa primária” um agente causador humano, que por sua ação ou

omissão aciona causas secundárias presentes no sistema receptor vulnerável (a

densidade da aglomeração urbana, as construções fora dos parâmetros construtivos

e de segurança contra incêndios, os materiais combustíveis como a madeira, as

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técnicas rudimentares de instalação elétricas e de gás, etc.). Podem ser

intensificadas ou agravadas diante de causas naturais relacionadas com a redução

nas chuvas e no abastecimento de água, motivo pelo qual os eventos catastróficos

em favelas incendiadas podem apresentar agentes causadores mistos, em que

concorrem para sua definição e classificação causas antropogênicas (tecnológica)

mescladas com causas de origem natural (redução intensa nas precipitações).

Na hipótese de origem mista estão classificados os fenômenos da geodinâmica

terrestre externa relacionados com a ação antropogênica em larga escala, como é o

caso do “efeito estufa”, “chuvas ácidas” e as “camadas de inversão térmica”, que

podem ou não provocar variações climáticas como o aumento ou a redução intensa

nas precipitações em determinada série histórica.

Ainda que se aceite considerar a concorrência de causas naturais para a definição

desses desastres como de origem mista, dificilmente se pode afirmar que a

geodinâmica terrestre externa esteja relacionada à “causa primária” desses eventos;

na melhor das hipóteses, o clima seco pode ser considerado uma causa secundária

tanto para os incêndios urbanos como para os incêndios rurais e florestais, ou ainda

uma causa relacionada à evolução e ao desdobramento da intensidade desses

“eventos” adversos.

Neste quesito, os incêndios em favelas, por maior que seja a estiagem e o clima

seco, pela própria tipologia adotada na doutrina e na política nacional de defesa civil

não podem ser classificados simplesmente como “desastres naturais”; ao contrário,

trata-se de desastres mistos ou simplesmente antropogênicos quanto à sua origem,

em que podem concorrer causas primárias e secundárias de origem “tecnológica”

com outras causas secundárias de origem “natural”.

No que diz respeito à evolução desses desastres, embora se possa argumentar que

se trata de eventos súbitos de rápida propagação e violenta destruição, não se pode

deixar de relevar o fato de que a “somação dos efeitos parciais” desses inúmeros

desastres em uma mesma cidade e em determinado período pode caracterizar um

desastre de proporções muito maiores e muito mais significativas. Ainda que muitos

desses incêndios possam ser classificados como acontecimentos de menor

intensidade, com danos e prejuízos de baixa escala, uma somatória dos efeitos de

ocorrências registradas no município em determinado período histórico pode ainda

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caracterizar o que, nos termos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil,

denomina-se um desastre de grandes proporções por “somação de efeitos parciais”.

No caso dos dados divulgados pela Coordenadoria de Defesa Civil do Município de

SP em 2016, que apontou para uma redução de 61% das ocorrências de incêndios

em favelas no período de 2013 a 2016 em relação ao período anterior de 2009 a

2012, a ausência de classificação e diferenciação relativa à intensidade/magnitude,

aos desdobramentos/evolução e às causas primárias/secundárias desses incêndios

torna esses dados quantitativos ainda assim bastante vagos. Não se quer com isso

negar a informação divulgada pela coordenadoria municipal, mas apenas e

inicialmente problematizar a insuficiência e a imprecisão desses dados para fins de

pesquisa com base nos próprios pressupostos formais da doutrina de defesa civil

adotada pela PNPDC. A diminuição no número geral de ocorrências registradas, a

depender da magnitude dos eventos (intensidade do incêndio) e da vulnerabilidade

dos sistemas receptores (a densidade demográfica e a precariedade das

construções na favela atingida, por exemplo) pode não corresponder à realidade do

que ocorreu nas favelas de São Paulo.

1.5. CLIMA E RISCO DE INCÊNDIO

Outra questão objeto da pesquisa de Bruno (2012) é a relação entre as condições

ambientais do clima e as ocorrências de incêndios em favelas de São Paulo. Deste

ponto de vista, esta correlação não apresenta resultado conclusivo. Contudo,

observa-se que nos meses mais frios, que também são os meses mais secos do

ano, o número de ocorrências de incêndio tende a ser maior (Bruno, 2012: 149), o

que pode apontar para uma correlação entre a frequência desses eventos e

aspectos climáticos como a variação dos índices pluviométricos e os níveis de

umidade relativa do ar. No entanto, para afirmar tal hipótese, seria preciso analisar

os dados climáticos no momento exato das ocorrências, uma vez que podem variar

sensivelmente ao longo do dia e dos meses observados. Estes dados, contudo, não

foram coletados e não estão disponíveis.

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GRÁFICO 03: Totais anuais de precipitação (mm) - 2005 A 2015

Ano Precipitação total (mm)

2005 1729.6

2006 2009.3

2007 1623.4

2008 1659.8

2009 2017.3

2010 1885.8

2011 1700.1

2012 1932.7

2013 1391.3

2014 1253.3

2015 1896.8

TABELA 09: Totais anuais de precipitação total (mm). Dados da estação de São Paulo, Mirante de Santana, para série histórica 2005-2015. Fonte: www.inmet.gov.br

A constatação da redução do volume pluviométrico na cidade não explica

suficientemente as ocorrências de incêndios, assim como o argumento oposto da

‘valorização imobiliária’ também não as explica. Contudo, tanto estes extremos

climáticos quanto as transformações econômicas da cidade podem ter favorecido a

recorrência e a eficácia de incêndios em determinadas favelas do Município.

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A “hipótese Gaia” (Lovelock & Sidney, 1975), levantada inicialmente pelo britânico

James Lovelock na década de 1970, apostava em um tom catastrofista que

sedimentou bases para o discurso ambientalista a respeito dos riscos do

aquecimento global. A hipótese hegemônica encampada pelo Painel

Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas

(Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC) considerou o aquecimento

global uma decorrência direta da emissão de gases do efeito-estufa, em uma

relação direta com o crescimento do consumo de combustíveis fósseis, recursos

originados do petróleo, do gás e do carvão mineral.

Alguns climatologistas no Brasil passaram a nomear esta hipótese de aquecimento

global antropogênico e sua institucionalização no âmbito do IPCC enquanto um

discurso identificado como terrorismo climático (Molion, 2006), uma vez que o terror

e o medo de catástrofes ambientais globais passavam a funcionar não apenas para

criar consciência ambiental, mas sobretudo ideias e consensos políticos

internacionais, fundamentados em questões e debates científicos altamente

complexos e controversos como é o caso das previsões e projeções climáticas. Por

resumir a problemática ambiental a uma questão climática relacionada às emissões

de CO2, eleito grande “vilão” do meio ambiente, cumpriria um papel no sentido de

capitalizar e securitizar os riscos de escassez do mercado de recursos naturais

utilizados como combustíveis fosseis, como petróleo, gás e carvão mineral, objetos

privilegiados das disputas globais da guerra ao terror.

O relatório apresentado pelo Brasil na 11a Conferência do Clima em Paris (COP-11),

em dezembro de 2015, frisou a importância da utilização de uma matriz energética

baseada em hidrelétricas (UHE), uma vez que substituem outras matrizes baseadas

na queima de combustíveis fósseis como é o caso das termoelétricas. Contudo,

projetos como a usina de Belo Monte, em Altamira (PA), e outros projetos em

andamento como no Tapajós e nas pequenas UHE, usinas consideradas de “energia

limpa” do ponto de vista estritamente ambiental dos níveis quantitativos de emissão

de CO2 na atmosfera mensurados pelo IPCC, representam catástrofes

socioambientais de proporções ainda não devidamente mensuradas do ponto de

vista qualitativo.

Para estes climatologistas, embora a queima de combustíveis fósseis apresente

sérios problemas ambientais de escala local e regional como a poluição do ar e a

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intoxicação das populações das grandes cidades, o clima global não seria regulado

apenas pelo CO2, mas por uma variedade de fatores físicos e astrofísicos (os

movimentos e ciclos do Sol, da Terra, da Lua e de outros astros, a intensidade das

manchas solares, as erupções vulcânicas, entre outras) combinados com ciclos de

oscilação das temperaturas dos oceanos no resfriamento/aquecimento do globo

terrestre. O problema desse ponto de vista é recair em um “negacionismo” ou

“ceticismo”, como se costuma dizer nos círculos ambientalistas, quase que

desenhando um círculo de giz que torna qualquer questionamento às teses

hegemônicas sobre o aquecimento global alguém “do lado de lá”, junto com todo o

espectro político que nega a problemática ambiental das mudanças climáticas.

Neste sentido, não se quer aqui negar a existência e a urgência em relação ao

problema que representam os efeitos climáticos devastadores da atividade humana

no modo de produção capitalista. O que se quer destacar para os fins desta

pesquisa é que, mesmo que as escalas de impacto da ação antrópica não

necessariamente tenham efeitos globais no clima e nas temperaturas, ainda assim

mudanças climáticas globais (antropogênicas ou não) impactam contextos locais ou

regionais de vulnerabilidade socioambiental criados pela atividade humana. Os

desequilíbrios ecológicos de uma cidade como São Paulo são observáveis em

múltiplas escalas e estão relacionados não apenas à poluição do ar, mas ao padrão

de uso e ocupação do solo decorrente de uma urbanização capitalista cujo

pressuposto fundamental é a propriedade privada da terra, que sistematicamente

expõe as populações mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico a riscos de

desastres e catástrofes ambientais como as enchentes, os deslizamentos, as

inundações, além de incêndios, queimadas, etc. (Valencio, 2010b). As favelas e

demais ocupações e assentamentos considerados informais, deste ponto de vista,

não são externalidades da propriedade privada, são produtos dela mesma.

Com base nisto, pode-se dizer que os impactos ambientais apresentam-se em

múltiplas escalas e são decorrentes de fenômenos como a expansão demográfica, a

urbanização, a impermeabilidade do solo, a poluição, o desmatamento, a

desertificação provocada por monoculturas agrícolas nocivas como a cana de

açúcar e o eucalipto/pinus, a mineração e outros modos de destruição e abalo de

ecossistemas por ocasião da ação humana. No caso de São Paulo, uma metrópole

que é uma das maiores aglomerações humanas do planeta é um exemplo típico das

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“ilhas de calor”, isto é, apresenta um micro-clima aquecido em função de fatores

como a concentração populacional, a impermeabilidade do solo, as construções em

concreto, ferro, asfalto, etc., que interferem nos volumes e na variabilidade das

chuvas.

Dada a complexidade do problema climático e de suas múltiplas escalas, o que se

pretende neste tópico é problematizar as práticas e os discursos de defesa civil

aplicados às favelas sob risco de incêndio, pré e pós catástrofe. Estas práticas

envolvem na dimensão institucional não apenas a atuação de órgãos e agentes da

Defesa Civil do Município de São Paulo e das Subprefeituras, mas também do

Corpo de Bombeiros da Policia Militar do Estado de São Paulo, além das polícias

civil e militar. Embora levantem as questões climáticas e sua relevância para

entender a dinâmica do fenômeno, jogam uma cortina de fumaça sobre as violências

do cotidiano dos moradores dessas favelas e sobre os conflitos fundiários que

caracterizam a história dessas ocupações. Violências não apenas diretas e físicas,

mas também simbólicas e sistêmicas (Zizek, 2014), observadas dentro de um

contexto de transformações do espaço urbano, em que lugares da cidade

classificados e hierarquizados de acordo com o risco à segurança (militar, financeira

e ambiental), tornam-se zonas de exceção para o exercício direto da violência e do

poder de polícia do Estado contra os indivíduos que vivem nas favelas e seus

lugares de moradia.

Por um lado, os lugares a serem removidos, vigiados ou disciplinados no território do

Município de São Paulo podem guardar relações peculiares com o preço dos

imóveis urbanos e a capitalização das diferentes formas de rendas fundiárias na

cidade, lançando novos problemas para os conflitos de terra urbana. Ao mesmo

tempo, a explicação baseada nos indicadores climáticos também pode ajudar a

entender a recorrência e a intensidade deste fenômeno, embora seja igualmente

mistificadora e insuficiente para explicar as múltiplas determinações dos incêndios

em favelas de São Paulo.

De fato, os anos de 2011, 2012 e 2014 foram anos que apresentaram períodos de

seca, com poucas chuvas, além de picos de manchas solares42 (Molion, 1998),

                                                                                                               42 “O Sol tem um Ciclo de 11anos em que um certo número de manchas – regiões relativamente mais frias que se deslocam das regiões extratropicais para o equador na superfície do Sol - surgem e desaparecem. O número máximo de manchas solares não é constante nos ciclos de 11 anos. Ele

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variabilidades climáticas que não se limitaram apenas a São Paulo mas que

atingiram a ilha de calor da capital paulista e suas áreas de maior densidade

demográfica de um modo particular, possivelmente associado a mudanças no clima

local e metropolitano decorrente da aceleração da expansão urbana (horizontal e

vertical) e suas diversas consequências prejudiciais ao meio ambiente urbano. Ainda

assim, estas mudanças no clima não explicam a origem do fogo nas favelas, apenas

o seu sucesso em se propagar e destruir.

1.6. INCÊNDIOS E VALORIZAÇÃO

Ainda que sustentadas as hipóteses de o aumento expressivo dos preços dos

imóveis ou de os extremos climáticos coincidirem com um aumento do grau de

intensidade dos incêndios (medido não pelo número geral de ocorrências mas pela

escala de destruição e pela intensidade do impacto), ou mesmo coincidirem com um

aumento das ocorrências de incêndios cuja causa direta é o ato incendiário, há que

se ponderar que este período de superespeculação implicou um fenômeno de

aumento de preços dos imóveis que atingiu não apenas o território do Município de

São Paulo mas se generalizou na Região Metropolitana e em diversas outras

cidades e metrópoles brasileiras.

Não se quer aqui incorrer no equívoco apontado por Kowarick (2009b: 100) para os

escritos urbanos marxistas das décadas de 60 e 70 em considerar a “espoliação

urbana” como resultado, “em última instância”, de uma “macrodeterminação da

acumulação de capital”, representada neste caso pelo aumento de preço dos

imóveis urbanos, assinalando “a existência de relativo grau de autonomia entre

essas duas modalidades de exclusão43”. Isto quer dizer, a ‘valorização’ dos imóveis

(representada no aumento de seus preços) não determina diretamente o risco de

incêndio ou a saída e remoção das favelas, senão mediante um conjunto de

“mediações” (Luhmann, apud Jameson, 2006; Mascaro, 2013), sobretudo políticas e

                                                                                                               

cresce, atinge um pico e diminui num período de cerca de 90 anos! Esse ciclo da variação do número máximo de manchas é chamado de Ciclo de Gleissberg” (Molion, 1998: 1). 43 Estas “modalidades de exclusão” são a “espoliação urbana” e a “exploração do trabalho pelo capital” (Kowarick, 2009). Estas modalidades correspondem a uma leitura do conflito de classe que diferencia duas dimensões da exclusão social, uma delas circunscrita ao “mundo do trabalho”, em que se dá a exploração direta do trabalho pelo capital na esfera da produção, e outra ao “mundo da vida”, que corresponde ao cotidiano da reprodução da classe trabalhadora .

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jurídicas. Considerar a existência de um certo grau de autonomia relativa entre a

“espoliação urbana” e as “macrodeterminações da acumulação de capital”

(Kowarick, 2009b) recoloca em outros termos a hipótese de que os incêndios em

favelas estariam de algum modo relacionados ao período de aumento especulativo

dos preços dos imóveis.

Como poderia, em outros termos, esta ‘valorização imobiliária’ ser responsabilizada

em inquéritos policiais e parlamentares por um conjunto de ameaças, riscos e

violências? Isto leva necessariamente a um questionamento de relevância não

apenas teórica como prática para os movimentos sociais e associações de

moradores de favelas que resistem aos riscos de remoção e de incêndio e que

reivindicam o direito à moradia e à cidade: quais as mediações específicas

(sobretudo as mediações políticas e jurídicas) entre esta estrutura econômica das

relações sociais de produção (o setor imobiliário em específico e a urbanização

capitalista em geral) e os indivíduos em ação no cotidiano da cidade?

Os capítulos seguintes procuram desenvolver estas questões em uma análise crítica

do fenômeno da despossessão pelo fogo no período identificado como

superespeculação imobiliária na cidade de São Paulo, considerando que existe um

conjunto de mediações entre a lógica do capital na determinação econômica dos

ganhos capitalizados com as rendas fundiárias urbanas e a realidade concreta dos

moradores que vivem em favelas sob risco de incêndio.

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2. A RENDA DA TERRA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO

URBANO

Em economia política, a explicação sobre o preço dos imóveis pode ser encontrada

na teoria da renda da terra. Nas pesquisas sobre o preço da propriedade imobiliária

nas cidades, contudo, a categoria renda da terra está ausente em muitos dos

estudos. No caso da crítica marxista, esta ausência se explica em parte porque Marx

em O Capital se atém mais detidamente à análise da renda da terra de uso rural e

ao modo como os economistas políticos burgueses tratavam a questão agrária à sua

época, o que teria levado muitos autores marxistas a rejeitar a teoria da renda

fundiária para o estudo das cidades e dos processos de urbanização ao longo do

século XX. Além disso, sob o viés economicista e juridicista (Naves, 2005), a teoria

da renda da terra passaria ainda a dizer respeito a uma dimensão especificamente

econômica da questão fundiária, em que as relações sociais de produção se

reduziriam a simples relações jurídicas de propriedade da terra.

Nos desenvolvimentos teóricos a respeito da teoria da renda fundiária para o caso

específico das cidades e dos imóveis urbanos, contudo, os enfoques marxistas

neste tema não estão limitados a uma teorização sobre a dimensão econômica do

problema da posse e da propriedade jurídica da terra e dos produtos imobiliários. No

caso específico de analisar a valorização e a especulação imobiliária a partir do

processo de produção e reprodução do espaço, pode-se identificar na teoria da

renda da terra significativas contribuições para as análises sociológicas e

geográficas de problemas e conflitos urbanos. Não se quer aqui expor sobre a teoria

da renda da terra de modo amplo e sistemático, assim como também não é o

objetivo reconstituir a partir de um método propriamente marxiano a renda da terra

enquanto conceito e categoria de análise do sistema do capital. A bibliografia que

aborda a questão da renda da terra urbana de um ponto de vista marxista conta com

contribuições que já caminham neste sentido (Jaramillo González, 2009; Grespan,

2011; Harvey, 2013; Carcanholo, 2013).

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O objetivo específico deste capítulo é situar a categoria renda da terra na análise da

produção do espaço urbano de São Paulo, de modo a considerar a especificidade

do período de superespeculação imobiliária no ciclo de capitalização das rendas

urbanas.

2.1. PREÇO, VALOR E RENDA DA TERRA

O trabalho teórico desenvolvido pelo economista colombiano Samuel Jaramillo

González em Hacia una Teoria de La Renta Del Suelo Urbano oferece um estudo

detalhado e sistemático sobre a renda fundiária e suas diferentes formas particulares

no urbano. Numa perspectiva “neomarxista” denominada “Teoria do Valor Trabalho

Abstrato” (Jaramillo González, 2016), ou “New Interpretation” (Nova Interpretação),

apresenta uma reflexão cujo núcleo é a “dimensão econômica do mercado do solo

urbano” (Jaramillo González, 2009: XII), na medida em que pressupõe uma

delimitação das relações quantitativas que se manifestam como valor de troca no

caráter monetário do trabalho abstrato. Partindo desse pressuposto, expõe a sua

teoria da renda da terra urbana percorrendo os níveis hierarquizados da abstração

teórica para apresentar a progressão do que considera a “análise estrutural” dos

processos econômicos que implicam a apropriação de rendas urbanas no

capitalismo.

Seus esforços na edição mais recente (Jaramillo González, 2009) em articular esta

“análise estrutural” com uma “análise histórica” do mercado de terras na Colômbia

partem desta opção teórico-metodológica que abstrai a dimensão do dinheiro como

representação do valor de troca das mercadorias no modo de produção capitalista,

num recorte que delimita a teoria da renda da terra urbana à análise da expressão

quantitativa do trabalho humano abstrato, e portanto, neste nível de abstração

teórica, ainda despido de suas especificidades e considerado como simples despesa

de energias humanas físicas e intelectuais. Permanece ausente desta análise o

trabalho concreto, que é o duplo do trabalho abstrato (Marx, 2013). Este trabalho

concreto se manifesta como valor de uso e é o substrato material da história social

dessas trocas, a referência qualitativa desse sistema abstratamente considerado no

nível de estruturas econômicas.

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Deste modo, ao instrumentalizar a teoria marxista para uma análise focada mais

propriamente na dimensão econômica do mercado de terras e imóveis urbanos,

Jaramillo deixa de lado a explicação de Marx sobre o fetichismo da mercadoria e do

dinheiro, de modo a considerar os preços apenas enquanto uma medida do valor de

troca, sem tratar deles enquanto representação social dos valores no sistema do

capital. Para uma explicação sobre as representações sociais, esta análise da

história do mercado de terras urbanas se apoia em teóricos da linguagem, como

Saussure e Hjemslev. O comportamento dos preços do solo, neste caso, é analisado

a partir de um olhar sobre os aspectos semiológicos que, na sua visão, constituem o

campo de mediação entre as estruturas econômicas e as práticas específicas dos

agentes sociais. Nesta perspectiva, o sistema do dinheiro em geral e dos preços do

solo urbano em particular é visto como um sistema funcional de símbolos e

representações sociais abstraídas dos conflitos e contradições entre as classes

sociais na produção, na circulação e na realização (consumo) de valor.

Observe-se que, em O Capital, a mercadoria é uma hipótese-chave para a análise

trabalho nela contido, uma vez que na forma mercantil está contida este caráter

duplo do trabalho, enquanto trabalho concreto e trabalho abstrato. Mas é notório que

autores marxistas, “pós-marxistas” ou mesmo “neomarxistas” não necessariamente

estão de acordo ou não adotam os mesmos pressupostos ontológicos e

epistemológicos da análise desenvolvida em O Capital por Marx sobre o dinheiro e

as representações sociais no modo de produção capitalista.

A respeito do fetichismo, Marx argumenta que os preços representados na forma do

dinheiro não são exatamente um falseamento deste conteúdo (o trabalho) das

mercadorias, mas a forma aparente de um “hieroglifo social”, isto é, uma

representação simbólica da grandeza de valor a ser decifrada (Marx, 2013: 149).

Deste modo, os preços dimensionam o lugar da representação na lógica interna do

capital. Não são meramente imaginários, são representações sociais do tempo de

trabalho socialmente necessário, o que abre toda uma dimensão simbólica e

epistemológica para a investigação a respeito da dimensão qualitativa do valor e do

que se considera como ‘valorização imobiliária’ para além da sua expressão

quantitativa que aparece na forma de preço dos imóveis.

Marx ainda ressalva que, no caso específico do preço da terra, assim como com a

consciência e a honra (em honrar uma dívida, uma garantia dada, por exemplo), a

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representação social do valor na forma de preço pode ser meramente imaginária, ir

além da representação do tempo de trabalho socialmente necessário – e não

apenas superar mas até prescindir deste conteúdo (como no caso da “terra nua” ou

de títulos financeiros sem lastro). Mas mesmo nestes casos de “forma-preço

imaginária”, ainda que não exista valor, existe necessariamente “uma relação efetiva

de valor ou uma relação dela derivada” (Marx, 2013: 177).

Deste modo, pode-se inicialmente dizer que a análise das categorias de renda da

terra urbana em Jaramillo partem de pressupostos que, admitida a compreensão da

estratégia metodológica em relação à delimitação e à hierarquização dos níveis de

abstração teórica, está circunscrita à dimensão do trabalho abstrato que se

manifesta como valor de troca, de modo que nesta dimensão isolada os sujeitos de

direito nas trocas de mercadorias aparecem ainda como meros suportes ou

engrenagens das estruturas econômicas.

No método da economia política de Marx, este sistema de signos é abstraído

somente no pensamento, no sentido de que é uma separação apenas formal. Na

“teoria do valor trabalho abstrato” de Jaramillo, contudo, é preciso ter claro que o

dinheiro e os preços são explicados apenas enquanto um sistema de signos das

trocas de equivalência mercantil, abstraída a relação dialética com o conteúdo de

valor representado idealmente nessas formas sociais e com o trabalho concreto que

se manifesta no valor de uso das mercadorias imobiliárias.

Esta delimitação da análise da renda do solo urbano à dimensão econômica do

trabalho abstrato, ainda que ofereça significativa contribuição para a investigação a

respeito da dimensão quantitativa do valor, tem consequências específicas no

estudo qualitativo dos problemas e conflitos urbanos. Primeiro, ao limitar as

possibilidades de analisar a questão da disponibilidade real dos valores de uso, que

no caso da propriedade da terra e dos imóveis se refere aos poderes de domínio e

de posse. Segundo, no que se refere à análise da repartição efetiva do valor nos

casos em que se identifica a chamada ‘valorização imobiliária’. Não por acaso, a

medida em que este autor caminha para os níveis mais concretos da abstração

teórica, a análise dos instrumentos de políticas públicas e de regulação jurídica e

urbanística esbarram também em limites na análise marxista do papel do Estado e

do Direito na sociedade de classes, suas formas política e jurídica (Mascaro, 2013;

Hirsh, 2010). É o caso dos instrumentos de gestão do solo e de limitação da

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propriedade imobiliária, agrupados por Jaramillo enquanto formas de recuperação

do que ele chama de “mais-valor fundiário”44 (recuperación de plusvalias). São eles:

1. a contribuição de valorização (na legislação tributária brasileira, conhecida

como “contribuição de melhoria”45, que exige uma quantia em dinheiro dos

proprietários beneficiados por obras públicas);

2. a participação em mais-valor fundiário (no caso de alterações nos

coeficientes de aproveitamento46 do solo urbano definidos nas leis

urbanísticas municipais);

3. o “solo criado” das Operações Urbanas Consorciadas e das outorgas

onerosas do direito de construir definidas pelo planejamento urbano local,

que implicam um pagamento ao Estado pelo direito de construir acima do

coeficiente de aproveitamento;

4. cobranças periódicas pela infraestrutura pública e por equipamentos de

uso coletivo instalados pelo Estado.

Em todos estes casos, trata-se de instrumentos jurídicos de intervenção na dinâmica

imobiliária como formas de captação do mais-valor na forma de renda da terra e de

distribuição via Estado dessas rendas que se expressam em aumentos diferenciais

nos preços dos imóveis. Contudo, tomada a experiência com a implementação

desses instrumentos no caso brasileiro, pode-se afirmar que estas opções teóricas

não apenas limitam a análise dos problemas urbanos enquanto problemas

especificamente econômicos ou da economia urbana, mas também se mostram

insuficientes para uma análise que considere as dimensões jurídica e política da

ação mediada pelos aparelhos burocráticos do Estado nos conflitos distributivos em

torno da repartição desse mais-valor “recuperado” entre as diferentes classes sociais

nas cidades.

No livro III de O Capital, Marx se ocupa da renda da terra somente enquanto uma

“parte do mais-valor” que “cabe ao proprietário da terra” (Marx, apud Grespan,

                                                                                                               44 Isto que se chama “mais-valor fundiário” é uma simplificação conceitual para explicar que a renda da terra é uma das formas do mais-valor, assim como o lucro e os juros (Grespan, 2011). 45 A contribuição de melhoria, embora prevista na legislação tributária brasileira, não é aplicada por municípios e demais entes federados como instrumento de política urbana. 46 O coeficiente de aproveitamento é a relação entre a metragem quadrada da terra urbana e a metragem quadrada máxima de área a ser construída nos projetos de aprovação e execução de obras licenciadas pelo órgão competente para emitir os respectivos alvarás, no caso o Município.

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2011), também numa lógica de pressupor uma delimitação hipotética para sua

abstração teórica. Nesta delimitação, as diversas formas históricas da propriedade

da terra (e dos imóveis) também ficam de fora do escopo da obra marxiana, mais

concentrada na generalidade do modo de produção capitalista, o que abre todo um

campo de investigação a respeito da particularidade histórica e geográfica da

propriedade fundiária em países do Sul, como é o caso do Brasil. Ainda assim, neste

nível delimitado da abstração teórica de Marx, a forma-preço como uma

representação social do valor da terra e dos imóveis (uma representação imaginária

de um “valor imobiliário”) articula-se a outras formas sociais históricas, como as

formas políticas de representação das classes sociais no Estado e as formas

jurídicas das relações de propriedade e de posse.

O geógrafo David Harvey, desde seus primeiros trabalhos como leitor de Marx nas

décadas de 70 e 80, sobretudo em Justiça Social e a Cidade (1976) e Os Limites do

Capital (2013), apresenta a questão da renda fundiária urbana de modo não isolado

na dimensão econômica do valor trabalho abstrato. Deste modo, é possível não

apenas analisar a questão da renda fundiária na economia capitalista, mas situá-la

no interior do sistema do capital, de modo a lançar luzes também sobre as outras

formas sociais de representação da propriedade territorial, como é o caso não

apenas dos preços das mercadorias imobiliárias mas de todas as outras formas

sociais de representação do espaço.

2.2. ESPAÇO: LÓGICA E ONTOLOGIA

A partir do ponto de vista da geografia, o espaço em Harvey (2010) aparece como

uma “categoria-chave” para a análise das questões urbanas, sobretudo o espaço

entendido na perspectiva de Henri Lefebvre (2006) desde A produção do espaço,

cuja conceituação é análoga à teorização de Marx a respeito do trabalho enquanto

“abstração concreta” (Stanek, 2007). Note-se que, nos Grundrisse, o trabalho é

definido por Marx enquanto uma abstração concreta, ou como “uma abstração que

se torna verdadeira na prática”. Naquele momento histórico, contudo, situa Marx, a

categoria trabalho só aparecia verdadeira na prática em um espaço geográfico

particular, os Estados Unidos da América, em que “a sociedade mais moderna” se

apresentava como realidade histórica (Marx, 2011, pg. 58).

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Bruce Braun (2006) destaca na obra de Harvey o que denomina uma ontologia do

espaço: nesta categoria espaço, delineada no âmbito de uma dialética sócio-

espacial da natureza, não há uma cisão de dois universos ontológicos distintos –

humano e natureza. Por meio de um método dialético, informado por uma ontologia

relacional, a noção de Harvey do espaço-tempo no capitalismo incorpora “humano e

não-humano”, de modo que produção do espaço e produção da natureza não

podem ser observadas separadamente. Esta visão tem repercussão significativa,

uma vez que o espaço-tempo dos indivíduos e das populações humanas não pôde

mais ser examinado independente dos processos ecológicos e ambientais.

Se falar de natureza já pressupõe necessariamente uma ontologia, um entendimento

do ser no mundo, pode-se dizer que há em Harvey uma ontologia em que a natureza

existe enquanto uma unidade dinâmica entre ela mesma e os seres humanos: trata-

se de relações internas dentro de uma totalidade. Neste ponto, pode-se dizer que a

ontologia da natureza em Harvey remonta a Marx. Na leitura de Braun, esta

interpretação pode ser feita a partir das conclusões de Justiça Social e a Cidade

(1976), em que Harvey convida a entender a natureza, na esteira da ontologia de

Marx, como a unidade que inclui trabalho humano.

Estas formulações ontológicas iniciais sobre o espaço, identificadas por Braun na

obra de Harvey desde 73, foram em larga medida criadas num contexto de

popularidade do movimento ambientalista nos EUA – movimentos que Neil Smith na

década de 80 denominou de “ambientalismo burguês”, uma vez que apagam as

causas político-econômicas dos problemas ambientais. Para superar esta visão,

Harvey está entre os que irão neste período insistir que natureza e espaço não são

exteriores, não existe uma “natureza exterior”, o que seria conceitualmente

incoerente e politicamente problemático. O exemplo de Harvey para Nova York

caberia para São Paulo ou para qualquer outra cidade ou metrópole atual: não há

nada de não-natural nestas cidades. Dizer que estas cidades são “não-naturais”

pressupõe uma fetichização da natureza “exterior”, uma separação dualista entre a

natureza “exterior” e os seres humanos (ou “segunda natureza”). Daí que retirar os

humanos e suas formas de uso e ocupação do solo não vai salvar a natureza,

apenas transformá-la (Braun, 2006).

Esta noção fica mais clara quando é abordada a relação entre escassez e

necessidade. A escassez não reside na natureza ou nos limites da natureza: isto

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ignora o quanto a escassez é socialmente produzida e quanto os limites são uma

relação social com a natureza – e não “exterior” a ela. Na discussão com Malthus,

Harvey (1976), aproximando-se do marxismo, rejeita alguns aspectos da ontologia

malthusiana e os identifica como “pressupostos aristotélicos equivocados”. Segundo

Braun, a noção de que o mundo é composto por coisas distintas e autônomas, de

que cada uma tem uma essência própria, é rejeitada por Harvey ao se posicionar a

favor de Marx para explicar o problema da natureza para a geografia, especialmente

a escassez dos recursos em face das necessidades das populações humanas.

Nesta visão, recursos e necessidades não podem ser observados independentes um

do outro, mas na sua interação dialética, na medida em que fazem parte de uma

totalidade.

Para Marx (2010), desde os Manuscritos de Paris de 1844, o fundamento ontológico-

histórico do ser social é o trabalho, a mediação do metabolismo dos seres humanos

com a natureza. O trabalho é a medida, no sentido hegeliano da Lógica da Essência

(Hegel, 1995), do movimento da matéria no espaço-tempo. Nesta ontologia histórica

de Marx, o ser social em abstrato é descrito a partir de um conjunto de conceitos e

categorias. Mas diferente de Hegel, os conceitos e categorias são sempre

submetidas a reexame da sua história social, por isso dizer que são abstrações

concretas, são o concreto pensado a partir de um sistema sempre em aberto. Para

se encontrar não um conhecimento puro, mas a “verdade conhecida”, aquilo que a

ciência reconhece como válido e verdadeiro até que se prove o contrário (Ranieri,

2011). É metafísica, é especulativa, mas é teoria da história. Ou, para utilizar a

expressão de Harvey, é uma teoria da história geográfica ou da geografia histórica

(Harvey, 2005).

Em Hegel, as categorias de espaço e tempo são assuntos que interessam não à

Lógica da Essência, mas à Filosofia da Natureza, tratados em especial no volume II

da Enciclopédia da Ciência da Lógica. No dicionário Hegel, de Michael Inwood,

“tempo e espaço” aparecem no mesmo verbete, tratados em conjunto (com o

detalhe de que tempo precede espaço e ainda conta com um terceiro termo: “tempo

espaço eternidade”). Quatro concepções de espaço (Raum) e tempo (Zeit) eram

usuais nos dias de Hegel (Inwood, 1997: 305):

1. Espaço e tempo são coisas distintas, nos quais outras estão contidas (Newton);

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2. Espaço e tempo são atributos de coisas (Aristóteles); 3. Espaço e tempo são relações entre coisas (Leibniz); 4. Espaço e tempo são “formas de nossa sensibilidade” e, assim, “transcendentalmente ideais”: as impomos às nossas intuições. As coisas-em-si não estão no espaço e no tempo, somente os fenômenos (Kant).

