UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO … · José Roberto de Paiva Gomes ... O pesquisador...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE
Práticas Religiosas No
Mediterrâneo Antigo
Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ
2011
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
2
Copyright©2011: todos os direitos desta edição estão reservados ao Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Capa: Junio César Rodrigues Diagramação: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpção Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USA Catalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black Figure Shape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic
Editoração eletrônica: Equipe NEA www.nea.uerj.br
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA
Ficha eletrônica P912 CANDIDO, Maria Regina; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa (Orgs.). Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2011. 252 p. ISBN: 1. Mediterrâneo, Mar, Região - Religião. 2. Religião. I. Cândido, Maria Regina. II. Campos, Carlos Eduardo da Costa.
CDU 931(262)
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extensão e cultura: Nádia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Ciências Humanas José Augusto Souza Rodrigues Departamento de História André Luiz Vieira de Campos Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UERJ) Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Claudia Beltrão da Rosa Deivid Valério Gaia José Roberto de Paiva Gomes Maria do Carmo Parente Santos Maria Regina Candido Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Ana Carolina Caldeira Alonso Carlos Eduardo da Costa Campos Junio César Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpção Tricia Magalhães Carnevale Pedro Vieira da Silva Peixoto
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Sumário
7 Apresentação
Maria Regina Candido
10 Prefácio
Vicente Dobroruka
13 A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a Traição
Alex Degan
31 O cuidado para com os pobres no Cristianismo Primitivo –
Reflexões a partir de João Crisóstomo
Carlos Caldas
48 Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de Plauto
Claudia Beltrão da Rosa
58 Homero: magia e encantamento da palavra poética
Flávia Maria Schelee Eyler
69 A cristianização do Império Romano: Algumas considerações de
caráter historiográfico
Gilvan Ventura da Silva
87 Identidade e Memória no Cristianismo Sírio-Palestino: o’amen
nos ditos de Jesus de Nazaré
João Batista Ribeiro dos Santos
101 A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos
João Oliveira Ramos Neto
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117 Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo(1540-400 a.C.) Margaret M. Bakos 135 Mito y sentido en Hesíodo: Las formas de habitar el mundo Maria Cecilia Colombani
147 A Rainha de Sabá e o Cristianismo da Etiópia
Maria da Conceição Silveira
160 Muçulmanos e Cristãos: uma construção da alteridade dos fiéis
das duas crenças
Maria do Carmo Parente Santos
174 Santidade Feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de Poitiers
Miriam Lourdes Impellizieri Silva
190 O Culto Imperial como “Transcrito Público”
Norma Musco Mendes
210 “Pondo o Lixo Pra Fora” da relação entre exclusão de grupos
sócio-religiosos e interdição literaria na tradição judaico-cristã – João,
Judas e Lutero
Osvaldo Luiz Ribeiro
222 Considerações Sobre a Religiosidade Grega
Pedro Paulo Abreu Funari
235 Um manuscrito pseudo-Zoroástrico e o papel do Salvador no
Cristianismo Primitivo Oriental
Vicente Carlos Dobroruka
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
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Apresentação
Maria Regina Candido
Ao apresentar uma publicação com um tema amplo como a
Religião no Mediterrâneo Antigo, estamos trazendo ao debate as várias
faces do sagrado na qual podemos construir uma relação interpretativa
entre a natureza transcendente do ser humano diante da religião e
como ele traduz a sua materialidade. A manifestação do sagrado
contribui para uma nova semântica de relações no qual o homem
religioso imprime ao mundo sensível uma descontinuidade, que
reclassifica qualitativamente os objetos, sacraliza o mundo e atribui um
significado ao espaço sagrado em oposição ao cotidiano do mundo
profano.
Por outro lado, não podemos esquecer da dinâmica do século
XIX para os estudos da religião. Tal período perpassou pela
revitalização dos textos clássicos, assim como vivenciou
acentuadamente as novas descobertas arqueológicos. No meio
acadêmico, o resultado emergiu com a institucionalização da disciplina
da Ciências da Religião que fomentou a criação da cátedra
universitária História das Religiões promovendo a realização de teses,
congressos e publicações.
A identificação da temática da religião como objeto de estudo
torna-se interessante para nós pesquisadores das práticas mágico-
religiosas na Antiguidade ao redor do Mediterrâneo. O fato se deve a
ampliação da complexidade do ambiente religioso no Mundo Antigo
assim como na Modernidade que pode ser lida de modos diferentes,
antagônicos e complementares. Alex Degan investiga o judaísmo
tardio e o cristianismo primitivo e os métodos de governança romana
na Palestina. Carlos Caldas atualiza o tema ao trazer o personagem de
João Crisóstomos e a relação da igreja cristã com os pobres
considerados explorados e oprimidos. A pesquisadora Cláudia Beltrão
analisa o teatro romano como reflexo da centralidade da vida religiosa
dos romanos. A abordagem religiosa nos remete as práticas mágicas
cuja fronteira nem sempre é visível para separar o sagrado do profano
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como aponta Flavia Maria Schlee Eyler. Gilvan Ventura da Silva
analisa a expansão e fortalecimento das comunidades cristãs no
decorrer do século IV no epicentro dos núcleos urbanos do orbis
romanorum.
Junto a os aspectos da vida religiosa no cotidiano, João Batista
Ribeiro Santos analisa a tradição talmudica e João Oliveira Ramos
Neto traz a reflexão sobrea vida dos primeiros cristãos no cotidiano
dos habitantes da Palestina nos dois primeiro séculos da era comum.
Retrocedendo no tempo, Margaret M. Bakos busca indícios da escrita
antiga impressa no bastão mágico usado no culto no Egito Antigo,
enquanto que Maria Cecilia Colombani busca identificar certa
funcionalidade dos deuses e heróis visando tornar inteligível a lógica
da narrativa mítica. O tema sobre a narrativa mítica perpassa também
pela abordagem de Maria da Conceição Silveira ao analisar o mito da
Rainha de sabá e o Cristianismo na região da Etiopia. A religiosidade
do islamismo em embate com o cristianismo, tão ativa no tempo
presente, transita pelo tema da pesquisadora Maria do Carmo Parente.
Enquanto a Antiguidade Tardia e a emergencia de novos modelos de
santidade e mártires revelam as mudanças ocorridas na percepção
religiosa dos cristãos de acordo com a perspectiva de Miriam Lourdes
Impellizieri Silva. O Culto Imperial como Transcrito Publico, segundo
Norma Musco Mendes que analisa a institucionalização do sistema
imperial romano de acordo com a documentação textual, epigrafia e
arqueológica no final do periodo republicano expõe a fragil infra
estrutura demarcada pelos caóticos expedientes administrativo.
A tradição judaico-cristã foi constituída por múltiplas
representações socio-religiosa, segundo Osvaldo Luiz Ribeiro, fossem
todas as harmônicas e homogenias tenderiam a uma fusão pacifica,
porem , não foi o que ocorreu, fato explicado pelo autor em seu texto.
Ainda mantendo o interesse na esfera do religioso, Pedro Paulo de
Abreu Funari analisa as considerações sobre a religiosidade gregas ao
constatar que os gregos nunca foram muito unidos, falavam e viviam
em diferentes regimes politicos e sociais e variadas eram as suas
origens étnicas, mesmo assim continual a inspirar as gerações
posteriores causando espanto e admiração ao qual cabe ao autor
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analisar. O pesquisador Vicente Dobroruka discute a formação do
cristianismo primitiva em relação à refeição sagrada e o culto de Mitra.
Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido
Prof.ª Associada de História Antiga da UERJ
Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade
& do Lato Sensu de História Antiga e Medieval da UERJ
Coordenadora de Mestrado do PPGH/UERJ
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Prefácio
Vicente Carlos Dobroruka
Prefaciar um livro que trata de ―práticas religiosas no
Mediterrâneo antigo‖ seria algo fácil de fazer-se no Brasil de algumas
décadas atrás? O tema era por si mesmo bizarro, os estudiosos, poucos
e o acesso à informação inexistente. Ou se tinha dinheiro e acesso às
bibliotecas estrangeiras (ou alternativamente, podia-se pagar o infame
―dólar livro‖ e encomendar, por vezes com demora de anos, um livro
numa das grandes livrarias de Rio ou São Paulo), ou o estudioso com
freqüência mudava de área. Ouvi de mais de um colega de graduação
que ele iria estudar ―história do Brasil‖ (um rótulo tão anódino quanto
―História Antiga‖, diga-se de passagem por nada dizer acerca do tema
estudado – pelo fato de que ―há fontes à vontade‖.
Os menos cultos alegavam - falaciosamente - que ―não era
necessário saber outra língua além do português‖.
Diante de tamanho fracasso, o quadro atual é algo de que
devemos nos orgulhar. Em aproximadamente duas décadas saíamos da
virtual inoperância na área de estudos de religião no mundo antigo,
como estamos aos poucos nos aventurando em terrenos pouco
mapeados, mesmo por estudiosos de renome internacional.
Obviamente, parte desse sucesso, espelhado nesta compilação que traz
a marca da excelência dos trabalhos realizados pelo Núcleo de
Estudos da Antigüidade - NEA da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), deve-se a fatores externos inimagináveis há duas
décadas: o fim da inflação, a invenção da Internet, a "versão 2.0" da
mesma, que nos coloca em contato com os grandes nomes de qualquer
campo de pesquisa "em tempo real", a moeda brasileira forte, os
programas de incentivo à pesquisa.
Mas todos esses recursos, técnicos por natureza, de nada
serviriam se não existissem pesquisadores dispostos ao esforço
intelectual num campo tão escorregadio, tão cinzento e tão cheio de
oportunidades quanto o do estudo das práticas religiosas no mundo
mediterrânico da Antigüidade. Nesse sentido, o esforço mental de um
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Reitzenstein ou de um Nöldeke é comparável ao nosso - sua
genialidade sobressai-se, em parte, pelas limitações que
acompanhavam os trabalhos de sua época, contrapostos às
supracitadas facilidades de que dispomos.
Muito do avanço no estudo científico no estudo da religiosidade
desse período deve-se à curiosidade despertada pela religiosidade do
mundo helenístico em geral; com a admissão franca do judaísmo de
Jesus (algo relativamente recente), o público leitos viu-se às voltas
com um dado novo e "surpreendente": não apenas Jesus era judeu,
mas em seu tempo teve concorrentes, com propostas e práticas
distintos também.
O que uma coletânea como esta nos lembra é a extrema
variedade e, por vezes, superposição dessas práticas. E nos lembra
também que, embora durante a vida de Jesus como hoje o essencial da
vida espiritual de cada homem consistisse na oração (de petição, de
promessa, de agradecimento ou mesmo de maldição), os textos nos
quais essas tradições espirituais se apoiavam variavam enormemente.
O uso de figuras sagradas parecia mesmo confundir-se entre diversos
grupos, e o mesmo pode ser dito de seus textos: com freqüência nos
deparamos diante de uma profecia, oração ou apocalipse que poderia
igualmente ser judeu, cristão ou pagão.
Ou ainda poderia ser tudo isso simultaneamente - quando
Momigliano lançou a idéia de um "banco de dados" temático
espalhado pelo Mediterrâneo após o séc.V ou VI a.C., referia-se não
apenas a temas que apareciam um pouco por todo o lado como
também a personagens que, se não eram os mesmos, dividiam muitas
características comuns e, portanto, eram facilmente assimiláveis por
seus adeptos. Pensemos em Jesus, Asclépio, Apolônio de Tyana e,
mais tardiamente, Zoroastro, Ostanes e Apolo.
O esforço representado pelos textos que compõem esta
coletânea é tanto mais notável pelo fato de servirem-se com
freqüência de bibliografia e fontes primárias compartilhadas com os
melhores estudiosos de países com mais tradição. Sejamos justos: o
resultado não é ainda comparável ao obtido por instituições com
muitos séculos a mais de tradição acadêmica. Todavia, é de se
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enfatizar aqui o "ainda não" - a prosseguirmos nessa autêntica
sementeira de talentos, orientações e publicações, em breve teremos
avançado não apenas em função de nosso próprio atraso, mas em
poucas gerações estaremos, como comunidade acadêmica e não
apenas como indivíduos isolados, dialogando com estudiosos e
instituições com muito mais tradição.
Levamos uma vantagem inicial, é verdade - e isso fica também
exemplificado nesta coletânea: pela ausência de quadros altamente
especializados, temos de cobrir uma vastidão de campos de interesse e
investigação inconcebíveis para um acadêmico inglês, alemão ou
norte-americano. Damos aulas que, numa manhã, pulam de Flávio
Josefo à magia ateniense, e do mercenarismo grego à confecção da
Teogonia. Vejam bem leitores, estou falando desse tipo de proeza
didática realizada não pelo aluno, mas pelo professor: aqui, tivemos
de fazer da necessidade, virtude.
Um dos aspectos positivos dessa limitação é que os autores dos
textos desta coletânea foram forçados, creio que sem exceções, a
travar contato com uma multiplicidade de tradições menos por
interesse do que por urgência. E dessa urgência surgiu o gosto, e do
gosto, o aprendizado dos modos de estudar e entender essas facetas do
passado.
Este livro parece-me, portanto, um balanço de estado atual das
pesquisas sobre religiosidade no mundo antigo no Brasil; não é o
único, é verdade, mas pela diversidade de temas, ele oferece ao leitor
um diálogo não apenas entre temas distintos, mas também entre
abordagens diferentes. E involuntariamente, presta homenagem ao
grande melting-pot étnico-religioso-político que foi o mundo legado
por Alexandre aos pósteros.
Prof. Dr.Vicente Dobroruka
Professor de História Antiga da UnB
Professor Visitante em Clare Hall, Cambridge
Membro do Ancient India and Iran Trust, Cambridge
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A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a
Traição
Alex Degan1
Nascido no primeiro ano do reinado de Calígula2, filho de
aristocratas de Jerusalém (Vita, 1-5) e sacerdote fariseu, Flávio Josefo
situa-se em uma categoria de personagens polêmicos, seja por sua
atribulada vida, seja por seus impressionantes livros3, ou por sua
existência posterior dentro da tradição literária clássica. Ao investigar
suas obras é empreitada difícil deixar de se envolver com suas
controvérsias. Fonte importante para estudos que investigam o
Judaísmo Tardio, o Cristianismo Primitivo e os métodos de
governança romanos na Palestina, este estudo objetiva refletir sobre
seu papel sócio-político dentro da sociedade judaica hierosolimitana,
procurando responder a seguinte pergunta: quais eram suas relações
políticas e sociais na eclosão da revolta, na condução dela e no trato
desastroso com Roma, terminando com a capitulação judaica e a
destruição de Jerusalém?
1 Professor Assistente do Departamento de História da Universidade Federal
do Triângulo Mineiro (UFTM), doutorando em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de Estudos
Sobre o Império Romano (LEIR). E-mail: [email protected] 2 Entre os anos 37 e 38, (Vita, 5).
3 A obra de Josefo, preservada com cuidado desde o início por intelectuais
cristãos, é composta por quatro livros: Bellum Judaicum (dividido em sete
livros que tratam desde a consolidação da dinastia asmonéia, até a conquista
de Massada, escrito entre os anos 75 e 79), Antiquitates Judaicae (narrativa
da história judaica, desde a criação do mundo até o início da revolta de 66,
composta de vinte livros e redigida entre os anos 94 e 99), Vita (único livro,
provavelmente um anexo incorporado a uma edição de Antiquitates, escrito
entre 94 e 100) e Contra Apionem (tratado apologético organizado em dois
livros que se preocupa em demonstrar a nobreza e antiguidade da história
judaica, polemizando especialmente com escritos gregos, sendo redigido
entre 94 e 100).
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Antes de analisarmos a aristocracia que Josefo pertencia,
devemos dedicar atenção ao seu universo: a Judéia. É preciso ressaltar
que a Palestina romana, região atrelada à província da Síria e lar
nacional dos judeus, não se destacava comosendo uma grande
áreaeconômica no Império (SARTRE, 1994: 383). Em relação aos
judeus, provavelmente eles eram tratados como mais uma das muitas
etnias que compunham o arranjo imperial, sem merecer uma atenção
especial na política romana. Se pudermos atribuir alguma
especificidade a Judéia, isto se justificava por sua posição fronteiriça
entre os partos e pela relação que Jerusalém mantinha com imensa
comunidade judaica da diáspora4. Estavam os judeus espalhados por
grande parte dabacia mediterrânea, principalmente em grandes
cidades como Roma5 e Alexandria
6, como também formavam
comunidades no Império Parta. Apesar das fontes registrarem
problemas localizados e temporários entre judeus e gentios na
diáspora até a eclosão da grande revolta de 66 - 707era evidente que a
relação exclusiva do povo judeu com YHWH, a observância doshabat,
o cumprimento da dieta judaica e a prática da
circuncisãodemonstravam que o particularismo não poderia ser
ignorado(GOODMAN, 1994: 106), não necessariamente estruturando
um problema de convivência.
4 Sobre a diáspora, consultar: GRUEN, 2002.
5 Martin Goodman (1994 A, p. 328) observa a existência de 11 ou mais
sinagogas em Roma durante o século I a.e.c. 6 Ellen Birnbaum (2004: 114) entende que os gregos de Alexandria
condenavam o comportamento passivo dos judeus frente ao comando romano
da cidade, o que produzia muitos conflitos e ressentimentos entre as duas
comunidades. 7 Sobre a relação dos romanos com a religião judaica, concordamos com o
que diz Maurice Sartre (1994: 392): ―Es abusivo hablar con respecto al
judaísmo de una religio licita, noción jurídica desconocida por los romanos,
pero en función de su respeto de los derechos locales de todos los peregrinos
del Imperio, se reconoce la Torah como la ley de los judíos, incluidos sus
aspectos religiosos‖.
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O Império Romano, composto por sociedades distintas8, se
apoiava em algumas estruturas unificantes, como o imperador, a
cidade e os exércitos. Em relação aos assuntos cotidianos, o poder
romano encontrava-se ligado aos aparatos das políticas local e
regional, tendo a cidade como unidade básica de organização. De fato,
as cidades eram os centros primários de poder, e não Roma (PRICE,
2004: 54). Foi nas cidades que a política romana procurou fazer sentir
sua presença, cooptando suas classes dirigentes e buscando encontrar
nesse centro de organização instituições unificadoras para estabelecer
sistemas coletores de impostos, mantenedores da ordem pública9 e de
culto ao imperador10
. Na Palestina judaica a maior e mais honrada
estrutura nacional era o Templo de Jerusalém (HORSLEY, 2000: 17),
local no qual se nutriam as ramificações do poder na antiga Palestina
judaica e de sua aristocracia religiosa sacerdotal que acabava
assumindo também as direções de classe dirigente civil (VIDAL-
NAQUET, 1996: 33). Flávio Josefo, como muito se orgulhava (Vita,
1, 1-6), pertencia a esta elite sacerdotal, descendente da casa real
asmonéia e da tribo sacerdotal de Levi11
. Yosef benMattitiahou ha
8―Como todos os impérios os impérios, o império romano não era uma
„sociedade‟ unitária, mas uma combinação de muitas „sociedades‟ [...].
Historicamente, qualquer grau apreciável de integração foi alcançado
unicamente por meio do exercício de várias espécies de poder‖ (HORSLEY,
2000: 17). 9Garnsey e Saller observam que os objetivos básicos deste método de
governança construído por Roma e elites regionais eram dois: manter a
ordem e arrecadar impostos. GARNSEY; SALLER, 1991: 32. 10
Sobre o culto ao imperador na parte oriental do Império do século I:
PRICE, 2004: 53-76. 11
Sobre o lugar da elite sacerdotal na Palestina romana: ―O sacerdote era
alguém separado para servir exclusivamente à sua vocação, tendo sua
existência inteira comprometida com uma total entrega a Deus‖
(PEDREIRA, 2002: 271); ―Os próprios sacerdotes, ou cohanim, pertencem à
tribo de Levi. Esta não recebeu territórios nos tempos bíblicos, pois cabe-lhe
uma missão mais elevada: a de guardar a Aliança. Dessa tribo provêm, em
especial, Aarão e Moisés, filhos de Amram, mas somente a descendência de
Aarão, o irmão mais velho, é tida por fornecedora dos grandes sacerdotes
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Cohen, antes da adoção pelos Flávios o renomear
comoTitusFlaviusJosephus12
, era um sacerdote fariseu13
e, dando
crédito aos seus textos, figura importante na sociedade de Jerusalém
antes da revolta. Para Per Bilde14
, TessaRajak15
e David M. Rhoads16
é
sob este ponto que devemos ler e interpretar as descrições que Josefo
faz da guerra, do Judaísmo e dos rebeldes: para estes autores, a elite
sacerdotal a que Josefo pertencia estaria não só em desacordo com os
grupos de revoltosos, mas também procuravam se opor a eles em um
projeto nacional (RHOADS, 1976: 05). Bilde afirma que Josefo e seus
pares formariam uma espécie de ―partido moderado‖, tentando
equilibrar as tensões entre judeus e autoridades romanas, atuando
como um grupo político que lutou por esvaziar o descontentamento
„ungidos pelo Senhor‟ e pode usar o título de Cohen‖ (HADAS-LEBEL,
1991: 19). 12
Hadas-Lebel (1991: 11) explica que, ―Josefo é o prenome bíblico que o pai,
Matias, lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez
dele um cidadão romano, esse prenome „bárbaro‟ tornou-se um cognomen
associado ao nome de família do benfeitor que o libertou após tê-lo
aprisionado, o nome da gens Flávia‖. 13
Sobre Josefo com um fariseu na juventude, consultar: RAJAK, 1983: 11-
45. 14
Para Bilde (1988: 179): ―Josephus was of an aristocratic, priestly and
noble family. He had been well educated […]. Moreover, he was wealthy
throughout his life. Thus, Josephus was deeply rooted in the Palestinian-
Jewish and Jerusalem upper-class, and later it appears that in the Diaspora
and in Rome, he seems to have established himself in a similar position‖. 15
Para Tessa Rajak (1983: 79):―The various strands of Josephus‟
interpretation of the revolt fall into place, and make sense, when the simple
point is understood that his opinions are, as is quite natural, the product of
his position within Palestinian society, and that they are those of a partisan
on one of the two sides in a violent civil conflict‖. 16
Para David Rhoads (1976: 5): ―Josephus‟ heritage thus identifies him the
priestly ruling class of Israel, the class which cooperated most directly with
the Romans and which had the most to lose by a war white Rome‖.
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popular de seu conteúdo revolucionário, tentando ganhar tempo17
,
dominando os fanáticos, preservando a amizade com Agripa II e
esperando uma ação romana para abrir novas negociações.
Provavelmente o desaparecimento da ordem romana também
significaria uma séria ameaça a esta classe dirigente.
Ainda centrada na classe dirigente a qual Josefo pertencia,
Martin Goodman oferece uma interpretação interessante. Para
Goodman a elite dirigente mantinha profundas oposições em relação
aos grupos rebeldes (GOODMAN, 1994: 26), na maioria compostos
por judeus camponeses (GOODMAN, 1994: 84), distantes do
cotidiano dos ofícios do Templo e da cidade18
. Josefo não esconde as
diferenças entre o judeu que ele é e os galileus e idumeus, ressaltando
as especificidades destes grupos em suas relações com o Judaísmo19
.
Entretanto, Goodman afirma que esta elite sacerdotal do Templo não
se opôs ao conflito aberto contra Roma porque também o desejava.
Para ele, ―a revolta foi, assim, desde o início conduzida pela classe
dirigente, numa tentativa desesperada de manter sua importância na
sociedade judaica depois que o apoio romano, em que haviam
anteriormente confiado, foi retirado‖ (GOODMAN, 1994: 173). De
fato, como nos mostra Richard A. Horsley, a centralidade do Templo
e de suas estruturas de poder nunca foram totalmente aceitos por todos
os judeus20
, e os romanos, na tentativa de assentar sua influência na
17
―He tried to control the rebellious forces, to subdue the religious fanatics,
to retain the relationship to King Agripa II and thus to the Romans, to
maintain control of the entire province and, by and large, to wait and see,
hoping that a possibility of negotiation might turn up‖ (BILDE, 1988: 179). 18
Sobre a relação entre banditismo social e meio rural na Palestina romana
do século I: HORSLEY; HANSON, 1995: 57-88. 19
Richard Horsley(2000: 19) observa que, ―embora em algumas passagens
Josefo se refira aos hoiioudaioi de modo um tanto indefinido, em geral ele é
bastante preciso com relação aos galileus ou aos idumeus em situações em
que seus intérpretes substituem por judeus‖. 20
―O Templo, porém, foi sempre uma instituição contestada e negociada,
quer no tempo de Salomão (construído com o emprego de trabalho forçado
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aristocracia nativa, aceleraram seu descrédito frente ao frágil corpo
social da Palestina judaica. Com o fracasso do modelo de dinastia
helenística após a morte de Herodes, os romanos incorporaram a
região ao plano administrativo direto da província da Síria21
, assistida
por um procurador ou prefeito22
, buscando ajuda no cargo de Sumo
contra o qual quase todas as tribos finalmente se revoltaram; 1Rs 5:12), na
época de sua reconstrução nas últimas décadas do século VI e sob o
patrocínio do Império Persa (Ageu, Malaquias, Isaías 56-66, Esdras,
Neemias), na crise do fim do século III / início do século II a.C. (1 Henoc 92-
104; Reforma Helenizadora, Rebelião Macabaica, comunidade de Qumrã /
Manuscritos do Mar Morto), na reconstrução imponente do Templo em estilo
romano-helenístico empreendida por Herodes ou na grande revolta de 66-
70. Instituições como a do Templo de Jerusalém eram resultados
contestados, negociados, de compromisso continuado, assumido por um
povo imperialmente dominado‖ (HORSLEY, 2000: 17-18). 21
―Siria, engrandecida con Cilicia Llana, sólo ocupa de hecho el Norte y
Centro de la gran Siria (en sentido antiguo), puesto que en el sur están los
reinos de Judea (Palestina) y Nabatea (Transjordania). Ella misma está
conformada por una constelación de microestados que ocupan su territorio.
El gobernador, que reside en Antioquia, gobierna de hecho sobre la Siria de
las ciudades. Como provincia fronteriza limita con el territorio de los partos,
lo que explica la presencia de tres o cuatro legiones en su territorio. Augusto
conserva el mando de la provincia para sí mismo y nombra a un legado de
rango consular. Siria permanece ininterrumpidamente como uno de los más
importantes gobiernos provinciales‖ (SARTRE, 1994: 21). 22
Sobre a dúvida se a Judéia romana após o ano 6 era administrada por um
procurador ou prefeito: SARTRE, M., 1994: 388. ―Siguiendo a Flavio Josefo
y los escritos intertestamentarios, se creyó durante mucho tiempo que Judea
formó una provincia autónoma confina a un procurador desde ese momento.
Una inscripción encontrada en Cesarea en 1969 prueba que Poncio Pilato
llevaba el título de praefectus. En realidad Judea estuvo, pues, anexionada a
Siria – cosa probada suficientemente por las múltiples intervenciones de los
gobernadores de Siria en Judea hasta la revuelta del 66 y por lo que Josefo
declara explícitamente, pero un prefecto al mando de las tropas
representaba al gobernador; el mismo hombre estaba también, sin duda,
encargado de las finanzas de la región, al menos de la gestión de los
dominios imperiales, y actuaba entonces como procurador‖ (SARTRE,
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19
Sacerdote23
. Este antigo cargo, em acentuado desprestígio desde 37
a.e.c., abalado pela ação centralizadora de Herodes, só seduzia ainda
membros da própria classe sacerdotal. O Evangelho de João registrou
este desgaste do sumo sacerdócio frente ao povo judeu em duas
oportunidades24
, sugerindo que o ofício no cargo era anual. Não era,
como demonstra Goodman (1994: 118), mas as rápidas mudanças,
devido aos jogos de poder entre Herodes e, posteriormente, romanos e
famílias sacerdotais, mimaram definitivamente a importância do cargo
aos olhos dos judeus simples (GOODMAN, 1994: 118).
