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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Faculdade de Serviço Social
Clarissa Fernandes do Rêgo Barros
As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade
Rio de Janeiro 2009
Clarissa Fernandes do Rêgo Barros
As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade
Dissertação de mestrado apresentada como
requisito para obtenção de título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração: Trabalho e
Política Social
Orientadora: Profa. Dra. Alba Tereza Barroso de Castro
Rio de Janeiro 2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data
B277 Barros, Clarissa Fernandes Rêgo. As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos
estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade/ Clarissa Fernandes Rêgo Barros. - 2009.
135 f. Orientadora: Alba Tereza Barroso de Castro. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Serviço Social. Bibliografia. 1. Serviço social - Teses. 2. Ensino superior – Aspectos sociais –
Rio de Janeiro – Teses. 3. Negros - Política governamental – Rio de Janeiro – Teses. 4. Programas de ação afirmativa – Rio de Janeiro - Teses. I. Castro, Alba Tereza Barroso de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. III. Título.
CDU 36(815.3)
Clarissa Fernandes do Rêgo Barros
As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade.
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Trabalho e
Política Social.
Aprovada em 18 de junho de 2009. Banca Examinadora:
____________________________________________________________________________
Profa. Dra. Alba Tereza Barroso de Castro (Orientadora) Faculdade de Serviço Social da UERJ
______________________________________
Profa. Dra. Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço social da UERJ
_________________________________________________ Profa. Dra. Elielma Ayres Machado Faculdade de Pedagogia da UERJ
_________________________________________________ Profa. Dra. Andréia Clepp Salvador Faculdade de Serviço Social da PUC-Rio
Rio de Janeiro 2009
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e em
particular, à Faculdade de Serviço Social, pela oportunidade de realizar esta
pesquisa. Agradeço também à FAPERJ por ter financia do este projeto com a bolsa
de pesquisa durante todo o mestrado, contribuindo também junto à UERJ para que
este projeto fosse apresentado em congressos e seminários.
Em especial, gostaria de demonstrar o meu carinho para toda a equipe de
funcionários da pós-graduação da Faculdade de Serviço Social, que se mostraram
sempre dispostos a me auxiliar em qualquer coisa que eu precisasse, realizando seu
trabalho com muita simpatia, educação e alegria. Muito obrigada Mariana e Rosiléia.
Um agradecimento especial para minha querida mestra e orientadora: a
professora Dra. Alba Tereza Barroso de Castro, que desde o dia em que liguei a
primeira vez para ela, sem mesmo nos conhecermos pessoalmente, abraçou este
projeto com todo carinho e responsabilidade de uma grande educadora, engajada
não só com uma pesquisa, mas com um projeto social.
Aos queridos amigos, que estiveram sempre comigo. Um obrigado especial
para: Juarez, grande amigo desde a graduação, que m e auxiliou na transcrição das
entrevistas, e Tainá grande companheira ao longo do Mestrado. Ao meu querido
sogro, Geraldo do Santos Sarti, pelo apoio e correções. Minhas queridas sogras:
Mirian mãe e Mirian vó, obrigada pelo afeto. Aos meus pais: Ana Claúdia e
Fernando, que mesmo de longe mostraram o apoio necessário para que eu fosse
feliz em qualquer caminho que escolhesse. A minha irmã Cynthia, que me inspira
com sua alegria.
E finalmente, ao amor verdadeiro e grande companheiro: meu marido
Therence Paoliello de Sarti. Nos momentos mais difíceis, mais alegres e sempre na
jornada da vida.
A todos vocês: muito obrigada!
Clarissa F. do Rêgo Barros
RESUMO
BARROS, Clarissa Fernandes Rêgo. As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade. , 2009. 114 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
A adoção da política de ações afirmativas no Brasil abriu um extenso debate sobre a ausência de investimentos do Estado em políticas universais, as desigualdades raciais, e a própria desmistificação da democracia social como uma hipótese para a racialização das políticas sociais. Os pressupostos deste debate são abordados neste trabalho através da experiência da UERJ, uma das universidades pioneiras a adotar o sistema de cotas no vestibular. Buscando problematizar estes eixos de discussão, e aprofundar questões como: raça, o acesso à universidade e o desafio à permanência, foram realizadas entrevistas com os estudantes cotistas da UERJ. Estas entrevistas descrevem através das trajetórias sociais destes jovens, o perfil das ações afirmativas na universidade, a importância desta política como um direito para o ingresso ao ensino superior, e a dificuldade de permanecer e concluir a graduação.
Palavras chaves: Política de ação afirmativa. Universidade. Educação. Raça.
ABSTRACT
Since de positive discrimination was adopted in Brazil, the universities won a diferent way to give the access to students. The first university to experiment this politic was UERJ that with the law n o. 4151/2004 reserved 20% of it vacancy in vestibular to black people, 20% for public students and 5% for ethnics minorities and deficient. For the society and the students, the positive discrimination brings a lot of changes related to demystification of social democracy, absence of investments became from State politics and racial unequalits. With this argument, it will be exposed in this dissertation the UERJ case, where w as done a research with cotist students. Using interviews, these students will talk about their life problems before entering in the university and the importance of positive discrimination to get a opportunity to achieve and remain in the university.
Key words: Positive discrimination. University. Education. Race.
LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS
Tabela 2 - Indicadores do ensino superior por categoria administrativa (pública e privada). Estado do Rio de Janeiro.......................................63
Tabela 3 -Taxa de freqüência líquida no ensino superior (18 a 24 anos), segundo cor/raça (1992 a 2005).............................................................67
Tabela 1 -Total de universidades públicas por regiões...........................................72
Tabela 2- Total de universidades com ações afirmativas no Brasil........................72
Tabela 3- Total de universidades com ações afirmativas por enquadramento Público....................................................................................................72
Tabela 1- Número de inscritos por vaga................................................................ 81
Tabela 2- Número de matriculados por tipo de vaga..............................................82
LISTA DE SIGLAS
ALERJ Assembléia legislativa do Rio de Janeiro
BIRD Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
C.A Ciclo de Alfabetização
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e Caribe
DPEI Departamento de Projetos Especiais e Inovações
DSEA Departamento de Seleção Acadêmica
EUA Estados Unidos da América
FAPERJ Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro
FHC Fernando Henrique Cardoso
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
NIESC Núcleo de Informações e Estudos de Conjuntura
ONG Organização Não Governamental
MEC Ministério da Educação
PL Projeto Legislativo
PNAD Pesquisa Nacional Domiciliar
PNPIR Política Nacional de Promoção de Igualdade Racial
PROINICIAR Programa de Iniciação Acadêmica
PROUNI Programa Universidade para Todos
PUC-RIO Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PVNC Pré-vestibular para Negros e Carentes
SADE Sistema de Acompanhamento e Desenvolvimento
SR-1 Sub-Reitoria de Graduação
SEPPIR Secretaria Especial de Promoção de Igualdade Racial
UFBA Universidade Federal da Bahia
UENF Universidade Estadual do Norte Fluminense
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................12 1 TEORIA E HISTÓRIA SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL................23
1.1 O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais no
Brasil.................................................................................................................25
1.2 Abolição e Pós-Abolição: desigualdades raciais e noções de
Liberdade..........................................................................................................27
1.3 O histórico das ideologias raciais e sua aplicabilidade nas relações sociais brasileiras.............................................................................................35
1.4 Raças e política de cotas no Brasil.................................................................46
2 O HISTÓRICO DA ADOÇÃO DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
NO BRASIL.. .....................................................................................................55
2.1 Introdução: fronteiras conceituais. .................................................................56
2.2 O dilema da educação e das desigualdades raciais no Brasil.....................62
2.3 As ações afirmativas no Brasil........................................................................68
3 A POLÍTICA DE COTAS NA UERJ...................................................................74
3.1 O histórico da adoção das políticas de cotas na UERJ................................75
3.2 Um balanço dos cinco anos (2003/2007) da política de cotas na
UERJ: análise de dados referentes ao acesso e matricula dos
estudantes cotistas..........................................................................................79
4 TRAJETÓRIAS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA DE COTAS
PARA O ACESSO A UNIVERSIDADE..............................................................87
4.1 Primeiros passos: o inicio da pesquisa e a oficina de cotas.......................88
4.2 Metodologia......................................................................................................90
4.3 Conhecendo o perfil dos entrevistados.........................................................92
4.4 Falas em debate: a análise da política de cotas na UERJ segundo
os estudantes cotistas.....................................................................................96
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................119
REFERÊNCIAS................................................................................................124
ANEXO ............................................................................................................130
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INTRODUÇÃO:
O tipo sutil e disfarçado, contudo não ineficaz, de discriminação racial no Brasil parece estar intimamente
associado (e em certo sentido é conseqüência) ao baixo nível de mobilização política dos negros brasileiros.
Uma ideologia que nega a discriminação baseada na raça será difícil de ser atacada, mas por este mesmo fato,
não pode ser utilizada para mobilizar os membros do grupo dominante.
Carlos Hasenbalg
O debate em torno das políticas de ações afirmativas nas universidades
brasileiras teve inicio, a partir de 2001, durante o governo FHC, como forma de, em
tese, promover a equidade, debatendo a questão racial como responsável pela falta
de ascensão e mobilidade social dos negros e outras minorias étnicas. Com a
adoção de tais políticas, as cotas passaram a ter grande repercussão no campo da
educação, como um meio de acesso ao ensino superior, visto que, com a exigência
de maior qualificação para o alcance de melhores postos de trabalho no mercado, a
educação passa a ser o requisito básico na disputa por bons salários, e
consequentemente uma oportunidade de mobilidade social.
Nos anos de 1990, anteriormente à adoção das ações afirmativas em 2001,
na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, os pré-vestibulares comunitários
surgiram como uma forma de se conseguir a democratização1 do acesso às
universidades, objetivando vagas no ensino superior através da isenção da taxa de
inscrição no vestibular, e também de bolsas reservadas para estudantes negros e
pobres provenientes destes cursos. As universidades pioneiras a adotarem este tipo
de cotas foram a PUC-SP, a UFBA e a PUC-RIO.
Em 1993 o PVNC – Pré-Vestibular para Negros e Carentes assume uma
postura reivindicativa em relação ao sistema educacional brasileiro, denunciando a
deficiência do ensino público, e culpabilizando as desigualdades sociais a partir da
inoperância do Estado em garantir uma educação de qualidade para a maioria de
negros e pobres que se encontravam na escola pública. Para o PVNC esta seria
uma das maiores razões para a ausência de negros na universidade.
Com a repercussão dos pré-vestibulares comunitários, e a sua atuação
enquanto movimento social a favor das ações afirmativas, o debate das reparações
históricas junto à importância da democratização do acesso ao ensino superior
1 Democratização: Conceito utilizado para caracterizar o alcance aos direitos sociais, tendo como base a
igualdade jurídica e a cidadania como um direito comum a todos.
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ganham repercussão na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, e em
2002, durante o governo Garotinho, são adotadas cotas em todas as universidades
do Estado através da Lei 30766/20002, que reservava 50% das vagas da
universidade para estudantes de escolas públicas provenientes do SADE – Sistema
de Acompanhamento de Desenvolvimento do Estudante do Ensino Médio; e 40%
das vagas para negros e pardos auto-declarados. Os estudantes auto-declarados
negros poderiam concorrer à reserva de vagas do SADE e também a reserva de
vagas específica para negros, contando com uma porcentagem de 90%, além da
prescrita por lei.
As cotas nas universidades determinaram uma série de reivindicações por
parte dos estudantes não-cotistas que ficaram de fora do vestibular de 2003 em
função da reserva de vagas. Nos setores jurídicos inúmeros processos foram
abertos contra a UERJ, e na sociedade o debate assumiu um caráter público onde a
discussão questionava a qualidade de ensino dos alunos cotistas e a possibilidade
de rebaixamento da excelência acadêmica, a dificuldade de se auto-declarar negro
no Brasil, as notas baixas dos cotistas no vestibular e, sobretudo, a obrigação do
Estado em adotar políticas públicas de caráter universal e não compensatórias para
grupos étnico-sociais particulares, visto que a educação é um problema de todos.
Em 2004, a “nova lei” 4151/2003 é adotada para o vestibular de 2004 na
UERJ, onde novos desafios são colocados para a universidade. A reserva de vagas
foi reduzida de 50% para 45%, divididas em 20% para estudantes de escolas
públicas, 20% para negros e 5% para indígenas e deficientes3. Além de regular o
percentual de vagas, a nova lei garantiu um critério comum a todas as reservas de
vagas: a carência. Todos os estudantes interessados em concorrer ao vestibular
pelas cotas devem comprovar uma renda per capita por pessoa de R$300,00
mensais4. Em função do recorte sócio-econômico, a universidade em parceria com o
Estado se comprometeria a garantir a permanência destes estudantes através de
uma bolsa de estudos cedida no primeiro ano de graduação. (MACHADO, 2004) 5
2 A lei no 30766/2002 regulamentou duas outras leis aprovadas pela Alerj: a lei no 3524/2000 que reservava cotas
para egressos de escolas públicas, e a lei no 3708/2001 que reservava as vagas para negros e pardos. 3 A lei no 5074/2007 garantiu a reserva de vagas para filhos de bombeiros, policiais militares, inspetores de seguranças e administração penitenciária, mortos em combate ou incapacitados em razão de serviço. 4 Atualmente o valor da renda per capita exigida é de R$630,00 por pessoa da família. 5 MACHADO, Elielma Ayres. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre as leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros pardos e carentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese de doutorado. UFRJ, dezembro, 2004.
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Sob estes aspectos, o debate das cotas assumiu novas discussões além das
já expostas desde 2003. A racialização do debate em relação às cotas para negros
engendrou questões como a diversidade cultural existente no Brasil, e o
desvelamento do racismo cotidiano invisível aos olhos do discurso harmônico e
híbrido das relações raciais do país.
Apesar da falta de investimentos por parte do governo federal, a educação
ganhou uma atenção diferenciada, onde a importância do acesso ao ensino superior
determinou a criação de projetos pelo governo em associação com as universidades
particulares como o PROUNI6. Paralelo a isso, as instituições públicas acadêmicas
alegando a autonomia universitária, adotaram um sistema de cotas multifacetado.
Estas questões convergem para um tema comum: a importância das cotas
para o acesso ao ensino superior. Quais são as expectativas e os benefícios
trazidos pela política de cotas ao estudante egresso pela reserva de vagas? Que
tipo de cota é mais privilegiada pelo aluno: a cota para estudantes de escolas
públicas ou as cotas para negros? Os critérios socioeconômicos seriam
responsáveis pela desracialização das políticas de cotas?
Destas questões fundamentais referentes à trajetória social e ao perfil do
estudante cotista da UERJ, se desdobra um outro tema descrito pelo debate da
permanência do estudante cotista na universidade. Após o alcance da oportunidade
e do direito de chegar ao ensino superior, estes estudantes passam a sofrer com
dificuldades cotidianas relacionadas à alimentação, transporte, alojamento, xerox,
relações sociais, e com a própria infra-estrutura da universidade, o que suscita
problemas que convergem a uma questão comum: a ausência de recursos
financeiros do aluno cotista para se manter na universidade. Mesmo com uma bolsa
com o valor de R$190,00, cedida pelo Proiniciar7, um programa responsável pela
iniciação científica dos alunos de graduação da UERJ, os estudantes cotistas
reclamam do baixo valor da bolsa - auxilio para custear os gastos com a
universidade. Esta realidade denuncia o despreparo da universidade em receber um
novo perfil de estudantes, que chegam com novas demandas e exigências
6 PROUNI: Programa Universidade Para Todos, criado pelo presidente Lula durante a gestão Tarso Genro no
Ministério da Educação (2005). O programa garante cotas e bolsas em universidades particulares de todo o país para negros pobres declarados, deficientes físicos, indígenas entre outros grupos sócio culturais. 7 Proiniciar: Programa de iniciação acadêmica da UERJ. Este setor é responsável pelo repasse das bolsas para
os alunos de graduação.
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fundamentais que contrariam o perfil da maioria dos estudantes no ensino superior
brasileiro.
Para RÊGO BARROS (2007, p.75)8 o pioneirismo da UERJ em políticas que
reservam vagas para negros trouxe não só a transformação do perfil da própria
universidade como também trouxe novos temas e trajetórias a serem discutidas,
além de ter distribuído uniformemente este alunado entre os diferentes cursos de
graduação na universidade. Essa é a importância das cotas raciais, a possibilidade
de ampliar a diversidade na universidade, modificando os atores sociais e os limites
espaciais construídos historicamente.
A incongruência entre a aplicabilidade das cotas e os programas direcionados
à permanência dos estudantes na universidade suscitam reflexões em torno de
como os estudantes driblam as dificuldades financeiras e cotidianas para conseguir
concluir a graduação. Como a trajetória social dos estudantes cotistas interfere em
novas ações para a universidade? Quais seriam as demandas e estratégias dos
alunos cotistas para permanecer na universidade? Será que o estudante cotista
sofre algum tipo de preconceito ou estigma na universidade de forma a interferir no
seu desenvolvimento acadêmico?Que sugestões os cotistas propõem para melhoria
da infra-estrutura da universidade?
A resposta de questões tão específicas referentes ao cotidiano acadêmico
dos estudantes cotistas da UERJ, foram encaminhadas com a participação no grupo
de pesquisa da Faculdade de Serviço Social da UERJ: “Política de Assistência ao
Estudante Cotista da UERJ”9. Durante dois anos foram realizadas entrevistas e
debates com os alunos cotistas na UERJ, a partir de temas sugeridos pelos próprios
estudantes, onde se discutiam a informação sobre as cotas, a importância das cotas,
a trajetória social e escolar destes alunos, a participação nos pré-vestibulares
comunitários, e os problemas diários encontrados na universidade. Por meio de
relatos e trocas de experiências, os cotistas descreviam as estratégias e sugestões
viabilizadas por eles para permanecer na universidade.
Como o objetivo do grupo de pesquisa é estabelecer uma roda de escuta com
estes estudantes, foi solicitado aos alunos o preenchimento de uma ficha pessoal
8 RÊGO BARROS, Clarissa Fernandes do. Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão
através da reserva de vagas para negros na UERJ. IN: Revista Espaço Pedagógico. Políticas Educacionais e cidadania. Vol. 14. número 2.Editora UPF: Passo Fundo. Jul./Dez 2007. pp. 66/77. 9 Este grupo de pesquisa é coordenado pela Profa. Alba Tereza Barroso de Castro professora da Faculdade de Serviço social da UERJ.
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com os dados socioeconômico de cada um, o que possibilitou a compreensão e
análise do perfil destes novos estudantes, responsáveis pela ampliação da
diversidade social, econômica e cultural da UERJ.
O envolvimento com a pesquisa viabilizou um encontro direto com o tema e
objeto de estudo desta dissertação – a importância das cotas para o acesso ao
ensino superior, suscitando outras questões que se relacionariam com a dinâmica
da permanência dos estudantes cotistas na universidade, a modificação do perfil dos
alunos da UERJ a partir da chegada de estudantes com um outro perfil
socioeconômico e cultural, e a quebra de alguns paradigmas referentes à questão
racial brasileira por meio da discussão da racialização das políticas de cotas no
ensino superior. O meu objetivo era compreender que tipo de aluno entra pelas
políticas de cotas, que opção de cotas ele escolhe e porque opta por este sistema
para chegar à universidade. A idéia era estudar a política de ação afirmativa além do
discurso racial presente na sociedade, pontuando, desta maneira, a amplitude de
uma política que se define multicultural e contribui para a diversidade na
universidade.
O encontro com a pesquisa:
Nos primeiros momentos de pesquisa, os diálogos estabelecidos com o
movimento de Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), durante a graduação
ao concluir a monografia, determinaram a caracterização de um perfil racializado do
estudante cotista, onde o beneficio e a importância da democratização do acesso ao
ensino superior se daria para uma maioria de afro-descendentes declarados e
carentes. Nestes estudos iniciais, o discurso dos movimentos sociais que lutavam
pela regulamentação das cotas para negros na universidade, criava uma idéia de
que a maioria dos estudantes cotistas era de negros e pobres conscientes da sua
identidade e cor. Esta afirmação somada ao debate da mídia, em geral centralizada
na visão racialista das ações afirmativas, polemizava as cotas como algo
direcionado apenas aos afro-descendentes, e, consequentemente, como uma
política racista, não universal e excludente.
Esta idéia inicial foi reavaliada por mim a partir do encontro e das entrevistas
com os estudantes cotistas da UERJ. Na primeira sessão de debate, era possível
- 17 -
perceber a diversidade referente à cultura, às trajetórias e também à raça e à classe.
O preconceito e o estigma apareciam independentes da cor da pele. Na realidade
ganhavam um rótulo diferente: ser cotista, o que atribuía a descrição das
experiências a multiculturalidade da política. Porém, mesmo diante do preconceito
relacionado ao fato de ser cotista, a questão racial era velada e descrita por poucos
alunos negros, normalmente aqueles que se matricularam em cursos mais elitizados
e diurnos: como direito, jornalismo, sociologia, engenharia, e onde o preconceito
aparecia determinado por raça/classe.
Ao declararem as cotas que tinham recorrido, alguns dos alunos negros
relatavam que, por não conseguirem ingressar pelas cotas de escolas públicas, se
declaravam negros para garantir o acesso à universidade, o que pode significar, que
mesmo reconhecendo-se negros, muitos alunos descrevem como desnecessárias
as cotas raciais, demonstrando, desta forma, a construção e o reconhecimento da
identidade cultural e racial como algo secundário. Um outro ponto que contribui para
desracialização da política de cotas seria o próprio critério socioeconômico, como
fundamental para o acesso a reserva de vagas. Por isso, parto do pressuposto que,
no universo dos alunos que acessam as cotas, os negros são os mais atingidos nas
dificuldades para entrar e permanecer na universidade, tanto em função do
preconceito como também do reconhecimento da sua importância enquanto sujeito
histórico e cidadão de direitos.
A importância da racialização do debate das políticas de cotas na
universidade.
Diante de uma construção identitária híbrida e multicultural como declarou
Gilberto Freyre (2003), as ações afirmativas exemplificadas nas políticas de cotas
determinam a discriminação10 sob um víeis positivo, onde o reconhecimento das
identidades raciais brasileiras beneficiaria os grupos socioculturais excluídos
historicamente. Tal posicionamento é contrariado por autores como Peter Fry (2005,
p.224) que descreve que esta construção social e histórica da raça no Brasil criaria
uma tensão entre as duas taxonomias: brancos e negros.
10
Discriminação vista como diferenciação neste caso.
- 18 -
A importância do debate da questão racial e a racialização das cotas, é
colocada em voga, pois ao mesmo tempo em que mantém a estrutura do privilégio
branco e a subordinação não-branca, evita a constituição da raça como princípio da
identidade coletiva e ação política. A eficácia da ideologia racial dominante
manifesta-se na ausência do conflito racial aberto e na desmobilização política dos
negros, fazendo com que os componentes racistas do sistema permaneçam
incontestados, sem a necessidade de recorrer a um alto grau de coerção.
(HASENBALG, 2005, p.255).
Portanto, retomar os alicerces historiográficos durante os períodos da
Abolição e Pós-Abolição (durante o final do século XIX e início do século XX),
permite compreender a dinâmica de produção e trabalho no Brasil sob a lógica
liberal, na qual o negro passa a ser excluído enquanto cidadão e trabalhador livre,
tanto pela condição de ex-escravo, como também pela raiz e matriz racial.
Neste momento a exigência do trabalhador livre é um fator crucial para
alimentar o modelo capitalista nascente no Brasil, onde a absorção dos imigrantes
possibilita uma experiência social diversa, os horizontes culturais diferentes
colocaram os negros e mulatos em desvantagens em face aos imigrantes. Em
conseqüência, a estrutura do operariado incipiente constitui-se permeado pelo
preconceito de cor e pelo etnocentrismo. (IANNI, 2004, p.44).
A existência de horizontes culturais e raciais que justificam as diferenças
étnicas entre brancos, negros e indígenas no Brasil se inseriu na dinâmica do olhar
da sociedade brasileira desde o final do século XIX, a partir de teorias racialistas,
que se responsabilizavam em reescrever e redimensionar a história de dominação
dos povos por meio de modelos raciais classificados como inferiores e superiores.
As teorias racialistas surgidas no século XIX na Europa atribuíam as
diferenças físicas e culturais dos seres humanos a características raciais. Os
diferentes níveis de desenvolvimento entre as sociedades eram explicados pela
ciência a partir da aptidão de cada povo a se adaptar a determinado espaço e
dominá-lo. Com os estudos de Darwin sobre a evolução das espécies, o conceito de
raças humanas ganhou um olhar social e economicista. (RÊGO BARROS, 2007, p.
69). Desta forma, a miscigenação no Brasil ganha um caráter negativo diante da
maioria de negros presentes no país, tornando-se desta forma necessário um
branqueamento da civilização. O negativismo da mestiçagem no Brasil continuará
presente até a geração de 1930, onde Gilberto Freyre sobre uma matriz culturalista
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e antropológica descreverá a mestiçagem sob aspectos positivos e importantes para
a criação da cultura brasileira, que no caso, possui a mistura racial como
particularidade e singularidade.
Na dinâmica socioeconômica, estas ideologias raciais não se apresentam de
uma forma direta, pois o racismo se coloca velado, descrito não pela origem, e sim
pela marca ou estereótipo (NOGUEIRA, 1983). A identificação do negro como
proletariado – identificação de fato e identificação simbólica, nos planos dos
estereótipos do branco sobre o preto – implicou, inevitavelmente, no início de um
processo lento de diferenciação social dentro do grupo étnico, como resultado da
qualificação da mão de obra no mercado de trabalho, da mobilidade profissional, do
recrutamento de trabalhadores especializados para funções de diversa hierarquia
social. (PINTO, 1998, p.244). Em outras palavras, a posição histórica objetiva e
ocupada pelos negros na sociedade brasileira, diante da ideologia tradicional
predominante de uma sociedade dirigida por brancos, criou obstáculos e barreiras
para ascensão social e econômica dos negros no Brasil.
A compreensão da emergência da questão racial, enquanto uma âncora
importante de problematização da questão social permite o entendimento do motivo
da racialização do discurso das ações afirmativas no Brasil, como um caminho
importante da auto-afirmação do negro enquanto sujeito da história e da sociedade.
Os movimentos sociais que se colocam a favor do debate de cotas ignoram a
cooptação dos segmentos negros na sociedade, onde a imagem da harmonia étnica
e racial como parte de uma concepção ideológica mais ampla da natureza humana
brasileira é associada a um mecanismo de legitimação destinado a dissolver as
tensões, bem como antecipar e controlar certas áreas do conflito racial.
(HASENBALG, 2005, p. 254).
Revisitar a atmosfera dos conflitos sociais no Brasil, problematizando a
questão racial, implica em entender o objetivo da política de ação afirmativa
enquanto uma política de reparação, justiça social, diversidade, que permite o
alcance dos direitos a todos os segmentos sociais e étnicos excluídos
historicamente. A racialização do discurso das cotas se coloca como um caminho de
entendimento da diversidade cultural como algo a ser tratado na sociedade brasileira
e na educação. A democratização do acesso ao ensino superior por meio de reserva
vagas sob requisitos de raça/classe descreve a necessidade da repartição de
espaços ocupados hegemonicamente por uma raça e classe dominante, onde a
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inversão desta lógica só ocorrerá por meio de uma discriminação positiva, visto que
a desigualdade social possui razões históricas materializadas na questão racial e
social brasileira, impedindo assim, a obtenção da igualdade de direitos de maneira
comum a todos os cidadãos. Neste sentido, as ações afirmativas possuem um
pragmatismo, exigindo do Estado a responsabilidade civil de extinguir o racismo nas
ações cotidianas, nos espaços públicos e privados.
A equidade11 é um conceito fundamental para a compreensão da igualdade
almejada pelas ações afirmativas, na medida em que prevê uma igualdade no
acesso aos direitos, mesmo que a desigualdade momentânea expressa na
discriminação positiva seja necessária para se concretizar a justiça social.
O conjunto das questões até aqui abordadas, justificam a importância do tema
“cotas na universidade” com foco na questão da raça, e apresentam os fundamentos
teóricos e práticos que determinaram a escolha deste tema.
O objetivo geral desta dissertação é verificar a relação entre a racialização do
debate presente na mídia e na sociedade sobre as cotas e a realidade das cotas na
UERJ, no que se refere à importância desta política não só para o acesso dos
estudantes negros, mas também para os carentes, indígenas e estudantes de
escolas públicas às universidades. Dentre os critérios para o ingresso pelas cotas,
os negros podem obter o acesso através das cotas raciais ou das cotas para escola
pública, o que também justifica a compreenssão da racialização para o acesso ao
ensino superior. Como desdobramento deste objetivo, será analisada a
aplicabilidade da política de cotas enquanto um mecanismo de direito, considerando
o direito como uma condição de acesso e permanência dos alunos cotistas na
universidade, em particular a UERJ.
No que se refere aos aspectos metodológicos da dissertação foi realizada
uma pesquisa empírica com entrevistas aos estudantes cotistas participantes na
pesquisa: “Política de Assistência ao Estudante Cotista da UERJ” durante o
semestre de 2008/2 na Faculdade de Serviço Social, buscando responder a lacuna
entre a importância das cotas para o acesso à universidade e a racialização do
debate das políticas de cotas no ensino superior. Com o desenvolvimento da
pesquisa, foi também realizado um estudo sobre as reais possibilidades de
11
Equidade: Conceito que prevê a igualdade não universal, ou seja, em função de desigualdades de determinados grupos sociais, a equidade propõe mecanismos de igualdade por meio de preferências legais a curto prazo.
- 21 -
permanência dos estudantes de cotas na universidade por meio da análise de seus
perfis, trajetórias sociais, dificuldades, estratégias de sobrevivência e sugestões para
driblar os desafios cotidianos na universidade.
A importância do acesso ao ensino superior através das políticas de cotas
será descrita e avaliada através de uma pesquisa documental sobre a legislação das
cotas da UERJ, com dados referentes a matricula, evasão, perfil e opção por tipo de
cotas a partir da base de dados da UERJ (SR-1) e do grupo de pesquisa da
Faculdade de Serviço Social: “Política de Assistência ao Estudante Cotista da
UERJ”. Também foi realizado um levantamento teórico e bibliográfico para
problematização do tema e diálogo com as diferentes posições intelectuais sobre as
políticas de cotas na universidade.
Para compreender estas reflexões na prática das políticas de ação afirmativa
na UERJ, as perguntas efetuadas durante as entrevistas realizadas com os
estudantes cotistas12 procuram dissertar sobre a trajetória escolar, a entrada na
universidade, discutindo o porquê do ingresso na universidade pelo sistema de
cotas, que tipo de cotas optou, pontuando o cotidiano acadêmico a partir do
conhecimento dos problemas, estratégias e sugestões em relação à permanência no
ensino superior. O conhecimento da trajetória dos estudantes cotistas permite
descrever a ampliação da política de ação afirmativa na universidade como uma
política multicultural, que além de reconhecer a diversidade das diferentes etnias
brasileiras, demonstra a importancia pragmática desta política como uma
possibilidade real de direito ao ensino superior.
A minha hipótese está, portanto, relacionada a necessidade da racialização
do discurso das políticas de ação afirmativas na universidade como um ponto
polêmico e necessário à abertura do diálogo com a sociedade em relação ao negro,
ao racismo no Brasil, as diferenças raciais, e a reflexão histórica para compreenssão
das desigualdades sociais brasileiras. No entanto, as políticas de ação afirmativa
não viabilizam apenas a vitória do reconhecimento das diferenças etnoculturais na
sociedade, elas de fato problematizam a educação brasileira e discutem a questão
do acesso ao ensino superior como um direito de todos os cidadãos, inclusive os
negros e pobres.