Ao contrário de Kant, Hegel “vê o espaço e o tempo não como formas de

sensibilidade, distintas dos conceitos do entendimento, mas como as manifestações

mais fundamentais do conceito”. Da derivação conceitual de espaço e de tempo

(presente, passado e futuro), Hegel “prossegue para derivar conceitualmente o lugar

de um corpo, os próprios corpos, e o movimento”. Espaço e tempo “se envolvem

mutuamente”, por isso Hegel é apontado como precursor das teorias (H.G. Wells e

Minkowski) que atribuem ao tempo o estatuto de quarta dimensão (Inwood, 1997:

306). Em Hegel, o entendimento não é puro, é imanentemente especulativo, de

modo que a lógica coincide com a metafísica ou filosofia especulativa. Especulação

(spekulation) é metafísica (metaphysycs), e metafísica pressupõe uma ontologia. É

metafísica que não é metafísica, é especulação e não é especulação. É a lógica do

ser, a sua ontologia, mas neste caso um sistema fechado de categorias e conceitos.

É uma ontologia da subjetividade especificamente humana, uma ciência da lógica da

subjetividade humana, uma filosofia especulativa (Ranieri, 2011). Em Kant, contudo,

a ontologia é substituída por uma lógica transcendental, uma analítica do puro

entendimento.

A lógica do capital, deste ponto de vista, é uma lógica hegeliana no sentido

específico de que é um conhecimento especulativo sobre a ontologia histórica do

trabalho. Está presente, sobretudo no Livro I de O Capital, esta metodologia

hegeliana do pensamento, mas somente enquanto uma dialética da abstração do

trabalho47. Se a abstração é o que dá forma, é com a abstração do trabalho concreto

que emergem as formas sociais dos conteúdos concretos das relações sociais, ou o

trabalho abstrato, isto é, o trabalho abstratamente considerado no pensamento.

Nessas formas sociais históricas do trabalho, sobretudo no dinheiro e na

propriedade privada, o valor de uso serve de suporte de valor, é o seu conteúdo

concreto. Essas formas de valor são os desdobramentos do valor à sua forma de

manifestação como valor de troca. Se as mercadorias aparecem ao conhecimento

                                                                                                               47 Engels (2000: 34), na Dialética da Natureza, vai expor de modo sistemático sobre o que seriam essas “leis” da dialética marxiana: a interpenetração dos contrários; a transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; e a negação da negação.

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imediato como valores de troca indiferenciados, como formas do valor desdobradas,

é preciso percorrer o caminho de regresso e descrever a gênese dessas formas.

Para seguir por este caminho, é preciso seguir pelas rotas do dinheiro. Daí a

sugestão para entender a economia (Dowbor, 2013) e decifrar o “enigma do capital”

(Harvey, 2011): siga o dinheiro (follow the money).

Ao oferecer uma matriz espaço-temporal para as categorias do sistema teórico

marxiano, Harvey (2006b) enxerga Marx como um pensador relacional e “não

essencialista”:

“Muitos se surpreendem ao descobrir que o conceito mais fundamental de Marx é ‘imaterial mas objetivo’, dado o modo como Marx é geralmente retratado como um materialista para quem tudo o que é imaterial é abominável. Esta definição relacional de valor, noto de passagem, torna discutíveis, senão mal colocadas, todas as tentativas de dar-lhe uma medida direta e essencialista. As relações sociais não podem ser medidas senão por seus efeitos.” (Harvey, 2006b: 289)

Se as referências de Harvey gravitam em torno de Hegel e Marx, bem como de

Leibniz e Espinosa (Ver Braun, 2006; Harvey, 2006b) – que, juntos, formam o seu

entendimento relacional do mundo, a sua geografia sócio-espacial (Braun, 2006) – a

rejeição ao que Braun reconhece como “essencialismo” não supõe um afastamento

da tarefa de descrever a realidade em processo, de investigar a efetividade no seu

desdobramento lógico48. E esta “lógica do real” hegeliana (Hegel, 1995; Lefebvre,

1991), que pode ser identificada em O Capital de Marx (Ranieri, 2011), não se faz

sem um conjunto de categorias que edificam um sistema teórico.

Na matriz espaço-temporal de Harvey (2006b), a categoria lefebvreana de espaço

enquanto “abstração concreta” é uma tríade, cujos elementos interagem

dialeticamente: (i) o espaço praticado (espaço da experiência), (ii) as representações

do espaço (espaço conceitualizado), e (iii) o espaço representado (espaço vivido). A

produção do espaço corresponde a esta totalidade de suas dimensões em

movimento. Na ontologia de Harvey, a categoria espaço é também formada por uma

tríade, neste caso entre (i) espaço absoluto, (ii) espaço relativo e (iii) espaço

relacional. O espaço, enquanto totalidade, é o espaço absoluto-relativo-relacional, as

                                                                                                               48 Este “essencialismo” é problematizado da seguinte maneira por Reinaldo Carcanholo em “Capital: essência e aparência”: “Na verdade, existem, nesse aspecto, dois erros teóricos opostos: o empirismo daquele que somente vê a aparência e, por outro lado, o seu contrario, o fundamentalismo, que acredita que só a essência é verdadeira. Este talvez seja tão nocivo quanto o primeiro.” (Carcanholo, 2013: 18).

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três dimensões igualmente em tensão dialética. Harvey propõe relacionar cada um

destes elementos a suas correspondências com a tríade lefebvreana para imaginar

os possíveis significados do espaço (Matriz 01, Harvey, 2006b). Esta combinação

também é aplicada por Harvey para relacionar as categorias do sistema teórico

marxiano (valor de uso, valor de troca e valor) nesta matriz espaço-temporal (Matriz

02, Harvey, 2006b). Tomou-se ainda a liberdade de elaborar uma terceira matriz

com o objetivo de situar as questões desta pesquisa numa perspectiva que

considera a especificidade da renda da terra urbana na organização espacial.

Espaço

praticado (espaço da experiência)

Representações do espaço

(espaço concebido)

Espaços de representação (espaço vivido)

Espaço absoluto

Muros, pontes, portas, solo, teto, ruas, edifícios, cidades, montanhas, continentes, extensões de água, marcadores territoriais, fronteiras e barreiras físicas, condomínios fechados

Mapas cadastrais e administrativos; geometria euclidiana; descrição de paisagem; metáforas do confinamento, espaço aberto, localização, arranjo e posição (comando e controle relativamente fáceis) – Newton e Descartes

Sentimentos de satisfação em torno do círculo familiar; sentimento de segurança ou encerramento devido a confinamento; sentimento de poder conferido pela propriedade, comando e dominação sobre o espaço; medo de outros que “não são dali”.

Espaço relativo

Circulação e fluxo de energia, água, ar, mercadorias, povos, informação, dinheiro, capital; acelerações e diminuições na fricção da distância.

Cartas temáticas e topológicas (ex: o sistema de metrô de Londres); geometrias e topologias não euclidianas; desenhos de perspectiva; metáforas de saberes localizados, de movimento, mobilidade, deslocamento, aceleração, distanciamento e compressão do espaço-tempo (comando e controle difíceis requerendo técnicas sofisticadas). Einstein e Riemann

Ansiedade por não chegar na aula no horário; atração pela experiência do desconhecido; frustração num engarrafamento; tensões ou divertimentos resultantes da compressão espaço-tempo, da velocidade, do movimento.

Espaço Relacional

Fluxos e campos de energia eletromagnética; relações sociais; superfícies econômicas e de renda potenciais; concentrações de poluição;

Surrealismo; existencialismo; psicogeografias; ciberespaço; metáforas de incorporação de forças e de poderes (comando e controle muito difíceis – teoria do

Visões, fantasmas, desejos, frustrações, lembranças, sonhos, estados psíquicos (ex: agorafobia, vertigem, claustrofobia)

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potenciais de energia; sons, odores e sensações trazidas pelo vento.

caos, dialética, relações internas, matemáticas quânticas) – Leibniz, Whitehead,

TABELA 10: Matriz 01 – Espaço como categoria chave, significados possíveis Fonte: Harvey, 2006b, pg. 22-23  

Espaço praticado

(espaço da experiência)

Representações do espaço

(espaço concebido)

Espaços de representação (espaço vivido)

Espaço absoluto

Mercadorias úteis, processo de trabalho concreto, notas e moedas, , propriedade privada / fronteiras do Estado, capital fixo, usinas, ambientes construídos, espaços de consumo, piquete de greve, espaços ocupados (sit-ins), tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno

Trabalho concreto Exploração no processo de trabalho (Marx) vs trabalho como jogo criativo; mapas de propriedade privada e de exclusões de classe; mosaico de desenvolvimentos geográficos desiguais.

Alienação vs satisfação criativa; individualismo isolado vs solidariedades sociais; lealdade ao lugar, à classe, à identidade, etc.; privação relativa, injustiça; falta de dignidade; raiva vs satisfação.

Espaço relativo

Troca material, comércio, circulação e fluxo de mercadorias, energia, força de trabalho, dinheiro, crédito ou capital, percurso periferia-centro da cidade e migração, depreciação e degradação, fluxo de informação e agitação do fora

Trabalho abstrato Valor em movimento; Esquemas de acumulação; cadeias de mercadorias; modelos de migrações e de diásporas, modelos de input/output, teorias de “fixos” espaço temporais, aniquilação do espaço pelo tempo, circulação do capital através do ambiente construído; formação do mercado mundial, redes; relações geopolíticas e estratégias revolucionárias

Fetiche da mercadoria e do dinheiro Especulação imobiliária (desejo perpétuo insatisfeito); ansiedade / euforia face à compressão espaço temporal; instabilidade; insegurança; intensidade da ação e do movimento VS repouso; “tudo o que é solido desmancha no ar”...

Espaço

Relacional

Capital fictício Processo de trabalho abstrato; movimentos de resistência; manifestações repentinas e irrupções expressivas de movimentos políticos (anti-guerra, 1968, Seattle...), “o espírito

Tempo de trabalho socialmente necessário Valor como trabalho humano objetivado em relação com o mercado mundial; Valores-dinheiro; as leis do valor em movimento e o poder

Valores, Hegemonia capitalista (“não há alternativa”); consciência proletária; solidariedades internacionais, direitos universais; sonhos utópicos; multidão; empatia com os outros; “um outro mundo é possível”

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revolucionário desperta”

social do dinheiro (globalização); esperanças e medos revolucionários; estratégias de mudança

TABELA 11: Matriz 02 – Matriz espacial para a teoria marxiana. Fonte: Harvey, 2006b, pg. 30-31

Espaço praticado

(espaço da experiência)

Representações do espaço

(espaço concebido)

Espaços de representação (espaço vivido)

Espaço absoluto

PROPRIEDADE PRIVADA processo de trabalho concreto, terras, casas, apartamentos, barracos, favelas, ocupações, notas e moedas, ambientes construídos

VALORES DE USO, trabalho concreto, Memoriais descritivos, levantamentos topográficos, mapas georeferenciados

DESPOSSESSÃO, Remoção e (des)legitimidade da posse

Espaço relativo

PREÇO DOS IMÓVEIS, Fogo, incêndios, valorização imobiliária, força de trabalho, dinheiro, crédito, capital, mobilidade, energia

VALORES DE TROCA, trabalho abstrato, valor em movimento, circulação do capital pelo ambiente construído

ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA fetiche da mercadoria e do dinheiro, (in)segurança da posse

Espaço

Relacional

RENDA DA TERRA processo de trabalho abstrato, capital fictício, movimentos de resistência; manifestações repentinas e irrupções expressivas de movimentos políticos

VALOR tempo de trabalho socialmente necessário, dialética, cyberespaço

DIREITO DE PROPRIEDADE, DIREITO À MORADIA, DIREITO À CIDADE

TABELA 12: Matriz 03 – Matriz espacial para a especulação imobiliária em São Paulo, elaboração própria a partir das matrizes de Harvey (2006b)

Estas matrizes são ilustrativas e especulativas, limitam-se ao espaço absoluto em

que é representada a grade matricial. Não se caracterizam em um esquema de

tipologias ideais, mas antes em uma organização que, embora limitada, pode servir

como um ponto de partida para a reflexão a respeito da valorização e da

especulação imobiliária (preços, valores e rendas urbanas) na produção e

reprodução do espaço.

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2.3. RENDAS URBANAS E ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

A renda da terra é uma categoria da economia política cuja origem remonta aos

fisiocratas – para quem toda a riqueza advinha da terra – e foi posteriormente

desenvolvida em especial por Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say e

outros, antes de contar com a contribuição teórica de Marx e Engels e,

posteriormente, dos marxistas. Ricardo, um corretor de ações enriquecido através

da especulação na bolsa de Londres, abandona os negócios em 1814 para se

dedicar a escrever Princípios de economia política e tributação (1996), publicado em

1817. Ao contrário dos fisiocratas e já na linha de Smith49, adota o entendimento de

que a riqueza advém não apenas da terra, mas do valor do trabalho humano.

Marx e Engels, em seus trabalhos sobre economia política, passaram a estudar,

dialogar e analisar o pensamento econômico de autores clássicos como era o caso

de Ricardo, Smith, Say, entre outros, incluídas as suas perspectivas a respeito da

renda fundiária. O texto “Esboço sobre Economia Política”, publicado por Engels em

fevereiro de 1844 e que chamou a atenção de Marx pela primeira vez para as

questões da economia política (Ranieri, 2003: 11), já anotava que “o especulador

conta sempre com os acidentes, particularmente com as más colheitas; ele utiliza

tudo, como, por exemplo, à época, o incêndio de Nova York” (Engels, 1979: 15). O

projeto de Marx dali em diante, em parceria com Engels, desenvolvido desde os

Manuscritos econômico-filosóficos até O Capital, foi a construção de uma crítica

filosófica das categorias de análise desta economia política de sua época.

A renda da terra é abordada inicialmente por Marx (2010) nos Manuscritos

econômico-filosóficos, que seriam publicados pela primeira vez somente em 1932 na

União Soviética (Jinkings, 2003). É neste texto que o trabalho é pela primeira vez

apresentado, na leitura de Ranieri (2010: 14) como “a mediação entre homem e

natureza, e dessa interação deriva todo o processo de formação humana”. O

trabalho, sob relações de produção capitalistas, é estranhado, no sentido de que

traz em si a impossibilidade de suplantação do estranhamento humano, uma vez que o seu controle é determinado pela necessidade da reprodução privada da apropriação do trabalho alheio, e não por aquilo que se poderia considerar necessidade humana ancorada na reprodução social liberta da posse privatizada (Idem: 14-15).

                                                                                                               49 Engels, ao identificar a teoria do valor trabalho em Adam Smith, chama-o de “o Lutero da Economia” (Engels, 1979).

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82  

No trecho do manuscrito dedicado à renda da terra, Marx parte de como a questão é

apresentada nos textos dos teóricos da economia política. Say já apontava que a

origem do “direito dos proprietários fundiários” é o “roubo” (Say apud Marx, 2010:

61). Smith, por sua vez, já trazia a ideia de que a renda da terra é definida como um

“produto do poder da natureza” (Smith apud Marx, 2010: 62) e não se limita ao

ganho do capital aplicado em trabalhos de melhoria na terra.

Mas ao analisar a renda da terra no seu “intercambio efetivo” entre “arrendatário” e

“proprietário fundiário”, em que estão presentes a “oposição hostil de interesses, a

luta e a guerra” (Marx, 2010: 64), verifica que de nem todo poder da natureza se

cobra um preço, uma vez que “a renda da terra não pode ser paga em todas as

mercadorias” (Idem: 66).

De Smith, Marx ainda destaca a relação entre a renda da terra e o juro do dinheiro:

“É de notar que o preço corrente dos terrenos depende da taxa corrente de juro”

(Smith, apud Marx, 2010: 73). A partir disso Marx vai notar que, uma vez exposta à

concorrência, a propriedade fundiária “cai nas mãos dos capitalistas” e com isso “se

torna, ao mesmo tempo, industrial” (Marx, 2010: 74). A consequência disto é

a dissolução da diferença entre capitalista e proprietário fundiário, de modo que, no todo, só se apresentam, portanto, duas classes de população, a classe trabalhadora e a classe dos capitalistas (Marx, 2010: 74)

Esta dissolução se apresenta, de acordo como Marx, “no todo”, do que se pode

inferir que aqui se refere à “totalidade” das relações sociais de produção e

reprodução no capitalismo e não ao modo como as classes sociais se confrontam na

“realidade”. Esta última só se pode conhecer “a partir do recurso das abstrações

racionais que levam em conta a hierarquia das determinações materiais postas em

ação pelo trabalho do homem” (Ranieri, 2010: 15).

Tanto estes manuscritos iniciais de Marx como a sua abordagem posterior no livro III

de O Capital somente foram publicadas postumamente. Ainda assim, estes textos

estão mais concentrados em abordar o exemplo de renda das terras de uso rural ou

ainda, em algumas passagens, o exemplo da renda das terras das quais se pode

extrair riquezas minerais. Consideradas essas circunstâncias, muitos autores

marxistas ao longo do século XX chegaram a afirmar que a teoria marxista da renda

fundiária não se aplicaria à terra urbana e ao estudo dos processos de urbanização

que se desdobraram mais intensamente no período.

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83  

Enquanto Ricardo defendia a existência de duas modalidades de renda fundiária

(renda de monopólio e renda diferencial), a novidade introduzida por Marx no livro III

de O Capital é a constatação de uma outra modalidade de renda da terra, que ele

chamou de renda absoluta. Harvey vai apontar que Ricardo era forçado a negar a

renda absoluta justamente porque, na visão de Marx, partia de uma confusão

conceitual entre preço e valor (Harvey, 1976: 181).

Tanto Jaramillo como Harvey reconhecem que a especificidade da abordagem de

Marx reside tanto no reconhecimento da existência desta renda absoluta como na

sua reformulação teórica da renda diferencial de Ricardo (Jaramillo González, 2009;

Harvey, 2013a). Em Limites do Capital, no entanto, Harvey (2013a) dá pouca

importância à renda absoluta na explicação sobre a organização espacial das

cidades capitalistas e não tece maiores considerações sobre as implicações desta

modalidade particular de renda para as terras de uso urbano. Nesta mesma linha de

Harvey, parte significativa da bibliografia que estuda a questão urbana no Brasil de

um ponto de vista marxista não identifica a pertinência, senão da teoria da renda da

terra urbana (e do direito de receber uma renda pela propriedade da terra e dos

imóveis), desta modalidade específica de renda absoluta urbana para as pesquisas

sobre a urbanização capitalista.

Na contra-mão desta tendência, Jaramillo, ainda que limitado à dimensão econômica

do valor trabalho abstrato, oferece um esquema de sistematização das diferentes

rendas urbanas considerando a especificidade da renda absoluta urbana. Este autor

agrupa as modalidades de rendas urbanas conforme as suas articulações

específicas com o processo de produção e consumo do ambiente construído. As

rendas classificadas como rendas primárias são aquelas ligadas diretamente à

atividade produtiva da construção, dentre as quais estão a renda absoluta urbana e

as rendas diferenciais urbanas dos tipos 1 e 2. As rendas secundárias, por sua vez,

correspondem ao uso do imóvel em atividades urbanas no processo de consumo do

ambiente construído.

TABELA 13: RENDAS URBANAS

RENDAS

PRIMÁRIAS

na produção do ambiente

Renda Absoluta

Urbana

Patamar mínimo de todas as outras rendas urbanas.

Uma renda de monopólio generalizada que decorre dos

poderes dos proprietários de imóveis de dispor de suas

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Renda Absoluta

Urbana

terras urbanas e ofertá-las para a construção.

Renda Primária

Diferencial Tipo 1

Acréscimo de renda decorrente das condições

específicas do imóvel para fins de construção.

Produtividade (constructibilidad) associada aos custos

localizacionais e construtivos no imóvel. Paralelo com a

fertilidade para o caso do solo rural. construído

Renda Primária

Diferencial Tipo 2

Acréscimo de renda decorrente do aproveitamento do

potencial construtivo do imóvel regulado pelo Estado na

legislação de planejamento urbano e uso e ocupação do

solo. Produtividade associada à verticalização e ao

adensamento do uso da terra urbana.

Renda Diferencial de

Comércio

Acréscimo de renda decorrente da inserção do imóvel

na estrutura urbana de usos do solo que proporciona

para os comerciantes uma velocidade de rotação do

capital particularmente elevada, uma condição para

obter lucros extraordinários que não seria possível para

o capital individual. Os proprietários jurídicos destes

imóveis podem deste modo se apropriar de parte deste

sobrelucro na forma de renda diferencial de comércio.

Renda Diferencial de

Habitação

Acréscimo de renda decorrente da inserção do imóvel

na estrutura urbana de usos do solo que proporciona

aos indivíduos um menor custo relativo no acesso aos

demais valores de uso da cidade, como é o caso dos

custos com transporte ou com acesso a outras

infraestruturas públicas ou privadas de uso coletivo. Os

proprietários jurídicos destes imóveis melhor localizados

podem deste modo se apropriar deste custo diferencial

da reprodução da força de trabalho na forma de renda

diferencial de habitação.

RENDAS SECUNDÁRIAS

no consumo do ambiente construído

Renda de Monopólio

de Segregação

Acréscimo de renda decorrente da disposição de

frações da classe capitalista em pagar uma quantia

mais elevada na forma de renda da terra (un impuesto

privado) como mecanismo de segregação socioespacial

e de homogeneização da população que consome

determinada parcela do espaço urbano.

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Renda Diferencial e

de Monopólio

Industrial

Acréscimo de renda decorrente de condições

diferenciais para a produção industrial na estrutura

urbana dos usos do solo. Embora estejam ligadas a

atividades produtivas, no que se refere ao ambiente

construído os usos industriais mantém uma relação de

consumo com os imóveis urbanos na medida em que

eles não operam enquanto meios de produção como no

caso da terra rural, são meros suportes a serem

consumidos na atividade produtiva das mercadorias

ofertas pelos ramos industriais específicos.

Fonte: Quadro descritivo das diferentes rendas fundiárias urbanas em Jaramillo González (2009). Elaboração própria

Neste esquema, a renda absoluta é apresentada como a base de todas as outras

rendas urbanas. Embora haja uma diferenciação nas rendas e nos preços do solo de

uso rural e de uso urbano, adota-se aqui o entendimento, apoiado em Jaramillo, de

que em ambos os casos a renda absoluta constitui o patamar mínimo a partir do

qual são escalonadas as outras formas de renda desses imóveis conforme as suas

qualidades enquanto valor de uso. Por este motivo, a renda absoluta urbana pode

ser considerada uma “renda de monopólio generalizada” (Jaramillo González, 2009:

153) decorrente direta do direito de propriedade privada, especificamente da

disponibilidade real de seus titulares oferecerem essas terras à produção do

ambiente construído. Esta renda absoluta ainda poderá ser acrescida de outras

rendas conforme as características específicas da localização espacial relativa de

cada imóvel na estrutura de usos do solo urbano.

Uma vez que todas as outras rendas urbanas são escalonadas a partir desta renda

absoluta, os acréscimos de rendas primárias (relativas a diferenciações no processo

de produção do imóvel) e de rendas secundárias (relativas ao processo de produção

no imóvel, ou ao processo de consumo do imóvel enquanto parcela do território

inserida na estrutura urbana e que serve de suporte à produção) se dará de modo

aditivo50 em relação a esta renda mínima de todos os lotes e glebas na cidade. Entre

as rendas fundiárias acrescidas, por outro lado, dá-se um processo de competição

entre as modalidades de renda, mediado por dimensões consideradas por Jaramillo

                                                                                                               50 O termo “aditivo”, ou renda adicional, justifica-se na análise de Jaramillo uma vez que a dimensão econômica é isolada no seu aspecto quantitativo expresso do valor de troca.

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como “extra-econômicas” (embora reflitam relações econômicas), a exemplo das

dimensões jurídica e política da regulação destes imóveis pelo Estado.

Embora o esquema de imbricação das rendas urbanas apresentado a seguir seja

uma representação gráfica que considera somente a existência das rendas

diferencias secundárias de comércio e de habitação (e também limitadas à

dimensão econômica, conforme pressuposto adotado por Jaramillo), ilustra o modo

por meio do qual o pagamento das outras rendas aditivas têm a renda absoluta

como sua base mínima geral. A incidência de outras rendas diferencias e de

monopólio (Diferencial Tipo 1; Diferencial Tipo 2; Monopólio de Segregação;

Diferencial e de Monopólio Industrial) podem implicar um acréscimo ainda maior nos

preços dos imóveis, abrindo para isso uma competição entre diferentes proprietários

e capitalistas individuais pela capitalização desta renda total.

GRÁFICO 04: ESQUEMA DE IMBRICAÇÃO DAS RENDAS URBANAS

Fonte: Esquema de imbricação aditiva e competitiva entre diferentes rendas urbanas (Jaramillo González, 2009. pg. 183, figura 4.13). Elaboração própria.

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Reconhecer a especificidade da renda absoluta urbana na composição dos preços

dos imóveis traz a tona a compreensão de que os processos de produção e

reprodução do espaço urbano não implicam apenas as formas de rendas

diferenciais e de monopólio associadas à localização espacial relativa na estrutura

de usos do solo urbano.

Neste sentido, pode-se dizer que os preços de monopólio decorrentes de uma

elevação desta renda absoluta urbana eleva o patamar mínimo de todas as outras

rendas urbanas. Uma mudança quantitativa que não se limita a aspectos da

localização e da particularidade de bairros, ruas, avenidas, ou regiões da cidade,

mas que tem justamente um efeito mais generalizado sobre os preços dos imóveis

de todo o espaço urbano, de uma cidade ou de um conjunto de cidades em uma

mesma região ou país. A existência de uma renda absoluta urbana implica que toda

construção nos imóveis para fins urbanos requer o pagamento de uma renda

mínima, superior à renda rural máxima, e que pode ser acrescida por outras rendas

diferenciais a depender da particularidade e da singularidade dos aspectos

qualitativos do valor de uso do imóvel.

Diante disso, tem-se que os preços da produção capitalista na atividade da

construção para fins urbanos serão sempre “preços de produção com renda”

(Jaramillo González, 2009: 148-150). Esta conclusão, no entanto, somente é válida

partindo-se do pressuposto de que todas as terras estão à disposição real dos

proprietários jurídicos dos imóveis urbanos. Trata-se de considerar que a toda terra

urbana efetivamente se paga uma renda ao detentor do título de direito de

propriedade formalmente reconhecido pelo Estado.

Nesta regra geral abstratamente considerada não estão representados os casos

concretos em que, embora possa existir renda, este preço não é efetivamente pago

ao proprietário: é a realidade empírica das terras ocupadas sem o pagamento por

qualquer título de direito ou sem o pagamento ao titular do direito de propriedade, os

modos originais de apropriação de terras onde estão localizadas favelas e demais

assentamentos informais (por este motivo são chamados de informais) implantados

mediante a “autoconstrução”. A autoconstrução é a forma de produção do ambiente

construído em que o processo de trabalho não é organizado predominantemente em

relações sociais capitalistas, embora possa haver a contratação eventual de força de

trabalho para a execução de determinadas atividades na produção da moradia. E

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este é o caso emblemático das favelas incendiadas de São Paulo. Nestes casos,

esta exceção à regra é uma regra de exceção (Oliveira, 2006).

Isto pode ajudar a explicar porque Harvey, um geógrafo britânico radicado nos

Estados Unidos da América, falando de um ponto de vista dos países do Norte, não

destaca a relevância da renda absoluta na organização espacial das cidades

capitalistas. Estas formas de ocupação e uso do solo não são características de

cidades no Reino Unido e tampouco nos Estados Unidos da América, embora tenha

sido esta a realidade predominante das condições de moradia da vasta população

de indivíduos que personificam a classe trabalhadora dos países do Sul. Na

importação da teoria da renda da terra, portanto, é preciso que seja considerada a

diferenciação geográfica do desenvolvimento desigual e combinado do modo de

produção capitalista.

Feitas estas consideração, é possível dizer que barracos, cômodos, casas e lajes

em favelas têm renda na medida em que são vendidos ou alugados. No entanto,

falta na composição desses preços a qualidade do valor de uso da terra

representada na forma de títulos de direito de propriedade, que conferem todos os

poderes de monopólio para usufruir ou dispor da sua propriedade com segurança

jurídica. Isto é o que se pode chamar de segurança jurídica da posse, um aspecto

qualitativo a respeito da disponibilidade real desses valores de uso.

Por este motivo, pode-se dizer que, se existe uma renda absoluta paga no preço de

aluguéis e de compra e venda de habitações autoconstruídas em favelas e

assentamentos informais, esta cobrança se refere a aspectos qualitativos da

segurança jurídica da posse. Esta qualidade da posse, a sua segurança, pode ser

medida nas perspectivas futuras de titulação oferecidas pela regularização fundiária,

assim como no seu oposto: as ameaças de despejo e de remoção. Esta renda

absoluta, ainda que desvalorizada (e que na prática não parece tão absoluta assim),

pode ser ainda acrescida de outras rendas de monopólio (por exemplo uma laje com

vista para o mar no Rio de Janeiro) ou diferenciais (é o caso da renda diferencial de

habitação em assentamentos informais providos de infraestrutura e serviços

públicos), associadas às qualidades de sua localização no espaço urbano.

Na hipótese de uma remoção ou de um incêndio, os proprietários jurídicos dessas

terras, que podem ser tanto particulares como o próprio Estado, passam ainda a

contar com a possibilidade de outros acréscimos de renda urbana na medida em

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que passam a exercer o poder de disponibilizar estas terras para a construção e

todos os outros poderes inerentes ao direito de construir naquela terra. Além disso,

ao eliminar a presença da favela e dos indivíduos que moram na favela, proprietários

jurídicos de imóveis vizinhos e do entorno podem ainda se apropriar de acréscimos

de renda decorrentes da segregação de determinados grupos populacionais ao uso

como moradia nesses espaços da cidade.

Harvey, ao expor sobre a renda absoluta em Os Limites do Capital (2013a: 450),

mantém-se no plano da abstração teórica em que é pressuposta a propriedade

capitalista da terra e não chega a abordar as formas históricas específicas de renda

e de direitos de propriedade da terra de uso urbano. É partindo disso que vai

destacar que as condições de existência da renda absoluta estão associadas à

baixa composição de valor do capital na produção, isto é, à relação entre “capital

constante” (meios de produção) e “capital variável” (força de trabalho). No caso da

agricultura, como aponta Harvey, é mais óbvio identificar que os preços de produção

estão bem abaixo dos valores, mas aqui também é preciso assumir como

pressuposto uma “equalização completa da taxa de lucro em todos os setores”

(Harvey, 2013a: 451).

No caso da construção, mesmo na construção do modo como é realizada na prática

dos canteiros de obras nas cidades brasileiras, pode-se supor aqui também ser o

caso de identificar uma baixa composição de valor do capital neste setor, ainda que

alguns avanços tecnológicos tenham sido implementados em algumas empresas

nos últimos anos (Baravelli, 2014). Isto implica dizer que, no setor da construção que

atua na produção capitalista do ambiente construído, um determinado capital:

produz mais-valor maior do que recebe na forma de lucro, porque os setores contribuem para o valor social excedente segundo a força de trabalho que empregam, mas recebem mais-valor segundo o capital total que adiantam. (Harvey, 2013, pg. 452)

Ocorre que os proprietários jurídicos da terra, a depender da oferta e da demanda

por terras a serem disponibilizadas para as atividades da construção, veem-se na

possibilidade de erguer uma barreira sistemática a esse fluxo de capital social total

que circula entre as esferas da produção. E erguem esta barreira ao cobrarem um

preço de monopólio pela renda da terra. É nestas ocasiões em que estão dadas as

condições para o surgimento (ou, no caso da renda urbana, para a elevação de seu

patamar mínimo) da renda absoluta. Esta elevação generalizada dos preços dos

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imóveis urbanos constitui o que aqui se denominou uma fase de superespeculação

imobiliária.

Assim como ocorre com os produtos agrícolas, os produtos imobiliários em

circulação no mercado imobiliário nacional podem desta maneira ser

comercializados acima de seus preços de produção, e por isso serem de modo

generalizado vendidos e comprados a preços de monopólio. Podem, com isso,

elevar o patamar mínimo da renda absoluta urbana, que pode também ser formulada

enquanto uma “renda absoluta nacional de monopólio excepcional” (Carcanholo,

2013: 173-174) dos imóveis urbanos no território das cidades brasileiras. Desta

maneira,

Uma renda absoluta pode existir sem infringir de modo algum a lei do valor. O aparente dilema que levou Ricardo a negar a possibilidade da renda absoluta é impecavelmente superado. Parte do mais-valor excedente produzido [na agricultura] em virtude da intensidade de trabalho (composição de valor inferior) é ‘roubada’ (como diz Marx) pelo proprietário da terra, de forma que ela não entra na equalização da taxa de lucro. Certamente, a mercadoria é vendida a um preço monopolista. (Harvey, 2013: pg. 452).

2.4. CAPITAL FICTÍCIO, LUCROS FICTÍCIOS E RENDA DA TERRA

A elevação do patamar mínimo das rendas urbanas, representado na elevação da

renda absoluta urbana, tem como consequência que uma parcela maior do mais-

valor produzido socialmente será apropriada (ou ‘roubada’, nos termos de Marx) na

forma de uma renda absoluta nacional de monopólio excepcional. Esta crescente

apropriação de mais-valor pelos proprietários e pelos especuladores imobiliários,

contudo, cria uma barreira para a acumulação de capital. Este mais-valor apropriado

inicialmente na forma de renda da terra, mesmo quando assume a forma de lucro

nas atividades da construção e incorporação, por exemplo, ainda assim o faz

enquanto um lucro excedente, isto é, um “lucro fictício” (Carcanholo, 2013; Gomes,

2015). Este lucro é fictício porque, na consideração a respeito da totalidade das

relações sociais de produção, não compõe a taxa média de lucro, é mais-valor

apropriado de modo parasitário pelos proprietários de terra e de imóveis, que podem

tanto ser indivíduos, famílias, empresas, construtoras, incorporadoras, instituições

bancárias, etc., como o próprio Estado, direta ou indiretamente por meio de suas

autarquias, empresas públicas, etc. Do ponto de vista do promotor imobiliário, este

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lucro nada tem de fictício, é realmente apropriado como qualquer lucro. No entanto,

a ficção deste lucro se explica porque, nestas circunstâncias, a terra e os imóveis

passam a ser utilizados como capital, mas não como qualquer capital. Trata-se, este

sim, de um capital fictício, assim considerado uma vez que sua remuneração é

obtida a partir da transferência de um excedente de valor, um valor fictício que não

advém diretamente de um processo de produção, mas do direito de propriedade

sobre um valor produzido ou a ser produzido por outros capitais (Carcanholo e

Nakatani, 2015: 52).

