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Página | 1 UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE LETRAS A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO 1880-1909 PAULA ALEXANDRA DE FARIA FERREIRA Dissertação de Mestrado em História e Educação apresentada à FLUP sob orientação da Professora Doutora Maria José Moutinho. PORTO 2009

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

PAULA FERREIRA

UNIVERSIDADE DO PORTO

FACULDADE DE LETRAS

A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO

1880-1909

PAULA ALEXANDRA DE FARIA FERREIRA

Dissertação de Mestrado em História e Educação apresentada à FLUP sob

orientação da Professora Doutora Maria José Moutinho.

PORTO

2009

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Ao Carlos, à Cláudia e ao João

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AGRADECIMENTOS

Um agradecimento especial à nossa orientadora pelo seu acompanhamento

científico.

Para a Ana, registamos aqui um enorme “obrigada” pelo seu companheirismo e

pela sua amizade.

Agradecemos a todos aqueles que trabalham na Oficina de São José, Lar de

Infância e Juventude, o bom acolhimento que tivemos.

Dirigimos também agradecimentos particulares aos funcionários do Arquivo

Distrital do Porto e do Arquivo Histórico Municipal do Porto.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 5

ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA .................................................................................... 8

O ACESSO AOS ARQUIVOS DA OFICINA: A RECOLHA E O TRATAMENTO

DOS DADOS ............................................................................................................................ 8

CAPÍTULO I – CONTEXTUALIZAÇÃO ........................................................................ 11

I.1. O APOIO AOS MENORES DESVALIDOS – BREVE RESENHA ............. 11

I.2. ALGUMAS QUESTÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DE RODRIGUES

DE FREITAS .................................................................................................... 13

I.3. MISÉRIA, MENDICIDADE, PREVIDÊNCIA, ENSINO TÉCNICO,

“SOCORROS MÚTUOS” NA ÓPTICA DE UM CONTEMPORÂNEO ............. 18

I.4. CRIMINALIDADE E MARGINALIDADE INFANTIS, SUA PREVENÇÃO OU

REMEDIAÇÃO – A VISÃO DE MENDES CORREIA ...................................... 22

I.5. OUTROS MECANISMOS DE CORRECÇÃO DE MENORES DE “MAU

PROCEDER” ................................................................................................... 28

CAPÍTULO II - A OFICINA DE SÃO JOSÉ NO PORTO ......................................... 32

II.1. A FUNDAÇÃO DA OFICINA .................................................................... 32

II.2. OS ESTATUTOS DA OFICINA ................................................................. 34

II.3. O PADRE SEBASTIÃO LEITE DE VASCONCELOS, FIGURA POLÉMICA

......................................................................................................................... 50

II.4. A RECEPTIVIDADE SOCIAL DA OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE

DO PORTO ...................................................................................................... 56

CAPÍTULO III – TRATAMENTO ESTATÍSTICO ....................................................... 68

CAPÍTULO IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 87

FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 92

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INTRODUÇÃO

Quando nos propusemos fazer este trabalho, a intenção era pesquisar a

actividade educativa e de inserção social de jovens em risco desenvolvida pela

Oficina de São José do Porto, na actualidade. No entanto, houve razões que

contribuíram para a mudança do plano de trabalho. A razão mais relevante foi a

de consideramos mais oportuno e esclarecedor, começar pelo estudo dos

primeiros anos de história desta instituição, beneficiando da vantagem de não

efectuarmos, à época, uma abordagem aos seus jovens alunos, numa altura

em que o “Caso Gisberta” ainda alimentava as “especulações” dos mass

media.

Sendo assim, optamos por estudar esta instituição ao longo do período que

medeia entre 1880 e 1909, baseando-nos nas fontes documentais existentes

no Arquivo da Oficina de São José do Porto e nos Arquivo Distrital do Porto e

Arquivo Histórico Municipal do Porto.

Podemos justificar a escolha deste tema pela importância humanitária e pela

relevância social da instituição em estudo. Numa época marcada pela

necessidade de “regeneração da juventude pelo trabalho e pela religião”,

conforme foi escrito pelo padre Sebastião Leite de Vasconcelos, fundador da

casa, sentiu-se a grande necessidade de criar esta Oficina na cidade do Porto.

A importância do seu surgimento é atestada pelo apoio dos poderes públicos a

esta instituição humanitária bem como, pelo reconhecimento da opinião pública

que foi sensível a esta obra, realidade bem evidente nas impressões registadas

ao longo dos anos, por centenas de pessoas, no livro dos visitantes da Oficina

(inclusivamente, pelos membros da família real).

Sendo assim, é oportuno reflectirmos sobre o que o escreveu acerca da Oficina

de São José, o Dr. Padre Manoel Antonio Monteiro Limão, a 21 de Janeiro de

1886:

“As creanças de hoje serão os homens de amanhã e por isso nada mais util do

que a educação moral, civil e religiosa e os que com ella se sacrificam, prestam

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grandes serviços à sociedade e à religião, e é também grande o premio que

hão-de receber dos sagrados corações de Jesus, Maria e José”.

A partir da nossa experiência profissional, assistimos frequentemente ao

abandono escolar por parte de crianças e de adolescentes, sem que a escola

dê uma resposta interna à resolução dos problemas ou pelo menos, ao seu

controlo, evitando assim que cresça o número de jovens entregues a si

próprios e/ou a famílias completamente desagregadas e marcadas pela

violência, prostituição, alcoolismo, toxicodependência, mendicidade e outras

situações geradoras de marginalidade.

Não podemos ser ingénuos no sentido de pretendermos mudar o mundo ou

resolver todos os males que afectam os alunos/jovens de hoje, quando já

existem inúmeras pesquisas e trabalhos publicados que versam sobre esta

temática, sendo que os problemas relacionados com a delinquência juvenil

permanecem no nosso quotidiano.

No entanto, o interesse por estas questões e o estudo particular de uma

instituição centenária (neste caso, a Oficina de São José), poderá alertar-nos

para problemas sociais que, com outros contornos, são perfeitamente actuais.

Conhecendo o historial de “crianças problema” e a forma como os

responsáveis de determinada instituição tentaram e tentam salvá-las do mundo

da marginalidade, será possível orientar a actuação dos interessados nesta

problemática no sentido de auxiliar aqueles que procuram um futuro mais

estável e promissor para estes jovens.

Mesmo correndo o risco de fracassarmos em muitas tentativas de ajuda a

menores em risco, aqueles que desviarmos do mundo da marginalidade, já

representarão uma forte motivação para continuarmos a nossa “missão”.

Já no século XIX, o padre Sebastião Leite de Vasconcelos, na linha de São

João Bosco, fundador da Sociedade de S. Francisco de Sales, enveredou por

um sistema educativo orientado no sentido da preparação para a vida da

população juvenil portuguesa, numa perspectiva profissionalizante.

A intenção do padre Sebastião, como a de D. Bosco, era a de contribuir para a

formação dos jovens portugueses, ajudando-os a tornarem-se cidadãos

honestos e bons cristãos.

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Também estes religiosos acreditavam na prevenção ou minimização dos

efeitos nefastos de contextos familiares adversos no que diz respeito aos

jovens que acolhiam mas a sua acção assumiu uma vertente caritativa e

evangelizadora, perfeitamente compreensíveis numa sociedade de finais do

século XIX e inícios do século XX. Essa acção privilegiou uma infância

desvalida e particularmente, os menores que já haviam caído nas malhas da

criminalidade. D. Bosco e o padre Sebastião conseguiram obter alguns

resultados positivos e ainda que estes resultados constituíssem uma ínfima

contribuição num grande universo de jovens delinquentes, não os podemos

ignorar.

É nesta linha de pensamento que nos propomos debruçar sobre as questões

que se seguem, como demonstramos nos capítulos II e III:

Quais as principais razões que estiveram na origem da fundação da

Oficina de São José, na cidade do Porto?

Como foi interpretada a intervenção social da figura do padre Sebastião

Leite de Vasconcelos no período estudado?

Qual a relação entre o padre Sebastião Leite de Vasconcelos e São

João Bosco?

Como foi a receptividade social no Porto a esta Oficina de Artes e

Ofícios?

Que tipo de jovens constituíam a população maioritária da Oficina de

São José?

Quais as ilações que podemos retirar da análise dos casos de sucesso

e/ou fracasso pessoal e profissional dos jovens acolhidos por esta

instituição?...

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ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA

O ACESSO AOS ARQUIVOS DA OFICINA: A RECOLHA E O TRATAMENTO DOS DADOS

Da documentação a que tivemos acesso na instituição privilegiamos o Livro de

Registo de Matrículas, desde o ano de 1883 até ao ano de 1933 e um Livro de

Legados de benfeitores. Tendo a verdadeira noção de que os ficheiros sobre

estudantes são particularmente importantes, enveredamos pela utilização do

computador na introdução, classificação e tratamento de dados respeitantes

aos educandos desta oficina, desde a sua fundação. Usamos um programa de

uma empresa cujo software foi adaptado às necessidades da nossa pesquisa e

ao tratamento dos dados recolhidos.

Naturalmente que a antiguidade das fontes, o seu difícil manuseamento e a

própria ausência de certos dados sobre os educandos, nos obrigaram a

recorrer a todas as informações anexas (observações que incluímos em blocos

de notas “encriptadas”) para podermos tirar conclusões sólidas sobre estes

alunos e a organização da própria instituição.

Criamos assim uma base de dados com 497 fichas de registo de matrícula com

os seguintes elementos:

Número do educando.

Alcunha (no caso desta existir).

Nome próprio.

Filiação (Pai e Mãe).

Data de Nascimento.

Naturalidade (País estrangeiro ou Distrito de Portugal).

Data de admissão.

Data de saída.

Comportamento (Insubordinação/Actos criminosos).

Ofício.

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Na sequência do tratamento estatístico destes dados, teremos que salientar a

impossibilidade do programa em assumir a gravação de fichas com falta de

certos elementos, o que nos forçou a adoptar estratégias de superação dessas

limitações, sem com isso falsear os resultados.

Assim, podemos destacar os seguintes procedimentos:

Quando não existe qualquer referência ao nome do pai, mãe ou de

ambos, colocámos a designação de incógnito, incógnita ou incógnitos.

Quando não existe registo da data de nascimento do educando,

optamos por criar a data de referência 01-01-1800.

No respeitante à naturalidade, decidimos privilegiar a análise das fichas

dos educandos oriundos das Freguesias do Concelho do Porto, espaço

principal do objecto do nosso estudo, quer pelo facto de ser o espaço de

implantação da própria Oficina, quer pelo facto de grande parte dos

registos de matrícula analisados dizerem respeito a jovens do Distrito do

Porto.

A propósito dos restantes dados:

--» Os educandos naturais do “Grande Porto” foram registados como

fazendo parte do Distrito do Porto mas com a expressão “Não se Aplica”

relativamente às Freguesias;

--» Os educandos do resto do país foram registados nos restantes

Distritos de Portugal mas com a expressão “Não se Aplica”

relativamente às Freguesias, com excepção dos naturais da Freguesia

da Sé desses Distritos;

--» Os educandos expostos ou que surgem sem qualquer referência ao

local onde nasceram, foram registados com a expressão “Não se Aplica”

relativamente ao Distrito e à Freguesia.

--» No caso de educandos nascidos no estrangeiro, repetiu-se o

procedimento anterior.

No que concerne à data de saída, o algarismo 0 significa que não existe

qualquer referência a essa data.

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Relativamente ao comportamento, apenas destacámos os educandos

com indicações sobre insubordinação, actos criminosos ou com um

comportamento referido como louvável ou até premiado.

O percurso do educando após a saída da Oficina também é indicador de

um excelente, bom, regular, mau ou péssimo comportamento.

Os casos que não apresentam qualquer referência ao comportamento

antes, durante ou após a permanência na Oficina, foram registados

como jovens de comportamento regular ainda que existam casos de um

comportamento regular mencionado no próprio Livro de Matrículas.

Relativamente aos Ofícios, nas situações em que o ofício não é referido,

aparece a expressão “não mencionado”.

Finalmente, com base na análise das observações das fichas de Registo de

Matrícula, pudemos chegar a importantes conclusões sobre:

--» A relação entre alguns educandos e os mestres, protectores e familiares.

--» A actuação dos mestres e médicos para com os educandos.

--» A opinião dos responsáveis da Oficina sobre as capacidades intelectuais

e habilidades motoras dos educandos.

--» Algumas das regras fundamentais a cumprir pelos membros da Oficina.

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CAPÍTULO I – CONTEXTUALIZAÇÃO

Partindo do facto do nosso trabalho de pesquisa se circunscrever ao período

decorrente entre finais do século XIX e inícios do século XX, centraremos a sua

contextualização histórica e socioeconómica neste intervalo de tempo e

fazendo referência às organizações com relevância social nascidas na época e

aos apoios económicos provenientes, quer da cidade do Porto, quer de outras

localidades.

I.1. O APOIO AOS MENORES DESVALIDOS – BREVE RESENHA

A Casa Pia, inaugurada a 3 de Julho de 1780, procurava regenerar os vadios

adultos de ambos os sexos e internava crianças abandonadas ou desvalidas

que pudessem converter-se em “perigosos malfeitores”.

Após ter sofrido um processo de decadência (para o qual contribuíram a morte

de Pina Manique e as Invasões Francesas), a Casa Pia foi reinaugurada no

Convento do Desterro, em 31 de Agosto de 1811, mas as suas competências

cingiam-se à assistência e educação de menores desamparados.

Mais tarde, já no período de consolidação do liberalismo, pelos decretos de 6

de Abril de 1836 e de 14 de Abril de 1836, inaugurava-se no ex-convento de

Santo António dos Capuchos, o Asilo de Mendicidade de Lisboa, consagrado à

detenção e recolhimento de mendigos e indigentes, de qualquer idade e de

ambos os sexos, residentes há mais de dois anos na cidade, criando-se

paralelamente um Conselho Geral de Beneficência em Lisboa e comissões

filiais nas capitais de distrito e ilhas, no intuito de atenuar a mendicidade.

Apesar dos asilos de mendicidade se terem instalado posteriormente em várias

cidades (Porto-1846), o internamento nestas instituições não era forçado ou

involuntário. Paralelamente a tais instituições asilares, o século XIX

caracterizou-se por um aumento do número de irmandades, de comissões de

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beneficência paroquiais e municipais, de grupos particulares em áreas

circunscritas.

O Asilo D. Maria Pia, criado por decreto de 14 de Março de 1867, para além de

receber internados inválidos e velhos, acolhia menores para lhes dar educação

nas suas aulas e oficinas. Esta tese da regeneração pelo trabalho relacionava-

se com a criação de uma nova instituição para menores, em 1871, a Casa de

Correcção estabelecida no extinto Convento das Mónicas. Nove anos depois, o

Governo instituía no Concelho de Elvas (através da lei de 22 de Junho de

1880), a Escola Agrícola.

Na cidade do Porto, em finais do século XIX, existiam vários estabelecimentos

que acolhiam crianças mas que deveriam ter uma maior capacidade de

acolhimento. Todavia, por falta de recursos, estes estabelecimentos não

conseguiram inserir todas as crianças. Além disso, eram “organismos” que

beneficiavam de donativos particulares. Eles eram:

“Estabelecimento Humanitário do Barão de Nova Cintra”;

“Oficina de São José”;

“Asilo profissional do Terço”;

“O Colégio das Órfãs”;

“O Asilo de São João”;

“O Colégio dos Meninos Órfãos”;

“O Seminário dos Meninos Desamparados”;

“O Asilo Escola Municipal”;

“O Recolhimento das Meninas Abandonadas”;

“O Asilo de Vilar”;

“O Instituto de Surdos-Mudos”;

“O Recolhimento de Nossa Senhora das Dores e São José”.

A intensificação da moralização da sociedade portuguesa em torno do valor-

trabalho dos finais do século XIX, exercia uma influência apreciável no

fenómeno da repressão da mendicidade e da vadiagem.

No decurso do século XIX, podemos realçar a importância da acção benfeitora

de várias instituições como a Oficina de São José, o Asilo do Terço, o Asilo de

São João, numa altura em que a iniciativa privada e em particular, a

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intervenção da Igreja Católica procuravam minorar os efeitos sociais nefastos

provocados pelo abandono de jovens.

Na verdade, a Oficina de São José na cidade do Porto, não só recolhia órfãos e

desamparados como também, alguns jovens de “mau proceder” que tivessem

estado na cadeia dando-lhes educação, instrução e ensino profissional.

I.2. ALGUMAS QUESTÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DE

RODRIGUES DE FREITAS

José Joaquim Rodrigues de Freitas (1840-1896) foi uma figura de grande

relevo na história da ideologia republicana em Portugal. Primeiro deputado

republicano (entre 1870 e 1874), pela perfeita dignidade da sua vida e pelas

suas qualidades intelectuais, adquiriu um enorme prestígio entre os seus

contemporâneos. Na condição de escritor e de jornalista, deixou obras de

grande interesse histórico e registos dispersos que nos ajudaram a reflectir

sobre os problemas sociais de finais do século XIX, na cidade do Porto.

No artigo que redigiu no periódico, “O Comércio do Porto”, a 17 de Setembro

de 1879, respeitante à mortalidade e à habitação, este político da oposição,

atento aos problemas sociais coevos, realçou a importância da casa, sob o

ponto de vista higiénico e moral, na vida quotidiana das populações de então.

No seu entender havia um limite de alimento, de luz, de ar, de abrigo, e

também de amor, abaixo do qual a existência humana em geral, era

impossível.

Nesta linha de pensamento, Rodrigues de Freitas valorizava a questão da

habitação, sobretudo nos grandes centros populacionais, onde o aluguer de

uma casa constituía uma das maiores despesas anuais. Os habitantes mais

pobres que se refugiavam em espaços exíguos, insalubres, sujos e

degradados, estavam muito perto do ponto, além do qual “só reinavam os gelos

da morte”. Na realidade, as doenças pulmonares desenvolviam-se

preferencialmente em aposentos estreitos e mal arejados.

A propósito da situação dos habitantes de grandes cidades, como as cidades

de Lisboa e do Porto, no seu artigo publicado no “Comércio do Porto”, a 7 de

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Agosto de 1880, sobre a beneficência pública, Rodrigues de Freitas constatou

que foram muitas as disposições legislativas acerca da beneficência pública em

Portugal.

Algumas destas disposições, ainda que antigas, mostraram o cuidado que

merecia este importantíssimo ramo da administração. No entanto, na sua

opinião e na qualidade de homem da oposição, considerava as nossas

instituições públicas de caridade, praticamente inoperantes. Na realidade, elas

não se notabilizaram, nem pelo número, nem pela qualidade.

Rodrigues de Freitas partiu da ideia de que o país se podia dividir em duas

regiões distintas: a região norte, fortemente marcada pela filantropia particular

e a região sul, nitidamente assinalada pela intervenção estatal.

Como político interveniente e crítico que era, ele não deixou de questionar a

forma como o dinheiro público era gasto em casas de filantropia, nem sempre

funcionais nem de grande utilidade. Tomando como exemplo, o Asilo de D.

Maria Pia, em Lisboa, considerou aí, duas faltas essenciais: a falta de ar puro e

a falta de pão para a sobrevivência humana. A seu ver, prolongar a vida pelo

martírio lento da subsistência insuficiente, da alimentação má, do ar viciado,

não pode ser o destino das instituições mantidas pelo Estado. Sendo assim,

não poderíamos falar de beneficência mas sim, de maleficência.

Para remediar estes males, procurou-se na caridade dos particulares o que

faltava ao Estado.

Rodrigues de Freitas considerava ser necessária e indispensável, a

beneficência tornada função do Estado, embora fosse importante torná-la

fecunda, empregando honradamente os fundos que lhe eram destinados.

No artigo que escreveu no periódico “O Comércio do Porto” em 22 de Maio de

1884, sobre a Associação da Creche de S. Vicente de Paulo, referindo-se

especificamente às instituições destinadas à recolha, educação e instrução de

crianças, Rodrigues de Freitas considerava que estas não deviam ser

simultaneamente recolhimento de inválidos do trabalho ou do hospital. Na

verdade, variando tanto as regras de vida com as idades extremas, seria

“transgredi-las”, reunir crianças e idosos no mesmo asilo.