Concordamos com Goodman em sua análisedo quadro de
alienação política da elite dirigente judaica, falida e sem capital moral
para comandar a Judéia25
, mas não temos muita certeza quanto a sua
participação decisiva na eclosão e condução da revolta. Mesmo
quando Goodman argumenta que a razão da excessiva punição
1994: 388);―Cette inscription découverte à Césarée […] porte le nom de
Ponce Pilate et indique son tigre officiel, préfet de Judée. Après le bref
intermède du règne d‟Agrippa, les gouverneurs de Judée prennent le titre de
procurateur ‖ (HADAS-LEBEL, 1997 : 94). 23
Concordamos com a precisa observação de Martin Goodman (1994: 116):
―A Judéia havia sido governada durante quase um século e meio por
monarcas de molde helenístico. Quando as instituições da monarquia
desapareceram naturalmente com a destituição de Arquelau, os romanos
procuraram instituições nativas alternativas para substituí-las. Foram
atraídos a promover o sumo sacerdócio à liderança da nação apenas por
aquela posição ser não só antiga como também venerada pelos judeus‖. 24
―Mas um deles, chamado Caifás, que era o pontífice daquele ano, disse-
lhe: Vos não sabeis nada‖ (Jo – 11:49). ―Primeiramente levaram-no à casa
de Anãs, por ser sogro de Caifás, que era o pontífice daquele ano‖ (Jo –
18:13). 25
―Eles (o povo judeu) não confiavam nas representações dos seus pretensos
líderes. Se toda a classe dirigente de fato conseguiu, com Josefo, iludir-se de
que seus membros eram a elite judaica natural, foram eles então a única
porção da sociedade a ter essa ilusão. Outros judeus não sentiam tal
confiança no direito da classe dirigente de governar‖ (GOODMAN, 1994:
57).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
20
romana estaria ligada a elevada participaçãoda elite de Jerusalém na
revolta (GOODMAN, 1994: 238-239), acreditamos que a causa disto
estaria no fato de que uma nova dinastia de imperadores, os Flavianos,
necessitava de uma gloriosa conquista, com um triunfo grandioso,
para consolidar e legitimar seu poder. Preferimos a análise de
TessaRajak que relacionou o desgaste e racha entre dirigentes judeus e
romanos como um fruto das vacilações e inabilidades de sucessivos
governantes latinos na administração da região, como também sendo
gerada pelas disputas políticas locais e pela incapacidade da elite
hierosolimitana em lidar com os complexos problemas que a Judéia da
segunda metade do século I se encontrava26
. Há uma clara falta de
identificação entre as classes sociais (RAJAK, 1983: 85) e um surto
de banditismo rural que nos revela a desintegração que a tradicional
sociedade camponesa da Palestina sofreu27
. Rajak (1983: 123-124) e
Goodman (1994: 61-64) apontam períodos de secas e de aguda crise
econômica na década de 60 e.c. Fica evidente a inabilidade da classe
dirigente em administrar a região, com suas instituições
constantemente vistas como injustas e intoleráveis (HORSLEY;
HANSON, 1995: 58), sem indícios de um sincero engajamento em um
levante popular contra o domínio romano. Como os romanos
tradicionalmente viam as elites como as portadoras de riqueza
26
Para Rajak (1983: 78): ―a rift between Jews and Romans had been opened
by bad governors and was widened by various criminal or reckless types
among the Jews themselves, for their own ends, or out of their own madness
[…]. The inactivity of the established leadership made this possible‖. 27
Segundo Horsley e Hanson (1995: 57-58):―o banditismo social surge em
sociedades agrárias tradicionais, em que os camponeses são explorados por
governos e proprietários de terras, particularmente em situações nas quais
os camponeses são economicamente vulneráveis e os governos
administrativamente ineficientes. Esse banditismo pode aumentar em épocas
de crise econômica, incitado pela fome ou elevada tributação, por exemplo,
bem como em períodos de desintegração social, talvez resultante da
imposição de um novo sistema político ou econômico-social [...]. O contexto
econômico-social do antigo banditismo judeu apresentava exatamente essas
condições‖.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
21
fundiária (GOODMAN, 1994: 131), e tampouco tinham sensibilidade
para entender estruturas sociais distintas da sua28
, esta insistência
romana em apoiar a elite judaica, seja pela descendência sacerdotal
desgastada, ou pela riqueza agrária, só fez piorar a situação. Os
publicanos29
, preferidos pelos romanos como mandatários locais, eram
sumariamente desprezados pelos judeus30
. Mesmo o evergetismo,
traço fundamental da política romana31
, parece que nunca seduziu por
completo os judeus da Palestina: Herodes atraia muito mais a
admiração grega por suas obras do que a judaica32
. Em resumo, esta
elite nacional judaica, que Josefo representava ativamente, padecia de
uma ilusão se sentindo como inquestionável. Roma também,
assentando seu poder nestes clientes judeus33
, ignorava
completamente a situação complexa da Judéia do século I. Yosef
28
―O governo romano era culposamente ignorante a respeito das estruturas
sociais dos povos submetidos no império. Essa ignorância era profunda e
entranhada em todo o arcabouço mental romano através do qual eles
compreendiam outras nações‖ (GOODMAN, 1994: 247). 29
―Em outras províncias do Império Romano os homens ricos que
arrecadavam os impostos estatais estavam entre os membros mais
respeitados da sociedade. Chegando à atenção de governadores romanos
através de tais serviços, eram eles justamente a espécie de homens que se
tornavam procuradores do imperador e cujos descendentes eventuais
ascendiam à classe dirigente romana‖ (GOODMAN, 1994: 137). 30
O assombro, registrado no Evangelho de Lucas, que os fariseus
manifestaram ao saber que Jesus tinha se reunido em refeição com
publicanos, confirma esta visão negativa que os judeus palestinos tinham dos
coletores de impostos; Lucas 5:27-32. 31
Sobre a relação entre o papel sacerdotal do imperador e oevergetismo em
Roma: GORDON, 2004: 134-140. 32
Josefo registra no Bellum Judaicum muitas passagens que refletem a
gratidão grega ao evergetismo praticado por Herodes, em contraposição ao
silêncio judeu sobre a maioria destas obras. Um longo relato das ações
promovidas por Herodes com intuito de alegrar os gregos, incluindo o
―patrocino‖ de um jogo olímpico, segue em Bellum Judaicum, I: 401-418. 33
Sobre a relação do Estado imperial romano com lideranças clientes do
oriente: SARTRE, 1994: 60-66.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
22
benMattitiahoue a classe sacerdotal a que pertencia eram marginais na
sociedade que deveriam dirigir.
No entanto, apesar desta profunda alienação política, em 66
e.c. estava o ―partido moderado‖ de Josefo coordenando a resistência
e administrando a Palestina judaica rebelada. Apesar da desconfiança
de grupos populares como os sicários e os zelotes, algum prestígio
eles ainda deveriam ter. Antes mesmo da revolta, em 64 e.c., o jovem
fariseu Yosef benMattitiahou integrou uma comissão que viajou até
Roma (Vita, 13-16) a fim de negociar junto a Popeia Sabina a
libertação de alguns sacerdotes detidos34
. Conforme observaram
David Rhoads35
e MireilleHadas-Lebel (1991: 73) a viagem o deve ter
impressionado muito, estando na grande cidade e no centro do poder
do grande império,e talvez esta experiência tenha aprofundado suas
dúvidas sobre as reais chances de sucesso de um levante. A comissão
foi bem sucedida e Josefo deve ter colhido algumas glórias entre os
dirigentes de Jerusalém e os judeus de Roma36
. Hadas-Lebel(1991:
60) deduz que já neste ano Josefo deveria conhecer a língua grega, ao
menos o suficiente para participar da embaixada judaica, observação
reforçada por Momigliano (1992: 186) quando aponta a dupla
formação de Josefo, versado no judaísmo farisaico e na retórica
34
―Em 64, „com 26 anos completos‟, Josefo foi encarregado de uma missão
em Roma. Tratava-se, observa ele, de conseguir a libertação de alguns
sacerdotes amigos seus, „homens distintos‟. Segundo o relato bastante
sucinto contido na Autobiografia, o procurador da Judéia, Félix (52-60),
„não se sabe por que razão‟, tinha mandado prendê-los e levá-los a Roma
para que se explicassem diante do imperador Nero. Josefo gaba-se de ter
tido êxito nessa missão intervindo junto á imperatriz Popéia‖ (HADAS-
LEBEL, 1991: 58). 35
―Josephus was especially impressed by the might of Rome. When he
returned in 66 C. E. to a Jerusalem on the brink of revolt, he tried to
dissuade those bent on revolution by reminding them of the power of Rome‖
(RHOADS, 1976: 06). 36
Sobre a relação de Josefo com os judeus de Roma: HADAS-LEBEL, 1991:
67-72; GOODMAN, 1994 A.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
23
grega37
, se enquadrado numa constituição helenística geral das elites
de Jerusalém que poderia provocar censura de alguns dos líderes
populares do levante. Seu retorno ao lar dos judeus ocorreu
praticamente ao mesmo tempo em que o rompimento com Roma se
dava, e mais uma vez Josefo esteve presente no centro das decisões
judaicas38
: foi confiado a ele o comando e organização da Galileia
(alta e inferior) e de Gamala, em Golan. Novamente podemos supor
que seu prestígio entre os dirigentes hierosolimitanos era alto, pois a
Galileia não era uma região pacífica.Fazendo fronteira com os partos e
com o reinado de Agripa, ao norte de Jerusalém e sul da província da
Síria, a região era a provável porta de entrada dos romanos na
Palestina judaica independente, situação que se confirmou. Não
obstante, a situação interna parecia caótica, já que a ordem política
herodiana e romana desintegrou-se primeiro lá, mergulhando a região
num surto de banditismo. Historicamente a Galileia sempre foi uma
região complexa e particular, prensada entre impérios e
continuadamente invadida. Horsley (2000: 23) observa que:
Tanto as tradições hebraicas com a literatura judaica
recente apresentam o povo da Galileia como ardentemente
independente. Esse povo precisava ser assim, pois um
soberano estrangeiro após o outro assumia o controle da
região e determinava sua vida e sua geografia [...]. Os
galileus devem ter sido resistentes e persistentes para
37
Josefo afirma que estudou língua grega antes de 64 em Antiquitates
Judaicae, 20, 263. ―Procurei também, através de muito esforço, ter acesso
aos textos e disciplinas elaboradas em grego, depois de ter recebido lições
de gramática, ainda que, na verdade, eu não consegui a pronúncia correta,
já que a maneira peculiar dos judeus ver as coisas me impediu‖. 38
―Ao voltar de sua missão, Josefo certamente não é partidário de um
confronto com Roma. Não acaba ele de beneficiar-se de apoios na corte
imperial, de avaliar o número de seus correligionários na capital do mundo?
E, no entanto, alguns meses mais tarde, ele se encontra não só envolvido na
guerra contra Roma, mas também investido de uma responsabilidade muito
grande: o comando de toda a Galiléia e da região do Golan‖ (HADAS-
LEBEL, 1991: 77).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
24
manter seu espírito independente ao longo de uma série
aparentemente interminável de dominadores estrangeiros,
desde as primeiras cidadescananéias até o império romano.
Mesmo as relações com Jerusalém e o Templo nunca foram
absolutamente tranquilas (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 28),
registrando os textos bíblicos a Galileia como uma região conquistada
e dominada pela realeza de Davi e Salomão (HORSLEY, 2000: 26-
28). O cisma das 12 tribos, provocado após a morte de Salomão,
reforça a ideia de que as tribos do norte, dentre elas a região da
Galileia, não aceitavam passivamente um comando partindo de
Jerusalém.
Assim, no início da revolta judaica estava Josefo coordenando
os esforços e representando os interesses hierosolimitanos na Galileia.
Só dispomos de informações que ele mesmo nos deu sobre este
período, que não são poucas, mas desencontradas e com lacunas
(HADAS-LEBEL, 1991: 251). Seu constrangimento em narrar suas
ações contra a campanha de Vespasiano é evidente, e talvez por isto
ele não nos forneça informações sobre sua formação militar antes de
66. Sendo Josefo escolhido comandante de uma região importante,
complexa e que seria a primeira a sofrer com a empreitada romana,
deveria conhecer um pouco de disciplina e tática bélicas? Não
sabemos. Josefo diz que procurou fortificar cidades, unificar as
guerrilhas locais e organizar um exército seguindo o modelo romano.
Informou que provocou imediatas desconfianças entre os líderes
galileus populares quanto as suas intenções frente aos romanos e
Agripa II. Para Richard Laqueureste é um indício que ele abusou de
sua autoridade39
, despertando rancores locais, e Cornelli observa que
sua autoridade na Galileia era tão fraca que ele tinha que se valer de
39
―Josephus abused his mission by assuming the role of tyrant of the northern
province. Laqueur builds this part of his reconstruction on Vita, partly the
hypothetical „statement of affairs‟ from 67, and partly the final version which
is supposed to be determined by Josephus‟ polemics against Justus of
Tiberias‖ (BILDE, 1988: 174).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
25
sua guarda pessoal e de mercenários para se sustentar, mas não do
povo (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 42). O certo é que em sua
missão galileia ele sustentou duas guerras: uma externa, contra
Vespasiano e romanos, e outra interna, contra grupos independentes
de judeus rebelados (IGLESIAS, 1994: 19). E de certa forma foi
engolido pelas duas.
Neste ponto, a posição política de Josefo se coloca na
pergunta: ele foi um traidor40
? Aos olhos dos rebeldes, sua capitulação
em Jotapata foi uma grande traição nacional, mas será que esta era a
visão de sua classe social? As discussões e dúvidas acerca de sua
traição são contemporâneas aos seus escritos. Justo de Tiberíades, um
antigo opositor galileu, contestou o papel de Josefo na guerra em uma
obra que infelizmente não sobreviveu(Vita, 336-367). Imediatamente
Josefo se justificou, publicando uma autobiografia, Vita, no final do
século I e.c., na qual estruturou uma defesa política pessoal temperada
com algumas informações pessoais41
. MireilleHadas-Lebel observa
que a necessidade de Josefo em se autojustificar era tão grande que
nove décimos de Vita são dedicados ao período do comando na
Galileia (HADAS-LEBEL, 1991: 77). Todavia, como observa Per
Bilde (1988: 181), a traição de Josefo, negada com constrangimento,
pode ser relativizada se interpretarmos seu comportamento o
comparando com outros judeus de situação social parecida, como
Herodes, Agripa II, Filo de Alexandria, os saduceus e os judeus de
Roma42
. Tampouco devemos desconsiderar que Josefo atemorizado
pelas desgraças da guerra lutou instintivamente por sobreviver,
40
Sobre o tema da traição e Flávio Josefo: VIDAL-NAQUET, 1980. 41
Uma interessante leitura do Vita, observando as contradições com seus
escritos anteriores e violência que o texto orienta sua polêmica foi feita por
Denis Lamour, 1999. 42
―On a very crude level, of course, Jews in Rome must have seen Josephus
as a highly desirable patron. He wasanimportantperson in Roman society‖.
(GOODMAN, 1994 A: 332).
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26
observação apontada por Elias Canetti43
. Os romanos, antigos
parceiros da aristocracia de Jerusalém, lhe prometeram a vida,
enquanto a causa da independência judaica lhe colocou o dilema da
sobrevivência e do suicídio. Foi neste Josefo sobrevivente – Flavius
Josephus – que os judeus da diáspora poderiam buscar algum modelo
ou orientação frente ao desespero da destruição do Templo e da
desconfiança sofrida pelo Judaísmo dentro do Império. Ele não
renegou sua fé judaica para se tornar cidadão romano (Vita, 422-423),
e trabalhou na redação de uma obra que se dedicou em mostrar que o
Judaísmo poderia ser compatível com a sociedade romana e ordem
imperial44
. Aristocrata, fariseu, sacerdote com prestígio dentro da
classe dirigente de Jerusalém, a posição política de Josefo transitou
entre romanos e judeus, primeiramente tentando preservar a posição
de destaque de sua classe social na Judéia e, depois da catástrofe de
70, negociando a sobrevivência de sua religião em um ambiente hostil
ao povo de YHWH. Este homem intermediário (VIDAL-NAQUET,
1980: 32) permaneceu cindido até o fim, tentando sepultar as suspeitas
que o cercavam e seus fantasmas passados escrevendo histórias do
Judaísmo, com se tivesse a necessidade de se convencer de sua
grandeza. Ator de paixões políticas e religiosas, testemunha parcial de
43
Segundo Canetti (1983: 251), ―o momento de sobreviver é o momento de
poder. O espanto diante da visão da morte se dissolve em satisfação, pois
não se é o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente está de pé. É como
se um combate tivesse antecedido aquele momento, e nós mesmos tivéssemos
derrubado o morto. Na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro,
comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita
importância. Mas é importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de
um ou de vários mortos. Ele se Vê só, se sente só, e, quando se fala do poder
que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua
unicidade e somente dela‖. 44
―Josephus could have identified himself with Roman society. Much of is
writing was aimed at convincing both Jews and Romans that the practice of
Judaism was not incompatible with living in a roman society, and it would
have been entirely logical for him to present himself as a „Roman of the
Jewish faith‘‖ (GOODMAN, 1994 A: 334).
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27
deprimidos acontecimentos e fundador de uma historiografia
judaica45
, sua traição ajudou a nos legar uma obra forte e
impressionante, sem paralelos para o historiador moderno dedicado ao
período. Sua triste sorte revelou-se nosso prodígio. Estranhos
caminhos da História.
Documentação Textual
JOSEPHUS. The Life.Against Apion. Translated by H. St. J.
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JOSEPHUS. Jewish Antiquities. Translated by H. St. Thackeray,
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Brill, 2004.
45
Denis Lamour (2006: 145) observa que Josefo ―foi o primeiro judeu que
procurou levar em consideração, por um lado, o encadeamento lógico das
causas materiais e, por outro, o desígnio impenetrável de Deus de Israel,
tendo evitado, ao mesmo tempo, a perdição‖.
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31
O Cuidado para com os Pobres no Cristianismo Primitivo –
Reflexões a partir de João Crisóstomo
Carlos Caldas46
Uma das principais características das produções teológicas
surgidas na América Latina desde a segunda metade do século XX –
tanto a Teologia da Libertação (TdL) como a Teologia da Missão
Integral (TMI) é ênfase e a atenção dadas ao fato que as igrejas cristãs
devem dar aos pobres, explorados e oprimidos em sua atuação no
mundo47
. Evidentemente há uma diferença imensa e uma distância
quase abissal entre as duas correntes teológicas latino-americanas no
que diz respeito ao lugar e ao papel do pobre para a reflexão teológica
e ação pastoral ou ação em missão da igreja no mundo. Enquanto a
TMI enfatizou a importância do envolvimento social como parte
integrante e absolutamente essencial para o cumprimento da missão da
igreja no mundo, a TdL enfatizou o pobre como chave hermenêutica
da leitura bíblica e como sujeito da reflexão teológica. Alguns críticos
podem pensar que a TMI é tímida demais, especialmente se
comparada à TdL. Não obstante, é impossível negar que a TMI
representou avanço, se comparada ao pensamento dos que advogam
uma compreensão da missão da igreja em termos puramente
―espirituais‖ (entre muitas aspas...), metafísicos e extramundanos. São
os que no meio evangélico latino-americano e brasileiro entendem a
missão da igreja apenas, única e exclusivamente em termos de
46
Carlos Caldas, Doutor em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo, é professor da Escola Superior de Teologia e do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. [email protected] 47
As igrejas que seguem orientação teológica libertacionista chamarão esta
atuação de ―ação pastoral‖ ou simplesmente ―pastoral‖, e as que se afinam
com a linha teológica da missão integral a chamarão de ―missão‖. Para mais
detalhes consultar Longuini Neto (2002: passim).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
32
―evangelização‖, com vistas à ―salvação da alma‖. Nesta visão, sem
dúvida estreita, tudo que não tem a ver diretamente com
evangelização é tido como perda inútil de tempo, energia e dinheiro.
O fim último da missão é o crescimento numérico da igreja. Esta
perspectiva teórica, que gera uma prática concreta de missão, foi
desafiada pela TMI. A grande referência da TMI está no documento
conhecido como Pacto de Lausanne, produzido no Congresso
Internacional para Evangelização Mundial (conhecido mais
simplesmente como Congresso de Lausanne), realizado em 1974. O
Pacto de Lausanne (PL) gerou uma série de encontros menores que
por sua vez também geraram documentos, que se tornaram conhecidos
no meio evangelical no Brasil como ―Série Lausanne‖48
. Dentre estes
volumes merecem destaque especial Viva a simplicidade!
Compromisso evangélico com um estilo de vida simples (1985) e
Evangelização e responsabilidade social (1984). Lausanne revigorou
e oxigenou a reflexão teológica e a prática missionária das igrejas
simpatizantes e aderentes da TMI. Nunca é demais destacar que a
atuação dos teólogos evangelicais latino-americanos René Padilla (do
Equador), Samuel Escobar (do Peru) e Orlando Costas (de Porto Rico)
tanto no Congresso de Lausanne como na redação do PL foi
determinante para que a teologia evangélica conservadora
compreendesse que a missão da igreja não se resume a um discurso
teórico e à mera aceitação de conteúdos racionais. A TMI advoga que,
sem embargo do anúncio do evangelho, tão caro às igrejas de tradição
evangélica, deve haver também um envolvimento com questões de
natureza social, econômica e política49
. Nos últimos anos a TMI
desenvolveu articulações interessantes em sua práxis50
, tais como a
48
Os dez volumes da Série Lausanne foram publicados no Brasil pela ABU
Editora e Visão Mundial de 1982 a 1985. 49
Para detalhes quanto à TMI e sua atuação no contexto hispano-americano,
consultar: www.kairos.org.ar 50
A palavra práxis é utilizada não na acepção do senso comum, que a
entende como mero sinônimo de "prática", mas em seu sentido de reflexão
sobre a prática. O conceito de "práxis" é bastante antigo, pois tem raízes
remotas no pensamento de Aristóteles. Todavia, se tornou termo técnico
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33
Rede Miquéias (Mica Network) 51
e a RENAS – Rede Evangélica
Nacional de Ação Social52
. São movimentos que priorizam de diversas
maneiras a responsabilidade e o cuidado que a igreja em missão no
mundo deve ter para com o pobre, o oprimido e o necessitado. Neste
sentido, a TMI resgatou o aspecto original do evangelicalismo
britânico dos séculos XVIII e XIX, o qual já tinha em sua gênese a
compreensão e a prática do envolvimento em questões de natureza
social, política e econômica53
. O evangelicalismo é movimento
teológico multifacetado por demais. Há pontos em comum entre suas
diversas ramificações, como o aspecto fortemente estaurocêntrico do
movimento, com uma visão substitucionária anselmiana da morte de
Jesus na cruz, além das bandeiras – ―Solas‖ – da Reforma Protestante
do século XVI (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura e Solo Christo,
ou Solus Christus – respectivamente, ―Só a fé‖, ―Só a Graça‖, ―Só as
Escrituras‖ e ―Só Cristo‖). Mas vertente latino-americana do
evangelicalismo é conhecida como ―Evangelicalismo radical‖, pela
compreensão que tem da necessidade de radicalidade na inserção em
problemas de natureza social, política e econômica, levando em conta
central no materialismo histórico de Karl Marx, que, a partir de sua
interlocução com o pensamento de Ludwig Feuerbach, a entende como
atividade humana a um só tempo prática e crítica. Práxis sem dúvida é
conceito multifacetado. Antonio Gramsci deu-lhe novos contornos, e o
mesmo fizeram Georg Lukács e Jurgen Habermas. A teologia prática na
América Latina se apropriou do termo, utilizando-o à farta, no sentido acima
citado, de reflexão crítica sobre a ação pastoral da igreja em missão. 51
Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da Rede Miquéias, consultar
o web site do movimento: http://redemiqueias.org/ 52
Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da RENAS, consultar o web
site do movimento: http://www.renas.org.br/ 53
Exemplo clássico é William Wilberforce (1759-1833), político inglês, líder
do movimento anti-escravagista no Império Britânico. Sua ação política foi
motivada por sua convicção teológica evangelical. Para detalhes quanto à sua
teologia, consultar Wilbeforce, William. Cristianismo verdadeiro. Brasília:
Editora Palavra, 2008.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
34
especialmente (mas não apenas) as doutrinas da criação e da
encarnação54
.
Já a TdL foi sem dúvida mais ―avançada‖ que a TMI no que
diz respeito ao envolvimento da igreja em missão no mundo com
questões sociais. Gustavo Gutierrez por exemplo (1981), padre
católico peruano, fala a respeito da ―força dos pobres na história‖. A
hermenêutica bíblica latino-americana de inspiração libertacionista
usou a figura do pobre como chave de leitura dos textos bíblicos.
Exemplo de tal utilização é a Bíblia Sagrada – Edição Pastoral –
publicada no Brasil por Paulus desde 1991. Trata-se de uma edição da
Bíblia com um português simplificado, apropriado para pessoas com
pouca leitura (ao estilo da Nova Tradução na Linguagem de Hoje da
Sociedade Bíblica do Brasil), com comentários em notas de rodapé,
em perspectiva de uma hermenêutica libertacionista clássica55
. A TdL
latino-americana de inspiração católica recebeu impulso quando a
Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín,
Colômbia (1968) assume a ―opção preferencial pelos pobres‖. Anos
mais tarde o Vaticano envidou esforços para esvaziar a ação engajada
das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‘s), punir eclesiásticos
afinados com a TdL, fechar instituições de ensino comprometidas com
a proposta pedagógica da teologia libertacionista. Caso clássico neste
sentido foi o acontecido com o ITER – Instituto Teológico do Recife –
criado pelo legendário Dom Helder Câmara em 1968 e fechado por
54
Para detalhes quanto ao evangelicalismo radical latino-americano
consultar, inter alia: CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuição
na história da teologia latino-americana. São Paulo: Vida, 2007, pp. 74-83. 55
Desnecessário dizer que um empreendimento desta natureza, ainda que
chamado de ―pastoral‖, não deixa de ser acadêmico (se bem que o pastoral e
o acadêmico não estão em oposição – antes, devem se completar. Os Pais da
Igreja que o digam!). Toda e qualquer chave de leitura para as Escrituras se
transformará, mais cedo ou mais tarde, em um ―leito de Procusto‖, pois, por
incrível que pareça, sempre será algo externo ao texto bíblico, e na prática
pode produzir uma contradição, isto é, uma eisegese e nem tanto uma
exegese.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
35
determinação expressas do Vaticano em 1989, onde lecionaram
expoentes da TdL, como Joseph (José) Comblin, conhecido
missionário e teólogo belga radicado no Brasil. O ITER foi uma das
principais casas de educação teológica e formação clerical católica no
Brasil, na qual o ensino da TdL estava ligado ao trabalho das CEB‘s e
da inserção em movimentos sociais e populares.