Jameson (2006) destaca a contribuição de Harvey (2013a) na compreensão das

articulações teóricas entre a renda fundiária e a formação de capital fictício: a terra,

ao ser tratada como ativo financeiro, tem a sua renda capitalizada nos circuitos

financeiros da acumulação, projetando ficções de um futuro retorno para o capital

investido, uma representação imaginária de um valor futuro. A ficção desses capitais

é uma visão e um cálculo do futuro, mais propriamente do trabalho futuro a ser

territorializado e des-territorializado no processo de produção do espaço. Para ser

capturado pelo fluxo de capital, é preciso que este trabalho seja incorporado e fixado

à terra ao mesmo tempo em que é des-territorializado e colocado em condições de

circular por meio de formas abstratas de valores de troca como o dinheiro e outros

títulos financeiros de direitos de propriedade privada.

Se a terra, portanto, é um ativo financeiro que funciona como capital, mais

especificamente como capital fictício, isto explica a afirmativa de Marx de que o

preço da terra reflete a capitalização da renda da terra. Esta solução é apresentada

por Marx para resolver o aparente paradoxo entre a teoria da renda fundiária e a

teoria do valor (ver Harvey, 2013; Jaramillo González, 2009). A terra tem preço e é

vendida como mercadoria não porque tenha valor (na medida em que não é

produzida por trabalho humano), mas porque este preço é o resultado da existência

de uma renda que advém do direito de propriedade sobre a terra, dos poderes

conferidos aos titulares de uma parcela do espaço geográfico de se apropriar de

parcela do mais-valor socialmente produzido.

Esta renda torna possível que o titular da propriedade receba periodicamente uma

quantidade de valor na forma de dinheiro, que do seu ponto de vista “não se

diferencia do juro que recebe periodicamente o proprietário de um capital real”

(Jaramillo González, 2009: 6). O proprietário de terra equipara o montante recebido

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como renda ao que receberia como juros pela aplicação de seu capital no processo

de circulação. Assim, o que se troca por dinheiro nos negócios com a terra não é a

terra mesma, senão “o direito de receber uma renda” (Idem). Esta renda implica um

fluxo de dinheiro futuro a ser apropriado pelo titular da propriedade, decorrente dos

usos e atividades que se desenvolvem na terra, deste modo podendo se apropriar

de uma parcela de mais-valor na forma de renda fundiária (Grespan, 2011).

Isto leva os autores marxistas que refletem sobre a teoria da renda da terra (Harvey,

2013; Jaramillo González, 2009; e outros) a dizer que os preços do solo não

explicam a renda da terra, mas é a renda da terra que explica esses preços ou esta

valorização. Por este motivo, conclui Jaramillo (2009: 7), “o que se deve investigar

não é o preço da terra, mas sim a sua renda”. É da imbricação entre as diferentes

formas de renda fundiária urbana que se constitui o que Jaramillo denomina como

“renda urbana total” para cada imóvel. E é sobre esta renda urbana total de cada

imóvel, argumenta o autor (e não sobre as formas específicas de renda), que incide

a ação específica dos indivíduos na capitalização da renda fundiária urbana.

Na capitalização, é o capital como força estranha – não apenas separada (ou

alienada) mas em posição de subordinação – que se apropria de uma parcela do

mais-valor criado socialmente. Do ponto de vista da totalidade das relações sociais

de produção, esta apropriação se refere a uma massa de mais-valor criada no

consumo da força de trabalho que ocorre no passado, no presente e no futuro: no

presente dos canteiros de obras, no passado dos depósitos (voluntários e

compulsórios) antecipados pela classe trabalhadora nos fundos públicos e semi-

públicos do trabalho (FGTS, SBPE, FDS, FAR, FNHIS, entre outros) e no esperado

pagamento futuro das prestações do crédito habitacional dirigido ao consumo

pessoal como moradia.

2.5. O CAPITAL A JUROS E OS SISTEMAS NACIONAIS DE CRÉDITO HABITACIONAL E IMOBILIÁRIO

A propriedade capitalista da terra e dos imóveis é aquela que cumpre todos os

requisitos legais que a revestem da forma jurídica necessária para ser

disponibilizada na forma de capital. No caso de propriedade formal, não se

pressupõe o uso e a posse pelo titular desse direito, ao contrário: o seu valor de uso

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é abstraído em uma forma jurídica específica, o chamado direito real51 de

propriedade imobiliária, regulado e assegurado pelo Estado no Brasil, objeto de

matrícula registrada nos Cartórios de Registro de Imóveis. O proprietário de uma

matrícula registrada nesses termos pode nunca ter sequer caminhado em sua terra

urbana ou em seus metros quadrados de área construída e ainda assim ser o titular

do direito de receber a renda correspondente aos poderes de sua propriedade.

O preço dos imóveis urbanos, por sua vez, é a expressão do valor de troca dessas

mercadorias alienáveis. Isto se dá porque a forma-preço é uma representação social

do conteúdo de valor dessas mercadorias, abstraída (no sentido de que é separada

no pensamento) de seu valor de uso para ser representada por expressões

monetárias e direitos abstratos sobre a propriedade no processo de troca. Por um

lado, as propriedades físicas e simbólicas dessas mercadorias imobilizadas na terra

urbana – da casa, do apartamento, do edifício de escritórios, do terreno vazio ou

ocupado, do cômodo ou do barraco vendido ou alugado, etc. – explicam o valor de

uso. Mas os valores de troca e as figuras jurídicas deles derivadas e desdobradas

somente se explicam com a abstração desses valores de uso. Segundo Marx,

“parece claro que a abstração dos seus valores de uso é justamente o que

caracteriza a relação de troca das mercadorias” (Marx, 2013: 115). E completa:

“como valores de troca, [as mercadorias] podem ser apenas de quantidade diferente,

sem conter, portanto, nenhum átomo de valor de uso” (Idem). Os preços, neste

sentido, homogeneízam os diferentes imóveis com a referência no equivalente geral

das trocas representado pelo dinheiro; isto se dá de modo a indiferenciar os usos e

atividades no espaço urbano, as características específicas da localização, as

condições construtivas de cada imóvel e mesmo o perfil socioeconômico (raça,

gênero, idade, renda, etc.) dos indivíduos que exercem a posse, embora essa

expressão monetária do preço seja um modo de representação social desse

conjunto de características.

Uma vez que se considera que os preços dos imóveis são uma representação na

forma social do dinheiro, uma outra mediação se apresenta: a mediação do sistema

financeiro em geral e dos instrumentos específicos do sistema de crédito criados e

                                                                                                               51 No direito civil brasileiro a propriedade jurídica de imóveis urbanos e rurais é considerada um direito real, no sentido que é oponível a todo e qualquer indivíduo (erga omnes) e não apenas entre as pessoas que se apossam ou que trocam mercadorias e assumem obrigações em contratos bilaterais.

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regulados pela legislação do Estado. Estes instrumentos de crédito são formas

desdobradas do valor ainda mais abstratas. Com a mediação destes instrumentos

financeiros, as mercadorias imobilizadas no espaço urbano não se limitam à forma

do capital fixo incorporado na terra e de seus “poderes da natureza”, mas se tornam

capital circulante que é transferido e negociado no mercado de títulos mobiliários (ou

‘mercado financeiro’ ou também ‘mercado de capitais’) como instrumentos de dívida

em busca de rentabilidade. A crescente circulação do capital a juros pelo mercado

de terras (Harvey, 2013) faz com que estas mercadorias sejam cada vez mais

equiparadas como “produtos imobiliários” (Royer, 2010), ou ativos financeiros de

base imobiliária, indiferenciados na sua forma monetária de representação, isto é, no

seu preço.

Esta homogeneização dos diferentes produtos imobiliários pode ser observada na

perspectiva dos agentes econômicos do setor, como por exemplo na contabilidade

das empresas, construtoras, incorporadoras, securitizadoras, agentes fiduciários,

operadores bancários, etc., que calculam seus riscos e prospecções a partir de

informações sobre a quantidade dos estoques de ativos – estoque de terras,

estoque de unidades, estoque de outorga onerosa, estoque de certificados de

recebíveis, de letras imobiliárias, de debêntures de empresas da promoção

imobiliária, etc. – a serem colocados em circulação em operações de troca mediante

a compra e venda jurídica.

Os estoques de mercadorias são tratados por Marx no livro II de O capital, enquanto

custo de “armazenamento”, um dos custos potenciais do processo de circulação do

capital na medida em que demanda trabalho vivo no gerenciamento destes estoques

até a sua realização. O movimento do estoque pode ser descrito na medida de sua

formação e de sua liquidação, que envolvem necessariamente operações de compra

e venda no intervalo de tempo entre a produção e o consumo destas mercadorias. A

categoria estoque, em Marx, enquanto uma forma social abstrata e potencial, refere-

se a:

Toda mercadoria – portanto, todo capital-mercadoria que é apenas mercadoria, porém como forma de existência do valor do capital – , quando não transita imediatamente de sua esfera de produção ao consumo produtivo ou individual, ou seja, quando permanece no mercado durante um intervalo, constitui um elemento do estoque de mercadorias. (Marx, 2014, pg. 223).

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O estoque, para Marx, pode ser voluntário ou involuntário do ponto de vista do

gestor do capital. Se o estoque voluntário serve ao fluxo de vendas em um dado

período, o estoque involuntário deriva de “um estancamento da circulação, que, por

sua vez, é independente da consciência do produtor de mercadorias e obstaculiza a

sua vontade” (Idem, 226).

Com a concentração do capital na transformação das empresas do ramo imobiliário

em sociedades por ações, aumenta-se a escala da produção dessas mercadorias e

consequentemente o volume dos estoques correspondentes, escala que não seria

alcançada com capitais isolados. Estas transformações podem ser observadas, no

caso brasileiro, a partir das fusões e capitalizações das empresas do ramo da

construção e da incorporação imobiliária, que concentram e centralizam capital no

ramo imobiliário, assim como na aquisição de solo criado por instrumentos jurídicos

e urbanísticos como as operações urbanas e as outorgas onerosas do direito de

construir. Implicam a “transformação do capitalista realmente ativo em mero

dirigente, administrador do capital alheio” (Marx, 1991: 505). Estes agentes fazem o

gerenciamento desses ativos financeiros e seus estoques, tratando os produtos

imobiliários como capital-mercadoria no processo geral de circulação do capital.

Deste modo, os meios de produção desses produtos imobiliários, sob a gestão

destes agentes, convertem-se em capital – isto é, “tornam-se estranhos aos

produtores reais, e com isso se opõem, como propriedade alheia, a todos os

indivíduos efetivamente ocupados na produção, do dirigente até o último dos

assalariados”. Aqui se trata da “propriedade não mais como propriedade privada de

produtores individuais (landlords) e sim como propriedade dos produtores na

qualidade de associados, propriedade diretamente social” (Idem).

Observe-se que, em O capital (Marx, 2013), a alienação (Entausserung52, ou

manifestação do trabalho) da atividade humana, ao se desdobrar e se sedimentar

em obstáculos ao ser social – isto é, em estranhamento (Entfrendung) – manifesta-

se também do ponto de vista da troca: aqui se tem a manifestação jurídica, a

alienação ou a compra e venda jurídica (Verausserung). À medida em que se

                                                                                                               52 Ranieiri (2001) aborda os dois sentidos associados ao termo alienação nas traduções da obra marxiana de 1844 a 1846: alienação (Entausserung) da atividade humana (exteriorização, manifestação) e alienação (Entfrendung) – ou estranhamento – do conjunto destas atividades tornado obstáculo social à realização das potencialidades humanas (nas figuras do dinheiro e da propriedade privada).

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complexificam as relações de troca, estes contratos de venda e compra se

desdobram para formas ainda mais abstratas e estranhas a seus produtores diretos,

voltando-se contra eles.

Um dos principais exemplos utilizados por Marx (2013) para falar da função do

dinheiro como “meio de pagamento” na relação de troca de mercadorias é a

alienação da casa, no sentido de compra e venda jurídica (Verausserung). A casa é

vendida antes que o comprador a tenha pago: para isso, “um possuidor de

mercadoria vende mercadorias que já existem, outro compra como mero

representante do dinheiro ou como representante de dinheiro futuro” (Marx, 2013:

208). A forma-dinheiro da relação antitética entre credor e devedor, entretanto,

“reflete aqui apenas o antagonismo entre condições de existência mais profundas”

(Idem: 209). O que existe é uma promessa de pagamento de dinheiro do comprador,

que, enquanto devedor, deverá converter mercadoria em dinheiro a fim de pagar a

quantia prometida. Este dinheiro funciona apenas como “meio ideal de compra”, pois

entra na circulação em outra temporalidade, numa data futura. Está inscrito numa

cadeia de pagamentos entre compradores e devedores cujas conexões não são

apenas expressas e não estão imediatamente dadas nos contratos de compra e

venda a crédito. O movimento do dinheiro como meio de pagamento “exprime uma

conexão social que já estava dada antes dele” (Idem: 210), pois é um

desdobramento da circulação de outras formas (como o ouro, o papel moeda e o

entesouramento) para formas ainda mais abstratas de riqueza. Esta forma-dinheiro é

representada no dinheiro creditício (Kreditgeld), que surge “quando certificados de

dívida relativos às mercadorias vendidas circulam a fim de transferir estas dívidas

para outrem” (Idem: 213). Quanto mais a função de meio de pagamento se

desenvolve, maior a necessidade de acumular e entesourar dinheiro na forma de

fundos de reserva para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento das

letras e demais certificados de crédito.

Note-se que o crédito e o capital a juros53 são abordados diretamente por Marx

apenas no Livro III, ainda assim limitados a alguns pontos necessários para

caracterizar a realidade da concorrência entre os capitais individuais no modo de

                                                                                                               53 “No capital portador de juros, a relação capitalista atinge a forma mais reificada, mais fetichista.” (...) “Consuma-se então a figura de fetiche e a concepção fetichista do capital” (Marx, 1996, pg. 450-2).

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produção capitalista, sendo que no Livro II é pressuposto apenas o entesouramento,

num cenário hipotético em que o crédito é ainda presumidamente inexistente na

circulação. “A análise pormenorizada do sistema de crédito e dos instrumentos que

gera para si mesmo (dinheiro creditício, etc.) está fora de nosso plano”, diz Marx,

classificando para fins de simplificação todas as promessas de pagamento na

“categoria geral de letras” de crédito (Marx, 1991: 460 e 461).

Na leitura de Harvey (2014), este tipo de exclusão e demarcação da análise de Marx

em O Capital (demarcação que também ocorre de maneira similar em relação às

formas históricas da propriedade da terra) se explica pela sua atenção persistente

nos aspectos da generalidade do modo de produção, e não na particularidade

histórica e geográfica que essas formas assumiam no contexto europeu da segunda

metade do século XIX. Este traço é notado sobretudo nos livros inacabados (II e III),

o que se por um lado denota o caráter “limitado” de sua análise, rigorosamente

acometida ao “nível da generalidade” (Harvey, 2014: 40), é motivo pelo qual sua

obra segue atual e possível de ser lida e compreendida a partir das singularidades e

particulares que se apresentam em outra configuração espaço-temporal.

No caso particular do Brasil, o atual marco institucional e legal da alienação jurídica

da casa ainda é o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), criado em 1964 também

com o Banco Nacional de Habitação (BNH). Dois anos após a criação do SFH, o

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) surge, do ponto de vista das

finanças, como o principal mecanismo de financiamento (funding) do ainda incipiente

Sistema Financeiro da Habitação (SFH)54 (Royer, 2010). Ou, dito em outros termos,

somente a partir da criação do FGTS e da acumulação de um volume significativo de

dinheiro entesourado neste fundo é que o BNH passou a ter recursos para financiar

a compra e venda a crédito da mercadoria habitação.

O FGTS desde então constituiu-se do recolhimento mensal de uma parcela dos

salários do mercado de trabalho formal, sob o pretexto de criar um fundo de reserva,

uma poupança compulsória do trabalhador capaz de indenizar aqueles cujo vínculo

                                                                                                               54 A outra principal fonte de recursos do SFH é a captação dos depósitos voluntários em cadernetas de poupança no âmbito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), criado juntamente ao SFH e ao BNH em 1964. Atualmente existem outras fontes de recursos para o SFH, dentre elas o Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR).

 

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foi rompido, aumentando a rotatividade e substituindo a estabilidade no emprego.

Esta parcela dos salários, mais-valor descontado na fonte pelo Estado, passa a

alimentar o circuito de produção do ambiente construído. Deste modo, a criação do

FGTS significou um dos mais relevantes momentos de flexibilização das relações de

trabalho no Brasil, na medida em que substituiu direitos e conquistas do trabalho por

uma poupança compulsória destinada a financiar o circuito produtivo de habitação e

de obras consideradas de desenvolvimento urbano, um mecanismo de “socialização

capitalista da exploração da força de trabalho” (Rodrigues, 2013). O FGTS, ao

acumular e entesourar compulsoriamente uma quantia em dinheiro que representa a

conversão da venda da mercadoria força de trabalho, retém uma parcela (8,5%) do

dinheiro utilizado no primeiro ato (D-M) do processo de produção, isto é, na compra

e venda da única mercadoria cujo consumo é fonte de mais-valor, a saber: “a

capacidade ou a força de trabalho” (Marx, 2013: 242).

Com a legislação sobre o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), em 1997, criam-se

novos instrumentos financeiros para a ampliação desta cadeia de trocas e meios de

pagamentos ligada às atividades do ramo imobiliário. Como modo de criar um

ambiente de segurança jurídica dos contratos de compra e venda a crédito, o SFI

institui a forma de propriedade fiduciária para os contratos de alienação jurídica de

bens imóveis, (Royer, 2011). Ao longo da implementação deste sistema destacam-

se algumas reformas e inovações na legislação (Aragão, 2006), como:

1. a Emenda Constitucional n. 40/2003 (que flexibiliza o sistema financeiro

nacional);

2. a criação do regime tributário especial para a incorporação imobiliária, com o

“patrimônio de afetação”, a redução da carga tributária e a isenção de imposto

de renda sobre os rendimentos dos títulos do SFI, em especial nas alterações

na legislação do Sistema Financeiro Imobiliário nos anos de 2004 e 2005;

3. a regulamentação das chamadas “sociedades de propósito específico” (SPEs,

do inglês ‘Special Purpose Company’) na lei das Parcerias Público Privado de

2004.

4. a legislação do Programa Minha Casa Minha Vida (fase 1, fase 2 e fase 3);

Nos contratos de alienação fiduciária, o adquirente compromete-se com a dívida

mas não se torna proprietário antes de sua quitação, de modo que a titularidade do

imóvel permanece separada (alienada) do comprador enquanto durar o contrato de

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compra e venda a crédito. No caso de inadimplência, por exemplo, o adquirente está

sujeito a despejo extrajudicial por falta de pagamento das prestações.

Desde a estruturação do mercado de capitais no país iniciada em 1964 com a lei da

correção monetária e de criação do SFH, do SBPE e do BNH (Lei Federal 4380/64),

a compra e venda por fidúcia é regulamentada para a contratação a crédito de

direitos de propriedade móvel, como é o caso do financiamento de veículos

(alienação fiduciária de automóveis). A fidúcia, assim como o fideicomisso55, são

figuras originadas no Direito Romano, utilizadas para a realização de contratos que

envolvem sobretudo transferência futura de dinheiro e direitos de propriedade. A

etimologia da palavra nos remete ao prefixo fides, que no latim significa confiança,

confiável, fiel, fidedigno.

                                                                                                               55 O fideicomisso existe no Brasil apenas para regular direitos de sucessão testamentária e não chegou a ser incorporado à regulação econômica. No entanto, recentemente o fideicomisso tem sido utilizado em países da América do Sul (como Chile, Colômbia, México e Peru) para captar investimentos em PPPs (parcerias público-privada) de obras de infraestrutura, e já existem estudos ligados a entidades financeiras com o objetivo de adotar esta forma jurídica na regulação nacional do mercado de capitais (BNDES, 2007; Banco Mundial, 2011).

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IMAGEM 09: Deusa Fides, que na mitologia romana simboliza a confiança, a promessa ou a garantia dada pela palavra.

Na Roma antiga, a fiducia cum creditore era uma modalidade de contrato fiduciário

que esteve na origem da hipoteca (imóvel) e do penhor (móvel), coexistindo com

estas figuras. Nesta forma contratual, o devedor transfere a propriedade da coisa ao

credor com a finalidade de garantir uma dívida, comprometendo-se o credor

(fiduciário) a retransmitir ao devedor (fiduciante) a propriedade do bem com a

quitação do débito em uma temporalidade futura. A boa-fé objetiva (bona fides) que

atualmente vigora no direito das relações contratuais tem sua origem antes mesmo

da Lei das XII Tabuas, de 450 a.c. (a tabua III tratava das normas para os

inadimplentes e a tabua VI tratava da propriedade e da posse) e é parte de uma

tríade fundamental da identidade romana, da cultura e dos costumes tidos por

“romanidade” – a tríade do mos maiorum, formada por fides, pietas e virtus (Pita,

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2010). O templo de Fides, construído no Capitólio em 254 a.c. ao lado do templo de

Júpiter Terminus, representava os costumes e valores de fidelidade, de confiança,

de estabilidade, de um “firme compromisso”. O local era utilizado pelo Senado de

Roma, onde eram selados pactos, tratados e acordos com países estrangeiros.

Assim como a explicação sobre o fetiche em Marx, a representação da “fé” (fides)

nas relações e nos contratos remete, inevitavelmente, a uma “analogia” com o

“mundo religioso” (Marx, 2013: 148).

De acordo com Pierre Grimal, nos costumes e tradições romanas, a fides:

É o garante da boa-fé e da benevolência mútua em toda a vida social. Usa oficialmente o título de Fides Populi Romani (a Boa-Fé do Povo Romano) e, tal como o deus vizinho, Terminus, garante a conservação das demarcações (fronteiras da cidade, limites dos campos e tudo o que se deve manter para que seja salvaguardada a ordem das coisas), Fides assegura as relações dos seres, tanto nos contratos como nos tratados, e mais profundamente ainda no contrato implícito, definido pelos diferentes costumes, que liga os cidadãos entre si. (GRIMAL, 1988, pg. 71).

A fidúcia ou fiduciário na modernidade é abordada nos cursos de Pierre Bourdieu

(2012) em Sobre o Estado, que, comentando a frase de Valery sobre Napoleão, vai

dizer:

As instituições, o que são? São o fiduciário organizado, a confiança organizada, a crença organizada, a ficção coletiva reconhecida como real pela crença e, por isso, tornando-se real. Evidentemente, dizer de uma realidade que ela é uma ficção coletiva é uma maneira de dizer que isso existe fantasticamente, mas não como acreditamos que exista. Há profusões de realidades das quais o sociólogo é levado a dizer que elas não existem como se crê que existam, para mostrar que existem mas de maneira totalmente diferente (...). (Bourdieu, 2012: 71).

Assim como é possível ao Estado emitir moeda ou títulos da dívida pública sob o

fundamento da “fé pública”, da confiança (trust) no orçamento futuro do ente

federado emissor, o regime fiduciário de alienações jurídicas institui a crença em

seus papéis emitidos (títulos, certificados, cédulas, letras, etc.), uma “ficção coletiva”,

para usar os termos de Bourdieu, dos desdobramentos dos meios de pagamento

projetados para o futuro. Estes papéis são reais na medida em que são

reconhecidos como reais, sobre eles existe a confiança nas expectativas legítimas

quanto ao fluxo de recebimento e na apropriação efetiva dos rendimentos futuros de

seus ativos.

2.6. ESTOQUES IMOBILIÁRIOS

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No caso da superespeculação imobiliária em São Paulo, pode-se dizer que houve

uma fase anterior de expansão das empresas e demais agentes econômicos que

atuam no ramo imobiliário que se concentrou em investimentos na ampliação de

estoques de terra urbana, isto é, na concentração e na centralização de capital

investido na compra de estoques de terrenos a serem disponibilizados para a

construção na fase seguinte.

Além desses estoques concentrados de terra para construção, existe também um

estoque de unidades já construídas, que compreende o conjunto de unidades

usadas e de unidades novas, recém construídas. Em São Paulo, o IBGE (Censo

2010) calcula que existe um total de 3,9 milhões de domicílios, dentre os quais

apenas 3,4 milhões está efetivamente ocupado. Estes domicílios representam o

estoque de unidades construídas e em uso no território do município. As pesquisas

sobre a dinâmicas de estoques são mais volumosas e recentes no caso dos imóveis

novos, até por conta de sua relevância na circulação do capital social total. Ainda

assim, destaque-se que, no caso do montante dos recursos da SBPE, a parcela

mais significativa é destinada à compra de imóveis usados, cujo estoque é mais

desconcentrado e descentralizado, sendo que o movimento de seus preços pode

refletir mas não segue o mesmo curso do preço dos imóveis novos (Ver Uqbar,

2015).

O instrumento da outorga onerosa do direito de construir, criado pelo Estatuto da

Cidade e implementado nos Planos Diretores Municipais, cria ainda um estoque

fundiário imaginário de metro quadrado em potencial, chamado de “solo criado”. É o

potencial de construção adicional ao limite estabelecido na lei de uso e ocupação do

solo, outorgado mediante contrapartida financeira. Em alguns bairros de São Paulo

este estoque já foi adquirido por completo, já é propriedade social gerenciada como

capital. O SECOVI-SP desenvolve e divulga mapas dos estoques de outorga

onerosa de potencial construtivo por localização (subprefeitura, bairro) e tipologia

(residencial e comercial). Dos estoques de outorga onerosa da tipologia residencial,

criados na Lei Municipal 138885/0456, que instituiu os Planos Diretores Regionais,

verifica-se que há bairros nos quais este estoque já está completamente

comprometido, enquanto em outros ainda há margem para estas vendas de “solo

                                                                                                               56 A nova lei específica de zoneamento, prevista pelo Plano Diretor aprovado em 2014, ainda está em tramitação na Câmara Municipal.

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criado”. Estes estoques não se limitam às áreas delimitadas nas Operações Urbanas

Consorciadas criadas por lei específica, estendendo-se a toda a Macrozona de

Estruturação e Qualificação Urbana.

Os fundos de investimento imobiliário, por sua vez, são propriedades imobiliárias

coletivas, instituídas enquanto condomínios fechados e distribuídas na forma de

frações ideais da propriedade total, representadas por cotas de investimento. O

período de maior crescimento destes fundos (de aquisições e investimentos em

imóveis) pode ser identificado com o período de taxas de juros mais baixas e de

preços de imóveis em movimento ascendente (Uqbar, 2015). Estes fundos são

proprietários, em sua larga maioria, de imóveis de usos não residenciais (Uqbar,

2015). No caso, os fundos de investimento têm a particularidade de que são

alimentados não por grandes fundos de reserva como o FGTS e a SBPE, mas

sobretudo por pessoas físicas e fundos de pensão (Fix, 2011).

No caso do FGTS, é significativo verificar que o aumento no montante arrecadado

desde 2000 não é proporcional ao crescimento no número de unidades financiadas.

Se por um lado o montante de recurso destinado anualmente como funding do

sistema salta de 5.356 milhões de reais em 2005 para 42.327 milhões de reais em

2014, o número de unidades financiadas que em 2005 era de 342 mil/ano não passa

de 479 mil/ano em 2014 (Uqbar, 2015). No caso da poupança (SBPE), ainda que o

aumento do saldo de depósitos em poupança siga num ritmo vigoroso (mais de 55

bilhões em 2014), o volume de financiamentos cresce de modo mais acelerado a

partir de 2010 e passa a gerar um descompasso no fluxo de recursos disponíveis ao

funding do sistema SFH-SFI (Idem).

Pelo lado da oferta de unidades, enquanto as taxas de juros estavam no patamar da

baixa, um modo muito utilizado de financiar a produção foi a emissão de debêntures

por empresas do setor imobiliário, com rendimento fixo (taxas pré-fixadas), para o

financiamento da produção imobiliária. No caso das ofertas públicas realizadas sob

o regime da instrução normativa CVM n. 40057, tão logo as taxas começaram a subir

em 2013, estas novas emissões de debêntures perderam fôlego e simplesmente não

houve qualquer emissão no ano de 2014. As ofertas de debêntures de “esforços

                                                                                                               57 Não se trata do volume total de emissão de debêntures. As demais ofertas de debêntures são consideradas ofertas de tipo “esforços restritos”, cujos termos (taxas praticadas e condições de pagamento) não são aqueles estabelecidos na instrução normativa da CVM n. 400.

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restritos” (não emitidas sob o regime da CVM 400) também apresentaram queda

significativa neste período (Idem).

Outro modo de financiamento das empresas do setor imobiliário é a emissão e oferta

pública de ações na bolsa de valores, que se destacou sobretudo no ano de 2007,

quando atingiu um montante superior a 12 bilhões de reais no ano em ofertas

públicas registradas na CVM (Idem). A capitalização destas empresas foi decisiva

nos investimentos com a ampliação e formação de grandes estoques fundiários

(procura por terra edificável) para a promoção imobiliária.

2.7. OS CICLOS DA CAPITALIZAÇÃO DA RENDA DA TERRA URBANA NO BRASIL

Para Fredrick Jameson (2006), a especulação imobiliária deve ser vista como um

fenômeno ligado aos momentos do “ciclo do capital financeiro” (Arrighi, apud

Jameson, 2006) na capitalização das rendas fundiárias urbanas no mercado de

futuros. Enquanto uma ficção colonizadora dos futuros rendimentos fundiários

urbanos, a especulação imobiliária é uma “tendência fundamental no próprio

capitalismo e (...) fonte perpétua do eterno retorno do capital financeiro” (Jameson,

2006: 290).

O chamado “capital financeiro” não é um conceito ou uma categoria marxiana de

explicação do sistema do capital (Sabadini, 2012; Coutinho, 2013). Como destacam

Carcanholo e Nakatani (2015: 51-52), Hilferding e Lênin utilizam esta expressão à

sua época para “descrever o fato histórico da unificação do capital produtivo com o

capital bancário, sob hegemonia deste último”. Com a globalização, a expressão

seria também utilizada para se referir:

àquele capital cuja remuneração está constituída basicamente pelo ganhos especulativos obtidos em operações financeiras dos mais diversos tipos, além da que deriva dos juros (Carcanholo & Nakatani, 2015: 50).

No esforço de caracterizar fenômenos e processos característicos da globalização

identificados como “financeirização” ou “generalização do movimento especulativo

do capital”, Reinaldo Carcanholo e Paulo Nakatani (2015: 33) propuseram descrever

os novos elementos concretos da lógica do capital pelos nomes de “capital

especulativo” e “capital especulativo parasitário”.

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Nossa tese é que a globalização, com todas as suas características, distingue-se de outras épocas da história do capitalismo pelo domínio do capital especulativo parasitário (forma particular mais concreta do capital portador de juros) em escala mundial, sobre o capital produtivo. (Carcanholo & Nakatani, 2015: 34)

Esta forma de dominação e de exercício do poder econômico, o “capital especulativo

parasitário”, é apresentada, deste ponto de vista, como uma característica da escala

geográfica alcançada pelo mercado mundial na generalização do modo de produção

capitalista e está associada “à quebra do padrão monetário internacional a partir dos

anos 1970” (Carcanholo & Nakatani, 2015: 34). Nesta escala de internacionalização,

o capital a juros na sua forma particular de capital fictício – e não como “forma

funcional autonomizada do capital industrial” (Idem: 50) – parasita e subordina o

capital produtivo à especulação.

Egler (1985) destacava, ao analisar em perspectiva histórica o movimento do preço

da terra em sua correlação com as formas de intermediação do sistema financeiro

estabelecidas no Brasil até o período final do BNH, que a taxa de juros era a “ponte”

que ligava o mercado fundiário ao mercado financeiro. A partir da estruturação do

SFH houve uma tendência de aumento elevado do preço dos imóveis, que foi mais

significativa até 1971 e se sustentou até 1978, quando os preços pararam

definitivamente de subir. Egler observa que o aumento dos preços da terra começa a

perder fôlego a partir do fim do ciclo expansivo da indústria da construção civil e da

alta dos juros iniciada em 1973. Este movimento pode ser compreendido, argumenta

Egler, pela correlação específica que se estabeleceu neste período entre o preço da

terra e a variação das taxas de juros. As taxas de juros passam por dois ciclos de

baixa até chegar a um mínimo de 12,9% em 73, para depois voltar a subir e

ultrapassar a marca dos 35% de 1964, o que somente ocorreu após 1978. Em 1980,

a taxa de juros já chegava ao patamar de 64,7%. Deste modo, “a partir do

desenvolvimento de um sistema financeiro capaz de valorizar de modo fictício as

massas de capital, o preço da terra”, conclui o autor, “reflete de modo inverso as

variações da taxa de juros” (Egler, 1985, pg. 133).

As décadas seguintes, de 1980 e 1990, não registraram aumentos abruptos nos

preços dos imóveis ou períodos de superespeculação como ocorrera na década de

1970. Enquanto a década de 80 foi marcada pela crise da dívida e de intensa

desvalorização dos ativos, a década de 90 foi marcada por um período de reformas

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neoliberais do Estado, notada por exemplo pela “des-re-regulação”58 (Aalberts,

2016b) do Conselho Gestor do FGTS e pela criação dos sistemas financeiros de

capitalização da renda da terra, tanto o Sistema Financeiro Imobiliário, de 1997,

quanto o Sistema Financeiro do Agronegócio, ainda em 1993.

A fase de superespeculação imobiliária que ocorreu na década de 1970 somente foi

se repetir na passagem da década de 2000 para a década de 2010 com o novo ciclo

expansivo do crédito (Araújo, 2015). Na trajetória deste boom excepcional mais

recente, verifica-se que a taxa básica de juros no Brasil, a taxa SELIC, saiu de

26,32% em março de 2003, chegou a um mínimo histórico de 7,12% em janeiro de

2013 após as modificações nas regras de remuneração da poupança, e passou a

ser pressionada a subir, voltando ao patamar de 8,5% (acima da remuneração da

poupança) logo após as chamadas “jornadas de junho”, até atingir 14,15% em julho

de 2015. A redução da Taxa SELIC implica que o Estado paga uma remuneração

menor por títulos da dívida pública59 e com isso desloca o investimento de capital

para os setores produtivos (Dowbor, 2017). Este patamar se mantém estável até

outubro de 2016, poucos meses após o processo de impeachment da presidenta

Dilma Rousseff, quando volta a cair até chegar a 9,15% em julho de 201760.