Subjacente ao direito do acesso às universidades se encontra a
12
As perguntas realizadas com os estudantes estão no Anexo desta dissertação
- 22 -
problematização da raça enquanto um mecanismo concreto para a democratização
do ensino superior. Por isso, os depoimentos dos cotistas da UERJ são
fundamentais para aferir a amplitude de uma política que procura trabalhar com a
diversidade cultural a partir de critérios econômicos, sociais e raciais, colocando no
universo acadêmico os contrastes e as diferenças existentes em nossa sociedade.
O presente trabalho terá a seguinte estrutura: o primeiro capítulo intitulado
“Teoria e História sobre a questão racial no Brasil” discute, a partir de um esboço
historiográfico e teórico, o sentido da escravidão e a costrução das estruturas sociais
no Brasil, descrevendo as desigualdades raciais,o surgimento das ideologias raciais
e a aplicabilidade destes valores nas relações sociais brasileiras, buscando desta
forma uma relação entre a raça e as políticas de ação afirmativa no Brasil. O
segundo capítulo, intitulado “O Histórico da adoção das Políticas de ação
Afirmativas no Brasil”, problematiza a adoção das ações afirmativas no Brasil,
compreendendo o modelo brasileiro, e a repercussão desta política nas
universidades, entendendo a participação e envolvimento dos movimentos sociais
como responsáveis pela materialização da política ação afirmativa como uma forma
de democratização, e acesso ao ensino superior. No terceiro capítulo: “A Política de
Cotas na UERJ” é realizado um estudo de caso, contextualizando a adoção das
políticas de cotas na UERJ. No quarto capítulo: “Trajetórias sociais: a importância
da política de cotas para o acesso a universidade”, será apresentada a pesquisa
realizada com estudantes cotistas da UERJ, por meio da sistematização das
entrevistas, dos perfis e das trajetórias sociais dos entrevistados. Por fim serão
realizadas as considerações finais do trabalho.
- 23 -
CAPÍTULO 1
TEORIA E HISTÓRIA SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL
- 24 -
O objetivo deste capítulo é realizar um perfil histórico das teorias científicas e
sociais que contribuíram ideologicamente para a construção do racismo no Brasil a
partir do século XIX, e que por sua vez, desdobraram-se na questão racial como um
campo de estudo responsável por elucidar as diferenças sociais entre negros e
brancos no Brasil.
Para a compreensão deste tema, o trabalho está dividido em quatro partes. A
primeira, intitulada: “O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais
no Brasil”, procura dissertar sobre as diferentes formas de escravidão,
desenvolvendo uma conceituação sobre este tipo de trabalho, e a justificativa para
uma remodelagem mercantil da escravidão moderna caracterizada pela submissão
da cultura africana como o alicerce do tráfico de escravos para as colônias
ultramarinas européias. Na segunda parte: “Abolição e Pós-Abolição: desigualdades
raciais e noções de liberdade” são aprofundadas novas visões da historiografia para
caracterizar as diferentes noções de liberdade e as relações sociais estabelecidas
durante a Abolição e o período Pós-Abolição. Na terceira parte, buscando preencher
as lacunas do debate e ampliar as discussões referentes às desigualdades sociais
entre negros e brancos no Brasil, são apresentadas e contextualizadas teorias
consideradas construtoras do racismo no Brasil. Por fim, na quarta última parte,
intitulada “Raça e Política de Cotas no Brasil”, estão relacionados os elementos
teorizados, ao longo do capítulo, problematizando a racialização do discurso e a
adoção das políticas de cotas no Brasil.
A análise teórica do racismo, enquanto uma ideologia que se materializa em
práticas cotidianas, auxilia o conhecimento da ausência direta dos conflitos que
denunciam a discriminação racial, o que permite a problematização da questão
racial como um alvo a ser atacado por políticas públicas direcionadas a reduzir as
desigualdades sociais no Brasil.
- 25 -
1.1 O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais no Brasil.
A escravidão se denomina como um tipo de trabalho que utiliza a mão de
obra forçada, no qual o trabalhador não possui o direito à liberdade individual, e não
ganha nada em troca por sua força de trabalho. A prática da escravidão, sempre foi
comum entre os mundos oriental e ocidental desde a antiguidade. Neste período da
História, os escravos eram adquiridos por meio de guerras, onde uma civilização
utilizava a outra como motim, ou seja, como o prêmio pela vitória e dominação, sem
que a justificativa de inferioridade entre as civilizações estivesse implícita no conflito
de maneira direta.
Na antiguidade o significado de barbárie e civilização esteve associado às
diferenças entre as culturas ocidentais e orientais, no que se refere às formas de
governo, à religião e também às estruturas sociais e urbanas que se desenvolveram
a partir do crescimento econômico e expansão das sociedades. Desta forma, a idéia
de superioridade e inferioridade adquiria significado por meio da construção de
impérios e dominação.
Ao longo dos processos históricos estes conceitos não se perderam,
ganhando novos significados associados as diferentes relações sociais construídas
entre a Europa e as novas civilizações descobertas na América e na África durante o
século XV, a partir da Expansão Marítima. A idéia de sobrepor os mares
desconhecidos em busca de novas rotas comerciais para a manutenção do
comércio com o Oriente, possibilitou o conhecimento de novas sociedades com
estruturas sociais, organizações e religião diferentes das conhecidas na Europa.
Neste choque cultural, as antigas noções de barbárie e inferioridade foram
retomadas pelos europeus como forma de obter o domínio das terras e riquezas
encontradas no Novo Mundo, e justificar a escravidão destas sociedades.
A diferença da utilização dos escravos na Idade Moderna significou uma
reconceituação da aquisição de mão de obra, que neste caso não abria mão da
guerra para aprisionar e subjugar o indivíduo, o diferencial seria a criação de uma
empresa, transformando esta prática em algo lucrativo e, sobretudo, em um
comércio que fornecia escravos da África para as colônias portuguesas, espanholas
e inglesas, através do domínio de uma civilização sob a outra e que acreditava na
transformação de bárbaros em civilizados.
- 26 -
O sistema escravista adotado pelos portugueses no Brasil como forma de
trabalho nos latifúndios agroexportadores, teve inicialmente a participação dos
indígenas, e posteriormente, com a lucratividade do tráfico de escravos, e do
aprofundamento das relações entre África e Portugal, os africanos passaram a ser
trazidos e vendidos no Brasil em grandes quantidades como mercadoria, e assim
inseridos em praticamente todos os setores da sociedade. Apesar da resistência dos
africanos e indígenas à aceitação e imposição ao trabalho, a tática portuguesa
utilizada para evitar associações entre os diferentes povos nativos foi o sistema de
assimilação cultural.13 Por isso, entre os séculos XVI e XVII, a idéia de racismo não
pode ser considerada, pois os mecanismos utilizados pelo colonizador português
para estruturação das relações sociais entre negros, indígenas e europeus não foi
uma perspectiva de diferenciação racial, e sim, de diferenciação cultural, onde a
forma de organização social e as características étnicas descreviam aspectos de
superioridade e inferioridade entre as sociedades.
Durante os séculos XVII e XVIII, o Brasil consolida as relações escravistas,
não só no âmbito da produção e do trabalho, como também no cotidiano da
sociedade. O negro reinventa a cultura africana misturando-a com os diferentes
hábitos e costumes portugueses. A mistura afro-brasileira não é vista com tanta
positividade pelos portugueses, que na dinâmica assimilacionista determina na
pirâmide social, nas instituições e no interior das relações sociais, o esclarecimento
do grupo branco como dominante. Esta dinâmica assimilacionista iniciada na
colonização toma força e ganha novas dimensões com as transformações
econômicas e sociais surgidas a partir do século XIX, criando novas formas de
compreender e justificar a organização social brasileira.
No Brasil, do século XIX, as fazendas passavam a se tornar empresas
(IANNI, 2004, p.18), e o avanço da produção de café possibilitou que os fazendeiros
passassem a conviver com a nova dinâmica do capital. A exigência do trabalhador
livre nas plantações de café criou novas contradições entre escravidão e liberdade.
A incompatibilidade estrutural entre o trabalhador livre e o escravo, no processo de
produção de lucro, determinou a opção do Estado em assinar a Abolição em 1888, e
13
O conceito de assimilação cultural é entendido como uma prática social forçada voltada para neutralização dos hábitos e costumes culturais da sociedade dominada. A sociedade assimilada passa a ser obrigada a seguir os padrões culturais do dominador, assumindo uma nova língua, religião, formas de se vestir e nacionalidade. A assimilação cultural determinou um caminho para inserção de novas culturas à sociedade colonizada, por meio da submissão e aceitação de práticas econômicas, políticas, e sociais ao longo da História.
- 27 -
incentivar um vasto programa de imigração. Neste contexto, novas ideologias
racistas são incorporadas na dinâmica do processo de assimilação cultural,
atribuindo ao cotidiano das relações sociais justificativas não apenas étnicas, mas
também raciais. (SCHWARCZ, 2005).
A importância da percepção do conceito de assimilação cultural como alicerce
para a compreensão da submissão cultural dos africanos e indígenas à cultura
portuguesa, possibilita uma discussão em torno das noções de branqueamento e de
democracia racial, consideradas como justificativas ideológicas para a
caracterização do tipo de racismo no Brasil. Para HASENBALG (2005, p.245)14, a
conseqüência da identidade racial fragmentada dos não-brancos e da cooptação de
parte do grupo, as aspirações políticas e econômicas de base racial são
transformadas em projetos individuais de mobilidade ascendente, com o resultado
de que grande parte das energias das pessoas de cor são absorvidas na questão
imediata de conseguir incrementos de bancura. Isto significa que o negro enquanto
sujeito histórico ficou refém das armadilhas culturais e econômicas oriundas do seu
papel enquanto mercadoria e força de trabalho na sociedade.
A condição do negro de ex-escravo somada as construções ideológicas que o
descreviam como inferiores ou menos desenvolvidos culturalmente, reafirmavam a
cultura européia como dominante, e contribuíram para a criação de barreiras a sua
mobilidade social responsáveis pela ausência do conflito social entre brancos e
negros em função da viabilização de uma identidade comum para ambos os grupos
socioculturais. Esta afirmativa possibilita uma crítica à assimilação dos negros e da
cultura negra, que contribui para a criação de uma identidade nacional híbrida,
construída e aceita sem conflitos, como se a sociedade brasileira fosse isenta de
preconceitos e diferenças raciais e culturais.
1.2 Abolição e Pós-Abolição: desigualdades raciais e noções de liberdade.
A noção de liberdade implícita na Abolição (1888), e no período descrito como
Pós-Abolição, possibilita a compreensão a respeito da idéia de uma herança da
escravidão como a justificativa para as desigualdades raciais existentes no Brasil. O
14 HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. MG: UFMG, Humanitas. 2005.
- 28 -
conhecimento dos possíveis alicerces epistemológicos que descrevem o racismo
como uma barreira à mobilidade dos negros no Brasil, determinou uma análise sobre
a história do período de emancipação dos negros15 não apenas como ex-escravos, e
sim, como cidadãos e sujeitos responsáveis por sua liberdade e individualidade. No
entanto, o alcance desta outra idéia de liberdade dissociada da herança da
escravidão, se encontra com obstáculos determinados pela construção de uma
ideologia dominante, caracterizada pelas diferentes formas de conceber o conceito
de mestiçagem, associado ao mito de democracia racial e o ideal de
branqueamento, arquitetados como alicerce da identidade nacional e do
pensamento social brasileiro. 16
O século XIX, para a história brasileira, implicou em uma sucessão de fatos
relacionados à desconstrução do Império e da criação, em 1889, do Estado
republicano. Este condizia com as expectativas do pensamento liberal difundido pela
Inglaterra, na medida em que previa novos pilares de participação política e
econômica, atribuindo à sua estrutura o laissez-faire e o trabalho livre como uma
forma de desenvolver e modernizar o país.
“A implementação do capitalismo em novas bases econômicas e psicossociais
constituiu um episódio de transplantação cultural. Ele não nasceu nem cresceu a
partir da diferenciação interna da ordem econômica preexistente (o sistema
econômico colonial). Mas vinculava-se a um desenvolvimento concomitante de
tendências de absorção cultural, de organização política e crescimento econômico,
que tinha seus suportes materiais ou políticos na economia colonial, sem lançar
nela as suas raízes. Em conseqüência, o salto ocorrido na esfera econômica não
corresponde, geneticamente, a um processo de diferenciação (contínua ou súbita)
das mesmas estruturas econômicas”. (FERNANDES, 1981, p.80)17
A influência da ideologia liberal não foi suficiente para varrer os traços
autoritários da sociedade brasileira e o perfil clientelista das relações sociais. O
Brasil manteve o modelo arcaico de desenvolvimento econômico e também de
instituição da propriedade privada a partir da implementação da Lei de Terras em
1850, que descrevia a posse de terra como uma mercadoria somente acessível por
meio da compra e venda, inviabilizando o modelo de sesmarias e o próprio acesso a
15
Um período que iniciou em 1888 com a Abolição e é considerado como inconcluso até a contemporaneidade por muitos movimentos sociais. 16 Os conceitos de mestiçagem, democracia racial, branqueamento e identidade nacional serão desenvolvidos ao longo do texto. 17 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Zahar Editores: SP, 1981.
- 29 -
terra à maioria da população, o que garantia a manutenção das relações coloniais
através do domínio político e social dos antigos senhores de engenhos, agora
“coronéis” e senhores do café.
A idéia de abolição, como forma de garantir a liberdade individual e a
igualdade de direitos18, permeava as associações religiosas inglesas desde o final
do século XVII. Esse grupo religioso puritano conhecido como quakers, criou
sociedades abolicionistas que condenavam a escravidão a partir da Bíblia, visto que,
perante Deus todos os homens eram iguais. A pressão provocada por esses
religiosos associados a outras sociedades abolicionistas determinou em 1807, a
aprovação do “Abolition Act” pelo parlamento inglês, onde ficava decretado a
abolição do tráfico de escravos na Inglaterra. No entanto, segundo o historiador José
Murilo de Carvalho (2008, p.16)19, a liberdade que interessava para essas
organizações religiosas era a ‘liberdade da alma’ e não propriamente a ‘liberdade
civil’. Mas as diferenças entre as idéias abolicionistas sob a noção humanista e
política como ocorreu inicialmente na Inglaterra, e posteriormente, nos EUA,
auxiliam na compreensão da construção dos direitos e na iniciativa da interferência
do Estado frente à ação dos ex-escravos para o alcance da propriedade, educação e
direitos políticos.
No Brasil, com a abertura dos portos às nações amigas em 1810, o
sentimento abolicionista britânico era caracterizado pelas propagandas de violência
da escravidão, e eram divulgadas pela impressa em forma de artigos que
denunciavam a atuação do tráfico de escravos na África.
Em 1823 no Brasil, José Bonifácio já alertava sobre a abolição da escravidão
sobre uma frente gradual, ou seja, a escravidão não poderia ser abolida de uma vez
só em todas as regiões do país. Além disso, o sistema de escravidão brasileiro foi
um dos únicos que aceitava a alforria, através da compra da liberdade do escravo
por meio de serviços ou até mesmo de economias salvas pelos próprios escravos a
partir de outras atividades prestadas20. Esta possibilidade de acesso à liberdade
viabilizou um aumento da população de libertos no Brasil, e de um conseqüente
18
Para maior compreensão do texto a liberdade individual é entendida como alcance da autonomia, e o conceito de igualdade como acesso aos direitos. 19 CARVALHO, José Murilo. Em Nome de Deus. In: História da Biblioteca Nacional, no. 32. Ano 3, maio 2008.p.16 20 Estes escravos ficaram conhecidos como escravos de ganho e foram muito retratados pelo pintor francês Jean Baptist Debret como escravos que vendiam laranjas, carregadores de água, entre outras formas de trabalho informal comuns no período imperial (1808/1889)
- 30 -
ajustamento destes indivíduos à economia nacional, onde muitos escravos se
inseriam no setor de prestação de serviços ou de profissões liberais, e na maioria
das vezes adquirindo escravos como mão de obra. Como libertos, a expressão da
grande maioria de ex-escravos foi manterem-se em áreas de baixa remuneração.
Apesar da historiografia omitir a participação de muitas resistências à
escravidão, a luta pela liberdade no Brasil se expressou por meio de diferentes
anseios, mas, no que se refere à liberdade individual, e ao alcance da igualdade
civil, a abolição acabou marcada como uma vitória das elites brasileiras pela
assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel. As
organizações abolicionistas no Brasil entendiam a liberdade como uma abertura
para o trabalho livre como forma de preencher as exigências da elite cafeeira
dominante, que diante da adoção da primeira lei que proibia o comércio de escravos
- a Lei Eusébio de Queiroz assinada em 1850 - passou a incentivar junto ao Estado
a implementação do trabalho livre a partir da mão de obra imigrante.
Em função da abolição da escravidão nas ex-colônias espanholas - como o
Peru e a Venezuela em 1854, e da abolição nos EUA por Lincoln em 1865, as
resistências no nordeste e na região norte no Brasil, que se formaram neste período,
incitavam o fim da escravidão por meio de reivindicações que denunciavam a
violência no cativeiro, incentivando a fuga dos escravos como um caminho para o
alcance da liberdade. Lideranças importantes como a de José do Patrocínio,
comprometeram a autoridade senhorial e contribuíram para a própria crise do
escravismo. As fugas coletivas de escravos, a Lei do Ventre Livre, assinada em
1871, que previa a liberdade dos filhos de escravos nascidos a partir desta data, a
Lei dos Sexagenários, em 1885, que libertava os escravos com mais de 60 anos, e a
atuação do movimento abolicionista expresso por uma pequena elite mulata nas
figuras de Antonio Rebouças e Joaquim Nabuco que escreveram respectivamente
as obras: Abolição imediata sem indenização (1883) e O abolicionista (1883),
descreviam a cisão do trabalho escravo em prol da liberdade.
Neste panorama histórico, o primeiro decreto assinado de emancipação dos
escravos foi em 1884 no Ceará. E em 1888, se extinguiu o escravismo no Brasil sob
muita comemoração da liberdade dos escravos pela assinatura da carta de alforria
pela princesa Isabel. A euforia em torno da liberdade determinou a queima de todos
os arquivos sobre a escravidão por Rui Barbosa, como forma de apagar da História
- 31 -
do país os longos anos considerados como império de infortúnios, abrindo um novo
momento marcado pelo Brasil do trabalho livre.
Como uma tacada para salvar a crise política geral que assolava o império
português, no século XIX, a escravidão trouxe a liberdade e a visibilidade política do
império, que com seus dias contados, não imaginava perder com este ato o apoio
dos fazendeiros do Vale do Paraíba. Segundo Lilia Schwarcz (2008, p.20)21 estava
inaugurada uma maneira complicada de lidar com a questão dos direitos civis. Sem
a compreensão de que a abolição era o resultado de um movimento coletivo,
permanecíamos atados ao complicado jogo das relações pessoais, suas
contrapressões e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo. Nova
versão para uma estrutura antiga, em que as relações privadas se impõem sobre a
esfera pública de atuação.
A abolição trouxe outros problemas a serem tratados pelo Estado, na medida
em que a comercialização do café e a racionalização dos negócios relacionados à
agricultura contribuíram para uma reelaboração da fazenda de café nos termos
organizacionais referentes: à terra, ao capital, à técnica e à mão de obra. Segundo
IANNI (2004, p.17),22 a opção pelo preenchimento da mão de obra com base no
trabalhador livre exigida pela reestruturação das fazendas cafeeiras, não esteve
associada à utilização do negro como ex-escravo, e sim, pela adoção do imigrante, o
que levou ao negro a formação de uma reserva de mão de obra.
O motor da economia era acionado pelas plantações de café, que ocupavam
o primeiro lugar no consumo europeu. Nas fazendas do Oeste Paulista a produção
ganhava novas tecnologias para o cultivo e transporte do café. Os senhores do café
investiam em ferrovias, bancos e outras formas de negócio, dirigindo-se muitas
vezes para os centros metropolitanos da época, como São Paulo.
A atmosfera liberal e industrial que se inseria no Brasil no final do século XIX,
acompanhava as mudanças relacionadas à terra como propriedade e também a
novas formas de trabalho surgidas com o fim da escravidão. A inserção dos ex-
cativos no trabalho determinaria um investimento e atualização do escravo,
enquanto trabalhador livre aos novos meios de produção. Nesta nova atmosfera
econômica liberal, a noção de liberdade e cidadania traria perspectivas de inclusão
21
SCHWARCZ, Lilia. A santa e a dádiva. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. No. 32. Ano 3. Maio, 2008.p.20. 22 IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. SP: Editora Brasiliense, 2004.
- 32 -
do ex-cativo à sociedade, onde o trabalho valeria um preço alto capaz de atingir a
propriedade privada.
O Estado brasileiro havia financiado a imigração anteriormente à abolição
como uma alternativa à suposta escassez de mão de obra avaliada como um custo
menor no gasto com a força de trabalho frente à crise escravista e à pressão inglesa
para a adoção do trabalho livre. A entrada de imigrantes se intensificou no período
pós-abolição sob a justificativa de uma incompatibilidade estrutural entre o
trabalhador livre e o ex-escravo.
“Reagiram os grandes fazendeiros sem descartar a possibilidade dos imigrantes de
se tornarem proprietários de pequenas glebas. (...) A fórmula que propunham e que
acabaram implantando era a de que o imigrante deveria conquistar a terra pelo
trabalho”. (MARTINS, 2004, p.32)23
A partir de 1870 os imigrantes começaram a fazer parte das forças produtivas
nas fazendas produtoras de café, descrevendo novas relações econômicas e
também de acesso à propriedade, onde num regime de terras livres o trabalho
deveria ser cativo, e no regime de trabalho livre a terra tinha que ser cativa.
(MARTINS, 2004).
A compreensão da terra como propriedade e fonte de poder no Brasil implica
na valorização do meio rural como fonte de riqueza. O fim da escravidão não foi algo
aceito pelos fazendeiros com naturalidade, e foram criados sistemas para manter o
trabalhador preso à produção por meio do acesso à terra, como os sistemas de
parceria: onde os trabalhadores livres arcavam com as despesas da terra e da
produção e o lucro era dividido pela metade entre colonos e parceiros. Outro sistema
foi o colonato, caracterizado como um regime de base familiar, onde o colono
recebia o encargo de produzir o café e pagar com a colheita uma quantia específica
ao fazendeiro pela utilização da terra.
Estas novas formas de acesso à terra viabilizadas pela compra e pelo
domínio da propriedade, corresponderam as primeiras idéias clientelistas entre
camponeses e fazendeiros, que, com a processualidade histórica, se desdobraram
em relações políticas de poder, de submissão, onde o camponês passará a se
prender à propriedade por meio do trabalho, tendo em vista, a impossibilidade do
mesmo de comprar a terra. Estas relações sociais somadas ao crescimento urbano 23 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. SP: Editora Hucitec, 2004.
- 33 -
e à industrialização determinaram, gradualmente, a desvalorização do campo e do
camponês como força de trabalho perante a adoção de novos meios de produção
para arcar com a agroexportação.
Para IANNI (2004), na medida em que a cultura urbana se desenvolvia com o
fim da escravidão, novas noções de liberdade relacionadas à ordem democrática
surgem, criando uma contradição entre cidade e campo, expressa nitidamente na
preferência de trabalhadores livres aptos ou não a trabalhar frente às novas
exigências da economia brasileira.
Para GOMES (2008, p.2)24, os ex-escravos reagiam à inexistência de políticas
públicas no pós 1888 para incorporar milhares de pessoas a uma sociedade até
então de cidadania restrita por meio do acesso à terra, ao trabalho, e à educação.
Mas o silêncio sobre a integração dos ex-escravos e os limites da cidadania,
misturado à truculência contra a população pobre e urbana, sugere a
institucionalização de um modelo – nem sempre explicito, mas vigente em práticas e
políticas públicas adotadas – de intolerância racial que seria adotada no século XX
pelas elites e pelo poder público do país civilizado.
Segundo GOMES (2008), a grande migração de famílias negras do campo
para as cidades no inicio do século XX reforçou a associação da criminalidade à
raça e à origem social. Numa guinada ideológica, crimes diversos eram atribuídos a
uma suposta natureza da população negra e a sua herança da escravidão, ou seja,
fruto de cidadãos incompletos (em termos raciais e sociais para cientistas da época)
numa nova ordem burguesa, capitalista e urbana.
O escravo é entendido como uma mercadoria, possuindo uma interpretação
econômica, apresentando-se como coisa. A situação de desigualdade posta nas
diferentes classes após o período de Abolição tornam-se heranças diretas do
período escravista, assim como o racismo e a discriminação racial aparecem como
conseqüências inevitáveis do escravismo. A persistência do preconceito e da
discriminação não é ligada ao dinamismo social do período pós-abolição, mas é
interpretada como um atraso cultural, devido ao ritmo desigual da mudança das
varias dimensões do sistema econômico, social e cultural. (HASENBALG, 2005,
p.80). Este tipo de compreensão sobre o escravo no Brasil, colocou a Abolição como
algo incapaz de gerar mudanças políticas, econômicas ou sociais. O escravo passou
24
GOMES, Flávio; ARAÙJO,Carlos Eduardo Moreira. A igualdade que não veio. In: Coleção Gilberto Ferreza. Acervo Instituto Moreira Salles, 2008.p.1/4.
- 34 -
a ser interpretado não como um sujeito histórico que assume papéis de lutas e
resistências, e sim, como um componente de um antigo regime que herdou na lógica
da estratificação racial o legado de subordinação.
Em 1970, novas leituras são apresentadas à historiografia25 frente ao
problema da escravidão, buscando um diálogo com as exigências do Movimento
Negro da época. A historicidade das identidades e classificações raciais tornou-se
questão central para o entendimento do processo de emancipação escrava e das
formas como as populações afro-descendentes e as sociedades pós-emancipação
lidaram culturalmente com os significados da memória do cativeiro. (RIOS, 2005,
p.29).26 A escravidão contemporânea não era mais vista como um modelo único
adotado pelos diferentes países europeus, apenas de exploração econômica, isenta
de sujeitos sociais. Ela ganhava forma e particularidades, histórias que se
diferenciavam em resistências, alforrias, e trocas culturais que traziam à América a
diversidade de narrativas e fontes por meio da metodologia comparativa.
Sob o ponto de vista histórico, para o entendimento do pós-abolição, no
século XVIII, as novas noções de liberdade econômica e cidadania política que
começavam a ser engendradas no bojo das revoluções atlânticas tiveram que
conviver com novos desafios econômicos, mas também políticos e culturais –
colocados pela problemática da emancipação.(COOPER, 2005, p.15)27
A emancipação do escravo enquanto cidadão, não abriu brechas para a
construção da cidadania do negro, e sim para manutenção de uma desigualdade
iniciada nos períodos do cativeiro, que ratificou-se por meio de ideologias
legitimadoras do racismo e da discriminação por meio de mitos de uma mestiçagem
positiva que corroborava para a aparência de uma suposta democracia racial.
Subjacente a estes discursos, a idéia de um branqueamento da população por meio
da miscigenação com o maior número de brancos, somados ao desenvolvimento
econômico proveniente da exportação e produção de café, contribuíram para o
incentivo do Estado à imigração européia, e a conseqüente afirmação do negro na
linha da exclusão.
25
A historiografia entende este período como a expansão de estudos que envolvem o individuo e a cultura, onde a História busca interdisciplinaridade com a antropologia cultural e sociologia, sofrendo grande influência da nova escola de História francesa dos Annales. Neste período a história cultural e social ganha força entre os historiadores. Ver: BURKE, Peter. O que é História cultural? Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. 26 RIOS, Ana Lugão, Mattos, Hebe. Memórias do cativeiro.Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 27 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C., SCOTT, Rebecca. Além da escravidão.Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
- 35 -
“A apatia, intolerância e imprevidência da massa predominantemente de cor da
população era um fator crucial no diagnóstico do atraso econômico brasileiro feito
pelas elites. Estas supostas características da classe baixa nativa eram isoladas
das condições históricas que impediam seu acesso à propriedade e sua
socialização na disciplina do mercado de trabalho livre. Consequentemente, a
imigração européia era colocada como a solução, a curto prazo, para o problema
causado pela abolição da escravidão, bem como uma contribuição, a longo prazo,
para o branqueamento da população do país”. (HASENBALG, 2005, p.247)
O entendimento das barreiras à mobilidade social do negro na sociedade não
conseguem ser justificativas somente por meio da compreensão de uma herança da
escravidão. É importante relacionar a noção teórica de estrutura de classes,
estratificação social e racial atribuindo a cada uma destas transformações
significados históricos. Estes três conceitos devem ser definidos para a
compreensão das desigualdades existentes. Para HASENBALG (2005), a
estratificação social implica o processo individual de obtenção do status, bem como
a compreensão e distribuição da desigualdade social. A estrutura de classes de
matriz marxista analisa as classes sociais como elementos fundamentais de estudo
e compreensão das relações sociais organizadas a partir da exploração capitalista.
E a raça enquanto um conceito social e cultural se encontra na interseção da classe
social e da estratificação social para o aprofundamento das dificuldades de
mobilidade social do negro no Brasil.
Esta dinâmica de abordagem cultural das estruturas sociais, políticas e
ideológicas construídas historicamente, justificam a incongruência de nossa
identidade nacional e, sobretudo, a dificuldade do negro de se compreender
enquanto sujeito histórico de seu processo emancipatório, criando assim, um outro
fator responsável pela sua exclusão na sociedade: a questão racial.
1.3 O histórico das ideologias raciais e sua aplicabilidade nas relações
sociais brasileiras.
Trabalhar com conceitos nas ciências sociais implica em duas formas de
abordagem: uma forma analítica – onde um conjunto de fenômenos faz sentido
apenas no corpo da teoria; e a forma nativa – onde o conceito encontra-se
- 36 -
relacionado ao sentido do mundo prático. (GUIMARÃES, 2003, p. 95)28. Com base
nestas diferenças conceituais, as ciências sociais entendem a cultura como o
pressuposto da compreensão da vida humana, o que determina a utilização de
alguns conceitos como o de raça, onde as interpretações e utilização excedem o
significado apenas teórico, abrangendo idéias sociais, históricas, e do uso em
práticas cotidianas.
O termo “raça” foi concebido pela Biologia e Antropometria29 durante o século
XIX, para estudar a espécie humana a partir da divisão em subespécies, tal qual o
mundo animal. Porém, esta divisão estaria associada à compreensão das diferenças
entre os seres humanos a partir do desenvolvimento psíquico, intelectual, físico, e de
valores morais presentes na sociedade. Estas subdivisões criaram a idéia de
racismo, que passou a ser utilizada por meio de fundamentações de hierarquias
raciais entre as populações humanas gerando no convívio social ideologias de
diferenças raciais que determinaram práticas cotidianas e visões doutrinárias ao
longo da história. (GUIMARÃES, 2003, p. 96).
O conceito de “raça”, cientificamente, implica em uma construção social, que
na Sociologia, procura estudar as identidades sociais enquanto um campo de cultura
simbólica. A definição da população diferencia-se, portanto, do conceito de etnia que
se encontra relacionado aos lugares geográficos de origem onde demanda a
identificação de um grupo por pertencimento e questões culturais.
A difusão da interpretação social do conceito de raça durante o século XIX
iniciou-se na Europa a partir de estudos científicos que procuraram justificar o
imperialismo e a divisão de classes por meio de análises raciais e estudos descritos
pela eugenia – idéia de pureza das raças. A antropologia e a ciência analisavam os
níveis de desenvolvimento físico por meio de medições de crânios humanos que
deram nomes a três grandes grupos raciais: o negroíde (negros), o caucasoíde
(brancos) e o mongolóide (asiáticos). Dentro destas categorias, as diferentes etnias
e culturas se agrupavam e eram identificadas e analisadas como objetos por autores
como Gobineau e Spencer30.(RÊGO BARROS, 2007, p.69).