Esta breve introdução apresenta duas perspectivas teológicas
latino-americanas bastante diferentes em termos de método teológico
e pressupostos teóricos, mas com um ponto em comum, a saber, a
compreensão que, biblicamente, a igreja tem responsabilidade para
com o pobre. O que se pretende apresentar neste capítulo é que, na
verdade, a preocupação e o cuidado para com os pobres não é uma
inovação produzida no cristianismo latino-americano a partir da
segunda metade do século XX. Antes, era prática do cristianismo
primitivo. Como exemplo, mostrar-se-á a atuação de São João
Crisóstomo (349-407), um dos Pais da Igreja Oriental. Pretende-se
apresentar o antecedente histórico, seguido de uma tentativa de
diálogo entre o pensamento teológico e pastoral de João Crisóstomo e
a teologia latino-americana contemporânea.
João Crisóstomo – Esboço biográfico56
Ιωάννης ο Χρσσόστομος nasceu em Antioquia, Ásia Menor
(atual Antakya, sul da Turquia) no ano 349. À época do seu
nascimento, Antioquia era a terceira cidade do Império Romano. João
passou à história com o apelido Crisóstomo – literalmente, ―boca de
ouro‖, por conta de seus dotes de oratória e retórica, que lhe deram
fama e o tornaram conhecido como o maior orador da igreja grega. A
alcunha lhe foi dada no século sexto. Filho de família culta e abastada,
João perdeu seu pai muito cedo. O pai de João, por nome Segundo,
sírio de nascimento, era oficial do exército romano, tinha o título de
56
Informações extraídas de Hall, Kelly, Altaner & Stuiber, Hamman e
Meulenberg.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
36
Magister Milium Orientis. Sua mãe, Antusa, era cristã piedosa, e
contava com apenas 20 anos quando perdeu Segundo. João
praticamente não conheceu o pai. Antusa no entanto esforçou-se para
providenciar para o filho educação da melhor qualidade. O primeiro
mestre de João em Filosofia e Retórica foi o filósofo sofista pagão
Libânio (Λιβάνιορ)57
. É batizado aos 18 anos, e não há relatos que
tenha passado por alguma experiência de conversão em moldes
dramáticos como aconteceria, grosso modo, século e meio mais tarde
com o não menos famoso Agostinho de Hipona (que, a propósito, foi
mais tarde influenciado por João Crisóstomo em sua abordagem ao
texto bíblico). João se fez discípulo de Deodoro de Tarso,
representante da conhecida ―Escola de Antioquia‖ de exegese bíblica,
caracterizada pela ênfase no sentido literal dos textos bíblicos (em
contraposição à Escola de Alexandria, no Egito, famosa pela
interpretação alegórica)58
. Deodoro propõe o que denominou theoria
ou ―contemplação‖, o que incluía análise sintática propriamente do
texto bíblico, além da importância dada ao elemento histórico dos
relatos bíblicos (não tido como tão importante pelos exegetas da
Escola de Alexandria, que davam mais valor ao elemento ―espiritual‖
dos textos bíblicos). A respeito do modelo de interpretação bíblica em
Antioquia, David Dockery declarou:
De maneira geral, é verdade que os alexandrinos viam um
significado literal e alegórico, e os antioquenos
encontravam um sentido histórico e tipológico. Os
alexandrinos voltavam-se para a regra de fé, a interpretação
mística e a autoridade como fontes do dogma. Por sua vez,
os antioquenos voltavam-se para a razão e para o
desenvolvimento histórico da Escritura como foco da
teologia. Os antioquenos tinham mais consciência do fator
57
Curiosamente, Basílio de Cesaréia, outro dos grandes Pais da Igreja
Oriental, também foi aluno de Libânio. 58
Quanto ao modelo de interpretação bíblica de Alexandria consultar, inter
alia: HALL, Christopher. Lendo Lendo as Escrituras com os Pais da
Igreja. Viçosa: Ultimato, 2000, p. 147-165.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
37
humano da Escritura e buscavam ser justos com a autoria
dual da revelação bíblica59
.
Dado o fato que João se notabilizou por seu trabalho como
pregador, é importante sabe a maneira pela qual ele interpretava as
Escrituras. Retomar-se-á este tema adiante neste capítulo. Além disso,
João e Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) foram os principais nomes
da assim chamada Escola de Alexandria. Por hora, é interessante
observar que
Para Crisóstomo, teologia e hermenêutica não eram
exercícios teóricos, mas práticos e pastorais. Ele acreditava
que a mensagem bíblica gerava mudanças na vida das
pessoas. Declarou que a mensagem divina das Escrituras
preparava as pessoas para boas obras60
.
A interpretação bíblica praticada por Crisóstomo e por seus
pares da tradição de Antioquia portanto leva em conta aspectos
humanos propriamente do texto bíblico, tais como figuras de
linguagem, de estilo e de pensamento, mas ao mesmo tempo o texto é
visto como revelação de Deus, e, via de consequência, autoritativo. É
um modelo de leitura bíblica que faz lembrar o assim chamado
método histórico-gramatical, desenvolvido séculos mais tarde, e ainda
hoje muito em voga na maioria das escolas teológicas evangélicas de
corte conservador no Brasil e na América Latina. Vale ainda destacar
que Antioquia não tem um conceito fundamentalista e fechado de
revelação, no qual os escritores bíblicos são vistos como autômatos.
Por um tempo João vive entre monges em montanhas, em
ascetismo rigoroso de jejuns e vigílias, o que comprometerá em
definitivo sua saúde. Robert Payne descreve de maneira vívida o
período monástico de João:
59
DOCKERY, David. S. Hermenêutica contemporânea à luz da igreja
primitiva. São Paulo: Vida, 2005, p. 115. 60
DOCKERY, op. Cit., p. 115.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
38
Ele recolheu-se em uma gruta, onde negava-se a dormir e
lia a Bíblia continuamente, e passou dois anos sem deitar-
se, visivelmente na crença de que um cristão deve estar
pronto para obedecer à determinação: ―sê vigilante‖. O
resultado foi inevitável: seu estômago contraiu-se e seus
rins foram afetados pelo frio. Sua digestão estava sempre
difícil. Incapaz de curar a si mesmo, ele desceu a montanha,
foi para Antioquia e apresentou-se ao arcebispo Melécio,
que o enviou imediatamente a um médico61
.
Na sequência, João foi diácono por Melécio entre 380/381.
Como tal, trabalhou em Antioquia, sua terra natal, provavelmente
entre os anos 386-397. No início da última década do quarto século da
era cristã é ordenado sacerdote. Conta então com quase quarenta anos
de idade.
Uma das tarefas às quais João mais se dedica é a pregação. É
pregador ousado e combativo: condena erros de clérigos, critica
costumes pagãos antigos, como os jogos de gladiadores, espetáculos
teatrais imorais e corridas de cavalos, a instituição da escravidão
(ainda que não com a mesma intensidade com que criticou a falta de
misericórdia dos ricos para com os pobres), as festas em honra aos
antigos deuses, critica o consumismo e a ostentação, defende a causa
dos pobres e dos oprimidos. Este último tema será abordado com mais
detalhes adiante. Suas homilias não raro são comentários bíblicos.
Comenta Gênesis, Salmos, Isaías, o Evangelho de Mateus, o
Evangelho de João, Atos dos Apóstolos, a Epístola aos Romanos, a
Epístola aos Hebreus62
. Sua grande preocupação é aplicar o texto
bíblico à vida diária dos fiéis. Para tanto, usa com êxito ilustrações a
61
PAYNE, Robert. Fathers of the Eastern Church. New York: Dorset
Press, 1989, p. 195, apud. HALL, op. cit., p. 91.. 62
Cf. HALL (op. cit., p. 97) João Crisóstomo escreveu 90 homilias sobre o
Evangelho de Mateus, 55 sobre Atos, 32 sobre Romanos, 44 sobre 1 e 2
Coríntios, um comentário sobre Gálatas, 24 homilias sobre Efésios, 15 sobre
Filipenses, 12 sobre Colossenses, 18 sobre 1 Timóteo e 34 sobre Hebreus.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
39
um só tempo vívidas e comunicativas, extraídas muitas vezes de
atividades comuns do dia a dia.
Dedica-se também à obra literária. É escritor prolífico. São de
sua lavra catequeses batismais (textos preparatórios para os candidatos
ao batismo), e tratados: Sobre o Sacerdócio, Sobre a Vida Monástica,
Sobre a Virgindade (De virginitate), Sobre a providência de Deus.
Sobre o Sacerdócio (Perì hierosúnes – traduzido para o latim como
De sacerdotio) é até os nossos dias um clássico no assunto. Conforme
Hamman,
João Crisóstomo é um orador nato. Conhece o tom
pitoresco, a mania de sarcasmo, os jogos de palavras (que
mais tarde lhe custarão caro), a apóstrofe direta, franca,
apaixonada63
.
Não é de se admirar que sua fama de bom pregador crescesse e
se espalhasse. A respeito de João é dito que multidões se reuniam para
ouvir seus sermões, claros e corajosos. Não é de se admirar também
que por esta causa tenha granjeado admiradores e adversários.
Mais tarde, João foi indicado bispo de Constantinopla, capital
do Império Romano do Oriente sem dúvida um privilégio, visto ser
aquela cidade uma das grandes sés da igreja64
. Mas por diferentes
questões pessoais, políticas e religiosas, João foi expulso de
Constantinopla no ano 404, por ordem direta do próprio imperador
Arcádio (Flavius Arcadius), da citada porção oriental do império. Isto
porque em alguns dos seus sermões João criticara Eudóxia, esposa de
Arcádio. Esta tinha grande influência sobre o marido, e conseguiu que
ele exilasse o bispo. Na verdade, o exílio de João se deu por conta de
63
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 195. 64
As outras eram Jerusalém (berço do Cristianismo), Antioquia (mãe do
movimento missionário mundial), Alexandria (cidade importante no Egito) e
Roma (a capital do império).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
40
críticas contundentes feitas em seus sermões contra a falta de
escrúpulos de políticos, a avareza e a ambição que viu na corte. Em
seus sermões denunciou também colegas do clero. Os últimos três
anos da vida de João foram passados em uma cidade pequenina
chamada Cucusus, nas montanhas da Armênia, em condições bastante
severas.
João é considerado um dos quatro Doutores da Igreja Oriental
(os outros três são Atanásio, Gregório de Nazianzo e Basílio o
Grande). A tradição cristã oriental consagrou-lhe o dia 13 de
novembro. Já a tradição cristã ocidental não protestante consagrou-lhe
o dia 13 de setembro, o dia anterior à sua morte no ano 407. Suas
últimas palavras foram: ―Glória seja dada a Deus em tudo‖. Neste
dia, nestas igrejas é feita a seguinte oração: ―Vinde Espírito Santo,
dai-nos a têmpera dos mártires, dai-nos anunciar, mas também como
São João Crisóstomo fez, denunciar aquilo que é injustiça, que é
mentira, que prejudica principalmente os mais pobres. Vinde Espírito
Santo, dai-nos a ousadia dos homens e mulheres de Deus‖ 65
.
O cuidado para com os pobres nas homilias de João Crisóstomo
João ficou conhecido como homem de grande sensibilidade,
piedade, oração e compaixão. A seguir, citar-se-ão partes de sermões
de João, exatamente a respeito da compaixão que os cristãos devem
ter para com os pobres e necessitados:
À medida que passava pelo mercado e pelas ruas estreitas
[...] vi no meio das ruas muitos excluídos, alguns com as
mãos feridas, outros com olhos vazados, outros cheios de
úlceras purulentas e feridas incuráveis, fazendo exposição
daquelas partes do corpo que, por conta de sua podridão
65
Extraído de
http://www.cancaonova.com/portal/canais/liturgia/santo/index.php?dia=13&
mes=9 [Acesso: 12 out 2010]
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
41
concentrada, deveriam estar ocultas. Pensei que a pior falta
de humanidade seria não apelar ao vosso amor para com
eles, especialmente agora que a estação66
nos força a voltar
a este assunto67
.
Neste mesmo sermão, bastante longo por sinal, o Crisóstomo
faz um ―passeio‖ pelas Escrituras, trabalhando com vários textos para
basear sua argumentação a favor de um envolvimento concreto com
os pobres da sociedade. Neste esforço para fortalecer sua linha de
raciocínio, cita textos como Gálatas 2:9-10, 1 Coríntios 16:1-2, 2
Tessalonicenses 2:7, Romanos 15:25, Atos 11:29, e outros mais. Ele
recomenda aos fiéis que dêem ―abundantemente‖ aos que precisam68
.
Sua argumentação não deixa de apelar para o Antigo Testamento: cita
o profeta Oséias (6:7) que fala que Deus quer ―misericórdia, não
sacrifícios‖. Por isso, os cristãos não podem ser negligentes na ajuda e
no cuidado aos pobres (cf. Mateus 9:3), pois ao ajudá-los, quem
verdadeiramente receberá ajuda é quem a dá, e não quem a recebe69
.
De outra feita, João criticou de maneira severa os cristãos
ricos que não se incomodavam enquanto pobres excluídos passavam a
noite não em leitos de prata, mas em catres úmidos de palha junto à
entrada dos banhos públicos, congelados de rio e morrendo de fome,
enquanto cidadãos bem vestidos e bem aquecidos saem dos banhos e
vão para suas casas onde os esperam jantares bem preparados, os
pobres morrem de fome sem ter o que comer. Critica também a falta
de misericórdia para com os presos nos cárceres, com feridas
sangrentas provocadas pelos grilhões que os prendem e pelos açoites
que recebem. João condena o egoísmo dos ricos que se vestem com
roupas caras enquanto pobres criados à imagem e semelhança de Deus
66
Crisóstomo se refere ao inverno rigoroso da Ásia Menor, durante o qual os
pobres e desvalidos se encontravam em situação ainda pior que a enfrentada
com o clima ameno das outras estações. 67
St. John Chrysostom. On Repentance and Almsgiving, p. 131. 68
St. John Chrysostom, op cit., p. 149. 69
St. John Chrysostom, op cit., p. 146.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
42
morrem de frio nas ruas. Em uma de suas homilias sobre 1 Timóteo,
João apela para a criação do mundo, lembrando aos seus ouvintes e
leitores que Deus não criou um homem rico e outro pobre. Logo,
conclui que a diferença entre o rico e o pobre só pode ter sido criada
pela injustiça humana, porque o forte explora o fraco assim como um
peixe grande engole um peixe pequeno. A linha de argumentação de
João talvez possa soar como ingênua para mentes modernas: em um
de seus sermões ele argumenta que Deus concedeu indistintamente a
todos os humanos bênçãos como o sol, o ar, a terra e a água, sem
qualquer tipo de discriminação. Logo, é errado se alguns se apropriam
de riquezas enquanto outros não o podem fazer. Para João, as palavras
―meu‖ e ―seu‖ são palavras ―frias‖ (to psuchron touto rema – no
sentido de manifestarem indiferença e egoísmo). Para João, o cristão
que tem recursos deve sempre repartir com quem não tem, e jamais
ser caracterizado pela frieza da indiferença em relação aos que estão
em situação pior que a sua70
. À luz de tanta contundência, não é de se
admirar que João tenha enfrentado tanta oposição71
. Muito mais
poderia ser dito. Todavia, os exemplos apresentados são suficientes
para demonstrar como, especialmente, mas não somente a partir de
João Crisóstomo, era importante no cristianismo primitivo o cuidado
para com os pobres.
João Crisóstomo em diálogo com a teologia latino-americana
O ―ponto‖ deste capítulo é mostrar como a teologia latino-
americana contemporânea, tanto de corte libertacionista como a de
corte evangelical, podem aprender a partir de um diálogo com a
teologia de João, expressa em suas homilias. Particularmente, a
questão da importância do cuidado para com os pobres e desvalidos da
sociedade. A este respeito, Marcelo Barros no Prefácio do livro João
Crisóstomo. As mãos calejadas, afirma:
70
Estes trechos de homilias de João são citados por Kelly, op cit., p, 97-99. 71
Cf. Kelly, op cit., p. 136.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
43
O modo de ler a Bíblia de nossas comunidades
parte da realidade do amor e da solidariedade
efetiva para com os milhões de pessoas excluídas
dos mínimos meios de sobrevivência neste
sistema social em que vivemos. Vamos descobrir
a mesma sintonia na palavra engajada de João
Crisóstomo que se ofereceu como ―delegado dos
pobres‖ e procurador da justiça de Deus para
os pequenos deste mundo72
.
Por um lado, há uma distância quase abissal entre a teologia
expressa nas homilias do Crisóstomo e as formulações da TdL de um
lado, e da TMI do outro. E nem haveria como ser diferente. As
diferenças de método são gritantes. A TdL em sua formulação clássica
trabalhou a partir do referencial teórico do conceito marxista de luta
de classes. Daí é possível afirmar que os objetivos da TdL são
diferentes dos de João. Analisados a partir da ótica da TdL, as
homilias de João podem revelar uma visão apenas assistencialista e
paternalista, o que é deplorável para um teólogo libertacionista. A
partir daí talvez seja possível afirmar que a teologia veiculada nos
sermões de João se aproxime mais da visão clássica da TMI que da
TdL. Pelo menos, em tese. Ao mesmo tempo, há que se reconhecer
que os teólogos evangelicais latino-americanos que se afinam com a
TMI na maioria das vezes sequer se aproximam da coragem e da
contundência do Crisóstomo, no que diz respeito a estas questões.
Conforme afirmado acima, João apela para a doutrina da criação em
sua crítica à falta de misericórdia dos ricos e o pedido que faz a estes
para que ajudem os pobres. A partir daí, é possível afirmar que, ao
menos in nuce, há nas homilias do Crisóstomo os princípios para uma
teologia da pobreza e da riqueza. Este aspecto tem sido em geral
esquecido pela TMI. Neste sentido, os teólogos latino-americanos que
se identificam com a missão integral da igreja enriquecerão sua
perspectiva teológica a partir de um exame sério desta fonte patrística
importante.
72
Marcelo Barros. Prefácio de: João Crisóstomo. As mãos calejadas, II.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
44
Olhada a partir deste prisma, tanto a TMI como a TdL podem
ser renovadas e revitalizadas a partir de uma dinâmica de
(re)descoberta da fonte patrística que é a teologia expressa nas
homilias de João Crisóstomo. A TMI pode aprender com a ousadia de
João na denúncia do mal que o acúmulo de riquezas. A TdL por sua
vez pode aprender a enriquecer e a aprofundar o aspecto pastoral
propriamente da ação de João ao ser advogado e porta-voz dos pobres,
especialmente os mais pobres dentre estes. Principalmente nestes
últimos anos em que a TdL latino-americana se encontra em uma crise
de revisão de modelos e paradigmas. Uma revisão epistemológica de
seus paradigmas teóricos e de seus objetivos é certamente benéfica e
salutar. Ainda que questões como o meio-ambiente sejam
importantes73
, a TdL na América Latina se beneficiará de uma ―volta
às origens‖ que lhe pode ser proporcionada pelo estudo da teologia de
João. Além disso, conforme já afirmado, um teólogo libertacionista
clássico decerto rejeitará a teologia expressa nos sermões do
Crisóstomo por considerá-la assistencialista e paternalista. A TdL
latino-americana em sua formulação clássica, mormente a de corte
católico, é caracterizada por ser mais ―ambiciosa‖ e talvez
―megalomaníaca‖, por almejar nada menos que a transformação das
estruturas da sociedade, de baixo para cima. Mas um erro comum no
qual consciente ou inconscientemente teólogos da libertação podem
cair é o de ficarem apenas na teoria, sem um engajamento com o
discurso. Não se pretende aqui de modo algum cometer a leviandade
de julgar e generalizar, jogando todos os teólogos da libertação na
vala comum de uma incoerência entre discurso e prática. Mas este é
um erro que pode acontecer. As denúncias e exortações contundentes
e corajosas do Crisóstomo podem servir de corretivo a tal situação.
73
Neste sentido é interessante observar a mudança do Leonardo Boff
―jovem‖ autor de ―Jesus Cristo Libertador‖ (1972) e de ―Teologia do
Cativeiro e da Libertação‖ (1980) com o Leonardo Boff ―velho‖ autor de
―Ecologia: grito da terra, grito dos pobres‖ (1995) e de ―Ecologia,
mundialização e espiritualidade‖ (2008) – o sujeito da teologia deixa de ser o
pobre para ser o meio-ambiente.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
45
O cuidado para com os pobres era uma das marcas do
cristianismo primitivo. João Crisóstomo se destacou por suas homilias
sobre este tema, mas ele de modo algum foi o único a ter tal
preocupação. Pais da Igreja Ocidental, como Jerônimo, Ambrósio e
Agostinho trataram desta questão. Mestres da Escola de Alexandria,
como Clemente e Orígenes, de igual maneira o fizeram74
. A questão
da pobreza no mundo ainda traz desafios pastorais e missiológicos
sérios para a igreja. Certamente está fora de questão uma visão da
missão que se limita a um discurso teórico, que visa a transmissão de
conteúdos meramente ―espirituais‖ que objetivam apenas a ―salvação
da alma‖. Ainda que ainda haja na América Latina quem tenha uma
visão assim estreita da missão, que tem mais a ver com o pensamento
platônico que como pensamento bíblico, é cada vez mais generalizada
a compreensão que a missão da igreja é mais ampla em seu aspecto
que normalmente se pensa. Diante de situação tão delicada e sensível,
teólogos, missiólogos e pastoralistas latino-americanos só têm a
ganhar se fizerem um movimento ad fontes para ver como os
primeiros cristãos levaram a sério o cuidado para com os pobres.
Dentre aqueles primeiros cristãos, o ―Boca de Ouro‖ com certeza se
destaca, e tem muito a dizer aos cristãos de hoje.
Documentação Textual
ST. JOHN CHRYSOSTOM. On Repentance and Almsgiving. The
Fathers of the Church. A New Translation. Volume 96. Translated
by Gus George Christo. Washington, D. C.: The Catholic University
of America Press, 1998.
Referências Bibliográficas
ALTAMER, B. & STUIBER, A. Patrologia. São Paulo: Paulinas,
1972.
74
Cf. HALL, op cit., p. 159-160.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
46
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Ensaio de cristologia
crítica para o nosso tempo. Petrópolis: Vozes, 1972.
_______________. Teologia do cativeiro e da libertação. São Paulo:
Círculo do Livro, 1980.
_______________. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São
Paulo: Ática, 1995.
_______________. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São
Paulo: Record, 2008.
CALDAS, Carlos. Orlando Costas: sua contribuição na história da
teologia latino-americana. São Paulo: Vida, 2007.
DOCKERY, David S. Hermenêutica contemporânea à luz da
igreja primitiva. São Paulo: Vida, 2005.
GUTIERREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis:
Vozes, 1981.
HALL, Christopher A. Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja.
Viçosa: Ultimato, 2000.
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980.
KELLY, J. N. D. Golden Mouth. The Story of John Chrysostom.
Ascetic, Preacher, Bishop. Grand Rapids: Baker Books, 1995.
LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão. Os movimentos
ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano.
Viçosa: Ultimato, 2002.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
47
MEULENBERG, Leonardo. João Crisóstomo. As mãos calejadas.
Petrópolis: Vozes, 1994.
VV AA. Evangelização e responsabilidade social. Série Lausanne
V. 3. São Paulo: ABU Editora. Belo Horizonte: Visão Mundial, 1984.
WILBEFORCE, William. Cristianismo verdadeiro. Brasília: Editora
Palavra, 2008.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
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Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de
Plauto
Claudia Beltrão da Rosa75
Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar.
ego Lar sum familiaris ex hac familia
unde exeuntem me aspexistis. hanc domum
iam multos annos est cum possideo et colo
patri auoque iam huius qui nunc hic habet
(Plauto. Aul. 1-5).
A religião inseria-se em todos os aspectos da vida individual e
coletiva na urbs, sendo expressa em discursos e rituais cujos vestígios
nos permitem uma via de acesso à sua compreensão (BEARD,
NORTH & PRICE, v.1., 1998; BELTRÃO, 2006). Trata-se de um
tecido de relações complexas, e acredito que era um dos principais
elementos que fundamentava a ordem moral da urbs, sendo um
elemento de coesão social, a partir da afirmação de uma ordem
sagrada. Minha principal preocupação é com as áreas da vida religiosa
sobre a qual temos uma quantidade maior de informação, de um tipo
ou de outro – rituais, festivais, instituições, edifícios religiosos,
santuários etc. e, dentre os possíveis documentos para a pesquisa
sobre a religião romana, está o texto dramático. O teatro romano
reflete a centralidade da religião e a importância do ritual. De certo
modo, o próprio drama é um ritual, e representações dramáticas
faziam parte de festivais cívicos em Roma desde 240 a.C. Desse
modo, acredito que a análise da dramaturgia romana pode não apenas
75
Professora Associada de História Antiga do Departamento de História e do
Programa e Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO). Projeto de Pesquisa atual: Religio romana: uma
analise de instituições religiosas em discursos tardo-republicanos. e-mail:
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ampliar o corpus documental das pesquisas sobre a religião romana
em geral, mas, e especialmente, aprofundar nossa compreensão das
crenças e práticas religiosas romanas.
Elementos da vida cotidiana são presenças constantes nas
comédias de Plauto, por isso, buscando passagens e indícios que
possam nos auxiliar na difícil tarefa de observar alguns aspectos da
religião doméstica, optamos por apresentar uma brevíssima análise da
comédia Aulularia, peça da qual não sabemos a data da primeira
encenação (provavelmente, em fins da década de 190 d. C). Esta
comédia, cujo motivo central é a avareza de Euclião, figura ridícula,
transtornada pela descoberta de um tesouro, tange o tema da fortuna
da família, defendida pelo Lar familiaris, e o texto dramático – posto
que a encenação propriamente dita é praticamente inalcançável para
nós – pode ser um guia para a análise de práticas religiosas
domésticas. Nosso objetivo é, então, tentar entrever práticas e crenças
relacionadas à religião doméstica romana. Há, porém, vantagens e
desvantagens no uso da documentação dramática numa investigação
sobre discursos, ritos e práticas religiosas.
Uma de nossas premissas é considerar as comédias de Plauto
não como simples ―adaptações‖ de comédias gregas, mas como
representações cênicas complexas, encenadas e fazendo apelo a
audiências concretas em Roma e, posteriormente, outras cidades da
Itália. As peças devem, então, ser analisadas em seu contexto, e não
isoladamente. Por exemplo, o Sticchus foi encenado nos ludi Plebeii
(200 a. C); o Pseudolus, na inauguração do templo da Magna Mater
(191 a.C.); o Phormio, de Terêncio, nos ludi Romani (161 a.C.) e seu
Adelphoe, nos funerais de L. Emílio Paulo (160 a.C.). E. Gruen, por
exemplo, trouxe uma discussão interessante sobre vários ludi, as
diversas instâncias de realização, entre 216 e 179 a.C., e outras
ocasiões nas quais ludi scaenici ocorreram neste período (GRUEN,
1992). Percebemos, então, que as peças eram encenadas,
principalmente, em ocasiões e festividades de grande importância
religiosa e política na Roma republicana. Um risco, contudo, é
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superestimar o efeito dessas peças sobre suas audiências, apesar de
sabermos que houve um incremento crescente de performances
teatrais, por exemplo, nos ludi Romani (nos quais, um drama de Lívio
Andrônico foi encenado em Roma, pela primeira vez, em 240 a.C.),
acrescentando-se os ludi Apollinari (a partir de 212 a.C.), os ludi
Plebeii (desde pelo menos 200 a.C.), as Cerealia (antes de 201 a.C.),
as Megalensia (desde 194 a.C.) e as Floralia (desde ca. 210, tornados
anuais em 173 a.C.).