O período de superespeculação porque passava São Paulo em 2012, ano da CPI

dos incêndios, teria sido um desdobramento de acontecimentos iniciados ainda nos

anos de 2005, 2006 e 2007, com a crescente capitalização das empresas do circuito

imobiliário (Fix, 2011), caracterizada pela implantação de capitais em busca de

investimentos. As Ofertas Públicas Iniciais (Initial Public Offers – IPOs) de abertura

de capital e comercialização de ações conduziram as empresas do ramo a

                                                                                                               

58 Aalbetrs defende que a “desregulação” não implica uma ausência de regulação, mas uma “re-regulação”, no sentido de que a des-regulação pressupõe a substituição de um modo de regulação por outro, mais flexível. Por este motivo também chamada de des-regulação regulada, ou “regulated deregulation” (Aalberts 2016). 59 Sobre a Taxa Selic no período anterior, sobretudo na década de 1990, ver Ladislau Dowbor (2017). “A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, usa como justificação ética o ‘combate a inflação’: se dá pela taxa Selic. A Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada é uma iniciativa dos anos 1990. A partir de 1996, passou-se a se pagar entre 25% a 30% sobre a dívida pública, para uma inflação da ordem de 10%. A partir disso os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso a menos impostos” (Dowbor, 2017: 142). 60 Fonte: Banco Central do Brasil. http://www.bcb.gov.br/Pec/Copom/Port/taxaSelic.asp#notas

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107  

inicialmente aplicar esses investimentos na formação de estoques de terras urbanas

a serem disponibilizadas para as atividades da incorporação e da construção. Esses

estoques passaram a demandar por atividades específicas dos gestores do capital

no seu gerenciamento, no sentido de efetivamente disponibilizá-los para a

construção de novos projetos imobiliários.

O Código de Obras do Município de São Paulo vincula a execução de projetos

imobiliários a um procedimento administrativo para a sua aprovação diante dos

órgãos regulatórios competentes. A consecução destes procedimentos confere aos

interessados que pleiteiam a aprovação e execução de seus projetos um alvará

correspondente, a ser expedido na forma de um processo de licenciamento do

direito de construir no imóvel. Além da regularidade da relação jurídica com a terra,

pressuposto para pleitear a aprovação de projetos imobiliários pelo Estado, esses

procedimentos de licenciamento estabelecem os limites e as possibilidades de

exercício do direito de construir no imóvel. Estes limites e possibilidades são

estabelecidos não apenas pelas normas edilícias, mas pelas demais leis

urbanísticas que regulam o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano. Neste

sentido, pode-se dizer que a regulação urbanística do direito de construir é uma

mediação jurídica dos poderes da propriedade privada da terra e dos imóveis

urbanos.

No caso de São Paulo, esses alvarás de construção convergem para uma licença

final e definitiva conhecida como “Habite-se”, que significa a conclusão do

licenciamento61. A última etapa antes do Habite-se é a licença emitida pelo Corpo de

Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, um laudo de vistoria atestando

que o local licenciado segue todos os procedimentos e normas de segurança e não

apresenta risco de incêndio62. É somente deste modo que as terras urbanas em São

Paulo tornam-se edificáveis e os projetos executáveis, comercializáveis e aptos aos

usos e atividades urbanas, de maneira a desatar estes nós e remover estes

“entraves” (Cohn, 2013) ao desenvolvimento capitalista das forças produtivas do

ramo imobiliário.                                                                                                                61 Nas aprovações de pequeno impacto, como nas habitações unifamiliares, por exemplo, esta licença pode ser dispensada nos termos do Código de Obras do Município. 62 Esta licença passou a ser exigida após os incêndios nos edifícios Andraus, em 1972, e Joelma, em 1974, em que se incorporou regulamentos baseados em normas de seguro contra incêndio na legislação municipal, em especial a partir do Código de Obras em 1976 (Seito, 2008).

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Esta primeira fase da expansão das empresas e demais atores econômicos que

atuam no ramo imobiliário, anterior à fase aqui identificada como superespeculação,

uma vez concentrada na formação de estoques de terra urbana, eleva a procura por

novas terras a serem conduzidas à construção, uma demanda que afeta diretamente

as condições para a cobrança de preços de monopólio característicos da renda

absoluta urbana.

No estágio seguinte do ciclo, esta formação e ampliação de estoques fundiários

proporcionou elevados lucros fictícios a algumas empresas do setor, sobretudo a

partir da alta generalizada dos preços dos imóveis identificada a partir de 2009 e

descrita nesta tese como uma fase de superespeculação. Este período inicial de

elevação da procura por terras edificáveis pode ser circunscrito pelo menos aos

anos de 2005 a 2008, mas prosseguiu nos anos seguintes conforme os primeiros

projetos eram executados e novos projetos surgiram em busca de aprovação. Nesta

fase inicial, a Taxa de Juros SELIC apresentou um significativo movimento de baixa,

saindo 19,75% em meados de 2005 para atingir 11,75% em 2007, patamar que se

conservou até meados em 2008.

Do ponto de vista da procura pela compra da habitação, o custo do dinheiro a crédito

ainda limitava a demanda efetiva para a aquisição de imóveis do consumo pessoal

da classe trabalhadora. A ampliação da disponibilidade de acesso e de socialização

capitalista dos recursos entesourados em fundos financeiros do trabalho criava

condições para os capitais ultrapassarem esta barreira que ainda limitava os

investimentos no mercado de terras. O período expansivo da economia nacional,

com diminuição do desemprego formal e aumento real do salário mínimo e dos

ganhos da classe trabalhadora, resultava no crescimento do volume de recursos

disponíveis nesses fundos que alimentam o Sistema Financeiro da Habitação

(FGTS, SBPE e outros). Embora o volume acumulado nos fundos de reserva para o

crédito dirigido apresentasse uma trajetória de alta, a demanda pela aquisição de

imóveis ainda não cumpria as condições de solvabilidade para a contratação de

crédito ao consumo.

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Somente com a ampliação das linhas de crédito existentes e a criação de faixas de

subsídio63 ao consumo da habitação pelo Programa Minha Casa Minha Vida, criado

em março 2009, combinadas com outros subsídios e isenções fiscais, associadas

ainda a políticas estaduais e municipais, esta barreira era finalmente ultrapassada.

Este conjunto de medidas impulsionava pelo lado da demanda efetiva por imóveis

de uso pessoal não apenas o mercado da construção civil e da incorporação

imobiliária, mas todo o complexo imobiliário-financeiro (Aalberts, 2015; Rolnik, 2015)

já estruturado e capitalizado nos anos anteriores pelo lado da oferta.

Estas mudanças conduzem ao segundo estágio do ciclo, que se caracteriza pelo

desenvolvimento produtivo da indústria da construção civil, período caracterizado

por um “boom” excepcional nas atividades da construção, que por sua vez resultava

em um aumento de lançamentos de projetos imobiliários em constante busca por

fontes de financiamento (funding) para sua execução nos canteiros de obras e sua

realização na compra e venda a crédito.

Estes novos lançamentos, no entanto, passam a encontrar novas dificuldades e

limites na solvabilidade da demanda a medida em que aumentam as taxas de juros

a partir de 2013, tendendo à formação de estoques de novas unidades construídas.

Estes estoques de unidades recém lançadas e construídas tornam-se não apenas

notícia mas tema de pesquisas recentes de acompanhamento e monitoramento dos

índices do mercado, como a pesquisa mensal divulgada pelo SECOVI a partir de

2014 sobre o ritmo das vendas e a composição e distribuição destes estoques. A

diminuição das vendas chamava a atenção desde o segundo semestre de 2013, e o

reflexo da diminuição desta demanda foi o crescimento do estoque reservado de

unidades construídas não vendidas e a diminuição na oferta de novos lançamentos

imobiliários (SECOVI-SP, 2015a), além do aumento da frequência de distratos

(dissolução dos contratos) e dos índices de inadimplência no pagamento das

prestações.

O SECOVI-SP, sindicato patronal da habitação, adota um discurso persistente

contra o que considera especulação imobiliária. De acordo com seus

representantes, a diminuição das vendas e a formação de estoques involuntários é                                                                                                                63 As linhas de crédito do MCMV subsidiaram o pagamento das unidades adquiridas nas faixas 1 e 2 do programa e não se limitaram a subsidiar o pagamento dos juros, como ocorrera na experiência do BNH.

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um efeito, em tese, indesejado por este agente do ramo imobiliário na medida em

que prejudica o fluxo de circulação de dinheiro pelo setor, embora esta preocupação

não necessariamente limite ou constranja a ação específica dos capitalistas

individuais por eles representados. Neste caso, indica uma interrupção do fluxo pelo

lado da demanda efetiva para o consumo, pressionando a oferta a estocar capital-

mercadoria. Este contexto levou construtoras, corretoras, incorporadoras, etc., que

atuam nas vendas do setor a adotar preços promocionais e condições especiais de

aquisição, sinalizando, ainda que de modo pouco visível e incipiente, para uma

readequação dos preços praticados no mercado de novas unidades, que não chega

a caracterizar uma redução nos preços de comercialização mas ao menos sinaliza

para uma diminuição ou mesmo uma estagnação das projeções de aumento de suas

rendas urbanas.

A medida em que o estágio produtivo se desenvolve tem início uma tendência de

des-territorialização do capital da indústria da construção a fim de se multiplicar na

esfera financeira – um estágio de expansão financeira via sistema de crédito

(Jameson, 2006), observável no encadeamento de títulos financeiros lastreados em

fluxos de recebíveis originados em créditos ao consumo pessoal de imóveis. O

momento que corresponde a este estágio de expansão financeira é a última etapa

deste ciclo predador da capitalização das rendas urbanas em busca de retornos

extraordinários na especulação imobiliária.

Este último estágio pode ser observado na movimentação e no gerenciamento de

títulos, letras e certificados de dívidas no Sistema Financeiro Imobiliário a partir de

2009 até pelo menos 2014. Os contratos fiduciários de compra e venda habitacional

a crédito são o ativo-lastro64 que “origina” os créditos imobiliários secundários. Estes

contratos permitem dispor do título jurídico de propriedade dos imóveis assim

contratados para garantir a emissão e circulação de títulos financeiros deles

derivados, como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), as Letras de

Crédito Imobiliário (LCI) ou as cotas de Fundos de Investimento de Direitos

Creditícios (FIDC de base imobiliária, que são minoritários). Estes títulos financeiros

                                                                                                               64 O ativo-lastro da securitização imobiliária não é necessariamente um crédito habitacional, podendo ser um contrato de locação, com garantias como o seguro-fiança por exemplo. A participação dos alugueis no montante da securitização imobiliária tem decrescido sobretudo a partir de 2011 com a resolução do Conselho Monetário Nacional de limitar os financiamentos imobiliários lastreados em alugueis no caso de direcionamento de recursos da SBPE (Uqbar, 2015).

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(Ver Da Silva, 2016), uma vez lastreados nas propriedades imobiliárias financiadas,

são articuladas com os promotores imobiliários (construtores, incorporadores,

corretores imobiliários) em determinados arranjos corporativos (as sociedades de

propósito específico – SPEs) no interior dos quais seus titulares figuram como

garantidores das dívidas dos empreendimentos.

Embora prevista inicialmente na lei da Parceria Público Privada (PPP) para

contratações entre Estado e consórcios de empresas privadas, esta modalidade de

sociedade empresarial (a SPE) passou a ser utilizada para constituir personalidade

jurídica a consórcios formados pelos diferentes agentes da promoção imobiliária –

construtoras, instituições bancárias, corretoras de imóveis e incorporadoras

imobiliárias – com as novas companhias securitizadoras (Fix, 2011). Neste caso, a

utilização das SPEs é “peça chave”, pelo que aponta Royer (2009), para unir os

tradicionais agentes imobiliários às novas companhias que securitizam os

financiamentos da construção e da comercialização de empreendimentos

imobiliários. Esta forma jurídica funciona na constituição de alianças corporativas

(semelhantes às joint ventures) entre os diferentes agentes do ramo imobiliário e do

setor financeiro que operam com produtos imobiliários. Segundo Royer (2009), estas

alianças formam as condições para a securitização imobiliária, que é, desde a

criação do SFI, a ligação propriamente institucional e jurídica do “mercado de títulos

ao mercado imobiliário”. Em outras palavras, é o “nível semi-autônomo” (Jameson,

2006) da “ponte” econômico-financeira (Egler, 1985), isto é, a taxa de juros. Estas

SPEs unem o circuito de agentes que promovem os empreendimentos imobiliários

(originadores) aos agentes que atuam como garantidores dos meios de pagamentos

(securitizadores) frente ao sistema de crédito (Royer, 2009). Estes securitizadores

são também proprietários fiduciários dos imóveis financiados, garantidos pela

segurança jurídica da fidúcia.

A Companhia Brasileira de Securitização (Cibrasec), pioneira no mercado de

securitização imobiliária no Brasil, tem sua estrutura de propriedade formada pelos

cinco maiores bancos do país – Banco do Brasil S.A., Caixa Econômica Federal, o

Banco Bradesco S.A., o Banco Itaú Unibanco S.A. e o Banco Santander S.A., que

diretamente ou por meio de subsidiárias e/ou coligadas, consolidam 61,5% de seu

capital social. Além destas instituições, estão entre os principais acionistas da

Cibrasec o International Finance Corporation (entidade ligada ao Banco Mundial) e a

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Associação de Poupança e Empréstimo - Poupex, criada pela Fundação

Habitacional do Exército65. A maior securitizadora do pais, seguida pela Cibrasec, é

a Brazilian Securities, que faz parte do grupo PAN (antigo Banco Panamericano),

controlado desde 2011 pela Caixa Econômica Federal e pelo BTG Pactual66,

instituição financeira gerenciada pelo banqueiro André Esteves até novembro de

2015, afastado do cargo de CEO após ter sido preso sob suspeita de obstruir

investigações da Operação Lava Jato67. O BTG Pactual também controla a PDG

Realty, considerada a maior empresa capitalizada da promoção imobiliária em valor

de mercado no ano de 2012.

O fim deste ciclo é marcado pelo redirecionamento do fluxo de capitais em busca de

novos usos lucrativos em outras regiões e cidades integradas ao mercado mundial.

Esgotadas as oportunidades de lucro fictícios e instalado o parasita – a terra como

capital fictício e subordinada ao “capital especulativo parasitário” (Carcanholo &

Nakatani, 2015) – verifica-se o princípio de crise no setor, que seria observado pelo

aumento da inadimplência, dos distratos e despejos extrajudiciais, e que podem

pressionar a cadeia de meios de pagamento e novas rodadas de ampliação do

sistema de crédito habitacional e imobiliário de acordo com as crescentes limitações

da solvabilidade da demanda efetiva, além de mudanças na legislação urbanística

dos Municípios no sentido de criar novas possibilidades de acréscimo de rendas

urbanas a serem capitalizadas.

                                                                                                               65 A estrutura de propriedade detalhada da companhia está disponibilizada na internet In: www.cibrasec.com.br/assets/arq/Companhia/ComposicaoAcionaria/Composicao_Acionaria_2015.pdf 66 O BTG, além de atuar no mercado imobiliário, passou a investir nos demais mercados da capitalização da renda da terra - agronegócio, mineração, petróleo. Em 2012, adquiriu a OGX, de Eike Batista, e seus negócios na área de petróleo e mineração. Até 2015 constava no site e em todos os seus portfólios (informação que foi removida da web), que este banco tem todas as suas transações financeiras atreladas ao banco BTG das ilhas Cayman, que é a holding da corporação. Um circuito de fluxo de capital que opera a partir de um paraíso fiscal, dinheiro que não tem endereço de remetente. 67 A prisão de Esteves foi decretada pelo então ministro do Superior Tribunal Federal Teori Zavascki, em 25 de novembro de 2015, juntamente com a prisão do então Senador Delcídio Amaral, à época ainda filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT).      

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3. OS DIREITOS DE POSSE E DE PROPRIEDADE DA

TERRA E DOS IMÓVEIS EM SÃO PAULO

No capítulo anterior, a regulação dos direitos de posse e de propriedade da terra e

dos imóveis foi apresentada na medida em que estes direitos estabelecem, de um

ponto de vista da forma jurídica, os poderes dos indivíduos e instituições sobre os

valores de uso no espaço absoluto das cidades. Trata-se, portanto, da mediação

propriamente jurídica entre as rendas urbanas representadas quantitativamente no

preço dos imóveis e um aspecto qualitativo da disponibilidade real dessas terras

ocupadas mediante a posse.

Neste capítulo, será abordado brevemente o modo como o Estado regulou esses

direitos pelo menos desde a Lei Imperial de terras devolutas, de 1850, considerado o

ponto de partida da instituição da propriedade imobiliária capitalista.

3.1. POSSE, FOGO E PROPRIEDADE NA LEI DE TERRAS DE 1850

O regime de compra e venda dos direitos sobre a terra foi instituído no Brasil a partir

da Lei Imperial 601 de 1850, que disciplinou a aquisição das chamadas “terras

devolutas”. Estas terras ditas “devolutas” não incluíam as sesmarias e as demais

concessões governamentais anteriores à lei de terras; estas eram não apenas

reconhecidas mas também revalidadas por esta lei, consolidando com isso o

domínio de determinadas famílias e de seus privilégios coloniais sobre propriedades

rurais de grande extensão em todo o país. Para as terras sobre as quais não existia

sesmeiro ou qualquer outra forma de concessão, dizia-se “devoluta”, pois fora

“devolvida” pela Coroa Portuguesa com a Independência da Colônia e a formação

do Império (Cirne Lima, 1988).

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Para as terras devolutas, a lei imperial instituiu a compra e venda como único modo

de legitimação da posse e aquisição da propriedade territorial68. Ao abolir o tráfico de

trabalhadores escravos sob o lema “conciliação e melhoramentos”, D. Pedro II

instituiu um conjunto de reformas, dentre as quais a criação de um incipiente regime

jurídico da propriedade fundiária. Foi um primeiro passo para se instituir no âmbito

da administração do Estado imperial instituições voltadas ao chamado “Serviço de

Terras”, a serem adquiridas mediante a alienação onerosa a particulares, empresas

e colonos. À medida em que se registravam os primeiros títulos de terras devolutas,

os entraves administrativos e os altos custos para garantir a legitimação da posse

encareciam o preço dos imóveis rurais e urbanos, beneficiando com isso os

senhores que tiveram suas concessões revalidadas e financiando os custos de

imigração da força de trabalho branca de origem europeia.

Com este novo mecanismo de privatização das terras, estabeleceu-se também uma

barreira ao uso, à ocupação e à apropriação do solo a todos aqueles que não tinham

como pagar pela propriedade fundiária, sobretudo a população que imigrara da

África como propriedade alienável de seus senhores. Isto é o que José de Souza

Martins chama de “cativeiro da terra”, isto é, a implantação do trabalho livre e

assalariado – com a vinda dos colonos europeus, o fim do tráfico de escravos e a

posterior abolição da escravidão – não é instituído sem que antes a terra seja

tornada cativa do capital (Martins, 2015).

A partir destas mudanças, a relação de propriedade da terra deixaria de ser uma

decorrência única e exclusiva das concessões (que podiam ser revogadas pelo

Império e, antes, pela Coroa Portuguesa), mas passaria à condição de direito

individual representado em um título jurídico, objeto de troca como mercadoria e

representada em dinheiro na forma de preço. Destes títulos deveria constar

necessariamente uma transcrição de seus limites geográficos, fundada em uma

medição e demarcação da terra, a ser objeto de registro público.

Este registro público dos títulos tornava-se condição para a alienação posterior das

terras e para o financiamento hipotecário da aquisição de lotes fracionados para a

compra e venda. Com a lei hipotecária de 1864, cria-se um precário e mal logrado

                                                                                                               68 “Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.” (Lei Imperial 601, de 1850)

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regime de compra mediante dinheiro creditício. Este primeiro sistema de hipotecas

imobiliárias surge para substituir o sistema de hipotecas dos títulos de propriedade

dos trabalhadores escravos, que até então era o principal sistema de capitalização

da renda da propriedade (Martins, 2015).

Estes títulos objeto de registro imobiliário seriam transmissíveis na cadeia

sucessória (direito de herança) de seus titulares, assim como o eram os títulos de

propriedade de escravos, e passíveis de comercialização mediante o pagamento em

dinheiro via contratos de compra e venda. Neste modelo, garantia-se a segurança

jurídica da posse tão-somente àqueles que tivessem suas concessões revalidadas e

àqueles que se tornariam proprietários de bens imóveis ao adquirir de modo

oneroso, isto é, ao comprá-las e com isso regularizar a posse de suas terras. Estas

aquisições a título oneroso eram dirigidas não apenas à aquisição de propriedades

de uso rural, mas também àquelas de uso urbano, chamadas de chão de terra.

Observe-se que, após instituir a compra e venda da propriedade de imóveis no seu

primeiro artigo, a Lei de Terras de 1850 no seu artigo segundo mencionava

expressamente o fogo como uma justificativa para o não reconhecimento da posse e

conversão em propriedade imobiliária, com previsão de despejo, multa, indenização

e prisão. Desta regra eram excluídos os atos possessórios (conflitos entre

proprietários ou legítimos possuidores) entre herdeiros vizinhos (“hereos

confinantes”).

Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. Esta pena, porém, não terá logar nos actos possessorios entre heréos confinantes. Paragrapho unico. Os Juizes de Direito nas correições que fizerem na forma das leis e regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento destes delictos põem todo o cuidado em processal-os o punil-os, e farão effectiva a sua responsabilidade, impondo no caso de simples negligencia a multa de 50$ a 200$000. (Lei Imperial n. 601, de 1850)

No regime de concessões anterior à lei imperial era comum o fracionamento das

grandes extensões para dividi-las entre os herdeiros dos direitos sobre a terra.

Comum também eram os conflitos possessórios entre esses herdeiros, que por

ocasião da sucessão tornavam-se vizinhos após o desmembramento da

propriedade. Esta exceção à regra funcionava, em mais esta ocasião, para garantir

prerrogativas às famílias dos senhores.

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A bibliografia que pesquisa e estuda a lei de terras e seus desdobramentos nas

décadas seguintes, no entanto, aponta para a lentidão na implementação efetiva

destas medidas e deste regime jurídico nas relações de posse e de propriedade do

solo (Osório, 1996). Este novo “regime jurídico” não foi instituído rapidamente após a

promulgação da lei imperial, mas implicou uma longa e prolongada mudança nos

modos e formas de apropriação, registro e titulação das terras que se desdobrou ao

longo do período republicano e ainda está em curso nos dias atuais, mais como um

movimento e um processo de devir da propriedade fundiária capitalista do que como

uma criação legislativa de um novo estatuto da terra como mercadoria.

Neste movimento lento e gradual, consolidou-se em outras bases – mediante a

revalidação – a relação de senhorio presente na concessão da posse da terra para o

“cultivo” (produtividade rural) configurada na antiga relação entre a Coroa e os

sesmeiros, presente na Colônia desde a criação das capitanias hereditárias. Ao

mesmo tempo, abriu-se um longo caminho para a instauração de um regime jurídico

que tornava a terra de domínio do Estado Imperial uma propriedade privada com

valor de troca representado em dinheiro e alienável por meio de contrato de compra

e venda.

Estas novas propriedades privadas tornavam-se deste modo também uma barreira,

um obstáculo ao reconhecimento e à legitimação da posse daqueles que não se

enquadravam nas condições e requisitos previstos na nova lei. Era o caso sobretudo

da população de escravos, libertos e índios, mas também de trabalhadores livres

não proprietários e pequenos produtores rurais, entre outros que não podiam pagar

pela regularização de sua propriedade fundiária.

Deste modo, pode-se dizer que, desde a Lei de Terras de 1850, o que torna a

propriedade da terra “formal” (regular) em território brasileiro é o registro imobiliário,

as condições e procedimentos para a sua forma jurídica enquanto forma do capital.

Isto não quer dizer que a propriedade territorial informal, sem registro reconhecido e

regularizado, não tenha uma renda: embora não tenha a forma do capital, esta

propriedade informal tem um preço na medida em que existir o direito de receber

uma renda por sua posse ou propriedade “de fato”, informal. O direito como “forma

de equivalência subjetiva” (Naves, 2014: 87) pressupõe que o que é trocado é

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regulado pelo direito, a essas trocas correspondem formas jurídicas que

pressupõem abstrações dos valores de uso69.

3.2. O URBANISMO CONTRA O FOGO

Os incêndios em favelas, como já analisado, não são uma novidade ou uma

especificidade da fase de superespeculação com a produção do espaço urbano no

ciclo de capitalização da renda da terra. No entanto, as transformações nas

superestruturas jurídica e institucional da regulação da questão da “segurança

contra incêndios” (Bruno, 2012) pelo Estado capitalista coincidem no tempo com os

períodos em que se verificou aumentos expressivos dos preços da terra e dos

imóveis urbanos. Mais do que mera coincidência, isto indica que estas mudanças

nas formas jurídicas e institucionais do Estado tendem a refletir transformações nas

relações sociais de produção do ambiente construído.

As normas jurídicas de segurança contra incêndios no Brasil têm origens remotas

ainda no Código de Obras de 1876, em que se definiu pela primeira vez limites para

as construções no perímetro central que restringiam a utilização de materiais

combustíveis como a madeira. Assim como em Chicago (1871) e várias outras

cidades norte-americanas atingidas por grandes incêndios urbanos ao longo do

século XIX70, São Paulo passava por mudanças na produção do espaço que

implicavam o aumento da população e a expansão urbana, decorrentes de fatores

associados à chegada de colonos imigrantes, escravos, libertos e trabalhadores

livres não proprietários que migravam do campo para cidades como São Paulo.

Do ponto de vista das formas jurídicas e institucionais, pode-se dizer que estas

mudanças estavam associadas à implementação lenta e gradual da Lei de Terras

devolutas a partir de 1850 e de seu “Serviço de Terras”, que regulava e geria os

trabalhos de medição e registro das revalidações de antigas concessões e da

                                                                                                               69  Veja o caso do “direito da favela” abordado na perspectiva do pluralismo jurídico, por exemplo por Magalhães, 2010).  70   Pode-se supor que esta legislação possivelmente tenha sido influenciada pela regulação urbanística de cidades da Europa e dos EUA que sofreram com grandes incêndios em áreas centrais adensadas e com construções precárias em madeira como foi o caso mais notório de Chicago alguns anos antes, em 1871 (Ver Seito, 2008). O incêndio de Chicago será abordado no capítulo seguinte.

 

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legitimação da posse em terras devolvidas da Coroa à administração do Estado

Imperial.

Esta nova legislação local surgia no contexto do registro dos primeiros títulos

imobiliários regidos pela Lei Imperial de Terras. O efetivo registro das antigas

transcrições nos Cartórios de Imóveis não se iniciou de imediato após a edição da

Lei de Terras em 1850. Mais de duas décadas se passaram para o registro do

primeiro título de transcrição de uma terra devoluta ser reconhecido pelo Serviço de

Terras do Império (Osório, 1996). Com o registro dos primeiros títulos de

propriedade de terras devolutas, foram criadas as condições para a emergência dos

primeiros fracionamentos do chão de terra destinados à moradia desta nova classe

trabalhadora urbana, assalariada e preponderantemente branca, que passava a

morar as cidades.

O projeto de lei que deu origem à lei de terras de 1850, denominado “Projeto de Lei

de Terras e Colonização” (apresentado ainda em 1843), trazia dentre seus objetivos

expressamente expostos uma prévia intenção de encarecer o preço das terras,

inclusive pela cobrança de taxas referentes ao registro imobiliário no Serviço de

Terras do Império (Gadelha, 1988). Este encarecimento do preço da terra garantiria

uma barreira ao acesso à terra por todos aqueles que não podiam pagar pelos

procedimentos e custos de legitimação da posse. Se a terra fosse barata e de fácil e

gratuito registro não seria possível garantir um contingente populacional obrigado a

vender a sua força de trabalho nas terras produtivas que careciam de trabalhadores

para executar atividades nas grandes propriedades rurais, tampouco seria possível

promover futuramente a industrialização e a urbanização que colocariam o país na

rota da modernidade. Ao mesmo tempo em que a lei de terras trazia em seus

objetivos uma proposta industrializante e um projeto de colonização e

embranquecimento da força de trabalho, protegia os direitos de propriedade já

existentes no regime anterior das concessões, sobretudo os interesses dos grandes

proprietários e das grandes concentrações de terra.

A lei de terras, como já apontado, surge em um contexto de transição do trabalho

escravo para o trabalho assalariado. Para os colonos imigrantes, era prevista a

necessidade de trabalhar por no mínimo três anos vendendo sua força de trabalho

nas lavouras para então terem acesso ao direito de comprar lotes de terras. Embora

muitos dos primeiros imigrantes fossem trabalhar nas lavouras de café, no caso de

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São Paulo, ao longo dos anos somavam-se a um contingente de libertos e

trabalhadores livres que seguiam para a cidade em busca de trabalhos e de lugar

para morar. Destaque-se também o advento da Lei do Ventre Livre, publicada em 28

de setembro de 1871, que considerava livres os filhos de escravos nascidos a partir

daquela data. Se a Lei de Terras coincide com o fim do tráfico de escravos, a

história das favelas e das ocupações informais de chão de terra nas cidades

brasileiras começa após a abolição do trabalho escravo, marcadamente quando ex-

escravos e ex-combatentes da Guerra de Canudos ocupam o Morro da Previdência

no Rio de Janeiro após a demolição e remoção forçada do cortiço conhecido como

“Cabeça de Porco”, em 1893 (Ver Chalhoub, 1996; Valladares, 2005; Telles, 2006;

Leitão, 2009).

Com as novas posturas municipais em São Paulo, a proibição e o poder de polícia

da Câmara Municipal possibilitavam a remoção e a coação de moradores de áreas

bem localizadas, de modo a determinar uma tendência para que ocupassem terras

mais distantes e de menores rendas fundiárias urbanas. Este pode ser identificado

como um primeiro movimento de periferização da moradia desta emergente classe

trabalhadora livre para vender sua força de trabalho na cidade mediante o

pagamento de salários mensais e/ou diárias.

Com isso, no caso das cidades, pode-se dizer que estas mediações jurídicas e

políticas do Estado promoviam a apropriação de rendas diferencias e de monopólio

nas áreas centrais e bem localizadas, ao mesmo tempo em que restringiam a

apropriação gratuita das terras mediante a posse. Para legitimar a posse em terras

devolutas era exigido o pagamento da renda absoluta ao Estado, um requisito para

esses posseiros exercerem todas as qualidades conferidas pelo poder da

propriedade formal.

Como destacado por Rolnik (2003), a gestão local de São Paulo foi inicialmente

realizada pela Câmara Municipal, já que a Coroa e seus representantes estavam

geralmente ausentes do cotidiano da cidade, como foi o caso em São Paulo.

Inicialmente reguladas pelo Código Alfonsino, as Câmaras Municipais passaram a

ter suas funções regulamentadas em 1828 pelo Império; mais tarde, já na República

Velha, criou-se o cargo do Prefeito Municipal. A partir de 1886, o Código de Posturas

Municipal legislava sobre critérios técnicos (a emergência da técnica do urbanismo)

para impor regras para a ocupação e o uso do chão de terra, proibindo deste modo

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as construções características dos cortiços existentes no período. Ao mesmo tempo

em que a cidade de São Paulo tornava-se a sede financeira do café, sua população

crescia e seus territórios se redefiniam, enquanto o ente município ganhava aos

poucos autonomia político-administrativa. O primeiro passo mais firme da legislação

paulistana de regulação do espaço urbano foi dado em 1923, com a legislação de

parcelamento do solo e ocupação de lote. Ao mesmo tempo em que determinavam

zoneamentos de usos e densidades demográficas, estas novas normas criavam

possibilidades de definir áreas que escapavam da lei, como a área suburbana,

paradoxalmente dentro da ordem legal. Dados da época indicam que 72% do total

das novas construções não passavam pelos critérios da legislação71, sugerindo que

grande parte da cidade de São Paulo construía-se numa zona de múltiplas

“extralegalidades”, que correspondiam em geral aos bairros pobres (Rolnik, 2003).

Neste período, identifica-se novamente uma fase de superespeculação com os

preços da terra. Isto se dava com a expansão desta nova fronteira urbana na cidade

de São Paulo, que avançava os limites assim considerados como chão de terra para

iniciar o registro e titulação das chamadas terras de rossio. (Monaco, 2004). Com

esta ampliação, expandia-se do ponto de vista geográfico a propriedade capitalista

da terra e, consequentemente, ampliava-se o patamar mínimo que representa a

renda absoluta da terra. Com esta nova rodada de aumento de preços dos imóveis,

surgiam também novas mudanças na regulação do Estado para disciplinar os

poderes e possibilidades de apropriação de terras devolutas, marcadamente a partir

do Decreto Federal n. 19.924/31 (Idem).

Estas medidas consolidam-se com o Código de Obras Arthur Saboya, publicado em

1934, que, em linhas gerais, sintetizava todas as anteriores legislações urbanísticas

(Rolnik, 2003). O Código Arthur Saboya estabelecia novas exigências e uma nova

regulação para os padrões urbanísticos e construtivos, regulando deste modo não

apenas normas de segurança das edificações mas também condições e limitações

administrativas do exercício dos poderes do direito de construir baseadas em

normas técnicas de saúde pública e higiene. Reformulado algumas vezes em

                                                                                                               71 Dados coletados em relatórios de Prefeitos encaminhados à Câmara Municipal ao final de cada gestão, de acordo com pesquisa de Raquel Rolnik sobre a história da legislação urbana em São Paulo (Rolnik, 2003).

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períodos posteriores, o código ganhou novas configurações, porém sem perder suas

principais características ao longo das décadas seguintes (Idem).

Dos anos 30 até os 70, o país é marcado por intenso ritmo de urbanização, em que

o crescimento das cidades baseou-se largamente em expedientes ilegais. Enquanto

as áreas centrais se verticalizavam e os bairros adjacentes recebiam novos

loteamentos e diversidade de usos, proliferavam os loteamentos periféricos e

precários. Na medida em que a mancha urbana se expandia pela via da ilegalidade,

um novo problema se avizinhava: o avanço desta “cidade ilegal” sobre áreas

ambientalmente frágeis, como era o caso das represas Guarapiranga e Billings72,

que já serviam à tarefa de abastecimento de água da região metropolitana. A

questão ambiental passava a fazer parte do problema do crescimento das cidades

da metrópole paulista, devido às implicações que o uso das terras e a falta de

saneamento e de soluções de esgotamento público lançavam sobre os reservatórios

(Martins, 2006). Até a década de 70, não se tem registro de aplicação de

mecanismos legais exigindo posturas urbanísticas do loteador, como a instalação de

infraestrutura, saneamento e espaços públicos73. Da mesma forma, somente nesta

década surgem os primeiros mecanismos regionais de proteção jurídica do meio

ambiente: é o caso da Lei Estadual de Proteção aos Mananciais (n° 898/75), que

entre outros dispositivos definiu densidades de ocupação compatíveis com a

manutenção dos mananciais em boas condições de preservação. Estas medidas,

em âmbito metropolitano, faziam parte de um conjunto de ações e instrumentos do

Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado (PMDI), elaborado em 1971.