28
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com raça em sociologia? Educação e Pesquisa: São Paulo. V.29, n1, p.93-107. jan. /jun. 2003. 29
Antropometria: ciência precursora da antropologia que se preocupava em estudar as diferenças humanas a partir da medição dos crânios. 30
Hebert Spencer (1820/1903), foi um filósofo inglês e representante do positivismo. Publicou obras como: “Estatística social”, “Sistema de filosofia sintética” e ‘O individuo contra o Estado’ (1884). Em seus estudos
- 37 -
Com os estudos de Darwin sobre a evolução das espécies, o conceito de raças
humanas ganhou um olhar social e economicista. Em tempos de imperialismo, os
países europeus transcreveram o olhar empírico darwinista para uma dimensão
social, responsável em analisar a adaptabilidade dos seres humanos e seus níveis
cognitivos, ou seja, o desenvolvimento social já estudado pela antropologia ganhou
um caráter evolutivo, e as raças humanas passaram a adquirir hierarquias de
importância. (RÊGO BARROS, 2007, p.69)
Neste sentido, a raça assumiu um significado histórico e social, ganhando
interpretações diversas que problematizaram a estrutura e organização da
sociedade durante o século XIX, saindo da Europa e ganhando força ideológica em
diferentes partes do mundo.
No Brasil, o desdobramento social do conceito de raça esteve associado as
transformações políticas e econômicas que o país sofria neste período devido ao
crescimento da exportação do café, a crise da escravidão e do próprio império. Para
as elites nacionais da época era importante manter as hierarquias sociais por meio
de definições de critérios diferenciados para se estabelecer a cidadania, e com isso,
a idéia racial, apesar de complexa, acabou fazendo sucesso como justificativa e
estabelecimento das diferenças sociais por meio de estudos científicos e
antropológicos financiados pelo imperador Dom Pedro II.
A Ciência31 entra no Brasil como campo de estudo, no final do século XIX,
como algo experimental baseado em diálogos com a sociologia de Durkheim e Max
Weber. Os adeptos a este campo de estudo, em grande maioria, compunham a
mesma elite que tinha acesso à educação e se formava em faculdades de Direito e
Medicina espalhadas pelo país. As faculdades e institutos se caracterizavam por
espaços dedicados às discussões sobre a sociedade e a política, onde os
acadêmicos construíam os primeiros estudos acerca da compreensão das relações
sociais e das diferenças sociais brasileiras.
As primeiras idéias sobre as diferenças culturais e as justificativas
civilizatórias se concentraram na noção de etnocentrismo32 e de degeneração das
procurava aplicar as idéias do darwinismo social para justificar a divisão de classes e o imperialismo, procurando comprovar que ambos eram fruto da seleção natural. Joseph Arthur de Gobineau (1816/1882) foi um filósofo francês famoso por teorizar as raças no campo dos estudos antropológicos e sociológicos no século XIX. Escreveu a famosa obra “Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas” (1885), um dos primeiros trabalhos sobre eugenia e racismo publicados na época. 31 A ciência enquanto campo de estudo da Medicina, Antropologia, Geografia e Direito, foram as primeiras áreas de pesquisa no Brasil durante o século XIX. Para maiores informações ver: SCWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil 1870-1930. Sp: Companhia das Letras, 2005. 32 Etnocentrismo: conceito que estabelece a superioridade cultural de uma sociedade sob outra, no que se refere aos aspectos civilizatórios e sócio-culturais.
- 38 -
espécies como uma maneira de conceber a civilização européia como uma
sociedade central e superior. E por isso, a viabilização da assimilação cultural foi
determinante para submissão social das sociedades não européias, onde os
portugueses acabaram por impor os hábitos culturais, língua e religião aos indígenas
e africanos como mecanismos de dominação.
O termo raça, introduzido na discussão social, foi concebido para entender as
primeiras noções de cidadania33, onde a análise do tipo físico determinava o grau de
evolução social. Mas antes de estabelecer uma idéia evolucionista das raças
baseada no que conhecemos como darwinismo social, os cientistas estudavam
concepções distintas por meio da idéia de monogenismo e poligenismo. No primeiro
caso, a teoria se aproximava das descrições bíblicas de que apenas um homem
haveria criado a raça humana, enquanto o poligenismo implicava uma idéia de
diferenciação entre espécies humanas, o que gerou um estudo de caso por meio da
frenologia e antropometria, ou seja, um campo de pesquisa que classificava os seres
humanos em graus evolutivos a partir da análise dos crânios. Em termos científicos
ambos os debates suscitaram questões de cunho político cultural e embasaram suas
teorias no evolucionismo por meio da hierarquização dos povos, e da própria raça
humana, criando espécies e aptidões distintas. Mas o aprofundamento do debate
evolucionista se ampliou por meio da inclusão da idéia darwinista associada a
“Teoria da Evolução das Espécies” 34.
“Determinada como darwinismo social ou teoria das raças, essa nova perspectiva
via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que não se transmitiam
caracteres adquiridos, nem mesmo pelo processo de evolução social. Ou seja, as
raças constituíram fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento,
por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado
eram duas: enaltecer a existência dos tipos puros – e portanto, não sujeitos ao
processo de miscigenação – e compreender a mestiçagem como sinônimo de
degeneração não só racial como social”.(SCHWARCZ,2005, p.5835).
33 A compreensão da cidadania por meio da diferenciação racial se difere da visão dos contratualistas clássicos da política e das teorias a respeito da igualdade civil difundida por John Locke. A idéia de uma hierarquização entre as raças a partir do século XIX surgiu com as teorias evolucionistas, e permitiu a criação de legislações no mundo neocolonialista imperialista para legitimar o domínio europeu na África e na Ásia, e consequentemente classificar o tipo de política e administração a ser utilizada em cada sociedade dominada. 34
Teoria criada pelo cientista inglês Charles Darwin descrita no livro: “A Origem das Espécies”. 35 SCWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil 1870-1930. SP: Companhia das Letras, 2005.
- 39 -
O darwinismo social se caracterizou como uma teoria que se desdobrou dos
estudos de Charles Darwin, que descrevia a evolução por meio da capacidade das
espécies de adaptação entre a competição do mais forte sob o mais fraco. Tais
conceitos foram utilizados em estudos voltados para a diferença entre os seres
humanos, e acabaram sendo utilizados como justificativas para dominação
imperialista do final do século XIX, a partir de teorias fundamentadas na
superioridade de uma raça sobre outra. As raças humanas eram, portanto,
entendidas como espécies diversas, em sentido de cores, características físicas, tipo
de cabelo, nariz, rosto, e cérebro, associado às regiões de contingentes
predominantes onde se dividiam entre Europa, Ásia e África. O branco, o negro e o
amarelo eram compreendidos como raças puras, e o mestiço era concebido como a
degeneração da raça humana, variando o grau de acordo com a raça predominante
ao qual havia sofrido o entrecruzamento. (SCHWARZ, 2005)
A eugenia, enquanto um conceito associado a purificação das raças, aparecia
legitimando os ‘desvios do progresso ocidental’, visto que a miscigenação enquanto
uma forma degenerativa da espécie criava um ser humano híbrido, no sentido de
inferior e fraco, sem qualidades suficientes para assumir as características dos seus
ancestrais. Desta maneira, o sentido de degeneração voltava-se para a
compreensão das desigualdades sociais, como: a pobreza, as doenças mentais,
características físicas indesejáveis, hábitos culturais, religiões, casamentos inter-
raciais, entre outras práticas sociais e culturais como um reflexo da inferioridade
racial.
No Brasil estas idéias coincidiram com a primeira geração de modernistas do
ano de 187036 que procurou pensar os caminhos do desenvolvimento nacional na
perspectiva de uma nação moderna. Questionava-se a monarquia enquanto um
sistema de governo que negligenciava os anseios da nação, propondo a República
como um governo de todos, e criticava-se a escravidão como um trabalho que
violentava as faculdades humanas e a liberdade exigindo a adoção do trabalho livre.
Porém, a construção de um novo Estado não estabelecia inclusão de novos
cidadãos e o acesso político a todos de forma participativa; por isso, a fusão das
idéias cientificistas ao projeto hegemônico das elites cafeicultoras determinaram
diferentes perspectivas e rearranjos teóricos em pensar uma nação mestiça.
36
A geração de intelectuais de 1870 pode ser caracterizada como o período dos pré-modernistas, representados por Joaquim Nabuco, Silva Jardim, José do Patrocínio e Euclides da Cunha.
- 40 -
Pensada inicialmente de forma negativa, a mestiçagem era utilizada para
explicar o atraso do Brasil em relação ao desenvolvimento socioeconômico. A
escravidão dos africanos, também passou a ser justificada de acordo com o
darwinismo social, enraizada nas concepções do monogenismo e da inferioridade da
raça negra propícia apenas para o trabalho. Portanto, a mistura do português com o
africano implicava na degeneração da espécie sob uma ótica negativa, onde seria
necessário o embranquecimento da população por meio do incentivo da imigração
européia. Com a entrada de imigrantes para trabalhar nas lavouras de café, a
ideologia racista ganhava maior atenção, na medida em que os imigrantes eram
visto como uma mão de obra mais qualificada que o ex-escravo, tanto em termos de
especialização para o trabalho como por justificativas raciais de superioridade do
branco em relação ao negro. Esta determinação somada à ausência do
reconhecimento do negro enquanto cidadão, bloqueou os principais canais de
mobilidade social em massa do negro livre, visto que além de sofrer enquanto
trabalhador livre frente à necessidade de ter que admitir um preço para sua força de
trabalho, ele agora deveria competir com uma outra cultura que ideologicamente era
considerada racialmente e intelectualmente mais apta ao trabalho livre.
- 41 -
Na imagem de Modesto Brocos37 na famosa tela conhecida como a Redenção
de Cã, a mulher mestiça e a mulher negra agradecem o nascimento da criança
branca sob os olhares do homem branco ao fundo. A obra de Broccos sugere a
ideologia de branqueamento da época, que colaborou com o incentivo à imigração
européia como uma saída para o Brasil degenerado pela mestiçagem.
Buscando uma possibilidade de respostas, alguns intelectuais do final do
século XIX se opunham a idéia de hierarquização das raças e da mestiçagem como
algo negativo à sociedade, como foi o caso do médico Juliano Moreira, e de
intelectuais como Roquete Pinto e Arthur Ramos da primeira geração de
modernistas do século XX. Estes intelectuais atribuíram o atraso do Brasil não a
uma justificativa racial, mas à ausência do Estado no fornecimento de políticas
públicas na área da saúde e educação. Estas políticas não possuíam uma
legitimação no direito, elas eram interpretadas como alternativas à questão social, e,
sobretudo, a aplicação social sob uma via civilizatória e higienista para o controle da
pobreza. Tal iniciativa culminou na Revolta da Vacina em 1904.
A noção de que o problema poderia não ser da nação, determinou que a
identidade nacional passasse a ser pensada de uma forma diferente a partir da
geração de 1930, onde o conceito científico de raça foi substituído pela idéia
culturalista, ou seja, as diferenças raciais não eram encaradas por meio das
diferenças físicas, e sim, pela diversidade cultural, atribuída à contribuição das
diferentes raças à construção da identidade nacional e a sociedade brasileira.
A obra de Gilberto Freyre “Casa Grande e Senzala” é, de todas, a mais
emblemática ao traduzir em suas longas páginas as relações sociais e culturais
entre os negros da senzala e os senhores da casa grande. Descrevendo um
convívio diário que aponta para a construção de uma visão positiva da mestiçagem
por meio de conceito de: hibridismo38.
Segundo Freyre, as influências culturais para a construção e formação da
sociedade patriarcal brasileira foram múltiplas. O negro possui uma contribuição
maior do que a do indígena que foi em maioria assimilado pela igreja e pelos hábitos
cristãos. Ao contrário, os negros passaram a conviver nas intimidades dos senhores,
circulando e atuando no interior das casas grandes e senzalas, onde a cultura negra
37
Modesto Brocos: Redenção de Cã, 1895. Rio de janeiro, Museu nacional de Belas Artes. 38
Hibridismo: conceito criado por Gilberto Freyre que entendia a fusão das três raças - negra, branca e indígena como formadoras da identidade nacional, em uma mistura que criava uma nação híbrida.
- 42 -
africana infiltrou e misturou-se à portuguesa nos dialetos, na alimentação e na
criação de muitos filhos de senhores.
“O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que
aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da
história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser impossível –
insistimos neste ponto – separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da
qual abafaram-se nele muitas das melhores tendências criadoras e normais para
acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se assim o africano um
decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade e
raça’, gritam então sociólogos arianistas. Mas contra esses gritos se levantam as
evidências históricas – as circunstancias de cultura e principalmente econômicas -
dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi
patogênico, mas a serviço do branco, como parte irresponsável de um sistema
articulado por outros”. (FREYRE,2003. p.404)
Nas palavras de FREYRE (2003), a cultura mestiça é positiva e uma criação
tipicamente brasileira, da fusão das três raças. Sendo assim, o fardo do atraso, da
exclusão e da pobreza não são estigmas raciais, mas conseqüência de um sistema
patológico como a escravidão, caracterizada como um sistema degradante.
Pensar a identidade nacional como algo híbrido a partir de uma visão
culturalista, ampliou a idéia de compreender a História do Brasil por meio de outras
interpretações. Autores como: Caio Prado Jr. em Formação do Brasil
Contemporâneo, Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, e a já comentada
obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre completavam a tríade de
pensadores e historiadores que após a revolução de 1930 romperam com o ideal
racialista aderindo a influências sociais, econômicas ou culturais para o
entendimento da formação da sociedade brasileira, na tentativa de contribuir para a
construção do novo Estado idealizado no período em que viveram.
Neste cenário, a idéia de ‘democracia racial’ ganha força como uma marca
nacional, descrita no convívio harmônico entre as três raças: branco, negro e
indígena. O conceito de democracia racial contribuiu para construção do mito da
inexistência do preconceito racial no Brasil, e da legitimação de uma bandeira de
igualdade cultural entre as raças, que, em suma, ratificava a hegemonia da raça
branca, na medida em que o hibridismo associado à compreensão da formação da
identidade nacional criava uma atmosfera que abafava os conflitos sociais presentes
- 43 -
no interior da sociedade brasileira cuja dominação social e cultural se dava sob uma
maioria branca.
“Após a abolição final, o racismo, a discriminação e a segregação geográfica dos
grupos raciais bloquearam os principais canais de mobilidade social ascendente, de
maneira a perpetuar graves desigualdades raciais e a concentração de negros e
mulatos no extremo inferior da hierarquia social. Se quantidade restrita de
mobilidade social individual foi menos que suficiente para realizar a propalada
democracia racial, vemo-nos levados a perguntar por que afiliação racial não
conseguiu proporcionar o laço coletivo para estimular as demandas dos negros por
mobilidade social grupal e pela diminuição das desigualdades raciais”.
(HASENBALG, 2005, p.233).
De acordo com HASENBALG (2005) a democracia racial não passou de
formas ideológicas que contribuíram para cooptação social através da mobilidade
social controlada dos homens de cor - normalmente de membros mais claros;
associada a formas sutis de ocultamento de divisões raciais. Na realidade, o
preconceito racial segundo o autor, se tornava uma barreira à ascensão social dos
negros e a ela se somava uma ideologia que previa o próprio ocultamento do conflito
entre as diferentes raças. Posteriormente, a partir da década de 1950, a discussão
da ausência do preconceito racial na sociedade se ampliava, já que legalmente o
preconceito e o racismo eram considerados práticas inconstitucionais com a
implementação da Lei Afonso Arinos contra discriminação racial criada em 1951(Lei
no1390/51)39.Em função da ilegitimidade do racismo enquanto prática social, a
discriminação se construía sob os alicerces da classe e do status40 do cidadão, visto
que conforme a democracia racial todos seriam iguais.
Segundo NOGUEIRA (1983)41 que discutiu a “situação racial” no Brasil a
partir de uma metodologia comparativa com os EUA, o preconceito racial se
expressa de duas formas: uma como preconceito de marca e a outra como
preconceito de origem. Dada a historicidade da identidade brasileira enquanto uma
nação híbrida e a dificuldade do entendimento do racismo enquanto uma forma
explícita de expressão, o preconceito de marca conceitualmente implica na
reformulação do preconceito de cor, onde o preconceito racial exerce manifestação
39 Após a Constituição de 1888, foi sancionada a Lei Caó no7716/89) em 1889, penalizando o racismo como crime inafiançável. 40 Conceito utilizado para compreensão do lugar social sob a organização das hierarquias. 41 NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e de origem. In: Tanto preto quanto branco: estudo das relações raciais. SP: T.A Queiroz, 1983.
- 44 -
por meio da aparência, dos traços físicos, fisionomia, gestos e sotaque.
Diferentemente, o preconceito de origem se expressa em padrões étnicos bem
definidos, onde o preconceito racial se define enquanto um padrão segregacionista,
o que exemplifica a “situação racial” dos EUA.
Para NOGUEIRA (1983, p.80) o preconceito de marca no Brasil impossibilita
a definição do tipo que se atribui ao grupo discriminador e discriminado, em função
da concepção de branco e não branco, que varia de acordo com o grau de
mestiçagem, de individuo para individuo, de classe para classe e de região para
região. A incongruência dos limites do preconceito de marca, extremamente
marcada pela assimilação, viabiliza a confusão da sua expressão em uma luta de
classes, e consequentemente, evita discuti-lo por receio de que a própria discussão
seja em si racista.
A atmosfera de harmonia étnica e racial42 gerou a ausência do conflito social
na sociedade brasileira sobre o mito da inexistência do mesmo. Este mesmo mito
contribuiu para a dificuldade em discutir o racismo por meio da construção de uma
identidade única para as diferentes culturas que materializaram a História brasileira.
A visão positiva sobre a mestiçagem não alterou a noção de aculturação e
assimilação provocada pela construção de uma sociedade híbrida, fundida em
valores culturais diversos e particulares. A quebra do conceito de raça na Europa
apareceu no século XX com estudos na área de Biologia que possibilitaram
progressos dentro da genética humana através do Projeto Genoma.43
O avanço da genética possibilitou a criação de apenas uma raça: a raça
humana, contrariando as divisões raciais do século XIX. Com esta descoberta, os
diferentes cruzamentos garantiam características fenótipas distintas e não raciais,
tendo em vista que a configuração genética de todos os seres humanos era única.
Contudo, a utilização do conceito de raça prevaleceu, apesar de biologicamente
incorreto; a grande parte das ciências humanas continuou a utilizá-lo como forma de
estudos sociais.
Pensando nas questões abordadas até aqui surgem as seguintes reflexões:
qual seria a importância de mito de democracia racial para as relações raciais
brasileiras? Por que a idéia de racismo no Brasil é camuflada?
42 In: HASENBALG (2005, p.254) 43
O Projeto Genoma teve inicio em 1990. Este projeto realizou um mapeamento do genoma humana por meio do estudo das sequências de DNA. A identificação da seqüência de gens humanos contribui para a descoberta da cura de diversas doenças genéticas, assim como, para o próprio desenvolvimento da ciência e saúde.
- 45 -
Estas questões permitem comparar o mito da democracia racial – defendido
culturalmente como uma marca nacional, com experiências históricas que geraram a
segregação racial e desejo coletivo como em países como os EUA e a África do Sul,
onde o racismo e a intolerância determinaram a separação espacial e social de
negros e brancos de forma direta e aberta. No Brasil, o racismo e a discriminação
apesar de existirem, não impedem o convívio aberto de negros e brancos; contudo,
assume uma posição de entrave e mobilidade social, na medida em que a alocação
dos maiores grupos de pobreza se dá entre os negros nas regiões da periferia e
favelas das grandes cidades. A questão não está em negar a pobreza de brancos e
negros, e sim, observar a maneira com que negros e brancos estão sujeitos à
exclusão e à pobreza no Brasil, para então refletir a importância e necessidade de
políticas raciais para a inclusão de negros e diminuição do afastamento social entre
estes grupos étnicos na sociedade. (RÊGO BARROS, 2007, p.72)44.
“A eficácia da ideologia racial dominante manifesta-se na ausência do conflito racial
aberto e na desmobilização política dos negros, fazendo com que os componentes
racistas do sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de recorrer a um
alto grau de coerção”. (HASENBALG, 2005, p.255)
A recorrente idéia da cooptação política dos negros têm sido revertida no
novo cenário contemporâneo de políticas públicas. No governo FHC, em 2001, após
a Conferência de Durban contra a Xenofobia e o Racismo Mundial, passaram a ser
adotadas as políticas de ações afirmativas45, como forma de criar novos
mecanismos que garantam a equidade e maior mobilidade social aos negros no
Brasil, materializando oportunidades e melhores chances no mercado trabalho e na
educação.
“As políticas de ação afirmativa cumprem o importante papel de cobrir essas
lacunas, fazendo com que a ocupação das posições do Estado e do mercado de
trabalho, se faça, na medida do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo
da sociedade. Neste sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do
44
RÊGO BARROS, Clarissa Fernandes do. Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão através da reserva de vagas para negros na UERJ. IN: Revista Espaço pedagógico. Políticas Educacionais e cidadania. Vol. 14. número 2.Editora UPF: Passo Fundo. Jul./Dez 2007. pp. 66/77 45
As políticas de ação afirmativas são políticas sociais voltadas para concretização da igualdade substancial ou material, que procura neutralizar os efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e compleição física. A meta das ações afirmativas é a implementação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios da atividade pública e privada. (GOMES, 2003).
- 46 -
estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de
eliminar as barreiras artificiais e invisíveis que emperram o avanço de negros. (...)”.
(GOMES, 2003, p.31)46
Tais políticas estão voltadas para noção de repartição de espaços entre
negros e brancos nos serviços públicos e universidades por meio de ações
afirmativas. Para o alcance e acesso a esta oportunidade, a idéia de identidade
nacional híbrida e uniforme tem sido desconstruída por meio de pressões dos
diferentes movimentos sociais, que passam a entender a identidade nacional como o
reconhecimento das diferenças. A dificuldade de se reconhecer diferente sob o
julgar da mestiçagem tem levado o debate das ações afirmativas, a uma discussão
em torno do racismo que retoma a idéia de cooptação política, demonstrando a
negligência da sociedade em discutir o racismo como um impasse à mobilidade
social dos negros.
Neste sentido, o debate e a aplicabilidade das políticas de ação afirmativas se
tornam imprescindíveis, pois justificam a importância da adoção deste tipo de
política pública como uma reparação histórica, condenando a escravidão como um
crime, e obrigando a sociedade a desvelar o racismo das práticas sociais. Com este
objetivo, as ações afirmativas se caracterizam como um mecanismo para reconhecer
em nossas relações sociais a questão racial como um problema a ser resolvido, a
partir da construção de oportunidades para os negros como um caminho para
equidade e valorização de nossa diversidade.
1.4 Raças e Política de Cotas no Brasil.
O branqueamento no Brasil se caracterizou como uma ideologia construída
para garantir a idéia de purificação das raças e a manutenção do branco enquanto
cor e raça predominante. Esta ideologia previa a mistura das raças ditas inferiores
com o maior número de brancos, o que tendeu a ampliar as categorias raciais, onde
as diferenças físicas descritas pela tonalidade da pele tornavam-se dados sociais
significativos, ou seja, quanto mais claro, mais chances teriam de mobilidade social.
46
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional das ações afirmativas. IN: SANTOS, Renato Emerson dos Santos, LOBATO, Fátima. (org.). Ações afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades raciais. DP&A: Rio de Janeiro, 2003.
- 47 -
Neste sentido, no Brasil a construção do sistema racial não se formou de forma
rígida ou do tipo de casta. A mistura das raças determinou a construção de uma
identidade racial fragmentada e assimilada à identidade do grupo dominante branco,
que em parte controlava o mercado de trabalho, a política e se encarregava de criar
as leis e políticas públicas.
Durante o final do século XIX, o número predominante de negros era visto
como uma justificativa para o atraso econômico. Além disso, a condição histórica da
maioria dos negros como ex-escravos impedia o acesso dos negros libertos à
propriedade e à entrada no mercado de trabalho enquanto trabalhador livre. A
condição do negro enquanto um sujeito fora da linha de mobilidade social é descrita
por HASENBALG (2005, p.248) não apenas a partir da imigração européia como um
incentivo do Estado. Segundo o autor, o branqueamento social ativou o mecanismo
de compensação parcial de status através do qual, as pessoas de cor bem-
sucedidas, em termos educacionais e econômicos, são percebidas e tratadas como
mais claras do que as pessoas de aparência inferior semelhante, mas com status
inferior. A aceitação social implica em transformações do grupo negro de origem em
um grupo de referência negativa, o que intensifica a divisão entre os membros de
grupos de cor e sugere a manifestação do preconceito de negros contra negros.
O branqueamento eliminou o pertencimento racial e a diversidade presente
em nossa sociedade, criando um ambiente favorável à construção do racismo
velado entre os diferentes grupos, justificado e intensificado em relação à classe e à
cor da pele, criando uma atmosfera de cooptação entre os negros e a cultura
dominante branca, caracterizando-a como um objetivo a alcançar como forma de se
reconhecer pertencente à sociedade.
A ideologia de democracia racial reconhecida a partir de 1930, que tornava
favorável a imagem da miscigenação, no entanto, sustentou a ausência de um
conflito racial não declarado, onde o preconceito e a discriminação antes de serem
manifestados contra os negros, passam a ser atribuídos às diferenças de classe, o
que possibilita a compreensão das desigualdades entre negros e brancos não como
fruto ou resultado de considerações raciais, e sim, da classe e da baixa posição
social dos negros. A imagem de uma harmonia étnica e racial como parte de uma
concepção ideológica mais ampla da natureza humana é associada ao mecanismo
de legitimação destinado a dissolver as tensões, bem como antecipar e controlar
certas áreas de conflito social. (HASENBALG, 2005, p. 254)
- 48 -
“A estrutura do privilégio do branco e a subordinação não-branca, evita a
constituição da raça como principio de identidade coletiva e ação política. A eficácia
racial dominante manifesta-se na ausência dos negros, fazendo com que os
componentes racistas do sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de
recorrer a um alto de grau de coerção”. (HASENBALG, 2005, p.255)
A ausência da compreensão da diversidade racial brasileira e das
manifestações culturais diante da construção de uma identidade cultural híbrida,
acabou por obscurecer a crise interna de um conflito racial não declarado e velado
pelos que cometem e inquestionável por aqueles que sofrem. Porém, esta situação
pode se reverter no esforço do negro em se impor pela cultura e em mostrar sua
capacidade de desenvolvimento cultural nas mesmas proporções do branco. (IANNI,
2004, p.61).
As palavras de IANNI (2004) quando relacionadas à emergência do
movimento negro a partir da década de 1930, caracterizado pela Frente Negra
Brasileira47, vislumbra o inicio da construção do negro enquanto cidadão político de
direitos, questionando o preconceito e racismo não a partir das diferenças culturais,
mas como um obstáculo a ascensão social dos negros48. A racialização do discurso
se caracteriza como algo novo e contemporâneo aos anos de 1990 no Brasil, onde a
relação com o movimento negro americano descreve modelo de discriminação
positiva como um reconhecimento cultural e racial necessário à reparação das
desigualdades entre brancos e negros na sociedade, e assim, raça e cultura passam
a justificar a importância do enfrentamento da questão racial presente na sociedade
brasileira enquanto questão social. Portanto, a tomada da consciência da negritude
esta vinculada à percepção do sistema social e do sistema de classes pelo negro,
onde em relação à processualidade histórica, o negro se enxerga primeiro como ex-
escravo, trabalhador livre e operário, anteriormente a se reconhecer pelo grupo de
cor tendo em vista a dinâmica da construção ideológica da sua identidade cultural e
racial. Asfixiado pela sua condição de raça e de classe (PINTO, 1998, p.245), a
trajetória social do negro no Brasil reivindica uma luta pelo acesso aos direitos e ao
reconhecimento enquanto cidadão.
47 A Frente Negra Brasileira foi criada em 1931 em São Paulo e propunha a discussão em torno da situação dos negros no Brasil reivindicando direitos sociais e políticos através da proposta de uma rede de proteção social jurídica, de assistência, intelectual, artística e do trabalho da gente negra. 48 Para um maior conhecimento da História do Movimento Negro no Rio de Janeiro ver: PINTO, L.A.Costa. O Negro no Rio de Janeiro. Relações de Raça numa Sociedade em Mudança. Editora UFRJ:1998, RJ.
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Com a adoção da Constituição Cidadã em 1988, o Brasil passa adquirir um
novo perfil referente à noção de cidadania, visto que, no alcance dos direitos
universais se encontra o reconhecimento cultural da diversidade brasileira. No
entanto, a manutenção do sistema político conservador caracterizado por FIORI
(2001)49 como “pacto conservador”50, reforça a hegemonia por parte das elites
dominantes nos anos 1990, contribuindo para a enorme dispersão salarial e a
segmentação do mercado de trabalho responsável, entre outros fatores, pela
formação de um quadro crescente de desigualdade social.
O crescimento das desigualdades sociais no Brasil, estaria desta forma,
relacionada à impotência do Estado em interferir nos interesses ligados à estrutura
fundiária e a monopolização do espaço urbano, no qual residem a acumulação de
capitais, e a desenfreada e desregulada expansão das grandes cidades,
submetendo uma grande parcela da população a um grave estado de marginalidade
com relação ao acesso aos serviços públicos.
Neste cenário, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2003), a
questão racial ganha uma maior atenção em função da orientação dos organizamos
multilaterais (UNESCO e BIRD)51 que passaram a ditar normas e regras para a
política de educação na América Latina. Em resposta à negligência do Estado no
investimento de políticas sociais na área da educação, as reivindicações de
movimentos sociais colocaram em pauta a falta de direitos dos negros sob
justificativas da questão racial e social. Neste mesmo período, as políticas de ações
afirmativas são adotadas como uma forma de reparação das desigualdades
históricas sofridas pelos grupos culturalmente e socialmente excluídos na história do
acesso aos direitos. Como um mecanismo das ações afirmativas, as políticas de
cotas ganham espaço e aplicabilidade na área de educação, precisamente no
ensino superior como forma de garantir o acesso às universidades públicas do país.
A adoção das cotas pelas universidades ganha uma atenção especial em debates
acadêmicos, na mídia e na sociedade civil com posições polêmicas contra e a favor
49
. FIORI. J.L. 60 lições dos 90. Uma década de Neoliberalismo. RJ: Record. 2001. 50 Pacto Conservador: segundo Fiori (2001), esta denominação esta associada ao Brasil agrário e oligárquico cujas políticas se mantiveram intocáveis durante toda a modernização industrial da sociedade brasileira, mesmo depois da política liberal dos anos 1990. 51
A UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura; foi fundada em 16 de novembro de 1945, como uma instituição voltada para criação de estudos e ações na área de educação, cultura conservação de patrimônios históricos e comunicação. O BIRD: Banco Internacional de Desenvolvimento e Reconstrução; é uma das instituições do Banco Mundial que procura realizar empréstimos e assistência para o desenvolvimento de países com rendas médias e antecedentes de crédito.
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de sua aplicação, através da reserva de vagas para estudante de escolas públicas,
negros pobres declarados, indígenas e deficientes físicos.
Buscando um diálogo com alguns setores da sociedade que procuraram se
posicionar contra ou a favor da PL 73/99 (Lei de Cotas), intelectuais brasileiros
procuraram justificar a implementação das políticas de cotas nas universidades a
partir do “Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto de Igualdade Racial” (3
de julho de 2006) e do “Manifesto Contra as Cotas Raciais” (30 de maio de 2006).