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Segundo este político, nas classes inferiores colocava-se o problema da

sobrevivência das crianças. Nestes meios, as mães costumavam ter o trabalho

de amamentar os filhos, pois a própria pobreza, a escassez de recursos e o

hábito estimulavam-lhes esse procedimento. No entanto, situações como uma

péssima alimentação da mãe ou o seu emprego numa fábrica, arrastavam as

crianças para o abandono ou a sua entrega a pessoas pouco responsáveis.

Neste contexto e para obviar estas dolorosas consequências, o moderno

espírito filantrópico instituiu as creches.

A primeira creche aberta na cidade do Porto, foi em 21 de Novembro de 1852,

tendo sido seu benemérito fundador, João Vicente Martins, que na capital de

França tinha estudado os efeitos salutares da obra de Marbeau.1

Em 25 de Agosto de 1854 instalou-se nesta cidade, a Associação Protectora

das Creches de S. Vicente de Paulo que integrou esta primeira creche

portuense. A associação portuense, que manteve e dirigiu a primeira Creche

estabelecida em Portugal, construiu casa própria onde era maior o número de

berços e todas as condições higiénicas eram observadas. As crianças podiam

permanecer aí até aos seis anos de idade e beneficiavam da criação de uma

escola onde recebiam os rudimentos da educação maternal.

Partindo das informações fornecidas por Rodrigues de Freitas num artigo que

integrou “O Comércio do Porto”, em Janeiro de 1881, respeitante à casa de

correcção, ficamos a saber que se divulgou a ideia da necessidade urgente da

fundação de asilos nocturnos na cidade do Porto, na qualidade de institutos de

beneficência.

No entanto, para Rodrigues de Freitas, era mais premente canalizar os

esforços da beneficência particular para a criação de uma casa de correcção.

Foi neste contexto de opinião, que este deputado nos relembrou a história de

um cidadão que viveu na cidade do Porto, cidadão benemérito preocupado

com a melhoria da situação dos desvalidos e fundador de um estabelecimento

humanitário. Referimo-nos ao barão de Nova Cintra que faleceu sem ter

1 Jean Firmin Marbeau nasceu em Brive-la-Gaillard e foi advogado em Paris. Ficou

particularmente conhecido pela fundação da primeira creche em Paris, a 14 de Novembro de 1844. Esta creche destinava-se a filhos de mães trabalhadoras e serviu de modelo à criação de outras creches por toda a França. Faleceu em Saint-Cloud, em 1875.

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conseguido ver completar o Estabelecimento Humanitário que fez nascer e que

viria a ser dirigido pela Santa Casa da Misericórdia.

Este estabelecimento humanitário era uma verdadeira casa de correcção e um

asilo para rapazes e raparigas; o seu fundador pretendia que as meninas ali

recolhidas se tornassem hábeis para as tarefas domésticas e para a vida

independente e que os rapazes se convertessem em bons agricultores ou

operários. Para este efeito, as partes características deste Estabelecimento

Humanitário do Barão de Nova Cintra eram casas para aulas, um campo de

trabalho, algumas oficinas, espaços para experiências agrícolas e uma fábrica

de fiação de seda. A par do asilo industrial e agrícola, deveria existir uma casa

de correcção destinada a jovens, cujo proceder fosse repreensível para que a

educação moral e a benéfica acção do trabalho os transformassem em

cidadãos honestos e úteis.

Rodrigues de Freitas justificava a urgência do surgimento deste asilo/casa de

correcção pela frequência das notícias diárias respeitantes a crimes praticados

por menores, sem família conhecida, sem domicílio certo, sem ocupação

definida! Por vezes, eram recebidos na cadeia ou deportados para África.

Ora, a seu ver, a sociedade procederia melhor se corrigisse em vez de punir

pois, enquanto a punição geralmente piorava o indivíduo, a correcção

transformava o vício em actividade sã e fazia de um parasita, um produtor!

Na perspectiva de Rodrigues de Freitas, se o norte de Portugal já possuía

muitos estabelecimentos de beneficência provenientes da iniciativa particular e

praticamente sustentados sem o auxílio estatal, nenhum deles era

verdadeiramente uma casa correccional! A título de exemplo podemos citar o

caso da Oficina de São José que recebia jovens com cadastro mas que estava

longe de ser um estabelecimento correccional. A implantação de uma casa de

correcção, só glorificaria a cidade do Porto que passaria a beneficiar de uma

instituição capaz de contribuir para o melhoramento moral dos menores vadios,

mendigos e criminosos, havendo o cuidado de não se misturarem menores e

adultos num estabelecimento prisional. Além disso, na opinião de Rodrigues de

Freitas, se a existência de crianças incapazes de aprender não era motivo

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contra a fundação de escolas, também a existência de incorrigíveis não poderia

servir de pretexto para a não exigência de casas de correcção!

Por outro lado, as investigações sobre as causas da delinquência, remetem-

nos geralmente para factores abordados por Rodrigues de Freitas num artigo

sobre o melhoramento das classes laboriosas, elaborado para “O Comércio do

Porto”, em 16 de Maio de 1884.

Estes factores passavam por uma existência desgraçada, pela falta de carinho

e acompanhamento, pelo desleixo ou pelo vício dos pais. Neste ensejo, o

combate ao desenvolvimento do crime entre os menores e ao crescente

número de crianças doentes, ignorantes e delinquentes teria que passar

inevitavelmente, pela melhoria da situação económica das classes laboriosas.

A partir da leitura do artigo sobre a miséria no Porto, inserido na publicação “A

Folha Nova”, de 27 de Julho de 1885, constatamos que as investigações feitas

pelas autoridades e pelas comissões da imprensa mostraram que na cidade do

Porto existiam muitíssimas pessoas a viver na miséria, em casas sem as mais

elementares condições recomendadas pela higiene.

Na realidade, a par do progresso material coexistia a cidade da indigência, com

as suas ilhas lôbregas, com as suas estreitas e infectadas moradas, com os

seus habitantes cujos organismos se deterioravam, se atrofiavam, se

depravavam num meio verdadeiramente mórbido. A fome era uma realidade, à

qual não escapavam as cidades conotadas como desenvolvidas.

Noutro artigo sobre casas para operários, inserido na publicação “A Folha

Nova”, de 2 de Outubro de 1885, Rodrigues de Freitas fez referência a um

projecto apresentado pelo governador civil do Porto, no sentido de se contribuir

para a construção de mil casas para operários que custariam, em média,

300$000 reis, cada uma. Os operários, não só as arrendariam, mas poderiam

gradualmente comprá-las. É de notar que, se o inquilino se pudesse converter

em proprietário, mais zeloso seria relativamente à conservação do seu prédio.

Além disso, destinada aos moradores paupérrimos das ilhas, que sofriam com

a falta de pão e de água potável, surgiu uma proposta no sentido de se

efectuarem obras de beneficiação nessas ilhas como forma de combate à

degradação física e moral das classes laboriosas.

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PAULA FERREIRA

Num artigo posterior de 6 de Outubro de 1885, na mesma publicação,

Rodrigues de Freitas, abordava novamente o problema dos prédios

degradados e os problemas das pessoas que os habitavam. De facto, ou por

falta de recursos, ou por ignorância, cerca de um sexto da população portuense

de 1885 vivia em péssimas condições físicas e morais. Em 22 de Setembro de

1894, no “Comércio do Porto”, este deputado falava-nos da importância da

criação de habitações limpas, livres de fumo, livres de humidade e de mau

cheiro, bem iluminadas, abundantes de ar puro e divididas de modo a

proporcionarem ordem e asseio àqueles que mais precisavam de recuperar

forças para trabalhar. Finalmente, a 4 de Outubro de 1894, também no

“Comércio do Porto”, Rodrigues de Freitas concluiu que, ainda que estes

empreendimentos, apenas beneficiassem uma parte da população operária,

eles serviriam de exemplo a outras propostas/ projectos similares e desviariam

dos caminhos do vício, cada vez maiores somas de um trabalho penosamente

produzido.

I.3. MISÉRIA, MENDICIDADE, PREVIDÊNCIA, ENSINO TÉCNICO,

“SOCORROS MÚTUOS” NA ÓPTICA DE UM CONTEMPORÂNEO

Torna-se imprescindível, neste contexto, esclarecer o conteúdo de conceitos

como miséria, mendicidade, previdência, ensino técnico e “socorros mútuos”,

no sentido em que eram aplicados na época em estudo.

Pareceu-nos útil colher em Forbes de Magalhães, membro do Conselho

Científico do Instituto Portuense, alguns conteúdos sobre esses conceitos, uma

vez que se tratou de uma figura portuense bastante interessada nas questões

sociais relacionadas com a pobreza. Em 1897, no Boletim do Instituto

Portuense, este contemporâneo fez uma abordagem à problemática da miséria.

Na sua opinião, a palavra miséria podia ser usada com dois significados: a

miséria física (fome, frio, doença) e a miséria moral (ignorância, perversão,

crime). Estes dois tipos de miséria podiam coexistir quando procediam da

mesma causa mas geralmente derivavam uma da outra.

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Além disso, a miséria podia ser recatada ou ostensiva. Num sentido mais lato,

o “pauperismo” designava a miséria colectiva, amplificada, geral, que reduzia

categorias inteiras de indivíduos ao estado de indigentes socorridos.

A própria Revolução Industrial produziu o aumento da riqueza por parte de

alguns elementos da sociedade mas também provocou o “pauperismo” de

muitos. Ainda existiam os falsos mendigos que, por vício, eram os terríveis

inimigos dos verdadeiros pobres porque lhes roubavam os socorros.

Forbes de Magalhães fez uma breve descrição do que se assistia no nosso

país. Daquilo que observava, considerava que em Portugal, a “doença social”

da mendicidade parecia endémica.

Citando dados concretos referia que, no ano de 1896 haviam sido detidos pela

polícia civil do Porto, por andar a mendigar, 176 homens, 361 mulheres e 29

crianças, ao todo, 566 pessoas das quais 214 eram reincidentes. Dos 566

mendigos referidos, 224 haviam sido libertos, 153 haviam sido remetidos ao

asilo, 70 haviam sido entregues a familiares, 37 haviam sido enviados para as

terras da sua naturalidade e 4 haviam sido internados no Hospital. Do total, 178

eram falsos mendigos. Neste número, entravam ainda os exploradores da

caridade pública que recebiam crianças “alugadas” para andarem a mendigar

de terra em terra, de feira em feira, de romaria em romaria. O autor denunciou

situações graves como a “indústria vil” de aleijar, estropiar e até cegar crianças

para as “alugar” a exploradores por quantias que rondavam os 4$800 reis e os

5$000 reis, bem como a pressão a que a polícia era sujeita quando intervinha

na detenção de mendigos para irem a tribunal ou serem internados no Asilo da

Mendicidade. O número de pobres inscritos nos registos do “Commercio do

Porto” era de 1250 e em 1896 foram distribuídos 4: 767$050 reis em 3913

esmolas.

Na opinião de Forbes de Magalhães, a “previdência” surgia como o melhor

meio de evitar a miséria, ocasionada pela falta de saúde, pela ausência de

ordem pública, pela invenção de novos processos industriais, pelo desvio das

correntes comerciais ou pelo desaparecimento da necessidade de serviços

prestados pela sua profissão. No entanto, este autor alerta-nos para o facto de

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nos podermos deparar com “o reverso da medalha” ou seja, a beneficência

também poderia proporcionar situações de miséria!

Na realidade, as pessoas, sabendo da existência de instituições de

beneficência, poderiam não evitar cair na miséria.

Segundo Forbes de Magalhães, os economistas eram avessos ao sistema de

beneficência oficial ou legal uma vez que este comportava gastos excessivos

com o aparelho burocrático que o sustentava, sendo que o pobre passava a

exigir a esmola como um direito que convidava à preguiça.

A beneficência particular ou individual tinha a grande vantagem de purificar as

almas daquele que socorria e daquele que era socorrido mas também podia

gerar a imprevidência. Em suma, o ideal era o recurso a associações de

carácter particular espontâneo com uma certa fiscalização estatal.

Como exemplo de um tipo de beneficência mais frutífera, Forbes de Magalhães

referia instituições genuinamente portuguesas e seculares, as Misericórdias.

Grande parte dos rapazes que adoeciam na Oficina de São José com

tuberculose, acabavam por falecer no Hospital da Misericórdia.

Na opinião de Forbes de Magalhães, no ano de comemoração do quarto

centenário da Misericórdia do Porto (fundada em 14 de Março de 1499) seria

importante a criação de um asilo para cegos com atribuições de

encaminhamento profissional. Este cidadão sublinhou o seu desagrado em se

atribuírem funções de beneficência às Câmaras Municipais, sobretudo

relativamente a expostos, crianças desvalidas ou abandonadas

Forbes de Magalhães procedeu à distinção entre os indigentes, inválidos ou

doentes que deveriam beneficiar da assistência pública até se recuperarem, os

mendigos ou vagabundos acidentais que deveriam ser recebidos em

estabelecimentos onde o trabalho era obrigatório e os mendigos de profissão

que deveriam ser severamente punidos.

Outra das instituições citadas por Forbes de Magalhães era o “Seminário dos

Meninos Desamparados”2, instituição essa que acolhia muitos dos jovens

posteriormente encaminhados para a Oficina de São José.

2 Em 1814, uma dama portuense recolheu em sua própria casa, as crianças que ficaram órfãs

depois da funesta invasão de Soult, lançando a pedra basilar de um Asilo que seria conhecido

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É importante salientar que Forbes de Magalhães frisou bem a ideia da

necessidade em se dar uma instrução profissional às “classes” mais pobres ou

seja, a habilitação para ganhar meios de subsistência, educação, amor ao

trabalho, hábitos de economia, regras, bons costumes e amor à família.

É nesta linha de pensamento que o ensino comercial e industrial será

cuidadosamente tratado em alguns estabelecimentos de beneficência. A título

de exemplo podemos referir o Internato Municipal e o Colégio dos Órfãos onde

se administrava o ensino comercial e industrial; a Escola da Ordem Terceira do

Carmo que preferia o ensino comercial; o Instituto dos Cegos; o Asilo do Terço;

o Asilo do Barão de Nova Cintra e a Oficina de São José ou “Escola de artes e

ofícios para crianças pobres e abandonadas” (documento de 1887) que

optaram pelo ensino industrial. Todavia, no seu parecer, as Associações de

Socorros Mútuos garantiriam (com poucas despesas), benefícios na doença,

invalidez, acidente, velhice…Deste modo, seria a beneficência particular

associada a uma fiscalização estatal, a melhor forma de “socorrer a miséria”.

Forbes de Magalhães apresentou as seguintes propostas de socorro à miséria

na cidade do Porto, em finais do século XIX:

Criação de um Asilo e Escola Profissional para cegos como forma de

comemorar a fundação da sua Misericórdia;

Criação de Socorros Domiciliários pela Misericórdia;

Criação de Casas de Convalescença fora do Porto (Província);

Criação de Misericórdias em todas as cidades, vilas e povoações mais

importantes do país;

Implementação de estudos para Socorros Domiciliários;

Implementação de Socorros adequados às circunstâncias/necessidades

de cada caso, a partir da recolha de informações sobre os possíveis

beneficiários.

Numa referência final à abordagem do pensamento deste cidadão, podemos

realçar que numa altura de elevada taxa de menores desvalidos na cidade do

pelo “Recolhimento das Meninas Desamparadas” instituindo-se posteriormente outro Asilo com

o nome de “Seminário dos Meninos Desamparados”.

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Porto, a beneficência particular supervisionada pelo Estado e o

encaminhamento destes jovens para a aprendizagem de uma arte ou ofício,

seriam, no seu entendimento, as formas mais eficazes para se minorar o

problema da miséria e da mendicidade.

I.4. CRIMINALIDADE E MARGINALIDADE INFANTIS, SUA

PREVENÇÃO OU REMEDIAÇÃO – A VISÃO DE MENDES CORREIA

Na realidade, os menores do nosso país que eram arrastados por chefes de

bandos para a prática de delitos, poderiam transformar-se em jovens honestos

e dóceis quando colocados em oficinas, numa situação de liberdade vigiada.

Antes do Decreto de 27 de Maio de 1911, existiam já no Porto, embora com

sede fora da cidade, duas instituições destinadas à educação preventiva e

reformadora das crianças delinquentes: “Casa de Detenção e Correcção” que

funcionava em Vila do Conde e que fora criada por lei de 17 de Abril de 1902 e

a “Colónia Agrícola de Vila Fernando” criada em 22 de Julho de 1880, aberta

em 1895 e regulamentada em 17 de Agosto de 1901.

Mendes Correia, nos estudos que efectuou sobre crianças delinquentes, em

1915, fornece-nos informações relevantes sobre as ideias vigentes na época.

Na sua opinião, o senso moral, as noções de altruísmo, as noções de

probidade e de justiça não entravam no espírito humano logo no alvorecer da

existência mas o crime não era também uma manifestação habitual na criança.

O adulto refreava muito dos seus ímpetos anti-sociais porque receava as

consequências dos seus actos que já conhecia bem. Uma verdade

incontestável a que Mendes Correia se referia era a de que a luta contra a

criminalidade infantil seria a melhor profilaxia contra a criminalidade adulta.

Na sua óptica, a grande maioria dos menores considerados delinquentes,

criminosos e marginais, não tinham um meio familiar que lhes incutisse

normas/regras salutares. Daí a importância e/ou determinismo das condições

familiares e sociais na ocorrência da criminalidade. A título de exemplo,

Mendes Correia referia a noção de propriedade que não era inata nas crianças

mas sim, uma aquisição educativa. Os furtos em tenras idades não revelavam

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anomalias graves mas deveriam ser oportunamente combatidos no seio da

família por uma educação moralizadora e vigilante.

As estatísticas portuguesas da época em estudo, salvaguardando as possíveis

margens de erro, dão-nos, em diferentes períodos, as seguintes médias anuais

de criminosos com menos de vinte anos de idade, no continente e ilhas:

De 1878 a 1880 1092

De 1891 a 1895 3384

De 1903 a 1910 3392

Além dos dados visíveis na tabela, podemos utilizar as seguintes conclusões,

apuradas pelo autor:

!ª A criminalidade precoce triplicou em Portugal, de 1878 a 1895.

2ª A criminalidade precoce em 1909 e 1910 apresentou uma notável tendência

para descer.

3ª A média de 1903 a 1908 era de 3417 enquanto que em 1909 e 1910 era de

3317.

Ainda a este propósito, subtraindo às médias do quadro anterior as quotas que

correspondem aos menores de 18 a 20 anos, obtivemos as seguintes médias

para a criminalidade dos menores até dezoito anos:

De 1891 a 1895 1463

De 1903 a 1910 1315

Além dos dados visíveis na tabela, também aqui nos podemos servir das

seguintes conclusões apuradas pelo autor:

1ª No período de 1903 a 1910, a criminalidade de indivíduos com menos de 18

anos era bastante inferior à de 1891-1895.

2ª A criminalidade de rapazes com menos de 18 anos era 5 a 6 vezes superior

à das raparigas da mesma idade.

3ª A diminuição da criminalidade precoce referia-se sobretudo ao sexo

masculino.

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Os dados estatísticos da época, recolhidos por Mendes Correia, permitiram-lhe

concluir que nos menores, a percentagem de delitos contra a propriedade era

muito mais alta.

Segundo este estudioso, a criminalidade infantil em Portugal (finais do século

XIX e inícios do século XX) era motivada por condições de ordem social.

A seu ver, os principais factores de delinquência infantil, resumiam-se aos

seguintes:

a) Hereditariedade

Tuberculose

Alcoolismo

Prostituição

Sífilis

Neuroses

Psicopatias

b) Factores individuais

Debilidade física e psíquica

Instabilidade Mental

Astenia

Atraso mental ou pedagógico

Epilepsia/Histeria

Doenças mentais

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c) Factores “mesológicos”

Educação viciosa

Falta de pais (sobretudo da mãe) por falecimento, emigração, profissão

ambulante, abandono ou separação…

Filiação ilegítima

Maus exemplos

Desarmonia

Maus tratos

Pobreza

Escola de rua (sobretudo nos meios urbanos)

Propaganda do vício e crime nos meios de comunicação social da época

Certas profissões (criadas de servir, costureiras, vendedores ambulantes…)

Más camaradagens

Antigo Regime Penal (cadeias, multas…)

Na sequência da apresentação destes factores (por Mendes Correia) como

propiciadores da delinquência/criminalidade/marginalidade infantil, surgiu a

necessidade de investir na prevenção e na luta contra este mal social.