No final da II Guerra Púnica, Salus, Victoria, Fides, Spes,
Fortuna, Libertas, Honos et Virtus, Mens e Concordia tinham pelo
menos um templo em Roma. As comédias de Plauto são interessantes
para os estudos de religião romana por terem sido escritas e encenadas
nos anos em que um grande número de divindades (relacionadas, em
geral, com personificações de virtudes) ―ganhou uma casa‖ em Roma,
permitindo que vislumbremos algo de sua recepção e das respostas a
tais divindades na urbs.
Os espaços físicos nas cidades, nos quais as peças eram
encenadas (espaços teatrais) e a participação cênica, mesmo indireta,
de divindades que recebiam culto público ou privado em Roma,
constitui um elemento importante das performances, criando as
interdependências entre o espaço ficcional e o espaço cívico, entre
personagens e espectadores, especialmente porque as peças eram
encenadas, ao que tudo indica, em espaços religiosos (cf. RAWSON,
1991).
Na Aulularia, 582-6 e 606-18, temos uma passagem
interessante para nossos propósitos. Trata-se do apelo de Euclião, o
avarento, à Fides, em cujo templo tenciona esconder seu pote de ouro,
e do apelo de Estróbilo, o escravo, à mesma deusa, a fim de roubar o
ouro, o que só consegue depois que Euclião resolve transferir o pote
para o túmulo de Silvano, fora da cidade. Aqui, vemos um indício do
caráter fisicamente localizado das divindades romanas e de seu poder,
nesta Atenas-Roma da comédia. Ambas as personagens sentiam-se
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aptas a usar um espaço fisicamente delineado em ―Roma‖ pelo culto
da Fides, tanto para conseguir atingir seus objetivos, quanto para
reivindicá-los.
Se podemos assumir que houve uma peça de Menandro que
serviu como modelo para Aulularia, a escolha de Fides na cena é
certamente de Plauto, pois a Pistis grega, que seria a divindade mais
semelhante da Fides romana, não parece ter tido um altar na Grécia
até a época de Adriano. Euclião reivindica um acordo prévio com a
deusa (Fides, você me conhece e eu te conheço), e dá a entender que,
para ele, o significado da divindade é sinônimo de ―confiança‖, ―boa-
fé‖. Já Estróbilo pede que Fides prefira a ele, e não a Euclião, e que
lhe seja ―fiel‖ (fidelis). Vemos que há uma leitura discrepante aqui.
Fides, cujo templo no Capitólio foi construído pouco antes do
nascimento de Plauto, não operava apenas na esfera dos tratados, mas
também num domínio ao qual, as comédias antigas faziam apelo e
ostensivamente se situavam: o domínio da vida quotidiana,
corriqueira, das pessoas ―comuns‖. Assim, a discrepância entre os
apelos das personagens à Fides pode ser ilustrativo: o escravo não
parece se referir à Fides do mesmo modo que Euclião, um
paterfamilias, mesmo que vicioso. Euclião declara ter excelentes
relações de confiança com a deusa; Estróbilo parece se remeter a um
sentido de ―obter um crédito‖ da Fides, para que a deusa permita o
roubo, o que, no palco cômico, surge como perfídia. Assim,
perguntamos: poderíamos interpretar esta discrepância de sentido
como um exemplo das negociações quotidianas com os deuses,
diferentes conforme a posição que cada um ocupava na sociedade
romana e, consequentemente, em diferentes percepções da ordem
social e divina? A distinção entre confiança e perfídia, expressa nos
apelos das personagens à Fides, teria uma relação com a cosmovisão
romana? O escravo revela um certo júbilo em relação ao possível
sucesso de seu plano. Poderia esta fala estar vinculada a uma visão
aristocrática, detectada em textos posteriores à Plauto, sobre a perfídia
de escravos? È possível, pois a comicidade de uma peça só e somente
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só faz sentido se estiver de acordo com, não apenas, o universo
cognitivo de seu público, mas principalmente com suas crenças
morais, ou o riso não ocorre.
Na Aulularia, o riso assoma quando Euclião, o paterfamilias
avarento e desconfiado, por isso ―não-confiável‖, reivindica o apoio
da Fides, enquanto Estróbilo, o escravo, exterior à fides romana,
―pérfido‖ portanto, endereça a Fides um apelo para que lhe dê um
crédito, por ser um ―bom escravo‖ (seruus frugi), ou seja, por visar à
felicidade de seu senhor, para quem entregaria o ouro esperando, em
troca, sua manumissão (um tema recorrente em Plauto).
É importante, porém, lembrar que Estróbilo não consegue
realizar o roubo no templo da Fides, e só obtém o sucesso quando
Euclião, sempre desconfiado, transfere o pote de ouro para fora do
pomerium, para fora do solo consagrado de Roma, entregando-o a
Silvanus, um deus anterior à urbs, que vive nas matas (silvae) do
Lácio, que não atende aos ditames das regras sociais, e isso permite
entrever algumas características da religio romana.
Como apresentamos em publicação recente,
O termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro,
forâneo, forasteiro, era um dos termos-chave na definição
do limite entre o espaço doméstico e aquilo que era deixado
de fora, o mundo exterior, estranho e adverso, domínio das
feras e das divindades não aplacadas, culminando no
Forum romanum, centro da res publica, o espaço que
concentrava os cidadãos, local que criava o espaço público
comum a todos e estabelecia os limites entre o romano e o
não-romano, influenciando a paisagem social, fomentando
relações de convivência, estabelecendo leis e costumes, e
depois, segundo Cícero, a organização do direito e a
disciplina da vida, de modo a proteger a vida (De Off. II,
15). Daí a sacralidade de tais lugares e a identificação da
urbs com os templos de seus deuses, com os sepulcros de
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seus antepassados e com os marcos limiares. O valor desses
marcos é expresso no rito de fundação de uma cidade, que
evocava o rito etrusco, criando um baluarte sobrenatural
com sua dimensão sagrada (sacer). A idéia é expressa por
Cícero, assinalando a força da comunidade de sangue na
formação da res publica, exaltando os monumentos dos
maiores, o uso dos mesmos lugares sagrados e dos
sepulcros comuns (De Off. I, 55). (BELTRÃO, 2008).
Acreditamos que a força da religio romana estava contida em
cada domus, estendendo-se ao forum romanum e procedia tanto de sua
íntima relação com as divindades como com os antepassados, e isso é
visível na comédia. A casa é um santuário, com seus Lares e Penates,
no qual oficiava como sacerdote o paterfamilias. A Aulularia nos
interessa especialmente pela presença de uma divindade no prólogo. A
comédia nos traz um Lar familiaris, o deus doméstico par excellence,
que apresenta a trama para o público. Após se apresentar como o
protetor divino da familia, conta como o avô de Euclião lhe confiou
um tesouro, destacando a avareza dos patresfamilias, avô/filho/neto e
o descuido de Euclião em relação ao culto doméstico, motivo pelo
qual manteve em segredo o ouro que guardava:
LAR. Is quoniam moritur, – ita auido ingenio fuit
– Numquam indicare id filio uoluit suo,
Inopemque optauit potius eum relinquere
Quam eum thesaurum commonstraret filio.
Agri reliquit ei non magnum modum,
Quo cum labore magno et misere uiueret.
Vbi is obiit mortem qui mihi id aurum credidit,
Coepi obseruare, ecqui maiorem filius
Mihi honorem haberet quam eius habuisset pater.
Atque ille uero minus minusque inpendio
Curare minusque me impertire honoribus.
Item a me contra factum est: nam item obiit die <m>.
Is ex se hunc reliquit qui hic nunc habitat filium
Pariter moratum, ut pater auusque huius fuit (v. 9-22).
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Tradução da autora :
Como estava para morrer – e era por natureza avarento –
jamais quis revelar isso ao seu filho, e preferiu deixá-lo
pobre a mostrar-lhe o referido tesouro. Deixou-lhe uma
pequena extensão de terra, para que vivesse
miseravelmente e com grande sacrifício. Quando aquele
[avô de Euclião] que me confiou o tal ouro morreu,
comecei a observar se porventura o filho [pai de Euclião]
me prestava maior honra do que seu pai fizera. Mas, na
verdade, importava-se cada vez menos (comigo) e menos
me reverenciava com oferendas. Em resposta, tratei-o de
maneira semelhante, pois morreu na mesma penúria. (Ele)
deixou de si este filho [Euclião] que agora mora aqui, de
costumes iguais, como foi o pai e o avô dele.
E o Lar apresenta o motivo pelo qual fez com que Euclião
descobrisse o tesouro no lararium: a piedade de Fedra, filha de
Euclião, cujo casamento estava sendo preparado:
LAR. Huic filia una est; ea mihi cottidie
Aut ture aut uino aut aliqui semper supplicat;
Dat mihi coronas. Eius honoris gratia
Feci thesaurum ut hic reperiret Euclio,
Quo illam facilius nuptum, si uellet, daret (v. 23-
27).
Tradução da autora:
Este tem uma filha que me presta culto sempre, todos os
dias, ou com incenso ou com vinho ou com alguma outra
coisa. Dá-me coroas de flores. Por causa desta
consideração, fiz com que Euclião encontrasse aqui (no
lararium) o tesouro, para que, se quisesse, a concedesse
mais facilmente em casamento.
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Os Lares familiares eram divindades domesticas que cuidavam
da casa da familia romana e de seus moradores. Cultuados no
lararium nas Kalendas, nas Nonae e nos Idos do mês, além de em
ocasiões especiais, principalmente os casamentos. Eram benfazejos
para a familia, desde que tratados com atenção e respeito, mas
sabemos muito pouco a seu respeito.
De fato, o principal obstáculo para o estudo da religião
doméstica é sua inconsistência e ubiqüidade. Uma imensa quantidade
de referencias imagéticas e escultóricas a divindades romanas em
contextos domésticos chegaram até nós, mas a linha que demarca
esses vestígios, permitindo distinguir com clareza o que era um objeto
de culto, e o que era um objeto decorativo é obscura. Rigorosamente
falando, pinturas e objetos que apresentam representações de
divindades são indícios inseguros para um estudo da religião
domestica propriamente dita, e por religio domestica entendo as
práticas rituais realizadas pela familia romana.
Os Lares familiares, os Penates76
e o Genius77
doméstico –
sejam pintados ou representados de modo tridimensional – são as
únicas figuras que podemos assumir como objetos religiosos stricto
sensu nas casas da elite romana. O material iconográfico restante é por
demais equívoco, como demonstram as pesquisas de Kaufmann-
Heinimann (2007). Paul Zanker (1999), do mesmo modo, tratando de
pinturas com representações divinas em contextos domésticos destaca
três pontos: a) as imagens são polissêmicas, e sua interpretação pode
variar, b) as imagens propiciavam uma ocasião para que os
espectadores as interpretassem, demonstrando um alto nível cultural;
76
Deuses das despensas (penus) que tinham seu lugar no atrium das casas
romanas, considerados protetores da casa, junto com os Lares. 77
O espírito (numen) do paterfamilias, que lhe garantia o poder gerador,
simbolizado por uma serpente. Seu local era o lectus genialis (a cama do
casal principal da casa). O culto do genius, ao que consta, ocorria no dia do
aniversário do paterfamilias.
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56
c) a despeito da variação de temas, as pinturas costumam não estar
vinculadas, rigorosamente falando, à ação mítica correspondente, mas
harmonizam-se em ações que misturam cenas tradicionais, geralmente
com dois protagonistas, e os deuses chegam a ter rostos de
contemporâneos, penteados da moda etc. Ilustravam, assim, a cultura
e a riqueza de seu proprietário, exaltando uma vida idílica e
harmoniosa. Assim, definir a relação entre as pinturas murais e as
práticas religiosas é tarefa difícil, à exceção das pinturas dos lararia.
Euclião, o avarento, é uma personagem ridícula por não
corresponder ao ideal do paterfamilias, sacerdote de sua familia,
desagradando ao deus de sua casa. Este deus residia no recinto
doméstico e, em seu altar (ara) de pedra, de forma quadrangular,
próximo à lareira, deveriam ser oferecidos os sacrifícios propiciatórios
que estabeleciam as relações com os seres divinos e com os numina
dos antepassados, cujos restos repousavam em um sítio que na urbs
encontrou seu lugar fora das casas, o que o dominus Euclião não fazia.
Na Aulularia, além de outros aspectos das crenças e atitudes romanas
em relação à vida religiosa, conseguimos entrever elementos sobre os
Lares que apenas pelo material iconográfico não conseguiríamos, daí
sua importância, além de menções a elementos da religio domestica
serem raros em outras fontes textuais.
O centro da religio domestica era o lararium, o coração da
domus, onde era alimentado o fogo (sagrado) e residiam as divindades
domésticas, assim como, no forum, ardia o fogo de Vesta, na lareira
circular que centralizava a religio romana. Uma enorme quantidade
de estatuetas de bronze e de outros materiais foi encontrada em quase
todo o território imperial, além de pinturas em lararia. Se não
podemos obter conclusões mais seguras sobre o culto doméstico pela
própria natureza da documentação, podemos, contudo, entrever a
importância da religio domestica em Roma e outras cidades imperiais.
Além disso, por um documento tardio, podemos perceber a
permanência do culto doméstico: o edito de Teodósio, de 392 d.C.,
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57
que proíbe o culto dos Lares, do Genius e dos Penates (Cth.
16.10.12).
Referências bibliográficas
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manifestações literárias. In: LIMA, A.C.C.; TACLA, A.B.
Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA. Ano I, n.1. Niterói:
Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA/UFF),
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GRUEN, E.S. Culture and National Identity in Republican Rome.
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KAUFMANN-HEINEMANN, A. Religion in the House. In: RÜPKE,
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RAWSON, E. Roman Culture and Society: Collected Papers.
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ZANKER, P. Mythenbilder im Haus. In: DOCTER, R.F.;
MOORMANN, E.M. (edd.). Proceedings of the XVth International
Congress of Classical Archaeology, Amsterdam: Allard Pierson
Series 12, 1999: 40-8.
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Homero: magia e encantamento da palavra poética
Flávia Maria Schlee Eyler*
Estabelecer e percorrer um caminho entre as fronteiras, nem
sempre firmes e visíveis, que separam o sagrado e o profano e que
aproximam e distinguem religião, mito, rito e magia nas discussões da
antropologia ou na história comparada das religiões, não é uma tarefa
fácil. Por outro lado, os debates sobre o estatuto do mito como um
saber pré-lógico, relativo a uma mentalidade primitiva irredutível à
racionalidade dos povos civilizados, também estão muito
comprometidos com os projetos civilizatórios do mundo ocidental.
Afinal, a recusa racionalista do mito em suas diferentes formas é parte
constitutiva de nossa tradição. Assim, gostaríamos de propor uma
reflexão que tenta, na medida do possível, devolver o problema das
relações ente mythos e logos, ao próprio mundo que o produziu, ou
seja, ao mundo grego antigo. Neste caso, nos deparamos com uma
variabilidade importante de sentidos delimitada historicamente, tanto
no que diz respeito à definição de mythos, quanto na de logos e nas
relações entre ambos. O que está em jogo, aqui, não é somente uma
questão do estatuto do mythos ou do logos, mas, sobretudo a
concepção de verdade com a qual nos propomos medi-los.
Nosso ponto de partida é uma indagação sobre quando, porque
e como as palavras (mythói) que compõem a epopéia homérica
deixaram o território da ―palavra eficaz‖, que dizia a verdade
(alethéia) e instaurava o próprio real e foram, quando dissociadas do
aedo que as pronunciava, habitar o território da magia e do
encantamento, não sem antes percorrerem um complexo julgamento,
que pretendemos abordar, no enfrentamento com o logos filosófico.78
* Doutora em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Professora da Graduação e Pós- Graduação do Departamento de
História da PUC-Rio. Atualmente coordena o projeto ―Literatura e Produção
de Saberes‖ – CNpq. E-mail: [email protected].
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A designação de Homero como poeta, poietés é tributária do contexto
do século V a.C.. Até então, ele era designado como cantador, aedo,
isto é, como aquele que cantava inspirado pelas musas, os altos feitos
dos homens heróicos e dos deuses; aquilo que valia a pena ser
lembrado ou que devia ser censurado e esquecido. Sua palavra,
fundada sobre um dom de vidência identificava-se com a verdade; era
mágico-religiosa porque escapava à temporalidade dos homens e
estava em conformidade com a ordem cósmica.
No mundo grego arcaico, somente a palavra de um cantor
permitia escapar do silêncio e da morte, condição dos homens.
―Alethéia opõe-se à Léthe e a Mômos. Ela está do lado da Luz:
Alétheia dá brilho e esplendor [...]. O poeta é capaz de ver a
Alethéia, ele é um „mestre da Verdade‟‖ (DETIENNE, 1988: 21).
Uma verdade que não é pura memória, mas que também precisa
esquecer. Para Brandão, se as Musas fossem só memória, sem
esquecimento e pausa, não deixariam de ser o mesmo que as Serias:
deusas fatais por um encanto sem fim. Por serem filhas mescladas de
Zeus e Métis, elas proferiam tanto o conveniente, quanto o
inconveniente.
Podemos pensar também, como aponta Brandão, em um
Homero que nada mais era que o narrador dos poemas homéricos uma
vez que ele não conhecia nem o nome do agente (poiétes), o nome da
78
A palavra de Homero suscitou uma série de controvérsias que delimitaram
seu estatuto diante do logos filosófico, do político e do poético. Afinal, a
questão que se colocava não era uma simples oposição entre a verdade da
filosofia e a mentira da poesia, entre alethéia e pseudos, e sim seu conteúdo
que muitas vezes representava os deuses e heróis de modo errôneo. Quando
não eram belas, a imaginação como pseudos, induzia a uma falsa idéia do
divino e do que deveria ser justo ou injusto. Os deuses em Homero e nos
trágicos eram contraditórios, incertos e impiedosos. Afinal, nenhum homem
deveria ser venerado acima da verdade e esta, certamente, estava longe da
imitação dos poetas. Ver PLATÃO. A República. Livros VII e X, Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
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ação (poiesis) e nem mesmo o nome do resultado da sua ação
(poiema). ―Quando Homero invoca a Musa, é uma primeira pessoa
não nomeada que se dirige a uma segunda pessoa bem definida pelo
vocativo, a deusa, para ordenar-lhe que cante a cólera de Aquiles‖
(BRANDÃO, 2005: 36). Segundo o autor, há, mais do que inspiração,
uma cooperação entre poeta e musa. O que está em jogo são a
diferença entre o que se vê e o que se ouve: ―as deusas presenciam e
têm tudo visto; já os homens, nós, temos nada visto porque só
ouvimos. Ouvimos o quê? Apenas a duração do ouvir que foge com o
presente ou dura só o que dura a presença‖ (BRANDÃO, 2005: 86).
Foi contra esse tipo de pensamento e de saber ―por ouvir
dizer‖ dos poetas que o logos filosófico se configurou historicamente
junto com a formação da polis. Afinal, diante do mythos, entendido
também como um ―contar histórias‖, como enredo e intriga, o logos
filosófico ofereceu, pela dialética, uma visão mais alta e liberada dos
enganos das aparências. Tal questão torna evidentes as possíveis
relações e limitações entre o plano dos homens e o plano divino, ―se é
verdade que o poeta discorre sobre os acontecimentos memoráveis
(os kléa andron), há várias formas de fazê-lo, pois cada poema
depende de um complexo de cooperação entre o poeta, os deuses e o
público, que não necessariamente é harmônico‖ (BRANDÃO, 2005: 91). Não havia, então, uma garantia inabalável com relação à
fidelidade do canto aos feitos o que era agravado pelo fato de que,
com Hesíodo, as musas também nem sempre diziam a verdade.
―Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas
mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir
revelações‖ (HESIODO, Teogonia , vs 22-28).
Como as Musas, por sua própria genealogia, também sabiam e
podiam enganar, era preciso reavaliar a palavra poética perante as
novas necessidades da polis. A palavra diálogo da política e o logos da
filosofia eram os limites que, a partir do século V a.C., estabeleceram
uma nova partilha e um novo estatuto para a poesia. No entanto,
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apesar da evidência de uma luta entre mythos e logos na história dos
gregos antigos, nenhum dos dois adversários foi destruído. Antes de
supervalorizar a potência do logos diante do mythos é preciso
compreender o enfrentamento de dois tipos de palavra que tinham as
mesmas pretensões, ou seja, a produção de sentido e verdade no
mundo dos homens. Para nosso ponto, basta por ora perceber a
aproximação entre alethéia e pseudos no mythos, mas não como uma
simples oposição entre verdadeiro e falso.
Em suma, como alguns filósofos, pensamos neste trabalho em
Platão, que condenavam o mythos escreviam seus enunciados em
forma de poemas, temos que refletir onde estava, de fato, o problema.
O ponto do debate não estava, portanto, apenas na forma (lexis) de
apresentação do pensamento, mas no caráter mimético da poesia e,
sobretudo, na sua utilidade para uma boa educação dos cidadãos.
Afinal, até então, Homero havia sido o grande educador dos gregos. 79
79
Diante da ambiguidade da palavra poética, o logos filosófico instala a
dicotomia entre essência e aparência, imanência e transcendência e,
sobretudo entre o dizer e o ser. Abre caminho para a metafísica ocidental
onde não mais há lugar para a ―palavra eficaz‖ que, ao ser pronunciada,
instituía o próprio real. Mas sem a palavra mântica e eficaz, os gregos
tiveram que enfrentar o abandono dos deuses e uma possível co-operação
entre eles como aponta Brandão. É aos olhos do filósofo que essa revelação
do divino exige ser ultrapassada. Para tal, o modelo que se vislumbra e cujo
sentido está não na experiência, mas justamente no logos, permite que sua
simples formulação lógica se constitua como um acontecimento virtual que
não se opõe ao real e sim ao factual e ao histórico. Para um maior
aprofundamento da questão, ver BRANDÃO, Jacynto José Lins. Antiga
Musa: arqueologia da ficção. Belo Horizonte: UFMG, 2005 e AGAMBEN,
Giorgio. Infância e História - destruição da experiência e origem da
história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
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62
Para desenvolver esse problema, vamos tomar, aqui, mythos e
logos como dois tipos de discurso80
, o poético e o filosófico-científico.
O mito não seria apenas uma maneira pré-científica de procurar as
causas que, naquele momento, a filosofia também procurava. Se assim
o fosse, a própria função de efabulação teria um valor premonitório e
exploratório em relação a certa dimensão da verdade que não se
identifica com a verdade do logos científico. Mas seria a verdade
científica toda a verdade? Haveria alguma coisa dita pelo mito que
não poderia ser dita de outra forma? ―Eis a antinomia: de um certo
ponto de vista, mythos e logos opõem-se; de um outro ponto de vista,
mythos e logos unem-se, conforme a velha etimologia que identifica
mythos com palavras‖ (RICOEUR,1988: 10).
A partir daí talvez possamos olhar de outra maneira para um
problema que ainda nos acompanha e que, de modo resumido se
instala nas relações entre representação e conceito e, sobretudo, nas
relações entre linguagem e mundo. De acordo com Paul Ricoeur, as
palavras, como signos, tanto se apresentam como virtualidade num
sistema semiótico da linguagem, quanto como elementos que
atualizam essa linguagem em um discurso atravessado pela semântica
e que assim se relaciona com o mundo. A diferença entre semiótico e
semântico, entre língua e discurso indica a própria aporia da
linguagem humana e ao mesmo tempo, é essa impossibilidade de
passagem que pode produzir um saber e uma história. Pois, para um
ser que já fosse sempre falante e estivesse sempre em uma língua
indivisa, ―ele seria desde sempre unido à sua natureza linguística e
não encontraria em nenhuma parte uma descontinuidade e uma
80
Paul Ricoeur trata a linguagem no quadro de uma teoria da interpretação e,
neste caso, o discurso é o seu ponto de partida. Ricoeur ultrapassa o debate
entre semiótica e semântica e propõe-se trabalhar a linguagem como abertura
cuja função constitutiva é transcender a si própria e se apresentar como sinal
e transporte para uma realidade que advém e para uma experiência singular
que exige visibilidade e partilha. A linguagem é mediação e meio no qual e
pelo qual o sujeito se põe e o mundo se mostra. Ver RICOEUR, Paul. Teoria
da Interpretação. Lisboa: Ed.70, 1976.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
63
diferença nas quais algo como um saber e uma história poderiam
produzir-se‖ (AGAMBEN,2005: 14).
A distinção e a aporia entre semiótica e semântica permitem
que a linguagem seja compreendida como limitação e fratura, por
evidenciar que o discurso humano se inicia sempre ―im media res‖ e
jamais pode atingir um saber absoluto. Por outro lado, é exatamente
tal limitação que permite a articulação das experiências humanas no
tempo. Nesse sentido, a linguagem é sempre sinal e transporte e,
enquanto tal aponta para a realidade de experiências singulares que
exigem visibilidade e partilha. É também mediação e meio no qual e
pelo qual o ―sujeito‖ se coloca e o mundo se mostra. Paul Ricoeur não
fica preso na dicotomia entre consciência e mundo na medida em que
faz passar a interpretação (produção de significados) pela mediação
dos signos. Assim, existe uma função simbolizadora como origem da
vida social e não apenas como sua consequência, o que é fundamental
para a compreensão da ―palavra eficaz‖ dos aedos com a qual estamos
lidando.
Tomar o mythos e o logos como a atualização da linguagem
em discurso, segundo Ricoeur, exige a consideração da dialética entre
sentido e referência, ou seja, contemplar quem diz, aquilo que se diz e
aquilo sobre o que se diz. O ―quê‖ do discurso é o seu sentido, o
―acerca de quê‖ é a sua referência. Enquanto o sentido é imanente ao
discurso, a referência exprime o movimento em que a linguagem se
transcende a si mesma, ou seja, em que ela se abre ao mundo, e pode
como veremos, ser compreendida de outras formas, como acontece a
Homero ao longo da história. No entanto, tal abertura diz respeito às
dificuldades da produção de sentido e à sua variabilidade em
diferentes contextos. Uma vez que há mais de um significado das
palavras, elas recebem do contexto e uso a delimitação do seu valor. A
linguagem como expressão é um dizer de algo que pede para ser dito e
é a temporalização do ser que emerge no tempo presente enquanto
acontecimento do discurso. Mas, por outro lado, esse dito do dizer é
uma instância discursiva, um ato de alguém que quer articular uma
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
64
experiência e compartilhá-la. Desse modo, toda instância discursiva é
rememoração, é um querer dizer algo que, enquanto experiência
vivida é inesgotável e aponta sempre para um futuro possível do dizer.
Quando tanto a palavra mágico-religiosa quanto a palavra racional são
pronunciadas, a solidão da vida é, por um instante, iluminada pela luz
comum do discurso. A linguagem, assim compreendida, permite uma
abertura que diferencia a voz humana no mundo da physis pela
entrada no plano da constituição de um sentido do ser e do viver e da
configuração de mundos onde o habitar humano passa ser possível.