Ambos os manifestos foram entregues ao Supremo Tribunal de Justiça em Brasília e
publicados nos jornais de grande circulação e internet. No “Manifesto em Favor da
Lei de Cotas e do Estatuto de Igualdade Racial”, como representantes e redatores
assinaram Renato Ferreira, Frei Davi e Renato Emerson dos Santos52 (do
movimento de pré-vestibulares comunitários do Rio de Janeiro – PVNC e Educafro),
e no “Manifesto Contra as Cotas Raciais”, os intelectuais Peter Fry e Yvonne Maggie
(professores titulares do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) assinaram
também como representantes principais e redatores. A teorização de ambos os
manifestos polemizou o debate em dois segmentos distintos em relação à
interpretação da questão racial brasileira, e por isso, ambos os manifestos possuem
relevância política enquanto documentos oficiais e pioneiros no posicionamento
social e debate em relação às políticas de ação afirmativa nas universidades.
A importância de se discutir a raça como um fator responsável pela
desigualdade brasileira criou dois pólos dicotômicos que descrevem o caminho de
superação das desigualdades sociais e raciais no Brasil através de um discurso
universalista – entendido como a criação de políticas universais que contemplem
todos os cidadãos; e um outro grupo que se coloca a favor de uma política
compensatória de discriminação positiva como forma de reparação das
desigualdades históricas sofridas entre os diferentes grupos étnicos existentes no
Brasil, principalmente, entre brancos e negros.
De acordo com o Manifesto a Favor da Cotas:
“A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não
será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas. A
Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade
puramente formal entre todos os cidadãos. A população negra acabava de ser
colocada em uma situação de completa exclusão em termos de acesso a terra, a
52 Renato Emerson dos Santos é pesquisador da UERJ do LPP – Laboratório de Políticas Públicas.
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instrução e ao mercado de trabalho para competir com os brancos diante de uma
nova realidade econômica que se instalava no país. (...) a ascensão social e
econômica no país passa necessariamente pelo acesso ao ensino superior. (...) A
justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram ressonância nos últimos
governos, o que resultou em políticas públicas concretas, dentre elas: a criação do
Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, de
1995; as primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação
da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR),
em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que estabelecem
cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em todas as
universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial. O PL 73/99 (ou
Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e responsável
do Estado brasileiro”. (trechos)
Conforme descrito no Manifesto a favor das Cotas, a justificativa da
desigualdade racial é histórica, e emerge da necessidade de retomar o conflito como
um instrumento responsável pela reversão da situação de exclusão do negro na
sociedade. Para isso, o Estado deve reconhecer os erros históricos e a construção
de uma identidade nacional voltada para cooptação do negro enquanto sujeito
social, criando políticas públicas voltadas para a valorização da cultura negra. O
reconhecimento da negritude é visto como um instrumento de ação e de tomada de
consciência do negro a partir do conhecimento da sua condição de raça e de classe
na sociedade, onde a justiça enquanto um mecanismo de igualdade é acionada em
função de processos de viabilização de uma discriminação positiva, garantindo o
acesso à universidade como a materialização de uma das propostas voltadas para o
alcance da justiça social.
E por que a universidade é vista como um meio de ascensão social? A
educação superior dentro do sistema mercantil é vista como um meio de
qualificação, uma forma de integração social do indivíduo, um processo de
socialização. A universidade está relacionada à profissionalização, e a cada
profissão dentro do sistema capitalista está vinculado um valor mercantil relacionado
à sociedade e à própria família. Neste sentido, a hierarquia prevalece no mercado de
trabalho e na própria academia, onde os cursos e departamentos estão direcionados
para a valorização do indivíduo no mercado através de diferentes vocações e
objetivos.
Paralelo a idéia de mercado de trabalho, o processo educacional na
universidade garante o conhecimento de si enquanto o sujeito histórico, através do
- 52 -
estudo da História, das Ciências Sociais, da Antropologia, o que possibilita ao
estudante um amadurecimento intelectual sobre assuntos diversos como: sociedade,
política, economia e cultura. A diversidade cultural no ensino superior é importante
para a quebra do padrão elitista de dominação cultural presente no cotidiano da
universidade. As políticas de ação afirmativa garantem novas demandas trazidas
pelos estudantes de classe e raças diferenciadas, viabilizando uma transformação
nas relações sociais da universidade, no conhecimento destes grupos étnicos, além
de uma possibilidade de melhores condições no mercado de trabalho.
No entanto, a discriminação positiva e a racialização do discurso em favor dos
negros, em particular, é criticada pelo Manifesto Contra as Cotas, como uma lei
que em si, se responsabiliza em criar uma construção social e histórica da raça no
Brasil baseada numa tensão entre duas taxonomias, onde o continuum de cores é
substituído pela dicotomia negros e brancos. (FRY, 2005, p.224). E desta forma,
segundo os autores deste manifesto, que o principio universalista de direito
constitucional passa a ser atacado e os cidadãos passam a não ser mais encarados
como iguais em relação aos princípios jurídicos.
“O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento
essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição
brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos
dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade
Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no
Congresso Nacional. (...) Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir
os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela ‘raça’. A história
já condenou dolorosamente estas tentativas. (...)Transformam classificações
estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o
preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não
deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’
estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até produzir
o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o
acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que
o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços
públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em
especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo
esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que
limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica”.(trechos)
- 53 -
De acordo com o Manifesto Contra a Lei de Cotas a igualdade jurídica é
afetada a partir da diferenciação racial. Segundo FRY (2005), a democracia racial
não anulou as desigualdades raciais, mas também não produziu um ódio entre
brancos e negros, em função da multiculturalidade, do hibridismo e das ‘raças
misturadas’, já que este gradiente de cores não se encontrava restrito a uma
denominação bipolar. Neste sentido, as cotas representariam uma espécie de
‘racismo às avessas’. (...) Ao introduzir cotas para vagas no ensino superior, o
governo estaria criando e celebrando a existência de duas raças no Brasil, a branca
e a negra. Estas substituiriam as muitas maneiras que o Brasil inventou para se
referir às complexas combinações genéticas. (FRY, 2005, p.243)
Em resposta, o Manifesto a Favor da Cotas coloca:
“Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as políticas de
inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que haveria um
acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito distante desse panorama
alarmista, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das cotas
têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em
geral com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Nesse
sentido, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade
diante da discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas
experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a
formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada que
facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas. (...) Os assinantes do
documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão
racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é
preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a todos os
segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios universalistas, feita por
membros da elite de uma sociedade multi-étnica e multi-racial com uma história
recente de escravismo e genocídio, parece uma reedição, no século XXI, do
imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de
mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou
para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à
educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro.
Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados oficiais recentes
do IBGE e do IPEA que expressam, sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica
com os negros e os índios, ou adotamos cotas e implementamos o Estatuto, ou
seremos coniventes com a perpetuação da nossa desigualdade étnica e
racial”.(trechos)
- 54 -
Conforme foi discutido ao longo deste capítulo, a racialização da Lei de Cotas
não se apresenta como a tentativa de alcançar um privilégio isolado para negros. Ela
em si denuncia e expõe o racismo velado historicamente, e apresenta a importância
do conflito e da ação política para o alcance dos direitos de grupos étnicos
excluídos, determinando como objetivo principal das ações afirmativas a reparação
histórica, a justiça social e a diversidade. Para tal, a raça aparece como um
mecanismo integrador deste grupo social como uma forma de viabilizar a identidade
nacional pluriétnica. O principio da igualdade universal, conforme está estabelecido
na Constituição e leis, já é uma expressão da ideologia racial do branco. Ao
estabelecer a igualdade de todos, e proibir quaisquer barreiras e ódios de raça, o
branco que legisla e governa, toma o dito pelo não dito. Se a lei diz que não há
preconceito, que esta é uma democracia racial, fica, portanto, proibido falar de
preconceito. Há preconceito de não ter preconceito. Discutir preconceito é suscitá-
lo”. (IANNI, 2004, p.131).
A centralização da discussão das cotas na questão racial determinou o seu
próprio entrave enquanto lei, visto que a maioria da sociedade condena uma
discussão aberta do racismo, do preconceito e das desigualdades raciais,
acreditando que não debater estas questões implicaria em não suscitar a existência
de tais práticas sociais. No entanto, a percepção da presença da questão racial
como integrante da questão social está vinculada à racialização do discurso das
políticas públicas, que descreve o alcance dos direitos a partir do reconhecimento
dos diferentes grupos étnicos, e por meio de ações e pressões sociais tem
conseguido vitórias significativas. Resta saber agora, de que maneira a política de
ação afirmativa se coloca a favor da manutenção dos direitos dos beneficiados, no
que se refere ao reconhecimento deste direito, ao acesso ao ensino superior e à
permanência dos estudantes na universidade.
- 55 -
CAPÍTULO 2
O HISTÓRICO DA ADOÇÃO DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
NO BRASIL.
- 56 -
2.1 Introdução: fronteiras conceituais
A política social enquanto área de estudo e pesquisa implica em um território
polêmico acerca do seu próprio conceito, na medida em que se coloca em fronteira
com os conceitos de Estado de Bem Estar Social e Seguridade Social.
A idéia de política implica em decisões e escolhas políticas e públicas que
dizem respeito à sociedade como um todo, partindo de um pressuposto moral e
ético. Neste sentido, a política social é entendida como uma política pública de
Estado, responsável por atribuir uma ação embutida de valores com fins sociais, ou
seja, a política social pressupõe a justiça social idealizada em valores de igualdade,
liberdade, fraternidade e solidariedade. Tais valores são entendidos pela sociedade
contemporânea como direitos sociais53 a serem assegurados pelo Estado.
Segundo MARSHALL (1964), a igualdade humana está relacionada com o
conceito de participação integral, entendida como cidadania. As desigualdades
sociais podem ser aceitas desde que a igualdade via cidadania seja reconhecida. A
cidadania é um direito legal a todos os homens de possuir direitos, cabendo ao
Estado assumir a responsabilidade de garanti-los. Para o autor, o conceito de
cidadania é dividido em três tipos de direitos: o civil, o político e o social. O elemento
civil é composto dos direitos da liberdade individual, a liberdade de ir e vir, liberdade
de imprensa, pensamento, fé e o direito à justiça como ferramenta responsável por
validar tal igualdade perante a lei. O elemento político esta relacionado com o direito
de participação política e voto. O elemento social se refere ao direito mínimo de
bem-estar econômico, segurança, acesso aos serviços sociais, ao sistema
educacional e à saúde.
Para a noção de cidadania e direito, é importante perceber o caráter coletivo
da política social, que passa a ser intermediado pelas instituições das sociedades
contemporâneas capitalistas responsáveis por garantir a justiça social. No entanto, o
conceito de justiça social como uma idéia em torno da igualdade varia de acordo
com os mecanismos de ação do Estado; por exemplo, o Estado Social que procura
associar o desenvolvimento industrial ao governo para proteger seus trabalhadores
53 Os direitos sociais são caracterizados como um conjunto de direitos associado aos direitos civis e direitos políticos, e em conjunto, são entendidos como cidadania, ou seja, um valor universal comum a todos os indivíduos nas sociedades capitalistas assegurado pelo Estado. Para maiores esclarecimentos ver MARSHALL, T. Cidadania, Classe Social e Status. Zahar: Rio de Janeiro, 1964.
- 57 -
por meio da noção de cidadania, enquanto o Estado de Bem Estar Social criado na
década de 193054, procurou garantir segurança à sociedade como um todo a partir
da modificação das conseqüências das leis de mercado sob o amparo do Estado.
BOBBIO (2004)55 caracteriza o Estado contemporâneo como um Estado de Direito e
um Estado Social, articulado e responsável por garantir as liberdades da sociedade:
pessoal, política e econômica.Se por um lado o Estado de Direito se responsabiliza
pela garantia do status quo, o Estado Social representa uma via por onde a
sociedade passa a ter acesso ao Estado, constituindo a possibilidade da construção
de uma ponte para o bem-estar social.
Dentro da lógica liberal no período do pós-guerra, o Estado do Bem-Estar
Social ganha força nos países capitalistas industrializados como um espaço de
garantia da justiça social através da oferta de serviços sociais à população, ou seja,
o Estado se responsabilizaria por prover: saúde, educação, saneamento básico,
habitação dentre outros direitos.
O Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) tornou-se um Estado modelo
das sociedades contemporâneas capitalistas, alterando a sua estrutura prévia com o
objetivo de garantir as necessidades e rendimentos mínimos que um indivíduo
precisa para sobreviver, criando a todos os cidadãos serviços públicos na área de
educação, saúde, segurança, serviço social, seguridade social, independente da
renda ou classe social. A idéia de proteção do Welfare State encontra-se alicerçada
no direito e não na necessidade, cabendo ao Estado proteger a todos por meio de
serviços públicos e leis compensatórias à exploração dos trabalhadores no sistema
capitalista.
Apesar da idéia de proteção ser mais antiga do que a própria noção de direito,
é importante notar que ambos: proteção e direito, a partir dos anos 1970,
começaram a ser questionados. O modelo de Estado de Bem Estar Social entrou em
crise em função do aparecimento de idéias revisionistas que exigiram novos papéis
e funções do Estado, diante da crise econômica dos países capitalistas. Estas novas
idéias exigiam a auto-regulação da economia e do mercado sem a intervenção do
Estado, retomando as antigas idéias liberais do século XIX, na busca pela
54 Refiro-me no texto, à criação do Welfare State nos EUA, como uma alternativa do presidente Roosevelt de reerguer o país a partir do investimento do Estado em políticas sociais e obras públicas para superar a crise de 1929. Em relação ao caso brasileiro, não podemos interpretar o Estado como um Estado de Bem-Estar Social, e sim, como Estado desenvolvimentista, criado a partir de 1950. 55
Ver BOBBIO (2004: 401).
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desregulação e estabilização econômica por meio das privatizações, determinando o
desmonte do Estado de Bem Estar Social. Nos anos 1990, essas idéias surgem
como uma verdadeira epidemia mundial, traduzindo-se em um pensamento
hegemônico responsável por viabilizar o crescimento econômico e a modernização
tanto nos países centrais quanto na periferia do capitalismo.
As políticas neoliberais aterrissam como uma alternativa à crise capitalista
internacional, dos choques de petróleo ocorridos em, 1973 e 1979. Com a crise
fiscal do Estado, foram realizadas novas estratégias políticas, econômicas e sociais,
com o objetivo de reaver o padrão de acumulação perdido. O Estado retraiu-se do
campo social dando ênfase no econômico, determinando a redução dos gastos
públicos com os direitos e as políticas sociais.
No Brasil, as políticas neoliberais foram adotadas durante o governo
Fernando Henrique Cardoso (1995/2003). A focalização da pobreza e a
subalternidade foram orientações centrais para formulação e operacionalização das
políticas sociais, que contraditoriamente, às conquistas legais provenientes da
Constituição de 1988, tenderam a fragmentar e a dar maior centralidade à política de
assistência social, historicamente, voltada para as camadas sociais pobres e
carentes. Em consonância com as estratégias neoliberais, as políticas sociais
tenderam a dar ênfase ao princípio de equidade com o foco na pobreza. (NETO,
2007, p.21)56
A adoção das ações afirmativas no Brasil esteve relacionada a uma releitura
das desigualdades sociais, onde a exclusão social passou a ser caracterizada não
só por critérios econômicos, mas também interpretada por meio das desigualdades
raciais. A participação dos movimentos sociais a partir dos anos de 1990,
principalmente do Movimento Negro, contribuiu para que as diferenças sociais
sofressem uma alteração nos critérios de entendimento, onde a raça e a classe
apareciam como justificativas para o afastamento socioeconômico entre brancos e
negros na sociedade. O revisionismo da construção da identidade brasileira,
pontuando o branqueamento como um dos responsáveis pela assimilação da cultura
negra na sociedade, determinou a idéia do racismo estrutural como o responsável
pelo vácuo da falta de oportunidades para a população negra.
56
NETO, Antonio Cabral et alli (org.). Pontos e contrapontos da Política Educacional. Liberlivro, Brasília. 2007.
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“As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à
concretização do principio constitucional da igualdade material e à neutralização
dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de origem nacional e de compleição
física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um principio
jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser
alcançado pelo Estado e pela sociedade”. (GOMES, 2003, p.21)57
Essa nova concepção de política social possui como alvo de ação um
individuo especifico cuja tentativa se encontra na concretização da igualdade
substancial ou material. Portanto, a ação afirmativa é interpretada como uma
discriminação positiva, pois é na idéia de igualdade substantiva que se encontra o
suporte normativo da ação afirmativa, onde o principal elemento é a justiça social.
Como já discutido no capítulo anterior, reconhece-se que a diferença entre os
indivíduos não são mais encaradas como problemas apenas de natureza
econômica, descritos pelo paradigma do modelo liberal, em que essas diferenças
são encaradas como produtos das relações sociais e da própria maneira como a
sociedade se organiza. Neste sentido, a falta de oportunidades não é um problema a
ser resolvido pela ausência de igualdade legal, e sim, pela necessidade de
igualdade substancial, cabendo ao Estado gerir mecanismos que auxiliem os
indivíduos a alcançar condições de disputa eqüitativa no acesso aos diversos
setores e instituições sociais.
No histórico da justificação das ações afirmativas, o país que possui a maior
experiência histórica é a Índia, onde as ações afirmativas foram implementadas no
contexto da colonização inglesa (XIX), e no período de 1950 durante a
independência, foi homologada a lei com o objetivo: 1) de compensação e reparação
das injustiças cometidas no passado por determinado grupo social, 2) igualdade
proporcional com a idéia de criar oportunidades de educação e emprego relativo a
cada grupo social, 3) justiça social, visto que as desigualdades são produto de
grupos sociais específicos (sociedade de castas), e, portanto, passiveis de se tornar
objeto de políticas públicas. (JUNIOR, 2003, p.47)58
57 GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Renato Emerson, LOBATO, Fátima, (org.). Ações afirmativas. Políticas Públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 58 JUNIOR, João Feres. Aspectos normativos e legais das políticas de ação afirmativa. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.
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Nos EUA as políticas de ação afirmativa ganharam espaço a partir dos anos
de 1960, por meio de reivindicações do movimento negro por direitos políticos e o
fim da segregação social oriunda do apartheid criado desde o período de abolição
no final do século XIX. Neste contexto, a justificativa da implementação das ações
afirmativas a partir do presidente americano Lyndon B. Johnson, estiveram
relacionadas à reparação histórica pelos longos anos de exclusão da população
negra americana, e à justiça social Foram criadas políticas públicas direcionadas a
cotas específicas em universidades, empresas e outras instituições responsáveis em
integrar o negro à sociedade, criando desta forma um mecanismo de mobilidade
social.
No processo de integração social, as ações afirmativas enquanto políticas
multiculturais, atribuíram a diversidade como uma outra justificativa a implementação
de políticas sociais de caráter discriminatório. A diversidade aparece como uma
conseqüência das ações afirmativas, na medida em que permite a interação dos
diferentes grupos étnicos no cotidiano das relações sociais.
Nas bases democráticas de uma sociedade multicultural, deve-se levar em
consideração a exigência e a aceitação do reconhecimento de igual valor das
diferentes culturas que a compõem. O desafio que tal sociedade coloca é conseguir
tornar possível a convivência de culturas ou grupos muito variados, atribuindo a esta
convivência um limite democrático que seja respeitoso em relação a essa
diversidade sem tornar-se um simples encontro de interesses divergentes.
(D´ADESKY, 2005)59
No caso do Brasil, a política de ações afirmativas teve forte influência do
modelo americano. Entretanto, as justificativas para aplicação da política estiveram
vinculadas em maior destaque ao argumento de reparação e diversidade, em lugar
do argumento de justiça social. (JUNIOR, 2006, p.55). No que se refere à reparação,
as ações afirmativas aparecem como uma forma compensatória em função da
exclusão histórica sofrida pelos negros ao longo da História.
Para ativistas do movimento negro, compreender a importância deste
reconhecimento implica não só em reclamar a dignidade, mas também o status
deste grupo étnico e cultural. Essas duas formas de reconhecimento estão ligadas,
pois o reconhecimento estruturado na idéia de inferioridade relativa de uma raça,
59 D´ADESKY, Jaques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Racismos e Anti-Racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
- 61 -
cultura ou origem étnica, é, ostensivamente, um não reconhecimento do grupo a que
esta pertence. Por isso, o não reconhecimento igual ou universal destes dois níveis:
individual e coletivo, pode ser o pretexto para que grupos que se julgam superiores
explorem, dominem ou excluam as pessoas consideradas como fazendo parte do
grupo subjugado. (D´ADESKY, 2005, p.193).
A noção de multiculturalidade, respeito e reconhecimento às diferenças
ganharam uma ênfase maior no discurso dos movimentos sociais, e na própria
aplicabilidade da política de ações afirmativas, visto que, a idéia de justiça social
demanda um debate maior em torno do investimento do governo em políticas
públicas e sociais, o que se tornou não uma meta, mas uma conseqüência das
ações afirmativas. É importante pensar as ações afirmativas não apenas como um
mecanismo que visa a diversidade social, e sim como uma forma de consolidação
democrática para a crescente harmonia social, tendo em vista que os impactos das
ações afirmativas permitem gerar ganhos distributivos nas oportunidades
educacionais, de trabalho e acumulação de riquezas para negros, indígenas e
grupos étnicos em questão, criando também produtividade na força de trabalho, no
nível de renda e nas oportunidades de investimento. (ZONINSEIS, 2005, p.70)60
As ações afirmativas se caracterizam como um mecanismo de integração
rápido para os grupos etnicamente excluídos das elites políticas e econômicas
brasileiras, criando novas oportunidades, e quebrando estereótipos negativos,
promovendo, desta forma, novas redes sociais responsáveis por diminuir o
distanciamento entre brancos e negros na sociedade.
60
ZONINSEIN, Jonas. Minorias étnicas e a economia política do desenvolvimento: um novo papel para universidades públicas como gerenciadoras da ação afirmativa no Brasil? In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.
- 62 -
2.2 O dilema da educação e das desigualdades raciais no Brasil.
Nos anos 1990 com o advento do neoliberalismo, a economia mundial passou
por um período de tecnificação dos modos de produção, provenientes da
informatização como um mecanismo de maior dinamismo à industrialização. Neste
sentido, as universidades se transformaram em pólos técnicos e atrativos para
profissões qualificadas e aptas a gerenciar e trabalhar com as novas exigências de
mercado.
O grande capital internacional exigia qualificação e formação em todos os
postos de trabalho, e consequentemente, no Brasil não foi diferente. Desta forma,
ocorreria um desmonte no investimento feito durante a ditadura militar (1964/1979)
em universidades privadas de formação de cursos técnicos voltados para o mercado
de trabalho criando um possível redirecionamento dos recursos à ampliação de
universidades públicas.
No entanto, a opção feita pelo governo brasileiro no período Collor de forte
crise econômica desde os anos de 1980, foi a desregulação e ausência do Estado
na gerência de gastos na área social, o que determinou a ausência de investimentos
na área da educação, e consequentemente, em universidades públicas. Sob os
mandatos de FHC, a continuidade pela escolha prioritária do ensino privado
determinou que a educação ganhasse destaque no mercado, contribuindo para
piorar a qualidade no ensino público.
A grande autonomia concedida às mantenedoras privadas provocou um
marco expressivo no ensino superior do país através da iniciativa privada, pois
aumentaram as taxas relacionadas à participação das instituições de ensino superior
particulares de 72,9% para 84,1%. Na década de 1990, o índice das instituições de
ensino superior públicas permaneceu estável, mas sem aumento dos investimentos
estatais. Os dados demonstravam ainda que 71% dos alunos matriculados nas
universidades encontravam-se em instituições privadas61. Na ausência das políticas
públicas, a educação assumiu um perfil de graves problemas sem espera de
solução.
61
Revista Carta Capital, 2 de maio de 2005.
- 63 -
A tabela de indicadores do ensino superior, apresentada a seguir62 por
categoria (publica e privada) do Estado do Rio de Janeiro em 1991, demonstra este
crescimento das instituições privadas em relação às instituições públicas, com uma
diferença em porcentagem de 9,01% para as instituições públicas e 90,99% para as
instituições privadas. No que se refere às matriculas e ingressantes
respectivamente, os números variam de 27% dos matriculados em instituições
públicas e 73% dos matriculados em instituições privadas, e 22,2% ingressantes em
instituições públicas, e 77,8% ingressantes em instituições privadas. De acordo com
os estudos do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, na progressão do crescimento das instituições em nível nacional, em
porcentagem, os dados revelam um crescimento constante e em ritmo crescente do
setor privado no país: mais modesto no período 1991-1996 (6%), toma significativo
impulso no período 1996-2004 (151,6%). O setor público fica praticamente
estagnado, começando o período analisado com 222 instituições, sofre um
decréscimo de –5,04% no período 1991 a 1996, seguido de um crescimento pouco
significativo (6,2%) no período seguinte, chegando a 2004 com 224 instituições.
(INEP, 2006, p.31)
62
RISTOFF, Dilvo, GIOLO, Jaime. Educação superior brasileira 1991-2004 Rio de Janeiro. Brasília. INEP, 2006.
- 64 -
A análise da disparidade de investimentos por parte do Estado entre o ensino
superior privado e público, originou uma crise referente ao acesso às universidades
públicas, ditas e encaradas como instituições de excelência, apesar do escasso
plano de recurso e investimentos. Esta lacuna social entre público e privado será
criticada por meio de justificavas em torno da ausência de investimentos do Estado,
também, na educação básica nos setores públicos. A incapacidade dos alunos de
escolas públicas em concorrer em equidade com os alunos de escolas particulares a
uma vaga no vestibular de uma universidade pública questionará a idéia de
democratização do ensino superior a partir de movimentos sociais conhecidos como
pré-vestibulares comunitários.
A não priorização das questões sociais por parte do Estado neoliberal,
contribuiu para o surgimento de formas alternativas de organização da sociedade
civil – descritos por movimentos sociais de recortes específicos, como os pré-
vestibulares comunitários; que reivindicam a baixa qualidade da educação básica e
da escola pública, e a falta de acesso a negros e pobres às universidades públicas.
Estes movimentos sociais se formaram com o objetivo de suprir as deficiências das
políticas públicas voltadas para área social, através de iniciativas particulares
voltadas para o resgate do direito civil e da cidadania. Estas intervenções por parte
da sociedade civil a partir da criação de cursinhos comunitários, manifestações
públicas e criação de estatutos e manifestos, são uma tentativa de minimizar as
imensas desigualdades e exclusões sociais presentes na educação e nas relações
sociais, que mobilizaram diversos grupos sociais preocupados em colocar em prática
o real conceito de democracia, igualdade e justiça social.
Na década de 1990, em quase todas as regiões do Brasil, observou-se uma
grande capilarização social63 dos cursos pré-vestibulares comunitários voltados para
segmentos sociais populares. A difusão desses cursos possui seu embrião no
descontentamento em relação a uma construção desigual e hierarquizada do tecido
social brasileiro. Isentos de pretensões políticas ou partidárias, movidos apenas pela
identificação, como sujeitos de uma causa social, articulam um movimento motivado
pela solidariedade e pelo voluntariado. Em 1993, surge na Baixada Fluminense, com
sede na Igreja Matriz de São João de Meriti, o Pré Vestibular para Negros e
63
Capilarização Social: o termo é aqui utilizado como sinônimo de difusão. Ver: SANTOS, Renato Emerson. Racialidade e novas formas de ação social: o Pré-Vestibular para Negros e Carentes. In: SANTOS, Renato Emerson. (org). Ações Afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades sociais. RJ: DP&A Editora, 2003.
- 65 -
Carentes – PVNC, em função do descontentamento de negros e pobres com a
péssima qualidade do ensino médio nesta região de periferia, que eliminava a
possibilidade de acesso dos estudantes da região, em sua maioria negros e
carentes, às universidades.
O Pré-Vestibular para Negros e Carentes inaugurou, no cenário dos
movimentos sociais, uma reivindicação voltada para a denúncia das desigualdades
sociais descritas por meio da raça e da classe. È importante perceber que os
conceitos de raça e classe ganham um significado prático e menos teórico para
estes movimentos; a raça, por exemplo, ganha uma interpretação histórica e social,
e o conceito de classe passa a ser interpretado pela condição social e pelo lugar de
origem representado pelas periferias e comunidades.
“O Pré Vestibular para Negros e Carentes é um movimento de educação popular,
laico e apartidário, que atua no campo da educação, através da capacitação para o
vestibular de estudantes economicamente desfavorecidos em geral e negros (as) em
particular. (...), em caráter geral [é] um movimento de luta contra qualquer forma de
racismo e exclusão, em caráter especifico, uma frente de denúncia, questionamento e
luta pela memória e democratização da educação, através da defesa do Ensino
Público, gratuito, de qualidade, em seus níveis fundamental, médio e superior, nos
âmbitos municipal, estadual e superior”. (Carta de Princípios, 1998)64.
A ação do PVNC esteve pautada na luta pelo acesso à universidade como
uma forma de declarar a elitização econômica e racial no ensino superior brasileiro.
Em sua agenda o esclarecimento para os alunos sobre a importância do
conhecimento da identidade étnica movia o movimento cuja ação se colocava como
anti-racista, na medida em que previa que estes grupos raciais e socioeconômicos
compreendessem que as raízes da exclusão se encontravam nas relações sociais e
não como um problema individual.
De acordo com o censo realizado pelo IBGE, em 2000, o Brasil possuía uma
população de 170 milhões de habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram
como brancos (53,7%), 10 milhões como pretos (6,2%), 761 mil como amarelos
(0,4%), 65 milhões como pardos (38,4%) e 734 mil indígenas (0,4%). (IBGE,
2000:37)65
64
Carta de Princípios. PVNC, 1998. Disponível em www.pvnc.org 65
Censo Demográfico 2000. Características Gerais da População. Resultados da Amostra. IBGE, 2000.
- 66 -
Em relação aos grupos que se declaram brancos e negros (pretos e pardos),
os dados que demonstram os índices educacionais do Brasil, através do Censo de
2000 referentes às taxas de escolarização por cor ou raça, determinam um
crescimento na freqüência escolar, apesar da presença de disparidades entre os
diferentes grupos de cor.
. A escolarização das crianças de 5 ou 6 anos de idade foi mais acentuada
para os amarelos (81,5%), seguidos dos brancos (74,5%) e ficando abaixo da média
nacional, os pretos, com 66,2% e os pardos, com 69,0%. Esta escolarização para a
população indígena, ainda não atingiu metade das crianças de 5 ou 6 anos de idade,
apresentando uma taxa de apenas 43,6%.
Analisando a freqüência escolar entre 7 e 14 anos, observou-se que, exceto
os indígenas, as demais categorias já atingiram proporções superiores aos 90% de
alunos na escola, tendo os brancos e os amarelos, taxas semelhantes. Na
comparação com o Censo Demográfico de 1991, no que se refere à freqüência
escolar, enfatiza-se entre os pretos e pardos um crescimento de 29,4% e 26,5%,
respectivamente, visto que em 1991 os pretos apresentavam uma freqüência de
71% passando para 91,9% em 2000, e os pardos de 73,7% em 1991 aumentando
para 93,2% em 2000, alcançando os brancos que sofreram pouca variação na
freqüência escolar já descrita por uma média alta de 86,5% em 1991 para 96,2% em
2000.
Segundo o IBGE, a análise dos dados demonstra uma tendência da redução
da freqüência nas escolas e da taxa de escolarização por grupos de cor ou raça em
função da necessidade de inserção de muitos jovens no mercado de trabalho, que
por esta razão, acabam abandonando os estudos no período do Ensino
Fundamental II e no Ensino Médio. Para o grupo de jovens entre 15 e 24 anos de
idade, a escolarização média revelada pelo Censo Demográfico 2000 era de 46,8%.