Ainda que este autor manifeste pressupostos bastante questionados na

actualidade, ele consegue sugerir propostas mais adequadas à faixa etária dos

jovens com um comportamento marginal.

Assim, a seu ver, ao invés de se tratar de uma vingança ou de um castigo, a

pena deveria representar um meio de defesa social, de correcção do

delinquente e de reparação do crime e os meios de prevenção deveriam

assumir uma maior importância do que os meios correctores, reparadores ou

punitivos.

A partir de uma reflexão atenta sobre o objecto do nosso estudo, a Oficina de

São José, verificamos que os jovens acolhidos, provenientes de famílias

humildes, se inseriam numa situação de “prevenção” ao passo que, os jovens

que já haviam estado presos se integravam numa situação de “reparação” de

comportamentos marginais.

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O próprio Mendes Correia propôs algumas medidas preventivas da

criminalidade e marginalidade infantis, tais como a luta contra a tuberculose, a

luta contra o alcoolismo, a repressão da prostituição para se evitar a difusão de

doenças venéreas, a proibição do casamento entre indivíduos atingidos por

certas psicoses e taras transmissíveis por herança, a esterilização dos

“criminosos natos” e dos “maiores degenerados”.

Para Mendes Correia, eram igualmente importantes as medidas profilácticas,

psíquicas e “mesológicas” das crianças pobres, desamparadas, abandonadas e

em perigo moral!

As medidas que poderiam ser uma tentativa de salvação destes menores

deveriam passar pelo auxílio económico aos pobres, pelo estabelecimento de

instituições de patronato e de serviços públicos de assistência infantil. Esta

“salvação” teria que passar inevitavelmente pela proibição da permanência de

crianças em certos estabelecimentos (como casas de jogo, casas de

prostituição e locais de venda de bebidas alcoólicas), pela repressão da

propaganda ao vício e ao crime através de jornais, teatros, cinemas e pela

punição da negligência, maus exemplos e maus tratos, sobretudo por parte de

pais e tutores. O favorecimento da boa organização familiar, a implementação

de medidas de protecção dos filhos ilegítimos, evitando o abandono de

crianças, o apoio aos serviços destinados aos menores de idade (inserção em

internatos, semi-internatos e outros institutos de crianças em perigo moral,

desamparados e delinquentes; entrega de crianças em perigo moral a famílias

honestas; estabelecimento de institutos pedagógicos para crianças “anormais”;

criação de instituições de educação correccional para menores delinquentes,

vadios, gatunos, libertinos) poderiam constituir meios eficazes de protecção a

menores em situação de risco. Também a criação de tribunais especiais para a

infância, a proibição da presença de crianças em julgamentos criminais e em

tribunais comuns, bem como a eliminação da pena de prisão para menores de

dezasseis anos seriam formas de pôr fim à mistura perniciosa de menores e

adultos em questões judiciais.

Na realidade, a cidade do Porto possuía alguns estabelecimentos de

assistência e educação para menores abandonados e delinquentes devido à

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iniciativa de particulares filantropos mas reclamava-se a sua diferenciação

pedagógica, adaptando-os a funções específicas.

Na verdade, em alguns destes estabelecimentos, não se distinguia entre a

escola maternal, preparatória e profissional bem como se misturavam as mais

distantes idades.

Sendo assim, a Oficina de São José surgiria como uma instituição pioneira que

acolhia alunos de uma faixa etária delimitada e que eram inseridos na

aprendizagem de um ofício (ensino profissional) com vista à preparação para a

vida activa.

Para Mendes Correia, os meios repressivos que poderiam ser utilizados seriam

as repreensões, a liberdade vigiada, a liberdade condicional, o internamento ou

a detenção em estabelecimentos de educação reformadora ou convencional e

até penas corporais, quando inevitáveis.

Numa abordagem final ao pensamento de Mendes Correia, convém salientar a

ideia por ele defendida de que a criança não poderia ser tratada como um

adulto, sobretudo a nível jurídico. Na realidade, se Mendes Correia já revelava

uma perspectiva educacional “avançada,” pedagogicamente falando, quando

propunha um tratamento diferenciado para crianças delinquentes relativamente

aos adultos, o seu pensamento ainda admitia a “agressão física” como medida

correctiva. O seu contacto com países estrangeiros (nomeadamente com os

E.U.A. e os países mais desenvolvidos da Europa) alertou-o para um dos

graves problemas sociais em Portugal. Referimo-nos ao tratamento jurídico dos

menores, sujeitos a tribunais ordinários e a cadeias civis.

Somente por Decreto de 27 de Maio de 1911, foi criada no Porto uma Tutoria

Central, uma tutoria da infância, regulamentando-se também a “Casa de

Detenção e Correcção”, que passou a ter o nome de “Escola Industrial da

Reforma do Porto”.

Deste modo, Portugal, através deste decreto com força de lei de 27 de Maio de

1911 do ministro Afonso Costa, colocou-se ao lado dos países mais evoluídos,

num honroso lugar. Este decreto veio retirar as crianças aos tribunais

ordinários e às cadeias civis, confiando-as a tribunais especiais e a refúgios

que funcionavam junto desses tribunais e substituíam as cadeias.

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I.5. OUTROS MECANISMOS DE CORRECÇÃO DE MENORES DE

“MAU PROCEDER”

Em 26 de Maio de 1880, foi apresentada na Câmara dos Deputados, uma

proposta de lei para a criação no Porto, da Casa de Detenção e Correcção,

tantas vezes solicitada devido àquilo que se considerava serem os “excelentes

resultados” da sua congénere em Lisboa. Na criação deste estabelecimento,

deveria ser gasta a verba de 4000$000 reis destinada ao Teatro Lírico da

cidade (orçamento de 1879/1880). Como a solução tardava, a imprensa da

cidade do Porto ia fazendo referência à miséria e ao abandono das crianças e

à sua situação nas cadeias onde cumpriam penas correccionais.3

Entretanto, já se procedera à fundação da Oficina de São José, que, longe de

ser uma Casa de Detenção e de Correcção, não deixou de dar entrada, desde

4 de Outubro de 1883, a menores miseráveis, abandonados e alguns

cadastrados.

Sabemos que em Portugal, a lei previa que o menor detido por vadiagem fosse

entregue à Câmara Municipal do seu Concelho (Código Civil, artigo 284) mas

por falta de verbas nos orçamentos municipais, as crianças eram postas em

liberdade. Perante a incapacidade do regime liberal em resolver os problemas

dos “menores delinquentes”, estes apresentavam uma elevada taxa de

3 Maria José Moutinho, na sua publicação A Sombra e a Luz, fala-nos destes menores:

“Agrupados em pequenos bandos, dormindo pelos bancos dos jardins, em casas

abandonadas, imundos, esfarrapados, juntavam-se à entrada do Mercado do Anjo, do Mercado

do Bolhão, saídas das missas… para furtar uma carteira, um relógio, um lenço”… Actuavam

em grupo como o do Bulldog, Meu Pão, Catraio, Marroquino, Velhinho ou Planeta. Na cadeia,

eram “hóspedes” passageiros e “mensageiros” de chefes de quadrilha ali encarcerados que

lhes encomendavam mercadorias: um “grilo” (relógio), um “tirante” (cordão de ouro), um “arco

de tarrachas” (pulseira) que depois de introduzidos na cadeia, eram transaccionados.

Ao lermos este “excerto”, certamente relembramos o clássico de Charles Dickens, “Oliver

Twist”, adaptado ao cinema por Roman Polanski e que tem tocado a sensibilidade dos mais

pequenos, nos países onde tem sido divulgado. Também este filme nos remete para uma

sociedade do século XIX, a sociedade inglesa, marcada pela exploração de menores

abandonados apanhados pelas “malhas” da criminalidade.

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reincidência. Além disso, as penas impostas aos menores delinquentes eram

de curta duração como se pode comprovar através das fichas de matrícula da

Oficina de São José que nos fornecem informações sobre o “cadastro” dos

menores acolhidos nesta instituição, tendo sido estes alvo de prisões

consecutivas antes de darem entrada na referida Oficina. É evidente que a

situação familiar destes jovens favorecia o seu comportamento: expostos, filhos

de pais incógnitos, pais falecidos, pais emigrados, pais doentes ou

delinquentes… Ainda a agravar a sua situação, já por si dramática, existiam os

“protectores” que exploravam os jovens e esse crime passou a ser punido por

Decreto-Lei de 15 de Dezembro de 1894 que no artigo 4º determinava “Aquele

que manter ou consentir que uma pessoa menor de quatorze anos, que esteja

sob a sua autoridade paternal ou tutelar, ou confiada à sua educação, direcção,

guarda ou vigilância, se dê habitualmente à mendicidade ou que outra pessoa

a contrate ou torne o seu serviço para o efeito de mendigar, incorrerá na pena

de prisão correccional até seis meses e multa correspondente”.

Estas realidades levaram o magistrado Augusto Maria de Castro, Procurador

Régio junto da cadeia da Relação do Porto, a insistir na criação urgente de

uma “modesta” Casa de Correcção na cidade que poderia ser instalada numa

parte do edifício abandonado do Convento da Serra do Pilar. A crescente

criminalidade entre os menores e a falta de estabelecimentos para a sua

correcção e recuperação explicam a decisão do Governo na sequência da Lei

de 21 de Abril de 1892, em deportar para África menores de onze anos, apesar

do parecer contrário da Procuradoria-geral da Coroa de 14 de Dezembro de

1893.

Das iniciativas particulares na cidade do Porto, destacam-se a de Augusto

Maria de Castro, com a criação, em 1894, do Instituto Penitenciário de

Beneficência e Caridade destinado ao acolhimento dos presos pobres e suas

famílias. Este instituto recolhia sobretudo os filhos menores de presos da

Cadeia da Relação, evitando que estes caíssem nas malhas da delinquência.

Concluindo, a falta de instituições adequadas e a ausência de meios

financeiros à disposição das autoridades locais, traduziram-se num grave

problema social: os pequenos delinquentes só encontravam abrigo na

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promiscuidade e corrupção das cadeias. Para termos bem a noção da situação

de “impasse” que se viveu a este nível, relembremos que, depois da criação da

Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, em 1872, sem capacidade

regeneradora dos menores, a Primeira Colónia Agrícola só surgiria no final do

século XIX (1895- Colónia Agrícola de Vila Fernando).

Foi já no século XX que se estabeleceram outros mecanismos de correcção,

educação e protecção aos menores. Temos como exemplo, a Casa de

Correcção e Educação do Distrito do Porto, criada por Lei de 17 de Abril de

1902 para jovens do sexo masculino e, no ano seguinte, por Lei de 27 de Abril,

um estabelecimento congénere para a educação e regeneração de menores do

sexo feminino, instalado no Convento das Mónicas, depois da transferência

para Caxias da Casa de Detenção para menores do sexo masculino. Foi

igualmente em 1902 que se criaram as Comissões de Patronato em Lisboa e

no Porto, com o fim de ministrarem amparo moral aos jovens saídos daquelas

instituições.

Somente depois da implantação da República (período posterior ao âmbito

cronológico do nosso trabalho) foram criadas Tutorias da Infância e a

Federação Nacional dos Amigos e Defensores das Crianças.

As Tutorias surgiram como tribunais colectivos especiais destinados a guardar,

defender e proteger os menores em perigo moral, desamparados e

delinquentes. Estas eram constituídas por um juiz de direito, dois juízes

adjuntos, um presidente, um professor e um médico. Existiam delegados de

vigilância incumbidos do policiamento e da realização de inquéritos sobre as

crianças a cargo da Tutoria e formas de inibição do poder paternal ou tutelar

em caso de negligência, maus tratos, especulação, crueldade, incapacidade,

pobreza, crime de pais ou de tutores.

Foram designadas penas para aqueles que favorecessem ou estimulassem a

delinquência, a vadiagem, a mendicidade, a ociosidade ou a libertinagem de

crianças e para pais e tutores que as maltratassem ou abandonassem. Junto

de cada Tutoria funcionava um refúgio para menores até deliberação do

tribunal sobre os seus destinos.

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

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Todavia, nem tudo era perfeito! Estas medidas de protecção aos menores

restringiam-se às cidades de Lisboa, Porto e Coimbra e a jovens do sexo

masculino.

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

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CAPÍTULO II - A OFICINA DE SÃO JOSÉ NO PORTO

II.1. A FUNDAÇÃO DA OFICINA

Torna-se agora fundamental realizar uma resenha histórica da instituição que

nos propusemos estudar, a Oficina de São José no Porto.

Comecemos por observar o seguinte quadro:

Fundador Padre Sebastião Leite de Vasconcelos

Fundação: 18 de Abril de 1880

Abertura: 4 de Outubro de 1883

Aprovação dos Estatutos: 8 de Setembro de 1887

Concessão do Título Real: 8 de Maio de 1890 por El-Rei D. Carlos

Inauguração do Colégio: 1 de Novembro de 1890

Reconhecimento de utilidade pública por portaria de 18 de Abril de 1993.

A Oficina de São José do Porto foi fundada pelo padre Sebastião Leite de

Vasconcelos, nascido a 3 de Maio de 1852, na freguesia da Sé, cidade do

Porto, onde viveu até à sua ida para Beja, em Fevereiro de 1908. Na cidade de

Beja desempenhou as funções de Bispo até 1910.

Na pura convicção daqueles que alimentaram a sua obra, “as qualidades que

exortavam o seu coração de apóstolo” levaram-no a consagrar-se totalmente

aos jovens mais desprotegidos e marginalizados e, assim, esmolando de porta

em porta, conseguiu dádivas que juntas aos seus parcos recursos, lhe

permitiram arrendar uma casa no Monte Pedral em 18 de Abril de 1880. Estava

assim fundada a Oficina de São José. Mas, pouco tempo decorrido,

apercebendo-se da impossibilidade de desenvolver a sua obra longe do centro

da cidade, arrendava uma casa mais ampla na Rua de Trás da Sé, cuja

inauguração solene se realizou a 4 de Outubro de 1883.

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Graças às muitas ajudas e à generosidade de Manuel Esteves Ribeiro, que só

por si custeou todas as obras, em 19 de Março de 1889, foi possível proceder-

se à bênção da primeira pedra das actuais instalações na Rua Alexandre

Herculano, que foram inauguradas em 1 de Novembro de 1890.

O pedido de aprovação da obra dirigido pelo Padre Sebastião Leite de

Vasconcelos à Câmara Municipal do Porto foi efectuado em 1887.

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II.2. OS ESTATUTOS DA OFICINA

O estudo da Oficina de São José tornou-se mais completo pela análise dos

respectivos estatutos. Sendo assim, optamos pela sua transcrição com

anotações sobre as principais ilações que retiramos da referida análise.

No Governo Civil do Porto, sob o selo do mesmo, tendo ouvido o Tribunal

Administrativo e usando da faculdade conferida pelo artigo 217º nº 13º do

Código Administrativo, Albino Pinto de Miranda Montenegro, bacharel

formado em Direito pela Universidade de Coimbra, Governador Civil do

Distrito do Porto, aprovou os estatutos da Oficina de São José no Porto, a

8 de Setembro de 1887.

“Os estatutos constam de vinte e quatro artigos escriptos em quatro

meias folhas de papel, devidamente selladas, e numeradas e rubricadas

pelo pelo official maior, servindo de Secretario Geral deste Governo

Civil”.

“Não pagou direitos de mercê nem sêllos por os não dever em vista das

respectivas leis”.

Passemos à transcrição e à análise dos referidos estatutos:

Artigo 1º- A Oficina de São José, fundada pelo presbítero Sebastião Leite de

Vasconcelos, tem por fim primário o ensino profissional de artes e ofícios,

juntamente com a educação moral e religiosa, de expostos e menores

abandonados; e, quando haja lugar, o de filhos menores de pessoas

miseráveis, precedendo autorização de seus legítimos representantes.

O primeiro artigo destes estatutos remete-nos para a importância coeva

do ensino profissional e religioso dos menores em risco, numa sociedade

que se debatia com os problemas decorrentes de um elevado número de

jovens ao abandono. Assim, só a preparação moral e laboral para a vida

activa poderia funcionar como um “travão” ao crescente número de

jovens marginais.

Artigo 2º- Estabelecer-se-ão na Oficina as artes e ofícios que suas forças e

recursos permitirem; desde já, porém, são ensinados, pela sua ordem de

antiguidade, os de sapateiro, alfaiate, carpinteiro, encadernador e serralheiro.

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Todos os jovens da Oficina, além de uma arte ou ofício, aprenderão desenho

que lhes for apropriado e a instrução primária elementar.

O segundo artigo dos estatutos especifica o tipo de instrução/preparação

profissional facultada aos jovens acolhidos na oficina. As profissões para

as quais eram encaminhados os jovens que estudavam na oficina eram

profissões bastante usuais na época. Esta realidade pode ser explicada,

quer pela não exigência de grandes investimentos em máquinas e

ferramentas, quer pela não obrigatoriedade de uma aptidão específica

pelos educandos, facilitando-se a própria empregabilidade.

Artigo 3º- Propondo-se esta instituição educar e regenerar os menores, para

que de futuro cada um deles seja homem temente a Deus, dedicado à sua

família e ao trabalho, e proveitoso à sociedade e a si próprio, haverá sempre a

mais assídua vigilância pela boa moral dos educandos, e o mais constante

cuidado pela sua educação religiosa.

O terceiro artigo dos estatutos realça a importância de um rigoroso

regime disciplinar nesta instituição de modo a salvaguardarem-se os

princípios morais básicos de uma educação religiosa.

Artigo 4º- Todos os alunos serão internos; poderá haver externos, quando a

Oficina tiver casa apropriada, de modo que uma das classes fique inteiramente

isolada da outra, e em ambas se mantenha sua respectiva disciplina.

O quarto artigo dos estatutos estipula o regime de internato dos alunos

apontando como principal causa o espaço físico disponível para o

funcionamento desta instituição, evitando-se o contacto entre alunos

internos e alunos externos.

Artigo 5º- Somente serão admitidos como internos, os expostos e menores

abandonados, que não tenham família, nem protecção alguma; e, quando haja

lugar, os filhos menores de pessoas miseráveis.

1º Na concorrência de dois menores, dos quais um seja pervertido e

totalmente abandonado, e o outro filho de família muito pobre, terá o

primeiro a preferência na admissão.

2º Pela mesma razão de maior necessidade moral, os jovens de mau

proceder, que tenham tido a infelicidade de haver estado na cadeia,

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

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serão preferidos para admissão a outros quaisquer, salvo sempre o bom

credito da Oficina, e sua regular disciplina e andamento.

Este quinto artigo revela a preocupação prioritária com a prevenção de

situações de marginalidade/criminalidade dos menores em risco pelo que

se dá prioridade à admissão dos menores mais abandonados e

vulneráveis a comportamentos de risco.

Artigo 6º- Nunca serão admitidos alunos pensionistas, por isso que esta casa,

pela sua instituição, não pertence a outrem, senão ao jovem pobre, o qual

procura salvaguardar do vício, ou regenerá-lo quando infelizmente caído.

O sexto artigo reporta-se aos jovens pobres, muito mais susceptíveis de

cair nas malhas da marginalidade/criminalidade.

Artigo 7º- A admissão dos alunos será feita mediante requerimento em papel

não selado, dirigido ao Presidente, que, ouvido o parecer e informação por

escrito do Visitador, deferirá como for de justiça.

Artigo 8º- Para a admissão, porém, de algum, que tenha estado preso na

cadeia, bastará simples proposta informada do Visitador apresentada ao

Presidente.

Comparando os artigos número 7 e 8, confirmamos a ideia já referida de

uma preocupação prioritária com a regeneração de jovens caídos nas

“teias” da delinquência, preocupação essa evidente na desburocratização

das condições de admissão de jovens com cadastro (…simples proposta

ao Presidente, sem requerimento em papel…).