Como o discurso enquanto evento só existe numa instância
temporal, ele se desvanece enquanto voz, mas paradoxalmente, só ele
pode ser fixado em algum suporte. Aqui não vamos entrar no debate
entre oralidade e escritura no mundo grego porque, consideramos que
tanto a escrita, aquilo que ia das mãos aos olhos, quanto a memória do
poeta, que ia da boca aos ouvidos, eram suportes relativamente
confiáveis do dizer. Como ambas as inscrições não são propriamente
os eventos, mas a sua significação temos que admitir que cheguem até
nós como algo que podemos interpretar. Há uma matéria que se molda
de acordo com determinadas exigências e, neste caso, ―os gêneros
literários obedecem a uma espécie de artesanato, que nos permite
falar de produção e de obras de arte e, por extensão, de obras de
discurso‖ (RICOEUR, 1976: 44).
Para Ricoeur, é aqui que a escrita interfere na medida em que
ela faz da linguagem a matéria de um artesanato específico. De modo
geral, quando a escrita toma o lugar da fala, seu destino é confiado à
letra e não mais à voz. ―A situação dialógica foi destruída. A relação
escrita-leitura já não é um caso particular da relação entre fala e
audição‖ (RICOEUR, 1976: 41). Como salienta o autor, a
hermenêutica começa onde o diálogo acaba. Assim, faz parte da
significação de um texto estar aberto a um número indefinido de
leitores e, por conseguinte, de interpretações. Graças à escrita, o
homem e só o homem tem um mundo e não apenas situações. Para
nós, o mundo é o conjunto de referências abertas pelos textos. ―É
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
65
nesse sentido que podemos falar do „mundo grego‟; já não é
imaginar o que eram as situações para os que lá viviam, mas
designar as referências não situacionais exibidas pelos relatos‖
(RICOEUR, 1976: 47). Desse modo, devemos desconfiar de que a
epopéia homérica, por ter sido um dia fixada pela escrita mantém-se
imune ao devir da variação ou que permite um acesso privilegiado
àquilo que um dia foi sua oralidade primeira.
Longe do encontro de uma oralidade primeira, ou do sonho
metafísico que abriga ali, a ilusão de uma presença plena na estrutura
dupla do signo composta de significante/significado, só nos resta a
escritura que, como rastro faz do significado não mais que um
significante. O encerramento da metafísica, e da semiologia que com
ela sempre foi solidária, implica a consciência de que não existe
nenhum acesso a uma origem que não seja a do significante e do
rastro daquilo que um dia foi sentido e destino no tempo. ―A origem é
um arqui-rastro, que fundamenta a própria possibilidade do aparecer
e do significar na ausência de origem‖ (AGAMBEN, 2007: 247).
Se o mito, de modo geral, é um discurso, isto é, uma
sequência de enunciados ou frases com sentido e referência, temos
que admitir que o mito diz alguma coisa sobre alguma coisa. E tal
discurso só é identificado como mítico porque historicamente ele se
diferencia de outros discursos. Nesse sentido, podemos pensar a
epopéia homérica na função instauradora de uma diferença entre dois
tempos, o dos heróis e o seu próprio tempo. Diferentemente da
verdade da história, só há mito quando o acontecimento base não
acontece na história, mas num tempo anterior a ela; in illo tempore, o
mito é essencialmente a relação do nosso tempo com esse outro tempo
que o constitui. O mito diz sempre como alguma coisa nasceu; em
Homero temos a cólera de Aquiles e a volta de Odisseus. A função de
instauração pode ser assumida por seres sobrenaturais de natureza
muito diversa: deuses, mensageiros, heróis, etc. Mas essas figuras são,
para Paul Ricoeur, apenas variáveis de uma função instauradora. Por
outro lado, é na medida em que o mito institui a ligação do tempo
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66
histórico com o tempo primordial que a narração das origens ganha
valor de paradigma para o tempo presente. Se o mito pode ser revivido
ritualmente, pode ser considerado como a instrução que permite a
celebração do rito e, em conseqüência, repetir o ato criador. Essa
relação entre os tempos também permite uma reativação emocional,
ou seja, o ―viver segundo‖ um mito seria deixar de existir apenas na
vida quotidiana. Tal questão nos remete à função da própria
imaginação que, a partir do confronto entre mythos e logos nos leva à
aporia das relações entre linguagem e mundo.
Podemos relacionar a epopéia homérica a uma dimensão
sapiencial do mito, porque ―ela é uma província da memória grega,
cujo império se estende desde as genealogias lineares até os apólogos
verborrágicos através dos provérbios, dos elogios aos vivos, das
lendas, das homenagens aos mortos e das teogonias ou dos contos
maravilhosos‖ (DETIENNE, 1992: 50). Compreender como as coisas
começaram é saber o que agora elas significam e que futuro
continuam a oferecer ao homem. Mesmo em sua autonomia, confiada
a narradores especializados, treinados de acordo com processos
mnemotécnicos num meio profissional, na narração épica há zonas
obscuras da experiência humana. Essas são a face da noite com a qual
os homens têm que viver e que só podem se reconciliar no mistério e
enigma da palavra poética que é sempre refeita quando se acredita tê-
la decifrado.
A reflexão sobre as relações entre linguagem e mundo nos
permite a aproximação da palavra poética de Homero em outros
contextos e usos como magia e encantamento. ―A primeira descrição
literária segura do uso mágico de um verso homérico é atestada por
Luciano de Samósata (nascido em cerca de 120 d.C.) no diálogo
Caronte (7.12-13) e nele o objetivo do uso do verso é especificamente
a cura‖ (COLLINS, 2009: 162). Neste caso, seguindo o princípio da
analogia, o deus Hermes diz que pode facilmente curar a visão curta
de Caronte ao tomar um encanto da Ilíada. Os versos recitados são as
palavras que a deusa Atena dirige a Diomedes no momento em que
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67
ele precisa mostrar sua aristeia contra os troianos. ―Vou desfazer a
caligem que os olhos brilhantes te cobre, que distinguir, facilmente,
consigas os deuses e os homens‖ (HOMERO. Ilíada, livro 5, vs127-
128).
O contexto narrativo e a própria autoridade de uma palavra
que guarda um tempo primordial no qual a palavra do poeta era
inspirada pelas musas, sinalizam o significado dos próprios versos
escolhidos. Quando o Hermes de Luciano diz os mesmos versos
proferidos por Homero, eles permitem que Caronte veja mais
claramente. Pensamos também, como Agamben, que essa
possibilidade de encantamento e magia se dá exatamente na fratura de
uma presença que abre um mundo e sobre o qual se sustenta a
linguagem. Assim, a metafísica da escritura e do significante
desenvolvida a partir do logos filosófico grego ―não é mais do que a
outra face da metafísica do significado e da voz, o vir à luz do seu
fundamento negativo e não, certamente, a sua superação‖
(AGAMBEN, 2007: 248). A possibilidade dessa experiência mágica e
encantada do dizer redireciona nossa concepção tradicional da língua
como um patrimônio de nomes e de regras que se transmite pela
cultura. Devemos pensar que há uma abertura entre linguagem e
mundo, entre a voz e o logos. Neste caso, a expressão justa para a
existência da linguagem, seria a própria vida humana enquanto ethos,
enquanto vida ética. ―Buscar uma polis e uma oikia que estejam à
altura desta comunidade vazia e impresumível, esta é a tarefa infantil
da humanidade que vem‖ (AGAMBEN, 2008: 17).
Documentação Textual
PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 1991.
HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
68
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História – Destruição da
experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
_________________. Estâncias – A palavra e o fantasma na
cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. Antiga Musa (arqueologia da ficção).
Belo Horizonte: UFMG, 2005.
COLLINS, Derek. Magia no mundo Grego Antigo. São Paulo:
Madras, 2009.
DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
RICOEUR, Paul. Grécia e Mito. Lisboa: Gradiva, 1988.
______________. Teoria da Interpretação. Lisboa: Ed. 70, 1976.
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69
A Cristianização do Império Romano:
Algumas Considerações de Caráter Historiográfico
Gilvan Ventura da Silva 81
A expansão e fortalecimento das comunidades cristãs no
decorrer do século IV, fenômeno cujo epicentro foram os núcleos
urbanos disseminados a leste e a oeste do orbis romanorum, deu
margem pouco a pouco àquilo que a historiografia costuma tratar nos
termos da cristianização do Império Romano, um processo histórico
balizado pela atuação emblemática de dois imperadores cujas
biografias dominam o conjunto das narrativas sobre o fim do Mundo
Antigo: por um lado, Constantino, tido, por assim dizer, como o
―fundador‖ civil da Igreja, uma instituição destinada, segundo alguns,
a cumprir um papel capital nos destinos da Civilização Européia nos
séculos posteriores e, por outro lado, Teodósio, o responsável por
conferir ao credo cristão uma notável chancela jurídica por intermédio
do edito Cunctos Populos, mais conhecido como Edito de
Tessalônica. 82
Promulgado em fevereiro de 380, o dispositivo legal,
claramente inspirado nas decisões de Nicéia, reconhecia o
cristianismo catholicus (isto é, universal) como religião oficial do
Império Romano, determinando que doravante toda a população
81 Professor de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo.
Doutor em História pela Universidade de São Paulo. No momento, executa o
projeto de pesquisa intitulado ―Cidade, cotidiano e fronteiras religiosas no
Império Romano: João Crisóstomo e a cristianização de Antioquia (séc. IV
d. C.)‖ com apoio do CNPq mediante a concessão de bolsa produtividade. 82
Para uma ―releitura‖ recente do papel desempenhado por Constantino no
processo de cristianização, consultar Veyne (2007). Fazendo coro com
autores como Bury e Fontán, Veyne atribui ao imperador uma atuação
verdadeiramente revolucionária ao rejeitar o paganismo e abraçar o
cristianismo, opção que marcará a história pelos séculos seguintes. Aqui,
uma vez mais, vemos reproduzida certa tendência historiográfica em
superestimar a atuação pró-cristã de Constantino.
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70
deveria professar a religião que ―o divino Apóstolo Pedro transmitiu
aos romanos‖, ao mesmo tempo em que lançava na clandestinidade os
opositores à doutrina professada por Dâmaso, bispo de Roma e Pedro,
bispo de Alexandria (C. Th. XVI, 1,2). Desse modo, tendo iniciado a
sua trajetória ascendente nos estertores da Grande Perseguição de
Diocleciano e Galério, uma conjuntura turbulenta na qual era difícil
antecipar os desdobramentos futuros, a Igreja teria paulatinamente
consolidado a sua posição, passando a gozar, com Teodósio, de um
estatuto privilegiado, razão pela qual as décadas transcorridas entre
312 e 380 foram durante muito tempo consideradas testemunhas de
um processo histórico inexorável que alcançaria o seu apogeu com o
―triunfo‖ definitivo da Igreja, supondo-se, por intermédio dessa
expressão que, diante de um refluxo ostensivo do paganismo e do
judaísmo, sistemas religiosos minados por um esgotamento visível e,
por isso mesmo, incapazes de se conservar/reproduzir no tempo e no
espaço, o cristianismo já seria, em fins do século IV, a religião
predominante no Império.
Um modelo de interpretação acerca da cristianização do
Império calcado na noção de um ―triunfo‖ retumbante da Igreja
proporcionado por uma intervenção decisiva de Teodósio já se
encontra descrito, por exemplo, em The history of the decline and fall
of the Roman Empire, obra monumental de Edward Gibbon cujo
primeiro volume veio a público em 1776. Apesar de sugerir que
diversas práticas e concepções pagãs tenham se perpetuado sob um
invólucro cristão, configurando assim uma espécie de ―revanche‖
póstuma do paganismo contra os seus algozes, o autor, com base no
edito Cunctos Populos, ao qual aludimos, situa sob o governo de
Teodósio a destruição ―final‖ e ―efetiva‖ do paganismo. Ao menos
nesse aspecto, a interpretação de Gibbon se encontra condicionada por
uma tradição literária cristã que desde a fase final do Império se
dedicou a celebrar temas conectados à ―vitória da cruz‖, dentre os
quais um dos mais visitados foi, sem dúvida, a inesperada derrocada
de Juliano (CARVALHO, 2006). De fato, como salienta Peter Brown
(2003: 74), foi um setor ativo da intelligentsia cristã que se
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71
encarregou, não apenas de revestir os atos governamentais de
Constantino, Teodósio e demais sucessores contra o paganismo de um
sentido claramente teleológico, como se a ascensão do cristianismo
fosse o resultado da atuação da Providência na história, mas também
de difundir a idéia de que o paganismo e o judaísmo eram crenças sem
fundamento, obsoletas ou, conforme um jargão bastante empregado à
época, superstitiones. Seja como for, uma explicação como essa, ao
encontrar abrigo nas páginas de um historiador tão influente como
Gibbon, terminou por constituir um poderoso lugar de memória que,
durante muito tempo, orientou as investigações das relações entre o
cristianismo e os demais sistemas religiosos vigentes no final da
Antigüidade.
Assim é, por exemplo, que T. M. Lindsay, em um capítulo
cujo título, não por mero acaso, é ―The triumph of Christianity‖,
capítulo este inserido no primeiro volume da The Cambridge
Medieval History, de 1911, sustenta o argumento de que, após a morte
de Juliano, o paganismo experimentou um sensível declínio, com o
abandono e destruição dos templos e a extinção dos colégios
sacerdotais, de maneira que, na passagem do IV para o V século, as
antigas tradições religiosas greco-romanas não exerceriam mais
qualquer influência sobre a vida pública, convertendo-se os bispos nos
líderes ―naturais‖ de uma população que, em sua maioria, já havia
sido cristianizada. Iniciado no Oriente, o ―triunfo‖ do cristianismo
teria sido, por algum tempo, retardado no Ocidente mediante a
atuação aguerrida da aristocracia senatorial de Roma, último baluarte
de um credo moribundo e malévolo que travava, à época, um combate
vão. Uma reflexão semelhante à de Lindsay se encontra presente em
Christianity and Classical Culture, obra de Charles Cochrane surgida
em 1939. Nela, o autor declara que, sob Teodósio e seus sucessores,
operou-se uma ―liquidação formal do paganismo‖ mediante um
esforço sistemático de ―extirpação cabal de qualquer tipo de
superstição‖, de erradicação das ―sobrevivências‖ pagãs, até o ponto
em que ―os deuses do classicismo foram merecidamente enterrados
entre as ruínas da civilização que não haviam conseguido salvar‖!
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
72
Na opinião de Cochrane, a ―missão‖ do cristianismo teria sido ―curar‖
as feridas que os homens da época clássica haviam infligido a si
mesmos e regenerar a vitalidade espiritual do Mundo Antigo no limiar
da Idade Média, forjando-se assim, por um imperativo de natureza
teleológica, uma autêntica simbiose entre o cristianismo e o Império
Romano, a mesma que vemos reproduzida em L‟Empire Chrétien, de
André Piganiol. Publicada em 1947, a obra continua sendo uma
leitura de referência para os pesquisadores da área, não obstante a sua
inclinação francamente pró-cristã, que transparece já no título e se
perpetua ao longo dos seus dezoito capítulos, distribuídos em duas
partes. O plano de redação adotado pelo autor trai assim o pressuposto
de que, à época do Concílio de Nicéia, em 325, o Império já teria
assumido um inequívoco matiz cristão, razão pela qual, excetuando
algumas breves referências à reforma dos cultos pagãos empreendida
por Juliano, Piganiol praticamente ignora a polêmica religiosa
envolvendo o cristianismo, o paganismo e o judaísmo. A intenção do
autor em produzir uma narrativa na qual a Igreja é alçada à condição
de protagonista absoluta dos acontecimentos que constituem a história
do Império na sua fase final é celebrada por André Chastagnol, no
prefácio à reedição de 1972, nos seguintes termos: ―[...] seu título (isto
é, o da obra) enfatiza com felicidade o fato decisivo desta época
marcante: o triunfo progressivo do cristianismo a partir do reinado
do primeiro imperador cristão, Constantino, triunfo assegurado no
fim do século IV, no momento em que termina o governo de
Teodósio‖.
Não obstante toda a renovação historiográfica produzida no
Pós-Guerra, quando então os pesquisadores filiados ao materialismo
histórico ou à Escola dos Annales se dedicaram com um interesse
cada vez maior à investigação de temas conectados com o modus
vivendi das categorias inferiores ou subalternas da sociedade, com a
trajetória dos desviantes, dos marginais e dos vencidos e com o
inventário de práticas políticas, econômicas e culturais que, sob
muitos aspectos, já esgarçavam os modelos explicativos de grande
fôlego, o tema da cristianização do Império Romano continuava a ser
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
73
interpretado tendo como referência a bitola das fontes eclesiásticas,
que não cessavam de reiterar a ascensão vertiginosa do cristianismo
em detrimento dos seus rivais. De fato, no final da década de 1950,
Santo Mazzarino, um importante especialista em Antigüidade Tardia,
na obra La fine del Mondo Antico (1959), reiterava argumentos
semelhantes àqueles enunciados por Lindsay, Cochrane e Piganiol ao
sugerir uma clivagem, no Império Romano, entre um estilo de vida
obsoleto, no caso o clássico, e outro, impelido pelo ardor
―revolucionário‖ da crença em Jesus. Para o autor, os cristãos
constituíam, na Idade Apostólica, uma ―grande minoria criativa‖
destinada a assumir, na época tardia, as rédeas do processo histórico e
a inventar um novo mundo em substituição ao antigo, tornado inerte e
estéril. Mais uma vez, a missão ―regeneradora‖ do cristianismo é
aqui evocada como justificativa para o seu sucesso, opinião
compartilhada por Daniélou & Marrou que, no volume inaugural da
coleção Nouvelle Histoire de l‟Église, publicado em 1963, enfatizam a
―naturalidade‖ com a qual a população romana aderiu ao cristianismo
diante da conversão de um imperador ―todo-poderoso‖ como era
Constantino, ao passo que, em termos institucionais, observa-se um
afastamento progressivo entre o paganismo e o Estado imperial, que
se associa ―intimamente‖ à Igreja. Sob Graciano e Teodósio,
instauram-se então os Tempora Christiana, os novos tempos cristãos,
expressão que reitera a capacidade inovadora do cristianismo, o seu
papel como uma crença forte o bastante para reorientar o próprio devir
histórico e instaurar uma nova era, tida como antítese do passado
pagão. Ainda que Daniélou & Marrou manifestem – de modo
bastante tímido, diga-se de passagem – a preocupação em refletir
sobre os limites da cristianização, sobre o grau efetivo do impacto e
difusão do cristianismo entre as populações dispersas pelo território
imperial, suas conclusões não deixam dúvidas quanto à historicidade
dos Tempora Christiana. Uma preocupação semelhante (e igualmente
incipiente) em assinalar os limites da cristianização é manifesta por J.
N. Hillgarth em The Conversion of Western Europe, uma coletânea de
excertos de fontes lançada em 1969 na qual o autor sugere que a
penetração do cristianismo em meios rurais foi mais lenta se
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
74
comparada aos meios urbanos, uma importante distinção geográfica
que começava então a despertar a atenção dos pesquisadores. No
entanto, no que diz respeito ao ambiente urbano, Hillgarth é
categórico em afirmar que, por volta de 400, constata-se um ―triunfo
verdadeiramente completo da Igreja‖ mediante a atuação filantrópica
dos bispos, responsáveis pela manutenção de toda uma rede de
assistência aos pobres e aos doentes sediada nas cidades. Numa linha
de raciocínio próxima da de Daniélou, Marrou e Hillgarth, situa-se
Jean-Rémy Palanque, que, ao abordar, em Le Bas-Empire (1971), a
polêmica religiosa instaurada no fim do Mundo Antigo, não hesita em
declarar que a escalada do cristianismo a partir de Constantino foi
bastante rápida, permanecendo o paganismo circunscrito, por um lado,
à elite senatorial de Roma e, por outro, às populações rurais.
Desse modo, durante décadas as relações entre o paganismo e
o cristianismo foram interpretadas com base na noção de ―triunfo‖ da
Igreja e de advento dos Tempora Christiana, supondo-se que entre
Constantino e Teodósio ocorre enfim a afirmação irresistível de um
credo novo, original e criativo em detrimento das experiências
religiosas conectadas com o passado greco-romano, experiências essas
fadadas à obsolescência e ao desaparecimento, como comprovam o
fechamento dos templos e o abandono das festividades tradicionais.
Um modelo similar a esse foi igualmente manejado, desde pelo menos
o século XIX, para interpretar as relações entre o cristianismo e o
judaísmo. No final do século XIX e início do XX, os eruditos
protestantes que se debruçaram sobre o estudo das relações entre
judeus e cristãos no Império Romano foram responsáveis pela fixação
de um modelo teórico que propugnava a existência de uma cisão
indelével, uma ―repartição de caminhos‖, entre o judaísmo e o
cristianismo em algum momento entre a Guerra da Judéia (66-73) e a
revolta de Bar Kochba (135). Dentre esses autores, talvez o mais
influente tenha sido Adolf von Harnack, responsável por difundir uma
interpretação sobre o culto judaico no Império Romano que
convencionou-se designar com o nome de spätjudentum, isto é, de
―judaísmo tardio‖ (REED & BECKER, 2007: 07). De acordo com
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
75
Harnack, a história do judaísmo a partir do advento do cristianismo
teria sido marcada por um esgotamento progressivo, o que tendeu a
isolar cada vez mais os judeus em guetos à medida que avançava o
processo de cristianização. Desse ponto de vista, o cordeiro cristão
passaria a encerrar a ―vitalidade‖ espiritual do Império em detrimento
do leão de Judá, agora ferido de morte, se adotarmos uma metáfora
sugestiva proposta por Jacobs (2007: 98). Como conseqüência, o
judaísmo, religião obsoleta e anacrônica, teria muito pouco a oferecer
a um mundo marcado para sempre pelo fermento da renovação
contido na experiência cristã. O que se fixa com os trabalhos de
Harnack e seus seguidores é uma escola de interpretação que advoga
uma ruptura quase total entre o judaísmo e o cristianismo, duas
entidades cada vez mais distintas e opostas que, ao fim e ao cabo, não
manterão entre si qualquer diálogo. Para a consolidação de um
modelo como esse, destinado a influenciar por décadas a pesquisa e o
debate acadêmico sobre as relações entre judeus e cristãos na
Antigüidade, foi igualmente importante o trabalho de James Parkes,
um clérigo britânico cuja obra é tida como a pedra angular dos estudos
judaicos modernos. Vivendo, no final da década de 1920, uma
situação na qual o anti-semitismo ascendia com vigor e rapidez entre
os estudantes nacionalistas europeus, Parkes logo teve o seu interesse
despertado para a história das conexões entre o judaísmo e o
cristianismo, o que o levou a publicar, em 1930, O judeu e seu
vizinho, o primeiro título de uma carreira intelectual absolutamente
profícua. Para Parkes, assim como para outros autores que o
antecederam ou que foram seus contemporâneos, a separação
definitiva entre o judaísmo e o cristianismo teria ocorrido em finais do
século I.
Muito embora autores como Jean Juster e Lukyn Williams se
opusessem de maneira mais ou menos frontal à tese do spätjudentum,
somente com a obra Verus Israel, de autoria de Marcel Simon e
publicada originalmente em francês, em 1948, a idéia de que o
judaísmo sob o Império Romano fosse uma religião desprovida de
vitalidade e/ou criatividade começa a ser revista. A obra de Simon,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
76
considerada hoje um monumento historiográfico para os estudos do
judaísmo antigo, subverte a leitura dos textos cristãos proposta por
Harnack ao investir na seguinte hipótese de trabalho: se os autores
eclesiásticos foram tão pródigos e contundentes nos seus ataques ao
judaísmo, isso deve exprimir uma situação na qual os judeus de algum
modo ameaçavam o domínio da Igreja, o que invalida a suposição de
um judaísmo em colapso permanente (JACOBS, 2007: 101). Não
obstante a pertinência das conclusões de Simon no sentido de
reabilitar o papel da crença judaica praticada sob o Império Romano,
nem ele nem seus sucessores imediatos duvidaram do fato de que
―judaísmo‖ e ―cristianismo‖ talvez não fossem, no início, mais do que
um rótulo criado artificialmente para ordenar uma realidade ainda
bastante confusa e plural, ou seja, que talvez a distinção entre ambas
as religiões tenha sido o resultado de um processo muito mais
intrincado do que poderíamos supor. Isso é o que nos sugerem as
informações relativas aos judaizantes e às comunidades judaico-cristãs
dos ebionitas, nazoreus, osseanos e outras, que apontam para a
permanência, ainda na fase tardia, de uma intensa proximidade entre o
judaísmo e o cristianismo.
Muito embora, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, a
historiografia sobre a cristianização do Império Romano já
demonstrasse certo cuidado em resguardar os alcances e as
contradições desse processo, só muito lentamente verificamos uma
mudança de perspectiva historiográfica. Na verdade, o que parece ter
demorado a se tornar consenso entre os historiadores foi o argumento,
hoje aceito sem reservas, de que as noções de ―triunfo‖ da Igreja e dos
Tempora Christiana são muito mais representações forjadas pelos
autores eclesiásticos do que realidades históricas propriamente ditas.
À parte o fato de que as práticas pagãs do Império tardio são amiúde
descritas com parcimônia pela documentação, temos conhecimento da
sua permanência em muitas regiões do Império até pelo menos o final
do século VI. Essa situação costuma ser interpretada por alguns como
uma mera ―sobrevivência‖ do paganismo, mas talvez devamos ser
mais cuidadosos com afirmações dessa natureza, que superestimam a
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
77
capacidade de atração do cristianismo, replicando assim a ideologia
contida nas fontes eclesiásticas.83
Conclusão análoga pode ser
aplicada ao judaísmo, que exibe, entre os séculos IV e V, um
desenvolvimento extraordinário materializado num boom de
construção de sinagogas cujo ponto de origem se localiza na Síria-
Palestina e Ásia Menor, mas que se irradia por todo o Império
(SCHWARTZ, 2001; GONZÁLEZ SALINERO, 2000). Evidências
como essas, extraídas tanto da releitura das fontes escritas com base
em novas hipóteses de trabalho quanto da multiplicação dos dados
obtidos com as escavações arqueológicas, foram, ao lado da
renovação conceitual pela qual passou a História ao longo da década
de 1970, quando então assistimos à emergência do que virá a ser, mais
tarde, a Nova História Cultural, responsáveis por uma sensível
alteração na maneira pela qual os pesquisadores concebiam a
cristianização do Império Romano.
No que diz respeito à adoção de um novo modelo explicativo
para o teor das relações mantidas entre o cristianismo e o paganismo
no final do Mundo Antigo, uma das contribuições mais significativas
é, sem dúvida, Christianizing the Roman Empire, de Ramsay
Macmullen, obra vinda a público em 1984, na qual o autor
redimensiona o debate acerca do assunto ao confrontar os topoi
clássicos que dominavam a literatura, a saber: as concepções de
―triunfo‖ da Igreja e de ―destino manifesto‖ do cristianismo, buscando
assinalar os impasses, recuos e contradições do processo de
cristianização, processo esse que reconstruímos de maneira bastante
fragmentada, parcial, em virtude do desequilíbrio de informações.