Para o grupo de brancos, a taxa foi de 48,5%; para os pretos, 42,8%; os amarelos
se destacaram com 62,7% que foi bem acima da média do país; os pardos, 45,4%, e
os indígenas, 40,0%. (Censo IBGE, 2000:44). Em comparação com os dados
apresentados pelo IPEA em 2004, os jovens negros freqüentam muito menos o
ensino médio (34,3%) do que os brancos (56,5%).
Observando os dados apresentados sobre a variação da taxa de
escolarização, é possível destacar uma melhoria relacionada a oportunidades da
educação, mas que, no entanto, não foram suficientes para eliminar as
- 67 -
desigualdades educacionais entre brancos e negros. Em um outro estudo realizado
pelo IPEA sobre o acompanhamento das políticas sociais de igualdade racial em
2008, também é possível observar um aumento dos números referente ao acesso
dos negros ao ensino superior em uma pequena porcentagem que caminha em lenta
progressão, mas que ainda não permitiu a redução da lacuna entre brancos e
negros nas universidades como demonstra a tabela a seguir66.
O panorama da crise na educação pública possui um alicerce sólido na
educação básica e tece um caminho confuso e tortuoso até o topo, alcançando as
universidades. O estudante da rede pública enfrenta um problema estrutural do
sistema de ensino, que dificulta o acesso e a disputa igualitária às poucas vagas
oferecidas no ensino superior. O vestibular nivela os estudantes por meio de uma
seleção pautada em conhecimentos adquiridos ao longo da formação do aluno, onde
as camadas menos favorecidas – os estudantes da rede pública, não conseguem
obter a formação necessária para competir com os alunos da rede particular, visto a
situação caótica em que se encontra a educação pública.
O acesso universal fica, portanto, limitado aos estudantes que detêm o poder
de compra do conhecimento, que consequentemente acabam ocupando as vagas
limitadas das universidades públicas e os melhores postos de trabalho na
sociedade, enquanto os negros, indígenas e estudantes de classes baixas, que
necessitam da educação como um direito, se alcançarem o ensino médio sofrem
com uma disputa desigual por falta do conteúdo exigido pelo vestibular e pela
negligência do governo.
66
Esta tabela foi retirada do estudo sobre o acompanhamento e análise das políticas sociais no Brasil/ Igualdade Racial, realizado em 16 de novembro de 2008.
- 68 -
O dilema da educação brasileira demonstra a ausência do Estado no
investimento e compromisso com a educação pública de qualidade, o que acaba por
refletir diretamente na adoção de políticas universais para o combate das
desigualdades raciais. Neste sentido, a pressão dos movimentos sociais sobre o
governo para que este mantenha a gerência e participação nas políticas sociais,
contribuiu para a adoção das políticas de ação afirmativa, que possui como um dos
objetivos principais, resolver as desigualdades educacionais entre negros e brancos
no Brasil, porém, no que se refere, ao acesso as universidades, e não, em relação à
educação básica de qualidade.
2.3 As ações afirmativas no Brasil.
O marco histórico responsável pela adoção das políticas de ação afirmativa
no Brasil foi a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul em 2001, na cidade de
Durban. Denominada como Conferência de Durban, este encontro se
responsabilizou por definir a agenda das relações raciais, e particularmente, do
Brasil, onde junto à ação de diferentes movimentos sociais, entre eles a marcante
atuação do Movimento Negro brasileiro, o governo se concentrou em ações e
iniciativas voltadas para promoção da igualdade de oportunidade entre brancos e
negros através do acesso a educação, ao mercado de trabalho, ao crédito, ao
serviço de saúde entre outros. (HERINGER, 2006, p.82)67
A percepção de que a falta de oportunidades e a pobreza da maioria dos
negros no Brasil estava relacionada com questões raciais e de classe, proporcionou
uma ação do governo Lula em torno da adoção das ações afirmativas, e a criação
de um ministério de igualdade racial – SEPPIR: Secretaria Especial de Promoção da
Igualdade Racial, em favor de políticas públicas de discriminação positiva visando à
inclusão social de grupos étnicos excluídos. O SEPPIR cumpria as exigências da
Conferência de Durban, já discutida pelo governo de FHC, e no mandato de Lula
67 HERINGER, Rosana. Políticas de promoção de Igualdade racial no Brasil: um balanço do período de 2001-2004. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.
- 69 -
ganhava uma atenção especial, na medida em que o próprio governo traçava um
caminho em torno das políticas sociais a partir de critérios multiculturais.
Neste cenário, o Movimento Negro passou a assumir uma postura
reivindicativa e ganhou um espaço importante na luta pela inclusão social e
reconhecimento identitário, iniciando, desta forma, junto a outros movimentos sociais
voltados para a educação, como os pré-vestibulares comunitários, um debate sobre
a adoção das políticas de cotas como uma forma de garantir a igualdade de
oportunidades, e consequentemente, diminuir as distâncias sociais entre brancos e
negros na sociedade.
As políticas de cotas consistem em um mecanismo das ações afirmativas que
procuram viabilizar a promoção da igualdade jurídica e material, por meio da criação
de oportunidades direcionadas a grupos raciais, sociais e étnicos, excluídos por
questões históricas ou econômicas. Atualmente, a política de cotas está em
processo de votação no Congresso Nacional através da Lei de Cotas (PL73/1999).
Esta lei prevê a reserva de negros, indígenas, deficientes físicos, estudantes de
escolas públicas, entre outros grupos étnicos e socioculturais nas universidades
públicas brasileiras, como um recurso voltado para a ampliação dos direitos, da
cidadania e do acesso à educação, a partir da reserva de vagas.
Em dezembro de 2003, durante o primeiro mandato do governo Lula, o
decreto no 4.886, institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(PNPIR), considerando que o Governo Federal tem o compromisso de romper com a
fragmentação que marcou a ação estatal de promoção de igualdade racial,
incentivando os diversos segmentos da sociedade e esferas do governo a buscar a
eliminação das desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra.
(Art.2º, 2003)68
Além de afirmar o caráter pluriétnico da sociedade brasileira por meio do
reconhecimento das culturas indígena e afro-brasileira como integrante da
nacionalidade e do processo civilizatório nacional, a PNPIR, procurou criar ações
para a defesa destes direitos por meio da implementação curricular da lei no10.639
de obrigatoriedade do ensino em História da África nos currículos escolares, criando
apoio e projetos às comunidades remanescentes de quilombo, e o incentivo à
adoção de política de cotas nas universidades e no mercado de trabalho.
68
Para acesso ao texto integral ver o site: www.planalto.gov.br
- 70 -
A não adoção das políticas de ações afirmativas como uma política pública,
tem gerado diferentes formas de aplicação e financiamento da política. Por exemplo,
no que se refere a projetos no campo educacional, ONGs e movimentos sociais
desenvolvem ações em parceria com agências de cooperação internacional como a
Fundação Ford69, que destinou na última década um expressiva parcela de seus
recursos ao combate à discriminação racial e ao fortalecimento das organizações
negras no Brasil. (HERINGER, 2006, p.91).
Apesar dos inúmeros projetos apresentados pelo governo federal no âmbito
da promoção da igualdade racial, o de maior destaque na sociedade civil, sem
dúvida está a política de cotas nas universidades. É importante perceber que no
governo FHC, essa temática começou a ganhar relevância no Ministério de
Educação por meio do Programa Diversidade Para Todos, lançado em 2002. Este
programa ganhou o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por
ampliar o acesso à educação dos grupos socialmente desfavorecidos, melhorando,
desta forma, os índices educacionais. Entretanto, o programa estava centrado no
repasse de recursos apenas para universidades públicas e privadas que oferecesse
a esses grupos, cursos preparatórios para candidatos ao vestibular. Esta atitude do
governo gerou criticas que levaram ao entrave do programa, que em si, não criou
critérios para estabelecer corretamente o repasse de recursos para os tais cursos
preparatórios.
Em 2003, a partir da aprovação pela ALERJ – Assembléia Legislativa do Rio
de Janeiro, de um programa de reserva de vagas nas universidades estaduais do
Rio de Janeiro para estudantes de escolas públicas e negros auto-declarados, a
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a UENF – Universidade
Estadual do Norte Fluminense inauguravam em seu vestibular o sistema de cotas.
Após a experiência da UERJ, seguiram o exemplo, a UFBA – Universidade da
Bahia, e UnB – Universidade de Brasília, alegando autonomia universitária para criar
mecanismos de democratização do acesso as vagas da universidade.
O extenso debate em torno das cotas, e, sobretudo, da racialização da
política, determinou por parte do Ministério de Educação sob o mandato de Tarso
Genro outras formas de promover a igualdade racial. Para o ministro que se
colocava contra as cotas nas universidades, alegando a insuficiência do sistema
69
A Fundação Ford é uma entidade americana voltada para produção de pesquisas, e concessão de financiamento e bolsas em programas de promoção de igualdade e redução de pobreza pelo mundo.
- 71 -
para garantir o acesso dos grupos excluídos à educação superior, o ministro
procurou apresentar uma proposta que trabalhava com as vagas ociosas das
universidades privadas, que seriam ocupadas por estudantes negros, indígenas,
deficientes físicos e ex-presidiários a partir de 2004. O PROUNI – Programa
Universidade para Todos, foi criado por meio da medida provisória no213 em
10/09/2004, que reservava 25% das vagas disponíveis nas universidades privadas
das 37,5% vagas descritas como ociosas, em função de uma renúncia fiscal que
beneficiaria as universidades privadas que adotassem o programa.
A polêmica gerada pelo PROUNI da manutenção do investimento no ensino
privado em oposição ao ensino público, levantou questões em torno da permanência
da elitização nas universidades públicas, visto que em contraposição às cotas, os
estudantes desfavorecidos encaminhavam-se para as universidades privadas,
enquanto os estudantes que tivessem concluído o ensino médio em escolas
particulares de boa qualidade se dirigiriam às universidades públicas. O fato é que o
PROUNI não eliminou a procura, nem mesmo a implementação das políticas de
cotas nas universidades públicas visto que, este sistema possui um respaldo dos
movimentos sociais. De certa forma, a existência do PROUNI e do sistema de cotas
nas universidades públicas ampliou o leque de oportunidades para os grupos
etnicamente excluídos.
Atualmente, as políticas de ações afirmativas nas universidades ganharam
critérios diversificados, que acompanham os debates internos sobre as exigências
da universidade e também os problemas da região na qual a universidade pública se
insere. Os critérios adotados pelas universidades variam das reservas de vagas por
acréscimo de nota, por cotas ou por acréscimo de vagas, abrangendo um publico
alvo diversificado, dentre eles: indígenas, negros, estudantes de escolas públicas,
filhos de bombeiros, membros dos trabalhadores sem terra, quilombolas, residentes
no interior do estado, deficientes físicos, e por critério de renda, somando um total
de 79 universidades que adotaram as políticas de ações afirmativas, conforme
apresentam as tabelas a seguir.
- 72 -
Tabela 1: Total de Universidades públicas por regiões
Regiões Universidades
Estadual Federal Municipal
Centro-Oeste 03 03 02
Nordeste 08 13 0
Norte 01 03 0
Sudeste 09 09 01
Sul 20 06 01 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira
Tabela 2: Total de universidades
com ações afirmativas por região no Brasil.
Regiões Total de Universidades
com Ações afirmativas
no Brasil
Centro-Oeste 08
Nordeste 21
Norte 04
Sudeste 19
Sul 27
Total 79 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira
Tabela 3: Total de universidade com ações afirmativas por enquadramento
público.
Universidades
Total de
Universidades com
Ações afirmativas no
Brasil
Estadual 41
Federal 34
Municipal 04 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira
- 73 -
O processo de adoção das políticas de ações afirmativas no Brasil ganhou
maior expressão nas universidades públicas que, no entanto, não possuem o apoio
esperado do governo para gerir tais políticas, visto que em função da economia
neoliberal, as ações do governo têm-se tornado pontuais, principalmente na área
social e, sobretudo, no que se refere ao investimento na educação e no ensino
superior. Por isso, em detrimento da autonomia universitária, a maioria das
universidades públicas com ações afirmativas tem sofrido com a falta de recurso
para manutenção das políticas e da estrutura universitária como um todo.
A UERJ, pioneira na adoção das políticas de cotas para o ingresso de grupos
étnicos e sociais excluídos, passa por problemas referentes à permanência dos
estudantes cotistas, que por conta dos recursos escassos lidam com a ameaça de
não concluir a graduação em função da possível evasão por falta de recursos
financeiros. O discurso racial assume um caráter importante para a continuidade das
políticas de ação afirmativa na universidade, porém a reserva de vagas com critérios
raciais sofre grande pressão da sociedade civil, o que contribui para o
desconhecimento do funcionamento do sistema de cotas na universidade. Neste
universo de disputas ideológicas e de problemas reais no cotidiano da universidade,
as políticas de cotas assumem uma importância para o acesso ao ensino superior, e
por isso descrevem uma experiência de transformação social, através de novas
identidades que levam à universidade uma diversidade cultural por meio de
diferentes trajetórias sociais.
No próximo capitulo discutiremos a experiência da UERJ no histórico da
adoção das políticas de ação afirmativa na universidade, analisando esta
experiência concreta por meio do depoimento dos alunos cotistas, que descrevem
em relatos de vida suas trajetórias sociais até a chegada à universidade.
- 74 -
CAPÍTULO 3
A POLÍTICA DE COTAS NA UERJ
- 75 -
3.1 Histórico da adoção da política de cotas na UERJ
Diante da percepção do governo federal de que as políticas sociais brasileiras
devem compreender a diversidade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, as
políticas de ações afirmativas se inseriram nos setores educacionais por meio da
adoção do sistema de cotas – reserva de vagas. Em 2003, no vestibular da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, foram aplicadas políticas de
cotas, expressa em critérios étnicos, econômicos, e, sobretudo, relacionados a
disparidade da educação básica entre os setores público e privados, onde a
diferença da qualidade de ensino implica em um obstáculo ao acesso à
universidade.
A política de ação afirmativa na UERJ teve caráter pioneiro em relação as
demais universidades públicas do país. A decisão da ALERJ (Assembléia Legislativa
do Rio de Janeiro) através da Lei 3524/2000 aprovada em 28 de dezembro de 2000
estabeleceu a cota de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas que
tivessem terminado integralmente os estudos dos Ensinos Fundamental e Médio em
escolas públicas, em cada uma das universidades estaduais (UERJ, UENF70). Em 9
de dezembro de 2001, a ALERJ aprovou uma outra lei referente à democratização
do acesso às universidades: a Lei 3708/2001, destinava a reserva de 40% das
vagas nas duas universidades estaduais do Rio de Janeiro para estudantes negros e
pardos declarados.
“Artigo Primeiro: Fica estabelecida a cota mínima de 40% (quarenta por cento) para
as populações de negros e pardos no preenchimento das vagas relativas aos
cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na
Universidade estadual do Norte-Fluminense (UENF). Parágrafo Único - Nesta cota
mínima incluídos também os negros e pardos pela lei 3524/2000 (que dispõe sobre
os critérios de seleção e admissão de estudantes de rede pública estadual de
ensino em universidades públicas e estaduais da providência”.71
70
UENF: Universidade Estadual do Norte Fluminense, localizada em Campos. 71 Para acesso ao texto integral, ver site: www.alerj.rj.gov.br Retirado de: MACHADO, Elielma Ayres. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre as “leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros pardos e carentes” na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese de doutorado. UFRJ, dezembro, 2004.
- 76 -
Ambas as leis aprovadas descreviam a militância de movimentos sociais e do
movimento negro voltados para o descontentamento das desigualdades sociais e
raciais no Brasil. A urgência do acesso à universidade pública implicava em uma
idéia de democratização da educação aos desfavorecidos, que denunciavam ao
mesmo tempo a crise na educação pública básica de qualidade, e o racismo
enquanto um obstáculo à equidade socioeconômica dos diferentes segmentos
sociais e étnicos existentes em nossa sociedade.
Em 4 de março de 2002, durante a gestão do governador Antony Garotinho,
foram regulamentadas as duas leis que estabeleciam a reserva de 50% das vagas
para estudantes de escolas públicas e 40% para negros e pardos auto-declarados
nas universidades do Estado do Rio de Janeiro por meio da Lei 3766/2002 válida
para o vestibular de 2003. No entanto, os critérios de seleção para o candidato que
entraria por meio da reserva de vagas só foi aprovado por meio do Decreto-Lei
31468, tendo em vista que a organização do vestibular de 2003 já estava sendo
realizada neste período pelos exames de qualificação.
Neste sentido, o concurso foi dividido em dois exames: o SADE (Sistema de
Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio) voltado para o
preenchimento das vagas reservadas para negros, pardos, e estudantes de escolas
públicas, incluindo todos os candidatos que desejassem participar do sistema de
cotas, e o vestibular comum direcionado às vagas não-reservadas e as direcionadas
a negros e pardos auto-declarados. Buscando completar o programa de políticas de
ações afirmativas na universidade, no inicio de 2003, foi sancionada a Lei 4.061 que
reservava 10% das vagas das universidades estaduais para portadores de
deficiências físicas.
A ausência de critérios definidos levou aos candidatos que concorriam às
vagas reservadas a negros e pardos, por exemplo, a uma reserva de 90% e não de
40% como regulamentava a lei, visto que por meio do vestibular do SADE, os negros
auto-declarados concorriam às vagas reservadas aos estudantes de escolas
públicas e também às vagas reservadas ao vestibular comum.
Além da ausência de critérios, o requisito racial e a reserva de vagas geraram
polêmicas enormes no vestibular de 2003 após a divulgação do resultado do
vestibular. A aplicabilidade do sistema de cotas e a maneira como ele foi conduzido
geraram uma série de processos no campo jurídico que discutiam as notas para
admissão dos candidatos concorrentes à reserva de vagas como inferiores e
- 77 -
insuficientes, frente às notas mais altas de candidatos concorrentes a vagas não-
reservadas que foram desclassificados; o mérito acadêmico avaliado como requisito
básico para o acesso à universidade também foi colocado no cerne da discussão. E
o mais polêmico dos pontos foram as cotas raciais atacadas por todos os lados
como algo inadmissível frente a miscigenação da sociedade e também a noção de
igualdade nos termos constitucionais, o que poderia trazer conflitos raciais na
universidade.
O debate acirrado em diferentes posições voltadas para avaliação do sistema
de cotas polemizado na mídia, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e na
universidade, levou a uma grande pressão social de entidades do movimento negro
e de outros movimentos sociais (como pré-vestibulares comunitários), visando a
reformulação das leis já regulamentadas para uma melhor aplicabilidade do sistema
de cotas no vestibular. Tais movimentos não reivindicavam o fim do sistema de
cotas, pelo contrário, o sistema de cotas viabilizava uma frente de acesso de grupos
excluídos à universidade como um direito adquirido diante de uma maior consciência
social das desigualdades e das diferenças raciais. Neste sentido, em 4 de setembro
de 2003, durante o governo de Rosinha Garotinho, foi aprovada na ALERJ a Lei
4151 que determinava a reserva de 20% das vagas para estudantes de escolas
públicas, 20% para negros e 5% para deficientes físicos e minorias72.
“Artigo 1º: Com vistas à redução das desigualdades étnicas, sociais e econômicas,
deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos
cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:
I – oriundos da rede pública de ensino;
II – negros;
III - pessoas com deficiência, nos termos da legislação, e minorias étnicas. (...)
I – 20% (vinte por cento) das vagas para estudantes da rede pública de ensino;
II – 20%(vinte por cento) das vagas para negros;
III – 5% (cinco por cento) para deficientes, nos termos da legislação, e minorias
étnicas”. 73
72
Em 17 de julho de 2007, foi aprovada a Lei 5.074 que permite nos 5% das vagas reservadas para deficientes físicos e indígenas, o ingresso de filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares, inspetores de segurança e administração penitenciária mortos em combate ou incapacitados em razão do serviço. Esta lei só foi utilizada a partir do vestibular de 2008. 73 Ver www.alerj.rj.gov.br
- 78 -
Nesta “nova lei” ficou determinado que todos os candidatos interessados, só
podiam concorrer a uma das cotas e deviam comprovar a renda máxima por pessoa
de R$300,00 líquidos por pessoa da família.74
Durante o vestibular de 2004, a “nova lei” foi aplicada a partir dos novos
critérios estabelecidos, levando à universidade um novo perfil dos estudantes da
UERJ. Por isso, foi necessário relacionar a esta lei um programa de auxilio à
permanência do estudante cotista na universidade, visando não só o alcance da
oportunidade, mas também possibilitando a este novo aluno a conclusão da
graduação. Neste mesmo ano, por deliberação do Conselho Superior de Ensino,
Pesquisa e Extensão foi criado o Programa de Iniciação Acadêmica – Proiniciar75,
destinado aos estudantes de graduação da UERJ, mas preferencialmente aos
estudantes que ingressaram por meio do sistema de cotas. Conforme a deliberação
no 043/2004, o Proiniciar possui o objetivo de apoiar o estudante nos dois primeiros
períodos de graduação, como uma forma de auxiliar a permanência na universidade
até a conclusão do curso por meio da distribuição de bolsas de iniciação cientifica
acadêmica, atividades extracurriculares, além de um sistema de acompanhamento e
avaliação permanente dos estudantes cotistas sob a responsabilidade do
Departamento de Projetos Especiais e Inovações (DPEI).
Nos anos de 2003 e 2004 foram distribuídas 2.386 bolsas de iniciação
acadêmica aos estudantes cotistas. Tais bolsas são consideradas como uma bolsa-
auxílio, pois todo estudante deve cumprir uma carga horária em atividades
acadêmicas ou em projetos de pesquisa. Os bolsistas podem se inscrever na bolsa
FAPERJ onde realizam atividades de pesquisa atreladas ao projeto de um
orientador/professor da UERJ, ou concorrer a uma bolsa da UERJ, inserindo-se em
atividades extracurriculares oferecidas pelo Proiniciar, divididas em: oficinas,
disciplinas instrumentais e culturais.
O valor inicial da bolsa voltada para permanência do estudante cotista votada
em 2004 era de R$190,00 mensais76. A renovação da bolsa era estabelecida a partir
74 Como este texto trata de uma descrição histórica foi preservado o critério de renda por pessoa inicial. Em 2005, o vestibular estadual modificou o critério de carência para R$ 520,00 reais brutos por pessoa da família. Atualmente, o limite de renda em vigor para estudantes que pretendem concorrer às cotas é de R$630,00 reais por pessoa da família. 75 O Proiniciar está vinculado ao Departamento de Projetos Especiais e Inovações – DPEI, subordinado a Sub-reitoria de Graduação – SR-1. O Proiniciar foi criado em 2004 pela deliberação 043/2004 com o objetivo de oferecer suporte ao estudante cotista na universidade. 76 Os alunos que concorriam à bolsa UERJ recebiam a remuneração de R$190,00; já os bolsistas da FAPERJ ganhavam o equivalente a uma bolsa de iniciação científica R$290,00
- 79 -
do comparecimento do aluno às oficinas e disciplinas extracurriculares. O aluno
cotista só recebia a bolsa durante o primeiro ano de graduação, cabendo ao mesmo
a responsabilidade de engajar-se em outras atividades e pesquisas para a
manutenção da bolsa. Atualmente, sob a gestão do governador Sergio Cabral, a
ALERJ aprovou a permanência da bolsa de estudos aos estudantes cotistas durante
todo o período de graduação. Foi realizado também um reajuste do valor bruto da
bolsa, passando para R$250,00.77 Tal modificação acompanha estudos relacionados
à permanência dos estudantes cotistas, que alegam a dificuldade financeira como
um dos maiores obstáculos à conclusão do curso, assunto que discutiremos mais
adiante.
Foi possível identificar neste breve histórico que a adoção da política de cotas
na UERJ trouxe uma nova realidade à universidade. A modificação nos critérios
voltados ao acesso à universidade permitiu uma mudança social e étnica na própria
instituição, que, no entanto, teve que se reestruturar e construir novos critérios
voltados à permanência deste novo estudante caracterizado pela carência
econômica. A seguir entenderemos, a partir de dados gerais da UERJ, esta
mudança, compreendendo também de que forma o critério de classe e a distinção
econômica contribuem para a desracialização do sistema de cotas.
3.2 Um balanço dos cinco anos (2003/2007) da política de cotas na UERJ:
análise de dados referentes ao acesso e matricula dos estudantes cotistas.
Após cinco anos de políticas de cotas na UERJ, a experiência iniciada em
2003 precisou ser avaliada pela instituição a partir de dados estatísticos. Com uma
publicação a partir da editora da própria UERJ, foi lançado por meio da organização
de José Ricardo Campelo Arruda – Sub-diretor da graduação, “Políticas de Ações
Afirmativas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro”78, que em parceria com
docentes e pesquisadores apresentou os primeiros resultados concretos do sistema
de cotas na UERJ, a partir de três variáveis de análise: a exigência da carência
77
A modificação no valor da bolsa e na garantia ao aluno cotista de permanecer com a bolsa até o final do curso de graduação, não permite que o aluno acumule mais de uma bolsa acadêmica, seja ela cientifica ou de extensão. Se o aluno cotista conseguir outra bolsa ele deixa de receber a bolsa auxilio, mas se ele deixar de receber a bolsa de extensão ou cientifica, a lei lhe garante que ele retome o recebimento da bolsa do Proiniciar. 78
ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007.
- 80 -
socioeconômica para o ingresso no sistema; o aproveitamento do discente a partir
da utilização de coeficiente de rendimento dos diferentes cursos de graduação da
universidade e o índice de evasão dos egressos pelo sistema de cotas.79
A importância na análise destes dados gerais e oficiais permitirá uma
compreensão mais profunda das trajetórias sociais dos cotistas estudados nesta
dissertação, no que se refere à percepção da importância das cotas para o acesso à
universidade, que tipo de cotas é mais procurado, e por meio de uma comparação
dos perfis dos estudantes cotistas apresentados pela UERJ e nesta pesquisa,
identificar a amplitude do sistema de cotas em relação à construção de uma nova
universidade cuja centralidade se encontra na diversidade cultural, étnica e
socioeconômica.
O vestibular da UERJ está dividido em duas fases: o Exame de Qualificação e
o Exame Discursivo. O Exame de Qualificação, compreendido como a primeira fase
do vestibular, consiste em uma prova objetiva de caráter eliminatório para todos os
candidatos: cotistas e não-cotistas cujo objetivo é avaliar os conhecimentos básicos
para o Ensino Médio divididos em: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas
Tecnologias. O aluno para seguir na segunda fase deve acertar até 40%. A
pontuação adquirida na primeira fase servirá de bônus na nota da segunda fase.
No Exame Discursivo80, entendido como a segunda fase do vestibular, o
candidato indica a sua escolha de curso e se deseja concorrer às vagas reservadas,
apresentando a sua opção de cota. Nesta etapa o candidato às cotas deve
apresentar uma vasta documentação pessoal, contendo informações sobre: grau de
parentesco, vínculo de trabalho, valor da renda e tipo de Declaração do Imposto de
Renda de cada pessoa que resida na casa onde mora, além de preencher um
formulário socioeconômico. Toda esta documentação é avaliada pelo Departamento
de Projetos Especiais e Inovações (DPEI). O resultado da análise da documentação
é apresentada, podendo caso o processo for indeferido ser recorrido pelo candidato.
79 Os dados do primeiro balanço do sistema de cotas na UERJ tem origem oficial do Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA), o Departamento de Projetos Especiais e Inovações Acadêmica (DPEI) e o Departamento de Administração Acadêmica – todos subordinados a Sub-Reitoria de Graduação (SR-1) e o Núcleo de Informação e estudos de Conjuntura (NIESC), responsável pela organização do DataUerj: publicação que reúne as principais informações institucionais da universidade. 80
No Exame Discursivo o candidato realiza três provas: Redação e Língua Portuguesa comum a todos os inscritos, e outra disciplina específica definida a partir da escolha do curso. Vale lembrar que dos 100 pontos da nota da prova, a exigência da nota mínima para aprovação é de 20 pontos.
- 81 -
Como verificação do acesso à universidade no período de 2004-2007 sob a
vigência da Lei 4.151/3003, em dados quantitativos e percentuais apresentados pelo
Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA) serão destacados a seguir o número
de inscritos por vagas no vestibular da UERJ e o número de matriculados.
Em relação ao número total de candidatos inscritos, o percentual de
candidatos que optaram por cotas em 2004 foi de 24%, passando em 2005 para 9%,
em 2006 10%, e 8% em 2007. Na tabela abaixo estão relacionados o número de
inscritos por tipo de vaga. 81
Tabela 1: Número de Inscritos por Vaga
Vestibular Cotas de
Rede
Pública
Cotas
para
Negros
Cotas para
Deficientes
Físicos e
Indígenas
Total de
inscritos
por cotas
Vagas não
Reservadas
2004 4.331 2.849 67 7.247 22.983
2005 1.745 860 44 2.649 28.241
2006 2.470 1.102 48 3.620 32.500
2007 1.581 753 31 2.365 26.336
Fonte: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede
Sirirus, 2007. p.15.
Os números da Tabela 1, que apresenta os inscritos no vestibular da UERJ
no período de 2004 a 2007, revelam o maior número de candidatos que optaram
pelas cotas de rede pública em relação às cotas para negros e as cotas para
deficiente físico e indígenas. Numa análise dos inscritos por cotas para negros,
podemos destacar um decréscimo no número de candidatos de 2.849 em 2004 para
753 em 2007. Os números também apresentam uma queda no total de inscritos por
cotas de 7.247 candidatos em 2004 para 2.365 candidatos inscritos em 2007.
Porém, o número de inscritos em vagas não-reservadas manteve-se constante.
Em termos percentuais, o quantitativo do total estudantes cotistas
matriculados na UERJ em 2004 foi de 42%, um número bem próximo do definido
pela lei de cotas, em 2005 o número cai para 32%, em 2006 para 31%, e em 2007
81 É importante ressaltar que a legislação prevê a transferência automática das vagas não preenchidas por cotas para as vagas não–reservadas, de forma que a universidade se responsabilizará pelo preenchimento de todas as vagas oferecidas.
- 82 -
matriculam-se apenas 24%. A seguir estão detalhados os número de estudantes
matriculados por tipo de cotas e em vagas não-reservadas.
Tabela 2: Número de Matriculados pó tipo de Vaga
Vestibular Cotas de
Rede
Pública
Cotas
para
Negros
Cotas para
deficientes
Físicos e
Indígenas
Total de
matriculados
por cotas
Total de
matriculados
por vagas
não
reservadas
2004 1.206 877 32 2.115 2.978
2005 1.004 595 36 1.635 3.414
2006 1.003 547 34 1.584 3.506
2007 749 390 19 1.158 3.570 Fonte: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede
Sirirus, 2007. p.16
Observando os números da Tabela 2, que demonstra os estudantes
matriculados por cotas e vagas não reservadas, é possível destacar uma queda de
matrículas por cotas de rede pública de 1.206 alunos matriculados em 2004 para
749 alunos matriculados em 2006. O número de matriculados por cotas para negros
também sofreu um decréscimo de 877 alunos matriculados e auto-declarados em
2004, para 390 alunos matriculados e auto-declarados em 2007. Numa comparação
entre alunos matriculados por cotas e os alunos matriculados por vagas não
reservadas, é possível perceber que em 2004 não houve muita diferença entre o
número de matriculados, dos quais 2.115 matricularam-se por cotas e 2.978 por
vagas não reservadas. Mas nos anos seguintes observa-se uma queda no número
de matriculados por cotas, de 2.115 alunos em 2004 para 1.158 alunos matriculados
em 2007. Apesar da queda de mais de metade dos alunos matriculados por cotas,
os números referentes aos alunos matriculados nas vagas não reservadas sofreram
um aumento de 2.978 alunos em 2004 para 3.570 alunos matriculados em 2007.