Artigo 9º- A idade para admissão é desde os 12 anos até aos 17; e a saída não

deverá ser, em regra, antes dos 21 anos, guardadas as prescrições legais, e

salvo o caso de despedida por incorrigibilidade, ou de emancipação legal.

No respeitante ao artigo nono, foram encontradas várias excepções a este

artigo no livro de registo de matrículas analisado; ou se tratava de jovens

que eram admitidos precocemente pela situação de abandono total em

que se encontravam, ou se tratava de jovens que permaneciam na

Oficina, para além da idade limite definida pelos estatutos, uma vez que

não tinham colocação no exterior para poderem trabalhar (ganhar a vida).

Além destas excepções, também detectamos casos de jovens que saíam

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mais cedo para beneficiarem do surgimento de oportunidades de uma

“boa colocação” (emprego) ou de jovens que ficavam na Oficina a exercer

a função de monitores.

A título de exemplo, podemos referir alguns educandos. Armindo Dias

Baptista que se despediu para se estabelecer; José Lourenço Soares que,

com o dinheiro que juntou e um modesto enxoval, saiu para contrair

matrimónio com Felismina Rosa Soares, em 11 Abril de 1891; João Pinto

que foi colocado numa sapataria como “gaspiador”, a 10 de Julho de

1897; o caso de Bernardino Gomes da Silva que foi enviado para o lugar

de mestre sapateiro para a Oficina do Asilo do Menino Deus, em Barcelos;

o percurso de Viriato da Cunha Magalhães que não tinha idade

regulamentar mas foi para casa de Luíz de Azevedo, dono da “Soberania

do Povo”, em Águeda, como tipógrafo habilitado, em 7 de Março de 1904.

Artigo 10º- Quando a administração da Oficina julgar um educando já habilitado

antes da maioridade, ou emancipação legal, poderá colocá-lo em casas, onde

exerça a sua arte ou ofício, sem prejuízo dos direitos de seus legítimos

representantes.

O décimo artigo faculta à direcção da oficina, a possibilidade de empregar

menores já habilitados para exercer a profissão para que foram

preparados.

Artigo 11º- O número dos educandos não é fixo; mas será regulado segundo os

recursos da Oficina, a qual poderá no distrito abrir casas sucursais regidas

pelos mesmos estatutos, e com igual disciplina.

O décimo primeiro artigo revela uma tendência “expansionista” da Oficina

pelo distrito do Porto.

Artigo 12º- A oficina de São José toda se entrega à Divina Providência para

sua sustentação. Consiste, pois, sua dotação: nos parcos proventos de que o

seu fundador possa dispor, no “obolo” da caridade cristã voluntariamente

ofertado, nos legados com que seus benfeitores em testamento ou por outra

qualquer forma contemplarem esta obra de regeneração social, e no produto

dos artefactos provenientes do trabalho dos educandos.

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O artigo doze revela a proveniência dos rendimentos ou fontes de

sustento dos educandos desta instituição, destacando o recurso à

caridade pública e particular bem como o “lucro” resultante da

comercialização dos artefactos produzidos.

Artigo 13º- Este Instituto será administrado por uma comissão, que servirá por

tempo de dois anos, e será composta de cinco Vogais nomeados pelo Prelado

Diocesano, seu Presidente honorário perpétuo.

No caso de recusa ou falta de nomeação, por parte do Prelado, será

devolvida esta faculdade ao Governador Civil do Distrito.

Feita a nomeação, entrará a comissão em exercício no princípio do mês

de Julho do respectivo biénio, e o Prelado participará ao Governador

Civil o nome dos Vogais que a constituem, podendo reconduzir os

mesmos ou alguns mais do que uma vez.

O Prelado, como Presidente honorário, pode assistir às sessões da

comissão, e nesse caso tem voto deliberativo e outro de qualidade

quando necessário.

Nota: Este artigo destaca a importância da Diocese e do Governo Civil do

Porto na administração da Oficina. O presidente honorário perpétuo da

comissão administrativa da instituição era o Prelado Diocesano que

poderia ser substituído pelo Governador Civil do Distrito nas respectivas

atribuições.

Artigo 14º- A comissão será composta de um Director, que será Presidente

efectivo, de um Visitador, e mais três Vogais, um dos quais será o Secretário e

outro o Tesoureiro, e compete-lhe resolver todos os assuntos que não estejam

cometidos especialmente ao seu Presidente.

Artigo 15º - O Director será sempre um presbítero, e terá a seu cargo a

superintendência em todo o serviço da Oficina: representá-la-á em juízo ou fora

dele; assinará toda a correspondência, ordens e mandados de pagamentos ou

de cobrança de receita; e pertence-lhe a escolha dos mestres e de todo o mais

pessoal do estabelecimento, bem como resolver acerca da admissão ou

expulsão de quaisquer menores.

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Os artigos décimo quarto e décimo quinto estipulam a organização

administrativa da Oficina e o último artigo mencionado reforça a ideia

destacada no artigo 13º quando se reporta à obrigatoriedade do Director

ser um presbítero.

Artigo 16º- O Visitador terá a seu cargo fiscalizar a escrituração; verificar as

contas que “hão-de” ser pagas pelo tesoureiro; informar as admissões dos

alunos, e vigiar pelo seu progressivo aproveitamento e adiantamento moral,

civil e religioso.

Artigo 17º- Ao Secretário competirá fazer toda a escrituração, conservando-a

sempre em dia, com a máxima regularidade, e conforme as instruções

regulamentares.

Artigo 18º- Ao Tesoureiro pertencerá cobrar toda a receita e efectuar as

despesas, segundo as ordens e mandados escriturados pelo Secretário e

assinados pelo Director.

Artigo 19º- Enquanto Deus for servido conservar a vida e forças ao actual

fundador desta Oficina, propõe-se ele a ser o seu Director, assumindo nesta

qualidade toda a responsabilidade, e gozando de todos os direitos que como tal

lhe possam competir de presente ou de futuro.

Os artigos 16º, 17º, 18º e 19º definem as atribuições do visitador, do

secretário e do tesoureiro, legitimando a atribuição do cargo de direcção

desta instituição ao Padre Sebastião Leite de Vasconcelos, fundador da

Oficina, que assumiu tal função enquanto viveu em Portugal, não

obstante as polémicas geradas em torno da sua figura.

Artigo 20º- A gerência financeira da Oficina será feita por anos económicos, e a

eles serão referidos orçamentos ordinários e suplementares, e as respectivas

contas.

O vigésimo artigo reporta-se à gestão financeira da Oficina que era

efectuada por anos económicos e através de orçamentos ordinários e

suplementares.

Artigo 21º- Conquanto este Instituto, para sua conservação e prosperidade,

confie mais que tudo na Divina Providência movendo as almas caritativas a

beneficiá-lo; todavia, se Deus permitir que a Oficina de São José obtenha mais

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meios do que os actualmente possuídos, a comissão administrativa, na

aceitação de heranças ou legados, na aquisição de bens imobiliários

indispensáveis e desamortização dos outros, bem como em quaisquer

escrituras, empréstimos, ou alienações, conformar-se-á sempre em tudo com

as leis vigentes.

O artigo 21º procura legitimar a proveniência das receitas da Oficina e a

compra, arrendamento ou venda de bens, de acordo com as

necessidades do momento.

Artigo 22º- Se nalgum tempo, por falta de recursos ou outra qualquer

circunstância esta pia instituição, Oficina de São José - se não puder sustentar,

passarão todos os seus haveres e legados, salvo os direitos de terceiro, para o

“Asylo de Villar”, desta cidade, fundado pelo arcediago Ricardo Van-Zeller, de

saudosa memoria, com os encargos pios a eles anexos.

O artigo 22º refere-se à eventualidade da instituição encerrar e dos

respectivos bens transitarem para o Asilo de Vilar.4

Artigo 23º- A comissão administrativa poderá organizar os regulamentos que

entender necessários para o regime e desenvolvimento do estabelecimento, e

para a boa disciplina, educação e conservação do espírito religioso dos

menores, devendo esses regulamentos ser submetidos à aprovação do

Governador Civil do distrito.

Este 23º artigo reforça a importância do Governo Civil do Porto na

aprovação dos regulamentos da Oficina de São José deste distrito.

Artigo 24º- Sem essa aprovação não terá validade qualquer alteração que de

futuro se pretendia introduzir nestes Estatutos.

A 8 de Maio de 1908, Adolpho da Cunha Pimentel, bacharel formado em

Direito pela Universidade de Coimbra e Governador Civil do Distrito

Administrativo do Porto, aprovou novos estatutos pelo artigo 252nº8 do

código administrativo (…)

4 O Asilo de Vilar foi fundado por Ricardo Van-Zeller, tratando-se de um organismo que recolhia

crianças e que beneficiava de donativos particulares.

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Passaremos a transcrever os artigos mencionados, redigindo a itálico

negrito, os que apresentam uma nova redacção:

Artigo 1º- A Oficina de São José, fundada em 1880 pelo actual bispo de

Beja, Dom Sebastião Leite de Vasconcelos, tem por fim primário o ensino

profissional de artes e ofícios juntamente com a educação moral e religiosa de

expostos e menores abandonados; e quando haja lugar, o de filhos menores de

pessoas miseráveis, precedendo autorização de seus legítimos representantes.

Artigo 2º- Estabelecer-se-ão na Oficina as artes e ofícios, que suas forças e

recursos permitirem; desde já, porém, são ensinados, pela sua ordem de

antiguidade os de sapateiro, alfaiate, encadernador, marceneiro, torneiro,

tipógrafo e impressor.

Todos os internados, além de uma arte ou ofício, aprenderão o desenho que

lhes for apropriado, instrução primária e música.

Artigo 3º- Propondo-se esta instituição educar e regenerar os menores, para

que de futuro cada um deles seja homem temente a Deus, dedicado à sua

família e ao trabalho e proveitoso à sociedade e a si próprio, haverá sempre a

mais assídua vigilância pela boa moral dos educandos, e o mais constante

cuidado pela sua educação religiosa.

Artigo 4º- Todos os alunos serão internados; podê-los-á, porém, haver

externos quando a Oficina tiver casa apropriada, de modo que uma das classes

fique inteiramente isolada da outra, e em ambos se mantenham uma respectiva

disciplina.

Artigo 5º- Somente serão admitidos como internos os expostos e menores

abandonados, que não tenham família, nem protecção alguma, e quando haja

lugar, os filhos menores de pessoas miseráveis.

1º- Na concorrência de dois menores dos quais um seja pervertido e

totalmente abandonado, e o outro filho de família muito pobre, terá a

primeira preferência na admissão.

2º- Pela mesma razão de maior necessidade moral, os menores de mau

proceder, que tenham tido a infelicidade de haver estado na cadeia,

serão preferidos para admissão a outros quaisquer, salvo sempre o bom

crédito da Oficina e sua regular disciplina e andamento.

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Artigo 6º- Nunca serão admitidos alunos pensionistas, por isso que esta casa

pela sua instituição não pertence a outrem senão ao menor pobre, ao qual

procura salvaguardar do vício ou regenerá-lo, quando infelizmente caído.

Artigo 7º- A admissão dos alunos será feita mediante requerimento em

papel não selado, dirigido ao Presidente, acompanhado da certidão de

idade, certidão de óbito de pai e mãe, ou informação de completo

abandono, ou do estado miserável dos pais, atestado de um médico, que

mostre não ter doença contagiosa e não sofra enfermidade mental que o

torne incapaz para o trabalho. Entregue na Secretaria o requerimento será

despachado, mediante informação escrita do “Vice-Presidente-Visitador”,

pela comissão reunida em sessão ordinária. Os requerimentos serão

numerados pelo Secretário e conservados na repartição respectiva, não

havendo outra preferência para o despacho a não ser o número de ordem.

As únicas excepções à admissão pelo número de ordem só podem ser

motivadas pelas circunstâncias do menor já estar preso na cadeia, ficar

completamente abandonado e em extrema miséria, no caso de incêndio,

naufrágio, inundação, ou de ser a sua admissão indicada pelo fundador

desta instituição.

Artigo 8º- Os membros da Comissão Administrativa poderão afiançar nos

termos legais algum menor detido, recolhendo-o na Oficina até ao

julgamento, e conservando-o se for absolvido.

Artigo 9º- A idade para admissão é desde os 12 até aos 16, e a saída não

deverá ser em regra antes dos 18 anos; salvo o caso de despedida por

incorrigibilidade, ou de emancipação legal quando exposto.

1º- Poderão ser admitidos menores antes dos 12 anos mas só

depois dos 10, quando tiverem estado na Cadeia ou ficarem em

extrema miséria e abandono dos seus, no caso de incêndio,

naufrágio e inundação.

2º- Também poderão ser conservados além dos 19 anos os

menores que não tenham obtido a necessária instrução

profissional, e não sejam julgados, por informação do Director e

restante pessoal, moralmente regenerados até a obter; e bem assim

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poderá demorar-se mais algum tempo aquele que ainda não tenha

arranjado colocação certa.

Artigo 10º- Quando a comissão administrativa da Oficina julgar um

educando já habilitado antes de ter completado o tempo marcado por

estes estatutos para a sua educação poderá colocá-lo em casa onde exercer

a sua arte ou ofício sem prejuízo dos direitos dos seus legítimos representantes

ou tutores.

Artigo 11º- O número dos educandos não é fixo; mas será regulado segundo os

recursos da Oficina, a qual poderá no Distrito do Porto abrir casas sucursais

regidas pelos mesmos estatutos e com igual disciplina.

Artigo 12º- A Oficina de São José confia na Divina Providência para mais

larga e intensamente continuar ainda a exercer a sua acção. A sua

dotação consiste no seguinte:

1º- Nos bens imóveis que compreendem um edifício próprio e a capela

adjacente;

2º- Rendimentos provenientes do capital que possui;

3º- Produto dos artefactos manufacturados pelos educandos;

4º-As doações, legados ou heranças, com que esta obra seja contemplada

pelos seus benfeitores.

Artigo 13º- Este instituto será administrado por uma comissão que servirá

pelo tempo de três anos e que será composta além do seu Presidente de

três Vogais nomeados pelo seu fundador enquanto vivo for.

Artigo 14º- A comissão será composta de um Presidente, de um Vice-

Presidente que será Visitador, e de mais dois vogais, um dos quais será

Secretário e o outro o Tesoureiro, e compete-lhe resolver todos os

assuntos que não estejam especialmente cometidos ao Director do

estabelecimento.

Artigo 15º- O Director será sempre um presbítero e terá a seu cargo a

superintendência em todo o serviço da Oficina; assinará toda a

correspondência de expediente; escolherá os mestres e todo o mais

pessoal, devendo informar das suas resoluções a comissão.

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Artigo 16º- O Vice-Presidente como Visitador terá a seu cargo fiscalizar a

escrituração; verificar as contas que “hão-de” ser pagas pelo Tesoureiro;

informar as admissões dos alunos, e vigiar pelo seu progressivo

aproveitamento, e adiantamento moral, civil e religioso;

Artigo 17º- Ao Secretário competirá fazer toda a escrituração conservando-a

sempre em dia com a máxima regularidade e conforme as instruções

regulamentares.

Artigo 18º- Ao Tesoureiro pertencerá cobrar toda a receita e efectuar os

assinados pelo Presidente ou Vice-Presidente.

Artigo 19º- Enquanto Deus for servido conservar a vida ao seu fundador

propõe-se ele como Presidente efectivo nomear em sua vida os membros

da comissão, passando tal atribuição depois da sua morte para o

Presidente nato, que será o Prelado Diocesano.

O Presidente tem voto de qualidade nos casos de empate.

Artigo 20º- A gerência financeira da Oficina será feita por anos económicos e a

eles serão referidos os orçamentos ordinários e suplementares e as

respectivas contas.

Artigo 21º- Conquanto este instituto para sua conservação e prosperidade

confie mais que tudo na Divina Providência movendo as almas caritativas a

beneficia-lo; todavia, se Deus permitir que a Oficina de São José obtenha mais

meios do que os actualmente possuídos, a Comissão Administrativa, na

aceitação das heranças ou legados, aquisição de bens imobiliários

indispensáveis e desamortização de outros, bem como em quaisquer

escrituras, empréstimos, ou alienações, conformar-se-á sempre em tudo com

as leis regentes.

Artigo 22º- Se em algum tempo por falta de recursos ou outra qualquer

circunstância esta pia instituição se não puder sustentar, é verdadeiramente

desejo do seu Fundador, que passem todos os seus haveres e legados, salvo

os direitos de terceiro, para o Asilo de Vilar, desta cidade, fundado pelo

Arcediago Ricardo Van-zeller, de saudosa memória, com os encargos pios a

eles anexos.

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Artigo 23º- A Comissão Administrativa poderá organizar os regulamentos que

entender necessários para o regime e desenvolvimento do estabelecimento, e

para a boa disciplina, educação e conservação do espírito religioso dos

menores, devendo esses regulamentos ser submetidos à aprovação do

Governador Civil do distrito.

Em suma, comparando os estatutos de 1887 e os estatutos propostos à

aprovação em 1908 (aprovados em 8 de Maio), verificamos as seguintes

alterações:

No artigo 2º, aos ofícios de sapateiro, alfaiate, carpinteiro, encadernador e

serralheiro, acrescentam-se os ofícios de marceneiro, torneiro, tipógrafo e

impressor. Além disso, todos os alunos passariam a aprender música. Este

artigo procede a uma actualização dos ofícios ensinados na Oficina e

acrescenta a aprendizagem da música, evidenciando a importância dada a

uma formação integral do educando.

O artigo 4º remete-nos para a obrigatoriedade do internamento dos alunos,

salvo algumas excepções e em condições específicas. Convém salientarmos

que o internamento de todos os alunos permitiria uma melhor gestão disciplinar

da Oficina.

No artigo 7º dos estatutos de 1908, a admissão dos alunos exige mais

comprovativos da sua situação familiar e das suas reais necessidades.

Este artigo manifesta uma nítida preocupação com a prioridade na aceitação

de educandos, consoante o respectivo estado de abandono (a prioridade

deverá pertencer aos jovens em situação de grave desamparo) e ainda uma

notória atenção relativamente à preservação da saúde e integridade física dos

jovens e restantes membros da instituição (o jovem admitido deveria ter feito

prova de não ser portador de doença contagiosa ou de não ser portador de

qualquer doença mental).

Esta preocupação prende-se com as questões higienistas que estavam em

voga. O problema da proliferação de doenças como a tuberculose ou a sífilis,

teria estado na origem da definição destas novas regras.

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A aceitação de alunos internos seria feita por ordem do pedido de admissão,

salvo casos excepcionais como menores reclusos ou menores vítimas de

catástrofes naturais/acidentais ou de tragédias pessoais.

No artigo 8º dos estatutos de 1910, detecta-se uma atenção dirigida a

menores com problemas na justiça. Logo, o artigo revela uma profunda

preocupação dos responsáveis pela oficina relativamente à reabilitação de

jovens com cadastro.

Pelos artigos 9º e 10º, também verificamos alterações na idade de admissão e

saída dos rapazes. Estes poderão entrar com dez anos se existirem razões

válidas e sair mais cedo, quando forem considerados habilitados para

exercerem a profissão que aprenderam na Oficina.

O artigo 9º remete-nos para preocupações já manifestadas nos estatutos de

1887 (apesar da alteração das idades de admissão e saída da instituição) que

se prendem com a intenção de apenas deixar sair os jovens já devidamente

reabilitados e preparados para a vida activa. A alteração respeitante à idade de

admissão poderia estar relacionada com o facto de existirem outras instituições

mais adaptadas à recepção de crianças com menos de dez anos,

excessivamente jovens para aprender um ofício. Além disso, uma vez que só

existiam alunos internos nesta instituição, seria perigoso juntar num mesmo

espaço, crianças e adolescentes.

No respeitante a saídas precoces, estas também se podem justificar pela

doença/morte ou fuga dos educandos em causa.

Os casos de morte prematura eram frequentes, nomeadamente por doença

pulmonar e, em menor número, por doença cardíaca.

Contabilizamos vinte e cinco casos de alunos falecidos entre os nove anos e os

vinte e um anos. Encontramos trinta e dois casos de fugas, entre eles o de

António da Cunha Patrício que “…fugiu pela retrete…” e José Francisco da

Silva, “O Refilão”.