Inspirado, sem dúvida, por uma historiografia comprometida em
romper com os modelos cêntricos e estáticos de interpretação das
83
Quanto a isso, a história de Paralos, ocorrida em finais do século V, é
emblemática. Oriundo de uma família pagã de Afrodísia, na Cária, Paralos
possuía outros três irmãos, um dos quais, Atanásio, se tornou monge em
Alexandria. Quando da necessidade de completar seus estudos, Paralos foi
enviado a Alexandria, mas sob a condição de não contactar o seu irmão, que
havia abraçado o cristianismo (BROWN, 2003).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
78
estruturas imperiais que se afirma ao longo da década de 1970,
Macmullen antecipa, para o caso dos conflitos religiosos no final da
Antigüidade, uma opção teórica que se tornará cada vez mais presente
nos estudos a respeito do Império Romano, qual seja, a de se manter
um controle permanente na aplicação de conceitos que pretendam
instituir, do exterior, um denominador comum para experiências
muitas vezes díspares entre si, a exemplo do que ocorre com o
conceito de Romanização, hoje bastante criticado em virtude tanto da
sua lógica unipolar, alicerçada na atuação de um centro (Roma) que se
―espraia‖ sobre a periferia (o território provincial ao redor), quanto da
sua tendência a conferir às localidades do Império uma
homogeneidade, no fundo, artificial, ao colocar os provinciais numa
posição de injustificada passividade, fazendo deles espectadores de
um movimento que simplesmente os engolfa (MENDES, 2008: 39).
Ao investigar o processo de cristianização com o propósito de alçar a
primeiro plano os indícios que contrariam o modelo de interpretação
tradicional, não os descartando como dados insípidos postos à
margem de um mainstream, Macmullen nos oferece um quadro das
relações religiosas no final do Império Romano muito mais complexo
do que à primeira vista se afigurava, uma vez que os dados
provenientes da documentação literária e arqueológica não suportam,
de modo algum, a hipótese de que, na passagem do IV para o V
século, o cristianismo já fosse a religião dominante no Império, uma
vez que, em muitas localidades, observamos a construção ou o
restauro de santuários pagãos, como na Britânia, ao passo que em
diversas cidades, a exemplo de Antioquia e Cartago, o estilo de vida
greco-romano se encontra ainda em plena atividade, o que leva o autor
a concluir que, por volta de 400, o Império Romano era ainda, em sua
maioria, não-cristão (MACMULLEN, 1984: 83).
A partir da segunda metade da década de 1980, a
historiografia sobre o fim do Mundo Antigo começa assim a investir
na formulação de objetos e na exploração de fontes sob uma outra
ótica, procurando não tanto iluminar os contornos gerais de um
movimento que até então se julgava dotado de uma inteligibilidade já
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
79
dada, qual seja, a consolidação da Igreja sobre todo o orbis
romanorum, mas antes captar os particularismos locais, as variações
regionais e, mais que isso, demonstrar o quanto a cristianização
dependeu da adoção de estratégias eficazes a fim de sobrepujar os
sistemas religiosos concorrentes, estratégias essas que envolveram
toda sorte de trocas, sincretismos, hibridismos e negociações, é certo,
mas também o implemento de práticas de confronto com judeus e
pagãos, os quais não se encontravam, em absoluto, no limiar de um
colapso. Um dos exemplos mais notáveis dessa mudança de
perspectiva historiográfica em torno do processo de cristianização nos
é fornecido por Pierre Chuvin, em seu livro Chronique des derniers
paiens, publicado em 1990. Pretendendo construir uma narrativa
renovada acerca do embate entre o cristianismo e o paganismo no fim
do Mundo Antigo, o autor rejeita a ótica ―cristocêntrica‖, até então
dominante, em prol da compreensão do processo histórico do ponto de
vista dos pagãos. Buscando neutralizar o crivo da censura eclesiástica
por meio da mudança de atitude do pesquisador no manuseio das
fontes, Chuvin urge, por um lado, que abandonemos o lugar comum
segundo o qual o paganismo, nos séculos IV e V, experimentava uma
fase de decadência iminente e, por outro, que interpretemos as
manifestações pagãs por elas mesmas. Com isso, é possível
descortinar, nas brechas de uma cristianização que avança, os loci de
permanência do paganismo ao longo dos séculos, o que dá margem à
formação de arranjos híbridos duradouros e por vezes surpreendentes.
Um programa de pesquisa afinado com o de Chuvin é executado por
Robert Markus em The end of ancient Christianity, obra lançada
igualmente em 1990. Esvaziando o discurso cristão do seu tom
excessivamente triunfalista, o autor critica acidamente a tendência
historiográfica de se interpretar o conflito religioso na Antigüidade
Tardia nos termos de uma oposição clara entre um cristianismo
avassalador e as ―sobrevivências‖ pagãs, uma vez que, na sua
concepção, as fronteiras entre ambos os sistemas religiosos se
encontravam em constante mutação. Desse ponto de vista, qualificar
os indícios de existência de práticas pagãs nos séculos IV e V como
meras ―sobrevivências‖ é uma operação conceitual extremamente
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
80
arriscada, pois esses indícios com freqüência nos revelam arranjos
identitários locais que se estabelecem justamente na contracorrente da
cristianização. Daí o interesse crescente dos historiadores, dentre os
quais conta-se Markus, pelas práticas, costumes e rituais que
resistiram ao controle das elites eclesiásticas, pelo cotidiano que se
desenrola para além dos muros das igrejas e dos mosteiros e que
apresenta um ritmo próprio e muitas vezes contrário à orientação
episcopal, como pretendemos iluminar com o estudo de Antioquia no
tempo de João Crisóstomo.
O cuidado da historiografia com as brechas do processo de
cristianização, o interesse que os pesquisadores vêm demonstrando em
pôr à prova modelos de interpretação por demais genéricos e
comprometidos com uma concepção teológica da história, em
problematizar categorias antes consideradas transparentes, como
―pagãos‖ e ―cristãos‖, em elucidar as tramas do cotidiano que
aproximam, física e culturalmente, adeptos de credos religiosos
distintos, tem se tornado recorrente nos últimos anos, como nos
permite concluir Mary Beard em Religions of Rome (1998).
Retomando as considerações de Markus sobre a dificuldade em se
traçar uma linha clara entre cristianismo e paganismo no fim do
Mundo Antigo devido ao ambiente cultural comum no qual ambos os
sistemas religiosos se moviam, a autora propõe que a atuação
missionária da elite episcopal, embora indubitavelmente agressiva,
não significou, em absoluto, a erradicação das tradições culturais
greco-romanas, nem em Roma, nem em qualquer outro lugar do
Império. Segundo a autora, isso não se deve pura e simplesmente à
adoção, pelos pagãos, de uma tática bem sucedida de ―resistência‖
diante do cristianismo, mas a uma familiaridade entre cristãos e
pagãos, no cotidiano, que subverte, em muitos aspectos, o discurso
autoritário dos bispos. Em termos da historiografia nacional, a
proposta de estudo enunciada por autores como Chuvin, Markus e
Beard encontra uma clara ressonância na obra de Renan Frighetto,
Cultura e poder na Antigüidade Tardia, publicada em 2000.
Consoante os novos padrões historiográficos de interpretação das
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
81
relações entre cristianismo e paganismo, o autor, ao tratar das
estruturas culturais na fase final do Império Romano, já inclui, de
antemão, o tema da permanência do paganismo no Ocidente, numa
flagrante ruptura com a tese tradicional dos Tempora Christiana.
Já no que concerne às interações entre cristianismo e
judaísmo, observamos, recentemente, uma mudança de perspectiva
que acompanha a consolidação da tese da fluidez de fronteiras entre
cristãos e pagãos. De fato, aos poucos tem se tornado consenso entre
os especialistas a compreensão de que, em muitas regiões do Império
e durante muito tempo, foram produzidas múltiplas experiências
religiosas que não podemos classificar à partida como judaicas ou
cristãs, o que configura uma realidade sincrética e multifacetada na
qual termos como ―judaísmo‖ e ―cristianismo‖ significam muito
pouco pelo fato de não traduzirem adequadamente o teor da religião
então praticada. Para autores como Daniel Boyarin (2007: 74) e Reed
& Becker (2007: 02), por exemplo, a história do judaísmo e do
cristianismo é marcada tanto pela convergência quanto pela
divergência, ao contrário do que afirmavam os defensores do
spätjudentum, para quem somente a divergência seria possível. Na
realidade, o que esses autores advogam é uma situação de relativa
permeabilidade entre judeus e cristãos no decorrer de toda a fase
imperial, de modo que as diversas comunidades de crentes em Jesus,
quer de extração judaica ou gentia, comporiam um subgrupo dentro de
um conjunto variado de comunidades religiosas mais ou menos
filiadas ao judaísmo. Por outro lado, a manutenção de contatos
regulares entre judeus e cristãos pode ser comprovada pela existência
dos judaizantes, indivíduos que, mesmo sendo adeptos do
cristianismo, se sentiam atraídos, no todo ou em parte, pelas tradições
judaicas, freqüentando regularmente a sinagoga e tomando parte nas
cerimônias e festivais judaicos. Embora constatemos a existência de
judaizantes no decorrer de todo o período imperial, o problema se
torna mais agudo na segunda metade do século IV, particularmente
nas províncias orientais, coincidindo assim com o fenômeno de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
82
revitalização do judaísmo nos territórios da Síria-Palestina e da Ásia
Menor (SILVA, 2009).
A renovação historiográfica em torno das relações entre os
diversos sistemas religiosos vigentes no fim do Mundo Antigo tem
levado os autores a pelo menos três conclusões importantes. Em
primeiro lugar, ao reconhecimento de que as fronteiras entre o
paganismo, o judaísmo e o cristianismo se mantiveram por muito
tempo instáveis, oscilantes e porosas, dando margem assim à
proliferação de contatos, cruzamentos e sincretismos num grau muito
superior àquele que até então se imaginava. Em segundo lugar, à
diluição do conteúdo teleológico que se atribuía à cristianização,
buscando-se investigar esse processo, não nos termos de uma vitória
ampla e irrestrita de um credo vigoroso e criativo contra os seus
frágeis concorrentes, mas nos termos de um jogo que se desenrola, em
nível local, de acordo com regras particulares, circunscritas à
configuração das relações de poder entre os grupos sociais.
Apreendida sob essa perspectiva, a cristianização surge para nós como
um intrincado jogo de avanços, retrocessos, negociações e embates
frontais, poderíamos mesmo dizer uma ―guerra de guerrilha‖. Daí
decorre a terceira conclusão, extremamente útil para aquilo que
tratamos neste capítulo: a de que não apenas o espaço rural é palco de
uma disputa acirrada por posições entre os adeptos de credos
religiosos distintos à medida que adentramos o século V, como a
historiografia desde a década de 1970 já tendia a reconhecer, mas
igualmente o é o espaço citadino, cívico, espaço esse no qual,
supunha-se, a cristianização já fosse, em finais do século IV, um fato
consumado. Muito pelo contrário, o que parece se delinear nas
cidades do Império Romano é uma situação na qual o judaísmo e o
paganismo, longe de se mostrarem debilitados, são ainda capazes de
ditar, em muitos casos, o ritmo da vida urbana, o que se traduz na
manutenção de relações intensas de sociabilidade entre cristãos,
judeus e pagãos. Diante de uma constatação como essa, torna-se sem
dúvida mais fácil compreender as razões pelas quais a elite
eclesiástica se desdobrou em iniciativas visando a disciplinar as
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
83
relações sociais dentro do espaço urbano, o que, em muitos casos,
implicou a formulação de uma reforma do território cívico mediante a
instauração de fronteiras religiosas que adquirem uma visibilidade
física, geográfica, por intermédio da formulação de isotopias e
heterotopias responsáveis por esquadrinhar o recinto urbano e
delimitar os espaços sagrados em oposição a espaços saturados de
contágio e poluição.
Documentação Textual
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87
Identidade e Memória no Cristianismo Sírio-Palestino: o ’
Amen nos Ditos de Jesus de Nazaré
João Batista Ribeiro Santos84
Ainda que a Bíblia hebraica seja uma obra fundante, as
suas historiografias não são completamente nem História nem
narrações puramente míticas; por isso, suas brilhantes sínteses
teológicas não devem ser reduzidas a uma obra de legitimação,
mesmo considerando, segundo enunciado de Abadie (2009, p.
33), ―l‟intentionnalité historienne des auteurs sacrés‖. Tomamos
isso como critério metodológico sem esquecer a lição de Marc
Bloch (2009, p. 125), qual seja: atentar ao relato e não ficar
aquém nem ir além de observar e explicar as causas. Eis:
observar os logia e explicar historicamente a continueté textuelle
como produto de uma representação identitária coletiva.
As fórmulas características de introdução do dito com que
um mensageiro transmite a mensagem do remetente divino ao
destinatário humano continuam sendo pouco estudadas. São
inúmeras e, ao que sugerem as narrações, são expressões
compreensíveis aos primeiros ouvintes. Os textos canônicos
conjugam vários elementos e formulários da tradição do mundo
bíblico das diferentes experiências do povo. Uma importante
asserção da Bíblia hebraica é a ―fórmula da aliança‖, referente à
declaração ―Serei o vosso Deus, vós sereis o meu povo‖. Esta
84
Mestre em Ciências da Religião, com linha de pesquisa em história e
literatura do mundo bíblico, pela Faculdade de Filosofia e Ciências da
Religião da Universidade Metodista de São Paulo (FAFIR/UMESP) e
coordenador do Instituto Logos de Estudos e Pesquisa Religiosa da
Faculdade de Teologia e Ciências Humanas e Sociais Logos
(INLEPER/FAETEL).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
88
fórmula, com suas declarações teológicas, foi retroprojetada
pela historiografia sacerdotal (cf. Neemias 9.7: bahar,
―escolher‖), na construção da identidade judaica, às memórias
abraâmicas, mas não integrou os formulários catequéticos
neotestamentários do ambiente judeu-cristão. Sem embargo,
podemos acrescentar as formulações literárias e as
interpretações teológicas a respeito do significado dos nomes de
Deus (METTINGER, 2008; RENDTORFF, 1985;
RENDTORFF, 2004).
Por ser a ―fórmula do mensageiro‖ koh ‟amar Yhwh
(―assim diz Yhwh‖) originalmente uma introdução do dito do
mensageiro (kerygma), é possível aproximá-la do ‟amen
introdutório dos ditos de Jesus de Nazaré. Na verdade, a fórmula
veterotestamentária está presente no imaginário profético como
essência da autocompreensão do mensageiro, o que não é
estranho ao ambiente siro-palestino do cristianismo formativo
do século I. ―Répétition et interprétation sont des procédés
fonctionnellement équivalentes dans la production de continuité
culturelle‖ (ASSMANN, 2010, p. 81). Para o contexto judaico-
cristão da Síria-Palestina, corrobora ainda a particularidade com
que o ‟amen é empregado no Evangelho de Marcos e no
Evangelho de Mateus: entendemos que neles estão presentes a
repetição (oralidade; ritual) e a interpretação (escritura).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
89
I. MEMÓRIA DO JUDAÍSMO ANTIGO
O hebraísmo da tradição talmúdica tem a sua origem na
Babilônia, mas fixa-se em confronto com o helenismo no
ambiente judaico. O texto clássico, massorético tiberiense, da
Bíblia hebraica realçou a importância do hebraísmo babilônico
(PRATO, 2010, p. 141), cuja influência redefine a linguagem
religiosa, configurado pela idealização bíblica.
No período pós-exílico (538 ss. a.C.), termos da cultura
babilônica, pejorativos aos judaítas exilados, recebem nova
conformação semântica para a compreensão da corrente
ortodoxa do judaísmo. Um dos fatores que contribuíram para
determinar e difundir o hebraísmo foi a idealização de uma terra
como projeto nacional, cujo valor é expresso ―con le categorie
geografiche dela fuga, dell‘esilio o del retorno, non solo nasce,
ma cresce e si conserva rimanendone distante e controllandone
da lontano gli sviluppi religiosi‖ (PRATO, 2010, p. 149). Tanto
as imagens quanto as expressões do hebraísmo bíblico remetem
negativamente à Babilônia em confronto com Jerusalém como
centro do judaísmo, sem nenhuma função de cultura civilizatória
dada a urgência da integração religiosa no ―novo‖ ambiente
palestino.
O confronto com o helenismo se dá pelo fato de sua
definição ocorrer em fins do século IV a.C., com a ampla
organização dos textos bíblicos, época em que a Grécia inicia o
seu predomínio continental. Surpreendentemente, o registro
historiográfico grego mais antigo sobre os hebreus, que provém
de Teofrasto (De Pietate, séc. IV-III a.C.), ―afferma appunto
categoricamente che gli ebrei sono filosofi‖ (PRATO, 2010, p.
268).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
90
Dos costumes organicamente forjados à guisa de
identidade judaica, as práticas distintivas acabaram por
evidenciar um movimento religioso intrajudaico aglutinador. O
cristianismo é o motor dos desesperançados galilaicos, tem
linguagem própria, não obstante fazer hermenêutica das
legendas coetâneas de orientação cronológica. Como os escritos
evangélicos neotestamentários não são anteriores à queda de
Jerusalém no ano 70, o ambiente vital é o da segunda geração de
cristãos, ainda com judeu-cristãos na liderança organizacional e
catequética.
A situação política favorecia em certa medida aos judeus,
que podiam gozar do direito de cidadania em algumas grandes
cidades da Cirenaica e da Ásia (REICKE, 1996, p. 313); mesmo
os peregrini que se tornavam cristãos mantinham a mesma
condição nessa época, inclusive quanto à liberdade de não
adorarem a imagem do imperador, algo reivindicado tanto no
aspecto litúrgico quanto no aspecto prático do judaísmo e do
cristianismo. Há informação, através de Hegesipo (REICKE,
1996, pp. 324-325), de que cristãos da Palestina foram presos
acusados de insubordinação. Sem embargo, o ambiente político
de perseguição, após a Guerra dos Zelotas (66-72), reaparece
após o ano 90 com Domiciano; antes, porém, sob Vespasiano,
os cristãos mantinham-se em liberdade, não obstante a
perseguição aos judeus.
Para sermos mais precisos na análise, no que se refere ao
judaísmo siro-palestino do período de atuação de Jesus de
Nazaré, convém assegurar que ―Jesus atuou em Israel e para
Israel; é indiscutível, pois, que tem seu lugar numa história da
religião judaica‖ (MAIER, 2005, p. 301), apesar do
personalismo dos seus kerygmata. O cristianismo formativo, até
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
91
a segunda geração, faz parte do judaísmo, mas se distancia deste
pela interpretação da história. Nesse sentido, não há influência
helênica, mas reminiscências da escola historiográfica
deuteronomista preservadas pelo movimento hassideu.
Realmente, Jesus de Nazaré esteve mais próximo do povo
do que de partidos templares e políticos, com as suas esperanças
escatológicas, interpretadas por alguns círculos cristãos de
letrados em linguagem apocalíptica. O risco, do ponto de vista
da intelectualidade farisaica, era a perda de eventuais membros,
resultando em menor controle das tensões de caráter protestante
no templo jerosolimita e das instituições.
A demonstração de um evento ou a interpretação de um
diálogo não se localiza fora da tradição, de forma que seria
bastante conveniente atribuir a confirmação de uma alocução do
judaísmo antigo, historicamente fundamental, ao Jesus de
Nazaré no início do século I. Com efeito, os cristãos falam de
Jesus mediante a Bíblia hebraica em versão grega (Septuaginta),
em cujas comunidades a recepção e a transmissão preservavam
a oralidade traditiva. Nos Evangelhos, conformado à maneira de
anais e manual catequético, o registro obedece às tradições das
comunidades formativas. É bem verdade que não se deve
ignorar a possibilidade de criação de conteúdos ―orais‖ nos
processos literários. Segundo Seters (2008, p. 66), a transmissão
de uma tradição pode ocorrer em um ambiente vital nunca
vivido pelo personagem central. Essa observação é válida para a
escrituração, que ―subentende um controle, daí as várias etapas
de canonização ou revisão de textos‖ (TAYLOR, 2010, pp. 30-
31). A favor da linguagem semítica, processada pelos cristãos
em ambiente siro-palestino, preservou-se uma memória no
Evangelho de Mateus 26.73: metà mikròn dè proselthóntes oi
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
92
hestôtes eipon tô Pétro alethôs kaì sù ex aùtôn ei kaì gàr hê
laliá sou dêlón se poieî (―depois de pouco, tendo-se
aproximado, os presentes disseram a Pedro: verdadeiramente
também tu dentre eles és, pois também o modo de falar
manifesto te faz‖),85
redação modificada nos outros três
Evangelhos; depõe a favor ainda a justificativa de que ―os
escritos cristãos do período pós-70, quando falavam do
judaísmo, referiam-se sempre a esse judaísmo rabínico
emergente‖ (BROWN, 2004, p. 150). Dito por outras palavras,
os cristãos estavam conscientes da influência dos mestres que se
fixaram na costa da Palestina. Nas controvérsias entre si
certamente não se ignoravam, de ambos os lados, as respostas
proverbiais.
II. A SIMBIOSE DE UMA IDENTIDADE
CULTURAL
No processo de construção identitária do cristianismo
formativo, os primeiros cristãos valem-se dos elementos da
linguagem religiosa, cerimoniais antes que textuais (por ex., a
comensalidade, as memórias sapienciais, as preleções de envio,
os provérbios etc.), em que estão situados; para interpretar sua
própria veridicidade, reportam-se às listas genealógicas e aos
mitos de fundação (listas: Mateus 1.1-17; Lucas 3.23-38;
etiologia: Marcos 9.2-8; par. Mateus 17.1-8; Lucas 9.28-36).
85
As traduções e transliterações foram realizadas pelo autor diretamente do
texto grego a partir das obras: NESTLE, Erwin; ALAND, Kurt (eds.). Novum
Testamentum Graece. 27. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2001;
RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo:
Paulus, 2003.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
93
Nos embates de características forenses, em que é necessário
afirmar o chamamento messiânico como meio de superar uma
pública expulsão das instituições religiosas judaicas, diga-se,
templo e sinagogas, a memória cultural tem a função, a um só
tempo, de libertar para uma nova cultura e de mecanismo de
resistência.
A memória cultural e suas motivações não são para ocupar
o lugar do cotidiano (ASSMANN, 2010, p. 77). No cristianismo
formativo, com o dom da palavra, a memória cultural serve à
mediação de causa libertadora; por isso, o protagonismo cristão
é antes superação da condição humana galilaica com alteridade
e, simbolicamente, base de elaboração das ordens e regras das
comunidades de fé em construção. ―La formation culturelle est
le médium par lequel une identité collective s‘élabore et se
maintient de génération en génération‖ (ASSMANN, 2010, p.
125).
Assim, as relações de Jesus de Nazaré são vistas pelos
evangelistas, a cada nova escritura e a cada nova hermenêutica,
sob uma ótica espacial que desconhece paralelos. A relação
entre Jesus e João Batista pode ser descrita como ―uma relação
discipular‖, em que Jesus demonstra admiração e
reconhecimento pelo mestre João Batista, no Evangelho de ditos
Q (Q 7.24-28); mas pode, em interpretação teológica posterior,
apresentar João Batista subordinado a um Jesus cuja missão
independe da presença do precursor, no Evangelho de Marcos
(Mc 1.14-15). Também a vocação dos discípulos: em Q 9–10
são os galilaicos, cheios de admiração, que se apresentam ao
seguimento; nos Evangelhos é Jesus de Nazaré quem os convida
e vocaciona. É por isso que Guijarro Oporto (2006, p. 86), com
razão, afirma que a continuidade entre Jesus e os primeiros
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94
cristãos, baseado em Q, ao contrário dos Evangelhos canônicos
com as gerações seguintes, não acontece através do kerygma de
sua morte e ressurreição, mas na proclamação da iminência do
reinado de Deus. A isso podemos associar os vigorosos embates.
Nos embates com os intelectuais e as autoridades judaicas,
Jesus de Nazaré assumia uma posição de destaque ao acentuar a
importância da sua resposta, não raro, uma reprimenda. A
fórmula introdutória enfática começava com o ‟amen. Essa
palavra é empregada em predições, vaticínios e argumentações;
portanto, em suas descrições de acontecimentos e instruções,
membros das comunidades formativas deixavam claro que Jesus
de Nazaré não fazia nenhum pronunciamento litúrgico, como
certamente faria um religioso judeu. ―Quem fala ou escreve sabe
do nexo entre os atos e seus efeitos e, portanto, conhece
particularmente as consequências futuras do agir humano‖
(BERGER, 1998, p. 227). O ‟amen autoriza a fundamentação
argumentativa.
Tomamos um vocábulo de resistência do Jesus de Nazaré,
devidamente semantizado pelos evangelistas, o ‟amen. É uma
palavra de ―afirmação‖, e a sua forma verbal, ‟aman, significa
―criar, educar, amarrar, juntar‖ (SZPICZKOWSKI, 1998, p. 24);
sua escrita adverbial ‟amnam significa ―realmente, deveras,
certamente‖ (BEREZIN, 1995, p. 22). De fato, o ‟amen
caracteriza a ipsissima vox Iesu e constitui ―uma nova forma de
expressar-se, completamente singular‖ (JEREMIAS, 2006, p.
143). Não é atestado o uso do ‟amen introdutório à maneira
cristã na literatura judaica (―nem em textos aramaicos, nem em
textos hebraicos ou gregos‖) para anunciar uma afirmação
(JEREMIAS, 2006, p. 147). Seu uso na literatura judaica não era
para reforçar as próprias palavras, procedimento de Jesus de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
95
Nazaré, ou fazer próprias as palavras de outro; no ambiente
litúrgico sequer era usado para responder a uma prece.
Tradicionalmente, o ‟amen integra uma fórmula
testemunhal, e é evidente a sua origem historiográfica, nos
Evangelhos, de fonte escrita, situando a comunidade e seu líder
no âmbito das comunidades religiosas do judaísmo antigo. Essa
aproximação não é casual no contexto da ―expectativa
messiânica‖.
Mas como ocorre a sua recepção no cristianismo siro-
palestino?
O universalismo da mensagem evangélica, com aparente
contradição, prioriza os seguimentos marginais. Ouk apestálen
ei me eis tà próbata tà apololóta oíkou Israél (―Não fui enviado
senão para as ovelhas perdidas de casa de Israel‖ [Mateus
15.24b; cf. 10.5-6]). Jesus de Nazaré, ―operando dentro dos
parâmetros da questão da identidade judaica‖ (FREYNE, 2008,
p. 73), visita a alta Galileia, onde residiam muitos judeus, de
Cesareia de Filipe à Síria nos limites da ―terra de Israel‖. Com o
seu projeto de distanciamento das elites dirigentes em curso, a
Galileia e as aldeias limítrofes são-lhe estratégicas. Como a Síria
era vista como território contíguo a Israel, sendo-lhe cobrado
impostos sobre a produção comercializada dentro da ―terra de
Israel‖, respectivamente Jerusalém, e a Galileia era a região
onde se encontrava o maior contingente de famílias espoliadas
pelos herdeiros de Herodes, o Grande, especificamente por
Herodes Antipas, as incursões de Jesus nos territórios de Tiro,
Gadara, Decápole e nas aldeias de Cesareia de Filipe, e as suas
travessias missionárias pela Samaria visavam a encontrar
aquelas ―ovelhas perdidas de Israel‖. É inconteste que os
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
96
habitantes daqueles territórios eram excluídos pelos citadinos
quanto à identidade judaica.
Do ponto de vista de Jesus, essa gente vivia
no interior das fronteiras de Israel tal como estas
eram entendidas idealmente, e eles também
deviam ser certificados de que estavam convidados
a participar da nova ―família‖ que ele ora reunia
para o banquete de Abraão, Isaac e Jacó
(FREYNE, 2008, p. 76).