A queda na matrícula de estudantes cotistas pode estar relacionada à
eliminação durante o processo seletivo por: falta à prova, nota final abaixo da
mínima exigida como critério de aprovação, desistência, falta a qualquer
procedimento de matrícula, problemas de pontuação. No entanto, a queda no
- 83 -
número de inscritos possui razões externas relacionadas ao desconhecimento dos
critérios e procedimentos para o acesso pelo sistema de cotas, o que também
justifica uma lacuna em relação à diferença do número de inscritos para cotas de
rede pública e cotas para negros.
Não há como identificar somente a partir dos números o motivo do
decréscimo de candidatos inscritos nas cotas para negros, mas se buscarmos uma
relação entre a dificuldade de percepção de uma identidade étnico cultural frente à
idéia de miscigenação, e a racialização do debate das cotas pela mídia como um
veículo que induz ao desconhecimento da amplitude do sistema de cotas, é possível
destacar segundo SANTOS (2006) 82 um outro motivo descrito como a
desracialização da política de ação afirmativa.
O corte de renda para o acesso às políticas de ação afirmativa na UERJ pode
ser um dos fatores responsáveis pela desracialização, o que significa que a
categoria carente construiu um novo grupo identitário comum a todos os
beneficiários por cotas. Mesmo que a renda se apresente como um critério para o
direito ao sistema de cotas, é importante compreender que as políticas de ação
afirmativas se constroem por meio de políticas diferencialistas como um pressuposto
de conscientização dos diferentes processos de exclusão na sociedade.
“A raça é não apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência
ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que
revela que as discriminações e desigualdades que a noção de ‘cor’ enseja são
efetivamente raciais e não apenas de classe”. (GUIMARÃES, 2002, p.50)83
A percepção do combate à discriminação racial como um mecanismo de
integração do negro à sociedade de classe é fundamental para uma construção
política da identidade racial, que permite o florescimento de grupos culturais de
afirmação da identidade negra e afro-brasileira preocupados em manifestar-se por
meio dos cabelos afro, da música black, das roupas coloridas, do rap, dos bailes
funk, do conhecimento da História dos afro-descendentes no Brasil, permitindo não
mais a declaração pela cor, e sim, sua identificação de raça enquanto uma definição
social: aceitando-se como negro.
82
SANTOS, Renato Emerson. Política de Cotas raciais nas universidades brasileiras – o caso da UERJ. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. 83
GUIMARÃES, Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.
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Neste sentido, as cotas não devem ser pensadas apenas em relação às
identidades raciais, e sim como parte dos múltiplos processos culturais e sociais
envolvidos na sua construção e manutenção. (PINTO, 2002, p.138)84 Isso significa
que construção da identidade do cotista é um processo que está relacionado com a
sua trajetória, e, por isso, a compreensão do processo de exclusão de forma
diferenciada intensifica o papel político de sua identidade e do próprio direito
enquanto cotista.
Com base na idéia de que a política de cotas trouxe uma diversidade de
identidades à UERJ, a universidade realizou um estudo do perfil socioeconômico
dos estudantes cotistas matriculados no período de 2004 a 2007, a partir de dados
quantitativos percentuais de estudos do Departamento de Seleção Acadêmica
(DSEA)85. A apresentação geral do perfil socioeconômico dos alunos cotistas em
comparação ao perfil socioeconômico dos alunos não cotistas, possibilita uma
compreensão das diferenças étnicas, sociais e econômicas entre os discentes da
universidade. Estes dados serão relacionados com o perfil dos entrevistados na
pesquisa desta dissertação, buscando um aprofundamento, e maior conhecimento
das trajetórias, da importância das cotas para o acesso a universidade, do cotidiano
e do significado da universidade para este novo grupo de alunos identificados como
carentes. 86
Em relação ao trabalho, a análise dos questionários socioeconômicos dos
alunos da UERJ demonstra que 50% dos alunos cotistas e não cotistas nunca
trabalharam, e cerca de 20% dos não cotistas e 30% dos cotistas começaram a
trabalhar com menos de 18 anos. Em 50% de ambos os grupos foi mencionado que
a fonte de renda mais comum é a mesada. No entanto, apesar da pouca diferença o
trabalho é mais comum entre os cotistas.
A maioria dos matriculados na UERJ independente do tipo de vaga se
percebe como negro ou pardo, mas entre os não cotistas encontra-se o maior
percentual dos que se percebem como brancos. Em relação ao gênero dos
84 PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Ação afirmativa, fronteiras raciais e identidades acadêmicas. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007 85 Para maiores informações ver: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007.p.24 e 25. 86 O estudo do perfil dos alunos realizado pela UERJ foi feito a partir dos dados do Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA), através da ficha socioeconômica preenchida por todos os alunos matriculados por cotas no período de 2004-2007. O estudo de perfil realizado na pesquisa desta dissertação reuniu 11 alunos cadastrados no Proiniciar inscritos para a bolsa auxilio, e também para “Oficina de Cotas” – grupo de pesquisa da faculdade de Serviço Social da UERJ. O texto a seguir pretende comparar os dois estudos.
- 85 -
ingressos na universidade, são apresentados números discretos de uma maioria de
mulheres matriculadas.
De acordo com os dados descritos acima e com os dados do perfil
socioeconômico, 80% dos alunos são oriundos de escolas públicas selecionados por
vagas reservadas todos os anos, e mais de 60% são estudantes oriundos de
escolas particulares. Em média, a faixa etária de um estudante cotista é de 21 anos
e do não cotista de 20 anos.
A maioria dos estudantes da UERJ, independente das vagas informou que
moram com os pais em casa própria com dois ou três quartos. Em relação ao
número de veículos 70% dos cotistas declararam não possuir carro, enquanto entre
os não cotistas esta percentagem indica que a maioria possui de um a dois carros.
Quanto à renda familiar, a lei de cotas determina ao cotista o critério de
carência com valores de até cinco salários mínimos, enquanto 80% dos não cotistas
informaram valores de renda mais altas.87 A escolaridade da família de um aluno
cotista se encontra nos níveis fundamental e médio, enquanto do aluno não cotista a
escolaridade dos pais apresentam maiores índices de conclusão do nível superior.
No que se refere a ter computador em casa e acesso a internet, percebeu-se
uma elevação na percentagem no grupo de alunos cotistas. Em 2004, 39% dos
alunos cotistas declararam ter computador em casa, e 69% disseram ter acesso à
internet. Em 2007, esse número cresceu respectivamente para 49% e 79%. Porém,
os não cotistas apresentam este índice em taxas mais altas, visto que ambos: a
internet e o computador, se encontram em casa.
Em relação à existência do número de livros em casa, a diferença entre
cotista e não cotistas é alta, visto que os não cotistas possuem mais de 100 livros
em casa, um percentual três vezes superior aos dos cotistas. Contudo, não foram
apresentadas grandes diferenças em relação ao número de livros lidos ao ano,
mantendo uma média para ambos os grupos de cinco livros lidos ao ano.
A partir do conhecimento das diferenças entre os perfis de cotistas e não
cotistas apresentado pelos dados da UERJ, é possível identificar que a carência ao
mesmo tempo se apresenta como um direito ao acesso à universidade e um
obstáculo à permanência do estudante cotista, visto que a diferença de escolaridade
familiar, o envolvimento com o trabalho, a dependência de transportes públicos, a
87
O calculo do perfil em relação a renda per capita depende do número de pessoas da família.
- 86 -
ausência de computadores em casa, falta de livros e acesso à internet evidenciam o
perfil de um aluno que necessita de uma maior utilização das estruturas oferecidas
pela universidade, e de um política de assistência que viabilize os custos deste
aluno na universidade. Porém, a carência não pode se transformar em um estigma
ou pressuposto da construção das políticas de permanência como assistencialistas,
é preciso dialogar com a diversidade existente a partir da política de cotas,
escutando os alunos, suas demandas, dificuldades e sugestões para seus
problemas na universidade.
Buscando identificar a importância da política de cotas não apenas como um
mecanismo de construção racial, mas de difusão da diversidade étnica, cultural,
econômica e social na universidade, foram entrevistados 11 estudantes de cotas de
cursos diferenciados da UERJ. A pesquisa descrita e realizada a seguir demonstra
além do cotidiano e das demandas destes jovens em relação à permanência, a
importância de uma política entendida como direito, destacando de que forma a
política de ação afirmativa na universidade contribui para construção da identidade
sociocultural de cada um destes jovens universitários, que enxergam o acesso à
universidade como um sonho realizado responsável por permitir o alcance de uma
profissão e postos mais qualificados no mercado de trabalho. Longe de minimizarem
a importância da universidade como o berço do conhecimento, estes jovens
acreditam que a oportunidade e direito de chegar à universidade implica na saída da
exclusão intelectual na qual se insere a maioria da população brasileira.
- 87 -
CAPÍTULO 4
TRAJETÓRIAS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA DE COTAS
PARA O ACESSO À UNIVERSIDADE.
- 88 -
4.1 Primeiros passos: o inicio da pesquisa e a oficina de cotas.
O objetivo deste capítulo é compreender por meio da entrevista com os
alunos cotistas da UERJ a importância das cotas para o acesso à universidade. Para
a compreensão deste tema tão polêmico serão discutidos os aspectos práticos da
política de cotas na universidade, vivenciados pelos cotistas em seu cotidiano na
UERJ, tais como: preconceito, relações raciais, dificuldades, estratégias de
sobrevivência na universidade, entre outros temas direcionados ao longo das
entrevistas e debatidos em diferentes falas.
No entanto, a singularidade desta pesquisa encontra-se na compreensão de
que a política de cotas trouxe à UERJ um perfil diferenciado de alunos dos quais a
universidade não estava acostumada a receber. Como foi discutido no capítulo
anterior, o critério para o acesso às cotas encontra na carência um fator comum a
todas as reservas: rede pública, negros, deficientes físicos e indígenas. Por isso,
para o conhecimento do perfil destes novos alunos, a pesquisa esteve preocupada
em desvendar as trajetórias de vida de cada entrevistado, demonstrando o percurso
realizado pelo aluno até o encontro das cotas como uma porta de acesso à
universidade.
Embora as experiências de vida apresentem aspectos comuns da
individualidade, as histórias em torno da trajetória escolar, da relação com a família,
das dificuldades econômicas até a chegada à universidade, demonstravam pontos
comuns que permitem a discussão das seguintes questões: qual seria a importância
das cotas para o acesso a universidade? Que papel possui a universidade para o
aluno cotista? A política de cotas contribui para a construção de identidades raciais?
A política de cotas une ou segrega os estudantes? A política de cotas trouxe uma
maior diversidade para a universidade?
Buscando um diálogo entre teoria e prática torna-se necessário não só um
estudo profundo do objeto estudado, mas também uma relação onde a pesquisa é
construída a partir de necessidades efetivas dos pesquisadores de compreender
recortes de realidade em que se inserem, objetivando transformá-los em
instrumentos eficazes de interferência nesta mesma realidade. Para estes, os
discursos devem partir das próprias vivências, o lugar onde a vida se dá e às quais a
ciência deve servir. Essa postura inclui preocupações éticas e políticas, pois
- 89 -
tenhamos consciência ou não, as ações científicas, mesmo daquelas decorrentes
das denominadas ‘ciências puras’, além de nos constituírem como indivíduos,
participam da formação da cultura em que estamos inseridos. (FERREIRA, 2004,
p.15)88
Entender a realidade do estudante cotista como um pressuposto para o
estudo da importância da política de cotas enquanto um dos mecanismos voltados
não só para o acesso à universidade, mas para a construção da identidade racial e
do combate das desigualdades sociais, significa compreender a trajetória desta
pesquisa.
O interesse por este tema teve início na monografia, onde analisei a história e
a luta dos pré-vestibulares comunitários, enquanto um movimento social voltado
para a democratização do acesso à universidade. Neste período o meu objeto de
estudo foi o PVNC: Pré-Vestibular Comunitário para Negros e Carentes, onde além
de ter trabalhado no movimento como professora de História, pude observar que as
desigualdades sociais são também conseqüência das relações raciais. A exclusão, a
falta de oportunidade e a pobreza denunciavam a situação do negro no Brasil, como
um produto do racismo cujo alicerce se encontrava em uma aliança entre raça e
classe. Somada a esta questão, a crise no ensino público prejudicava o possível e
indeterminado caminho destes jovens à universidade. O estudo da ação do PVNC
possibilitou a compreensão das ações afirmativas como uma política de direitos,
para o alcance de negros e pobres à universidade como um mecanismo de
conscientização política e qualificação para o mercado de trabalho.
A continuidade da pesquisa se deu por meio do encontro com os estudantes
cotistas em 2006, no grupo de pesquisa da Faculdade de Serviço Social da UERJ:
“Política de Assistência aos Estudantes Cotistas da UERJ” coordenado pela
professora Dra. Alba Tereza Barroso de Castro. O grupo de pesquisa se reunia em
rodas de escuta descrita como oficinas. Os estudantes cotistas se escreviam nas
oficinas a partir do Proiniciar como uma das atividades extracurriculares oferecidas
como pré-requisito para o recebimento da bolsa-auxílio.
Nesta oficina foram realizados oito encontros divididos por temas elencados
para discussão e debate de interesse dos estudantes cotistas. Antes da discussão
eram apresentados textos teóricos para subsidiar o debate, que se centralizava na
88
FERREIRA,Ricardo Franklin. Afro-descendente. Identidade em Construção. FAPESP, São Paulo, 2004.
- 90 -
experiência e vivência dos cotistas na universidade. Os temas discutidos na oficina
de 2006 foram: 1) Exigências para o recebimento da bolsa e participação na
programação oferecida; 2)O ingresso na universidade pelo sistema de cotas;
3)Discriminação, preconceito e estigmas aos alunos cotistas; 4)Privilégios e
diferenças entre os cursos de graduação; 5)Reflexos em função da ausência de uma
política de assistência aos estudantes cotistas; 6)Estratégias para enfrentar os
problemas na universidade; 7)Trajetória escolar e pré-vestibular comunitários;
8)Como pensamos a universidade: expectativas e realidade.
Nas oficinas um dos eixos centrais dos debates foi a permanência do
estudante cotista na universidade, onde a dificuldade financeira se apresentava
como um critério de acesso e ao mesmo tempo como um obstáculo à conclusão da
graduação, onde o aluno é obrigado a criar estratégias de sobrevivência para se
manter no curso diante da falta de uma política de assistência direcionada a estes
estudantes.
Escutar as experiências dos estudantes cotistas enquanto sujeitos sociais
durante as oficinas, permitiu o detalhamento do objeto desta pesquisa, que se
encontra voltada para a percepção dos processos históricos que envolvem as
relações raciais como um desdobramento das desigualdades e do racismo
estrutural. Esta idéia frente ao engajamento dos movimentos sociais, do movimento
negro e de pré-vestibulares comunitários determinou junto à ação do governo
estadual do Rio de Janeiro a inserção das políticas de ação afirmativa na
universidade, e como pioneira da adoção das políticas de cotas: a UERJ. A raça se
apresenta como uma das razões sociais mais fortes para o debate que norteia as
posições em relação às ações afirmativas na universidade, mas e na prática? Como
estes jovens se apresentam diante da importância das cotas?
4.2 Metodologia
Como a pesquisa esteve voltada para a análise das trajetórias sociais dos
estudantes cotistas, foram elaboradas para sistematização dos dados uma ficha do
entrevistado e um banco de perguntas responsável por nortear as entrevistas
- 91 -
realizadas. Para a organização pessoal do pesquisador foi criada uma ficha de
horários para o agendamento das entrevistas. 89
Durante o ano de 2007, o encontro inicial com os estudantes cotistas se deu
por meio da continuidade na pesquisa “Política de Assistência aos Estudantes
Cotistas da UERJ”. Neste momento, a participação nas oficinas se deu de forma
diferenciada da anterior, pois diante da contextualização do problema da pesquisa
foi necessário que houvesse candidatos para participar das entrevistas. Foi por meio
das oficinas que os alunos cotistas começaram a se candidatar às entrevistas
realizadas para a pesquisa desta dissertação.
Ao final de cada encontro os alunos interessados preenchiam a ficha de
horário intitulada: “Trajetórias sociais: uma análise da inclusão sob as
perspectivas dos alunos de cotas da UERJ” informando o horário da entrevista,
além de alguns dados pessoais como telefone, e-mail para qualquer outro contato.
Inscreveram-se para colaborar com a pesquisa desta dissertação vinte alunos, mas
só compareceram às entrevistas onze alunos de cursos variados: direito, psicologia,
serviço social, engenharia. Como o objetivo da entrevista estava voltado para o
conhecimento da trajetória social de cada entrevistado para análise e estudo do
sistema de cotas na perspectiva do acesso e ingresso à universidade, não houve
critério específico para escolha dos entrevistados em relação aos cursos ou
períodos.
Além da ficha de horários e disponibilidades, o aluno preenchia no dia da
entrevista uma ficha de dados pessoais, voltada para a organização das entrevistas
e da notificação de um perfil socioeconômico parcial do aluno como: renda familiar,
vínculo empregatício, escolaridade e número de irmãos. O conhecimento do perfil
socioeconômico detalhado dos entrevistados foi construído por meio das fichas de
cadastro de iniciação acadêmica da Sr1 - Proinicar, onde consta na UERJ toda a
documentação dos alunos de graduação, e em particular, dos estudantes cotistas e
bolsistas da universidade.
A opção metodológica de uma pesquisa qualitativa utilizando entrevistas
permitiu um encontro mais pessoal e aberto com os estudantes cotistas,
proporcionando ao longo deste encontro, debates que discutiam não só as cotas na
UERJ, mas a raça, os tipos de cotas, justificativas para o acesso as cotas, trajetória
89
A ficha do entrevistado, o questionário com as perguntas realizadas durante as entrevistas e a ficha de horário estão no Anexo I.
- 92 -
escolar e importância da universidade. Desta maneira os entrevistados se
transformaram em personagens reais, exemplificando por meio de relatos de vidas e
experiências a importância das cotas como acesso não só à universidade, mas
também para a melhoria da condição socioeconômica, familiar e pessoal. Por este
motivo, foram preservados seus verdadeiros nomes como forma de traduzir uma
conquista de direitos.
4.3 Conhecendo o perfil dos entrevistados.
A importância do conhecimento dos perfis como um alicerce da estrutura
metodológica possibilita a construção de um retrato do universo do qual o objeto de
pesquisa se encontra alicerçado. Conhecer quem são os alunos cotistas da UERJ
vislumbra um novo estudante que chega com novas necessidades, trajetórias e
expectativas, modificando a dinâmica da universidade.
A descrição do perfil dos entrevistados está dividida da seguinte forma: idade,
sexo, estado civil, participação em pré-vestibulares, transporte utilizado para chegar
à universidade, gasto semanal com transporte para chegar à universidade, tempo de
percurso para chegar à universidade, alimentação, gasto com alimentação, moradia,
situação de moradia, atividade remunerada, participação na renda familiar, isenção
da taxa de inscrição no vestibular, tipo de cotas que ingressou na UERJ, curso, turno
do curso. O objetivo da apresentação específica do perfil dos entrevistados é
construir uma relação com os dados gerais apresentados e divulgados pela UERJ
descritos no Capítulo III.
Em relação à idade dos entrevistados, nove, ou seja, a maioria se encontra na
faixa etária dos vinte aos trinta anos, um possui trinta e três anos, e um quarenta e
um anos. Deste universo, cinco entrevistados são homens e seis mulheres, onde
dez encontram-se solteiros e apenas um casado. Estes dados se relacionam com a
descrição geral da idade média dos estudantes cotistas apresentado pelo DSEA
(Departamento de Seleção Acadêmica), que se encontram na faixa etária dos 21
anos, com uma diferença pequena, mas significativa, de mulheres que ingressam na
universidade.
- 93 -
No que se refere à participação em pré-vestibulares para o ingresso na
universidade, seis declararam ter feito pré-vestibulares gratuitos, dois fizeram pré-
vestibulares pagos, e dois não fizeram pré-vestibulares, preferindo estudar em casa.
Sobre o transporte utilizado para chegar à UERJ, dez dos entrevistados
disseram utilizar o ônibus como transporte diário, onde nesta maioria, um declarou
alternar o ônibus com a van e outro com o metro; apenas um aluno colocou o metro
como transporte principal. O gasto semanal com o transporte para chegar à
universidade varia entre os entrevistados em custos de R$ 30 a 50 reais semanais
para cinco alunos, e de R$ 50 a 100 reais para três alunos, e mais de R$ 100 reais
apenas para dois alunos. No tempo de percurso gasto para chegar à universidade,
seis entrevistados disseram levar de 30 a 60 minutos, e cinco disseram gastar mais
de uma hora.
A comparação do perfil dos entrevistados para pesquisa e o perfil
apresentado pela UERJ, demonstra que os estudantes cotistas não possuem carro;
por isso, estes estudantes enfrentam uma dependência maior do transporte público.
Em função da despesa diária com mais de um tipo de transporte para chegar e sair
da universidade, os cotistas precisam de um auxílio financeiro para reduzir o gasto
com a passagem. O tempo de viagem também é um fator que pode atrapalhar o
desempenho do estudante, já que este leva uma hora ou mais para chegar à
universidade e assistir às aulas.
A alimentação na universidade dividiu os entrevistados da seguinte forma:
cinco declararam alimentar-se em casa, quatro se alimentam diariamente na UERJ
em cantinas e lanchonetes, e dois declararam não se alimentar por falta de recurso.
Sobre o gasto semanal com alimentação, oito entrevistados gastam até R$50 reais
semanais, um gasta mais de R$50 reais e dois não responderam.
O gasto com a alimentação implica na necessidade do estudante de um
tempo maior na universidade, e consequentemente, de uma dependência maior das
estruturas oferecidas pela mesma. De acordo com o perfil geral apresentado pela
UERJ, apesar do número de estudantes cotistas com acesso à internet e
computadores em casa ter crescido, a maioria apesar de possuir acesso à internet
não possui computadores em casa e também não possui livros. Como a renda é um
critério para a reserva de vagas, isto significa que a consulta a livros e computadores
justificam um tempo maior na universidade para estudo e trabalhos, determinando
assim, um gasto semanal alto com alimentação.
- 94 -
Em relação à moradia dos entrevistados, nove disseram morar em casa e
dois em apartamento. Ao declararem a situação de moradia, um colocou que mora
por ocupação, um mora de aluguel, dois em casas cedidas por familiares e sete em
casas próprias e quitadas.
Analisando o engajamento em atividades remuneradas, cinco dos
entrevistados declararam não trabalhar, sendo dois por opção e dois por
impossibilidade90, os outros seis declararam trabalhar com vinculo empregatício. No
que se refere à participação na renda familiar, cinco disseram que não trabalham e
os gastos são financiados pela família, dois trabalham e são os únicos responsáveis
por seu sustento ajudando parcialmente na renda familiar, dois trabalham e recebem
ajuda da família, e apenas dois trabalham e são responsáveis pelo sustento da
família.
Os perfis apresentados pela UERJ, mencionam que a maioria dos estudantes
com reserva ou sem reserva de vagas não trabalha dependendo de mesada de
familiares; no entanto, em relação aos cotistas, o percentual de alunos que começa
a trabalhar com 18 anos é maior. Relacionando estes dados com o perfil dos
entrevistados é possível notar, que a maioria dos estudantes cotistas concilia o
trabalho com o estudo como forma de auxiliar a renda familiar. São jovens que
estudam e trabalham desde cedo, e chegam à universidade com novas perspectivas
e interesses.91
Sobre a isenção na taxa do vestibular seis dos entrevistados não pagaram a
inscrição, e cinco pagaram normalmente. Na declaração sobre o tipo de cota que
optou para entrar na universidade, cinco optaram pelas cotas raciais e seis pelas de
rede pública. Dos entrevistados, dois estão cursando Direito, cinco Serviço Social,
três estão no curso de Psicologia e um se encontra no curso de Engenharia
Química. Em relação ao turno dos cursos, quatro estudam à tarde, um de manhã e
seis à noite.
De acordo com o perfil apresentado pela UERJ, as cotas de rede pública
também são as mais procuradas anualmente durante os vestibulares, e os
estudantes cotistas costumam se inscrever em maior número nos cursos voltados
90
Não foi especificado o motivo da impossibilidade ao trabalho devido à falta de registro e descrição nas fichas de notificação dos perfis socioeconômicos dos estudantes cotistas entrevistados. 91 A descrição e trajetória destes novos alunos serão destacadas e aprofundadas com as entrevistas.
- 95 -
para área de Ciências Humanas. As justificativas para estas escolhas serão
detalhadas a partir das entrevistas por meio do estudo das trajetórias socais.
No entanto, a posição da UERJ frente à importância da democratização do
acesso à universidade para este grupo de alunos, se vincula ao fato de que não
compete apenas à escola habilitar seus egressos a competir pelas vagas oferecidas.
Embora o acesso à educação básica tenha sido universalizado, o mesmo não
aconteceu com a escola, ou seja, o alargamento da base de oferta da escola básica
provocou uma queda na qualidade da educação oferecida, o que de fato diminui as
chances de muitos estudantes disputarem em equidade as vagas do vestibular. Em
função disso, o resgate da escola pública de excelência depende da definição de
políticas do Estado, que diante da gravidade das desigualdades sociais, viabilizou o
acesso à educação superior por meio de políticas direcionadas ao alargamento da
pirâmide social. (VILLARDI, 2007, p.32)92
As desigualdades educacionais que se manifestam como produto do
desempenho obtido no vestibular, se vinculam a natureza da escola que os
estudantes freqüentaram e as diversas possibilidades de vivência educacional.
Destas vivências, podemos pontuar que a renda familiar contribui para o maior
impacto sobre o desempenho, seguido da escolaridade dos familiares (pai e mãe)
que possui influência direta na continuidade dos estudos deste aluno. Este nível de
desempenho também está relacionado com o ingresso do aluno precocemente no
mercado de trabalho visando o aumento da renda familiar. Além disso, em relação
aos estudantes negros, são sobre eles que as questões sociais se abatem de forma
mais avassaladora. Por isso, as cotas enquanto um mecanismo de democratização
do acesso ao ensino superior se relaciona à carência estabelecendo subgrupos no
interior das políticas de ação afirmativa, pois elas caracterizam o direito a um grupo
de estudantes com perfil específico, e descrito pela exclusão de raça e classe93.
92
VILLARDI, Raquel. Amadei, Stella Maris. Perspectivas de democratização da educação superior – um estudo do sistema de vagas reservadas na UERJ. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007 93
È importante perceber, que a idéia de classe discutida ao longo de toda a dissertação assume um sentido conceitual prático, ou seja, ultrapassa a linha teórica definida apenas pela função do individuo no sistema produtivo, adquirindo uma interpretação associada à condição econômica e social.
- 96 -
4.4 Falas em debate: a análise da política de cotas na UERJ segundo os
estudantes cotistas.
A interpretação das experiências apresentadas a seguir, parte do universo
individual do entrevistado para elaborar um painel analítico do cotidiano da
universidade e da trajetória social do estudante cotista da UERJ. Para melhor
compreensão das questões suscitadas até aqui, os depoimentos serão
apresentados em temas: 1)Trajetória Escolar; 2)A importância das cotas para o
acesso à universidade; 3)O cotidiano na UERJ: dificuldades e estratégias para
permanência na universidade; 4)Preconceito e relações raciais na universidade; 5)O
papel da universidade na formação do estudante cotista. È possível que ao longo
das falas outros temas sejam abordados, visto que durante as entrevistas as
trajetórias sociais traziam polêmicas que discutiam também o papel da família para a
entrada na universidade, dificuldades financeiras que envolviam a relação do
trabalho com o estudo na escola, qualidade da escola pública e questões referentes
à identidade étnica e auto-declaração.
A Trajetória Escolar:
No universo dos entrevistados a trajetória escolar exemplifica particularidades
do contexto socioeconômico do estudante de baixa renda. Estes estudantes tiveram
a educação básica realizada plenamente em escolas públicas de caráter municipal e
estadual, porém devido a questões internas à estrutura educacional ou a questões
de cunho social, descrevem, em sua trajetória, obstáculos que pareciam
intransponíveis ao acesso à universidade.
Na fala de alguns entrevistados como a cotista Maria de Jesus, do 1º período
da faculdade de Psicologia da UERJ, é possível observar que era comum para ela
alternar os estudos com o trabalho desde o 5º ano do Ensino Fundamental I. A
jornada precoce do trabalho descaracterizou a importância da escola no sentido de
formação, ou seja, o que para uma criança seria o momento de estudo e
responsabilidade se transformou em um espaço apenas de socialização e
brincadeiras diante da necessidade de contribuir na renda familiar. Além disso, esta
dupla jornada de escola e trabalho gera problemas e dificuldades de acompanhar as
aulas e matérias ao longo do ano. O cansaço, a ausência nas aulas contribuem para
- 97 -
a má formação do aluno, como também exemplificou Daiana: estudante cotista do 4º
período da Faculdade de Serviço Social.
Eu estudei no colégio público do C.A até a 8ª série, e depois fui para Niterói atrás
de emprego tentando melhorar minhas condições financeiras. Com 15 anos quando
consegui meu primeiro emprego em um consultório odontológico durante o dia,
estudava à noite no período de um ano. Foi um ano muito conturbado. Eu faltava
muita aula, ficava cansada. Eu até fiquei em dependência em uma matéria:
matemática.(Daiana)
Como foi sua formação escolar? Sua trajetória?
Eu trabalhava. Minha mãe era muito pobre e era só ela para cuidar de sete filhos.
Ela tinha separado do meu pai e a situação era complicada. Eu era uma das mais
novas. Ela sempre trabalhou na feira. Então eu sempre a ajudei. Sempre ia à feira
com ela desde pequenininha. Como eu trabalhava de manhã, à tarde eu ia para
escola. Mas eu não tinha muito tempo livre para brincar. Aquilo me fazia falta. Mas
quando eu ia pra escola era uma liberdade. Era como se eu tivesse livre. Aí você já
viu, né?Matava aula abessa! Quando eu era mocinha então!O meu problema é que
eu repeti a 4ª série (5º Ano) várias vezes. Até que eu passei para noite e já estava
com 15 anos. O meu problema era que eu sempre ficava em Matemática. Eu sabia
todas as contas e operações de cabeça, porque eu trabalhava na feira. Só que na
hora de armar eu não conseguia e só colocava o resultado. Hoje, analisando, eu
acredito que o que me dificultou é que eu faltava muito por conta de aproveitar o
tempo para brincar e para sair. (Maria de Jesus)
Outro aspecto da trajetória escolar do estudante cotista, segundo a fala da
estudante Priscila do 10º período da faculdade de Serviço Social, se vincula com a
mudança das políticas de governo provenientes das trocas de prefeituras,
determinando incertezas frente à transferência de custos e investimentos por parte
do Estado e município. Esta situação gera uma crise educacional ocasionada pela
falta de professores, ausência de recursos para merenda escolar, e
consequentemente, problemas estruturais na própria escola, o que para o aluno,
significa uma queda na qualidade de ensino e na sua própria formação escolar.
“Em Campo Grande, no Jardim de Infância Dom Bosco, em 1990, eu participei do
projeto Darcy Ribeiro: o Ginásio Público. O prédio era um CIEP, mas o projeto
funcionava do 5º ao 10º ano. Era uma maneira diferente de educação. No começo
eu adorava! A proposta da escola era que agente ficasse o dia inteiro, além das
disciplinas convencionais, existiam disciplinas de apoio como teatro, horta, línguas,
eram várias oficinas. Tinha laboratório, era toda equipada. Esse projeto foi até o 8º
ano. Assim que o Brizola saiu, entrou o Marcelo Alencar, e ele disse na campanha
- 98 -
dele que tudo que era do Brizola ele ia acabar, e acabou. Agente tinha merenda.