As fugas ocorriam geralmente nas ausências do director da oficina ou durante

as saídas dos educandos com a banda de música ou ainda, durante as visitas

autorizadas aos educandos a familiares doentes ou em épocas festivas. Nestas

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épocas, seria mais fácil o educando misturar-se com a multidão e “simular” o

seu desaparecimento.

No que diz respeito às expulsões, podemos nomear Dimas de Castro Ribeiro,

João Domingos Manoel, Vicente da Silva Alves, João Teixeira e Thomaz da

Costa Godinho. Estas expulsões eram determinadas pelo desrespeito

relativamente às normas da Oficina.

Relativamente aos bens imóveis, o artigo 12º refere mais claramente a

proveniência dos recursos económicos para sustento da instituição.

Finalmente, os restantes artigos introduzem alterações na gestão

administrativa e contabilística da Oficina. A título de exemplo, podemos referir

que o artigo 19º reforça os poderes e atribuições do fundador da oficina

enquanto Presidente da Comissão Administrativa da instituição.

Como conclusão, podemos referir que numa época em que o Estado Português

não conseguia dar uma resposta eficaz à resolução do problema social da

criminalidade e marginalidade infanto-juvenil, a Oficina de São José propunha-

se reabilitar jovens totalmente abandonados e alguns casos de jovens de mau

proceder! Era evidente a preocupação com os jovens pobres, órfãos de pai,

mãe ou de ambos que eram admitidos na Oficina. A própria admissão precoce

dos jovens com idades inferiores à definida pelos estatutos, ou a permanência

na oficina de jovens que haviam ultrapassado a idade regulamentar, são

situações que resultavam da tentativa de os “salvar” das malhas da

marginalidade e de lhes garantir inserção no mercado de trabalho.

Finalmente, a análise dos estatutos (artigos 21º e 23º) remete-nos para o apoio

público e particular com vista à manutenção (sustento) da Oficina e a

importância da Diocese e do Governo Civil do Porto na administração desta

instituição.

A partir das notas retiradas das observações do Livro dos Registos de

Matrículas e do Livro de Memórias do Padre Sebastião Leite de Vasconcelos

pudemos apurar as seguintes normas vigentes na Oficina de São José do

Porto, no período tratado:

1ª A Oficina destinava-se a educar menores do sexo masculino, em regime de

internato.

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2ª Excepcionalmente, poderia ser autorizada a entrada de jovens sem

atingirem a idade regulamentar mínima e a permanência de jovens com mais

do que a idade regulamentar, sob proposta fundamentada à Direcção

(geralmente feita por familiares ou protectores).

3ª Os estudos, vestuário, calçado e alimentação eram fornecidos pela Oficina

que beneficiava de legados particulares e outros.

4ª Os educandos tinham que se vestir e cortar o cabelo de acordo com o que

era “usual” para as entidades que dirigiam a instituição.

5ª Os educandos não podiam sair nem manter contactos com o exterior

(incluindo familiares) sem autorização da Direcção.

6ª O educando que deixasse a Oficina, levaria consigo um enxoval (constituído

por meias, lenços, calças, camisas, casacos e fatos) e uma quantia para

despesas de viagem e/ou começo de vida, excepto se fosse expulso por

mau/péssimo comportamento ou saísse contra a vontade da Direcção e/ou do

protector.

7ª Os educandos que fossem expulsos ou saíssem contra vontade da Direcção

e/ou do protector apenas levariam a roupa do corpo ou algo mais se a Direcção

assim entendesse.

8ª Alguns educandos beneficiavam de apoios pecuniários por protectores com

um estatuto socioeconómico superior.

Nos escritos que precederam a apresentação dos estatutos da Oficina de São

José, o seu fundador referiu-se às atribuições dos mestres, seus direitos e suas

obrigações de que destacamos, os seguintes aspectos:

a) O mestre deveria ser um homem com uma conduta exemplar e crente

em Deus;

b) O mestre deveria ser preferencialmente um homem solteiro e com mais

de trinta anos;

c) O mestre deveria recitar uma oração conjuntamente com os seus

educandos, antes de iniciar e depois de terminar o trabalho.

d) O mestre deveria ensinar com perfeição, mantendo o silêncio, a

disciplina e incutindo o valor da assiduidade;

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e) O mestre não podia aplicar castigos corporais, mas antes recorrer ao

reverendo Director no caso de qualquer situação de desobediência e/ou

transgressão;

f) O mestre deveria cumprir o regulamento das horas do trabalho (afixado

nas salas de trabalho) e deveria acompanhar os seus alunos, em todos

os actos comunitários. Ex: nos Domingos e Dias Santos (alternadamente

com os outros mestres) deveria levar os alunos à missa e ao passeio ou

a outros actos determinados pelo reverendo Director.

g) O mestre não podia receber qualquer tipo de remuneração dos

fregueses, pela obra feita;

h) O mestre recebia um ordenado mensal de 13$500 reis, comida e cama,

perdendo o direito à dormida na Oficina se fosse casado.

Alguns mestres tinham sido alunos da Oficina e pelo seu comportamento

exemplar e dedicação ao ofício, aliados a uma opção pessoal, acabaram

por permanecer na instituição.

É de salientar a rigidez das normas de conduta e de vida impostas a todos

os que seguiam a função de ensinar, dentro da Oficina.

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II.3. O PADRE SEBASTIÃO LEITE DE VASCONCELOS, FIGURA

POLÉMICA

Ernesto Leite de Vasconcelos, primeiro director da Colónia Agrícola

Correccional de “Vila Fernando” durante vinte anos, foi convidado pelo

“Tripeiro”, em 1927, para falar do homem, padre e pedagogo, Sebastião Leite

de Vasconcelos, de quem era familiar.

Nesse artigo realça a influência e o elevado prestígio do fundador da Oficina de

São José. Na verdade, vivendo do seu trabalho de funcionário da Câmara

Eclesiástica e transitando para Escrivão do Auditório Eclesiástico, o Padre

Sebastião Vasconcelos exercia uma multifacetada acção religiosa no Norte do

País, pregando no púlpito, comunicando em conferências, discursando nos

meios operários, dirigindo preferencialmente a sua acção para os bairros

paupérrimos e recebendo frequentemente como herança os filhos dos pobres

operários. Este Padre subiu inúmeras vezes as escadas da Cadeia da Relação

do Porto onde a detenção em comum com os adultos “corrompia” um grande

número de rapazes, acabando por despertar o interesse dos poderes públicos

e da imprensa para esta triste realidade. Para demonstrar a sua influência,

Ernesto Leite de Vasconcelos cita dois casos: O primeiro era o espírito de

conciliação que o seu próprio nome abonava, cometendo-lhe o então

Comissário Geral Adriano Acácio de Moraes Carvalho, as soluções de muitos

casos disciplinares da corporação da polícia; o outro era a opinião que dele

tinha o Procurador Régio junto da Relação do Porto, que era um magistrado e

jurisconsulto notável, Ferreira Augusto, levando-o a escrever que o padre

Sebastião, pelas suas práticas religiosas e por toda a sua acção, punha mais

ordem e disciplina na cadeia que todo o seu pessoal reunido.

Ernesto Leite de Vasconcelos também nos deu a conhecer o fim de vida do

padre Sebastião que, “condenado” ao exílio na sequência da implantação da

República, morreu em Roma como Arcebispo de Damieta, o mesmo título que,

antes de ascender ao Papado, tivera Leão XIII.

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O primeiro director da Colónia Agrícola Correccional de “Vila Fernando” deu-

nos a conhecer inúmeros comentários elogiosos à obra do padre Sebastião

Leite de Vasconcelos.

Se Mousinho d’Albuquerque reconheceu a obra patriótica do padre Sebastião,

Miguel Bombarda enalteceu a obra social da instituição por ele fundada. O

próprio escritor Camilo Castelo Branco correspondeu-se com o padre

Sebastião Leite de Vasconcelos, sinal da sua admiração por esta figura

religiosa e pela obra a ele associada.

Para percebermos o valor da acção deste padre, Ernesto de Vasconcelos

evoca a sociedade portuguesa dos últimos cinquenta anos do século XIX. No

seu entender, no campo político, estes anos caracterizaram-se por uma acção

estéril e comodista; no campo religioso, o clero não conseguia resistir à inércia

dos grandes centros. O espectro de uma reacção das forças anti-clericais

apavorava e inutilizava qualquer manifestação religiosa.

No entanto, a figura do padre Sebastião nem a todos despertou simpatia.

Figura polémica, o Padre Sebastião Leite de Vasconcelos foi acusado de

“utópico” por admitir a ideia da regeneração moral dos delinquentes numa

altura em que Cesar Lombroso e a Escola Antropológica lançavam no mundo

científico de então, quase sem refutação, a sua teoria do “criminoso nato”.

Outros irritavam-se com a insistência do seu Apostolado que atribuíam a um

desejo de exibicionismo, mas o povo simples e muitos espíritos de elite

contestavam tal ideia.

Exemplo disso foi António Cândido, um grande orador na sua época, que numa

conversa de intelectuais, entre os quais estava o crítico de arte, José

Figueiredo, disse: “Eu tenho sido bem recompensado pelos meus trabalhos nas

homenagens que de todos os lados tenho recebido, mas, ao morrer, não deixo

nada e este Padre, que eu admiro, deixa uma obra que o imortalizará”.

Ainda na mesma época, o decano dos cardeais, Vanuletti, sendo Nuncio em

Lisboa e vindo ao Porto, disse: “ Vi que o Fundador da Oficina de São José não

era um Padre qualquer mas um ministro de Deus, cheio de zêlo, conhecedor

do seu tempo, animado de piedade, prudência e de verdadeiro espírito

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evangélico”. Também o Cardeal Maffi, Arcebispo de Pisa, muito indicado para

suceder a Bento XV, escreveu, depois da morte do Arcebispo de Damieta:

“ Recordá-lo-ei sempre como uma das almas mais belas que tenho

encontrado”. Em 31 de Janeiro de 1891, a sua missão de paz foi notória

quando acompanhou o levantamento dos feridos na Batalha e na Rua de Santo

António e quando foi consolar os vencidos ao Hospital do Terço. Ainda no

tumulto do movimento patriótico que sucedeu ao Ultimato, Reis Santos, o mais

notável agitador da questão patriótica de 1890, afirmou que a adesão deste

Padre à primeira manifestação (com a banda da Oficina de São José) imprimiu

um importante cunho portuense ao movimento.

Segundo Ernesto Leite de Vasconcelos, o padre Sebastião nunca se negou a

ofícios religiosos fora de horas ou em locais infestados por epidemias. Todavia,

apesar da sua obra como Bispo, Arcebispo e Diplomata, morreu no exílio

depois da Implantação da República em Portugal. A este propósito, Carlos

Malheiro Dias criticou no “In Memoriam” de D. Sebastião Leite de Vasconcelos,

o procedimento dos republicanos portugueses relativamente a este

eclesiástico.

Em suma, a influência da Oficina de São José, inserida no quadro das

instituições preventivas da criminalidade dos menores, contribuiria para a

reabilitação desta personalidade. A recuperação de menores em risco e sua

integração na vida activa era considerada por muitos contemporâneos como

uma importante conquista do padre Sebastião. Ainda que referenciada em

demasia pelos seus admiradores contemporâneos, a instituição fundada pelo

padre Sebastião exerceu uma função mista de “quase” orfanato, “quase” Casa

de Correcção, de estabelecimento de caridade e de educação, não

compreendida por muitos censores.

Se no início do século XX, ainda era muito difícil resolver pedagogicamente os

problemas de jovens em risco, a obra do padre Sebastião serviu de exemplo

para a criação de outros estabelecimentos similares em Lisboa, Braga,

Funchal, Guimarães e Barcelos, inaugurados com a sua presença. Foi ele que

influenciou a criação da Colónia Agrícola Correccional de Vila Fernando no

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Alentejo, a criação do Asilo Profissional do Terço, a reforma da Casa de

Correcção das Mónicas, a fundação da Casa de Correcção do Distrito do Porto.

A Oficina de São José deu um importante contributo, pelo seu notório exemplo,

para a reabilitação dos menores portugueses em risco!

Porém, é evidente que todo este subcapítulo (III.1.) destaca um esforço de

reabilitação e quase “endeusamento” da figura do fundador da Oficina de São

José no Porto, numa altura em que muitos elementos do clero foram

perseguidos e “denegridos” pela mentalidade republicana que então triunfara.

Sendo assim, ele deve ser entendido neste contexto, sem se cair no exagero

de pensarmos que o referido padre conseguiu, só com a sua obra, pôr cobro às

vicissitudes que comprometiam o futuro de muitas crianças portuguesas!

Relembremos que a grande finalidade desta Obra era a educação de rapazes

órfãos e abandonados ou de famílias com fracos recursos económicos,

preparando-os para a vida pelo estudo e pela aprendizagem de uma arte.

Convém ainda salientar o facto do Padre Sebastião Leite de Vasconcelos ter

feito inúmeras solicitações a Dom Bosco com o intuito de o convencer a

beneficiar Portugal com a sua obra. A Oficina de São José, por ele fundada e

por ele entregue aos cuidados dos Salesianos em 1909, veio a tornar-se uma

das Obras mais significativas da presença salesiana no nosso país.

Os Salesianos entraram em Portugal em 1894, pelo que não nos parece

descabido um relancear de olhos sobre a vida portuguesa na última década do

século XIX, cujo pano de fundo, aflorado pelo padre Pedro Cogliolo, o segundo

provincial, apresentava características muito próprias. Do ponto de vista

político, as lutas entre partidos políticos sobrepunham-se ao empenhamento na

resolução dos problemas reais do país abrindo caminho à vitória republicana.

Do ponto de vista social, dois fenómenos marcavam a sociedade portuguesa: o

analfabetismo e a emigração. Em estreita ligação com o surto migratório

(externo - emigração para o Brasil e interno - êxodo rural) e a falta de instrução,

o “pauperismo” marcava fortemente os meios rurais e os bairros dos grandes

centros urbanos ocupados por trabalhadores vindos das aldeias em busca de

emprego e de melhores condições de vida. Foi nestes aglomerados urbanos

que o incipiente movimento socialista (que assustou muitos católicos da época)

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e o republicanismo (com maior expressão) foram introduzindo as suas ideias

com vista à criação de uma consciência de classe entre os operários capaz de

reivindicar o direito a uma vida mais digna. Era nestes bairros urbanos

assinalados pela miséria que se movimentavam bandos de “gaiatos” à deriva,

constituindo uma grave ameaça social. Daí a importância do contributo

específico dos Salesianos nestas áreas.

Do ponto de vista religioso, a mentalidade anticlerical, que caracterizou o

liberalismo oitocentista, manifestou-se contra as ordens e congregações

religiosas, cujo espírito e impacto na sociedade portuguesa eram

emblematicamente traduzidos pelo termo “jesuitismo”. Os institutos religiosos

foram entrando novamente em Portugal, a partir de meados do século XIX,

embora a legislação “anticlerical” continuasse em vigor sob o olhar tolerante

das autoridades governativas.

As medidas de compromisso tomadas por Hintze Ribeiro autorizaram, por

decreto de 18 de Abril de 1901, a presença e a acção dos institutos dedicados

à beneficência, educação e missões, banindo os demais. A sociedade

Salesiana, abrangida pelo decreto, veria os seus estatutos aprovados pela

portaria de 18 de Outubro de 1901 devido ao seu carácter beneficente e

educacional.

A imagem que a imprensa portuguesa de finais do século XIX e inícios do

século XX transmitia sobre Dom Bosco, era a de um homem inteiramente

voltado para os rapazes da rua, tal como viria a ser o padre Américo. O

condicionalismo particular do meio português em que a pobreza e o abandono

de crianças e jovens eram gritantes, deve ter levado o segundo provincial,

padre Pedro Cogliolo a manter-se na linha do ensino das artes e ofícios e não

do ensino liceal. Esta posição é perfeitamente visível numa carta de 1903

dirigida ao superior-geral, padre Miguel Rua: “Permito-me observar a

V.S.Rev.ma que o governo vê com bons olhos a nossa obra [...]. Não há motivo

para ter demasiado receio dos governos desde que, mesmo à custa de

sacrifícios, mantenhamos bem desfraldada a bandeira da beneficência. Importa

que as autoridades e o público possam dar-se conta de que as nossas casas

não são pensionatos […]. Por isso, especialmente aqui, não convém ir para o

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ensino liceal. Artes e Ofícios, escolas gratuitas para os pobres e nada mais”

(ASC, carta Cogliolo-Rua, 8.6.1903).

A mola que lança os Salesianos na acção apostólica é a caridade, entendida,

não no sentido limitado de socorrer os pobres, mas no sentido mais amplo e

nobre de promover as pessoas, neste caso, os jovens trabalhadores. Por isso,

as suas primeiras fundações apresentam uma feição marcadamente laboral,

assumindo o nome de “Oficinas”.

A primeira Oficina aberta em Portugal, a Oficina de São José no Porto (1883),

de que temos estado a falar, não foi fundada pelos Salesianos. Todavia, o seu

fundador, o Padre Sebastião Leite de Vasconcelos, era um homem animado

pelo genuíno espírito salesiano.

Foi o próprio Dom Bosco, com quem contactou perto de Turim, que o encorajou

a empreender esta obra, prometendo-lhe que mais tarde enviaria os seus

“filhos” para lhe darem garantia de continuidade e eficácia, o que só se

concretizou em 1909. O padre Vasconcelos quis imprimir à sua Oficina de São

José as características de uma verdadeira obra salesiana.

Convém relembrar que a postura política de São João Bosco se caracterizou

por uma atitude interventora mas isenta, por um opção pela via reformista, por

uma especial preocupação com as questões sociais, nomeadamente a

educação e o trabalho e, ainda, pela antecipação ecuménica operada através

da síntese entre o patriotismo e o universalismo.

Para reforçar a ideia da ligação do Padre Sebastião Leite de Vasconcelos a

São João Bosco recorremos à opinião de Abel Andrade (Presidente da

Comissão Monárquica de Coimbra) expressa em 21 de Novembro de 1891.

Para este político, como para outras personalidades da época, a regeneração

individual e social do Portugal moderno dependia principal e essencialmente da

educação intelectual, artística e moral das classes laboriosas. Se em Itália

apareceu D. Bosco, em Portugal destacou-se o Padre Sebastião Leite de

Vasconcelos com a fundação da Oficina de São José: Escola de artes e ofícios

para crianças pobres e abandonadas (documentos de 1887).

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II.4. A RECEPTIVIDADE SOCIAL DA OFICINA DE SÃO JOSÉ NA

CIDADE DO PORTO

A Oficina de São José da cidade do Porto teve uma grande aceitação da

população coeva, e como testemunhos desse facto temos os apoios de que

beneficiou por parte de entidades públicas e privadas e as visitas que lhe foram

feitas por importantes personalidades portuguesas e estrangeiras, bem como

pelos membros da realeza.

Nas suas “memórias”, o padre Sebastião Leite de Vasconcelos fez um enorme

agradecimento a todas as instituições hospitalares que trataram dos educandos

que, pela sua fraca compleição física, traziam certas enfermidades, cujo

tratamento era demorado e muito dispendioso (como o Hospital do Carmo).

Agradeceu igualmente à Direcção da Companhia Carril Americano do Porto à

Foz e Matosinhos que, nos primeiros quatro anos de existência da Oficina, deu

passagem gratuita nos seus carros em 840 viagens destinadas aos respectivos

educandos para estes irem tomar os seus banhos. O reverendo manifestou

também o seu reconhecimento ao Ministro das Obras Públicas (Emídio

Navarro) pelo passe concedido nas linhas do caminho de ferro do Minho e

Douro, proporcionando aos alunos desta instituição várias digressões, através

das linhas férreas, aos Domingos e em feriados religiosos (“dias santificados”).

Este padre fez ainda referência à admissão de um dos alunos da Oficina de

São José “na classe de gratuito” no Seminário de Nossa Senhora do Rosário

dos Carvalhos pelo Cardeal D. Américo, Bispo do Porto, em comemoração da

aprovação legal dos Estatutos desta instituição. Finalmente, agradeceu a todos

os benfeitores pelos seus donativos em géneros, peças de vestuário, dinheiro

ou trabalhos que mandaram executar na Oficina.