Assim, explicitamos uma demanda dos discípulos,
segundo o redator do Evangelho de Mateus, sob a legítima
missão de Jesus de Nazaré por ele mesmo, embora o projeto
salvífico não tenha sido exclusivamente destinado às ovelhas
marginais dos limites ao norte da Palestina, ―mais plutôt en
terme de priorité à la fois théologique‖ (HAUDEBERT, 2003, p.
182) do evangelista. Mas ainda não respondemos à pergunta
acima formulada. Nosso pressuposto é que a construção da
identidade e da autêntica memória da Igreja formativa – que não
acontece no âmbito político-imperial nem na resolução das
querelas templares – fundamenta-se na linguagem semítica
fundadora; a convivência seletivamente afetiva e celebrativa
propiciou a sua sacralidade (cf. Atos dos Apóstolos 2.42-47;
4.32-35).
A propagação dos primeiros escritos evangélicos (com
novo significado, cf. Marcos 1.1) surge na Síria-Palestina com a
proclamação dos carismáticos itinerantes judeu-cristãos
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
97
demonstrando o poder divino de Jesus de Nazaré. A primeira
coleção de histórias ordenadas de Jesus é assumida pelo autor do
Evangelho de Marcos entre os anos 70 e 80. ―A convergência de
várias tradições de Jesus sugere uma grande metrópole do
Oriente, Antioquia, por exemplo, como lugar de composição de
Marcos‖ (KÖESTER, 2005, p. 182). Como a fonte mais
importante desse Evangelho é uma narração da Paixão do Jesus
de Nazaré (Marcos 11.1–16.8), convém enumerar os logia onde
aparece o ‟amen, a fórmula amén légo hymin (―‘amen, digo a
vós‖): Marcos 11.23; 12.43; 13.30; 14.9. Os demais trechos
arcaicos em que aparece o ‟amen são: Marcos 3.28; 8.12;
9.1,41; 10.15,29.
O outro Evangelho seguramente siro-palestino, da Síria
ocidental, é o de Mateus, escrito não depois dos anos 80. Das
cerca de 30 frases com ‟amen, 18 estão em perícopes com
trechos arcaicos, os logia: Mateus 5.18; 5.26; 6.2,5,16; 8.10;
10.15,21; 11.11; 13.17; 18.13,18; 21.31; 23.36; 24.47;
25.12,40,45.
À maneira de uma conclusão. Sem olvidar o cuidado que
os judeus tinham de não tomar o nome de Deus (Yhwh) em vão,
substituindo-o por palavras como ―o Nome‖, ―o Bendito‖, ―o
Céu‖, ―o Eterno‖ etc., importa trazer ao centro do debate sobre o
Jesus histórico a asserção amén légo hymin (―‘amen, digo a
vós‖), uma fórmula introdutória, que na boca de Jesus de Nazaré
corresponde ao dito profético veterotestamentário koh ‟amar
Yhwh (―assim diz Yhwh‖) e o situa no âmbito da linguagem e da
resistência socioétnica do antigo Israel, mas, coetaneamente, no
judaísmo marginal siro-palestino.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
101
A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos
João Oliveira Ramos Neto86
Este capítulo objetiva apresentar alguns aspectos da vida
cotidiana dos primeiros cristãos. Alguns autores, teólogos por
formação, já trabalharam tema semelhante, como John E. Stambaugh
e David L. Balch, que escreveram ―O Novo Testamento em seu
ambiente social‖. Outros autores, como Merrill C. Tenney, autor de
―O Novo Testamento: Sua origem e análise‖ e Joachim Jeremias,
autor de ―Jerusalém nos tempos de Jesus‖, também teólogos, deram
suas importantes contribuições, ainda que o cotidiano dos habitantes
da Palestina dos dois primeiros séculos da era comum não tenha sido
exatamente eleito por eles como objeto específico de estudo.
Daremos destaque, no entanto, à obra do historiador francês
Henri Daniel-Rops, que escreveu ―A vida diária nos tempos de Jesus‖,
não por ele ser historiador, mas porque sua obra é, atualmente, a
análise mais exaustiva sobre o tema em questão. Além disso, entre os
principais autores que já trabalharam o Cristianismo Primitivo, sobre
o cotidiano dos primeiros cristãos, não encontramos discordâncias
relevantes que justifique um profundo debate historiográfico. Por isso,
para a escrita deste capítulo, inicialmente demos prioridade para as
pesquisas de Daniel-Rops em diálogo com as outras obras que citamos
ao final, na bibliografia, com ênfase nas concordâncias.
O Contexto Político
Antes de abordamos aspectos como a casa, a família e o
trabalho, é importante recordamos o contexto político em que viviam
os primeiros cristãos nos dois primeiros séculos da nossa era. A
86
Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Goiás,
bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro e mestre em
História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
102
Palestina, território que atualmente é o Estado de Israel, encontrava-se
dividida basicamente em três territórios: Ao sul, a Judéia (de onde
origina-se a palavra ―judeu‖), cuja liderança político-econômica era
exercida pela cidade de Jerusalém. Ao norte, a Galiléia, importante
reduto de pescadores. Entre elas, uma região conhecida como
Samaria. Importante destacar também que o nome ―Palestina‖ não era
usado pelos autóctones, mas fora pejorativamente dado àquela região
de forma arbitrária pelos romanos.
Antes da dominação política pelos romanos, a região que daria
origem às duas grandes religiões monoteístas (judeus e cristãos) foi
palco de diversos conflitos e disputas. Conforme narrado pelo Antigo
Testamento, foi para lá que Moisés, após a fuga do Egito, levou os
descendentes de Jacó, posteriormente chamado Israel. Uma vez ali
fixados, dividiram-se em doze tribos, as quais receberam o nome dos
filhos do supracitado patriarca - sendo que a tribo dos levitas,
exclusivamente, não recebeu território.
Após o reinado de Salomão, conflitos no reinado de seu filho
Roboão levaram à divisão do reino: As nove tribos do norte
rebelaram-se contra o domínio de Jerusalém e estabeleceram o reino
de Israel, em oposição às duas tribos do sul, Judá e Benjamin, mais os
levitas. Leais à Jerusalém, essas tribos do sul estabeleceram-se
simplesmente como Judá. Posteriormente, o reino do norte foi
conquistado pela Assíria e o reino do sul pelos babilônicos. É sob o
domínio da Pérsia, tendo Ciro como imperador, que eles retornarão
para a Palestina. Por fim, liderados pelos Macabeus, expulsam os
gregos, mas em breve são ocupados pelos romanos.
Com isso, ressaltamos que o aspecto cotidiano que
destacaremos deve levar em consideração dois importantes pontos: O
primeiro é que os habitantes da Palestina, nos dois primeiros séculos
da nossa era, doravante neste capítulo denominados apenas de
hebreus, viviam sob a ocupação política dos romanos. O segundo é
que eles tinham, como tradição e identidade, consciência desse
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
103
passado, resultado de uma tradição oral responsável por uma grande
auto-estima de quem tinha convicção de ser o povo escolhido de
Deus. Sendo assim, era extremamente ultrajante ser dominado
politicamente por aqueles que eles consideravam pagãos, ainda que tal
dominação trouxesse alguns benefícios. Vamos explicar melhor.
Quando os romanos dominaram o território dos hebreus,
encontraram um momento propício para tal investida, levando em
consideração que o período dos Macabeus foi marcado por intensas
lutas internas. Isto é, apesar de aspectos negativos, a dominação
romana foi vista positivamente pelos hebreus por ter sido responsável
pelo fim das disputas internas. Tal mérito deve ser dado
principalmente a Herodes, o grande, que governou a região até o ano
6. Além disso, sua preocupação em agradar os hebreus levou-o a
construir grandes obras, como a reconstrução do templo de Salomão.
Depois da sua morte, a região foi dividida. Seu filho, Herodes
Antipas, governou a região da Galiléia. Já a Judéia passou a ser
governada diretamente pelos procuradores romanos nomeados pelo
imperador.
Uma importante característica da dominação romana na
Palestina era a liberdade que os hebreus tinham para seguirem a lei
dada por Moisés e realizarem seus cultos e festas religiosas, e também
estavam desobrigados do culto ao imperador. Além disso, Herodes, o
grande, atribuiu poder de fato ao Sinédrio. Composto por setenta
homens, mais o líder – o sumo sacerdote – e sediado em Jerusalém, o
Sinédrio servia como um conselho político-religioso (duas esferas que
não podem ser vistas separadamente nesse contexto) dos hebreus.
Essas regiões, Judéia, Samaria e Galiléia, tinham significados
religiosos profundos. Os habitantes da Judéia, região que sediava o
Sinédrio e o templo de Salomão reconstruído por Herodes, o grande,
se consideravam legítimos praticantes da lei mosaica, posto que
acreditavam manter uma certa pureza superior, por supostamente não
terem se envolvido com os povos que ocuparam a região enquanto
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
104
estiveram no cativeiro babilônico. Já a Samaria e a Galiléia eram
regiões daqueles que eram considerados filhos ilegítimos de Abraão,
posto que inferiores, já que não observavam integralmente a lei
mosaica e se misturavam com outros povos. É desse contexto que
surge a grande popularidade da parábola do Bom Samaritano.
Segundo o relato bíblico (Lc 10,29-37), Jesus, em Jerusalém,
teria contado uma história em que um homem fora assaltado e
agredido em uma viagem e, uma vez caído e abandonado na estrada,
fora desprezado por aqueles que se consideravam judeus puros e
superiores - os habitantes da Judéia, mas socorrido justamente por
aquele que era religiosamente considerado inferior – o bom habitante
da região da Samaria. É nesse contexto também que podemos
compreender o relato que os evangelhos bíblicos dão ao julgamento e
morte de Jesus: Estando em Jerusalém e acusado pelo Sinédrio, cujo
sumo-sacerdote na época era Caifás, Jesus fora levado para Pôncio
Pilatos, procurador da Judéia. Este, não querendo se comprometer,
alegou que Jesus, sendo galileu, deveria ser julgado por Herodes
Antipas. Jesus foi enviado a Herodes e, por este, devolvido a Pilatos,
que ficou famoso pelo relato de que teria ―lavado as mãos‖ (Mt
27,24).
Ao nos debruçarmos sobre a vida cotidiana no Cristianismo
Primitivo, é importante termos tudo isso em mente porque a fé cristã
surgiu como uma seita dentro do judaísmo e é isso que iremos estudar.
Importante também esclarecermos que seita, aqui, não tem o sentido
teológico, muitas vezes pejorativo, mas o sentido sociológico
weberiano, que trata de um conceito que explica que as novas
religiões costumam nascer dentro de antigas tradições, como grupos
agregados em torno de um líder que geralmente tem o desejo de
efetivar uma determinada purificação. Ainda que não seja propósito
do líder romper e começar uma nova religião, suas propostas de
reforma costumam se frustrar dentro da primeira instituição e
sobrevivem quando os seguidores rompem e fundam uma nova
estrutura.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
105
Este capítulo não objetiva a análise das doutrinas que foram
pregadas por Jesus e seus discípulos e seguidores, mas analisar e
demonstrar como era o cotidiano na região da Palestina quando do
surgimento do Cristianismo no primeiro século da nossa era.
Compreender como era esse cotidiano ajuda a esclarecer como foi a
recepção das novas propostas cristãs, o que influenciaria todo o
Ocidente até os dias de hoje. Isso posto, passemos à análise do
cotidiano.
A Vida Afetiva
A família judaica que habitava a Palestina no contexto dos
primeiros cristãos era uma instituição extremamente importante. Sua
motivação não era somente afetiva, mas também e, principalmente,
uma comunidade religiosa, onde os encontros tinham caráter de culto,
cujo pai era o celebrante. Daí vermos no Novo Testamento as famílias
reunidas para celebrarem festas como a Páscoa, que inicialmente
celebrava a fuga dos hebreus da escravidão no Egito. Importante não
incorrermos no erro do anacronismo e pensarmos que a migração
religiosa era, naquele contexto, algo de foro íntimo e individual, como
passou a ser no processo da modernidade. Ao contrário, a
religiosidade estava ligada à família e uma vez que o pai judeu
aderisse à nova fé cristã, toda família era também conjuntamente
batizada.
Os primeiros cristãos, no contexto da cultura judaica, tinham
uma grande preocupação em perpetuar a família, o que fazia com que
o celibato fosse visto de forma bastante pejorativa. Ele só seria
efetivado para os sacerdotes e bem posteriormente, com Constantino,
no terceiro século. Por outro lado, ao contrário do que muitas vezes é
difundido pelo senso comum, a poligamia não era tão comum entre
eles. Ela fora praticada pelos patriarcas e grandes reis conforme relata
o Antigo Testamento, mas, no Cristianismo Primitivo, a monogamia
era um ideal elevado. Até porque, os primeiros cristãos eram
majoritariamente da Galiléia, região pobre que, justamente por isso,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
106
não permitia ao homem sustentar mais de uma esposa ao mesmo
tempo.
Os casamentos aconteciam cedo, até porque, a expectativa de
vida naquele contexto não era muito grande. Os homens, em geral,
casavam-se em torno dos 18 anos, e as mulheres entre os 12 aos 14.
Geralmente o cônjuge era escolhido pelos pais, que apresentavam seus
filhos e concediam o período de um ano para se conhecerem. Por isso
que a tradição cristã afirma que Maria encontrou-se inexplicavelmente
grávida quando ainda estava ―noiva‖ de José. Eles supostamente
estariam nesse período de conhecimento mútuo.
Uma vez definido que os jovens se casariam, passava-se à
cerimônia de casamento, que era uma festa grandiosa. Convidava-se a
cidade inteira para uma festa que durava uma semana. Por isso que
encontramos na Bíblia a narrativa da ida de Jesus a um casamento de
pessoas que ele não conhecia, conhecida como ―Bodas de Caná‖,
conforme João 2, 1-11. O homem buscava a futura esposa em sua casa
e uma procissão festiva com as amigas dela seguia até o local da festa,
que geralmente era na casa da família dele. Ao chegarem lá, os
homens e as mulheres se separavam e festejavam até o dia seguinte,
quando se reuniam para um grande banquete e os convidados
ofereciam os presentes ao novo casal. Depois, o casal se retirava,
enquanto os convidados permaneciam festejando, retornando no dia
seguinte e novamente se juntando à multidão.
Durante o casamento, exigia-se fidelidade da mulher, ao passo
que esta não podia exigir o mesmo do marido, desde que os atos do
marido não atrapalhassem a sua casa. Daí que o homem não podia se
deitar com a mulher de outro homem, o que acarretaria o castigo para
si também, mas podia deitar-se com prostitutas. Pela lei, a mulher
casada flagrada com outro homem era salva se tivesse sido obrigada a
isso, sem nenhuma oportunidade para se defender.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
107
O divórcio existia e era praticado, mas não com muita
frequência, já que um homem rejeitar uma mulher despertava a ira dos
pais e irmãos dela sobre ele. Somente o homem podia pedir o divórcio
e quando o fazia, geralmente era por motivo de esterilidade – que,
acreditava-se, era sempre da mulher. Um homem e uma mulher não
podiam conversar ou se cumprimentarem em público. Talvez seja por
ter sido tão extraordinário que os autores bíblicos relataram várias
vezes Jesus conversando com mulheres, como em João 4.
Após o casamento, nasciam os filhos. Ou, pelo menos,
deveriam nascer, já que a esterilidade era apavorante, vista como
castigo divino, quase sempre associado à mulher e a esterilidade
voluntária, tida como um pecado grave. Uma vez nascidos e
sobrevividos às grandes taxas de mortalidade infantil, o que era
celebrado como o mais feliz dos acontecimentos, tornavam-se, até a
maioridade, propriedade do pai, que podia dispor deles como
quisessem. A mulher era considerada impura depois do parto e, depois
de um período de 40 a 80 dias, tinha que oferecer um cordeiro ou duas
rolinhas como propiciação. Os autores neotestamentários tiveram a
preocupação de relatar que Maria, depois do nascimento de Jesus,
atentou para essa determinação.
O nome da criança era geralmente escolhido pelo pai e, em
geral, acreditava-se que a escolha do nome estava ligada ao caráter e
destino de quem o recebia. Também não tinham sobrenome e eram
conhecidos com alguma informação a mais, como o local de origem, a
cidade onde morava ou a ascendência genealógica. Daí Jesus ter sido
conhecido como ―Jesus de Nazaré‖ ou seu discípulo apresentado
como ―Tiago, filho de Zebedeu‖.
Os filhos iam às sinagogas aprenderem, ou melhor, decorarem a
Lei com os rabinos, sendo que, dos 12 aos 13 anos, iam ao Templo
para o ―exame final‖. Uma vez aprovados, alcançavam a maioridade.
As mulheres, que não tinham função religiosa no templo, não
frequentavam as sinagogas, mas geralmente os pais ensinavam a lei
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
108
para elas em casa. Também aprendiam o ofício dos pais. As meninas
aprendiam as tarefas com as mães e os filhos acompanhavam o pai na
sua profissão.
A Alimentação e a Casa
Como todas as esferas da vida no contexto dos primeiros
cristãos era de alguma forma ligada à religião, tudo que faziam era por
eles considerado sagrado, inclusive os objetos e a comida. Em geral,
faziam duas refeições por dia, uma cedo, antes de irem para o
trabalho, e outra à tarde, no retorno, sendo esta segunda a mais
importante, pois era a ocasião de alimentar-se com convidados e
amigos. Daí tantas narrativas de Jesus entrando nas casas e comendo
com as pessoas (Lc 19,2-10).
Para as refeições, os homens reuniam-se em um cômodo
próprio, que geralmente era o principal cômodo da casa. Não tinham
mesa e sentavam-se no chão, ao redor da comida. Daí a importância
de se lavar inclusive os pés, como os evangelhos tantas vezes relatam.
As mulheres acompanhavam de outro cômodo, à disposição para o
servirem quando necessário. O pão era o principal alimento,
considerado tão sagrado que não podia ser cortado, somente partido
(Is 58,7). Claro que as condições financeiras variavam o tipo de
refeição, quando pobres comiam pão de cevada e os ricos comiam pão
de trigo.
O leite, de cabra ou ovelha, era apreciado, mas não seria
correto imaginá-lo escorrendo abundantemente sobre copos, uma vez
que o excesso de calor tornava-o endurecido. Era comum que virasse
queijo ou manteiga. O mel, por sua vez, funcionava como açúcar. A
carne era excepcional, sendo consumida só pelos mais ricos e
especialmente em momentos festivos, como narrado na parábola do
filho pródigo, em que Jesus conta que ao voltar para casa, o pai do
filho rebelde matou um novilho para comemorar. Os pobres quase
nunca matavam um animal para comer, pois era sua fonte de sustento
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
109
em vários aspectos – lã, leite, etc. (mas não apreciavam os ovos) –
mas, quando assim o faziam, era geralmente cabrito ou cordeiro. A
carne de porco, de lebre e de camelo não podia ser consumida. O mais
comum, no entanto, era mesmo o peixe.
A estrutura das casas era bem simples. Em geral, eram
formadas por um cômodo principal onde eram realizadas as refeições
com os convidados. Acima do telhado, havia um espaço bastante
utilizado também. Quando aberto, podia ser usado para secar roupas e
onde as pessoas se sentavam nas noites de verão para conversar.
Quando fechado, também era chamado de cenáculo. Usado como
quarto de hóspedes, tinha uma escada externa para que o viajante
pudesse entrar e sair quando quisesse, livremente, sem incomodar os
moradores.
As casas mais pobres eram feitas de tijolos de barro e a dos
mais ricos eram feitas de pedras. Eram sempre construídas próximas a
alguma fonte de água, sendo o mais comum, o poço. A comida era
feita no chão, porque não tinha cozinha. Os telhados eram feitos de
taipa. Havia poucos móveis no interior, pois, ao contrário dos
romanos, a preocupação dos móveis nas casas comuns era
exclusivamente funcional e não estética. Geralmente havia um lugar
para dormir, um lugar para as refeições e uma arca.
As Profissões
Ao contrário dos gregos e romanos, que desprezam o trabalho
e relegavam-no a quem consideravam inferiores, ter e desempenhar
uma função, para os hebreus e os primeiros cristãos da Palestina, era
algo extremamente importante. Como dissemos, em geral, seguia-se a
profissão do pai, isto é, hereditariamente, e o ócio era condenado
como pecado.
A profissão mais popular e valorizada era a agrícola. Havia
um apreço especial pelo cultivo da terra e isso pode ser visto pelas
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110
diversas narrativas neotestamentárias que fazem referência a
sementes, semeador, arado, parreira e oliveira. Jesus, segundo João
15, comparou-se a uma videira. O produto da terra sempre foi o
principal fundamento da economia palestinense. Os principais
produtos cultivados era a cevada e o trigo para a venda. Para o próprio
consumo, as famílias costumavam ter uma pequena horta, inclusive
com algumas ovelhas que ofereciam lã e leite.
Já os pastores não eram portadores de muita credibilidade. Em
geral, eram injustamente vistos pela população com desdém, por
supostamente terem uma atividade aparentemente fácil, o que não era
verdade. Os pastores eram contratados para proteger enormes pastos
de ovelhas constantemente ameaçadas por hienas, chacais e lobos, e
ainda sofrer no calor do dia e a geada da noite. Segundo o relato
bíblico, por ocasião do nascimento de Jesus, os pastores se
encontravam nos campos, característica do verão, o que tornaria o
evento, no hemisfério norte, impossível de ter ocorrido em dezembro.
No inverno, os pastores e as ovelhas não ficavam nos campos, mas
protegidos do frio em lugares cobertos.
Por outro lado, os pescadores eram muito bem visto pela
população, desfrutando de uma posição relativamente honrosa, talvez
porque supriam um dos alimentos mais importantes. Além disso, os
habitantes da Palestina tinham medo do mar e admiravam os
pescadores como corajosos. Mesmo com toda essa admiração, não
eram abastados. Viviam em torno do lago conhecido como Mar da
Galiléia, que era, por si só, como vimos, uma região desfavorecida
economicamente. A madeira era escassa e os pescadores em geral
usavam barcos de papiro e se concentravam em cidades próprias,
como Betsaida.
Além dos agricultores, pastores e pescadores, recebe destaque
também os artesãos, dos quais José, e provavelmente Jesus, teria sido
um, posto que carpinteiros. Na nossa sociedade atual, faz-se distinção
entre lenhador, carpinteiro e marceneiro, mas entre os primeiros
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
111
cristãos, só havia uma designação para todos os ofícios que lidava
com a madeira. Quem, como José, tivesse exercido essa profissão,
fazia o trabalho desde derrubar as árvores até a confecção de
utensílios e partes da casa. Em geral, a madeira do sicômoro era a
mais apreciada. O cedro era caro, para poucos, pois importava-se do
Líbano. O uso mais comum era da madeira da oliveira, da videira e do
cipreste.
Todos os artesãos, como os tintureiros, alfaiates, escribas,
tendeiros, oleiros, ourives e ferreiros tinham sua importância e, com
excessão do sábado, podiam ser facilmente reconhecidos na rua, já
que tinham que usar algo que os identificasse – o carpinteiro
provavelmente andava com uma lasca de madeira atrás da orelha. Os
escravos, por sua vez, usavam um furo na orelha. Os profissionais
agrupavam-se próximos um dos outros por diversas questões. Se José
e Jesus eram carpinteiros e eram de Nazaré, é bem provável que lá
fosse um bom lugar para se encomendar a construção de algum
artefato de madeira.
Outra profissão presente entre os primeiros cristãos eram os
comerciantes, com bem menos prestígio que os demais. Afinal, muitas
vezes, lidavam com aquilo que não era bem visto pela população,
como os curtidores, que lidavam com a carne de porco, e os
vendedores de perfume, cuja clientela era predominantemente de
prostitutas. Muitas vezes, estrangeiros eram quem exercia essas
funções. O comércio era predominantemente exercido por terra –
como afirmamos acima, os palestinos e primeiros cristãos em geral
desprezavam o mar – cujos mais ricos usavam camelos ou burros para
a locomoção e eram alvo de outra atividade, os ladrões, talvez menos
desprezados que os cobradores de impostos.
O Vestuário
Encontramos na narrativa bíblica a informação de que Jesus
teria dito que se para alguém fosse pedida a túnica, esta deveria deixar
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112
também a capa (Lc 6,29). Isso é difícil de ser compreendido quando a
referência que se faz à vestimenta dos primeiros cristãos em filmes e
teatros do senso comum quase sempre reporta-se às roupas usadas
pelos árabes e não pelos palestinos.
A roupa básica que eles usavam era chamada de túnica e cobria
quase todo o corpo. Em geral eram feitas de linho. Os mais pobres
usavam de linho grosso e os mais ricos usavam de linho fino. Ao
contrário dos árabes, por exemplo, não usavam nem seda e nem
algodão. A túnica era amarrada por um cinto que também servia de
bolsa. As cores eram variadas e a púrpura, retirada do murex, era
demonstração de poder.
Diferente da túnica, a capa era uma roupa especial, um grande
tecido, com um furo para a cabeça, que era colocada por cima da
túnica. A capa servia tanto como roupa especial para cerimônias
importantes, como roupa de frio para esquentar no inverno. Foram
essas capas que, segundo o relato bíblico, os habitantes de Jerusalém
teriam jogado no caminho de Jesus para recepcioná-lo (Lc 19,35-38).
Ambos, homens e mulheres, usavam túnicas, que eram diferenciadas
pelos detalhes. As das mulheres eram mais delicadas.
Os primeiros cristãos, herdeiros das tradições dos hebreus,
também usavam bastante jóias, principalmente anéis, ainda que não
usassem brincos. Por fim, como calçados, usavam as sandálias,
geralmente feitas de couro de camelo com um solado de madeira, que
deveria ser retirada sempre que entrassem nas casas, sinagogas ou no
templo.
Outros Detalhes
Os primeiros cristãos, herdeiros das tradições judaicas,
apreciavam muito a música, mas não produziam arte que retratasse o
rosto ou as formas humanas, como as esculturas, temerosos com o
primeiro mandamento do decálogo (Ex 20). Davam bastante ênfase à
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113
higiene, até como mandamento religioso. Tomavam banhos, se
lavavam antes das refeições, mas ao contrário dos romanos, não
tinham costume de se barbear. As doenças também era objeto da
religião, que as via quase sempre como castigo divino. As principais
eram as oftalmológicas e as doenças de pele, que eram todas por eles
caracterizadas como lepra.
Este breve capítulo, portanto, não teve como objetivo esgotar o
tema, o que seria impossível em poucas páginas, senão em apresentá-
lo introdutoriamente, inclusive para despertar o interesse de novos
pesquisadores. É fato que os cristãos logo se expandiram para além
das fronteiras da Palestina e onde a fé cristã chegou, influenciou e
também foi influenciada pelos hábitos da população local. Cada
cenário, portanto, deve ser investigado com um recorte espaço-
temporal próprio. Neste capítulo, no entanto, enfatizamos apenas o
contexto do surgimento dos primeiros cristãos entre os judeus que
habitavam a Palestina no início da nossa era.
Abaixo, compartilhamos a bibliografia que foi utilizada como
pesquisa para este capítulo e que também será a nossa sugestão para
quem desejar aprofundar no tema. No entanto, apesar de vasta
bibliografia, o tema do cotidiano dos primeiros cristãos permanece
pouco explorado e pouco divulgado na academia brasileira.
Considerando o recente prestígio que a História Cultural, a Micro-
História e as biografias, principalmente de pessoas anônimas, estão
recebendo na academia ultimamente, esperamos ter, com essa
introdução, contribuído para fomentar a ampliação do debate.