No período das décadas de 70 e 80, diferentes aglomerados urbanos informais

foram palcos para o surgimento de organizações e associações locais que traziam

no seu bojo um discurso ressonante sobre direitos. A segregação urbana, a

pauperização e a espoliação urbana – sentida pela falta de bens de consumo                                                                                                                72 Localizada na região Sul da metrópole, a represa da Guarapiranga foi construída em 1909 para controle de fluxo de água da usina hidrelétrica de Santana do Parnaíba, da empresa Light & Power; somente em 1928 passou a ser utilizada para o abastecimento de água. Neste mesmo ano a represa Billings foi inundada para a construção da Barragem de Pedreira, no curso do Rio Grande; para garantir o volume necessário, foi revertida parte da água do Rio Tietê e de seus afluentes para a represa. Em 1993, o CONSEMA conseguiu aprovar com o governo estadual a restrição definitiva dos bombeamentos de água Tietê-Billings. 73 As primeiras leis que regulamentavam a produção de loteamentos: Lei Municipal de 1972, conhecida como Lei do Zoneamento; Lei Federal n° 6766 de 1979, que regulamentava todas as atividades de parcelamento do solo urbano nacionalmente (Martins, 2007).

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coletivo, equipamentos públicos, acesso à terra urbana e habitação – figuravam

como matérias-primas das reivindicações populares e das lutas sociais que tomaram

curso nestas décadas (Kowarick, 1994). Passavam a reivindicar, antes de mais

nada, direito a terem direitos; e aos poucos, direitos de cidadania, de que as

promessas da modernização do país tanto falavam (Telles, 2001). Estes focos de

surgimento de movimentos populares foram lidos enquanto novos sujeitos coletivos

que “entravam em cena”, capazes de protagonizar expressivas mobilizações

coletivas; e isto se explicava não somente pela “condição objetiva” de seus

integrantes, mas principalmente pelas novas identidades que constituíam as

diversas dinâmicas e tramas de relações destes movimentos (Sader, 1988).

Ainda na década de 70, alguns incêndios catastróficos em edifícios como o Andraus

e o Joelma criaram um ambiente e uma atmosfera política que pressionou o Estado

e o Município de São Paulo a adotarem providencias institucionais na prevenção a

esses desastres (Seito, 2008). Destaca-se o Decreto Estadual 10.878/74, convertido

em lei no ano seguinte. No âmbito do município, estas normas foram incorporadas

na revisão do Código de Obras em 1976, que incluiu normas de segurança contra

incêndio para as aprovações de projetos e emissão de alvarás e demais licenças de

construção. Estas normas jurídicas foram baseadas em normas técnicas de

segurança contra incêndio da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),

utilizadas até então apenas pelas seguradoras de incêndio na caracterização dos

sinistros e para definir critérios e normas de segurança de edifícios segurados como

o pagamento de prêmios e indenizações por estas instituições financeiras. No início

da década de 80 se tem registro da existência do programa Pró-Luz (Ver Pasternak

& D’Otavianno, 2015; Pasternak, 2016), cujo objetivo era regularizar as ligações

elétricas clandestinas nas favelas com objetivo de assegurar e limitar o risco de

incêndios nessas áreas construídas fora desses padrões e normas técnicas. Ou

ainda, nos casos de favelas em que não havia ligação de eletricidade, reduzir riscos

associados ao uso de velas e outras formas de geração de luz, calor e energia

decorrentes da utilização direta do fogo. Esta legislação de segurança contra

incêndios vigorou sem maiores revisões até o período mais recente, quando, em

2014, contou com a aprovação do Código Estadual de Proteção contra Incêndios,

cujo projeto de lei data de 1993 (PLC 68/93).

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123  

Na década de 80, apenas intervenções isoladas de iniciativa de poderes executivos

municipais – como foi o caso de Diadema, que regularizou terras públicas ocupadas

por favelas74 mediante a concessão – foram registradas no enfrentamento do

problema urbano e de seus ilegalismos. No contexto das discussões públicas que

antecederam a Congresso Nacional Constituinte de 88, surgiu e se organizou um

movimento reformista e democrático – o Movimento Nacional pela Reforma Urbana

– composto por organizações populares e profissionais, acadêmicos, intelectuais,

etc. Este nascente movimento passou a defender uma plataforma de proposições

que resultou na Emenda Popular da Reforma Urbana75, apresentada no Congresso

Constituinte de 1988.

A década de 90, contudo, é marcada por elevado desemprego e perda de

ocupações industriais: o percentual de empregados na indústria passou de 36% da

população ocupada em 1985 para 19% em 200176 (Marques & Torres, 2005). Os

desempregados somavam o impressionante contingente de 1,68 milhões de

pessoas na Região Metropolitana de São Paulo, sendo que 59,11% da população

apresentava renda abaixo de 3 salários mínimos77. Enquanto isso, o emprego no

setor informal crescia mais depressa que os empregos no setor formal, promovendo-

se uma busca pela sobrevivência, que encontra na informalidade sua maior

expressão78 (Davis, 2006). Dados apontavam para o fato de as áreas centrais

praticamente não apresentarem crescimento positivo neste período, enquanto no

                                                                                                               74 A Secretaria Municipal de Diadema foi pioneira na execução de programa de regularização de favelas localizadas em terras públicas de domínio municipal. Com base em instrumento de regularização da posse criado nos tempos do regime militar, aplicou a denominada “Concessão de Direito Real de Uso” (Decreto-Lei 271, de 1967) para legalizar a situação fundiária de diversos assentamentos informais (Baltrusis & Mourad, 1999). 75 A Emenda Popular da Reforma Urbana foi encaminhada à Constituinte com mais de 12 milhões de assinaturas. Foi escrita pelo Movimento Nacional de Luta pela Reforma Urbana, que contava com a participação de seis entidades nacionais: Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), Federação Nacional dos Engenheiros, Coordenação Nacional das Associações de Mutuários do BNH, Movimento em Defesa do Favelado (MDF), Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), além do apoio de 48 entidades estaduais e locais (Da Silva & Da Silva, 2006). 76 Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) – Fundação Seade/Dieese. 77 Idem  78 UN-HABITAT. The Challenge of Slums: Global Report on Human Settlements 2003. Londres, Earthscan, 2003. Apud DAVIS, 2006. Indicadores internacionais apontam que as grandes cidades do Terceiro Mundo tornaram-se “depósito para uma população excedente que trabalha nos setores informais de comércio e de serviços, sem especialização, desprotegida e com baixos salários”.

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anel periférico da região metropolitana registrava-se um crescimento populacional

superior a 3% ao ano79. Com a consolidação de bairros outrora precários, novas

centralidades emergem na cidade e inaugura-se um novo estágio de urbanização

periférica, que se opera através da entrada de uma nova “camada de trabalho e

capital” (Mautner, 1999) e da criação de condições para o surgimento das “periferias

consolidadas”, que neste período não ultrapassavam a taxa de crescimento de 3%80.

Nesse contexto, as mais altas taxas geométricas de crescimento eram registradas

nas fronteiras da periferia da cidade, que encontravam nas práticas ilegais de

apropriação da terra urbana seu principal meio de expansão. Nota-se que entre

1991 e 2000, as zonas de fronteira passaram a abrigar mais 2,1 milhões de

pessoas; enquanto que no mesmo período, a cidade consolidada perdeu 0,7 milhão

de habitantes e a periferia consolidada cresceu na quantidade de 0,6 milhão de

pessoas81. A fronteira urbana é um tipo particular de periferia, caracterizada neste

período por altas taxas geométricas de crescimento demográfico; substanciais fluxos

migratórios; precariedade na infraestrutura urbana e no acesso a serviços públicos,

particularmente saneamento; pouca presença do Estado, seja na regulação do uso

da terra, seja pela oferta de serviços e equipamentos públicos (Marques & Torres,

2005).

A consolidação da “proteção jurídica da moradia ilegal” ocorreria somente em 2001,

com a regulamentação do texto constitucional no Estatuto da Cidade (Saule, 2004).

Assim, a legislação urbanística criava instrumentos jurídicos e urbanísticos para a

promoção de políticas públicas de planejamento do uso e ocupação do solo urbano

e de regularização fundiária de assentamentos informais. Como a execução de

políticas urbanas é competência do poder público municipal, restava mais uma etapa

na construção dos marcos legais que se iniciou com em 88: a elaboração dos

Planos Diretores Participativos, que se tornaram o instrumento legal definidor dos

conteúdos da função social da cidade e da propriedade urbana (Fernandes, 2006).

                                                                                                               79 IGBE, Censo 2000. 80 Haroldo Torres diferenciou os territórios urbanos de acordo com a sua taxa geométrica de crescimento. A “cidade consolidada” não registrava crescimento positivo; a “periferia consolidada” correspondia ao percentual de 0% a 3%; enquanto as zonas de “fronteira” correspondiam a uma taxa superior a 3% (Marques & Torres, 2005). 81 IBGE, Censos 1991 e 2000.

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125  

3.3. LEGAL E ILEGAL

Os estudos de sociologia jurídica e a teoria marxista sobre o Direito e o Estado

insistem há algum tempo em apontar os limites da aplicabilidade e da efetividade

das normas jurídicas editadas pelo Estado, seja por forças “externas” do mercado

mundial exercidas no sentido de diminuir ou enfraquecer a soberania dos Estados-

nação, seja por forças “internas” que se dão no território entre os indivíduos, grupos

e classes sociais. Estas forças, cujo ponto de partida não é o próprio Estado, mas

que têm no Estado e em suas leis e atos normativos formas de manifestação,

exercem um poder de determinação que não pode ser simplesmente deduzido a

partir das relações sociais de produção, mas que são refletidos no que é dito e

escrito nos marcos legais do direito positivo e nos procedimentos e processos

administrativos, registrais, cartorários, jurisdicionais, parlamentares, etc.

Convém aqui explicar o que se entende por “determinação”. Na leitura lukacsiana,

remetendo ao conceito na dialética de Hegel e de Marx, a determinação tem o

sentido de exercer uma força de tendência ou tendencial. Ao tratar da “mais

importante descoberta metodológica de Hegel”, Lukács aponta para o “caráter

tendencial” das “determinações da reflexão”, (2012: 245 e 246). Em outras leituras,

como é o caso do marxismo analítico (Cohen, 2013), esta determinação remete à

relação entre a superestrutura jurídica e a estrutura econômica das relações sociais

de produção, em que se coloca a questão controversa da determinação “em última

instância” da superestrutura pela infraestrutura, sem contudo partir dos pressupostos

da teoria do valor e da sua lógica do real.

De um modo ou de outro, pode-se dizer que é não apenas a afirmação positiva da

lei, mas também a sua negação, o seu descumprimento e a sua burla que

caracterizam os seus efeitos. Se existe a lei, cumpri-la é uma opção, não cumpri-la

também é outra possibilidade. A expressão “acata-se a lei, mas não se cumpre”

(Osório, 1996), cunhada para tratar da história de consolidação dos latifúndios nas

áreas rurais, aponta para essa ambivalência da história da aplicação e da efetivação

da legislação fundiária no Brasil, que repercute e se desdobra ao longo dos séculos

XX e XXI com a crescente urbanização das cidades brasileiras.

Estas leis e normas jurídicas emanadas e positivadas pelo poder instituído do

Estado, quando elevadas a fonte exclusiva da reflexão sobre os direitos, perdem de

vista aspectos muitas vezes determinantes das normas jurídicas que não estão ditos

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e redigidos propriamente na sua forma jurídica. A pesquisa sobre o fenômeno

jurídico, ao isolar a lei e a norma para estudá-las cientificamente, edifica uma

dogmática do legislado e do jurisdicional, desconsiderando desse modo não apenas

a particularidade e singularidade dos indivíduos e de suas ações, reduzidas às

balizas do critério normativo da lei do Estado (legal e ilegal), mas também – e

sobretudo – as determinações mais gerais das formas sociais e jurídicas das

relações sociais de produção.

No contexto de acelerada urbanização no século XX, “cidade ilegal” foi uma

expressão empregada pela literatura do urbanismo (Rolnik, 2003; Fernandes, 2006)

para caracterizar a situação dos aglomerados urbanos informais, como é o caso das

favelas, não apenas pela irregularidade jurídica na posse e propriedade da terra

urbana e de suas construções, mas também pelos múltiplos sentidos da

vulnerabilidade social e da precariedade em relação às condições de moradia, de

urbanização e acesso a equipamentos e serviços públicos de uso coletivo.

Precariedades e irregularidades não apenas em relação à construção das

edificações em terras loteadas e divididas em desacordo com os parâmetros

edilícios e urbanísticos previstos em leis e regulamentos do Estado, mas também na

implantação de equipamentos de infraestrutura urbana, nas redes de mobilidade e

de saneamento e nos demais serviços públicos e privados de saúde, educação, etc.

que articulavam esses assentamentos à cidade.

Nesta expressão – cidade ilegal – muitas vezes a irregularidade e a precariedade se

confundem, mas a ilegalidade no uso e ocupação do solo não se limita a esses

lugares no espaço absoluto da cidade. O pesquisador James Holston, na década de

80, já apontava para o que chamava de “legalização do ilegal” (Holston, 1993) na

história de apropriação das terras no Brasil: regularizar a situação irregular do ponto

de vista jurídico e dominial tem sido a toada da história de apropriação das terras no

Brasil desde os remotos períodos da colonização, do Império e da República.

A caracterização de ilegalidade na ocupação e no uso da terra é definida dessa

maneira desde o Código Civil de 1917, que estabelece uma clara distinção entre

propriedade e posse ao incorporar os conceitos jurídicos do código civil napoleônico

no que se refere à propriedade pessoal e à propriedade real. A propriedade da terra

é considerada um direito real, tem sua origem remota na propriedade pública da

Coroa, do “rei”, que no caso do Brasil à época da lei de terras tratava-se do

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Imperador. Neste sentido, toda propriedade imobiliária em território brasileiro tem na

origem da sua cadeia dominial a propriedade das terras do Estado e sua

comprovação carece da “fé pública” (fides) do registro dos títulos em cartório de

imóveis.

O direito de posse, por sua vez, é um direito pessoal, não é sacralizado e ungido

pelo oficial do cartório de registro de imóveis como o é o direito real. Podem ser

considerados legítimos e objeto de registro em cartórios de notas e documentos,

porém não são regulados da mesma maneira que os direitos de propriedade. Não

geram as mesmas consequências objetivas em termos de poder para os sujeitos

desses direitos, como é o caso de servir como “garantia real” de dívidas ou mesmo

na transferência de patrimônio via direito de herança. Estas “garantias reais” são

exclusivas dos bens imóveis e de seus títulos de propriedade ou convertíveis em

propriedade (é o caso dos contratos de compromisso de compra e venda registrados

nos cartórios de imóveis).

No caso da posse, os títulos não são registrados ou registráveis a não ser enquanto

expressão e componente derivado do direito de propriedade ou em casos de

concessões específicas reguladas por lei. A efetiva legitimação da posse implica a

conversão dos direitos pessoais de posse em direitos reais de propriedade, isto é,

mediante a regularização fundiária, uma legalização do uso e ocupação do solo, um

reconhecimento pelo Estado da relação dos indivíduos com a terra e suas

construções.

Pode-se dizer que a lei de terras devolutas de 1850, neste sentido, é um marco para

a privatização e mercadificação da propriedade fundiária (delimitação/demarcação,

fracionamento/loteamento/divisão e comercialização/alienação das terras urbanas e

rurais), na medida em que inaugura modos de regularizar a situação da posse

irregular existente, necessariamente vinculados à necessidade e à capacidade de

pagamento desses posseiros pela renda absoluta da terra de domínio do Estado. As

ocupações mediante a posse, desde então, passaram a constituir um modo de

apropriação do espaço sem o pagamento desta renda que corresponde ao exercício

do poder de usar e dispor da terra. Mas reconhecer essas ocupações e titular esses

moradores sem a cobrança de uma contrapartida financeira, como passou a ocorrer

sobretudo a partir da Constituição de 1988, passaria a ser um modo de reconhecer o

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direito desses posseiros em se apropriar desta renda absoluta, redistribuindo desta

maneira a apropriação do mais-valor entre as classes sociais.

3.4. ECONOMICISMO E JURIDICISMO

Sobretudo ao longo do século XX, as teses fundadas no economicismo marxista

supunham que o caminho possível à superação da sociedade capitalista passava

prioritariamente pela aceleração do desenvolvimento das forças produtivas

(Turchetto, in: Naves, 2005). A esta tese se deu o nome de primado das forças

produtivas. Tão mais apta ao sucesso da transição socialista e à superação do

capitalismo aquela sociedade mais desenvolvida para a produção material e para o

domínio dos seres humanos sobre a natureza. Tratava-se de pensar a História em

sua continuidade linear, como um desenvolvimento progressivo do tipo evolucionista

e mecanicista, em que os diferentes modos de produção correspondem

automaticamente a diferentes formas de relações sociais.

Portanto, se a transformação ou a superação de um modo de produção replica seus

efeitos sobre as relações sociais de produção, o desafio posto para o socialismo

estaria na progressão sucessiva dos níveis de desenvolvimento das forças

produtivas. O resultado dessa análise é uma “completa desvalorização do papel da

luta de classes” (Turchetto, in: Naves, 2005: 25) na análise das mudanças históricas,

geográficas e sociais. Por outro lado, compreender de maneira adequada as

relações de produção pressupõe entender essas relações como a interação entre os

seres humanos no interior do processo produtivo; tratar de relações entre os agentes

da produção, “relações entre sujeitos mediadas por objetos”, que constituem “o

conteúdo concreto, a forma de existência empírica” (Idem) das relações de

produção. As relações sociais de produção sob o capitalismo devem, portanto, ser

compreendidas como relações de capital, e não como uma expressão do

desenvolvimento das forças produtivas, como queria o economicismo.

Deste modo, elementos socialistas são habitualmente apresentados como

programas de “planificação”, ou ainda como “programação democrática”, mas que

na verdade não passam de modos diversos da concorrência e da circulação

mercantil. Apresentá-los desse modo significa, portanto, reduzir o papel das relações

sociais de produção capitalistas a meras relações de troca, tomando simplesmente a

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circulação mercantil como o aspecto definidor da sociedade burguesa (Naves,

2005). A planificação enquanto um modo diverso da mesma forma de divisão social

do trabalho característica do capitalismo não elimina a subordinação do trabalho ao

capital e, portanto, não interfere na base real dos processos de valorização e auto-

reprodução do capital.

Outra consequência da tese do primado das forças produtivas – centro nervoso do

economicismo – é, certamente, a redução das relações sociais de produção a

simples relações de propriedade, no sentido puramente jurídico-formal, isto é, à sua

forma júridica82 (Pachukanis, 1989; Naves, 2008). Contudo, escapa dessa análise

que o processo dirigente da transformação das forças produtivas materiais não é a

propriedade capitalista enquanto relação jurídica, mas a disponibilidade real dos

meios de produção e de consumo. E uma disponibilidade efetiva desses meios pelos

produtores somente pode ser visualizada com a superação da relação capital,

essencialmente fundada na separação entre produto e produtor do trabalho.

Na esteira de Marx, pode-se dizer que, independente da forma jurídica a que a

relação de propriedade está sancionada pelo Direito – que podem ser diferentes da

propriedade privada individual, como nos casos da propriedade privada dos entes

federados do Estado, das empresas estatais, das autarquias, das sociedades de

economia mista, dos órgãos da administração pública direta, etc. – a apropriação

privada que caracteriza e diferencia a sociedade burguesa das precedentes é a

apropriação capitalista do mais-valor. A forma jurídica da propriedade privada é nada

mais que a forma generalizada de disposição de bens no capitalismo, isto é, a

expressão superficial das relações sociais de produção capitalistas (Turqueto, 2005;

Naves, 2005).

3.5. A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL

                                                                                                               82 Utiliza-se aqui os escritos de Pachukanis da década de 20, em especial a obra Teoria Geral do Direito e o Marxismo, bem como o estudo de Marcio Bilharinho Naves em Marxismo e Direito. “A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a intervenção de um equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige mediação jurídica, pois o valor de troca das mercadorias só se realiza se uma operação jurídica – o acordo de vontades equivalentes – for introduzida” (Naves, 2008: 57).

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130  

A partir destas considerações, pode-se refletir especificamente a respeito da

aplicação e efetivação dos instrumentos jurídicos de regularização fundiária criados

a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade, consolidados e

ampliados na lei que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida - MCMV (Lei

federal 11.977/2009). É sobretudo o caso da legitimação da posse via procedimento

de demarcação urbanística, regulamentados no âmbito do Município de São Paulo

inicialmente por meio do Decreto 51.876/2010 para as áreas delimitadas como ZEIS-

1 no Plano Diretor, e posteriormente pela Lei Municipal 15.720/2013. Embora muito

se tenha escrito, pesquisado e falado a respeito do Programa MCMV e seus efeitos

sobre a dinâmica imobiliária, pouca atenção foi dada a este novo instrumento criado

na mesma lei que instituiu o programa e de que modo ele repercute ou não nos

contextos urbanos em que se constata uma generalizada “insegurança da posse”,

como demonstra Rolnik (2015) não apenas para o caso brasileiro. Ainda, de que

modo estes lugares de irregularidade edilícia e fundiária se relacionam numa

realidade complexa com os novos investimentos no financiamento da produção do

espaço urbano, sobretudo num contexto de expansão da capitalização das rendas

fundiárias.

O Plano Diretor em vigor define e delimita cinco categorias de ZEIS no território de

São Paulo, sendo que a categoria ZEIS-1 é aquela que se refere a áreas ocupadas

por favelas:

I – ZEIS-1 são áreas caracterizadas pela presença de favelas, loteamentos irregulares e empreendimentos habitacionais de interesse social, e assentamentos habitacionais populares, habitados predominantemente por população de baixa renda, onde haja interesse público em manter a população moradora e promover a regularização fundiária e urbanística, recuperação ambiental e produção de Habitação de Interesse Social;

Os Planos Diretores de São Paulo delimitam as favelas da cidade mediante o

instrumento das ZEIS-1 desde 2003, em consonância com as normas gerais criadas

no Estatuto da Cidade em 2001. Esta delimitação, no entanto, está restrita ao

planejamento urbano e não interfere diretamente nos termos de troca da posse e da

propriedade dessas áreas. Por este motivo, não se trata de uma demarcação, mas

de uma delimitação de perímetro para fins de planejamento urbano, uma regulação

urbanística que define a forma jurídica dos poderes de uso e disposição dessas terra

e imóveis urbanos para a construção – o direito de construir. E a regulação desses

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poderes da propriedade são definidos pela sua “função social” estabelecida na

legislação urbanística.

A demarcação urbanística é um instrumento jurídico de legitimação da posse para

os casos classificados como de “interesse social”. Demarca-se para legitimar a

posse. Trata-se de uma delimitação administrativa, que precede e instrui um

procedimento, também conduzido no âmbito da Administração Pública, com o

objetivo de legitimar o direito de posse existente e converte-lo em direito de

propriedade. A conclusão destes processos de reconhecimento da posse em

espaços urbanos demarcados se completa com a outorga de títulos jurídicos de

propriedade aos posseiros. É prevista para ser aplicada em áreas urbanas

ocupadas, “de forma mansa e pacífica, há pelo menos 5 anos”. Neste sentido, em

relação às áreas públicas, não está limitada ao prazo da Medida Provisória

2.220/0183, da concessão de uso especial para fins de moradia, que admitia a

regularização fundiária apenas para ocupações anteriores à vigência do Estatuto da

Cidade (2001). Por este motivo é considerada uma espécie de “usucapião urbano84

administrativo”, cabível tanto para áreas públicas como para áreas privadas, com a

diferença de que não exige procedimento judicial e/ou extrajudicial, mas um

procedimento administrativo cujo projeto deve ser aprovado no âmbito dos órgãos

competentes do Estado capitalista.

Ao contrário da legitimação da posse mediante pagamento da renda da terra ao

Estado, instaurada a partir do regime jurídico Imperial de 1850, a lei do MCMV

consolida a legislação que desde pelo menos a Constituição de 1988 possibilita e

cria instrumentos jurídicos e urbanísticos de regularização fundiária para os casos

em que resta caracterizado o chamado “interesse social” em morar nas cidades. Isto

implica que estas titulações não requerem o pagamento da renda pela transferência

da titularidade da terra. Uma vez demarcadas, estas terras não seriam sujeitas à

                                                                                                               83 A MP 2220/2001 deu nova redação a dispositivos do Estatuto da Cidade aprovado no Congresso Nacional e revogado pelo Executivo. Para regularizar áreas públicas, foi instituído que o direito à concessão de uso especial para fins de moradia estaria limitado a ocupações anteriores à promulgação do Estatuto da Cidade. Este prazo foi revisto na Lei Federal 13.465/2017, que estendeu esta possibilidade à posse mansa e pacífica de no mínimo 05 anos contada até 22 de dezembro de 2016, data de publicação da MP 759/2016. 84 O usucapião urbano, com prazo de 5 anos para fins de moradia, foi instituído a partir da Constituição Federal de 1988. O prazo para usucapir, até a constituinte, era aquele previsto no Código Civil e requeria posse “mansa e pacífica” por 20 anos. Estas modalidades de usucapião estão limitadas à aquisição originária de terras privadas, sendo vedadas em terras públicas.

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indenização “prévia, justa e em dinheiro” aos proprietários como nas

desapropriações convencionais85, que na prática funcionam apenas como compras

compulsórias pelo Estado com garantia de prévia contrapartida financeira pela perda

dos poderes de rendimento da propriedade.

A demarcação urbanística, portanto, legitima os posseiros e deslegitima os titulares

da propriedade, retirando-lhes o direito à indenização pela perda dos direitos de se

apropriar de uma renda, assim como na hipótese de usucapião. Por este motivo, são

consideradas formas de “aquisição originária” da propriedade, uma vez que seus

títulos não são originados na transferência do direito de receber a renda que

corresponde aos poderes da propriedade. Desta maneira, este instrumento amplia

as possibilidades de legitimação da posse antes circunscritas ao direito de

usucapião de terras particulares via processo judicial, flexibilizando os

procedimentos e estendendo essa possibilidade a áreas públicas de domínio direto

ou indireto do Estado. Trata-se, portanto, de uma regularização fundiária de

interesse social que converte a posse legítima (propriedade “de fato”, informal) em

direito de propriedade (propriedade jurídica, registrada, formal) sem a necessidade

de pagamento pela renda da terra.

No entanto, nos casos em que se identifica o risco de incêndio, as instituições

municipais do Estado deixam de reconhecer os direitos legítimos de posse dos

moradores dessas favelas. Por se enquadrarem em uma classificação de risco à

segurança, passam a ser tratadas como áreas sujeitas à remoção. Mesmo no caso

do provimento definitivo, quando esses moradores removidos são atendidos como

demanda pública prioritária em novos projetos habitacionais, não se reconhece

imediatamente o direito de propriedade, uma vez que a titularidade da propriedade

dos imóveis permanece separada dos adquirentes até a quitação do financiamento.

A Medida Provisória 759/2016, convertida na Lei 13.465/2017, passou a dar novo

tratamento à regularização fundiária urbana e rural. Embora o instrumento da

demarcação urbanística tenha sido inicialmente revogado no texto da MP 759/2016,

a redação final da lei federal findou por incorporar o texto anterior da Lei

11.977/2009 e excluir o dispositivo que previa esta revogação. Além disso, criou

                                                                                                               85 Exceção para a desapropriação por títulos da divida pública, a chamada desapropriação por reforma urbana, nunca aplicada no pais.

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outros instrumentos de regularização fundiária que não se limitam aos casos em que

é constatado o “interesse social” (Reurb-S), regulamentando o “interesse específico”

(Reurb-E) em regularizar mediante contrapartidas financeiras. A figura da

“regularização fundiária de interesse específico”, no entanto, não surge na Lei

Federal 13.465/2017, foi criada ainda na Lei 11.977/2009 juntamente com o

programa MCMV, embora ainda não houvesse o instrumento da “legitimação

fundiária” que possibilita a aplicação desta modalidade Reurb-E.

3.6. A REGULAÇÃO JURÍDICO-URBANÍSTICA DA EXCEÇÃO

Descrever a fase de superespeculação na capitalização das rendas urbanas permitiu

uma visão sobre os momentos deste ciclo predador não exatamente na realidade do

cotidiano da cidade e de seus bairros e favelas, mas sobretudo nas representações,

imaginações e expectativas de um futuro capitalizado e capturado por estranhas

ficções jurídicas do mercado financeiro. Neste aparente paradoxo entre um período

de investimentos no setor imobiliário/habitacional e uma intensificação da

insegurança da posse (Rolnik, 2015), não se trata de abordar os incêndios como a

ação de uma mão invisível incendiária do mercado imobiliário, senão enquanto um

processo de produção do espaço urbano mediado de tal maneira que a presença de

determinadas favelas passa a representar uma questão de risco a ser prevenido,

gerenciado e, no limite, combatido, ao mesmo tempo em que a ausência dessas

mesmas favelas torna-se uma necessidade e uma urgência para os projetos e

planos de futuro de uma cidade cujas rendas fundiárias são altamente capitalizadas

nos circuitos fictícios da valorização.

Uma primeira constatação de fundo é que a temporalidade deste ciclo econômico

predador no nível das relações sociais de produção não é a mesma temporalidade

dos “níveis semi-autônomos” (Jameson, 2006) e seus processos e formas políticas,

estéticas, culturais, jurídicas, etc. Neste sentido, para os fins propostos a esta

pesquisa, tornou-se inevitável considerar o papel específico de mediação exercido

pelo Estado (enquanto forma política) e suas manifestações legislativas, judiciais e

administrativas (enquanto forma jurídica).

No que diz respeito às formas jurídicas da regulação urbanística do Estado, note-se

que o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10257/2001), ao regulamentar os artigos 182

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e 183 da Constituição Federal de 1988, foi amplamente divulgado como um marco

institucional e legal que criava instrumentos jurídicos e urbanísticos de combate e de

limitação da especulação imobiliária. Passados mais de 15 anos, no entanto, a

elaboração destes instrumentos por meio dos Planos Diretores Municipais não foi

suficiente para impedir que as cidades se tornassem sensivelmente mais caras para

se viver. Neste período os centros urbanos experimentaram aumentos abruptos nos

aluguéis e nos preços dos imóveis, que se somaram a outros aumentos

relacionados ao custo de reprodução da força de trabalho nas cidades brasileiras,

como as tarifas de transporte coletivo e de serviços públicos sob a gestão de

empresas privadas, públicas ou de economia mista (telecomunicações, transporte,

energia, água, etc.), o custo dos alimentos, dos combustíveis, etc.

A seletividade e a desproporção na aplicação destes instrumentos jurídico-

urbanísticos é notável. Dos instrumentos que interferem diretamente sobre os

valores de troca dos imóveis urbanos, a desapropriação por títulos da dívida

pública86 (art. 182, §4°, III, CF 88) jamais foi aplicada em nenhum município

brasileiro. Anotado pela bibliografia especializada em Direito Urbanístico (Ver Saule

Junior, 2004; Fernandes, 2006) como o principal instrumento jurídico contra a

retenção especulativa da propriedade urbana, a aplicação deste instrumento

confiscaria para fins de reforma urbana a propriedade imobiliária cujo uso não

cumpre a “função social” definida nas leis urbanísticas (planos diretores e leis de uso

e ocupação do solo), indenizada por meio de títulos da dívida pública resgatáveis em

parcelas anuais. Enquanto isso, instrumentos urbanísticos chamados de

“recuperação de mais-valor fundiário” (Jaramillo González, 2009), a exemplo dos

estoques de outorga onerosa de potencial construtivo e das Operações Urbanas

Consorciadas, multiplicaram-se nos Planos Diretores e leis urbanísticas nas cidades

brasileiras desde a criação do Estatuto da Cidade, sem, contudo, virem

                                                                                                               86 A Constituição Federal de 1988 no artigo 182, regulamentada neste ponto pelo Estatuto da Cidade, previu um procedimento necessariamente sucessivo para estes instrumentos: os proprietários primeiro precisam ser notificados a respeito da obrigatoriedade de dar destinação ao imóvel; com o decurso do prazo, em caso de descumprimento, o imóvel fica sujeito à progressividade no tempo da alíquota de IPTU; após cinco anos de cobranças com alíquotas progressivas (dar o máximo que pode aumentar), o município poderá desapropriar o imóvel mediante emissão de títulos públicos autorizada pelo Senado Federal. O máximo a que se chegou em alguns poucos municípios como Santo André foi notificar proprietários a respeito da incidência de progressividade no tempo para a cobrança de IPTU. Após a aprovação do Plano Diretor em 2014, a Prefeitura do Município de São Paulo iniciou a primeira fase das notificações aos imóveis delimitados com o instrumento da utilização, edificação e parcelamento compulsório.

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acompanhados de uma equidade distributiva na socialização do mais-valor

recuperado pelas instituições municipais do Estado.

Os instrumentos criados e regulamentados pelo Estatuto da Cidade são, portanto,

necessariamente vinculados à legislação municipal de planejamento urbano, que

condiciona a sua aplicabilidade à delimitação territorial aprovada em planos diretores

municipais e em leis e planos específicos. A temporalidade do processo jurídico e

político de aprovação dessas leis e a temporalidade da própria prática do

planejamento urbano nas instituições do Estado torna estas delimitações territoriais

(zonas, macrozonas, perímetros dos instrumentos, etc.) constatações do passado e

ao mesmo tempo postulações sobre o uso e a ocupação futuras desses imóveis na

cidade. Esses instrumentos jurídico-urbanísticos criados e regulamentados a partir

do Estatuto da Cidade dependem de uma definição da função social (e

socioambiental) dos imóveis urbanos. Esta função social se apresenta na forma

jurídica de limitações administrativas do direito de construir e aprovar os usos

urbanos futuros da propriedade (o seu valor de uso) que não interferem diretamente

na liberdade dos termos de troca dos proprietários fundiários no presente (o seu

valor de troca). Deste modo, esta regulação, ainda que considerada inovadora

nacional e internacionalmente, produziu efeitos (isto é, se tornou “verdadeira na

prática”) apenas na limitação dos valores de uso das propriedades urbanas, sem

contudo versar ou limitar diretamente os termos e os valores de troca dos imóveis.

Nesta perspectiva, pode-se dizer que a especulação imobiliária não é um desvio da

cidade capitalista, um fenômeno que ocorre por falta de legislação urbanística

adequada, de planejamento urbano ou de investimentos no desenvolvimento

urbano, mas a expressão de como o capital, e a terra e os imóveis urbanos tratados

como capital (a renda capitalizada da terra revestida da forma jurídica), são

especulativos na sua forma e conteúdo.

Com isso pode-se também desmistificar as visões, muito presentes nos movimentos

de reforma urbana no Brasil das últimas décadas (sobretudo pós Constituição de

1988), de que se poderia conter ou barrar a especulação imobiliária mediante a

regulação do direito de construir por princípios e instrumentos jurídicos e

urbanísticos, ora regulando o seu valor de uso, ora interferindo no seu valor de troca,

deste modo tornando a cidade mais humana, mais igualitária e menos especulativa.