Estas informações fornecidas pelo padre Sebastião, além de nos transmitirem

uma ideia da receptividade social desta instituição, também nos dão a

conhecer o tipo de actuação do director da Oficina para com os respectivos

educandos. Ficamos a saber que este religioso possuía manifestas

preocupações relativamente à saúde dos jovens que acolhia, ministrando-lhes

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tratamentos hospitalares, preocupações no que dizia respeito ao seu bem-

estar, proporcionando-lhes banhos e preocupações com o preenchimento dos

seus tempos livres, facultando-lhes saídas aos Domingos e nos feriados

religiosos. Para além de todos estes cuidados, salvaguardava atentamente o

seu sustento.

Foi esta preocupação com a manutenção dos jovens que levou o director da

instituição a apresentar um balancete do movimento de cada uma das oficinas

(sapateiro, alfaiate, carpinteiro, encadernador, serralheiro…) e uma breve

descrição das missas e sufrágios a que era obrigada a Oficina de S. José, quer

por título de obrigação, quer de devoção.

Todas estas informações que nos são fornecidas pelo Director da Oficina de

São José convergem para a necessidade de se justificar a aplicação das

verbas angariadas através de donativos particulares e públicos no sentido de

se suportarem avultadas despesas com a instituição em causa.

Sebastião Leite de Vasconcelos justificava tais despesas com o sustento diário

de quarenta alunos, com o pagamento de salários a cinco mestres e dois

criados e com a gratificação a dois professores de instrução primária e

desenho. Apesar de possuir os seus próprios recursos resultantes das suas

funções eclesiásticas, mencionava o facto da mãe e da irmã contribuírem para

a sua alimentação diária, libertando esses proventos que auferia em benefício

da instituição. Além disso, acumulava as funções de director, capelão,

escriturário e até professor, sem a menor remuneração.

Nestes seus apontamentos podemos ainda aceder a um quadro com o registo

dos alunos e pessoal da oficina (em 1887) e respectivos vencimentos. Assim

se consegue ter a noção das despesas e das verbas movimentadas por esta

instituição, bem como das suas necessidades financeiras.

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

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A OFICINA DE SÃO JOSÉ NA CIDADE DO PORTO (1880-1909)

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Fazendo uma análise a este quadro, podemos concluir que num total de

quarenta alunos, em 1887, dezassete alunos aprendiam o ofício de sapateiro,

treze seguiam o ofício de alfaiate, cinco preparavam-se para carpintaria, três

foram encaminhados para o ofício de encadernador e finalmente dois optaram

pela aprendizagem de serralharia.

Existia um mestre por ofício (mestre sapateiro - Jacintho Monteiro Cardoso,

mestre alfaiate - Antonio Maria Salgado, mestre carpinteiro - José do Couto e

Silva, mestre serralheiro - Baldevinos Villela Pinto e mestre encadernador -

Gaspar de Souza Pinto). Nos ofícios de sapateiro, alfaiate e encadernador,

existia um 1º contra-mestre. Nos ofícios de sapateiro e alfaiate, também existia

um 2º contra-mestre.

O quadro de pessoal da Oficina também incluía um prefeito e professor de

instrução primária, reverendo Antonio Joaquim de Lemos Lobo, um professor

de desenho, Antonio de Souza Nogueira Junior, um cozinheiro, Antonio de

Souza, um criado, Joaquim Pinto da Affonseca e um facultativo, Dr. Manuel

Carvalho de Araujo Lima.

Os mestres de cada ofício, o prefeito e o professor de instrução primária

ganhavam 13$500 reis mensais, com direito a alimentação. No caso dos

mestres carpinteiro e serralheiro, tinham igualmente direito a casa. O prefeito e

o professor de instrução primária também tinham direito a casa e roupa lavada.

O professor de desenho apenas ganhava 4$500 reis mensais, quase tanto

como o criado que ganhava 4$000 reis mensais, com direito a alimentação e

casa. O cozinheiro ganhava 5$000 reis com direito a alimentação e casa. O

facultativo ganhava 1$500 reis, com direito a alimentação.

O direito a alimentação e casa estaria relacionado com as funções que

ocupavam mais tempo.

Os vencimentos mensais eram superiores no que diz respeito ao 1º contra-

mestre de sapateiro, 1º contra-mestre de alfaiate e 2º contra-mestre de

sapateiro (1$500 reis). O 2º contra-mestre de alfaiate apenas ganhava $900

reis mensais e o 1º contra-mestre de encadernador ainda ganhava menos

($450 reis mensais).

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Alguns aprendizes de sapateiro (dois) e de carpinteiro (três) já ganhavam $600

reis mensais. Um aprendiz de sapateiro e um aprendiz de encadernador

ganhavam $450 reis mensais.

Apesar da escassez de dados relativos à forma de diferenciar o valor dos

vencimentos mensais, os registos por nós analisados remetem-nos para uma

distinção remuneratória baseada na experiência e no grau de especialização

em cada ofício.

Retomando a questão do prestígio da instituição fundada pelo Padre Sebastião

Leite de Vasconcelos, constatamos que esta é testemunhada, não só pelos

donativos angariados, como pelas observações efectuadas pelos seus

visitantes. Esta Oficina foi visitada pelo rei D. Luís e Dª Maria Pia em 2 de

Outubro de 1887 e pela rainha D. Amélia a 23 de Novembro de 1891 e pelo

príncipe real D. Luís Filipe, a 26 de Novembro do mesmo ano.

No respeitante à primeira visita, o Commercio do Porto nº238 descreveu a

forma como esta se processou. Através deste periódico sabemos que o cortejo

chegou ao paço da Torre da Marca e muitas das pessoas que o formavam

subiram à sala da recepção do andar nobre, retirando-se após uma curta

demora. O Presidente do Conselho de Ministros apresentou a Sua Majestade,

o rei D. Luís, o reverendo Sebastião Leite de Vasconcelos, na qualidade de

fundador e director da Oficina de São José. Este apresentou à sua Majestade

dois educandos, sendo um carpinteiro e outro alfaiate. Estes educandos, em

nome dos seus companheiros da Oficina, felicitaram sua Majestade e a família

real pela sua feliz chegada. O rei agradeceu de forma afectuosa estes

cumprimentos, mostrando quão “simpática” lhe era uma instituição como a

Oficina de São José que não só educava o operário para o trabalho, como

também reabilitava um homem perdido.

Como podemos constatar, a visita de um membro da família real quebrava a

rotina diária da instituição, obrigando a todo um cerimonial que fazia desse dia

um dia de festa.

Neste contexto, outras notícias se seguiram a propósito desta visita de D. Luís.

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“Cerca das 5 horas e 30 minutos da tarde apeavam-se no largo da Sé, suas

Majestades e Altezas, seguindo pela rua de Traz da Sé para a Officina de S.

José (…)”.

Aguardavam os visitantes, o reverendo Sebastião Leite de Vasconcelos,

director da Oficina, Dª Margarida de Vasconcelos, sua mãe, D.ª Francisca dos

Santos, sua irmã, e seu cunhado Francisco dos Santos Pereira.

Os educandos, dispostos em alas, ajoelhavam-se beijando as mãos dos

membros da realeza que começaram a visita às oficinas pela seguinte ordem:

Primeiro, dirigiram-se à oficina de serralheiro onde a rainha foi presenteada

com um agulheiro de metal feito no torno. Seguidamente, encaminharam-se

para a oficina de carpinteiro, na qual se ofereceu à família real um paliteiro de

luxo cuidadosamente torneado. Num terceiro momento, foram até à oficina de

alfaiate onde receberam a oferta de um par de calças de “casimira ingleza”,

com forros de cetim azul e branco. Na parte interna da alça da carcela, podia

ler-se o seguinte dístico: “S.M.El. Rei D. Luiz”, correctamente pespontado à

máquina.

A visita prosseguiu com a ida ao dormitório, bastante limpo e asseado. Os

visitantes passaram pela oficina de encadernador onde receberam um

exemplar dos estatutos desta Oficina. Finalmente, chegaram à oficina de

sapateiro onde lhes ofereceram um par de sapatos

O Rei escreveu as seguintes linhas, que deverão ter constituído para o

benemérito director da Oficina, uma das melhores recompensas da sua obra

generosa: Estimei muito de ter occasião de visitar este util e benefico

estabelecimento, que faz grande honra ao seu instituidor. Prosiga sempre na

senda do bem e do trabalho, que Deus abençoará os seus esforços – Porto, 2

de Outubro de 1887- El Rei D. Luiz”.

No seguimento da intervenção régia, o Director da Oficina proferiu as seguintes

palavras: “… Não pelas honras de fundador, mas pela gloria de Deus, e bem

das almas d’estas pobres creanças repellidas pela sociedade e arrancadas por

mim aos ferros da cadeia, e levantadas da miseria e degradação moral em que

havia cahido, foi, real senhor, com este intuito que criei esta instituição que a

sociedade tantas vezes tem abençoado, depositando em minhas mãos o

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generoso obolo da caridade, que junto aos meus minguados recursos tem sido

sufficiente para sustentar e educar estes 40 jovens, aos quais appelido de

meus filhos adoptivos…Uma cousa se faz agora necessaria, e é que antes da

minha morte seja esta instituição, que vive ao abrigo da lei, e como tal

reconhecida pelos poderes publicos, dotada de casa propria a fim de poder

estender o seu beneficio a centenas de sêres perdidos, que vagueiam pelas

ruas d’esta cidade minados pela fome e consumidos pelo vicio, e onde se

extinguiu a noção de Deus e amor da patria. É só para este ponto que eu

imploro o alto valimento de Vossa Magestade, e para commemorar a régia

visita de tão augustos personagens, tomo a liberdade de offerecer a Vossa

Magestade desde já um lugar n’esta Officina, não obstante o seu

acanhamento, ao qual Vossa Magestade deseje aqui mandar educar”.

É de salientar, no discurso do reverendo, a tónica colocada na função

caritativa, regeneradora, católica e moralizadora da instituição, no sentido desta

continuar a beneficiar do reconhecimento público.

Ainda a propósito do prestígio desta instituição, podemos descrever alguns

pormenores da visita da rainha D. Amélia e de D. Luís Filipe a esta Oficina,

conforme notícias do Commercio do Porto, publicadas a 24 e a 26 de

Novembro de 1891.

Deste modo, cerca das 6 horas da tarde, a Rainha foi recebida na Oficina pelo

cardeal D. Américo e pelo director da instituição, Padre Sebastião Leite de

Vasconcelos e ainda por um grupo de senhoras da “alta sociedade” como a

Condessa de Samodães.

A entrada de Sua Majestade foi assinalada pelo Hino Nacional executado pela

banda dos educandos da oficina e por uma “chuva de flores” que cobriu a

rainha. Logo após os cumprimentos das pessoas presentes e, já na capela, a

rainha ouviu o orfeão da oficina acompanhado de piano-órgão entoando o

Domine Salvam fac Reginam Nostram Ameliam. A seguir à oração, Sua

Majestade visitou os dormitórios, a aula de desenho, as oficinas, a aula de

música, o refeitório, a cozinha e todas as restantes dependências do edifício,

elogiando o estado dos referidos espaços. Por fim, dirigiu-se ao escriptorio,

onde o Reverendo Director lhe leu um discurso que passamos a transcrever:

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«Senhora: - “ A honra que com a visita de Vossa Real Magestade acaba de ser

concedida a esta instituição, da qual disse um dia o sempre saudoso monarcha

o senhor D. Luiz I que não conhecia no paiz instituição mais digna de ser

auxiliada vem marcar nos seus dez annos de existencia umas das suas mais

brilhantes paginas, e tornar mais firme a esperança que nutre o seu fundador

de ver, em antes de morrer, construido o annexo a esta Officina n’aquelles

terrenos contiguos, para continuar a obra da regeneração social, recolhendo alli

os jovens, quasi incorrigiveis, que um dia, mediante os factores da religião e do

trabalho, serão a mais radiante corôa de quem os adoptou por filhos. Senhora:

Desde a abertura da Officina de São José, á qual Sua Magestade El-Rei se

dignou conceder o titulo de Real, jámais foi solicitado do publico o obolo da

caridade christã, porque a sociedade, sempre solicita no bem do seu

similhante, tem vindo expontaneamente socorre-la, e até com generosidade.

Pensou-se na edificação de um edificio apropriado: faltavam os terrenos; veio

logo o augusto rei D. Luiz, e por decreto de 30 de janeiro de 1889, a Real

Officina de S. José, passa a possuir tres chãos que eram da nação. Faltavam

meios para a construcção do edificio e o sempre benemerito Manoel Esteves

Ribeiro, ao qual o governo de Vossa Magestade desejou agraciar com o titulo

de Conde de S. José, promptificou-se a fazer a obra. Agora restam-me

aquelles terrenos para completar a planta do edifício; quando os tempos

corram prosperos, é então e só então que appelo para o magnanimo coração

de Vossa Real Magestade a esta cidade, onde encontra em cada peito de seus

filhos a mais devotada dedicação, e em todos os educandos e pessoal d’esta

instituição um amor filial e respeito de subditos gratos. Se algum valor podem

ter pelo que significam, estes productos dos meus jovens artistas, que ouso

offerecer a Vossas Magestades, seja-me ainda permìttido, para commemorar

dia tão solemne para esta casa, repetir o offerecimento que já tive occasião de

fazer a Vossa Magestade – dois lugares á disposição de Vossa Magestade

para dois pobresinhos orphãos de pae e mãe que se lembrem, n’esta ocasião

da visita de Vossas Magestades á cidade do Porto, de implorar a sua alta

protecção a fim de serem educados em qualquer das artes.” Neste discurso

podemos realçar o pedido do Director da Oficina à Rainha Dona Amélia no

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sentido de conseguir mais terrenos para ampliar e completar a sua obra. De

notar a forma habilidosa como este sustenta esse pedido, evocando a memória

de D. Luís e o respeito que todos os membros da Oficina de São José nutriam

pela família real. Também convém salientar o facto de que, era nestas alturas,

que se registavam admissões de novos educandos, sob proposta da rainha,

para relembrar o dia da sua visita. A partir dos registos do Livro de Matrículas,

podemos identificar os dois jovens admitidos sob proposta de Sua Majestade.

Foram eles: Jacome Antonio, nascido a 2 de Maio de 1880, no Porto, destinado

ao ofício de encadernador e Francisco Manoel Gomes Ferreira, nascido em 23

de Fevereiro de 1879, em Beja, destinado ao ofício de alfaiate.

A Rainha agradeceu todas as provas de respeito e de consideração e

prometeu mandar o príncipe real visitar a Oficina de São José para que este

conhecesse uma casa de regeneração. O Reverendo Sebastião de

Vasconcelos ofereceu a sua Majestade um volume, luxuosamente

encadernado, na respectiva oficina, do “Artista Instruído”; ofereceu, ainda, para

sua Majestade El-Rei, um par de calças de pano preto, confeccionado na

oficina de alfaiate e, finalmente, um par de sapatos de chevreau para o

príncipe real, confeccionado na oficina de sapateiro. A Rainha agradecendo de

novo, escreveu no livro dos Visitantes da Oficina de São José as seguintes

palavras: “Este estabelecimento, que é uma gloria para o paiz a que pertenço,

para esta cidade e para o fundador de tão sympathica Instituição, merece-me o

maior interesse, porque encaminha muitos para o bem e para o trabalho. – D.

Amélia, rainha – 23 de Novembro de 1891”. Seguidamente, a rainha retirou-se

ao som de entusiásticas “vivas”, sendo acompanhada, durante algum tempo,

pelos educandos da oficina e seu director.

O edifício achava-se singelamente decorado, vendo-se alguns troféus de

bandeiras com escudos, nos quais se liam as datas memoráveis da Oficina e o

nome dos principais benfeitores. A 26 de Novembro de 1891, o Commercio do

Porto noticiava a prometida visita do príncipe Luís Filipe, que após um percurso

idêntico ao da sua mãe, chegou à varanda do edifício e foi erguido ao colo,

pelo Reverendo Sebastião de Vasconcelos e acolhido pelo povo, com grande

entusiasmo. O príncipe trajava vestido azul, casaco de agasalho de lã branco,

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e gorro da mesma cor, trazendo calçados os sapatinhos que lhe tinham sido

oferecidos pelos educandos da Oficina de São José. A este respeito podemos

sublinhar a forma delicada como os membros da família real agradeciam as

ofertas. Neste caso concreto, o jovem príncipe vinha visitar a instituição,

usando já os sapatos que lhe haviam sido oferecidos.

A curiosidade, perspicácia e inteligência do jovem príncipe, que observou

atentamente o funcionamento de várias máquinas da oficina de encadernação,

provocou a admiração dos jovens da Oficina. Os marceneiros ofereceram-lhe

uma pequenina cómoda que muito lhe agradou; e dois sobrinhos do Director

ofereceram-lhe uma pomba branca e um pequeno gato branco de raça

francesa que muito apreciou. O príncipe mostrou particular interesse pelos

vários instrumentos da aula de música e entregou a um dos educandos três

cartuchos de doces para repartirem entre si, deixando a quantia de 20$000 réis

para melhorar a refeição do dia. A visita durou duas horas. Depois da

despedida (“os recolhidos beijaram-lhe a mão”), os educandos e a banda da

Oficina, tocando o hino nacional, seguiram o trem até à Batalha.

O Reverendo Director da Oficina, depois de beijar a mão do príncipe, “soltou

vivas” a sua Alteza e à família real. As pessoas da comitiva foram brindadas

com um álbum de fotografia da casa e com o livro “O Artista Instruído”. Durante

a tarde, um dos alfaiates, acompanhado do Reverendo Director, foi entregar a

sua Majestade El-Rei o par de calças que lhe oferecera e agradecer à rainha a

visita do príncipe!

É extremamente enriquecedor para a História Cultural e das Mentalidades,

conhecer todo este aparato que envolveu a visita a uma instituição de um

membro da casa real.

Além das visitas reais, existiram outras de personalidades ilustres da nossa

sociedade, que deixaram os seus comentários registados:

José Bonifácio Buleão, que visitou a Oficina a 20 de Julho de 1891, escreveu:

“Muito agradável foi a impressão que tive em visitar este modesto mas também

bem montado estabelecimento, onde a hygiene e todas as commodidades para

os futuros representantes das artes portuguesas são encontradas…”.

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O Cónego António Maria Ferreira (vindo dos Açores) conheceu a Oficina de

São José no dia 5 de Agosto de 1891, transmitindo-nos uma importante

mensagem sobre a figura do Padre Sebastião Leite de Vasconcelos: “Tive a

consolação immensa de visitar este Sympathico estabelecimento, e não posso

abafar em meu peito um brado da mais enthusiastica admiração pelo que aqui

presenciei. Esta casa é uma prova do que pôde a nossa Divina Religião para a

regeneração da sociedade. Gloria a Deus que inspirou a creação d’este

instituto, eterna gratidão ao benemerito fundador, ao Dom Bosco portuguez que

considera esta obra como a sua empreza mais querida, que lhe absorve todos

os affectos do seu coração bondoso todo inflammado em caridade pelas

creanças desamparadas. As bençãos de Deus nunca lhe faltarão”.

Monseñor Jasinos, no seu comentário reconhecia a importância social,

benemérita e religiosa da acção do padre Sebastião relativamente aos pobres

desvalidos: “He, tenido el justo y honor de visitar la casa asilo connocida com el

nombre de Officina de São José fundada por el Padre Sebastião Leite de

Vasconcellos y no he podido por menos que dar gracias a Dios Nuestro Sénor

al celebrar el santo sacrifício en su capilla porque nos depare varones justos

que inspirados en su caridade son el consuelo del pobre y del desvalido”.

Pontservez, professor da Universidade de Paris, reconhecia em 29 de

Setembro de 1891, o mérito do fundador da Oficina, em particular, pelo facto de

“salvar” jovens “perdidos” e convertê-los em forças úteis à sociedade: “Mês

voeux les plus vives pour la durée de l’ouvre excelente de l’Officina de Saint

Joseph du Porto, et pour le santé de son devoué fundateur, qui de la façon la

plus nobre, la plus simple et avec le plus beau courage sauve des âmes

individuelles et conserve des forces utiles a la societé. Jy ajoute léxpression de

mon admiration por le maitre educateur qui a conçu et appliqué le réglement de

la maison de Saint Josepht”.