Chegava no colégio tomava o café da manhã, tinha as 10hs o lanche, o almoço,
outro lanche e a janta. E quando o Marcelo Alencar entrou, acabou, não tinha mais
dinheiro. Os professores não vinham nunca. A merenda acabou. Só tinha almoço e
olhe lá! Acabou o sistema do 5º ao 10º ano. Uma outra turma que entrou depois da
gente foram as últimas, e a escola voltou a funcionar normal, cheia de turmas.
Acabou com tudo. Tudo era gramadinho bonitinho, com cerquinha. As cerquinhas
foram tudinho embora. Não tinha dinheiro para merenda, não tinha dinheiro para
nada. Antes agente tinha dinheiro. Quem comandava a verba era o governo.
Depois vieram com uma história de que iam mandar dinheiro para diretora e ela que
iria comandar. Acabaram com tudo. Desandou não deu em nada”. (Priscila)
Outra questão importante para os alunos que estudaram em escolas públicas,
que também envolve o debate em torno da qualidade da educação básica são as
greves. Thiago, estudante cotista do 1º período da faculdade de Engenharia
Química, por exemplo, se sentiu prejudicado ao passar por uma longa greve durante
todos os anos do Ensino Médio, ou seja, em um momento preparatório e
fundamental para o vestibular. A estratégia do estudo de forma individual consiste
em um mecanismo para driblar as dificuldades durante a educação básica. No caso
do Thiago, a trajetória escolar no Colégio Pedro II o aproximou de uma realidade
associada à continuidade dos estudos para uma melhor colocação profissional, mas
não o isentou da jornada que concilia o estudo com o trabalho.
Lá no Pedro II funcionava assim, quando você chegava no 3º ano, os alunos que
estudavam de tarde, os professores faziam um aprofundamento, um apoio, como
no caso da manhã. Você chegava mais cedo e fazia exercícios, aprofundava a
matéria e ficava o dia todo no colégio. Nós tivemos greve durante os três anos de
Ensino Médio. No último ano para mim foi a pior, porque a greve ficou durante três
meses. Nós paramos no meio do vestibular e não tinha aulas. Foi aí que a gente se
dedicou mais ainda. Nós tínhamos um grupo de cinco pessoas da nossa turma
muito próximo, um ia fazer História, o outro Economia, eram áreas diferentes, mas
nós decidimos vir todos os dias ao colégio e estudar. Nós íamos para biblioteca
estudar, e combinamos que iríamos nos reunir no final do ano e ver que todos
haviam passado, e teria valido à pena!
Foi uma estratégia em relação à greve. Todo mundo passou?
Todo mundo passou.
Todos vieram para UERJ?
Alguns para UFF, UFRJ, mas todos estão em universidades.
Você sempre trabalhou e estudou? Você ajudava o seu pai?
Sim. Desde o 1º ano. Meu pai trabalha com uma indústria têxtil. Ele é vendedor. Ele
compra da indústria para vender no comércio.
- 99 -
Então para você trabalhar durante o período de vestibular foi complicado.
Como você fazia para conciliar o trabalho e o estudo?
Eu trabalhava de manhã com ele e saia um pouco mais cedo para pegar aquele
aprofundamento que eu falei. Eu saia do colégio e voltava para o trabalho. E ficava
estudando até duas ou três horas da manhã.
Você acordava que horas para começar a trabalhar?
Acordava às seis horas da manhã. (Thiago)
Em função da realidade socioeconômica dos entrevistados, muitos
começaram a trabalhar durante os estudos, e alguns acabaram abandonando a
escola antes mesmo de concluírem o Ensino Fundamental II, como o caso de Maria
de Jesus. No entanto, o engajamento nos estudos levou o interesse a tentar fazer
provas de vestibular.
Eu vim para o Rio com 17 anos, nem pensei mais em estudar e casei. Parei de
estudar na 4ª série. Em 1999, já tinha tido todos os meus filhos. Casei com 19 anos.
Todos os filhos foram planejados. Primeiro eu tive dois filhos: um menino e uma
menina. Depois de seis anos, como um acordo, resolvemos ter outro filho. Mas em
1999, eu soube pela minha sobrinha, ou melhor, minha cunhada, que tinha esse
provão do Estado pela Secretaria de Educação, que através de uma lei, você
terminava tanto o 1º como o 2º grau. O 1º grau são seis matérias, e você faz seis
provas de cada matéria. Você passou nelas, acabou. Já sai com o certificado de 1º
grau. Eu pensei: é a minha chance!
Eu investia em material, e comprava livro em sebo ou pegava livro emprestado com
os vizinhos para estudar.
E você trabalhava paralelamente aos estudos?
Eu não trabalhava. Meu marido trabalhava em obra e eu cuidava das crianças. Meu
marido chegava em casa e eu estava estudando. Eu dava uma atenção a ele, fazia
comida e voltava a estudar. Eu estudava de manhã, de tarde e de noite. Eu sentava
para ver televisão e estava estudando, um olho na televisão e outro estudando. E
logo depois eu fui atrás de material que caia no vestibular. (Maria de Jesus)
Alguns entrevistados terminaram o Ensino Médio e começaram a trabalhar,
acreditando que a universidade se encontrava distante de seus objetivos, pois a
maioria precisava auxiliar na renda familiar, ou pensavam em ter autonomia por
meio do trabalho. O fato de ter sofrido uma má formação em função da baixa
qualidade de ensino acabava desestimulando a escolha imediata de uma profissão
melhor através da disputa de vagas no vestibular das universidades públicas logo ao
terminar o Ensino Médio. Neste sentido, o apoio da família seria fundamental neste
- 100 -
processo que determina a conclusão do aluno na escola e o caminho para
universidade, o que ocorre em pouquíssimos casos.
Quando você começou a trabalhar?
Olha, no último período da escola técnica eu já estava estagiando. Eu já estava
acostumada a lhe dar com o dinheiro. Em casa o que eu pedia para os meus pais
era alimentação e moradia, o resto eu cobria. O meu pai tem dois filhos – meus
irmãos, e dois filhos fora. Então eu era a mais velha, e eu sempre quis ter as
minhas coisas para dar o menos de despesa possível. (Tatiana)
Eu comecei a trabalhar com dezoito anos. Terminei o segundo grau e fiquei à toa.
Eu morava com a minha irmã. Estudava e fazia pré-vestibular. Aí com dezoito anos
eu fiz um curso de Telemarketing e fui trabalhar. Eu trabalhei seis meses com
Telemarketing, três meses no Mac Donald´s e dez meses em uma fábrica de bolas.
E aí eu entrei na faculdade quando parei de trabalhar.
Na sua família só você tem ensino superior?
Meu pai é pedreiro e minha mãe é domestica. Na minha família a minha irmã é
mestre em Português pela UFF, e fez politécnico pela Estácio, não é uma
faculdade. Já a minha irmã mais nova tem o técnico, e a trancos e barrancos
terminou com 33 anos porque minha irmã mais velha pagou. A minha irmã mais
velha tem essa coisa comigo e com a minha irmã mais nova, porque a diferença de
idade é muito grande, é de 15 anos. Ela sempre incentivou: eu e a minha irmã mais
nova a estudar. Agente ia para UFF quando criança, e ficava lá na casa do
estudante passeando enquanto ela morava lá. (Priscila)
Você sempre soube que queria fazer graduação.
Não. Isso foi só no final do 3º ano que agente ficou sabendo que tinha que fazer
faculdade, eu nem sabia o que era. Hoje não, mas na minha época falavam que
faculdade era para pessoas de elite, com melhor condição e etc. No interior agente
tem mais uma visão de curso técnico. No meu caso o meu pai era da Marinha, e eu
sempre sonhei em ir para Marinha, porque faculdade era uma coisa surreal!
(Daiana)
Embora a escolaridade da família contribua para a continuidade nos estudos,
as entrevistas revelam que o encontro com a universidade se deu como uma
tentativa de superar a insatisfação pessoal no mercado de trabalho cujas funções,
se vinculavam apenas à formação técnica. Neste sentido, a universidade aparece
como uma alternativa a melhores condições de trabalho e uma possibilidade de
melhorar também a condição socioeconômica. Porém, para a maioria destes jovens
a universidade é classificada como um ambiente freqüentado apenas pela elite. Por
isso, torna-se necessário retornar ou reforçar os estudos por meio de pré-
- 101 -
vestibulares comunitários ou pré-vestibulares particulares de baixo preço. Voltando a
estudar, ou continuando os estudos, surge a esperança de conseguir alcançar o
sonho do acesso ao ensino superior. As tentativas de entrada no vestibular, em
média, são de três a cinco anos até conseguir passar no exame classificatório, e por
isso, as cotas proporcionam uma oportunidade com grandes chances de vitória.
Nos Correios o trabalho era muito chato e eu ganhava pouco. Aí a minha amiga me
chamou para trabalhar no laboratório, e ganhava mais que os Correios. Mas para
sair dos Correios eu tinha que fazer uma besteira muito grande. Eu chegava em
casa mal humorada discutindo com todo mundo. Resolvi largar os Correios. E fui
para o laboratório. O trabalho era com medicamentos e embalagens, e era direto,
fazia serão sábado e domingo. Em um determinado momento eu comecei a sentir
falta do estudo do ambiente da faculdade, e principalmente, de trabalhar com algo
que me fizesse crescer. E ali eu não vislumbrava crescimento, só se eu fizesse
Engenharia Química ou Farmácia. E eu queria ganhar dinheiro. Então eu pensei:
agora eu vou me dedicar a faculdade. Aí entrei em um cursinho. Fui mandada
embora e com o dinheiro fui me mantendo e estudando. Eu tinha que focar em
alguma coisa. Se eu começasse a trabalhar eu tinha certeza que dependendo do
trabalho eu não ia conseguir me dedicar tanto quanto eu me dediquei para passar.
E passei para Direito. (Tatiana)
A análise da trajetória escolar a partir do depoimento dos estudantes cotista
descreve um caminho de jovens que passaram por muitas dificuldades referentes a
situação socioeconômicas, problemas familiares, questões estruturais da escola
onde estudou, necessidades que os obrigam a assumir uma jornada de trabalho e
responsabilidades cedo. Todas estas experiências de vida contribuíram de uma
maneira geral para a modificação do ritmo de estudos. Esta realidade os afasta de
jovens que vivem apenas para o estudo com responsabilidades comuns de tarefas e
trabalhos escolares. Por isso as cotas possibilitam o acesso ao ensino superior
como uma porta à profissionalização, ou seja, ao requisito fundamental a melhores
colocações no mercado de trabalho, e consequentemente, à tentativa de chegar a
uma nova realidade de convivência com grupos sociais, étnicos e de classes
diferentes.
A importância das políticas de cotas para o acesso a universidade.
O encontro com o sistema de cotas como porta de acesso à universidade é
descrita pelos entrevistados de formas diferenciadas. Da oportunidade ao direito de
- 102 -
entrar na universidade, as justificativas para terem optado pelo sistema de cotas se
encontra vinculada a obstáculos surgidos durante a trajetória escolar. A maioria dos
entrevistados confirma que a má qualidade do ensino é determinante para o
fracasso no vestibular; por isso disputar entre iguais, ou seja, entre alunos que
passaram pela mesma situação possibilita uma concorrência favorável e justa,
garantindo por meio de uma média menor o ingresso na universidade.
Na sua opinião, qual é a importância das cotas?
A importância das cotas à curto prazo, até que é valido. Porém, não deveria ser
para sempre. Isso tem que acabar. Eles deveriam oferecer o ensino de qualidade,
antes de entrar na faculdade, para ingressar na universidade o aluno precisa ser
preparado. Quando entramos aqui enfrentamos as mesmas dificuldades que os não
cotistas. (Fernando).
As cotas me ajudaram muito. Como eu te falei, levei cinco anos para entrar. Eu
gosto de enfatizar bem isso. Que sirva de estimulo para outras pessoas. Já que o
governo não nos da um ensino público de base com qualidade. É um caminho para
escaparmos da exclusão intelectual. (Allan)
Me escrevi para UERJ, ENEM, UFRJ. Passei em todas. Na UERJ eu passei com as
cotas, as outras não. Eu entrei por cotas, mas se não fosse por cotas eu acho que
também teria conseguido.
Então por que você se escreveu por cotas?
Por ter estudado em escola pública. Seria uma chance a mais. (Vanderlei)
E por que você resolveu entrar na universidade pelo sistema de cotas?
Porque além de ser um direito meu, digamos, eu me adequo a forma que a lei
prescreveu. Seria uma indenização que o Estado esta me dando pela deficiência do
ensino que ele me deu. (Diego)
Por que você resolveu entrar na universidade pelo sistema de cotas?
Eu resolvi fazer, realmente porque a relação candidato vaga diminuiria. Na época
eu me inscrevi no vestibular normal. Depois é que eu fui perceber que havia surgido
o Sade, e eu vi que eu iria competir apenas com pessoas de escolas públicas. Eu vi
que ia ser mais fácil competir com que não tem professor, não tem isso, ou aquilo.
Um pouco mais fácil do que competir com pessoas que tiveram todas as matérias,
professores. Eu achava que seria um pouco mais fácil entrar pelo Sade e troquei.
Eu fiz a primeira prova: o exame de qualificação no vestibular normal, aí depois eu
fiz pelo Sade. (Priscila)
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O próprio aluno cotista critica a reserva de vagas como uma alternativa à crise
da educação básica, reconhecendo os problemas da escola pública. Neste sentido,
as cotas para a rede pública legitimam um direito justificado pela falta de
preparação, como uma indenização do governo pelos longos anos de exclusão
intelectual e de falta de investimentos na educação. Por isso, o sistema de cotas
denuncia um problema social, e é possível notar isso na fala dos alunos como uma
maneira de reafirmar que optar pela reserva de vagas não é fruto de uma
incapacidade individual, e sim, de uma situação da maioria dos alunos que estudou
nas escolas públicas.
No entanto, as cotas para negros dividem opiniões e confundem os
entrevistados ao descreverem o que pensam sobre este tipo de reserva de vagas
para o acesso à universidade e a sua importância.
Qual é a importância das cotas na sua opinião?
Eu acho importante, principalmente para quem não teve uma educação para fazer o
vestibular. Mas também não acho que seja isso que vá melhorar a educação,
acabar com o preconceito. Pode até ser que diminua a segregação que existe
dentro da universidade, porque eu acho que diminuiu dentro da UERJ. Em relação
as cotas para negro, no começo eu achava complicado. Com é que as pessoas vão
dizer que são negras? Aí vai acreditar? Tem pessoas que são da minha cor e
acham que são brancas. Sempre disseram que eu era branca. Aí como é que vai
dizer que é negro? (Priscila)
Que tipo de cotas você escolheu?
Primeiramente eu fiz de escola pública e depois eu fiz para negros.
E o que você acha em relação a declaração em ser negro?
Você tem que assumir. Qual é o problema? Sou negra e muito obrigada. Eu nunca
tive dificuldade com isso. Mesmo porque a gente só vê, ou só se percebe o
preconceito quando você quer galgar outras coisas. No seu lugar você não percebe
o preconceito.
Qual a importância das cotas para negros? Você concorda com isso? Ou
acha que só deveria existir cotas de escola pública?
Eu concordo plenamente com as cotas para negros. Não que ele tenha o raciocínio
menor, entendeu? A teoria do branqueamento do Brasil tem todo um contexto
histórico.
Pra começar com os jesuítas que colocaram na cabeça do branco europeu que o
negro era inferior. O negro carregava o estigma do pecado: a redenção de Cã.
Então era amaldiçoado por Deus. E com essa teoria ele usava para dominar. E o
negro não podia fazer nada. Uma pessoa longe da sua pátria, longe da sua família,
tirado da sua nação, dominado totalmente, vendido como escravo, e a maior parte,
morria no caminho. Então mesmo assim, ele não aceitou passivamente. Ainda que,
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os europeus, ou melhor, os portugueses digam, que o índio tem uma sabedoria e o
negro só servia de força de trabalho. Os próprios intelectuais disseminavam esse
discurso e falavam que o negro era submisso. E o culto afro? Ainda que
disfarçados, eles fingiam que estavam dominados, mas na verdade nunca se
dobraram ou foram dominados. Mas aí essa mentira de que o negro era incapaz e
inferior foi disseminando e entranhando na cabeça das pessoas. (Maria de Jesus)
Qual é a importância das cotas para você?
Muito importante porque eu até brinco com uma música dos Racionais. Ele sempre
fala que o negro desde criança sempre ouve que por ser negro ele deve ser o
melhor. Na escola você tem que ser o melhor porque você é negro. Então como se
cobra muito isso, nós temos que ser o melhor. Porque nós não temos acesso, não
tivemos oportunidade. Na minha família eu sou a única que entrei na faculdade. O
meu pai terminou o 2º grau agora. Então eu sempre tive essa visão de mudar a
condição social, a minha trajetória. Porque se a vida fica muito naquilo ali... A gente
tem que ter metas, metas e mais metas para atingir. (Flávia)
Mesmo declarando-se e reconhecendo-se como negro, a cota para negros
aparece como uma segunda alternativa caso a opção pela cota de rede pública seja
indeferida. De acordo com a fala dos entrevistados, é possível perceber que o
reconhecimento da identidade étnica para a percepção de que a cota para negro
também é um direito como a cota de rede pública, perpassa pela compreensão da
exclusão e das desigualdades sociais como uma relação entre raça e classe,
atribuindo ao conceito de classe a idéia de condição socioeconômica.
O ponto comum entre a fala dos entrevistados é que independente do tipo de
cota, a reserva de vagas é um mecanismo facilitador da entrada destes estudantes à
universidade. No entanto, como já foi apresentado até aqui, a política de ação
afirmativa se responsabiliza por proporcionar uma oportunidade por meio do
reconhecimento das diferenças, e é aí, que entre a teoria e a prática começam a
surgir obstáculos, principalmente no que se refere à permanência dos estudantes
cotistas na universidade.
O cotidiano na universidade: dificuldades e estratégias para permanência na
universidade.
Ao entrar na universidade o estudante cotista se insere em um novo universo,
com novas exigências. A universidade se apresenta por meio de novas amizades,
matérias, professores, o que também determina um novo cotidiano caracterizado por
descobertas, dificuldades e estratégias relacionadas à permanência deste estudante
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na graduação. O debate da permanência é fundamental diante da descrição de toda
a trajetória apresentada até aqui. A política de cotas permite a ampliação dos
espaços e a integração e convivência de novos grupos sociais e culturais. No
entanto, o estudante cotista apresenta em seu perfil, como critério de acesso às
cotas, a carência econômica e social, o que significa que a própria universidade
deverá se adaptar às novas exigências e necessidades trazidas por este aluno.
Como foi o seu ingresso na universidade? Conta um pouco sobre o seu
cotidiano aqui na UERJ.
Eu venho do trabalho. Eu chego aqui uns vinte minutos meia hora atrasado na aula.
Depois é que eu aterrisso, e aí é que eu caio na realidade. Agente assiste às aulas
e no intervalo tem sempre aquele bate-papo. No primeiro período é aquela coisa.
Vou me adaptando ainda a essa nova realidade. Muita informação. É meio
complicado, nesse sentido. Como eu te disse é uma outra realidade, totalmente
nova.
O que mais te impressiona na universidade?
As possibilidades que a gente tem aqui dentro. O contado com as pessoas, o
conhecimento. É uma oportunidade grande. É difícil administrar.
Você trabalha em que?
Eu trabalho em um escritório de Contabilidade. Na parte fiscal.
Que tipo de dificuldade você tem encontrado na universidade?
Primeiro o horário. O horário não é bom para mim, eu passei na reclassificação, e
havia escolhido à noite, e o horário é de tarde, e a gente não pode mudar isso. No
2º período eu preciso passar para noite para continuar trabalhando. É complicado
porque você tem a matricula à tarde e não pode mudar para noite. Então você se
inscreve nas disciplinas e não pode pegar todas as matérias, porque a prioridade é
de quem estava à noite. Essa é a minha maior dificuldade. (Allan)
E como é o seu cotidiano na universidade?
Geralmente eu chego 12h20min e vou para a sala de informática porque não tenho
computador em casa. Eu chego leio os e-mails e outras coisas que me interessam.
Depois eu vou para sala de aula. A faculdade é um sonho ainda. Eu acho que exige
mais compreensão e tempo para ler os textos. Porque eu sou mãe. Tenho dois
filhos! Um de três e um de 10 meses. A dificuldade é essa, mas em geral eu tenho
as notas na média. (Sandra Regina)
Como é o seu cotidiano na Universidade?
.O meu hábito de escrever é mínimo. Até hoje eu escrevo muito pouco. Pra mim,
era uma dificuldade. Porque eu vejo na universidade que todo mundo escreve
muito, fala muito, tem uma oratória muito boa e eu sou péssima nisso. Para eu
começar a falar em público, eu falava como uma metralhadora. Não dava muito
certo. A entrada em si, a ficha parece que não caiu até hoje. Porque eu levo como
se estivesse no Ensino Médio, mas de uma forma diferente. Por exemplo, a
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História, você aprende de maneira diferente. Tem uma base, mas não é igual ao
que você aprendeu. È algo mais amplo. O que os professores falam durante as
aulas, não é exatamente o que aprendemos, é algo mais. O que falta é também
esse algo mais no Ensino Médio, para quando a pessoa chegar aqui na
universidade ela saber o que vai encontrar. (Gracileide)
Eu gosto muito da minha turma. São pessoas que estão me incentivando, é uma
turma muito unida, no sentido de ajudar, trazer um livro, de trazer uma questão que
achou na internet e distribui para todo mundo. E eu acho que vale muito, e que
conta muito para o conhecimento e para a aprendizagem é a união. Com relação as
matérias eu tive muita dificuldade da parte histórica, porque quando eu cheguei
aqui descobri que de História eu não entendia nada. Os professores, eu acho que
alguns têm muito interesse, outros poucos. Alguns professores são dedicados,
empenhados e compromissados com que o aluno apreenda, se desenvolva e
cresça. (Daiana)
Na fala de todos os entrevistados, o ingresso na universidade aparece como
um espaço de novidades, possibilidades e trocas de experiências. Neste período a
integração é fundamental para a adaptação do estudante. No entanto, a primeira
dificuldade relatada pelos entrevistados está relacionada às disciplinas e dinâmica
das aulas. As dificuldades instrumentais como: leitura, escrita, desenvolvimento
oratório, se caracterizam como um obstáculo à compreensão e desenvolvimento
destes estudantes nas provas discursivas e trabalhos durante os primeiros períodos
na faculdade. Em geral, os estudantes cotistas entrevistados relatam que muitas
destas dificuldades são provenientes da má formação escolar, porém esta
dificuldade se apresenta apenas como algo referente ao processo de adaptação a
uma nova didática diferente das aulas do Ensino Médio.
Outra dificuldade vinculada à mudança do perfil do aluno que chega a
universidade, se encontra no fato do estudante cotista manter uma jornada dupla de
trabalho e estudo. Muita das vezes a permanência na universidade pode ser afetada
por meio da incompatibilidade de horários, visto que este estudante precisa trabalhar
em função da sua realidade socioeconômica, o que o obriga muita das vezes a dar
preferência, como na escola, ao trabalho do que ao estudo. A jornada de trabalho
também pode ser estendida às responsabilidades com a família. Conciliar o estudo
com os filhos pode atrapalhar a dedicação às leituras, prejudicando a compreensão
e o desenvolvimento durante as aulas.
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De acordo com a maioria dos entrevistados a dificuldade financeira é o que
mais os prejudica no processo de permanência na universidade. Por isso, para
continuar estudando, o cotista precisa utilizar a estrutura da universidade como
biblioteca, internet, o que determina um gasto maior com xerox, alimentação e
transporte. A Lei 4151/2004, determina ao estudante cotista o recebimento de uma
bolsa-auxílio. Esta bolsa como já discutida anteriormente, é repassada com recursos
da FAPERJ e da UERJ pelo Proiniciar – Programa de Iniciação Acadêmica; no valor
de R$190,0094 para os bolsistas da UERJ. No entanto, segundo os entrevistados os
gastos financeiros ultrapassam o valor da bolsa.
Eu não tinha dinheiro para tirar xérox, tinha que correr atrás de biblioteca. As vezes
eu não tinha dinheiro para comer, ficava azul de fome até chegar em casa. Quando
o dinheiro acabava e eu não tinha como pagar passagem, eu faltava a uma matéria
que já tinha vindo muito, ou alternava quando não tinha dinheiro e pedia para minha
irmã. A primeira pessoa que eu pedia era minha irmã e meu cunhado quando
acabava meus R$190,00, porque o meu pai já sustentava a casa, e eu achava que
deveria procurar outros meios até chegar nele.(Priscila)
Eu tenho muita dificuldade em relação a distancia. Minha casa fica muito longe e vir
para cá não é fácil. Eu tenho que ter dinheiro e as vezes eu não tenho. Eu
economizo, mas texto eu não abro mão. Tem uma amiga que sempre me pede
emprestado texto, mas eu falo: fica para você, porque eu moro longe, e tenho que
estudar para uma prova na segunda, por exemplo, como é que eu fico? Eu não
abro mão de ter os meus textos mesmo que eu não leia. Eu tenho o maior cuidado
com os meus textos. Livros eu não posso comprar. Vai fazer três anos que eu estou
na faculdade e eu só tenho três livros. Não tive dinheiro para comprar. Agora, água,
biscoito, e papel higiênico que não tem nos banheiros eu trago. Tem um ônibus
universitário que eu procuro não perder. Por exemplo, eu combinei de discutir um
texto com a Carol às 16hs para o trabalho de segunda-feira, só que eu não pude vir
porque estava sem dinheiro. Porque para eu vir fora do meu horário eu tenho que
pagar passagem até Niterói, e aí dificulta. Tem esses problemas. Tem dia que eu
não venho porque não tem dinheiro mesmo. Quando venho fazer trabalho e fico o
dia inteiro eu durmo na casa da minha amiga Clara, que pega meus textos e
minhas canetas. Agente vai arrumando do jeito que pode. Ela dá o almoço e eu dou
o refrigerante. (Daiana)
O valor da bolsa-auxílio não corresponde às necessidades do aluno cotista,
que procura estratégias para superar as dificuldades diárias na universidade,
94
Utilizarei este valor, pois no período das entrevistas a bolsa não havia sido ainda reajustada para R$250,00. Portanto as falas expostas se referem ao gasto e valor da bolsa referente aos R$190,00.
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pedindo dinheiro à família, utilizando o transporte universitário para economizar o
dinheiro da passagem, pedir ajuda aos amigos, além de utilizar a biblioteca para não
comprar livros. Por mais variadas que sejam as estratégias, Gracileide demonstrou
uma outra solução interessante ao descobrir que vender bolsas para as amigas da
faculdade a auxiliaria nos gastos na universidade.
Como você fez para driblar essa questão da dificuldade financeira?
Na verdade, como meu marido trabalha, e eu não estou trabalhando, ele é quem
me ajuda mesmo com a bolsa. Essa bolsa praticamente não dá para quase nada.
Eu fiz um curso de costurar bolsas, e é isso que me ajuda porque eu vendo para as
meninas e estou me virando. Isso me ajuda a me manter na universidade.
E por quanto você vende uma bolsa?
Depende, têm umas mais caras outras mais baratas. Mas em geral o preço é
R$20,00.
Então essa renda te ajuda a se manter: comprar lanche, pagar o xérox de um
texto. Em média quanto fica o seu custo diário na universidade?
O meu custo em média são uns quinze reais por dia. Se eu for comer fora com as
meninas no lanche que agente chama de “pobre”, lá é R$ 1,20. (Gracileide)
O relato dos entrevistados demonstra que não existe por parte da
universidade uma política de assistência voltada para o acompanhamento dos
cotistas. O que existe são programas pontuais, por exemplo, a própria bolsa-auxílio
só é válida durante um ano cujo pré-requisito seria o cumprimento de disciplinas
extracurriculares para o recebimento da bolsa. E este seria um outro ponto muito
discutido pelos entrevistados.
Você tem alguma sugestão de mudança para universidade em relação ao
sistema cotas na UERJ?
A bolsa ser requisito dessa carga horária que tem que ser cumprida. Muitos
querem, mas o perfil do aluno está mudando. Tem aluno que quer participar de uma
aula ou oficina, mas não pode porque tem que trabalhar e largar 17hs. Então é
pensar em um modo que contemple a todos. Pode continuar a ter oficinas, mas
propondo outras atividades para quem não pode. (Flávia)
A percepção da mudança do perfil do aluno pela entrevistada ao descrever a
incompatibilidade dos horários estabelecidos para as oficinas, exemplifica mais uma
dificuldade relacionada à incompreensão das demandas e necessidades dos
estudantes cotistas. A continuidade do recebimento da bolsa ao longo da graduação
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e o reajuste do valor são mudanças importantes para estes estudantes que
necessitam de recurso financeiro para se manter na universidade.
A precarização da infra-estrutura da UERJ associada à situação financeira
dos alunos cotistas, desencadeia estratégias relativas a alimentação, transporte,
material didático, alojamento. A atuação ineficaz do Estado na inexistência de
investimentos na universidade leva os estudantes a criarem esses mecanismos de
defesa para permanecer na universidade. Isso significa, que as políticas de cotas, ao
interferirem no acesso seletivo à universidade, acionam mecanismos de apoio aos
mais carentes e discriminados, sem, no entanto, romper com as estruturas que
reproduzem as desigualdades. A resposta que estes segmentos e grupos sociais
anseiam não é apenas o ingresso, mas a permanência na universidade. Para isto, é
necessário uma Política de Assistência aos estudantes de cotas com monitoramento
e acompanhamento de suas trajetórias acadêmicas, auxiliando-os com bolsas de
estudo, cursos suplementares, alojamento e alimentação. Seria o mínimo para que
as cotas não resultem em meros arroubos políticos de caráter populista. (CASTRO,
2008, p. 249). 95
Preconceitos e relações raciais na universidade.
O nome cotista para designar o estudante que ingressa na universidade por
meio da reserva de vagas, em si, já pressupõe uma idéia de diferença entre os
demais, muitas vezes encarada como um estigma. As políticas de ação afirmativa
revelam a importância da discriminação positiva como forma de superar as
desigualdades, porém, do reconhecimento das diferenças ao respeito pelas
diferenças, é exigido um processo relacionado à interação entre os indivíduos, ou
seja, a equidade se revela no cotidiano das relações sociais.
Conviver com as diferenças é um exercício de interação, e neste sentido, a
reafirmação da identidade étnica e social aparece como um mecanismo responsável
pela integração de grupos dentro da universidade, ou seja, os grupos se formam por
afinidades relacionadas a manifestações como: raça, classe e cultura. Assim, a
política de cotas contribui para a diversidade cultural, na medida em que predispõe
ao acesso das vagas na universidade indivíduos de diferentes classes, cores, raças,
95 CASTRO, Alba Tereza Barroso. Tendências e contradições da educação pública no Brasil: a crise na universidade e as cotas. In: BROSCHETTI, Ivanete (org.). Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008.
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histórias e experiências de vida. Neste sentido, dividir os espaços na universidade
não significa segregar ou separar e sim interagir, conviver e conhecer pessoas
diferentes.
A maioria dos entrevistados disse nunca ter sofrido preconceito. Vivenciar o
preconceito na sociedade brasileira é algo velado no cotidiano social e específico de
significados raciais, espaciais e econômicos. È estranho imaginar que em um
universo tão diverso como a universidade as diferenças possam não chegar a se
chocar. Na realidade o preconceito na universidade existe, e também aparece
camuflado para alguns alunos, que apesar de não serem discriminados
negativamente pela raça, por exemplo, sofrem indiretamente o estigma de ser
cotista, carregando em conjunto o preconceito da raça, de cor e de classe.