Isto não implica, contudo, desconsiderar ou considerar subsidiariamente as lutas

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sociais urbanas e as lutas políticas e institucionais diante das contradições desses

processos sociais de produção do espaço como modos de resistência e de

apropriação da cidade como um valor de uso para seus moradores e cidadãos, ao

contrário: este é justamente o terreno fértil para essas utopias, na medida em que

estas definições a respeito da função social e socioambiental nos planos municipais

e seus instrumentos são objeto de disputa entre as classes sociais a respeito da

definição das formas e conteúdos das rendas fundiárias urbanas, o que pode gerar

consequências na repartição do valor.

Observe-se este raciocínio aplicado à regulação urbanística das favelas em São

Paulo: embora sejam delimitadas no zoneamento especial do Plano Diretor como

ZEIS-1, os termos de troca da área ocupada e das moradias construídas não sofrem

qualquer interferência direta por parte desses instrumentos jurídicos de

planejamento urbano. Isto não significa que se possa constatar uma diminuição nos

preços dos imóveis assim delimitados, considerando que esta forma jurídica pode

replicar seus efeitos sobre as expectativas de rendas urbanas futuras dadas as

limitações do direito de construir. Ainda assim, trata-se de uma regulação urbanística

que impõe limitações administrativas e prescreve possibilidades ao uso futuro da

propriedade imobiliária (especificando os usos permitidos pela forma jurídico-

urbanística nas aprovações e execuções de projetos imobiliários), sem contudo

proteger e garantir a segurança jurídica da posse informalmente exercida no lugar,

embora a perspectiva de regularização fundiária futura também possa produzir

efeitos qualitativos nas relações de posse e quantitativos nos seus termos de troca.

Esta proteção dos direitos de posse pelo Estado depende de estas favelas serem ou

não incluídas na agenda de políticas públicas de urbanização e de regularização

fundiária de interesse social, cuja consequência seria legitimar a posse existente e

reconhecer o direito de propriedade da terra urbana aos ocupantes.

No entanto, as favelas classificadas sob risco de incêndio em São Paulo, aquelas

incluídas no Programa Municipal de Prevenção contra Incêndios (PREVIN), embora

sejam na sua totalidade delimitadas como ZEIS no Plano Diretor do Município, não

estão incluídas em quaisquer políticas e programas de regularização fundiária de

interesse social e/ou de urbanização de favelas, pelo contrário. Embora a sua

presença no espaço urbano seja reconhecida pela legislação urbanística do Estado

como ZEIS-1, mantém-se expostas ao imperativo do valor de troca da propriedade

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imobiliária. Com isso, a população que mora nessas favelas permanece exposta a

ameaças de remoção e à incerteza sobre a permanência do uso e consolidação da

ocupação e de suas construções.

Nestes casos, não se trata de um risco geológico da terra, mas um risco associado

às condições urbanísticas, construtivas e ambientais das edificações, que pode se

agravar ou se intensificar diante de um contexto de extremos climáticos, como é o

caso de períodos de secas, estiagens, poucas chuvas e baixa umidade relativa do

ar. Mas assim como nas áreas classificadas e mapeadas como áreas de risco de

enchentes, inundações, solapamentos, deslizamentos, etc., o reconhecimento do

direito à moradia existe apenas na medida em que este direito possa e deva ser

exercido preferencialmente em outro local, que não aquele já ocupado. Embora se

trate de riscos distintos, ambos são justificativas que servem a procedimentos

políticos e jurídicos de exceção, que impedem ou restringem a efetivação do direito

à cidade e do direito à moradia no local ocupado por meio dos instrumentos de

regularização fundiária urbana.

A realidade destas imaginações de um futuro que não legitima os direitos da posse

no local de moradia (a propriedade informal da casa, sem registro imobiliário) pelos

procedimentos institucionais da regularização fundiária e da urbanização de favelas,

expõe, mantém expostos ou intensifica a exposição destes lugares e seus

moradores a um conflito permanente em torno da apropriação real da terra e das

moradias autoconstruídas, re-compradas ou alugadas.

Esta exposição continuada ao risco, antes de ser resolvida por meio de políticas

territoriais e habitacionais de consolidação do assentamento como a regularização

fundiária e edilícia, a urbanização, o mutirão, a substituição de materiais construtivos

– ou mesmo intervenções de segurança contra incêndio como é o caso de obras de

compartimentação, de afastamento e de abertura de rotas de fuga – passa a ser

abordada e gerenciada por instituições municipais por meio de ações que Foucault

chama de “recursos para o bom adestramento”: a “vigilância hierárquica”, a “sanção

normalizadora” e o “exame” (Foulcault, 1997: 143). A primeira ação do programa,

uma vez elegidos os locais de atuação, é um cadastramento social da população

dessas favelas. Deste universo de moradores cadastrados são escolhidos, como em

um exame disciplinar, os indivíduos nomeados para compor a Brigada de Incêndio e

para exercerem a função remunerada de zeladores comunitários.

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O PREVIN reúne um universo de favelas sem projeto e condenadas à remoção,

aquelas que estão fora dos projetos, agendas e planos de futuro da cidade, quando

não se tornam verdadeiros entraves às forças produtivas do setor imobiliário.

Representam, desta maneira, uma exceção à regra geral de legitimar a posse e

regularizar a favela no lugar ocupado, conforme previsto na legislação urbanística

desde pelo menos a Constituição Federal de 1988.

Estas são as favelas que não cabem nas políticas territoriais e fundiárias, embora

seus moradores entrem subsidiariamente nas políticas habitacionais como demanda

especial e prioritária para novos projetos imobiliários classificados como de

“interesse social”, a serem construídos em outras terras, em outros lugares. O

projeto futuro para elas é a remoção. Na melhor das hipóteses, mediante alguma

forma negociada de auxílio habitacional do Estado. Na pior das hipóteses, como

aponta Mike Davis, por meio da “demolição a quente”, nomenclatura dada aos atos

incendiários em favelas de Manila, nas Filipinas:

Erhard Berner acrescenta que o método favorito da chamada ‘demolição a quente’, como dizem os proprietários filipinos, é jogar um ‘gato ou rato vivo encharcado de querosene em chamas – os cachorros morrem muito depressa – num assentamento incômodo [...] um incêndio assim iniciado é difícil de combater, já que o pobre animal pode pôr fogo em muitos barracos antes de morrer. (Davis, 2006: pg. 133)

Desta maneira, o histórico problema habitacional e fundiário que representa a favela

é seletivamente abordado pelas instituições do Estado não na perspectiva do direito

à moradia e do direito à cidade (ainda que os significados desses direitos estejam

igualmente em disputa), mas enquanto uma questão de (in)segurança e

(in)sustentabilidade a ser gerenciada e disciplinada mediante práticas institucionais

de prevenção e preparação para o risco de incêndio e de projetos e programas

habitacionais de reassentamento.

No entanto, os futuros alternativos para essas favelas passam também pela

resiliência87 em enfrentar as possíveis consequências desastrosas dos incêndios,

marcadamente pela resistência dos moradores desses lugares às pressões e às

ameaças contínuas do fogo e da remoção do local de moradia. De acordo com

                                                                                                               87 A “resiliência urbana” é um dos objetivos da Nova Agenda Urbana da ONU-Habitat, aprovada em Outubro de 2016, em Quito, na Conferencia das Nações Unidas para a Moradia e o Desenvolvimento Urbano Sustentável (ONU-Habitat, 2016).

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dados de Bruno (2012), a maioria das favelas sob risco de incêndio permanece e

foram reconstruídas pelos próprios moradores atingidos.

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4. O FOGO COMO TECNOLOGIA POLÍTICA: GUERRA,

CASTIGO E RECOMPENSA

No Capítulo 2, o exercício do poder de monopólio da propriedade no território foi

considerado na medida em que se apresenta enquanto uma mediação entre as

determinações mais gerais da apropriação de mais-valor na forma de rendas

urbanas e seus efeitos na disponibilidade real dos espaços ocupados mediante a

posse. No Capítulo 3, passou-se a abordar a dimensão jurídica desta mediação,

especificamente a regulação dos direitos de posse e de propriedade pelo Estado a

partir da criação da propriedade imobiliária capitalista. No presente capítulo, o fogo

dos incêndios em favelas é apresentado enquanto uma mediação propriamente

política: uma tecnologia política – no sentido atribuído por Michel Foucault (2007),

em Vigiar e Punir, a práticas racionalizadas de dominação dos indivíduos, não nos

termos jurídicos, mas por meio de táticas, estratégias e regularidades de exercício

do poder – de destituição da propriedade do trabalhador, ou de despossessão

(Harvey, 2005).

Para este objetivo, são inicialmente apresentados aspectos da crítica de Marx,

destacados por John Bellamy Foster (2005), ao prometeismo mecanicista de

Proudhon, que, ao não considerar a especificidade das rendas fundiárias urbanas na

apropriação do mais-valor no modo de produção capitalista, defende a

generalização do aluguel como forma de promover equidade na vinculação dos

indivíduos à terra. Neste sentido, o incêndio ocorrido em Roma no ano de 64 d.c. foi

aqui apontado como um marco histórico das despossessões baseadas no fogo: a

destruição de um conjunto de construções destinadas a aluguel em áreas urbanas

bem localizadas destituiu uma parcela da população de suas posses para fins de

moradia, considerando que já estava presente em Roma naquele período a

separação formal entre propriedade e posse. Grandes incêndios urbanos ocorridos

em outras cidades como Londres (1666) e Chicago (1871) também serviram à

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destituição da propriedade tratada como mera posse. Nas despossessões ocorridas

na Paris de Haussmann, como destaca Harvey (2006a), embora não se identifique o

fogo como forma de destituição da posse, é possível identificar uma nova coalização

de interesses entre Estado, capital financeiro e proprietários de terras urbanas nas

relações espaciais de exercício do poder territorial na cidade.

No caso particular da história da propriedade e da posse no território brasileiro,

desde o princípio da colonização o fogo também serviu a este propósito de separar

os despossuídos de suas terras, de modo a ou exterminá-los pela guerra ou

escravizá-los para a produção de valor. Este é o “segredo” da economia política das

metrópoles, que, como destaca Marx (2013: 844) ao final do Livro I de O Capital,

revela a sua anatomia na acumulação primitiva nas colônias: “o aniquilamento da

propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do

trabalhador”.

Enquanto tecnologia política, o fogo como modo de despossessão de moradores de

favelas em São Paulo é identificado como uma prática que o geógrafo Stephan

Graham (2016) denominou urbicídio, uma imbricação de táticas e estratégias de

exercício do poder territorial da propriedade imobiliária que combina a violência

direta dos suplícios e a violência simbólica e sistêmica das disciplinas (Zizek, 2013;

Foucault, 2007) na expropriação e na destituição da posse em cidades do Sul

Global. A remoção, ainda quando não forçada diretamente pela violência do fogo, é

abordada enquanto uma sanção normalizadora (Foucault, 2007) aplicada no âmbito

de uma securitização (Graham, 2016) dos espaços urbanos militarizados.

4.1. O FOGO MITOLÓGICO: O SUPLÍCIO DE PROMETEU

O fogo é desde muito na história utilizado na preparação de alimentos, na geração

de energia, no aquecimento e calefação, etc. Outra utilidade histórica do fogo é

servir como arma para a guerra contra o inimigo, o que já se descobriu muito antes

das armas de fogo propriamente ditas. Uma arma que devasta, desmata e destrói,

sejam corpos, animais, florestas ou construções, o fogo “limpa o terreno” assim

como tratores, picaretas, motosserras e operários o fariam, mas de modo mais

silencioso, mais rápido, mais anônimo, mais barato e mais violento.

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O fogo também foi por muito tempo utilizado nos suplícios, em que se condenava à

fogueira corpos a serem queimados vivos, na maior parte das vezes pelos crimes

considerados mais graves. Em Vigiar e Punir, ao tratar do nascimento da prisão,

Michel Foucault destaca que o suplício pelo fogo tinha ainda o aspecto de

“ostentação da pena de morte” (Foucault, 2007), executada em espaço público

assim como a forca e a roda. No Brasil, a pena de morte na fogueira era prevista

pelas Ordenações do Reino de Portugal e chegou a ser praticada até ser extinta

com a instauração do Império. A pena que correspondia à fogueira, no entanto, não

correspondia aos interesses imediatos dos senhores proprietários na Colônia, que

reivindicavam aos donatários das capitanias um sistema próprio de justiça e de

aplicação de punições que não destruísse seu capital investido na compra dos

títulos de propriedade dos escravos. Desta maneira passaram a adotar outras

técnicas de suplício que não eliminassem a utilidade dos corpos para os trabalhos

na produção de valor.

Enquanto um dos elementos fundamentais da física (ar, água, terra e fogo), o fogo

ocupa um lugar de destaque na filosofia antiga, dos pré-socráticos a Aristóteles. Em

Heráclito, por exemplo, o fogo era a substância de origem, o primeiro elemento na

composição da matéria física (physis). Já no século XX, a epistemologia de Gastón

Bachelard vai apresentar os complexos subjetivos que moldam a maneira como os

indivíduos e agentes sociais observam, interpretam, representam e refletem

subjetivamente sobre os elementos da natureza como é o caso do fogo, assim como

ocorre com a água, o ar e a terra88.

Um desses complexos subjetivos, no caso do fogo, é descrito por Bachelard (1994)

como “complexo de Prometeu”89, em alusão ao personagem da mitologia grega

retratado em diferentes obras sobretudo por autores como Hesíodo e Ésquilo, além

de outros como Platão, Ovídio, Sapo e Escopo. Nessas variadas versões, Prometeu

rouba o fogo dos deuses e entrega aos seres humanos, sendo por este motivo

retratado de modo geral como um mito criador da espécie humana. Por este feito o

                                                                                                               88 Livros de Bachelard sobre o ar (2009), sobre a terra (1991), sobre a água (2009) e sobre o fogo (1989; 1994). 89 Em “A psicanálise do fogo” de Bachelard (1994), o complexo de Prometeu é descrito como o “complexo de Édipo da vida intelectual”.

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Titã é castigado por Zeus, que o mantém acorrentado no alto de uma colina

enquanto uma ave de rapina devora seu fígado em constante regeneração. A

tragédia conta uma história de punição, que ao depender da versão atribui-se a

medida de justiça do castigo ou a Zeus, no caso de Hesíodo, ou a Prometeu, no

caso de Ésquilo.

O mito de Prometeu foi retratado pela primeira vez nos poemas de Hesíodo, tanto na

Teogonia como nos Trabalhos e Dias (Sottomayor, 2001). Nestas versões

Prometeu, filho de Oceânide Clímene, é punido por exceder os “limites da justa

medida” (Idem), pela sua insolência em ousar se igualar aos poderes divinos, um

castigo aplicado por Zeus, identificado com a perfecibilidade e com a Justiça. Na

tragédia de Ésquilo, por outro lado, Prometeu é retratado como filho de Témis, filha

de Gaia (Terra) e deusa da Justiça, diferente dos poemas de Hesíodo. Um

simbolismo que não parece acidental, uma vez que associa o herói mitológico ao

lado da Justiça e da Terra e retrata seu castigo como uma severa e desproporcional

injustiça dos deuses contra Prometeu e os seres humanos (Sottomayor, 2001).

Marx e Engels foram, ao longo das últimas décadas, apontados como pensadores

que adotaram o mito do homem prometeico na sua visão da relação dos seres

humanos com a natureza. Em alusão sobretudo à passagem do Manifesto

Comunista em que os fundadores do socialismo científico fazem referência à

“subjugação da natureza” pelas forças produtivas da burguesia no contexto de

implantação de relações sociais capitalistas de produção, Marx e Engels foram de

modo controverso associados a um certo “prometeísmo mecanicista” (Foster, 2005)

que estava em voga no pensamento socialista daquela época.

O mito de Prometeu aparece nas formulações dos socialistas do século XIX a partir

dos textos de economia política de Pierre-Joseph Proudhon, destacadamente em “A

filosofia da miséria”, de 1846, também conhecido pelo seu subtítulo “Sistema das

contradições econômicas”. Segundo Foster, embora o prometeísmo esteja presente

em diferentes correntes do pensamento socialista e mesmo do marxismo, na obra

marxiana está limitado a um embate específico de Marx com essas ideias

econômicas de Proudhon na segunda metade da década de 1840.

Para Proudhon, o personagem mitológico Prometeu simbolizava a atividade humana

e a posição dos seres humanos no controle da natureza, uma representação da

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Providência, um “Deus e não-Deus, ou seja, humanidade alienada, burguês e

proletariado” (Foster, 2005: 183). Prometeu nesse sentido era a personificação

humanóide da sociedade, descrito em uma “linguagem bíblica” ao mesmo tempo

“mística e alegórica” (Foster, Idem) como um mito de origem da criação humana: no

primeiro dia Prometeu emerge da natureza e começa a trabalhar; no segundo,

descobre a divisão do trabalho, no terceiro, inventa o maquinário e descobre novos

usos e novas forças da natureza (Idem).

A meta da sociedade, entendida nesses termos prometéicos, é criar variedade e valor econômico máximos para a sociedade realizar isto proporcionamente para cada indivíduo segundo a distribuição justa das recompensas econômicas conforme o tempo de trabalho (Foster, 2005: 183).

Este prometeísmo mecanicista de Proudhon apontava para uma “lei da proporção”

na socialização que conduziria a uma condição mais harmoniosa na divisão do

trabalho. A tendência a uma harmonia na socialização das formas econômicas

existentes se explicava pelo progresso no controle das forças da natureza

proporcionado pelo maquinário. Em O Capital, ao tratar das fábricas da grande

indústria, Marx (2013: 495) vai destacar como a maquinaria moderna, ao contrário

do que apregoava Proudhon, esvazia os poderes dos trabalhadores sobre o

processo produtivo e fortalece a subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto de

propriedade dos capitalistas mediante uma hierarquia militar e uma “disciplina de

quartel”.

Esta tendência seria encontrada também na análise de Proudhon a respeito do

aluguel, que seria na sua visão um instrumento de justiça distributiva nessa fase do

desenvolvimento da sociedade (o socialismo) uma vez que vincularia os seres

humanos com a natureza sem a mediação da propriedade privada. Segundo Foster,

esta noção estava baseada “numa teoria confusa da teoria do aluguel de Ricardo”,

uma vez que, na esteira deste economista político, Proudhon enxergava a justiça

social como a distribuição proporcional do tempo de trabalho. Mas ao invés de

explicar este princípio de modo científico como o fez Ricardo, recorreu à magia e ao

misticismo (na figura mitológica de Prometeu) para explicar as relações de produção

e distribuição no capitalismo (Foster, 2005).

Para Marx, a distribuição proporcional do tempo de trabalho não elimina a

determinação do valor pelo tempo de trabalho e, portanto, mantém intacta a lei do

valor. As relações econômicas da sociedade seguem sob o princípio de “a cada um

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segundo o seu trabalho”, enquanto deveriam ser substituídas pelo princípio “de cada

um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade” (Marx,

Crítica do Programa de Gotha, apud Foster 2005: 188). “Daí, o que era necessário

era uma ruptura decisiva com a lei do valor do capitalismo, não a sua

generalização”, completa Foster (2005: 188).

Embora nos primeiros anos da juventude, ainda em 1842, Marx não tenha poupado

elogios à obra mais conhecida de Proudhon, O que é a propriedade?, de 1840, já

em 1847 escreve A miséria da filosofia em clara oposição às suas formulações

posteriores sobre economia política. Proudhon passaria a “exemplificar o que ele

[Marx] e Engels chamariam no Manifesto Comunista de ‘socialismo burguês’,

definido por eles como uma tentativa de construir uma sociedade burguesa sem as

suas misérias e sem o proletariado” (Foster, 2005: pg. 181). O aluguel, ao invés de

vincular de maneira mais íntima o homem à natureza, como queria enxergar

Proudhon, nada mais fazia do que vincular a exploração da terra à competição

(Foster, 2005: 188) num contexto em que a propriedade privada estaria

reconfigurada tão-somente na sua forma jurídica, mas que não deixaria de espelhar

a lei do valor presente nas relações econômicas que definem o seu conteúdo. O

aluguel para Marx, na esteira de Ricardo, representa o pagamento mensal da renda

da terra, enquanto na compra e venda esta renda é paga em uma única parcela

como antecipação da renda total de cada imóvel (Dos Santos, 1983).

Para Marx, “o Prometeu que deveria ser admirado era a figura mítica revolucionária

do ‘Prometeu acorrentado’, de Ésquilo, que desafiou os deuses do Olimpo e trouxe o

fogo (a luz, a iluminação) para os seres humanos” (Foster, 2005: pg. 191). Foster

sustenta que Marx associava Prometeu não com o desenvolvimento das forças

produtivas da indústria e da maquinaria moderna, mas com o “aparecimento da

ciência e do materialismo, e portanto com a figura iluminista da Antiguidade,

Epicuro” (pg. 192).

Em um trecho dos Grundrisse, ao tratar da dialética entre trabalho morto e trabalho

vivo, Marx vai dizer que “o trabalho é o fogo vivo, conformador; a transitoriedade das

coisas, sua temporalidade, como sua conformação pelo tempo vivo”. Esta metáfora

de Marx do trabalho enquanto “fogo vivo” pode ser compreendida pela noção de que

o trabalho para ele não é meramente o trabalho material conduzido por corpos,

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instrumentos e máquinas, mas que o trabalho (seja ele material ou imaterial) é uma

operação de abstração, pressupõe não apenas a força humana corporal mas a

capacidade humana de abstrair no pensamento a concatenação entre meios e fins

numa operação teleológica com o objetivo de realizar o produto deste trabalho. A

leitura de Lukács em Para uma ontologia do ser social II vai destacar como esta

teleologia marxiana, diferente da providência prometeico-mecanicista de Proudhon,

está restrita ao processo de trabalho e não pode ser estendida à teoria da história

(Lukács, 2013).

4.2. O FOGO NA HISTÓRIA DAS CIDADES

Na história das cidades, um dos relatos mais antigos de incêndios urbanos remonta

à Roma antiga, em especial o incêndio do ano de 64 d.c., no período do imperador

Nero. Antes ainda deste grande incêndio, eram recorrentes os incêndios domésticos

nas insulae ou insulas, construções verticalizadas destinadas a aluguel, feitas de

madeira e sem abastecimento de água. Nas insulas morava em geral a população

plebéia, os aquedutos eram somente para os banhos e prédios públicos e para as

domus, em geral casarões dos patrícios ou de quem tinha o poder de dominus, que

se refere ao poder patriarcal, ao domínio do chefe de família (Benévolo, 2007). A

propriedade do solo era “cofre-forte e fonte de todo investimento”; bem mais ampla

do que a agricultura, era ao mesmo tempo reservatório de riqueza, fonte de

subsistência e de trocas. Por este motivo, os juristas romanos passaram a tratar o

direito de propriedade da terra de modo distinto da “simples posse” (Pessoa, 1984:

194). Ainda assim, os direitos dos proprietários eram “menos um direito dos

indivíduos do que uma obrigação social”, o que limitava as possibilidades de

transmissão da propriedade entre os cidadãos (Idem).

Embora a agricultura empregasse muito trabalho na lavoura, a segunda grande

riqueza advinda do solo eram as habitações urbanas destinadas a aluguel (Veyne,

2010). Neste período foi criado pela primeira vez a instituição conhecida hoje como

corpo de bombeiros, um destacamento do exército e das instituições militares

especializada em salvamento e combate a incêndios.

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IMAGEM 10: Roma – extensão do grande incêndio de 64 d.c. Fonte: preteristarchive.com

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IMAGEM 11: Roma – Gravura do grande incêndio de 64 d.c. Fonte: pinterest.com

Londres, que durante séculos foi uma importante cidade romana comercial, teve um

grande incêndio no ano de 1666, que devastou a maior parte da área interna aos

muros da cidade90, um ano após a “grande praga” que assolara a cidade. Os muros

foram construídos por volta de 200 d.c. pelos romanos, como defesa contra

“invasões bárbaras” ao porto comercial de londinium, e hoje corresponde à área do

centro comercial e financeiro da cidade, The City of London.

                                                                                                               90 “Uma das razões porque o incêndio de Londres causou tanto dano em 1666 foi que ele eclodiu nas primeiras horas de uma manhã de domingo, quando a maioria dos principais comerciantes estava fora para o fim de semana” (Keith, 1988: 295-296).

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IMAGEM 12: Gravura do grande incêndio de Londres (1666) Fonte: pinterest.com

IMAGEM 13: Extensão do grande incêndio de Londres (1666) Fonte: commons.wikimedia.org

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Witold Rybczynski (1996: 59) destacou que o projeto urbano de reconstrução “teria

transformado Londres numa versão da Roma do século XVI, redesenhada por Sisto

V entre 1585 e 1590”. “Quem, como William Penn, construísse uma cidade depois

de 1666 – ano do terrível Grande Incêndio de Londres – não poderia ignorar as

vantagens de construir prédios bem separados”, prossegue (Idem: 69).

Na Paris de meados do século XIX, o “método Haussmann”, como destacou Engels,

que consistia em varrer a cidade com os tratores para não varrê-la com os fuzis

(Rodrigues, 2003: 285), foi colocado em operação pela primeira vez no período do

Segundo Império. Depois das ofensivas comandadas pelo General Cavaignac, o fim

da insurreição e a ascensão ao poder do “pária” bonapartista, a cidade foi entregue

ao Barão de Haussmann pelas mãos do novo Imperador. As transformações

urbanas conduzidas neste ínterim são vistas por autores como Harvey (2006a: 134)

como um novo padrão de:

relações espaciais (tanto internas como externas), que se criaram a partir de uma coalização entre o Estado, o capital financeiro e os interesses dos proprietários de terra, e que cada um deles teve que sofrer um doloroso ajuste.

O Estado não aparece aqui como mera faceta da distribuição, mas em todos os

aspectos de sua atuação, como a autoridade regulatória e a legitimidade da

violência. Harvey vai notar que as primeiras medidas de Haussmann foram

“marginalizar o conselho municipal” e ignorar a “comissão de planejamento” que

tanto limitavam a atuação de seu predecessor. O final de seu ciclo, 18 anos depois,

desembocou justamente na Comuna de Paris, analisada por Marx (2008) em A

guerra civil na França, um elogio à derrota e ao mesmo tempo uma experiência

única do que se poderia chamar de “ditadura do proletariado”. A mudança de escala

operada a partir de Haussmann amplia-se no século XX, torna-se metropolitana, e

daí em diante seus limites e barreiras são novamente ultrapassados até se propagar

para uma rede de cidades integradas no mercado mundial.

Na antiga colônia da América do Norte, contudo, ainda ao longo do século XIX

diversas cidades passaram por episódios em que o fogo limpou o terreno de áreas

urbanas centrais nos EUA, como foi o caso em Nova Orleans (1801), Detroit (1805),

Nova York (1835), Pittsburgh (1845), San Francisco (1851), Saint Louis (1851),

Washington DC (1851), Portland (1866), Chicago (1871), Boston (1872), Seattle

(1889). O incêndio de Chicago, que acontece no mesmo ano da comuna de Paris

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(1871), foi o de maior proporção nos EUA ao longo do século XIX. Foram destruídos

8 milhões de metros quadrados, 18 mil prédios e noventa mil desabrigados, quase

1/3 da cidade. Esta área central da cidade era ocupada por muitos prédios e casas

em madeira, com fogões a lenha e aquecimento a carvão, sem fornecimento de

água e sem medidas de proteção contra incêndios.

Na segunda metade do século XIX Chicago foi a cidade com maior crescimento

demográfico dos EUA, período posterior à construção das estradas de ferro e

marcado por uma expansão industrial e comercial. É em Chicago, argumenta

Rybczynski (1996), que começa o urbanismo e o planejamento urbano nos EUA: a

forma arquitetônica definitiva dos arranha-céus, a concretização da ideia de usar o

centro para o comércio, o desenho urbano como tema para discussão pública e

privada, etc.

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IMAGEM 14: Mapa com a extensão do Grande Incêndio de Chicago (1871) Fonte: pinterest.com

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IMAGEM 15: Fotografia de Chicago alguns dias após o Grande Incêndio (1871) Fonte: pinterest.com

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IMAGEM 16: Cartaz de chamada para reunião no segundo dos três dias (8, 9 e 10 de outubro) do Grande Incêndio (1871) Fonte: pinterest.com

O desastre foi considerado uma “grande chance” para a construção da “nova

Chicago”. Foi uma “carta branca” aos corretores de terras e construtores para

empregar novas tecnologias construtivas diante da catástrofe do incêndio, como a

generalização dos elevadores e os prédios com estrutura em aço das construções

de arranha-céus. A construção em estrutura de aço era mais cara, porém permitia

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uma estrutura mais sólida para a verticalização e um maior potencial de elevação

dos preços dos imóveis e suas rendas. Também foi proibida a construção em

madeira em determinadas zonas da cidade como medida de segurança e prevenção

a incêndios. Com isso, além do crescimento vertical na área central, houve

igualmente um crescimento horizontal da cidade, impulsionado pelos bondes

elétricos que permitiam o deslocamento em um tempo reduzido.

O aumento do preço dos imóveis e dos aluguéis na área reconstruída e seus

arredores, a proibição de construção mais barata (em madeira e outros materiais

combustíveis), e o surgimento de novas tecnologias de transporte que permitiam

reduzir o tempo dos deslocamentos (vertical, no caso do elevador, e horizontal, no

caso dos bondes) promoveram uma expansão dos limites do perímetro da área

urbana. Novos bairros residenciais eram mais afastados, a terra era mais barata e

as regras de construção eram mais flexíveis, o que já seria um prenúncio das

comunidades suburbanas que se espalharam pelas cidades no século XX nos EUA.

Assim nascia, diz Rybczynski (1996), “a moderna cidade americana”: o “centro era

um lugar do comércio, de lojas, de atividades culturais, hotéis, escritórios, mas não

era um lugar da moradia”.

4.3. O FOGO E A GUERRA NA COLONIZAÇÃO DE SÃO PAULO

No caso do Brasil, mesmo com metrópoles e redes de infraestrutura de transporte

altamente dependentes da queima de combustíveis fósseis, atualmente as

queimadas e incêndios florestais representam a maior parte das emissões dos

chamados “gases de efeito estufa” do pais na atmosfera e ainda são um modo de

avanço sistemático das fronteiras do agronegócio sobre áreas ambientalmente

protegidas, terras indígenas e outras ocupadas por populações tradicionais. Nos

casos de demarcações de terras indígenas, as queimadas e incêndios florestais são

modos recorrentes ainda hoje para desconfigurar e destruir as condições que

justificam e legitimam a posse – sobretudo da floresta, dos rios, etc., da considerada

“natureza natural”, ou “primeira natureza” (Braun, 2006).

Nestas frentes de expansão, sobretudo na Amazônia Legal, o regime da “moderna”

propriedade fundiária instituído em 1850 ainda não está plenamente consolidado,

embora tenha sido implementado de modo acelerado nas últimas décadas, como se

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pode notar a partir das leis federais de regularização fundiária da Amazônia e outros

programas estaduais e municipais de legitimação da posse e conversão em

propriedade imobiliária91.

Embora as terras indígenas sejam parte do território brasileiro, e por isso são terras

de domínio do Estado (União Federal), não existe a propriedade imobiliária

formalmente constituída para configurar, mensurar e registrar o direito que assegura

os poderes sobre estas parcelas do espaço geográfico. Isto implica que, embora

estas terras sejam propriedade privada do Estado, assim como toda terra não

ocupada e não utilizada para a produção de mercadorias (em que o trabalho pode

ser organizado em relações capitalistas de produção ou não), ainda não cumprem

os requisitos da forma jurídica da terra enquanto forma do capital. Podem existir

rendas diferencias e de monopólio pagas pelos produtos comercializados (desde os

frutos da floresta até produtos agrícolas ou agroflorestais) que pressupõem o poder

de exercer atividades nestas terras (desde a mera coleta até outros trabalhos de

manejo, por exemplo) e com isso se apropriar de sua força produtiva. Ainda assim,

restam sem formalização os direitos que permitem que a propriedade destas terras

funcionem como capital nos circuitos da acumulação.

Em suas impressões sobre a história dos canaviais no Nordeste, Gilberto Freyre

observa que:

O canavial desvirtuou todo esse mato grosso mais cru: pela queimada. A fogo é que foram abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o civilizador [...] entrou aqui como um conquistador em terra inimiga: matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra (Freyre, 1989).

É lugar comum nos relatos sobre a colonização europeia episódios em que

portugueses estiveram em posição de coagir e submeter os povos ameríndios em

razão do uso do fogo e de armas de fogo. No princípio da colonização portuguesa,

Diego Álvares Correia (1475-1557) na Bahia ficou conhecido pelos tupinambás

como Caramuru (“aquele que faz o fogo”) e João Ramalho (1492-1580) teve

trajetória análoga em São Paulo agenciando alianças com os tupiniquins e

promovendo o que se chamava “guerra justa” contra o “gentio” (Monteiro, 1994;

Cunha, 1992). Mais tarde o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (1672-1740),                                                                                                                91 Sobre a regularização fundiária urbana em cidades da Amazônia, ver Da Silva, 2017, a respeito da experiência de Macapá.

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conhecido como Anhanguera (diabo velho), teria se utilizado de um estratagema

para ameaçar os índios: fingindo se tratar de água, completava um frasco com

aguardente e ascendia uma chama; ameaçava usar o mesmo feitiço para incendiar

os rios e as florestas (Prezia, 2000).

O primeiro colonizador a se instalar nos Campos de Piratininga teria sido o viajante

português João Ramalho (Reinvielle), que fundou a primeira aldeia luso-ameríndia

no planalto paulista. Considerado nos relatos quinhentistas um “Caramuru da Serra

do Mar”, pela utilização do fogo como elemento mágico e simbólico de guerra, desde

as armas de fogo até as queimadas praticadas para abrir caminho na mata atlântica

às plantações monocultoras de cana-de-açúcar em Cananéia e São Vicente (Idem).

É a partir das vilas de Cananéia e de São Vicente, no litoral paulista, que partem os

primeiros caminhos e trajetórias da colonização portuguesa em direção ao planalto.