Antonio, Bispo de Himeria, prelado de Moçambique, enaltecia a prática da

caridade pelo padre Sebastião. Foi nesta linha de pensamento que nos legou

as seguintes palavras: “Caridade! Seiva fecunda do Christianismo, só tu fazes

prodigios como os que hoje, com o coração transbordando d’alegria me foi

dado contemplar!”.

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Finalmente, numa perspectiva de disseminação da obra do padre Sebastião

Leite de Vasconcelos, João, Bispo de Cochim, deixou-nos as seguintes

palavras: “Muito gratamente impressionado por tudo o que vi e achei n’esta

Sympathica instituição faço votos, os mais ardentes e sinceros, pelo seu

desenvolvimento. Oxalá seja dado ao seu benemerito fundador ve-la em breve

em condições de occorrer ás necessidades de todo o paiz ramificando-se e

fructificando por toda a parte á similhança da immortal obra de D. Bosco”.

É com estas descrições e com estes comentários que encerramos este

capítulo, para que se fique com a real percepção do impacto interno e externo

da obra do reverendo Leite de Vasconcelos.

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CAPÍTULO III – TRATAMENTO ESTATÍSTICO

Chegamos finalmente ao tratamento do resultado dos dados recolhidos pelas

fichas de matrícula analisadas.

NATURALIDADE

De 498 fichas analisadas5 constatamos que 483 rapazes são de naturalidade

portuguesa e os restantes 15 nascidos nas colónias portuguesas e outros

países europeus. Do total, 235 rapazes são do distrito do Porto, 181 são da

cidade do Porto (distribuídos por treze freguesias), 18 são dos restantes

distritos do país, desconhecendo-se a proveniência de 64 jovens. Da amostra

analisada, a parte mais significativa incide no distrito do Porto, razão pela qual

privilegiamos o estudo do concelho do Porto.

Da freguesia de Nevogilde, apenas encontramos um registo. Esta freguesia

tinha uma natureza profundamente rural.

5 Uma ficha foi anulada pelo responsável pelo registo das matrículas.

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Da freguesia de Lordelo do Ouro (verdadeira “terra de mareantes”)

encontrámos dois registos e da freguesia de Ramalde também encontrámos

dois registos. Esta freguesia, ao longo dos tempos, foi perdendo o seu carácter

rural, tornando-se um importante centro de indústrias, com numerosas fábricas

e bairros operários.

Da freguesia da Foz do Douro encontrámos quatro registos. Esta freguesia foi

crescendo, tanto em população, como em praia de banhos, tendo sido muito

frequentada no Verão e tornando-se um bairro citadino preferido por muitas

famílias para sua residência permanente.

Da freguesia de Campanhã (arrabalde com muitas casas de campo de famílias

gradas do Porto), apurámos cinco registos e da freguesia de Paranhos,

apurámos, igualmente, cinco registos. Esta freguesia foi durante séculos uma

freguesia rural, muito longe dos muros da cidade. Da freguesia de São Nicolau,

apurámos apenas seis registos.

Da freguesia de Massarelos (povoada por homens do mar que se dedicaram à

extracção salineira) apurámos sete registos. Da freguesia de Vitória registámos

oito matrículas e da freguesia de Miragaia apurámos nove matrículas. Assim

sendo, as freguesias que nos proporcionaram mais registos foram:

a freguesia do Bonfim com dezasseis registos de matrícula; a freguesia da Sé

com trinta e quatro registos de matrícula e a freguesia de Santo Ildefonso com

trinta e nove registos de matrícula. Santo Ildefonso era uma freguesia com

bastantes espaços agrícolas mas que foi crescendo muito em termos de

actividade industrial e comercial.

Sobre a freguesia de Cedofeita trabalhámos em quarenta e três registos de

matrícula. Também foi uma freguesia que se desenvolveu com as actividades

industriais e comerciais.

Pelos dados recolhidos, é possível detectarmos quais as freguesias que mais

jovens “encaminhavam” para esta Oficina. A freguesia da Sé e as freguesias de

Santo Ildefonso e Cedofeita eram freguesias muito populosas e com inúmeros

casos de abandono/desamparo de menores pelo facto de possuírem zonas

habitacionais degradadas associadas aos problemas decorrentes da situação

de miséria que aí se vivia (alcoolismo, prostituição, doença, criminalidade).

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Neste sentido, podemos recorrer aos estudos estatísticos da época, publicados

por Mendes Correia e que nos confirmam o aumento da criminalidade de

menores em Portugal, sobretudo no período que decorreu entre 1878 e 1895.

Além disso, a maior incidência da criminalidade recaía nos rapazes com menos

de dezoito anos o que, por si só, justificava a criação de instituições destinadas

à recuperação de menores do sexo masculino, como a que estamos a estudar.

Mendes Correia também não esqueceu a procura de causas ou de possíveis

factores para este “fenómeno” de criminalidade e, a par de factores

hereditários, individuais e “mesológicos”, evidenciou a necessidade de investir

na prevenção e na luta contra este mal social. Foi nesta linha de pensamento,

e de uma forma algo perspicaz, que este estudioso propôs a pena de correcção

do delinquente e de reparação do castigo, como um meio de defesa social, ao

invés de a encarar como uma forma de vingança ou de castigo. Para ele, os

meios de prevenção deveriam assumir maior importância do que os meios

correctivos, reparadores ou punitivos.

Se as crianças recolhidas na Oficina de São José tivessem tido o apoio de uma

família equilibrada e tivessem vivido em zonas habitacionais “limpas”,

certamente teriam “escapado” a todo um conjunto de problemas decorrentes da

situação de miséria que os assolava, já anteriormente mencionados.

A propósito desta realidade, consideramos pertinente fazer uma abordagem ao

estudo efectuado por Gaspar Martins Pereira, publicado na “História da Cidade

do Porto”, respeitante à questão do alojamento. Este estudo remete-nos para

as zonas mais degradadas da cidade do Porto, onde se situavam as ilhas. Na

realidade, os processos de crescimento demográfico, de industrialização e de

renovação urbanística acentuaram a diferenciação social dos espaços citadinos

no decurso do século XIX. A par dos novos bairros e chalés que enchiam as

zonas chic da cidade – Boavista, Foz, Álvares Cabral, alastrava no “miolo” de

alguns quarteirões urbanos, e em zonas degradadas, a “cidade escondida” das

ilhas e da pobreza, onde se percebiam comportamentos e hábitos específicos,

onde uma sociabilidade intensa gerava e transmitia crenças e saberes, normas,

gestos e modos de dizer. Um espaço que as elites identificavam como

perigoso, não apenas fisicamente degradado, mas também imoral, associal,

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viveiro de doenças e de revoltas. No miolo da cidade antiga verificava-se uma

sobre ocupação habitacional marcada pela degradação desse espaço, se bem

que uma ou outra rua tenha sofrido obras de beneficiação. A demolição de

várias zonas, onde se concentravam os estratos sociais mais pobres, foi

também responsável pelo agravamento das condições habitacionais que se

fizeram sentir, com especial incidência, no último quartel do século XIX. A

supressão de muitas vielas do coração da cidade e bairros, como as que

deram origem à Rua Nova de São Francisco, Alfândega, Rua de São

Domingos, Mouzinho da Silveira e outras, provocou o despejo de muitas

famílias operárias. Acentuou-se, assim, o processo de apropriação burguesa

do solo urbano, paralelamente à centrifugação dos pobres, movimento

registado nas grandes cidades europeias da época. Este movimento na cidade

do Porto durou até aos nossos dias. O aumento da população e a maior

procura de alojamentos baratos iriam estimular diversas formas de

especulação imobiliária, fazendo alastrar a construção de novas ilhas e

promovendo a maximização de outros espaços de arrendamento. Deste modo,

no centro da cidade antiga acumularam-se as “colónias”, ilhas em altura, com

as piores condições de salubridade e fortes concentrações humanas,

sobretudo no Barredo, entre o Morro da Sé e a Ribeira. As “casas de malta”

eram o alojamento preferencial dos que vinham trabalhar para a cidade,

durante a semana, bem como dos aguadeiros galegos e outros serviçais.

Ainda assim, eram as ilhas que constituíam a forma de alojamento popular

mais vulgarizada na cidade do Porto, sobretudo nas zonas industrializadas

(Montebelo, São Vítor, Campo Pequeno, Salgueiros…). Normalmente, eram

grupos de casas separadas por um estreito corredor ao ar livre. Elas existiam

no Porto desde 1832 mas atingiram o seu maior número em finais do último

quartel do século XIX, albergando cerca de um terço da população do Porto,

por volta de 1900.

A partir dos anos oitenta, a opinião e os poderes públicos despertaram para a

questão do alojamento. A miséria da habitação parecia preocupar mais os bem

instalados do que os próprios habitantes das ilhas ou das habitações

degradadas. Estes habitantes reivindicavam mais o direito ao trabalho e ao pão

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do que à casa. Os casos frequentes de despejos por falta de pagamento das

rendas, a importância da assistência prestada pelos Albergues Nocturnos

(desde 1882 dispensavam alguns milhares de dormidas a pobres da cidade), a

degradação das “casas de malta”, fazem-nos reflectir sobre a frequência de

situações bem mais miseráveis que as dos habitantes das ilhas. A habitação da

ilha contrasta com os valores da ética familiar burguesa que associava a casa

ao espírito doméstico e à privacidade familiar. No caso específico das ilhas, o

espaço privado mal se distinguia do espaço público. A ilha era eminentemente

um espaço colectivo e, simultaneamente um espaço fechado sobre si mesmo.

O portal de entrada comum, bem como os espaços e equipamentos colectivos

(corredor, lavadouro, poço, retretes…) facilitavam a formação de um espírito de

comunidade, despertando intensas relações de vizinhança, onde o acesso a

estranhos, não sendo vedado, não deixava de ser inibido ou mesmo

hostilizado. A exiguidade do espaço doméstico, que raramente ultrapassava os

15-20 m2, reforçava a utilização dos espaços comuns como prolongamento do

espaço da casa, intensificando as relações de sociabilidade e de entreajuda, as

solidariedades e os conflitos.

Na sequência de tudo o que foi dito, não seria inoportuno escrevermos um

pouco sobre o crescimento populacional estreitamente ligado ao crescimento

económico da época. Nesta linha de pensamento começaremos por abordar a

situação da população urbana. Na realidade, a cidade integrava grupos muito

diferenciados na forma de ocupação do território, desde os que aí residiam

permanentemente, até aos vadios e vagabundos sem residência certa.

Os Albergues Nocturnos, cuja fundação data de 1881, dispensaram

anualmente alguns milhares de dormidas a pobres da cidade sem casa (3280

no ano económico de 1894-1895) e aos que temporariamente estavam na

cidade, por umas horas ou dias, por uns meses ou anos.

No respeitante às taxas de mortalidade, “morria-se mais na parte antiga” e em

locais habitados por população operária. Daí o facto dos jovens órfãos

recolhidos pela Oficina de São José, serem maioritariamente oriundos das

freguesias que integravam esta “parte antiga”. A taxa de mortalidade na Sé

atingiu cerca de 38% em 1895-1897, ao passo que em Aldoar e Nevogilde era

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inferior a 15%. Além disso, as freguesias com maior população operária e com

maiores índices de natalidade, como o Bonfim, apresentam taxas de

mortalidade elevadas.

Entre 1895 e 1897, a natalidade variava entre os 24% em Miragaia e os 43,8%

em Ramalde. Após meados do século XIX, a população do Porto reinicia uma

fase de recuperação. Assiste-se ao adensamento das freguesias centrais que

se traduzirá na degradação das condições habitacionais. Para lá do centro

histórico, as freguesias de Santo Ildefonso, Miragaia, Massarelos, Cedofeita e

Bonfim quase triplicam os seus moradores entre os anos quarenta do século

XIX e 1911.

O crescimento é particularmente intenso em Cedofeita e no Bonfim. Cedofeita

passa de menos de 9000 habitantes em 1841, para mais de 30000 habitantes,

em 1911. Bonfim, freguesia criada em 1841, por divisão de Campanhã e Santo

Ildefonso, passaria de menos de 8000 habitantes para cerca de 32000

habitantes. Foi sobretudo esta zona “pericentral” onde se verificou o maior

crescimento da actividade industrial e comercial, que atraía mais gente. Fora

dela ficavam os subúrbios que conservavam uma feição rural mas que foram

acompanhando o crescimento da cidade. Mais do que um crescimento

tentacular, o crescimento do Porto resultou do alastramento destes núcleos,

que mantinham uma identidade própria mas que permaneciam ligados à

cidade.

Paranhos, Ramalde, Foz, Campanhã, Lordelo, Aldoar e Nevogilde foram

freguesias que integraram o Concelho do Porto no decurso do século XIX.

Todavia, o desenvolvimento de cada uma delas resultou de circunstâncias

específicas.

A título de exemplo, podemos citar o caso de Campanhã que cresceu graças à

estação de caminho-de-ferro e estruturas hoteleiras conexas, e o caso da Foz

que beneficiou de uma área destinada a banhos de mar e passeios de Verão.

Estes subúrbios, definitivamente “integrados” na cidade em 1895, com a

estrada da Circunvalação, apresentaram um ritmo de crescimento superior a

todas as outras áreas da urbe, na segunda metade do século XIX. Com a

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urbanização dos subúrbios, o Porto abriu uma nova fase da sua história:

nasceu a “aglomeração contemporânea” (GUICHARD, 1992, 161-162).

No entanto, e ainda a respeito destas freguesias, registei alguns casos de

jovens que deram entrada na Oficina, no período em estudo, ainda que em

número menos significativo.

Ainda a respeito da mortalidade, o Porto era alvo de elevadas taxas. Doenças

como o tifo, a varíola e disenterias provocavam 10% dos óbitos, e doenças

como a tísica ou a tuberculose foram responsáveis por mais de 7% dos óbitos,

em 1888. Os meios operários foram os mais atacados. Ricardo Jorge escrevia:

“Vivemos ou antes, morremos a uma tarifa obituária intolerável; e isto num

clima ameno e paradisíaco, num país incomparável, sobre um solo granítico e

acidentado, sob um sol que nos acarinha. Há aqui os vícios da má educação e

da ignorância; há as mais revoltantes práticas de tratar de crianças numa

trucidação perene; há as habitações lôbregas e insalubérrimas onde se

amesendra mais dum terço da população; há o desgaste das moléstias

infecciosas pela licença do contágio; há enfim, uma rede de incapacíssimos

esgotos, rastilhando o solo e a água de imundície ” (JORGE, 1899, 322).

Apesar das advertências do médico municipal, Dr. Ricardo Jorge, a peste

“bubónica” atingiu a cidade do Porto, em 1899. A casa deste médico chegou a

ser apedrejada pelo facto da população ter sentido como uma verdadeira

humilhação, imposta por Lisboa, o cordão sanitário de Agosto que isolou a

cidade nortenha e trouxe graves consequências económicas.

No que respeita à população portuense, devemos realçar uma forte natalidade,

superior à média nacional (31,5 % em 1886/1896).

A propósito da natalidade na cidade do Porto, podemos referir o facto desta

elevada taxa de natalidade ser acompanhada por uma elevada taxa de

mortalidade, características próprias do quadro demográfico do Antigo Regime.

Na nossa pesquisa foram identificados casos de expostos ou de filhos

ilegítimos. Todavia, nem todos os expostos seriam ilegítimos e muitos eram

originários de fora da cidade. Por outro lado, o aumento da ilegitimidade que se

verificou na segunda metade do século XIX, paralelamente ao abandono

gradual da prática de “enjeitamento”, parece ocorrer num novo quadro de

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sexualidade. A ilegitimidade não traduziria o florescer de uma “sexualidade

vagabunda”, mas a “difusão de um modelo de vida familiar em que a formação

precoce do casal nos meios populares precede frequentemente o matrimónio”.6

Entre 1886 e 1897, a propagação de ilegítimos no Porto atinge cerca de um

quarto dos nascimentos (25,2%).

Além disso, existiam clivagens dentro da própria cidade. Em 1893-1897, as

proporções de ilegítimos oscilavam entre 32% em Lordelo e 27% no Bonfim.

Contudo, tais valores estão aquém da realidade por não contemplarem os

nascimentos no Hospital de Santo António (8% do total de nascimentos no

Porto, 80% de ilegítimos).

Por todas estas razões, não nos pareceu relevante abordar a questão da

ilegitimidade como factor determinante do futuro do jovem acolhido na Oficina.

Na realidade, neste trabalho, só consideramos que um jovem é proveniente de

uma família monoparental quando não existe qualquer referência à identidade

do progenitor. Além disso, os dados apurados nos registos de matrícula não

são muito esclarecedores. Mesmo em casos em que o nome do pai e/ou da

mãe não constam, nas observações redigidas pelo padre Sebastião são

evidentes as suspeitas sobre a identidade materna e/ou paterna (filhos de

jovens prostitutas ou de jovens solteiras da alta sociedade, bem como filhos de

homens casados ou de padres).

6 Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira – “O Porto Oitocentista”, História do Porto (dir. Luís A.

de Oliveira Ramos), Porto, Porto Editora, 1994, p.412.

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HABILITAÇÕES

Do total de registos de matrículas, confirmamos o elevado grau de

analfabetismo da época que era de cerca de 82%, mais notório ainda quando

se trata de jovens provenientes de famílias “desestruturadas” ou de jovens

completamente ao abandono.

Na realidade, apenas 18% (89) dos rapazes que deram entrada na Oficina,

durante o período estudado, sabiam ler e escrever e frequentemente com

muitas deficiências.

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OUTROS DADOS PESSOAIS À ENTRADA NA OFICINA

A partir da análise das fichas de registo de matrícula, no que diz respeito a

outros dados pessoais como a 1ª comunhão, crisma, vacinação e proveniência

de outra instituição, podemos chegar às seguintes conclusões:

1ª Não existem indicações de jovens não baptizados, porque na época todos

eram baptizados, mesmo os que eram abandonados à nascença. Neste caso,

o baptismo era feito dentro da primeira instituição que os recolhia (asilo, cadeia

e outras…).

2ª À medida que os sacramentos exigiam maior acompanhamento religioso

diminuía a percentagem dos jovens com a primeira comunhão feita ou com o

crisma. Neste estudo específico 112 (cento e doze) dos rapazes tinham a

primeira comunhão, mas somente 66 possuíam o crisma.

3ª Relativamente à vacinação, 193 (cento e noventa e três) dos registos que

estudamos indicam a vacinação. Tratava-se da vacina contra a varíola e, pelo

que pudemos constatar, esta vacina era ministrada aos jovens recomendados

por personalidades influentes da cidade que já tinham sido objecto de um

tratamento diferenciado (mais protegido) e passou a ser feita com maior

regularidade a partir de 1895.

4ª Do total de registos analisados, 71 (setenta e um) casos dizem respeito a

jovens já internados previamente noutra instituição. A maioria destes casos

(quarenta e cinco) diz respeito a jovens que passaram pelo Seminário dos

Meninos Desamparados.

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COMPORTAMENTO/INSUBORDINAÇÃO/ACTOS CRIMINOSOS

COMPORTAMENTO

OO

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Com base na análise dos três gráficos respeitantes ao comportamento,

insubordinação ou actos criminosos dos rapazes que deram entrada na Oficina

e alicerçando os dados destes gráficos nas notas pessoais que fomos retirando

das observações respeitantes a cada jovem, podemos destacar as seguintes

conclusões do total de registos de matrícula analisados:

1ª Setenta e quatro por cento (74%) não contêm qualquer referência ao

comportamento global e não apresentam indícios de insubordinação ou a

descrição de actos criminosos, razão pela qual os incluímos no grupo dos

jovens de comportamento regular.

A dimensão deste grupo prende-se com o facto de muitos dos jovens admitidos

na Oficina serem provenientes de famílias que se “desagregaram” pelo

adoecimento e/ou falecimento de um ou de ambos os progenitores.