Durante as entrevistas foi possível perceber que o preconceito em maioria
acontece por parte dos professores, que manifestam a contrariedade em relação ao
sistema de cotas através de comentários ao longo das aulas, que questionam as
notas e o desempenho dos alunos como pressuposto para caracterizar que, em uma
sala de aula cheia os que tiram notas baixas seriam provenientes de cotas.
Você já vivenciou algum tipo de preconceito na universidade?
Eu não vivenciei, mas tem alguns professores que criticam, mas nas palavras deles
eles não sabem quem é ou não cotista. Até porque os cotistas estão tirando notas
altas. E eu também. O preconceito está nele (professor), logo que ele fala uma
palavra você sabe que está se referindo às cotas. È um preconceito bem leve,
escondido. (Vanderlei)
Existe o preconceito com relação aos cotistas de forma explícita ou velada?
De onde parte uma segregação velada é dos professores. Eles não gostam. Alguns
falam abertamente. De alguns professores você percebe que há uma desconfiança,
uma má vontade.
O preconceito é por causa das notas?
Sim. Dos professores basicamente é por causa das notas. (Thiago)
Em relação aos alunos algumas manifestações são tão diretas como a dos
professores. O preconceito e a discriminação aparecem em frases escritas nos
banheiros, ou até mesmo em brincadeiras durante o trote junto aos calouros como
relata Thiago ao contar uma experiência pessoal.
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Já sofreu algum preconceito na universidade?
Eu não fui vítima, mas agente vê comentários a respeito de cotistas na UERJ.
Agente lê até nos banheiros da UERJ.
Quais são esses comentários?
Aqui não é lugar para cotista. Isso no 8º andar. E também já vi no banheiro da pós-
graduação da UERJ escrito: “cota e lugar de preto não é na universidade”, e uma
suástica nazista. (Diego)
Por parte dos alunos é mais escancarado. Do lado esquerdo e do lado direito, são
lados contrários.
Me explica melhor essa divisão de lado A e lado B. Existe essa diferença entre
os alunos por estes saberem quem é ou não é cotista?
É curioso que o sistema de cotas mudou não só as características dos alunos que
entraram, mas também mudou o perfil geográfico da universidade. Os alunos de
cotas majoritariamente, vêm de um lado: da Zona Norte, da Baixada. Na minha
turma se você perguntar, todo mundo que entrou por cotas é da Zona Norte,
Baixada, São Gonçalo. Os alunos que não entram por cotas estão por aqui pela
Zona Sul, pela Tijuca.
Teve um trote no primeiro dia. Você tinha que subir na mesa e eles te faziam
algumas perguntas do tipo: o que você faz? Onde você mora? As respostas eram
Botafogo, Urca, Gávea, Paracambi. Quando uma menina falou que morava em
Paracambi a maioria riu, e virou piada. Eu me senti mal. Perguntaram: que horas
você acorda para vir para universidade? Ela respondeu às quatro horas da manhã.
Os veteranos começaram a rir porque a garota morava em Paracambi e acordava
às quatro horas da manhã para vir para UERJ. Lá da para ver quem é, e quem não
é cotista claramente a partir dos aspectos físicos, roupa, lugar onde se mora. Tem
como você definir o status social da pessoa. (Thiago)
A integração entre os diferentes grupos na universidade se apresenta como
um obstáculo de imediato aos alunos cotistas e não cotistas. Porém, a proposta de
transformação social na universidade demanda tempo, visto que as ideologias
presentes em nossa sociedade que determinam a prática do preconceito e da
discriminação só serão superadas por meio do convívio social nas relações
cotidianas.
Thiago apresenta um exemplo curioso do preconceito manifestado por meio
de uma segregação que divide os alunos pelo status social, descrita pelo cotista
como “lado A e lado B”. A associação do preconceito espacial é proveniente da
definição dos alunos cotistas a partir do critério de carência socioeconômico. A idéia
de pobreza é caracterizada não só pela questão econômica ou étnica, ela também
assume uma relação com o lugar onde se mora, visto que, o lado A é determinado
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pelos bairros mais abastados da cidade, e o lado B exemplifica os bairros mais
pobres. O preconceito relacionado ao status social implica na segregação dos
estudantes mais pobres, e representa desta forma, uma maneira mais sutil de
classificar e não interagir com alunos cotistas, que pelo critério da carência
representam um grupo étnico, cultural, econômico e social específico. Desta forma:
ser pobre quer dizer ser cotista.
Diminuir o preconceito e o estigma das cotas representa um desafio, onde o
caminho mais comum encontrado pelo estudante cotista se encontra na reafirmação
de sua identidade racial e cultural. No entanto, o processo de conhecimento étnico
tem promovido grupos radicais na universidade que intensificam a importância do
resgate das tradições históricas e culturais como forma de reforçar e reafirmar a
cultura afro-brasileira. (RÊGO BARROS, 2007)96 A flexibilidade cultural proveniente
de um passado em torno da mestiçagem, gera para alguns estudantes um
desconforto relacionado ao fato da necessidade de ter que assumir um estilo cultural
especifico como o único representante da cultura negra, o que acaba sendo
interpretado por muitos estudantes como um preconceito do negro contra o próprio
negro.
Eu acho que a minha turma é muito heterogênea. Tem pessoas que nunca se viram
na vida ou se falaram. Tem grupos que não fazem a mínima questão de se integrar
com o outro. Mas pessoas que fazem grupos ou movimentos possuem uma postura
mais integradora. Por exemplo, uma menina que é negra, é do movimento, ela esta
querendo formar um grupo que enfoque mais as mulheres, não de uma forma tão
radical. Aí ela falou assim para mim e para uma colega: “eu estou observando
vocês há algum tempo, para um grupo seleto que faz reuniões e discussões em
relação a mulher na faculdade, o sistema de cotas, o preconceito, sobre varias
coisas em relação a mulher negra, sem ser radical demais, nada que proíba você
de usar alisante no seu cabelo”.Geralmente você vê o pessoal do movimento negro
com o cabelo ao natural, com o estilo black power, aquelas roupas étnicas, então o
que eu pude sentir ou visualizar, é que em algum momento ela foi discriminada no
próprio movimento negro por alisar o cabelo. È muito interessante essa forma do
próprio negro discriminar o outro negro. (Tatiana)
Os maiores preconceitos infelizmente, são dos próprios negros. Por exemplo, um
conhecido chamou um amigo para jantar que era negro, e a empregada se recusou
a servir os dois porque o amigo era negro. E ela também era negra. Existe um
96 RÊGO BARROS, Clarissa F. “Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão através da reserva de vagas para negros na UERJ”. In: Políticas Educacionais e Cidadania. Revista Espaço Pedagógico. Editora UPF. Vol.14, no 2. (jul/dez. 2007).
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ditado: “o preto não gosta do outro”, mas é um pouco a realidade. Porque se você
vê uma pessoa negra com uma condição social um pouco melhor, elas também são
atingidas diretamente pelo preconceito. O status camufla muito o preconceito.
Ninguém vai tratar a Camila Pitanga como trataria uma outra negra em um
restaurante em Ipanema, muda a condição social e o status da pessoa. Já ocorreu
um comentário entre amigos sobre um casal de amigos negros que estavam na
festa, ela era médica e ele advogado. E disseram: “eles são negros mas são
legais”. Eu não entendi a observação, e perguntei: como assim? Só porque eles
são negros não podem ser legais? O negro não pode ser médico ou engenheiro?
Isso já está no próprio negro. O negro policial, o primeiro cidadão que ele aborda é
o negro. Ele não aborda o cidadão loiro de olhos azuis, ele aborda o negro. (Flavia)
Eu acredito que isso seja uma coisa de família. Na minha família durante as
reuniões era muito a ONU – Organização das Nações Unidas, porque tinha branco,
tinha negro, tinha mestiço, tinha gays, tinha lésbicas, tinha de tudo. Então minha
mãe sempre me ensinou a conviver com a diferença. A minha melhor amiga na
infância era uma menina que tinha um retardamento. Ela era mais velha do que eu
e tinha dificuldade com a fala. Então para mim isso não é diferente. Mas meu ex-
namorado em uma festa de família, eu levei ele, e ele ficou sentado olhando calado
observando, e então veio o comentário: “as festas na sua família são muito inter-
raciais”. Eu perguntei para ele: “como assim Pedro, inter-raciais? Você é racista?”.
Ele falou: “Não, porque a festa lá de casa só tem crioulo”. (Tatiana)
Os estudantes descrevem que o passado histórico do negro o classifica como
inferior aos demais grupos étnicos presentes em nossa sociedade. O binômio de
negro pobre é uma classificação que determina a maioria da sociedade brasileira;
por isso é importante perceber que a racialização das políticas de cotas não
promove a segregação social, elas na realidade denunciam e permitem ao negro,
por meio de uma cota específica, por exemplo, o acesso e o reconhecimento de um
direito negado no cotidiano das relações sociais. Não há como ter naturalidade
diante de um preconceito que se apresenta ideológico para os negros e para a
maioria da sociedade, visto que nas próprias práticas cotidianas os negros ainda se
encontram em um status social inferior. A proposta da reafirmação das identidades
raciais é um caminho necessário, e descrito pelos próprios entrevistados como forma
do auto-conhecimento e de percepção do seu grupo étnico, mesmo que ele assuma
em um primeiro momento uma postura mais radical diante das tradições culturais.
A política de ação afirmativa compreende que a igualdade se encontra no
diferente e na diversidade. Por isso, o reconhecimento do preconceito é necessário
à integração social, e à repartição dos espaços a partir de políticas públicas de
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discriminação positiva. Este exercício de percepção das diferenças para a sociedade
não é tão simples, visto que desigualdades sociais nunca tiveram cores ou raças,
apenas aspectos econômicos e sociais. Neste sentido, as políticas de cotas na
universidade revelam preconceitos velados, como um mecanismo tortuoso de
quebra das invisibilidades como forma de reafirmação das identidades étnicas.
O papel da universidade na formação do estudante cotista.
De todos os temas já tratados até aqui, a universidade aparece para estes
estudantes como o ponto comum, que permite a superação de todas as dificuldades
encontradas na sociedade. Nas falas dos estudantes cotistas, a universidade
aparece em diferentes expressões que revelam uma questão única para estes
jovens: a oportunidade de melhorar a sua condição de vida a partir da qualificação
profissional. Do mercado de trabalho à realização de um sonho, estes estudantes
justificam o acesso à universidade como um requisito de diferenciação dos demais
de seu grupo étnico e socioeconômico, o que os garante maiores conhecimentos e
uma formação intelectual.
Qual a importância da universidade para você?
A universidade é um sonho que está sendo concretizado aos poucos. Quando eu
estiver formada vai ser um sonho realizado.
Qual é a relação da universidade com o mercado de trabalho?
Por eu ser oriunda de favela e comunidade carente, eu vejo a necessidade do meu
pessoal, do meu povo lá, entendeu? Então eu trabalho como orientadora de criança
e adolescente. De 15 a 18 anos agente fez atividade com as crianças. Eu trabalhei
também no PET, no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Então eu vejo
as necessidades. Sempre quando eu me vi como assistente social, a identificação
veio de querer mudar o meu meio. Eu pensei; eu vou fazer uma coisa que eu sinta
prazer e também que eu poça mudar a realidade local da minha comunidade.
Depois buscar projetos para comunidade de assistência. Buscar parcerias. O ideal
no primeiro momento foi esse. Eu quero mudar, não quero ficar nisso toda a minha
vida. Nem que meus filhos cresçam dentro de comunidade. Mas se tiver que
crescer vão crescer eu vou dar toda a educação. Para uma criança de comunidade
o caminho do tráfico é muito fácil. Eu não quero isso para os meus filhos. Eu nunca
vivi como uma mulher de bandido. Lá na minha comunidade todo mundo me
conhece como a que estuda e corre atrás dos seus objetivos. Entendeu? Porque
poderia ser a Sandra, tal mulher, namorada do traficante tal. Eu quero viver como
uma pessoa digna, que viveu no caminho certo. Eu quero que os meus filhos
pensem que nem eu e me sigam. Profissionalmente, o meu objetivo é me formar,
juntar uma grana legal e sair de lá. Não por lá ser ruim. Tem problemas diversos. E
eu não quero que meus filhos vivenciem o que eu vivenciei.(Sandra)
- 115 -
Qual é a importância da universidade para você?
A universidade para mim, nossa! Vai ser uma porta para me levar a uma melhor
condição social, uma porta para me levar a uma nova condição intelectual. Porque
eu estou aqui para ser um intelectual na sociedade. È esse o papel da universidade
pública, formar muito mais do que mão de obra. Formar os pensadores, as forças
pensantes dessa sociedade. E a universidade vai me transformar nessa força
pensante para sociedade. (Diego)
Qual é a importância da Universidade para você?
Para mim, antigamente era uma mudança de vida. Hoje, eu já não vejo dessa
forma. É mais uma amplitude de conhecimento. Eu estou aqui, mas o que vai
mudar mesmo a minha vida sou eu mesma e as minhas atitudes.
O que você acha da relação da universidade com o mercado de trabalho?
Defasado. Porque não adianta ter só uma graduação. Agora tem que ter mestrado,
pós-doutorado. Antes você ter um segundo grau já era suficiente. Hoje já não é
mais assim. Então a graduação é parte de um processo. Apenas isso, mais nada.
(Gracileide)
Qual é a importância da universidade para você?
Um divisor de águas na minha vida. Eu levei cinco anos para conseguir chegar até
aqui. Eu fiz um investimento. E agora eu estou olhando para o futuro. Eu estou
vivendo o presente e pensando no futuro. Eu vou viver esta profissão. Estar apto
para o mercado de trabalho. Eu espero que a universidade me de essa condição.
(Allan)
Qual é a importância da universidade para você?
Tudo. A profissão, o aprendizado, você conhece outras pessoas, outros universos
diferente daquele que você vive em Campo Grande, um outro mundo. Aprende
outras coisas, e descobre em você mesmo coisas que você nem sabia que poderia
fazer, tentar. Ou aquilo que eu pensava quando era criança parece que vai se
realizando. È muito interessante. Eu adorei. Se eu pudesse faria tudo de
novo!(Priscila)
De acordo com os entrevistados, a universidade é a porta de um mundo novo
com novas descobertas e conhecimentos. O mercado de trabalho é o ponto chave
para melhorar a condição social que, no entanto, não ocorre sem uma melhora da
condição intelectual. O estudante que chega ao ensino superior prevê uma formação
a longo prazo, ou seja, como descreve Gracileide, a graduação é uma parte de um
processo que exige do formando além do curso superior, a pós-graduação como
forma de preencher o perfil de funcionários ultra qualificados exigido pelo mercado
de trabalho.
- 116 -
Nesta dinâmica que incitava os entrevistados a refletir sobre a importância da
universidade, foi proposta uma segunda reflexão sobre o sistema de cotas, como
uma mensagem para os estudantes cotistas que estavam chegando, uma pergunta
com o objetivo de subjetivamente relacionar a universidade e o ingresso pelo
sistema de cotas.
Alguma colocação pessoal sobre o sistema de cotas?
O sistema de cotas é um avanço fenomenal dentro do ensino superior no Brasil. E
como eu já disse em encontros passados me dá orgulho em ser brasileiro ao ver
isso. Que as coisas não estão tão perdidas assim, que apesar da desmoralização
política, e das diferenças sociais gritantes, nos temos instrumentos que possam
diminuir essas desigualdades sociais. (Diego)
Qual seria o recado que você deixaria para as pessoas que estão entrando na
universidade através das cotas?
Aproveitem a oportunidade. Porque é a chance. Quem vem de uma escola pública
não tem condição de competir. A escola pública ela é não teoricamente, mas na
prática, ela é um ensino para formar trabalhadores, subalternos. Ela não é
direcionada para intelectualidade. (Maria de Jesus)
Que recado você deixaria para as pessoas que estão entrando para
universidade pelas cotas agora?
Muita fé, muita perseverança, que vai haver muitos obstáculos e perrengues porque
no final você vai conseguir. È importante fazer amigos, não ficar deslocado.
Esquecer que existe preconceito, e você deixa de se socializar por conta disso.
Aproveite tudo que a universidade possa lhe dar, cursos, estágios! È importante
pegar tudo, aprender, para no final ter um resultado positivo. (Priscila)
Qual seria o recado para essas próximas gerações de cotistas?
Quando os cotistas entrarem vão passar pelas mesmas dificuldades que os não
cotistas. Então eles precisam se esforçar bastante porque não entraram
preparados. Só depende de vocês. (Fernando)
A proposta de relacionar a importância da universidade com o ingresso pelo
sistema de cotas, levantou opiniões que revelam o universo particular do estudante
cotista. Neste universo se insere além de uma trajetória repleta de dificuldades, a
esperança de alcançar a universidade como um mecanismo que reverte a condição
de trabalhadores subalternos para profissionais especializados. A chegada na
universidade proporciona novas experiências, que segundo os entrevistados, devem
ser voltadas para o amadurecimento profissional e a aquisição de novos
conhecimentos. Isto significa, que diante de um universo de dificuldades descritas
- 117 -
pelas falas já apresentadas, é necessário perceber que o estudante cotista é
também um estudante como os outros. O estigma pelo fato de ser cotista, o
preconceito e a própria questão financeira não devem ser pressupostos para a
evasão deste estudante da universidade. O resultado positivo como propõe a
estudante Priscila, parte da interação dos diferentes grupos étnicos e
socioeconômicos presentes na UERJ, responsáveis por garantir a diversidade na
universidade.
- 118 -
Capítulo 5
Considerações Finais.
- 119 -
Considerações Finais
A partir dos estudos realizados nesta dissertação, foi possível perceber que a
assim como os Estados Modernos, a sociedade brasileira possui em sua formação e
construção, um histórico de ideologia assimilacionista e etnocêntrica, que se
responsabilizou em sobrepor uma raça sobre outra, por meio de discursos
evolucionistas que justificavam a escravidão, e principalmente, a utilização dos
negros como mão de obra escrava.
A escravidão contribuiu para manutenção das desigualdades sociais e raciais
já estabelecidas desde a colonização. Mas durante o período pós-abolição e ao
longo do século XX, a liberdade dos negros não implicou numa condição de
cidadania e direitos, visto que, teorias em torno do darwinismo social contribuíam
para que ideologicamente o negro continuasse a se sentir inferior na dinâmica das
relações raciais. Estas ideologias relacionadas ao branqueamento e à idéia de uma
possível igualdade a partir da mestiçagem, criaram um ambiente no cotidiano das
relações sociais, uma lacuna que separava os brancos e negros pela raça e pela
classe, onde o negro além de sofrer com a falta de oportunidades e de mobilidade
social, se sujeitava a um racismo velado que contribuía ao mesmo tempo para o não
reconhecimento e negação da sua identidade étnica.
A percepção multicultural da sociedade brasileira criou um ambiente favorável
a revisão e fundamentação destas desigualdades históricas, onde os movimentos
sociais, em particular, o Movimento Negro, tiveram um papel importante no resgate
histórico. No entanto, toda esta idéia e ação em torno da importância do
reconhecimento das diferenças raciais e culturais para o combate das desigualdades
sociais, só se acentuou por meio da adoção das políticas de ação afirmativa.
As políticas de ação afirmativa contrariam o caráter universal das políticas
sociais, mas de certa forma, contribuem para a redução das distâncias sociais entre
os diferentes grupos étnicos de maneira imediata, visto que o objetivo das políticas
de discriminação positiva se encontra na repartição de espaços, procurando desta
maneira, criar um ambiente de interação social, trabalhando no cotidiano das
- 120 -
relações sociais: o racismo, e o preconceito por meio da oportunidade para grupos
excluídos.
Porém, apesar da idéia de justiça social, diversidade e reparação histórica
das políticas de ação afirmativa, no Brasil, a idéia de racialização ganhou o cenário
das discussões, determinando como único favorecido apenas os negros, diante de
uma realidade multicultural proposta pela política. A racialização do discurso em
torno das políticas de ação afirmativa gerou uma polêmica sobre a criação de um
suposto movimento que desconstruiria a harmonia racial em que vivia o país a partir
da auto-afirmação da identidade negra, o que de fato não ocorreu. Na viabilização
de uma nova oportunidade por meio de políticas que favorecem os grupos étnicos e
sociais excluídos, a racialização contribuiu para reafirmação das identidades
culturais e raciais existentes no Brasil e nas universidades públicas, construindo uma
teia de diversidades e de projetos que beneficiam a pluralidade nacional.
O debate exposto na mídia sobre a política de cotas nas universidades como
uma ação centralizada na visão racialista, foi colocado mais uma vez em discussão
com a sociedade a partir de uma reportagem de capa, publicada pela Revista Época
no dia 6 de abril de 2009, intitulada: “Cotas: reserva de vagas para negros, índios ou
pobres é uma solução ou cria problemas?”. De acordo com a revista, a política de
cotas é justa quando analisada apenas pela visão social, onde a utilização de
critérios socioeconômicos seria capaz de incluir brancos, negros e pobres,
independente da identidade racial.
A reportagem apresenta exemplos de países como os EUA, África do Sul e
Índia, que possuem em sua história conflitos raciais, e por isso, precisaram das
políticas de ações afirmativas como forma de superar as diferenças étnicas. No caso
brasileiro, a Revista Época apresenta o Brasil como um país isento de conflitos
raciais, pontuando as políticas de cotas raciais como um possível caminho
responsável por reverter este quadro, e por isso, as cotas sociais seriam mais
eficazes para resolver a disparidade educacional entre os diferentes grupos étnicos
e socioeconômicos, retirando do individuo de identidade híbrida a indelicadeza de se
auto-declarar para o acesso a direitos comuns, como: a educação superior.
Diante deste quadro, a reportagem pontua as políticas de cotas como
transitórias, pois a raiz do problema se encontra no investimento da escola de
qualidade; portanto, as políticas sociais devem ter inicio na educação básica.
- 121 -
“Não é verdade que os negros não estão entrando na universidade. Se existe
discriminação ela é social, não racial. Ninguém tem preconceito contra o Pelé ou
qualquer negro de elite. A cota é boa para representar a diversidade da sociedade
brasileira. Mas tem de ser para os melhores. O que está me deixando triste é que
vão baixar o nível dos alunos”. (Iloma Becskehazy97, Revista Época: 6 de abril,
2009)98
Determinar as cotas sociais como uma forma mais justa de reservar vagas
nas universidades públicas, ou afirmar que o brasileiro não possui preconceito
contra a minoria negra elitizada é fácil, quando não é elaborada uma análise da
questão social, onde a maioria da população negra se encontra nos bolsões de
pobreza e sujeita a péssima qualidade do ensino público.
O problema da educação básica não tem que ser interpretado como um
problema individual do estudante de escola pública que, por isso, se torna
responsável por desnivelar a educação superior a partir da entrada na universidade
por meio das políticas de cotas. De acordo com a pesquisa realizada nesta
dissertação, o problema racial é uma das expressões da questão social, com
alicerce em raízes históricas que justificam as desigualdades sociais entre negros e
brancos no Brasil, assim como a falta de oportunidades e ausência de direitos entre
ambos os grupos étnicos. Porém, em relação à educação, a condição social somada
à questão racial torna-se mais intensas, não só por meio da falta de escolaridade
dos negros e pobres, mas também, em função da trajetória social que obriga a
maioria deste grupo étnico e social a abandonar a escola antes mesmo de concluí-
la, e entrar no mercado de trabalho mais cedo, em geral, em funções subalternas ou
de formação técnica que ocupa as menores remunerações salariais.
A racialização do debate das cotas pela mídia impede que enxerguemos as
reais demandas e a importância da política de cotas racial, como um mecanismo
não só de reconhecimento de injustiças históricas, mas como uma forma de
viabilizarmos a diversidade racial como algo não meramente ilustrativo, e sim,
prático e presente no cotidiano das relações sociais, como: no mercado de trabalho,
nas universidades, na elite, no poder judiciário, na televisão. A política de cotas
97
Iloma Becskeházy: diretora executiva da Fundação Lemann. Entrevistada pela Revista Época. 98
LOYOLA, Leandro, FERNANDES, Nelito, TELLES, Margarida, LIMA, Francine. Cotas para quê? Reservar vagas para negros e índios ou estudantes pobres nas universidades públicas não resolve uma injustiça histórica – e cria mais problemas. IN: Revista Época. Edição 568. 6 de abril de 2009. pp. 82-89.
- 122 -
racial, enquanto um braço das ações afirmativas, materializa a equidade social, e
com isso, permite que no processo de discussão da adoção destas políticas de
caráter de discriminação positiva, desvele o racismo e formas de opressão que
ratificam uma desigualdade histórica.
Segundo a pesquisa e entrevistas realizadas com alguns estudantes cotistas
da UERJ, em relação ao acesso à universidade por meio das políticas de ação
afirmativa, a raça não se encontra como o fator de justificativa principal para a
entrada pelo sistema de cotas. A relação socioeconômica familiar se apresenta
como critério fundamental para o acesso as cotas, contribuindo para a
desracialização da política, onde as cotas raciais passam a se tornar uma segunda
opção, caso o pedido de cotas para estudante de escolas públicas seja indeferido.
Isso não significa que as cotas raciais devam ser extintas ou determinem algum tipo
de segregação entre os alunos cotistas e não cotistas. A questão central para a
desracialização das políticas de cotas é a dificuldade de auto-declaração, ou seja,
do conhecimento da sua identidade étnica. No entanto, independente do tipo de
cotas escolhido pelo aluno, a raça passa a ser de conhecimento do estudante a
partir de movimentos sociais existentes na própria universidade, preocupada não só
com o reconhecimento racial e social, mas também com a criação de novas
dinâmicas capazes de satisfazer o novo perfil de alunos responsáveis, por atribuir a
UERJ, uma nova diversidade caracterizada por novas trajetórias sociais, econômicas
e culturais.
A experiência das políticas de ação afirmativas na UERJ demonstra um
exemplo concreto de que toda política social necessita de financiamento por parte
do governo, o que não seria diferente com as políticas de cotas na universidade.
Apesar dos escassos recursos da UERJ para investir na estrutura e na própria
permanência do estudante cotista, o sonho de acesso à universidade para estes
novos estudantes, possibilitou não só que a lei da bolsa auxílio fosse reestruturada
como direito, mas que na ausência da mesma, os próprios cotistas criassem
estratégias para permanecer e sobreviver na universidade, objetivando terminar os
estudos e alcançar melhores posições no mercado de trabalho.
No processo de interação social no cotidiano da universidade, a relação com
diferentes grupos étnicos contribui para o reconhecimento e auto-afirmação das
diversas identidades, que se apresentam nas relações sociais como: negros,
indígenas, pobres, brancos, suburbanos, entre outras classificações, que se
- 123 -
distinguem no universo do estudante cotista, garantindo a amplitude cultural das
políticas de ação afirmativa na universidade.
A análise da importância das políticas de cotas para o acesso à universidade
por meio da observação da trajetória social dos estudantes cotistas da UERJ,
permitiu a compreensão da importância da política de ação afirmativa não só como
um mecanismo de diversidade, mas também de justiça social. Através das falas de
todos os entrevistados a universidade aparece como um caminho para a melhoria da
condição social dos entrevistados e dos estudantes cotistas em geral, por meio do
alcance de uma profissão e da saída da ‘exclusão intelectual’. Neste sentido, a
mobilidade racial aparece camuflada pela justiça social, que por meio da
oportunidade de uma melhor colocação profissional, possibilita a redução das
desigualdades entre brancos e negros na sociedade, visto que a questão social não
se coloca apenas por critérios econômicos, e sim, pela raça e pela condição
socioeconômica.
- 124 -
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IBGE: www.ibge.org.br
INEP: www.inep.org.br
www.planalto.gov.br
- 130 -
Anexos
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FICHA DO ENTREVISTADO
Dados Pessoais:
1. Nome Completo:
2. Endereço Completo:
3. Data de Nascimento:
4. Naturalidade:
5. Escolaridade (Formação básica/ nome da escola (s): pública/ particular
6. Filiação:
7. Irmãos (número):
8. Renda Familiar:
9. Trabalho (nome/ vínculo empregatício/ profissão)
10. Curso de Graduação:
11. Período em curso:
- 132 -
PERGUNTAS PARA ENTREVISTA
Trajetórias sociais:
1. Como se deu sua formação escolar?
2. Qual foi a importância do pré-vestibular na sua formação escolar?
3. Por que resolveu fazer graduação?
4. Por que a UERJ?
5. Por que resolveu entrar na universidade através do sistema de cotas?
6. Que tipo de cotas escolheu e por quê?
7. Qual é a importância das cotas em sua opinião?
Sobre o ingresso na universidade:
1. Conte um pouco sobre o seu cotidiano na universidade.
2. Que tipo de dificuldades tem tido na universidade?
3. Já vivenciou algum tipo de preconceito na universidade? Qual?
4. Quais são os problemas enfrentados por você na UERJ?
5. Como faz para superá-los?
6. Alguma sugestão para mudanças na universidade?
7. Qual é a importância da universidade para você?
8. Para você, como se dá a relação entre a universidade e o mercado de
trabalho?
9. Colocação pessoal do entrevistado.
1
Entrevistas para dissertação de mestrado: “Trajetórias sociais: uma análise da inclusão sob
as perspectivas dos alunos de cotas da UERJ”
Por Clarissa F. do Rêgo Barros – Faculdade de Serviço Social UERJ
Se estiver disposto e puder colaborar com esta pesquisa, preencha o quadro abaixo
com os dados solicitados. As entrevistas serão agendadas 4as ou 5as feiras no período da
tarde na sala 8024, dentre os dias escolhidos selecione um e escolha o horário que lhe
convém. Caso não possa nenhum destes dois dias e queira colaborar, preencha o último
quadro de “outras opções”, sugerindo o dia e o horário que entrarei em contato.
FICHA DE HORÁRIOS
Nome
Completo
E-mail e telefone de contato Curso e
período de
graduação
4ª feira
de tarde
(colocar
horário)
5ª feira de
tarde
(colocar
horário)
Outra
sugestão
(coloque
data e
horário)
Sandra
Regina
Serviço
Social
2º Período
27/08/2007
Sala 8024/
18hs
Daiana
Castro
Serviço
Social
4º Período
06/11/2007
Sala
8024/18hs
Vanderlei
C. Rocha
Serviço
Social
2ºPeríodo
18/10/2007
Sala 8024/
18hs
Allan da
Silva
Siqueira
Psicologia
1ºPeríodo
08/11/2007
Sala 8024/
18hs
Fernando
N.
Azevedo
Psicologia
1ºPeríodo
25/10/2007
Sala 8024
/19hs
2
FICHA DE HORÁRIOS
Nome
Completo
E- mail e telefone de contato Curso e
período de
graduação
4ª feira de
tarde
(colocar
horário)
5ª feira de
tarde
(colocar
horário)
Outra
sugestão
(coloque
data e
horário)
Maria de
Jesus
Psicologia
1º Período
25/10/2007
Sala 8014
18hs
Thiago dos
Santos
Fernandes
Engenharia
Química
1º Período
13/10/2007
Sala 8024
13:30h
17/11/2007
Sala 8024/
15hs
Priscila
Pereira da
Silva
Serviço
Social
10ºPeríodo
03/12/2007
Sala 8024/
16hs
Gracileide
Pereira Mota
da Cruz
Serviço
Social
4ºPeríodo
05/11/2007
Sala 8024/
18hs
Diego
Miguel
Ferreira
Cardoso
[email protected] Direito
2º Período
29/11/2007
Sala
8024/18hs
Tatiana
Moura
Saldanha da
Silva
[email protected] Direito
2º Período
29/11/2007
Sala 8024
18:30h
Flávia
Andréia do
Nascimento
[email protected] Serviço
Social
1º Período
29/11/2007
Sala 8024/
19hs