Isto se deve, segundo Caio Prado Júnior (1963), a uma convergência de fatores

convenientes aos colonizadores e ao aprendizado a respeito dos contornos

geográficos locais a partir do conhecimento dos povos indígenas. Partindo de São

Vicente se encontra o trecho de topografia mais adequada para o deslocamento por

terra entre o planalto e o litoral: distância entre o mar e a serra é de, no máximo, 15

quilômetros; de todos os pontos da Serra do Mar, é este o que oferece a maior

facilidade de acesso, em termos não apenas de distância mas também de

declividade ao longo da rota92. Enquanto em alguns trechos da serra existem séries

de abruptos com cumes que atingem altitudes em torno de 1500 a 2000 metros, a

passagem que liga a faixa costeira paulista ao interior é a de topografia menos

acidentada, onde a barreira forma uma seladura de aproximadamente 800 metros de

altitude. Ultrapassado este cume, o relevo segue plano em direção ao que hoje é

definido como município de Santo André, no ABC paulista, Região Metropolitana de

                                                                                                               92 A Serra do Mar constitui um importante contorno, constantemente destacado desde os relatos quinhentistas. Partindo da Bahia em direção às capitanias ao Sul do país, a Serra do Mar representa uma imensa barreira física que divide a faixa costeira (de terrenos baixos e localizados à altura do mar) da região de planalto, com altitudes que variam em torno de 700 a 1200 metros de altitude aproximadamente. Enquanto as cidades de Salvador, Rio de Janeiro, Santos e São Vicente localizam-se na faixa costeira, Brasília, São Paulo, Campinas e Belo Horizonte, por exemplo, encontram-se na região de planalto, a oeste da barreira física que representa a Serra do Mar. A atual capital federal Brasília está localizada no planalto a 1.172 metros; Belo Horizonte e São Paulo registram a mesma média de 760 metros de altitude, enquanto em Campinas a altitude é de aproximadamente 550 metros.

 

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São Paulo. Como ressalta Caio Prado Júnior (1963: 100), “tais são os motivos que

fazem desta passagem, já muito antes da vinda dos portugueses, um caminho

predileto dos índios. A colonização européia não fez mais do que aproveitá-lo”.

O primeiro donatário da capitania de São Vicente, Martim Afonso de Souza, que

desembarcou em 1531, inicialmente proibira os colonos portugueses de utilizar este

caminho indígena ao planalto, mas a proibição é revogada ainda em 1544 por sua

esposa, D. Ana Pimentel. Este trajeto ficou conhecido inicialmente como “Trilha dos

Tupiniquins” (Prezia, 2000) e mais tarde como Caminho do Mar. Este caminho é

apenas um primeiro trecho do “Caminho Peabiru”, uma rota nativa muito anterior à

invasão européia: este caminho indígena ligava a cidade de Cuzco, no Peru, à ilha

de São Vicente no litoral do Atlântico (e alternativamente a Cananéia pela estrada

que hoje liga São Miguel Arcanjo a Registro, no Vale do Ribeira): uma rota de

comunicação entre os povos incaicos e os tupi-guarani, passando pelas minas de

ouro de Potosi (Bolívia), atravessando o Rio Paraná pelos municípios de Salto de

Guairá (Paraguai) e Guairá (Estado do Paraná, Brasil), depois por Itu, Campinas,

São Paulo, Santo André e Cubatão (Estado de São Paulo, Brasil).

No planalto paulista havia não apenas uma condição climática mais favorável em

termos de temperatura: no planalto havia água abundante e vastos descampados

(Prado Junior, 1963). Por este motivo elementar, em torno ou na proximidade dos

rios se agrupavam e se instalavam, ainda que provisoriamente e não

necessariamente de modo sedentário, numerosas tribos e grupos indígenas. Ainda

por ocasião dos rios, estas imediações eram vastos descampados, conhecidos

como os “Campos de Piratininga”, uma imensa clareira na Mata Atlântica que,

devido às condições do solo, tinha a arborização prejudicada pelo depósito de

compostos deixados pelas águas dos rios. Este fator facilitou a ocupação humana

do espaço por tribos nativas e, posteriormente, para a construção de aldeamentos

cristãos (Idem).

Os rios e suas águas sempre tiveram um papel fundamental na vida dos povos

ameríndios, em especial da etnia tupi, também conhecida por alguns historiadores e

etnólogos como o “povo da água” (Prezia, 2000). A chamada “grande família

linguística tupi-guarani” teria se formado na Bacia do Rio Paraná (sobretudo na

confluência com o Rio Iguaçu) e se espalhado rumo ao Norte e ao Leste, pelos rios

Paranapanema, Paraná, Grande e São Francisco. Os rios não apenas forneciam

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alimentos para os corpos (para as necessidades imediatas de fome e sede) e eram

utilizados como um meio de transporte e mobilidade fluvial, mas se integravam de

modo particular à simbologia nativa.

No caso dos Campos de Piratininga, o contingente de nativos instalados e que por lá

circulavam, além de servirem de aliados em disputas e conflitos belicosos entre

facções e tribos rivais, uma vez escravizados (tornados cativos por meio da violência

e da guerra) eram comercializados, serviam como termos de troca e como força de

trabalho necessária às atividades da colonização (Monteiro, 1994) – a construção

das vilas, a agricultura, a pesca, o preparo da alimentação e demais serviços.

Curiosos relatos a respeito do viajante português João Ramalho, sobretudo a partir

da perspectiva dos jesuítas, dão conta de que ele teria naufragado na costa da

Capitania de São Vicente em aproximadamente 1513, aos 20 anos de idade, sendo

recebido inicialmente pelos Guaianã (de língua não-tupi). Ao longo do tempo o

colono Ramalho teria se relacionado com diferentes tribos, adotado práticas nativas

e estabelecido vínculos e alianças de parentesco, em especial com os tupiniquim

que viviam nos Campos de Piratininga, sendo aceito de um modo peculiar entre

estes nativos, em particular pelo cacique Tibiriçá e pelos “principais” das tribos a ele

aliadas e instaladas no planalto paulista. Em 1552, a aldeia de Ramalho é

reconhecida por Martim Afonso, que declara fundado o aldeamento cristão da

“Borda-do-Campo” (onde hoje é Santo André) no exato caminho de entrada aos

campos de Piratininga para quem vem do litoral ao planalto. Neste mesmo ano, o

jesuíta Manoel da Nóbrega celebra a cerimônia de casamento, sob o rito cristão, de

João Ramalho com a índia tupiniquim Bartira, filha do cacique Tibiriçá, laço que teria

resultado descendentes resultado da aliança de parentesco entre os europeus e os

indígenas chamados pelos jesuítas de “mamelucos”. O traço matrilinear da cultura

tupi reconhecia e aceitava os homens que criavam laços de parentesco com as

mulheres da tribo; esta prática fez com que o colono Ramalho se tornasse membro

da tribo dos tupiniquins e, de acordo com esses relatos quinhentistas, conquistasse

não apenas o respeito dos nativos, em especial entre os guerreiros, mas também

selasse uma aliança política com desdobramentos futuros para índios e

portugueses. De acordo com os relatos do viajante e cronista alemão Ulrich

Schmidel, em uma viagem iniciada em 1552 a partir de Assunção, as vilas de Borda-

do-Campo e de São Vicente agrupavam em torno de 800 portugueses, além dos

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índios, que tinham João Ramalho “em grande consideração” (Prezia, 2000). Em

1553, o aldeamento do planalto torna-se a vila de Santo André da Borda do Campo,

instituída pelo primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza. O período

posterior fica marcado pela Confederação dos Tamoios, guerra travada entre tribos

tupinambás (com posterior apoio dos franceses) e facções tupiniquins (desde o

início em aliança com os portugueses, em especial os grupos indígenas alinhados

politicamente ao cacique Tibiriçá) no período de 1554 a 1557.

Alguns anos mais tarde, após a vitória desta aliança entre tupiniquins e portugueses,

em 1560 (já sob o jugo de Mem de Sá, terceiro governador-geral) a vila jesuítica de

Santo André é transferida a São Paulo, onde se instala o colégio jesuíta hoje

conhecido como Pátio do Colégio, no centro da capital paulista. Na visão de Caio

Prado Júnior (1963), a vila de São Paulo reunia condições deveras favoráveis em

relação à vila de Santo André pois se localizava no centro geográfico dos Campos

de Piratininga e não no seu bordo, não na franja de seu território. Por questões

estratégicas de defesa, de avanço das bandeiras e de acesso às águas (mas não

apenas por estes motivos), instalou-se assim no alto de uma colina que formava um

divisor de águas entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, com acesso terrestre por

um único lado.

Autores como Monteiro (1994) destacam que esta localidade coincidia com o centro

da aldeia do cacique Tibiriçá. Os anos seguintes à fundação da vila de São Paulo

foram seguidos de conflitos belicosos entre facções tupiniquins descontentes com a

aliança luso-tupiniquim, como foi o caso de um dos irmãos de Tibiriçá, o cacique

Piquerobi e seu filho, que lideraram investidas contra a vila de São Paulo por volta

do ano de 1562. Segundo Monteiro (1994: 39), “a guerra causou sérios danos para

ambos os lados, afetando de forma mais aguda os índios que atacavam e os que

defendiam São Paulo”. Mesmo com a vitória daqueles índios que defendiam a vila

contra os ataques e rebeliões de outras facções tupiniquins, Tibiriçá termina morto

pela mais poderosa arma colonial: “as doenças contagiosas”, que segundo Monteiro

(Idem) eram “uma arma muito mais potente que as armas de fogo”. Surtos de

doenças como o sarampo e a varíola dizimavam e desmoralizavam a população

nativa, não apenas na capitania de São Vicente. “O efeito cumulativo da diplomacia,

das ações militares e dos contágios havia reduzido os últimos Tamoios a aliados,

escravos ou cadáveres” (Idem).

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A confluência entre jesuítas e colonos neste período é destacada por Monteiro

(1994: 41) em relatos de Nóbrega e Anchieta. Guardadas as diferenças com os

colonizadores, que não queriam limites à escravização indígena, havia nestes

relatos jesuíticos uma concepção ainda assim escravista, senhorial, cujas

conclusões apontavam para a necessidade de cristianizar o “gentio” e sujeitar os

índios à “bandeira de Cristo”. No caso dos índios revoltosos e resilientes, seria

necessário adotar o que chamavam de “guerras justas”, regulamentadas pela Lei da

Coroa Portuguesa de 20 de Março de 1570. Esta lei estabelecia as hipóteses e

condições para o cativeiro indígena (Cunha, 1992), do qual resultava um mercado

de força de trabalho. A insistência e os esforços dos jesuítas em combater o

canibalismo e os ritos de destruição do inimigo (Florestan, 1970) corroborava para a

formação de um excedente de trabalho escravo, livres do sacrifício de guerra porém

cativos para os trabalhos de colonização.

O rio Tietê, tronco deste sistema hidrográfico de que fazem parte o Tamanduateí e o

Anhangabaú (contorno do entre rios onde se localiza a vila e hoje o centro de São

Paulo), era facilmente acessado por terra (pelas margens) ou pelas águas

(navegação fluvial) a partir do próprio Tamanduateí, o que fazia desta localização

um importante entreposto terrestre e fluvial conectado à rede hidroviária e aos

caminhos do planalto. O Tietê, como se sabe, percorre todo o território hoje

delimitado como Estado de São Paulo, ramifica-se em diferentes afluentes

(Pinheiros, Cotia, Piracicaba, etc.) até desaguar no Rio Paraná, que por sua vez

abre novos afluentes na margem direita em direção ao Mato Grosso e segue seu

curso em território argentino até desembocar no Rio de la Prata, que divide as atuais

cidades de Colônia do Sacramento (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina).

A colonização posterior aproveitou estes caminhos dos rios e seus vales para o

transporte e a mobilidade no território, sobretudo os caminhos abertos pelo Tietê e

seus afluentes. Estes eram caminhos utilizados pelos povos nativos muito antes da

chegada dos estranhos vindos do além-mar. As margens dos rios foram os

principais locais de despovoamento ameríndio (remoção dos ribeirinhos) e de

entrada das bandeiras, tanto a jusante como a montante do rio. A montante do Tietê,

as bandeiras seguiram em direção Nordeste, rumo ao Vale do Rio Paraíba,

considerada de solo mais fértil e propício à agricultura. A jusante, passava pela vila

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de Parnaíba (hoje conhecida como Santana do Parnaíba) e seguia por todo o interior

até o encontro com as águas do Rio Paraná.

Em direção ao Norte seguia-se por terra, onde as condições do solo e do relevo

permitiam a existência de dois caminhos, no limite da Serra da Mantiqueira e nos

contornos do Morro do Jaraguá (por onde hoje passam as rodovias Bandeirantes e

Anhanguera), chegando inicialmente à região hoje conhecida como Campinas, de

onde era possível seguir ou em direção a Minas Gerais e Goiás (direção Nordeste)

ou prosseguir pelo antigo caminho Peabiru em direção a Itu, Sorocaba e ao hoje

conhecido Estado do Paraná (direção Sudoeste) até atravessar o Rio Paraná na

altura de Salto de Guaíra (Paraguai) e seguir rumo ao altiplano boliviano e à

cordilheira do Andes (Potosi, Lago Titicaca e Cuzco).

Desta maneira, São Paulo era não apenas o centro do sistema hidrográfico como

também o “nó” do sistema topográfico, de comunicação e de mobilidade dos povos

ameríndios desta região. A vila de São Paulo e suas imediações se tornaram

acampamento central de onde saiam as expedições bandeirantes em busca da

conquista de territórios, do cativeiro indígena e da extração de símbolos de riqueza

como o ouro e a prata.

A colonização das terras hoje pertencentes aos Estados de Mato Grosso, Mato

Grosso do Sul, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Tocantins dependeu das ações de

despovoamento, de escravização e de expulsão dos povos nativos promovidas

pelos bandeirantes (Monteiro, 1994). Estas ações partiam sobretudo de São Paulo,

que funcionava desde o princípio como um pólo gerador e aglutinador das

navegações terrestres e fluviais por todo o interior da colônia portuguesa.

Convém, portanto, retomar a crítica marxiana a respeito da acumulação prévia

(segundo Adam Smith, previus acumulation), tratada como uma forma “primitiva” de

acumulação – e por este motivo chamada por Marx de “a assim chamada

acumulação primitiva”. Como destaca Harvey (2005), esta acumulação nada tem de

“primitiva”, mas se trata em realidade de uma acumulação “original” (ursprüngliche),

isto é, prévia à acumulação capitalista, “uma acumulação que não é resultado do

modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida” (Marx, 2013, pg. 785). Não

corresponde a um período histórico datado, mas, pelo contrário, segue como um

ponto de partida necessário e incontornável para a expansão geográfica do

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capitalismo e da propriedade capitalista pelos territórios de domínio dos Estados

Nacionais.

Observe-se que, em ‘O Capital’93, o fenômeno da acumulação de capital pressupõe

o mais-valor; o mais-valor pressupõe a produção capitalista; e a produção

capitalista, por sua vez, pressupõe “a existência de massas relativamente grandes

de capital e de força de trabalho nas mãos dos produtores de mercadorias” (Marx,

2013, pg. 785). O ponto de partida deste ciclo virtuoso do capital, o conjunto das

condições prévias de seu movimento não é o idílico “pecado original” da economia

política e de suas “robinsonadas”, mas antes a “conquista, a subjugação, o

assassínio para roubar, em suma, a violência” (Marx, 2013: 786).

Na “teoria moderna da colonização”, as ações de retirada à força dos possuidores

de terras nas colônias, segundo Marx (2013: 853), são destituições de uma forma de

propriedade privada que “se baseia no próprio trabalho do produtor”. A destituição

desta forma de propriedade, que do ponto de vista do Estado é mera posse, é a

base a partir da qual se constitui e se consolida a propriedade capitalista. A relação

social de posse é a mais simples relação jurídica do sujeito, “o substrato mais

concreto” e “sempre pressuposto” da relação jurídica da propriedade (Marx, 2011:

55).

Nos termos de Marx em O Capital, e considerando que toda a terra urbana ou rural

no Brasil é ou pode se tornar mercadoria94 no Brasil desde 1850, aqueles que

atualmente detém a sua posse são “seus guardiões”, são os possuidores de uma

parcela específica do espaço geográfico, de suas construções e/ou de seus recursos

naturais, embora não sejam necessariamente os proprietários dos respectivos títulos

jurídicos alienáveis no chamado mercado formal. Exercem o direito de posse sobre o

valor de uso do espaço ocupado e/ou (auto)construído, ainda que não seja

reconhecido seu direito de propriedade sobre este espaço enquanto mercadoria

imobiliária com valor de troca nos circuitos formais da circulação do capital.

                                                                                                               93 Pela exposição de Marx no Capítulo 23 do Livro I de O Capital (2013). 94 Partindo-se do pressuposto de que a instauração do regime de propriedade capitalista da terra no Brasil ainda está em curso e segue um desenvolvimento desigual e combinado desde a criação do regime jurídico de compra e venda do registro imobiliário de títulos de propriedade da terra em 1850. É o caso por exemplo das terras ainda hoje existentes ao longo da Amazônia Legal, que, mesmo sob o domínio territorial do Estado Nacional, não contam com registro e titulação de direitos de propriedade.

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Sobre os possuidores de mercadorias no processo de troca, destaca Marx, em

trecho conhecido pela crítica marxista ao Direito (Giannotti, 1980), na abertura do

capítulo 2 do livro I:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum de ambos. Eles têm, portanto, que se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica é dado pela própria relação econômica. (Marx, 2013, pg. 159. grifos nossos).

Nesses termos, os possuidores que “guardam” a terra, suas construções e toda sua

força produtiva, travam uma luta por reconhecimento como proprietários privados

legítimos (ainda que não legalmente regularizados), uma luta pela chamada

“segurança jurídica da posse”, uma garantia contra um rol de violências a que

podem estar sujeitos nas tentativas de tomada à força de sua propriedade

informalmente constituída do ponto de vista do Estado. Nestas relações jurídicas

que asseguram ou não aos posseiros os direitos conferidos pela propriedade privada

estão refletidas as relações econômicas que pressupõem a terra e os imóveis

urbanos como mercadorias assemelhadas ao capital. Os processos de expropriação

violenta dos posseiros, os proprietários “de fato”, são o fundamento sobre o qual se

ergue e se constitui não imediata e necessariamente as novas construções e seus

registros de títulos de propriedade privada, mas sobretudo as bases concretas da

abstração do dinheiro e das representações monetárias dos valores de troca que

circulam no mercado de terras em específico e na economia urbana em geral.

4.4. O FOGO NA FAVELA COMO CRIME E COMO CASTIGO

O fogo na favela, quando causado por ato incendiário, é levado a cabo pela ação

voluntária de indivíduos e/ou instituições. Este ataque pelo fogo remove a favela

silenciosamente, do modo mais dramático e catastrófico, muitas vezes com casos de

corpos queimados vivos. Quando utilizado como tática de remoção forçada, embora

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aplicada por pessoas e sujeitos desconhecidos, mostra-se intrincada a uma

tecnologia de exercício do poder disciplinar (Foucault, 2007) e de normalização dos

espaços urbanos militarizados (Graham, 2016).

Os cômodos e barracos das favelas em geral não têm endereço oficial. Em becos e

vielas não se entra de automóvel, não existe o leito navegável asfaltado, o tapete

mágico que transforma o automóvel a combustão na principal máquina de guerra

para sitiar a cidade. Viaturas e outros veículos automotores são utilizados não

apenas para o transporte e para a aceleração da circulação, mas como recurso

panóptico móvel de vigilância, supervisão e controle do espaço. Afinal, a polícia não

ronda a pé.

As tecnologias de poder que culminaram com a instalação das Unidades de Polícia

Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, por exemplo, tinham o propósito de sitiar

militarmente determinados espaços e lugares dentro de um certo perímetro da

cidade, necessariamente garantido o acesso para a circulação de veículos

automotores, desde as viaturas até os “caveirões”. Com isso, impor uma técnica e

uma tecnologia de segurança militarizada, guiada por uma estratégia de destruição

e/ou expulsão do “inimigo interno” (Lopes de Souza, 2016).

Retirar a favela pelo fogo torna-se, deste modo, também um modelo de

demonstração penal, de criminalizar e castigar as favelas, de mostrar o “verdadeiro”

lugar da favela na cidade, e o “verdadeiro” lugar na cidade dos corpos que vivem

nas favelas. O fogo neste caso não é diretamente dirigido à súplica dos corpos

(embora se conviva com o terror de que corpos sejam queimados vivos muitas

vezes), mas é um castigo aplicado mais diretamente às moradias da favela, uma

cerimônia punitiva contra o lugar identificado e estigmatizado com os desvios, com o

crime e com um universo de outras ilegalidades urbanísticas, construtivas,

ambientais, etc. É também um modo de normalizar o espaço urbano e torná-lo apto

aos imperativos da capitalização das rendas fundiárias urbanas, que pressupõem o

funcionamento de dispositivos de controle e de segurança urbana que garantam o

exercício de todos os poderes inerentes à propriedade por parte de seus titulares.

Voluntários ou involuntários, nos incêndios em favelas a atribuição de dolo ou culpa

a indivíduos para responsabilizá-los criminalmente é tipificado no caso específico

pela conduta de “causar incêndio” prevista no artigo 250 do Código Penal Brasileiro.

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Mas o direito penal pressupõe a individualização das penas: as ações individuais

devem não apenas se enquadrar na tipologia, nos tipos penais da norma criminal,

mas deve haver também um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado

previsto pela restrição normativa para que haja um processo penal e aplicação da

punição pelo Estado. É preciso, portanto, haver indivíduo “causador”, um autor

(autoria), para se processar criminalmente. Os inquéritos abertos para a

investigação da autoria desses incêndios, contudo, não concluíram pela

apresentação de denúncias na forma do processo penal e tampouco produziram

quaisquer resultados divulgados por esses órgãos. Ainda que esses incêndios

criminosos sejam condutas tipificadas pelo direito penal, não se sabe ou não se

identifica quem age, quem promove, quem coloca o fogo, quem deixa queimar, etc.;

são, portanto, crimes na sua maioria sem sujeito aparente, são inquéritos sem

suspeitos, sem denúncia, sem processo penal, sem sentença condenatória, sem

individualização da pena.

Neste regime de verdade da narrativa policial e judiciária (De Jesus, 2016), crime e

castigo se confundem nos incêndios nas favelas: o crime contra a favela passa a ser

narrado como um crime na e da favela, como se pode inferir a partir da análise dos

boletins de ocorrência, inquéritos policiais e dos laudos periciais encaminhados

pelas jurisdições da Polícia Civil em resposta aos requerimentos da CPI dos

incêndios na Câmara Municipal de São Paulo.

Esses incêndios em ambientes (auto)construídos nas cidades, assim como as

queimadas nos campos e florestas, abrem passagem para novos usos e trabalhos

na terra e em seu entorno, uma “destruição criativa” do espaço edificado e

modificado pela ação humana. Uma “limpeza” que tem duplo sentido: significa

também, no caso das favelas, associar a um espaço residual de variados riscos,

identificado sob a conotação distintiva do gueto e de suas características étnicas e

raciais (Wacquant, 1996), algo a ser varrido, extirpado, removido, afastado,

separado, alienado, segregado.

O fogo passa a servir não apenas como arma de destruição das construções e dos

direitos que recaem sobre elas, mas também como elemento mágico e especulativo

de legitimação do avanço ou do adensamento das fronteiras do mercado imobiliário,

no caso das cidades, ou do agronegócio no campo. Uma magia que se faz sentir

nas representações imaginárias dos preços que se pagam pelo direito de

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propriedade dos imóveis, um fetiche da mercadoria imóvel fundado na ideia de um

espaço com liberdade e segurança para a produção e o consumo de todas as outras

mercadorias (materiais e imateriais) em circulação na cidade.

Ao promover a destruição das construções na favela, estes incêndios têm também

implicações efetivas diante dos direitos sobre a terra, isto é, da propriedade privada

informal dos moradores, considerada mera posse diante dos direitos civis e

registrários. O fogo que destrói e desconfigura a concretude desses direitos de

posse na favela (que inclui também a locação e a compra e venda da propriedade

das construções na terra ocupada) também deslegitima a presença dos moradores

que ocupam esta parcela do espaço da cidade. Ainda quando reconhecido o direito

à moradia a ser exercido em outro local, a configuração das relações de posse no

local ocupado são apagadas, ainda que possam ser convertidas em uma

recompensa, uma gratificação aos atingidos mediante o acesso aos programas e

projetos públicos voltados a atender demandas habitacionais.

Por um lado, há uma destruição e des-re-configuração dos direitos e das relações

efetivas de posse, uma “des-possessão” (Harvey, 2005) que implica a retirada da

propriedade pessoal não registrada na forma jurídica do Estado capitalista. Por

outro, opera-se uma re-criacao, uma re-afirmação dos direitos e dos poderes que

decorrem da propriedade imobiliária capitalista. Estes poderes privilegiam seus

titulares, tanto aqueles sobre os quais recaiam direitos legítimos dos possuidores

como aqueles proprietários de imóveis do “entorno” e suas rendas fundiárias

acrescidas, inclusive a propriedade fiduciária e os estoques de adicionais

construtivos derivados desses direitos sobre a terra urbana.

Uma vez que a queima das moradias autoconstruídas tem consequências nos

direitos legalmente constituídos a partir da posse no lugar de moradia, o fogo pode

se tornar um modo de impedir que estas favelas se consolidem no lugar e que os

direitos de posse das construções sejam reconhecidos formalmente como direitos de

propriedade privada sobre frações da terra urbana. Uma permanência do suplício

pelo fogo, em que se queimam as condições objetivas que configuram e implicam o

reconhecimento do direito de propriedade, retirando dos indivíduos que se

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identificam parte dessas “comunidades”95 a condição de sujeitos de direitos da

propriedade da terra urbana utilizada como moradia.

4.5. O FOGO COMO DESASTRE NA FAVELA: DOUTRINA DO SHOCK

Naomi Klein chamou de “capitalismo do desastre” os “ataques contra as instituições

e bens públicos” que ocorrem “depois de acontecimentos de caráter catastrófico,

declarando-os ao mesmo tempo atrativas oportunidades de mercado” (KLEIN, 2007:

26). O auge destes ataques, argumenta Klein, estão baseados em uma “panacéia

tática” da ideologia e das formais institucionais do neoliberalismo pelo menos desde

a experiência do Chile com Pinochet, que a autora denomina “Doutrina do Shock”:

Assim funciona a doutrina do shock: o desastre original – seja um golpe, ataque terrorista, colapso do mercado, guerra, tsunami ou furação – leva a população de um país a um estado de shock coletivo (Klein, 2007, pg. 41).

Este estado de shock, ao instalar o medo e o terror de uma crise e de um colapso

social, econômico ou ambiental, é uma oportunidade para implantar políticas

neoliberais e sua correspondente “des-re-regulação” (Aalberts, 2016b) na dimensão

jurídica e institucional do Estado, para deste modo “desenvolver alternativas às

políticas existentes, para mantê-las vivas e ativas até que o politicamente impossível

se torna politicamente inevitável” (KLEIN, 2007: 26).

A chamada “sociologia dos desastres” (Valencio, 2010a), que se debruça sobre o

estudo de catástrofes em áreas decretadas sob Estado de Calamidade Pública e

Estado de Emergência96 no Brasil (Brasil, 2012), insiste no argumento da

“desnaturalização” dos desastres. O fogo enquanto um elemento da natureza, assim

                                                                                                               95 Sobre a expressão “comunidade”, Gerônimo Leitão (2009: 14), no estudo da favela da Rocinha no Rio de Janeiro, justifica o seu uso da seguinte maneira: “Reconhecemos que essa palavra expressa uma categoria de complexa definição no campo da sociologia. No entanto, não é neste sentido que a usamos. Quando começamos a desenvolver trabalhos em favelas, no início da década de 80, as lideranças de associações de moradores usavam a palavra ‘comunidade’ em lugar de ‘favela’, que era estigmatizada, e, portanto, evitada, logo, relatos como: ‘A nossa comunidade precisa de obras de esgoto’ ou ‘Este é fulano, da comunidade de Acari’ eram constantes. Nós, técnicos que atuávamos – e atuamos – em favelas, também adotamos a palavra comunidade em nossos contatos com moradores, lideranças e outros profissionais. Era, simultaneamente, uma forma de nos contrapormos à visão estigmatizante da favela, e uma atitude política: pretendíamos, assim, mostrar de que lado estávamos no embate por uma sociedade mais justa.” 96 É o caso, por exemplo, do desastre de Mariana (MG), com o rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, ocorrido na tarde de 5 de novembro de 2015.

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como a água das chuvas e das enchentes, pode facilmente ser naturalizado ou

servir para naturalizar relações sociais em determinados contextos e configurações.

Na doutrina internacional de Defesa Civil, que remete aos documentos da Agência

de Redução do Risco de Desastres das Nações Unidas (UNISDR/ONU), a descrição

e análise de um “desastre” é formulada na linguagem da chamada “sinistrologia”,

cuja origem remonta às normas técnicas de segurança contra incêndios

estabelecidas pelas instituições financeiras que vendem apólices que securitizam o

risco de ocorrência de incêndio. Esta lógica formal dos desastres e suas categorias

estão presentes nas formas jurídicas e ideológicas das instituições do Estado

responsáveis pela prevenção, proteção, defesa e recuperação desses desastres.

Corresponde a uma tipologia fechada e operacionalizada mediante uma

racionalidade de causa/efeito/consequência. Nessa Doutrina de Defesa Civil, os

desastres são definidos por sua origem como naturais ou tecnológicos. No entanto,

autores como Valencio (2010a), apoiada em Perry e Quarantelli (2005), apontam

que os desastres apenas são assim definidos quando existe um contexto social e

uma realidade sociológica afetada. Os desastres tendem a ser considerados um

fenômeno da natureza, como fatalidades ou catástrofes ambientais,

desconsiderando deste modo o necessário e incontornável metabolismo entre os

seres humanos e a natureza.

Desta maneira, a naturalização dos desastres implica uma naturalização das

relações sociais de produção que existem, precedem, informam os indivíduos

afetados e as instituições do Estado envolvidas. Elementos da natureza e atributos

naturais dos materiais são utilizados como recurso argumentativo para descrever o

desastre enquanto fenômeno relacionado a alterações e modificações da natureza

em geral e do clima em particular: o fogo do incêndio, as águas das enchentes,

chuvas e extravasamentos, a umidade e a falta de umidade do ar, a capacidade de

carga elétrica dos materiais condutores, as propriedades combustíveis dos materiais

de construção, os aspectos geológicos do solo, etc.

No incêndio narrado como desastre não estão em questão as dimensões punitiva e

investigativa do poder de polícia do Estado. Esta narrativa dos desastres está

presente nos discursos das instituições de Defesa Civil e não das instituições de

persecução penal (Polícias Civil e Militar, Ministério Público, Poder Judiciário e

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Sistema Prisional). Contudo, o exercício do poder de polícia não está associado

necessariamente à esfera criminal do Direito do Estado. A legislação ambiental e

urbanística também representa uma dimensão do poder de polícia na medida em

que impõe limitações administrativas aos usos funcionais da propriedade fundiária,

isto é, a partir da definição de uma função social (ou socioambiental) estabelecida

em lei. Estes limites urbanísticos e ambientais podem legitimar decisões

administrativas e judiciais sobre despejo e remoção e a requisição para o seu

cumprimento do recurso à violência direta por parte das instituições civis e militares

de segurança pública.

Para além da criminalização da própria favela e de seus moradores, e contra um

evento cuja conduta causadora é passível de punição pelo Estado, ganha

legitimidade a narrativa do evento enquanto uma fatalidade, uma catástrofe, uma

temeridade, um episódio de terror. Este discurso das catástrofes e dos desastres, ao

substituir os discursos do crime de causar incêndio e da favela enquanto um

problema especificamente habitacional e fundiário, ao mesmo tempo joga uma

cortina de fumaça sobre qualquer associação entre esses eventos e as

transformações urbanas da cidade.

Na lógica dos desastres, a esses possuidores de autoconstruções destruídas, além

de agir no sentido de prevenir novos incêndios e reconstruir o que foi destruído,

cabe apenas “viver em risco” (Kowarick, 2009a), sujeitos ou a um novo castigo

aplicado pelo fogo ou a uma futura remoção. Como na imagem mitológica utilizada

por Valencio, resta a eles, se não serem consumidos pelo fogo da casa de Hades97,

serem devorados por Cérbero, o monstro de várias cabeças que guarda as “portas

do inferno” (Valencio, 2010a).

4.6. DO SUPLÍCIO PELO FOGO À SANÇÃO NORMALIZADORA DAS

REMOÇÕES

Ocupar e morar na favela sem título de propriedade, sem cumprir com as normas

edilícias, fundiárias e urbanísticas, torna esses moradores desviantes ao olhar das

instituições de segurança do Estado. Com isso, passam a ser vigiados, punidos e                                                                                                                97 A analogia de Cérbero e do portal de Hades consta do livro Sociologia dos Desastres, de Valencio e outros (2010).

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disciplinados por um aparato de controle que traz uma maneira específica de punir,

um “modelo reduzido do tribunal”, que trata de aplicar castigos com o objetivo de

reduzir esses desvios e aplicar “corretivos” (Foucault, 2007: 149).

Mesmo com a disciplina e a vigilância da favela, a permanência do fogo como uma

forma de suplício do lugar de moradia indica que técnicas de punição historicamente

anteriores à implantação do modo de produção capitalista persistem na realidade

das favelas brasileiras. Os corpos daqueles indivíduos que vivem na favela são os

corpos condenados a determinadas formas de castigo que, na ausência ou na

ineficiência da disciplina, retorna-se ao mais brutal dos modos de punição: o

suplício. Estas punições se legitimam pela classificação das condutas desviantes

daqueles que moram na cidade sem cumprir com as normas jurídicas da construção,

do meio ambiente e do urbanismo e, sobretudo, sem pagar a renda para exercer os

poderes decorrentes do direito de propriedade capitalista.

À medida em que a presença destes corpos e seus lugares de moradia é

condenada, seus moradores tornam-se sujeitos ou ao suplício aplicado pelo fogo ou

à “sanção normalizadora” da remoção: nesta última, os castigos se aplicam

mediante “micropenalidades” (Foucault, 2007: 149-154). Além de punir diretamente

os corpos, no caso da sanção normalizadora essas micropenalidades atuam sobre o

tempo: é o caso de atrasos no atendimento habitacional ou na instalação de

hidrantes, por exemplo, ou mesmo nas interrupções e nas ausências de instalações

de infraestrutura de energia elétrica, de asfalto, de internet, de TV a cabo, de gás, ou

ainda no abastecimento de água, entre outras. No exercício do poder disciplinar, a

sanção normalizadora opera mediante um sistema duplo de “gratificação-sanção”

(Foucalt, 2007: 150): castigar mas recompensar, sempre rebaixando. Ou, se é o

caso de uma analogia espacial, reassentando em outro lugar, mais distante, com

menos acesso às infraestruturas urbanas de uso coletivo fixadas no espaço absoluto

da cidade, privados dos direitos legítimos decorrentes da posse no tempo que

poderiam ser convertidos em direitos de propriedade.