2ª Os dezoito por cento (18%) de jovens com mau comportamento são assim

descritos nas próprias observações ou apresentam indicações da prática de

alguns actos de insubordinação dentro da Oficina, ou a referência a alguns

actos criminosos antes de entrarem para a Oficina ou já lá dentro. A título de

exemplo podemos enumerar os seguintes casos:

Armindo Dias Baptista (registo de matrícula número 20), depois de ter

permanecido dois anos nos “Desamparados”, foi admitido no Asilo de Vilar e

posteriormente na Oficina de São José. Fugiu a 24 de Maio de 1888, tendo

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sido preso em Aveiro a 30 de Maio do mesmo ano. Mestre sapateiro nos

“Órfãos de São Caetano”, já ganhava 13500 reis em 1893. Despediu-se para

se estabelecer, mas teve que pagar uma dívida de 27000 reis até 1902.

Antonio José de Pinho (R.M. Nº68) perdera a mãe que fora deportada para

África por ter assassinado um filho, e na Oficina demonstrou um génio

orgulhoso, altivo e conflituoso. “Sentou praça” em Infantaria 18 onde foi

castigado, sendo impedido de prosseguir a carreira militar.

Custódio Joaquim d’Almeida Santos (R.M. Nº112) demonstrara um génio

insuportável e atrevido, um espírito insubordinado e pouco honesto.

António do Carmo Lobo (R.M. Nº121) fugiu da Oficina em Braga, em 1893.

“Sentou praça” mas saiu como idiota. Preso por vadiagem, foi deportado para

África em 29 de Agosto de 1896.

António Pinto Carneiro (R.M. Nº143) revelava tendência para o furto. O próprio

irmão, mestre alfaiate da Oficina, levou-o para Vila Fernando como gatuno

incorrigível e de maus costumes. Tinha cúmplices como o Alcides, o Bahia, o

Barnabé e o Fernando. Foi expulso da banda por desrespeito ao contramestre

e castigado com repreensão.

Joaquim d’Araújo (R.M. Nº153) rejeitou o castigo que lhe fora aplicado por ter

esbofeteado um colega.

António Napoleão Malheiro (R.M. Nº176), depois de ter estado preso no Aljube,

foi recolhido na Oficina e seguidamente foi colocado na Casa “Araújo e

Sobrinho”, a 26 de Outubro de 1896, como caixeiro, a ganhar 10000 reis por

mês, acabando por ser despedido a 27 de Outubro de 1898.

Francisco Bahia (R.M. Nº219) foi recolhido no Asilo da Mendicidade e esteve

preso na Cadeia da Relação do Porto. Repreendido várias vezes, retirou-se da

Oficina a 31 de Julho de 1900 com a roupa do corpo.

António Ferreira Telles (R.M. Nº235) aparentava ser cândido e submisso mas

revelou mau génio e desonestidade, tendo roubado 5000 reis.

José Maria Porto (R.M. Nº239), triste e pouco expansivo, só depois de se ter

retirado da Oficina se soube de um roubo, que ali fez, de um par de botas.

Julio da Cruz (R.M. Nº241) roubara quantias no valor de 2000 reis.

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João Moreira (R.M. Nº270) foi punido por saídas não autorizadas e abusos de

autoridade como monitor e contramestre da banda.

António Serafim Madeira (R.M. Nº307) praticava roubos na Oficina, inclusive na

caixa de esmolas.

António José dos Santos (R.M. Nº308) esteve preso em Chaves.

Eugénio da Conceição (R.M. Nº312) era conhecido pelas fugas e bebedeiras.

Depois de se ter retirado a 2 de Fevereiro de 1904, foi preso e posteriormente

enviado para Vila Fernando.

Justiniano Pereira d’Almeida (R.M. Nº321) esteve encarcerado vinte e um dias

na cadeia de Vila da Feira.

Jorge Rodrigues da Silva (R.M. Nº322) foi preso três vezes no Calabouço em

Lisboa. Permaneceu quatro anos na Escola Agrícola de Vila Fernando até 2 de

Abril de 1900.

Augusto Roiz (R.M. Nº325) esteve preso três vezes em Ovar.

Francisco d’Assis Lopes (R.M. Nº347) deu entrada na cadeia seis vezes.

Luiz Gomes (R.M. Nº 386) foi preso três vezes.

António Augusto de Oliveira (R.M. Nº386) esteve preso quatro vezes.

José Corrêa (R.M. Nº 399) foi preso oito vezes.

Américo Moreira (R.M. Nº433) esteve preso quatro vezes.

António Candido Ferreira (R.M. Nº 481) foi preso duas vezes.

3ª Os três por cento (3%) de jovens com péssimo comportamento são assim

descritos nas próprias observações, ou apresentam indicações de muitos actos

de insubordinação dentro da Oficina ou referência a muitos actos criminosos

antes de entrarem na Oficina e até já lá dentro. Trata-se de jovens com

“cadastro” na polícia, que já contavam bastantes prisões por vadiagem, furto e,

num caso, por homicídio:

João da Costa (R.M. Nº 48) foi encarcerado três vezes. Todavia, o seu

percurso de vida evidencia uma mudança radical. A 21 de Agosto de 1887 foi

admitido no Asilo de Nova Cintra como mestre sapateiro, ganhando trezentos

reis diários. “Sentou praça” em Infantaria 10 e foi implicado, sem culpa própria,

nos acontecimentos de 31 de Janeiro de 1891. Foi para África e depois de ter

conseguido amnistia, regressou ao reino. Em 1895, casou em Santo Ildefonso.

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António de Sousa (R.M. 181) foi preso por homicídio. Já na Oficina, espetou

uma faca na perna do educando Vieira. Tinha um certo desequilíbrio mental

mas exercia o seu ofício regularmente e tocava cornetim.

Arthur Garcia Malheiro (R.M. Nº207) esteve preso catorze vezes (dez por furto

e quatro por vadiagem). Entrou na Oficina na altura da comunhão dos presos e

saiu à revelia com um fato novo.

João Domingos Manoel (R.M. Nº250) roubou na Casa Lipp 20000 reis. Tinha

má índole e mau feitio. Muito forte, era temido por todos os colegas. Chegou a

agredir o mestre Cunha e o monitor Moreira.

Manoel Victorino Coelho (R.M. Nº261) foi preso por ofensas corporais e julgado

por vadiagem. Saía à noite e era pouco sério com os menores.

Marciano Pinto (R.M. Nº275) esteve preso sete vezes por furto. Depois de ter

sido acolhido pela Oficina, saiu em 1900 e foi preso novamente em 1904.

Ernesto Fernando Rosário (R.M. Nº279), condenado como vadio, esteve em

Vila Fernando e já na Oficina, fugiu duas vezes. Era indolente e desonesto.

António Sérgio (R.M. Nº291) havia estado preso nas Mónicas e roubava a

caixa das esmolas com Serafim Madeira.

Domingos Povoas (R.M. Nº295) havia fugido do Asilo de Vila Real e praticava

furtos. A sua mãe esteve presa na Cadeia da Relação do Porto pela morte de

dois filhos.

José Francisco da Silva, “O refilão” (R.M. Nº298) foi preso nove vezes por furto

e vadiagem e fugiu três vezes da Oficina de São José.

Seraphin Gonçalves Moreira (R.M. Nº316), depois de sair da Oficina, “passou a

vida na cadeia” por furtos.

Ernesto Fernando Rosário (R.M. Nº319) esteve três meses no “Limoeiro”.

Fugiu três vezes da Oficina e acabou preso nas “Carmelitas”. Foi expulso da

Oficina descalço, “…em blusa e em cabelo…”.

João Teixeira (R.M. Nº358) foi preso na Cadeia e no Aljube pelo roubo de 7500

reis. Na Oficina, os seus roubos na caixa de esmolas atingiram os 9000 reis

tendo sido expulso da instituição com a roupa do corpo.

Após a leitura destes exemplos, convém realçar a ideia, já divulgada por alguns

pesquisadores, como Maria José Moutinho, de que esta reincidência de prisões

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se prende com o facto de os jovens serem detidos por um curto período de

tempo em estabelecimentos desadequados à sua faixa etária.

4ª Os quatro por cento (4%) de jovens com bom comportamento são assim

descritos nas observações dos registos de matrícula ou chegamos a essa

conclusão pelo seu percurso de vida após a saída da Oficina.

Foram exemplos de um bom comportamento, os seguintes alunos:

Carlos de São José (R.M. Nº104) tratava-se de um exposto, conforme

podemos verificar pelo apelido de São José. Tornou-se monitor. Adquiriu duas

obrigações de 4% de 22500 reis, uma gratificação de 10000 reis, um relógio e

uma corrente de ouro. Acabou por sair para casar levando um “rico” enxoval.

Joaquim Soares Ribeiro (R.M. Nº120) recebeu um prémio de bom

comportamento (um relógio em prata).

Cypriano Gil dos Santos (R.M. Nº175) revelou uma aptidão excepcional para a

música, pelo que obteve uma pensão anual de 650000 reis para estudar em

Paris durante três anos.

Victorino Gonçalves (R.M. Nº335), depois de ter passado pelo Colégio dos

Órfãos, revelou um carácter tímido mas de boa índole, tendo sido encaminhado

para uma tipografia onde passaria a ganhar 5000 reis, com direito a cama e

roupa lavada (29/11/1905).

Luiz da Silva (R.M. Nº431), depois de ter passado pelo Seminário dos Meninos

Desamparados, recebeu dois prémios de bom comportamento e acabou por

ser colocado como tipógrafo, em Braga, na “Ilustração Católica” (26/05/1914).

5ª Apenas um por cento (1%) dos jovens revelaram um excelente

comportamento, facto transmitido pelo próprio responsável pelos registos de

matrícula, ou constatação bem visível no sucesso profissional e na estabilidade

socioeconómica atingida pelo educando, que também nos é dado a conhecer

pelo percurso de vida “pós-internato”.

A título de exemplo podemos referir:

José Barros Nunes de Lima (R.M. Nº52), tendo revelado uma grande aptidão

para os estudos, foi estudar para o Colégio da Formiga a 15 de Agosto de

1893. Frequentou o Colégio do Espírito Santo em Braga onde concluiu os

estudos preparatórios. Cursou o primeiro ano de Teologia na Universidade de

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Coimbra, em 1896. Concluiu a formatura em Teologia, em 1901. Em 1903 já

era professor do liceu de Castelo Branco, no primeiro grupo.

Joaquim Duarte (R.M. Nº151), mostrando grande vocação para a vida religiosa,

conseguiu entrada na Congregação do Espírito Santo na Formiga. Em 1895

recebeu um prémio de bom comportamento e um bom enxoval. A 15 de

Dezembro de 1897 recebeu o hábito, e a Oficina deu-lhe batina, barrete e

cabeção.

Jorge Monteiro Pinto (R.M. Nº230), depois de ter permanecido três anos nos

“Desamparados”, foi para as missões de Cintra, mas regressou doente à

Formiga. Nomeado monitor, recebeu o prémio d’Assis Brazil no valor de 10000

reis a 20 de Setembro de 1899, e o prémio da Lembrança das Bodas de Prata

do Reverendo Director, no valor de 7000 reis. Comprou uma obrigação de

22500 reis e recebeu um anel de ouro na ida a Moncorvo, a 1901. Em 1903

recebeu um relógio. “Sentou praça” em 11 de Setembro de 1903 tendo

chegado a primeiro-sargento.

Finalmente, alguns alunos conotados como “mal comportados”, acabavam,

depois de vários percalços, por enveredar pelo “caminho do bem”. Exemplo

disso, podemos citar o de Pedro Farrixa (R.M. Nº208) que depois de ter saído

do Aljube, teve um comportamento regular na Oficina de São José e acabou

por tornar-se mestre sapateiro na Oficina de Barcelos (2 de Abril de 1905).

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OFÍCIOS

Finalmente, no que diz respeito aos ofícios, 180 jovens (36%) seguiram o ofício

de sapateiro, 135 jovens (27%) seguiram o ofício de alfaiate, 52 jovens (10%)

seguiram o ofício de marceneiro, 40 jovens seguiram o ofício de encadernador

e 39 jovens seguiram o ofício de tipógrafos (8% respectivamente). Apenas 8

jovens seguiram o ofício de carpinteiro e outros 8 de impressor (2%

respectivamente). Três jovens tornaram-se serralheiros mecânicos (1%), um

jovem tornou-se monitor e outro chegou a “sub-diácono” em França. Quando

os jovens manifestavam graves dificuldades de aprendizagem ou mesmo

indícios de atraso mental (os designados “idiotas”), eram encaminhados para

tarefas simples como serviçais de cozinha (temos dois exemplos). Do total de

498 registos de matrícula, 28 não mencionam o ofício seguido pelo rapaz

acolhido por esta instituição. É de salientar, que são frequentes os casos de

uma curta permanência nesta instituição (esta permanência não chegava à

duração de um ano).

Em suma, podemos concluir que os ofícios com melhor “colocação no mercado

de trabalho da altura” para jovens sem amparo familiar, eram os ofícios de

sapateiro, alfaiate e marceneiro. Também tinham “saída profissional” os

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encadernadores e tipógrafos, tratando-se de ofícios com um certo “prestígio”

social. Além disso, estes ofícios não requeriam uma mão-de-obra muito

qualificada/especializada.

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CAPÍTULO IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Oficina de São José do Porto, na qualidade de Escola de Artes e de Ofícios,

foi fundada no final do século XIX (1880), num contexto social marcado pela

existência de um grande número de jovens ao abandono, que deambulavam

pelas ruas da cidade, praticando furtos e outros actos ilícitos.

Perante a incapacidade do Estado Português em conseguir recuperar

socialmente estes jovens, foi a iniciativa particular, nomeadamente de

organismos de carácter religioso, que procurou colmatar essa lacuna. Foi neste

contexto que nasceu a Oficina de São José, que tal como escreveu o seu

fundador, o padre Sebastião Leite de Vasconcelos, deveria impor-se como um

meio de recuperação de jovens pelo ensino profissional e pela educação moral

e religiosa.

A partir da análise dos estatutos desta instituição, ficamos inteirados da

preocupação do seu fundador relativamente à formação integral dos

educandos que a frequentaram. A sua aprendizagem não se circunscrevia

apenas a um ofício (sapateiro, alfaiate, carpinteiro, encadernador, serralheiro,

marceneiro, torneiro, tipógrafo ou impressor) mas abrangia a área da música.

Além disso, insistia-se na interiorização de regras comportamentais pautadas

por uma forte componente moral e religiosa. A este nível convém destacar a

figura do mestre cuja conduta teria que ser irrepreensível, pois serviria de

modelo aos seus alunos. A obrigatoriedade do internamento bem como a

delimitação das idades de admissão e de saída desses educandos, também

funcionavam como mecanismos de preservação de um “clima” disciplinar

salutar. Nunca é demais sublinhar a prioridade na aceitação de menores com

cadastro e/ou mais vulneráveis à delinquência/criminalidade, no intuito de os

proteger desses males sociais. Nesta linha de pensamento, a instrução, a

assistência e a própria educação religiosa seriam meios primordiais de

prevenção contra percursos marginais.

A Oficina de São José, estreitamente ligada à Diocese e ao Governo Civil do

Porto, beneficiou de um sólido apoio público e particular.

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O seu director, padre Sebastião, foi encarado de forma contraditória pelos seus

contemporâneos. Ora idolatrado por aqueles que respeitavam a sua obra, ora

questionado por aqueles que criticavam o seu “carácter exibicionista”, foi uma

figura polémica de relevo na sociedade oitocentista. Esta controvérsia é

perfeitamente compreensível numa sociedade dominada por um regime político

liberal e prestes a ver implantada a República. Todos sabemos que se tratavam

de contextos políticos marcadamente anticlericais. Apesar das adversidades, a

instituição que Sebastião Leite de Vasconcelos dirigia conseguiu angariar todo

o tipo de donativos particulares e despertou o interesse e reconhecimento da

família real e de outros nomes sonantes da sociedade portuguesa de então.

Nos registos de visitas à Oficina, encontramos rasgados elogios à figura do

reverendo e à sua obra da parte de personalidades que desenvolviam a sua

actividade em países estrangeiros. Torna-se então oportuno salientar, que o

“nascimento” da Oficina de São José na cidade do Porto foi influenciado pela

obra dos Salesianos em Itália, tendo havido contactos entre o padre Sebastião

e São João Bosco. Na mesma linha de pensamento/actuação de D. Bosco, o

fundador desta Oficina valorizou o investimento no ensino profissional em

detrimento do ensino liceal. Escolas gratuitas que proporcionassem aos mais

pobres a preparação para a vida activa, seriam a melhor opção.

A receptividade social a esta Oficina, na cidade do Porto, tornou-se bem

evidente no montante de donativos particulares e públicos com vista ao

pagamento das avultadas despesas ligadas à manutenção desta instituição.

Como já foi referido, esta instituição recebia jovens completamente

abandonados e ainda menores oriundos de famílias paupérrimas e/ou

monoparentais das zonas mais “degradadas” da cidade do Porto. Foi-nos

possível verificar que os jovens de comportamento regular eram provenientes,

na sua maioria, de famílias humildes que haviam sido “desagregadas” pela

doença e/ou morte de um ou de ambos os progenitores. Estes menores

beneficiavam da protecção de personalidades influentes na sociedade

portuense de finais do século XIX, inícios do século XX.

Da análise feita aos respectivos registos de matrícula, podemos concluir que

apesar dos casos de sucesso detectados através das observações feitas pelo

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próprio padre Sebastião, foi notória a incapacidade desta instituição em

regenerar jovens que já tinham um passado de delinquência marcado pela

vadiagem, pelo furto e por prisões sucessivas. No entanto, os “casos de

sucesso” no que respeita à recuperação de menores, constituíram um incentivo

e um argumento para se dar continuidade à função de prevenção/recuperação

de menores em risco. Não podemos deixar de pensar que, se estes jovens não

tivessem sido acolhidos e encaminhados profissionalmente por esta instituição,

teriam caído nas malhas da criminalidade/marginalidade.

Podemos então concluir que prevenção e recuperação são conceitos que

foram sendo problematizados e defendidos pelos observadores do

comportamento dos jovens, desde o século XIX até aos nossos dias.

Este trabalho é o testemunho da necessidade de instituições `não

governamentais, similares à Oficina de São José, aptas a contribuírem para a

protecção dos menores desvalidos.

Sem ter seleccionado uma citação ou uma frase tocante no respeitante ao

objecto do meu estudo, considerei oportuno terminar esta minha pesquisa com

a transcrição da letra do hino da Oficina de São José, letra essa destinada a

ser acompanhada por música tocada ao piano e que foi uma oferta de Costa

Mesquita aos jovens da Oficina de São José, Escola de Artes e Ofícios.

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Guarda e Mestre da nossa Oficina,

Salve, salve, bendito José,

Teu exemplo real nos ensina,

A seguir no trabalho com fé.

O trabalho pró Céu tem valia,

Não há dita nem honra maior,

Desde quando a Jesus e Maria,

Sustentou dum artista o suor.

Não erguemos pregões odientos,

Não sonhamos falaz redenção,

Nossa indústria com seus instrumentos,

Ergue um hino ao trabalho cristão.

Há quem olhe o trabalho a um prisma,

Que uma escola falseada lhe dá,

Nós não vamos buscar ao sofisma,

Soluções que no mundo não há.

Oferta de Costa Mesquita

aos artistas da Oficina de S. José.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES

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Legislação

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L. De 3/4/1896 – Vadiagem e mendicidade.

Arquivo da Oficina de São José do Porto

Livro de Registo de Matrículas (1883-1933).

Livro de Legados.

Arquivo Distrital do Porto (Fundo do Governo Civil)

Estatutos da Oficina de 08 de Setembro de 1887- Padre Sebastião Leite de

Vasconcelos.

Estatutos da Oficina de 08 de Maio de 1908 - Padre Sebastião Leite de

Vasconcelos.

Memória sobre a Oficina de São José, 30 de Outubro de 1887 - Padre

Sebastião Leite de Vasconcelos.

Documentação avulsa - Padre Sebastião Leite de Vasconcelos.

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Licença de construção do actual edifício da Oficina de São José do Porto (Rua

Alexandre Herculano) de 14 de Março de 1889.

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Alçado/frente do projecto de edificação da Oficina de São José do Porto (Rua

Alexandre Herculano) de 1889.

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