Com o reassentamento, uma nova relação de posse é criada, mas desta vez

mediada por um título jurídico, que assume a forma ou de contratos de mútuo, ou de

contratos de alienação fiduciária, ou ainda de contratos de locação. Todas essas

formas contratuais resguardam os proprietários jurídicos desses imóveis contra as

possibilidades de usucapião e outras formas de regularização fundiária, de

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legitimação da posse e de sua conversão em direito de propriedade. Esses contratos

asseguram também o pagamento pelas rendas urbanas correspondentes. Nessas

recompensas, por se tratar de posses a título oneroso (pagamento de aluguel ou

prestação), mesmo que subsidiada e financiada, trata-se de uma posse segura, ou

securitizada do ponto de vista da propriedade capitalista e seus titulares. Contudo,

ainda que eliminada a perspectiva da regularização fundiária, está presente não

apenas o novo valor de uso mas igualmente o seu duplo: o valor de troca que

possibilita a revenda dessas novas moradias objeto de reassentamento no mercado

imobiliário informal, ainda que esta nova troca não seja regular, no sentido de que

não preenche todas as condições da sua forma jurídica, e que sua venda e compra

se configure enquanto uma repetição do desvio.

4.7. URBICÍDIO: MILITARIZAÇÃO E SECURITIZAÇÃO

As cidades brasileiras, e particularmente São Paulo, passaram a ser não apenas

hipermercadificadas pelo complexo financeiro-imobiliário (Aalbers, 2015; Rolnik,

2015) como também, e ao mesmo tempo, hipermilitarizadas (Graham, 2016; Lopes

de Souza, 2016), sofrendo constantes ataques à liberdade democrática e à

conquista e reconhecimento de direitos de cidadania universal. A garantia e o

atendimento a direitos sociais programáticos estabelecidos desde a Constituição

Federal de 1988 passaram a entrar em processo de regressão e têm sido constante

e violentamente des-programatizados. Esta retirada de direitos tem implicado uma

série de reformas que, na dimensão jurídico-normativa do Estado pode ser

caracterizada como uma des-re-regulação (Aalbers 2016), mas que na realidade

sociológica do cotidiano das relações sociais de produção na cidade capitalista são

levadas a diante por meio de diferentes tipos de violência.

A crescente “militarização da questão urbana” tornou-se um fenômeno de escala

global e passou a ser implantado em cidades dos países do Norte (ACLU, 2014).

Graham (2016) defende que se trata de um “efeito bumerangue”, em referência a

Michel Foucault, das políticas e práticas de segurança urbana militarizada existente

em países do Sul como o Brasil. Este fenômeno é identificado por Graham (2016)

como “securitização urbana” ou “novo urbanismo militar”, que se dá em paralelo com

outras dimensões da segurança internacional, e, no caso das cidades do Sul Global,

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sobretudo em torno da predação neocolonial de recursos naturais e do combate ao

terrorismo.

As relações internacionais e a doutrina militar já há algum tempo abordam a questão

da segurança a partir do conceito de securitização (Bermudez, 2006; Amaral, 2008)

que não se limita à segurança de alta intensidade (hard securitie) dos dispositivos e

instituições militares de guerra entre Estados (guerra simétrica), mas se estende à

segurança de baixa intensidade (low securities), como é o caso das técnicas,

estratégias e táticas de vigilância e policiamento militarizado nas cidades (guerra

assimétrica).

No caso da securitização urbana, esta guerra assimétrica é travada em batalhas que

ocorrem no cotidiano das cidades, em múltiplas escalas, e não se desenvolve pela

disputa entre Estados e seus núcleos e centros de poder, mas pelas instituições

civis e militares de securitização, que atuam de modo difuso contra a população

considerada “perigosa” e/ou insurgente e contra os lugares-alvo classificados e

hierarquizados de acordo com o risco à segurança, intensificando a segregação

racial e sócio-espacial e sufocando a cidade como espaço público de democracia e

de exercício da cidadania.

De modo geral, pode-se dizer que a securitização é o processo pelo qual um tema é

socialmente construído como um problema de segurança (Ventura, 2016). Existem

outras dimensões desta segurança de baixa intensidade, também características de

uma guerra assimétrica, das quais se pode destacar para os objetivos desta

pesquisa, além da securitização urbana:

(i) a securitização financeira no caso de risco de crises, inadimplência,

moratórias, perda e desvalorizações de ativos. É o caso da securitização

imobiliária e da securitização do agronegócio, entre outras;

(ii) a securitização ambiental no caso de risco de desastres e catástrofes na

relação entre a atividade humana e a biosfera;

(iii) a securitização da saúde global no caso de risco de epidemias, vírus, etc.;

A securitização financeira, por exemplo, é caracterizada por desdobramentos de

títulos no mercado de capitais, da qual a securitização imobiliária e a securitização

do agronegócio são espécies. No caso das cidades, se a securitização imobiliária

assegura a propriedade, a securitização urbana assegura a posse. A segurança da

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posse é o pressuposto desta securitização imobiliária e da apropriação dos retornos

financeiros desses capitais.

A securitização ambiental, por sua vez, envolve desde instituições de defesa civil e

de controle urbano de áreas de risco de desastres socioambientais locais, regionais

e nacionais, como também os mercados verdes fundados nos riscos de catástrofes

de escala global associadas ao aquecimento global. O mercado da economia verde

no Brasil tem um primeiro impulso com a criação da bolsa verde na Rio+20 (2012),

uma bolsa de valores especializada na comercialização de créditos de carbono e de

outras modalidades de títulos financeiros “verdes” como é o caso dos serviços

ambientais, que capitalizam terras ambientalmente protegidas com o objetivo de

remunerar proprietários fundiários pela proteção de seus recursos e sua

biodiversidade. Um modo a obrigar o Estado a pagar uma renda fundiária referente

àquelas terras cujo uso (urbano ou rural) não é permitido a qualquer atividade

produtiva por ocasião das normas conservacionistas destes lugares e seus recursos

naturais.

A securitização global da saúde se consolida a partir dos supostos riscos de

epidemia global do vírus Ebola na África Ocidental (Ventura, 2016), o que gerou

modificações nos padrões de controle de fronteiras. No caso do Brasil, a

securitização da saúde global emerge mais especificamente a partir de um suposto

risco de epidemia do ZIKA Vírus em 2016, ano de realização das Olimpíadas no Rio

de Janeiro.

Neste cenário é preciso voltar alguns anos para destacar que a “dimensão

geopolítica supralocal da escala local” (Lopes de Souza, 2016: 12) foi decisivamente

marcada pela escolha do Brasil para sediar os chamados Megaeventos, a Copa do

Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, processo este concluído em meados de

2008. No caso de São Paulo, com a escolha para sediar a abertura do evento

internacional de futebol ocorrida em junho de 2014, um novo estádio (a “Arena

Itaquera”) seria construído na Zona Leste do Município, com acesso à infraestrutura

de mobilidade da cidade que permitia e propiciava que os participantes do evento

percorressem o fluxo de mobilidade entre o estádio e o quadrante sudoeste (Villaça,

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2005), sobretudo por meio do Metro98 (Estação Corinthians-Itaquera) para ali se

hospedar, consumir e circular. Estes megaventos trouxeram consigo exigências e

padrões específicos no que diz respeito à questão da segurança internacional, a

serem adotados pelo Estado Brasileiro em suas diferentes esferas federativas.

Cumprir estas exigências implicou reformas legislativas na legislação penal

brasileira, cujo exemplo mais evidente é a chamada lei anti-terrorismo (Lei Federal n.

13.260, de 16 de Março de 2016).

Ao sediar esses eventos internacionais, as cidades anfitriãs tornaram-se cenário

para a intensificação de uma guerra tática e assimétrica, um veículo para a violência

que atravessa os espaços transnacionais e é executada mediante a

hipermilitarização dos espaços urbanos (Graham, 2016). No Município do Rio de

Janeiro, a escalada da militarização da questão urbana aplicada às favelas fica mais

evidente e institucionalizada a partir de novembro de 2008, quando é fundada a

primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), um projeto piloto de gestão urbana

militarizada de securitização do território. Em São Paulo, as estratégias e táticas de

ação das instituições de securitização urbana não passam necessariamente pelo

confronto de violência direta com organizações do tráfico de drogas com o objetivo

de retomar militarmente esses territórios ao poder soberano do Estado. No entanto,

observa-se um incremento em São Paulo de técnicas e táticas mais associadas ao

que Foucault (2007) chama de “poder disciplinar” para tratar da generalização do

controle panóptico para fora dos muros das instituições prisionais.

No caso específico do Município de São Paulo, a gestão do prefeito Gilberto Kassab

na Prefeitura, eleito no final de 2008 (assumira como vice de José Serra desde

2007), trouxe aos quadros da gestão pública municipal um contingente de coronéis

reformados da Policia Militar numa dimensão e escala nunca dantes vista desde a

redemocratização. Dos 31 (trinta e um) Subprefeitos de Kassab (2009-2012), 28

(vinte e oito) eram coronéis reformados da PMESP, além do coordenador da Defesa

Civil do Município. Mesmo com a mudança de gestão municipal em 2013, em que

houve a substituição dos Subprefeitos e do coordenador de Defesa Civil do

                                                                                                               98 Destaque-se a greve dos metroviários e a abordagem das instituições do Estado de São Paulo contra os manifestantes, conflito que antecedeu a abertura da Copa do Mundo nas primeiras semanas de junho de 2014. Além da violência direta da policia militar contra a paralisação, que durou 5 dias, a Justiça do Trabalho considerou a greve “abusiva”. Esta greve foi retratada no documentário “Futuro Junho”, da diretora Maria Augusta Ramos.

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Município, os incêndios de favelas não deixaram de acontecer no período da gestão

do prefeito Fernando Haddad (2013-2016), embora em menor quantidade no

número geral de registros como já indicado. Ainda assim, alguns incêndios deste

período (sobretudo em 2014, ano de menor volume pluviométrico do período

analisado) foram de maior intensidade (maior grau de destruição, medido por

indicadores como número de desabrigados, mortos, feridos, danos, perdas, etc.)

sobretudo em alguns casos em que o abastecimento de água da cidade fora

interrompido por ocasião do racionamento implantado pela Companhia Estadual

Sabesp, o que impediu ou retardou o combate ao fogo. A chamada “crise hídrica”,

também associada de modo controverso às condições ambientais e climáticas, teve

seu auge quando o volume morto da Cantareira atingiu apenas 5% em maio de

2014. Os incêndios em favelas prosseguiram nos anos de 2015 e 2016, sem que

sequer passassem a chamar a atenção nos veículos de notícias e mídias, narrados

como simples e corriqueiros acidentes, casos de briga de casal, abuso de drogas,

desastres ou catástrofes naturais associadas a mudanças no clima global e local,

entre outros.

Neste contexto de hipermilitarização, incrementa-se o tratamento de espaços

urbanos a serem disciplinados mediante o controle e a vigilância das instituições de

securitização urbana (Graham, 2016), sem que se elimine o uso direto da violência e

mesmo dos suplícios no caso dos atos incendiários voluntários em favelas. Neste

novo “urbanismo militar”, são utilizadas estratégias e táticas de guerra de baixa

intensidade contra o “inimigo interno”, que no caso de cidades brasileiras como São

Paulo é identificado sobretudo com o “crime semi-organizado ou não-organizado

relacionado ao tráfico varejista de drogas”, utilizado enquanto um cavalo de tróia

para as ações contra a “população preta, pobre e periférica” (Lopes de Souza, 2016)

que vive nas favelas e nas periferias, numa sobreposição das diferenças e

desigualdades raciais e de classe social. O objetivo destas táticas e estratégias do

urbanismo militar é colonizar determinados espaços e com isso criar zonas seguras,

securitizadas, ou “pacificadas”, no sentido de que são normalizadas do ponto de

vista das instituições de segurança e de seus princípios de diferenciação e de

hierarquização dos corpos e dos lugares.

Ao se adotar, implantar e intensificar práticas, estratégias e táticas de segurança

pública militarizada para as cidades, promove-se uma guerra urbana mediante

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conjuntos de ações que visam não apenas o controle e a disciplina dos corpos mas

também das infraestruturas e dos lugares em que vivem, residem, trabalham e

circulam os sujeitos classificados como “internos” ou “externos” a esses espaços da

cidade. Uma guerra urbana permanente que promove um genocídio contra a

população formada predominantemente por negros (Nascimento, 1978) e um

urbicídio (Graham, 2016) contra suas formas de moradia.

Este policiamento militar mantém as cidades constantemente sitiadas com suas

viaturas, técnicas de controle, normalização e vigilância dos espaços urbanos, bem

como suas técnicas e táticas de enfrentamento de manifestações insurgentes com o

uso de armas “não letais” (spray de pimenta, bola de borracha, bombas de gás e

outros) e “tropas do braço” (com técnicas de artes marciais para o confronto corpo-a-

corpo). É uma guerra de outro tipo e o uso das forças militares também é

reinventado, adaptado aos desafios de uma guerra especificamente urbana.

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CONCLUSÕES

Esta tese partiu de uma hipótese implícita de que os incêndios em favelas de São

Paulo eram um fenômeno que se ampliava na mesma escala e na mesma

temporalidade que os preços dos imóveis urbanos, considerado o período de intensa

especulação imobiliária na cidade. Esta associação era sugerida pelo blog “fogo no

barraco” e estava presente no discurso de ativistas e representantes de movimentos

de moradia ao longo da CPI dos incêndios. Para confirmar ou refutar esta hipótese,

a pesquisa seguiu por uma rota que procurava identificar indivíduos, ligados direta

ou indiretamente ao complexo financeiro-imobiliário, responsáveis pelos incêndios e

culpados pelos atos incendiários criminosos. A ideia subjacente, mesmo que não

planejada e admitida no plano inicial da pesquisa, era conseguir identificar os

indivíduos e instituições públicas e privadas imbricados numa trama de relações que

indicasse essa correlação. Isto colocava a trajetória da pesquisa numa rota de

investigação policial de organizações criminosas, quase como num trabalho de

detetive no percalço de pistas e suspeitos, algo que parecia se distanciar de uma

investigação propriamente científica no âmbito das ciências sociais. O projeto de

pesquisa se transmutava para uma espécie de inquérito extraoficial e o pesquisador

num investigador de polícia não-policial.

Esta busca foi, para dizer o mínimo, extremamente labiríntica. Ao longo dos anos

essas dificuldades foram reconhecidas e foi abandonada a persecução desses

resultados inicialmente imaginados. Não se tratava apenas de um problema de

fôlego de pesquisa, mas de um problema metodológico da análise sociológica

efetivamente empreendida para observar o fenômeno e verificar a hipótese de

pesquisa. Identificar que há mais incêndios onde os preços são mais altos ou onde

os preços estão em elevação, por mais que se trate de um dado forte para

comprovar essa associação, apenas tornava o problema de pesquisa mais complexo

e de uma difícil, senão impossível, verificação do fenômeno em um nível de

concretude que permitisse chegar a apontar os indivíduos responsáveis por

incêndios e atos incendiários.

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Desde o início a proposta desta pesquisa era descrever a questão dos incêndios em

favelas e suas conexões com o fenômeno conhecido como especulação imobiliária a

partir da teoria marxista da renda da terra na produção do espaço urbano. Nesta

perspectiva, esses preços indicam e representam a capitalização da renda que se

pode obter a partir dos poderes decorrentes do direito de propriedade dos imóveis

urbanos. Isto implicou considerar, por um lado, esses preços enquanto a expressão

quantitativa do valor de troca da terra e dos imóveis urbanos tratados como

mercadorias numa cidade capitalista cada vez mais integrada no mercado mundial.

Foi preciso portanto descrever os novos elementos da lógica do capital e como eles

exercem um poder tendencial de determinação sobre as relações de poder

decorrentes dos direitos de propriedade dos imóveis. A valorização que explica essa

associação, deste ponto de vista, é uma valorização qualitativa, expressa nas

mudanças no valor e no valor de uso das parcelas divisíveis e indivisíveis do espaço

urbano. Como o poder de exercer essa apropriação é mediado pelo Estado e suas

instituições, foi preciso verificar o aspecto qualitativo das relações sociais de

exercício deste poder, identificada na segurança da posse, que, como afirmou Marx,

é sempre pressuposto da propriedade.

Demorou para perceber que, se a valorização imobiliária guarda relação com os

incêndios, isto se dá não porque os incêndios aumentam na mesma escala e na

mesma temporalidade dos preços, mas porque a correspondência quantitativa entre

esses dois fenômenos é uma representação social que se apresenta na forma de

preço, mas que representa relações efetivas de poder existentes sobre a terra. A

correlação entre eles somente é possível de ser verificada se tomado o seu aspecto

qualitativo, que deve ser observado não na expressão monetária dos preços, mas na

dimensão qualitativa das relações de poder e dominação que se exercem sobre os

valores de uso concretos que fundamentam o recebimento de diferentes formas de

renda da terra.

O economicismo – e a tese do primado das forças produtivas – tende a enxergar o

direito de propriedade somente nesta dimensão quantitativa do valor de troca, por

isso suas soluções de mudanças políticas se restringem aos limites do juridicismo.

Dentre essas soluções podemos incluir boa parte do programa efetivamente

implementado a partir da agenda e da pauta dos movimentos de reforma urbana no

Brasil desde pelo menos o Congresso Constituinte de 1988, como a regularização

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fundiária, o planejamento do uso e ocupação do solo e o desenvolvimento urbano.

Estas programações democráticas, uma vez limitadas na prática a uma aceleração

dos investimentos em infraestrutura urbana e a mudanças na forma jurídica das

relações de propriedade e suas “funções sociais”, por mais que recoloquem o

problema em outra dimensão de distribuição e repartição do valor entre as classes

sociais, não eliminam as contradições das relações sociais de produção que tomam

como base a lei do valor no modo de produção capitalista.

A Medida Provisória 759/2016, convertida na Lei n. 13.465/2017, consolida a

representação política dessas contradições do ponto de vista da forma jurídica e

institucional no que diz respeito à questão fundiária. Não mais na perspectiva do

juridicismo do movimento de reforma urbana e sua programação democrática, mas

enquanto o reflexo superestrutural de uma reconfiguração das relações de poder

que reposicionou as classes sociais no interior do aparelho de Estado. Este

realinhamento dos poderes de representação das classes sociais, que culminou no

processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, fez a pauta e a agenda da

regularização fundiária caminhar no sentido não mais de uma expansão dos direitos

sociais de moradia e do direito à cidade daquela parcela da população desprovida

de direitos e de segurança jurídica da posse, mas no sentido de uma expansão do

regime da propriedade capitalista no espaço absoluto do território brasileiro ainda

sem titulação jurídica.

Note-se que, a partir de 2013, a elevação gradual dos juros protege os capitais

investidos e alocados na produção imobiliária e contraria o rentismo parasitário no

setor, que quer ver os preços da terra sempre subindo para se auto-valorizar

ficticiamente. Os juros saem de 7,12% em março de 2013 e chegam a 14,5% em

setembro de 2015, quando se estabilizam neste patamar. Somente após a

turbulência política do impeachment e a realização do Megaevento das Olimpíadas,

os juros voltam a cair no segundo semestre de 2016. Esta nova queda dos juros

indica que a tendência decrescente da taxa de lucro não é mais um problema a ser

evitado em prejuízo da aristocracia financeira que representa os interesses do

capital especulativo parasitário, mas a partir da pilhagem da classe de não

proprietários que vivem do trabalho e da predação neocolonial da terra e de seus

“poderes da natureza”.

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Para continuar a alimentar este parasita, é preciso extrair mais riqueza. Os novos

representantes do Estado passam então a operar como saqueadores, como aves de

rapina que ficam apenas com uma recompensa que os rebaixa: seus poderes e

privilégios em uma sociedade marcada pela escravidão, enquanto os maiores

ganhos são parasitados pelos circuitos especulativos do capital. A riqueza, como diz

Marx, vem do trabalho e da terra. Do trabalho, com a reforma trabalhista, a reforma

da previdência, o aumento do desemprego, o rebaixamento dos salários, etc. Da

terra, com a reforma da legislação fundiária identificada na MP 759/2016, com o fim

da reforma agrária, dos processos de reconhecimento de quilombos, das

demarcações de terras indígenas, etc.

Esta expansão geográfica da propriedade capitalista da terra no território brasileiro

somente podia ser entendida se considerada a permanência da acumulação

“primitiva”, ou acumulação por despossessão como diz Harvey (2005), e a partir da

constatação de que o desenvolvimento desigual e combinado resulta numa

diferenciação da consolidação do modo de produção capitalista nos países do Sul,

como é o caso do Brasil, em relação aos países do Norte (Santos, 2010). É o caso

não apenas da Amazônia Legal, seu exemplo mais paradigmático de “terra nua”,

mas também de áreas rurais fora da rota do agronegócio, dos circuitos

estabelecidos da produção agroindustrial e dos direitos de propriedade formalmente

constituídos. Mesmo no Estado de São Paulo, é o caso do Vale do Ribeira, por

exemplo, em que a vinculação dos indivíduos à terra rural ainda hoje se dá por

instrumentos jurídicos de posse. Está ausente na maior parte desses territórios a

propriedade capitalista da terra criada a partir do regime jurídico da Lei de Terras de

1850 juntamente com o fim do tráfico de escravos trazidos nos calabouços dos

navios negreiros desde o Continente Africano. Os discursos e relatos sobre a

colonização de São Paulo, não por acaso, têm na figura do bandeirante João

Ramalho o seu exemplo mais acabado de um Robinson Cruzoé99 da Serra do Mar,

um personagem símbolo da permanência das práticas de rapinagem da classe

dominante paulista e de sua economia política. Nas redondezas desta antiga

                                                                                                               99 Na ficção de Daniel Defoe, Robinson Cruzoé embarca em Hull, na Inglaterra, em 1659, é capturado por piratas, consegue ser resgatado por um navegador português e chega ao Brasil. Alguns anos mais tarde embarca num navio inglês rumo à costa da Guiné para comercializar escravos, quando naufraga. Era o funcionário que fazia a contabilidade das compras e vendas de escravos na rota do tráfico. Na década de 40, seria retratado na literatura infantil brasileira por Monteiro Lobato, em versão “resumida”.

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capitania, não se trata de um “capitalismo financeiro europeu”, tampouco de um

“capitalismo cowboy estadunidense”100: por aqui se pratica um capitalismo

bandeirantista, baseado no saque, na violência e na permanência da acumulação

primitiva, e que opera integrado e subordinado ao mercado mundial.

No caso das cidades, este desenvolvimento desigual e combinado pode ser

observado justamente nas favelas e demais assentamentos informais, não apenas

pelas formas de produção da moradia, mas sobretudo pelo “atraso” na implantação

do regime da propriedade privada da terra na totalidade do território nacional,

lugares que não teriam ainda passado pela regularização e pela legitimação da

posse na forma jurídica da propriedade da terra como forma do capital.

Em todos estes casos, na ausência desta forma jurídica da propriedade capitalista

da terra, a dinâmica das rendas opera de modo distinto, não exatamente igual e

reprodutível como o é nessas categorias do pensamento. No funcionamento das

rendas no nível de abstração teórica da econômica política marxista, seja na

geografia sócio-espacial de Harvey, seja na teoria do valor trabalho abstrato de

Jaramillo, estas formulações são abstrações que não necessariamente se mostram

verdadeiras na prática, justamente porque pressupõem a generalização e a

absolutização (Ver Baitz, 2011) da propriedade capitalista da terra no território do

Estado brasileiro. A inserção de terras informalmente ocupadas nos sistemas

formais da propriedade cria as condições não apenas para a circulação, no espaço

relativo das trocas, do mais-valor apropriado em formas de rendas fundiárias (na

medida em que já se cobra um preço mesmo pela renda da propriedade informal na

medida da sua segurança jurídica da posse), mas para tornar este regime

verdadeiro no espaço relacional praticado das cidades.

Daí a meu ver as dificuldades dos teóricos da renda da terra em observar as rendas

urbanas na concretude do território, sobretudo a emergência da renda absoluta

urbana. A renda absoluta urbana corresponde à expressão quantitativa do valor

(parte do mais-valor) que é paga na forma do dinheiro aos proprietários para inserir

essas terras no circuito da produção do ambiente construído. Por isso dizer que

constitui um patamar mínimo dos preços pagos por todas as rendas oriundas das

                                                                                                               100 Estas denominações são ditas pelo personagem Marc Tourneuil (Gad Elmaleh) no filme “Le Capital”, de Costa-Gavras, e não cumprem aqui um propósito teórico de conceituar diferenciações geográficas do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos.    

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terras inseridas no perímetro urbano. A aceleração das forças produtivas do ramo

imobiliário e da construção no período identificado como superespeculação,

contudo, esbarra nesses limites ao capital, representados idealmente pela forma

jurídica da propriedade da terra e materialmente nas relações efetivas de poder

sobre a terra pelos indivíduos que personificam e representam as classes sociais.

Estes limites somente são superados na medida em que os proprietários tornam-se

aliados dos capitalistas produtores nos propósitos da acumulação, isto é, na medida

em que a terra é tratada não apenas como capital comercial, mas como capital

fictício, mesmo que os preços de monopólio criados para remunerar essas novas

mercadorias produzidas em novas relações sociais de produção capitalistas

encontrem uma outra barreira mais adiante, recolocada em outros termos pelas

próprias contradições do modo de produção enquanto um problema de equalização

da taxa de lucro.

Marx (2011) escreveu à sua época que somente nos EUA o trabalho era uma

abstração que se tornava verdadeira na prática. Somente nos EUA o trabalho

abstrato alcançava o seu mais alto grau de determinação enquanto atividade

criadora de riqueza indiferenciada. “As abstrações mais gerais surgem unicamente

com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como

comum a muitos, comum a todos” (Marx, 2011: 57).

Em São Paulo, mesmo as parcelas da terra urbana ainda não regularizadas já estão

na sua maior parte sob o regime da propriedade fundiária capitalista. Ocorre que, no

caso das ocupações de favelas e demais assentamentos informais urbanos, a parte

da renda que corresponde aos poderes dos proprietários em disponibilizar esses

terrenos para a construção, a expressão qualitativa da renda absoluta urbana, não é

reconhecida e não é paga pelos ocupantes. Estas situações criam, a depender do

valor de uso dessas terras na estrutura urbana, entraves ao desenvolvimento

capitalista das forças produtivas do ramo imobiliário e da construção.

Os complexos subjetivos simbolizados pelo mito de Prometeu, e o prometeismo

mecaniscista presente em diversas correntes do pensamento socialista, associa o

fogo ao desenvolvimento das forças produtivas, do maquinário e da indústria

moderna. Este esquema subjetivo cria uma predisposição aos discursos em relação

ao fogo, e a sua associação livre com o período de superespeculação imobiliária

identificado com o chamado neodesenvolvimentismo (Ver Braga, 2016: 84-85). A

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observação empírica, ainda que baseada parcialmente em dados secundários

fornecidos do CBPMESP, aponta para outra direção. Do ponto de vista quantitativo,

não é possível afirmar que houve uma frequência maior de ocorrências de incêndio

no período de aceleração do desenvolvimento das forças produtivas. Esses

incêndios sempre existiram e têm raízes históricas mais profundas, ainda que a

valorização dos lugares com recorrência de incêndios possa ser observada do ponto

de vista quantitativo na sua expressão monetária dos valores de troca, isto é, no

aumento dos preços dos imóveis.

Essa determinação dos preços, uma vez ancorada na indiferenciação do trabalho

abstrato, indica que não se trata de uma trama de ações individuais que conspiram

para incendiar, numa estratégia de guerra coordenada por um centro único de

comando, ou por uma mão incendiária invisível, mas por um complexo social,

político, econômico e jurídico entremeado na sociedade civil e no Estado, cujos

indivíduos em ação (e suas mãos visíveis porém ocultas) não apenas são aqueles

que personificam as categorias econômicas do capitalista e do proprietário, mas

requer a mediação necessária de instituições do Estado. Nesta mediação política

estão desde a oferta de assistência e apoio aos atingidos até os aparelhos de

violência física e simbólica do Estado. Esta mediação necessária das forças

produtivas da violência, uma violência especifica da guerra urbana de baixa

intensidade, isto é, uma guerra assimétrica do Estado contra a população, é

pressuposto para o exercício dos poderes inerentes à propriedade capitalista da

terra e dos imóveis no território.

Neste sentido, esta tese defende que os incêndios em favelas no município de São

Paulo não são uma característica específica do período de superespeculação

imobiliária (2009-2014), em que se verifica um aumento extraordinário e

generalizado dos preços dos imóveis urbanos, fenômeno também conhecido como

valorização imobiliária. Estes aumentos nos preços dos imóveis se devem ao

contexto estrutural de capitalização das rendas urbanas e sobretudo ao aumento

generalizado da renda urbana total de todo e qualquer propriedade imobiliária

capitalista, uma elevação característica da elevação da renda absoluta urbana, que

estabelece o patamar mínimo a partir do qual todas as outras rendas fundiárias

urbanas são escalonadas. Nesta fase do ciclo de capitalização das rendas fundiárias

nos circuitos do capital especulativo parasitário, as terras urbanas na periferia, tanto

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nas franjas e fronteiras do urbano e rural como sobretudo na periferia consolidada,

em que o preço da terra está no patamar mínimo das rendas urbanas ou pouco

acima dele, passam a receber maior procura para a construção direcionada à

demanda de interesse social (HIS) e de mercado popular (HMP), que mediante um

conjunto de mudanças no sistema de crédito habitacional (marcadamente a partir

das linhas subsidiadas do programa MCMV) se torna solvável para contratar a

compra e venda a crédito da casa própria num cenário de baixa nas taxas de juros.

Existe, portanto, uma articulação complexa e uma hierarquia dos encadeamentos

entre os efeitos de: concentração e centralização de terra e de capital nas empresas

do ramo imobiliário; elevação da demanda por terra urbana para a produção

capitalista do ambiente construído; crescente capitalização das rendas urbanas;

maior oferta de habitação de interesse social (HIS) e de mercado popular (HMP) e;

ampliação da demanda efetiva por essas mercadorias.

No âmbito dos municípios, a preferência no atendimento e na seleção da demanda

de HIS é dada aos reassentamentos da população que ocupa terras em lugares

classificados como áreas de risco. A legislação federal transfere aos municípios este

poder de indicar a demanda pública para os projetos da faixa 01 do programa

MCMV, que corresponde à faixa de maiores subsídios e de prestações mais

acessíveis aos trabalhadores de baixos salários. Esta oferta de HIS na faixa 01 do

MCMV, assim como a oferta de outras unidades contratadas com recursos

municipais, ao servirem como projetos de reassentamento da população que mora

sob risco (nos termos das resoluções do Conselho Municipal de Habitação), passam

necessariamente por uma mediação política na escolha e definição das listas de

beneficiados e atendidos. Nesta mediação, agentes da política institucional e da

burocracia do Município, vereadores e outros atores políticos, têm diante de si um

elemento de bônus político para negociar formas de atendimento da demanda de

seus eleitores e apoiadores ou mesmo para a compra direta ou indireta de votos nas

eleições municipais mediante o acesso a essas listas de beneficiários.

Os incêndios podem não aumentar ou até diminuir em números absolutos de

registros do Corpo de Bombeiros. Mas isto não confirma a conclusão de que os

incêndios cuja causa direta é o ato incendiário voluntário tenha diminuído. É possível

e provável, embora não haja dados ou provas que possam confirmar, que tenha

havido no período de superespeculação um aumento desse tipo específico de

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incêndio, o incêndio dito criminoso com o propósito de remover a favela, seja por

interesse direto de agentes do ramo imobiliário e do próprio Estado enquanto

proprietário jurídicos dessas terras, seja na disputa pelo bônus político de controlar o

acesso de indivíduos beneficiários aos programas e projetos habitacionais. Este

pode ser o caso sobretudo dos anos eleitorais, marcadamente o ano de 2012,

quando transcorreu a CPI dos incêndios na Câmara Municipal de São Paulo.

Contudo, na maior parte dos registros de ocorrência de incêndio em favela não se

sabe a causa direta. De acordo com dados fornecidos pelo CBPMESP, este

universo desconhecido representa 61,18% das ocorrências registradas101 (Bruno,

2012). Nessa estatística, a maior parte das ocorrências cuja causa é conhecida se

deve a ligações elétricas (14,68%), seguido dos atos incendiários (10,48%). No

entanto, há que se ponderar que a regularização das ligações elétricas clandestinas

tem sido feita pelas concessionárias desde a privatização da companhia estadual de

fornecimento de energia elétrica. Isto se deu não pelo interesse social em

regularizar, mas pelo interesse propriamente comercial e econômico em tornar

consumidores clandestinos em clientes pagadores pela utilização da rede de

infraestrutura instalada. Interesse este que não estava na agenda da empresa antes

estatal, que até 1998 tratava esses lugares simplesmente como “cidade ilegal”,

excluídos dos serviços urbanos e dos demais direitos de cidadania (Eletropaulo,

1999).

Se Harvey (2013a) não dá tanta importância à renda absoluta em seu Limites do

Capital, talvez seja porque seu ponto de observação é a partir dos países do Norte,

em que a forma jurídica da propriedade da terra e dos imóveis já alcançou o seu

pleno desenvolvimento e que a abstração teórica da renda da terra como forma do

mais-valor se apresenta verdadeira na prática. Daí também o porquê de Harvey

identificar no sistema de crédito a frente mais significativa da acumulação por

despossessão. Diferente da realidade da América Latina, a exemplo do que ocorre

com o Brasil e a Colômbia. Primeiro, porque estes países têm diante de si o maior

exemplo de terra nua no Continente: a Amazônia. Depois, porque mesmo no caso

das cidades existe uma parcela considerável da população que reside em terras

ocupadas irregularmente. Isto não significa que estas terras não tenham uma renda,

                                                                                                               101 Como destacado no Capítulo 1, estes dados se referem a uma amostra dos anos de 1994, 1998, 2001, 2002 e 2003 (Bruno, 2012).

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mas sobretudo que existe do ponto de vista qualitativo uma irregularidade que, nos

termos de troca, sua expressão quantitativa, pode ser identificada na ausência da

parcela dos preços que corresponde à renda absoluta urbana, decorrente da

limitação dos poderes de monopólio dos proprietários jurídicos em oferecer essas

terras ocupadas para a construção em relações sociais capitalistas de produção. Isto

pode indicar que se trata de um desenvolvimento desigual e combinado da

generalização da propriedade capitalista da terra, que no caso do Brasil está em

curso desde 1850 com a Lei de terras devolutas e o fim do tráfico de escravos como

propriedade. Esta expansão das fronteiras da propriedade capitalista da terra toma

novo fôlego a partir da Medida Provisória 759/2016 editada pelo presidente em

exercício Michel Temer, levado ao mais alto cargo da Administração Pública por

meio de um golpe de Estado.

Se a forma jurídica da propriedade da terra tem origens no fim do comércio dos

escravos como propriedade e na transição para o trabalho assalariado, e se o

sistema de capitalização da renda da terra vem substituir o sistema de capitalização

da renda da propriedade dos trabalhadores escravos, não surpreende que os

suplícios pelo fogo e as tecnologias políticas das remoções atinjam justamente os

lugares onde reside a população de maioria preta e pobre, promovendo tanto um

genocídio contra essa população (liberta dos senhores mas cativa da terra) como

um urbicídio de suas formas alternativas (e desviantes ao olhar das instituições de

securitização urbana) de exercer o seu direito à moradia e à cidade.

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