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
117
Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo (1540-400 a.C)
Margaret M. Bakos87
Apresentando o deus Bês
A primeira menção ao nome do deus Bês aparece nos textos
das pirâmides (cerca de 2686 - 2181 a.C). E uma de suas
representações mais antigas está inscrita em um bastão mágico, usado
em cultos pré-dinásticos no Egito antigo. Bês é normalmente
representado como um anão barbudo, com uma grande cabeça, língua
protrusa, nariz achatado, sobrancelhas e cabelos densos, orelhas
grandes, braços grossos e longos, pernas arqueadas e cauda.
Considerado como um deus puramente doméstico, seu epíteto era
Senhor de Punt e/ou Senhor da Núbia, centros de onde,
possivelmente, era originário.
Na presente comunicação, pretende-se demonstrar que Bês, a
partir do continente africano, passou a fazer parte do imaginário
religioso de povos de diferentes etnias e rituais. Cultuado, no
princípio, por pessoas humildes, com o tempo, tornou-se também o
protetor das elites: era adorado em numerosos sítios antigos, ao longo
do Mar Mediterrâneo e no entorno continental do Egito. É de se
questionar sobre as estratégias empregadas na difusão de sua
popularidade, bem como sobre o papel por ele desempenhado na vida
dos operários faraônicos, especialmente daqueles que vivam na vila de
Deir el Medina.
Mais alguns dados
O nome Bês é usado para designar um número significativo
tanto de divindades, como de monstros, inclusive uma criatura, como
87
Professora adjunta da PUC-RS. Bolsa de Produtividade CNPq.
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118
ensina Cerny, conhecida como Aha, o lutador. As investigações de
ponta vêm levantando a hipótese de que na origem se tratava de um
único deus, ao qual foram sendo dedicados cultos com diferentes
funções. Segundo Brieva88
: Tomemos pois o nome de Bês como uma
unidade dentro da aparente multiplicidade, até que sejamos capazes
de resolver o problema que ela apresenta.
Entretanto, é com a imagem de Bês que o deus comparece em
cidades antigas como Kahun, nas tumbas do Ramesseum e nas
Mammisi, denominação empregada para indicar as casas de
nascimento do antigo Egito (SHAW & NICHOLSON, 1995: 54). Bês
foi, aos poucos, tornando-se um deus egípcio bastante popular, talvez
o mais conhecido fora do Egito: foi amado também pelos gregos e
romanos que dominaram o país, aparecendo, inclusive, fardado como
um legionário conquistador itálico. Os greco-romanos, é mister
informar, copiaram também as práticas culturais de outro forte ramo
dos indoeuropeus: os persas. Os iranianos, criadores do império
aqueménida parecem ter feito uma hibridação dos atributos de Bês
com os de seu deus maior, Mithra, tendo em vista seus poderes
protetores, a partir da conquista do Egito, por Cambises (525 a.C). A
dominação persa possibilitou um estreito contato entre a cultura
egípcia e as culturas da Ásia Ocidental. Bês veio, possivelmente, junto
com artesãos devotos, inscrito nos amuletos. Segundo a historiografia,
a partir de Dario I (490 a.C), a imagem de Bês ganhou extraordinária
popularidade, sendo incorporada ao repertório de motivos acessíveis a
trabalhadores das mais altas categorias da Pérsia.
A despeito de sua aparência, às vezes feroz, Bês era um deus
da música, das festas; um defensor dos defuntos; um protetor da
família e defensor dos nascimentos, estando principalmente associado
88
Há uma tese contendo um estudo aprofundado sobre este deus e os
diferentes cultos a que deu origem: ROMANO, J.F. The Bes-Image in
Pharaonic Egypt (doctoral dissertation). New York: New York University,
1989.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
119
à sexualidade. Ao lado de Tawret (BAKOS, 2010), Bês era popular
em Deir el Medina desde a fundação da vila, aparecendo representado,
principalmente, em amuletos.Entretanto, a nobreza o levou para os
palácios. Tiy, esposa de Amenófis III (1386-1349 a.C), possuía uma
imagem de Bês na cabeceira do leito que compartilhava com o faraó.
Na sequência, apresenta-se o nome do deus, em hieróglifos,
escrita em que aparece composto por três símbolos: o primeiro, com o
significado fonético de ‗b‘; o
segundo, com o ‗s‘; e uma
figura com a imagem do deus,
em uma de suas formas
originais, com o sentido,
conferido pela gramática
egípcia, de um determinativo,
capaz de dotar de significação
o conjunto de símbolos,
impronunciável por natureza:
Fig.1 O nome de Bês
No desenho do bastão mágico que segue, às vezes
denominado de faca mágica, aparece a figura de Bês, a quarta, da
esquerda à direita, nos dois lados do bastão, com as pernas abertas,
cauda e juba de leão.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
120
Fig.2 Desenho de um bastão
mágico (BUDGE, 1988: 88).
Objeto encontra-se no
Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque.
Esses objetos, chamados bastões mágicos, em formato de
bumerang australiano, eram feitos desde a pré-história egípcia e
continham representações do deus Bês junto com uma meia dúzia de
outros deuses protetores das famílias, como, por exemplo, Tawret e
Hathor. É consenso na historiografia que esses objetos eram usados
em rituais mágicos, para fazer círculos de proteção em torno das
parturientes, o que, juntamente com os esconjuros, facilitaria o
nascimento de bebês saudáveis.
A partir de seus atributos, esse anão barbudo foi
fundamentalmente associado a um espírito do bem, protetor das
parturientes, dos seus bebês e de lares amorosos, tornando-se, como
explica Dominique Valbelle (1985: 316), muito amado, mais como
um gênio do que como uma divindade. Ele aparece sobretudo em
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
121
amuletos, vasos, pernas de móveis e altares de nascimento, fabricados,
principalmente, pelos trabalhadores de Deir el Medina.
Deir el Medina
Deir el Medina era uma vila situada no Alto Egito, em um
pequeno e estreito vale, à margem esquerda do Nilo, em frente à
cidade de Tebas, essa desenvolvida à margem direita do rio. Ocupava
a área compreendida entre dois santuários, Karnak, ao norte, e Luxor,
ao sul, distantes um do outro aproximadamente 4 km, havendo
permanecido com essa configuração por cerca de 450 anos, o que
abarca o período da XIX e da XX dinastia. A vila viveu sua fase de
maior prosperidade no decorrer da XIX dinastia.
O nome da vila significa, em árabe, O mosteiro da vila; foi o
local em que viveram os trabalhadores encarregados da decoração dos
templos e tumbas dos faraós, de seus familiares e da nobreza egípcia
em geral, a partir da XVIII dinastia (1550-1307) e, ao longo das XIX e
XX dinastias, até o inicio do chamado 3° período intermediário. A
morte de Ramsés III determinou o final da XX dinastia, fase
conhecida como Renascença. Nesse período, a área tebana tornou-se o
palco de disputas de poder entre os vizinhos do Egito, os líbios e os
núbios, que, posteriormente, iriam fundar respectivamente as XXII e a
XXVI dinastias. A tensão dos embates levou os egípcios ao abandono
de Tebas e ao retorno da corte para o Baixo Egito, com a criação da
XXI dinastia. Nesse período, a vila de Deir el Medina foi desocupada
pelos trabalhadores, que se refugiaram, até o final da XX dinastia, no
monumental templo funerário de Ramsés III, Medinet Habu.
(BAKOS, 2009).
A história da vila explica-se pela importância conferida aos
enterramentos na cosmovisão dos antigos egípcios. Eles acreditavam
em uma vida após a morte, obtida pela construção de tumbas e a
execução pelos vivos dos rituais funerários. Daí por que, durante o
antigo e o médio império, era costume enterrarem-se os faraós e
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
122
pessoas representativas no Baixo Egito em pirâmides, como as de
Gizah, Queops, Quefrem e Miquerinos, hoje, ícones do antigo Egito.
Com a invasão do Egito pelos hicsos, por volta de 1640 a.C.,
os egípcios perceberam que a região do Delta era vulnerável aos
ataques estrangeiros. Os hicsos da XV e XVI dinastias reinaram em
paralelo com dinastias egípcias. A XIII dinastia egípcia foi vencida
pelos hicsos; daí por que a mais importante foi a XVII, pois, durante o
período por ela subsumido, Kamoses venceu os hicsos e destruiu a
cidade de Avaris, a capital dos chamados reis pastores. Na sequência,
os príncipes vitoriosos de Tebas fundaram a XVIII dinastia, que se
mudou para a área tebana, para enterrar os seus mortos no sopé das
montanhas, adotando o lugar exatamente pela forma natural piramidal
das mesmas existente na área, onde se desenvolveu o vale dos reis e se
encontram até hoje tumbas de reis, rainhas e nobres.
Ahmose I (1560-1520), filho de Khamose, o faraó vencedor
dos hicsos, foi sucedido pelo Amenófis I, um dos artífices da nova
fase imperial, razão pela qual é considerado patrono da vila de Deir el
Medina, juntamente com sua mãe, Amósis Nofretari.
Entretanto, tudo indica ter sido Tutmés I, o 3° rei da XVIII
dinastia, em 1540 a.C. - na ocasião, comandante vitorioso do exército,
mesmo sem pertencer à família real -, o responsável pela fundação de
Deir el Medina. Há consenso na historiografia sobre o fato de a
decisão do local escolhido para a construção da tumba desse faraó ter
sido determinante para a definição do lugar de habitação dos operários
que iriam construí-la. O filho do faraó, Tutmés II, casou com sua
meia-irmã , Hatsepsut, que usurpou, por vinte anos, o direito ao trono
de Tutmés III, seu filho com uma concubina. Hatsepsut, auto-
intitulada faraona por direito divino, além de construir o fabuloso
templo de Deir el-Bahari, estabeleceu conexões econômicas, jamais
articuladas até então, entre o Egito e seu entorno geopolítico,
iniciando a fase imperialista do Egito, posteriormente levada ao
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
123
extremo por seu enteado, Tutmés III, cognominado o Napoleão do
Egito.
Vale ainda destacar a relevância do papel desempenhado por
Horemheb, sucessor de Tutankhamon, na história da vila de Deir el
Medina: foi ele quem refez o sítio, após um período de abandono,
quando a corte de Akhenaton se exilou em Amarna, capital por ele
construída (1553-1335). Os egiptólogos Bruyère e Wooley, segundo
informa Keller, constataram que, durante o período de Amarna, os
melhores trabalhadores de Deir el Medina foram levados para lá, o
que pode ser comprovado pelo reduzido número de tumbas
construídas, à época, em el Medina e pela pouca opulência desses
monumentos; da mesma forma, eles dizem do lento retorno dos
trabalhadores de Amarna para Medina.
Datam das primeiras dinastias as construções de pequenos
santuários, como o que se pode apreciar a seguir, na entrada das casas
dos trabalhadores, onde era colocada uma estátua de Bês. O caráter
apotropaico da imagem é de indubitável comprovação, segundo os
estudiosos. A pretensão da imagem de Bês, pelo seu aspecto bizarro,
parece ser a de fazer sorrir aquele que entrasse na casa, para, com isso,
liberar-se de maus pensamentos e trazer paz e alegria aos moradores.
Fig. 3 Aspecto do sítio
arqueológico de Deir El Medina em que se destaca o detalhe de uma
moradia: um pequeno santuário,
freqüente em todas as entradas das
casas, no qual era colocada a
estátua do deus para proteção dos
moradores (foto feita pela autora).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
124
No início do reinado de Ramsés III (1194-1163 a.C), há fortes
indícios da decadência do local. Nesse período, o Egito sofreu
invasões externas, como as dos líbios, assírios e persas, que se
encarregaram de levar os conhecimentos sobre Bês através do contato
dos invasores com os trabalhadores que por ventura ainda estivessem
habitando o local. Por outro lado, com a falta de trabalho, muitos
habitantes da vila procuravam outros sítios e, em alguns casos, até
mesmo iam para o exterior, levando seus objetos e afetos, como já se
referiu, no caso dos persas. Entre eles, estavam certamente sempre
presentes as imagens do deus Bês.
No período da dominação macedônica no Egito, foi
construído por Ptolomeu V (205-180 a.C), na área da vila, um templo
em honra a deusa Hathor. Essa edificação, no decorrer da fase romana
cristã (IV-VII d.C), foi transformada em um mosteiro e, com a
conquista dos árabes muçulmanos, encoberta pelas areias do deserto.
O sítio foi trazido à luz ao ser incluído em um mapa sobre o Egito
antigo, confeccionado pelo Padre Claude Sicard (1677-1726). O
primeiro objeto, surgido, em 1777, no mercado de antiguidades, com
procedência identificada de Deir el Medina, foi adquirido por um
monge italiano.
Graças ao papel desempenhado pelas areias na conservação da
vila, poucos sítios arqueológicos do Egito faraônico permitem uma
evocação visual tão clara do seu passado na atualidade como Deir el
Medina. Nas paredes dos templos ptolomaicos, foi encontrada uma
grande quantidade de imagens de Bês, que também aparecem em
construções e objetos romanos.
Historiografia e o transito de Bês para além de Deir El Medina
Francisca Velázques Brieva, em sua pesquisa de
doutoramento, publicada pelo Museu Arqueológico de Eivissa,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
125
explica que Bês, por sua própria natureza, foi pouco considerado e
ficou à parte do grupo dos grandes deuses cosmogônicos egípcios. A
sua grande popularidade foi sendo notada, apenas, pelos que se
dedicavam ao estudo da vila de Deir el Medina. Atualmente, o deus
sofreu um processo de redescobrimento, decorrente das descobertas
arqueológicas, em sítios mediterrânicos, no século XIX; sua
importância vem sendo pontuada historicamente do Egipto a Ibiza,
como indica o título de sua tese.
Em exaustiva pesquisa, a referida autora aponta aspectos
fundamentais para um melhor conhecimento do deus Bês. Ela discute,
por exemplo, sua origem, que considera ser sudanesa ou núbia em
contraposição à tese de uma origem egípcia autóctone. Os atributos
conferidos a Bês sugerem, segundo a autora, uma origem advinda do
sul. Desde o Reino Novo, ele usa uma coroa de plumas de avestruz,
material exótico importado do sul, muito parecido com o que porta a
deusa Anukis, também associada à Elefantina e à Núbia. Igualmente,
o deus porta uma manta de pele de pantera, que, em algumas tribos
africanas, é a insígnea real. Os autores que consideram que Bês surgiu
no próprio Egito, aludem à imaginação egípcia para criá-lo.
Brieva informa que o primeiro trabalho importante sobre Bês
é a tese de doutorado de F.Ballod (1913); a ela se segue um vazio de
pesquisas sobre o tema até 1939, quando B. Bruyère sublinhou o
caráter leonino de Bês como o seu traço dominante.
A tese de doutorado de J. Romano (1989) veio a comprovar a
ampla diversidade das características físicas, vestimentas e atitudes
que a iconografia de Bês desenvolveu durante a época faraônica,
apontando as inúmeras mudanças sofridas por sua imagem ao longo
do tempo, por motivos pouco explicados.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
126
O principal aspecto dessa mudança reside na
antropomorfização89
do deus, a partir de uma origem leonina. Essa
característica prossegue em outras épocas, como na XVIII dinastia,
quando, segundo Brieva, ele apresenta orelhas felinas, melena
trapezoidal com canal vertical no centro, secreções lacrimais, torso
delgado, costelas marcadas e pernas flexionadas. Ao longo do Reino
Novo, também aparecem outras inovações, que parecem romper com
a iconografia leonina do deus, tais como a aparição de uma coroa
formada por plumas, provavelmente de avestruz. Ainda no começo do
períodoque se segue, Bês é representado nu: no reinado de Amenófis
II, ele aparece vestindo uma falda, o que vai se tornar comum no
reinado de Amenófis III (BRIEVA, 2007: 26). Igualmente neste
reinado, o deus, em algumas ocasiões, é representado cm grandes asas
de pássaro caídas até o solo e que, em raras exceções, se espraiam na
horizontal.
Fig.4 Da cabeceira da cama de
Amenófis III em seu palácio em Malkata
Pelo seu poder de proteção, Bês
é muito presente nos chamados
cippus, colunas sem capitel que
tinham a função de dar proteção a
quem as possuía e curar de ataques de
víboras e escorpiões por meio da água
que por elas escorria, acompanhada de
esconjuros. Por outro lado, pelo
princípio mágico da escrita egípcia, as
víboras que representavam
89
É extraordinário o processo de antropomorfização dos reis e deuses
realizado pelos antigos egípcios. Um belo exemplo dessa criação está na
Paleta de Narmer que, em 3000 a.C., vizualiza a passagem de um faraó com
forma de animal) (falcão, touro para a humana). Ver em: BAKOS, MM. EU
faraó. e você? In: FUNARI, P.P. & OLIVEIRA SILVA, M.A e BAKOS,
MM. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUC, 2010.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
127
particularmente uma fonte de perigo, podiam ser cativadas pela sua
adoração. O risco apresentado pela cobra era enfrentado pela sua
identificação como uma manifestação da divindade que podia ser
cultuada e tornar-se, assim, benevolente e generosa. Dessa forma, a
presença de Bês era uma das estratégias para amenizar o poder
maléfico das serpentes. Da mesma maneira, parecia possível
direcionar o caráter letal do animal contra os inimigos da vida, como,
por exemplo, os uraeus.
Em Tebas, os trabalhadores de Deir el Medina cultuavam a
serpente como a deusa Meresger, que ama o silêncio, protetora das
necrópolis do deserto.
Fig. 5 Cippus, pequenas colunas sem
capitel de Horus criança Museu
Nacional de Nápolis
Popularidade construída de Bês
Bês testemunha a
extraordinária influência, desde
priscas eras, exercida pelos antigos
egípcios nas expressões culturais
ainda presentes no mundo
contemporâneo mediterrânico, via
apropriação com transformação, na
maior parte das vezes, dos seus
símbolos e deuses.
A adoção de traços da
cultura egípcia é responsável pelo fenômeno cultural de mais longa
duração na história: a egiptomania90
. O caminho para a formação e
90
Sobre Egiptomania, ver: BAKOS, M.M.(org.) Egiptomania: o Egito
antigo no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
128
expansão dessas maravilhosas trocas é evidenciado por Braudel
(1902-1985). Para esse autor, a compreensão do Mediterrâneo como
um espaço-movimento permite destacar a presença de elementos
egípcios no universo cultural mediterrâneo.
Em consonância com Gordon Childe (1892-1957), Braudel
inicia seu livro O espaço e a história no Mediterrâneo propondo a
consideração desse mar na categoria de uma encruzilhada muito
antiga e, assim, de um caminho para se:
... encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha,
as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o Islã turco
na Iugoslávia. É mergulhar nas profundezas dos séculos, até as
construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do Egito
(BRAUDEL, 1985: 02).
A partir dessas premissas braudelianas, buscaram-se
conhecimentos sobre o grau de precocidade dos interesses que
levaram os primeiros homens a enfrentar os desafios da navegação no
Mediterrâneo, antes mesmo das cantorias dos aedos, fundadores da
mitologia helênica, cujos primeiros indícios estão registrados nas
estórias fabulosas de criação do poder divino do Faraó. A mais antiga
narrativa de navegação no Mar Mediterrâneo aparece descrita no mito
de Heliópolis. De cunho etiológico, cosmológico e político, esse relato
conta a viagem, nos inícios do IV milênio a. C., do esquife com o
corpo do deus do bem, Osíris, morto pelo irmão malvado, Seth,
subindo o rio Nilo e navegando até chegar ao porto de Biblos.
Bês nunca foi objeto de um culto estatal como foi o caso da
Enneade, de Heliópolis, mas os escribas que contaram essa lenda,
criaram as imagens dos deuses e de seus símbolos monumentais -
pirâmides, esfinges e obeliscos -, então, amalgamados à fama que
circulava em torno deles, construída pelo boca a boca, entre os que
viajavam ao Egito e o contexto da época. As crenças egípcias
passavam a ser crença de outros povos. Por exemplo, imagens de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
129
olhos de Horus podem ser encontradas desde a alvorada dos tempos,
na expressão de Braudel, em Chipre, Creta, Sicília, Córsega, Malta,
expressas em diferentes formatos e materiais. Juntamente com o olho,
viajaram a figura do ankh, a chave da vida, e de um deus simpático,
dançarino, protetor das mulheres e das crianças: o Bês!
Para o Norte, as relações entre Egito, Creta e Egeu, de
natureza cultural e comercial, tornaram-se particularmente intensas
durante o Novo Reino (1570-1070 a.C.). Elas aparecem ilustradas em
duas antologias, uma de John Pendlebury (1904-1941), um
pesquisador inglês especializado em antiguidades cretenses, e outra de
um egiptólogo, Jean Vercoutter, publicada respectivamente em 1930 e
1956 (CURTO, 1990: 221).
Ciro ilustra o trânsito dos operários egípcios em seu texto com
a apresentação de diversas correspondências encontradas nos arquivos
de Tell el Amarna. Cita, em seu trabalho, duas vindas do rei de Chipre
que servem de comprovação das trocas entre o Egito e esse reino:
Esses homens são meus mercadores. Meu irmão, deixá-los
ir em segurança e prontamente. Ninguém deve, exigindo
algo em teu nome, aproximar-se de meus mercadores ou de
meu barco (CARDOSO, 2000: 07).
Ciro Cardoso alerta ainda para a pertinência da tese
desenvolvida por Mario Liverani sobre a existência de uma
complementaridade entre diferentes áreas do Oriente Próximo no que
concerne às trocas, devido à concentração regional exclusiva ou muito
majoritária de certas produções mais importantes.
Segundo essa observação de Cardoso, deduzimos que Bês
viajou pelas três rotas básicas de circulação no mar Mediterrâneo, que
Braudel aponta: a primeira era colada aos litorais do norte, seguindo
da Grécia à península itálica; a segunda era meridional, indo pelas
costas da África à Ásia Menor; e, finalmente, a terceira, era pelo meio
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
130
do mar, parando de ilha em ilha, do norte da África ao sul do
continente europeu. Guiados pelas estrelas, mas de preferência,
viajando de dia, os navegadores deixaram raros pontos da costa
mediterrânica livres de abordagens pacíficas e de achaques de barcos
em missão de comércio e/ou de pirataria, muitas vezes se utilizando
de ambas as práticas.
É assim que começam as viagens entre o Egito e as cidades da
costa sírio-libanesa, quase nos primórdios da história egípcia,
provavelmente, via expedições lançadas pelos faraós em busca da
maneira inexistente na terra do Nilo. Não obstante, já em meados do
terceiro milênio, uma verdadeira frota mercante liga Biblos aos portos
do delta. Os barcos são do tipo egípcio, sem dúvida, financiados pelo
Egito; talvez já sejam construídos e, sobretudo montados, pelos
cananeus, nome dado aos sírios-libaneses (BRAUDEL, 1978: 60).
Esses ancestrais dos fenícios já eram um povo de marinheiros.
Os egípcios, ao contrário, sempre tenderam a ficar em casa; sua
riqueza, aliás, permitia-lhes, como se disse mais tarde, um comércio
passivo, na direção do Mediterrâneo. Em todo caso, mil anos depois,
não há mais dúvidas: uma pintura de Tebas do séc. XV a.C. mostra
barcos montados por cananeus que, em seus trajes típicos,
descarregam, no Egito, mercadorias de seu país. É bem possível que
esses traficantes tomassem contato com o mundo e o imaginário dos
operários de Deir el Medina pela presença, na vila, de artesões
altamente qualificados que possuíam poder de câmbio para adquirir os
produtos por eles trazidos para comerciar. Havia ainda uma circulação
interna no Egito através dos escribas que, pelo menos três a quatro
vezes, por ano, fiscalizavam as atividades dos nomos, as pequenas
unidades administrativas do Egito antigo, para registro e controle da
produção agrícola. Esses trabalhadores, eventualmente, conviviam
com artesões de outros lugares e também eram levados por
dominadores. Daí por que a divulgação dos cultos e rituais egípcios,
levados por eles a outros lugares de além mar, é uma possibilidade a
ser considerada.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
131
Á guisa de conclusão
Ilustrou-se essa apresentação com inúmeras imagens do Bês
em exposição em museus do continente europeu, impossíveis de
serem mostradas na íntegra neste texto pelos limites de espaço. Além
disso, significativo número dessas imagens carece de dados que
identifiquem sua devida localização de procedência e período de
fabricação. O que uniu a coleção apresentada foi a idéia de atestar a
presença em museus da área mediterrânica, em ilhas e/ou cidades
costeiras, de imagens que testemunham, sem dúvida, pois que trazidos
pela moderna arqueologia, a presença desse deus ao longo dos sítios
mediterrânicos. Ele foi encontrado na Sardenha, Península Itálica,
Grécia, Malta, Costa da Anatólia, Cartago, Síria Palestina e Chipre.
Entre outras, destacam-se a imagem do exótico Bês com rabo de
serpente, encontrado em Sulcis; a estatueta rizível de Bês, sentado,
com os órgãos sexuais à mostra e em destaque, encontrada em
Agrigento, datada dos séculos IV-III a.C.; o medalhão com a cara do
deus, encontrado em Chipre, datado do século VI a.C.; e uma a
simpática imagem do deusinho em Ibisa.
Para finalizar, lembra-se uma discussão realizada durante o
Congresso91
sobre a presença da imagem de Bês na Estela de
Metternich, mandada fazer por Nectanebo (360-342 a.C.) e que agora
se encontra no Museu Nacional de Napólis, bem como a linda Cippo,
onde Horus aparece como Harpócrates, cuja imagem antecede essa
conclusão.
É importante admirar nesses últimos dois exemplos o papel de
destaque conferido a esse deus popular egípcio, que pertencem
também ao entorno egípcio continental no mundo mediterrânico, onde
ele foi alçado, através da participação em práticas médicas, da
91
II Congresso Internacional de Religião, Mito e Magia no mundo antigo.
IX Fórum de Debates em História Antiga da UERJ. 08 a 12 de novembro de
2010.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
132
categoria de deus popular a de deus cultuado no circuito elitizado dos
sacerdotes curadores, dos governantes e dos homens de negócio, como
forma de proteção em suas lutas pessoais e cotidianas contra os
perigos e doenças, em busca de saúde e de vida. Bês perfaz, assim,
uma trajetória vertical e de circularidade na sociedade, como poucos
deuses da antiguidade realizaram!
Antes de finalizar, apresentam-se agradecimentos ao Dr.
Phillip Gomes Jardim, querido sobrinho, que, de sua viagem a Ibisa,
trouxe formidáveis subsídios para o futuro desenvolvimento desta
pesquisa.
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
135
Mito y sentido en Hesíodo: las formas de habitar el mundo
María Cecilia Colombani92
A.Introducción
La sabiduría poética es el momento en que los hombres
crearon un suelo antropológico; en los mitos queda plasmado el modo
en que la conciencia mítica inaugura una primera trabazón entre las
palabras y las cosas, una primera organización de lo que los hombres
ven y de cómo nombran lo que ven. ―Las palabras y las cosas‖ como
primer momento de saber-poder. Momento mágico-religioso, en
terminología griega, donde los dioses son los que imponen las reglas a
los hombres para aglutinar un topos común.
La clave de la conciencia mítica es construir un plexo de
figuras bajo las cuales se puede subsumir lo particular. Tal es la
función de los dioses y los héroes si es que podemos pensar una cierta
funcionalidad de esas representaciones que resultan imprescindibles a
la hora de hacer inteligible la lógica del mito.
Son estas figuras las que condensan el sentido de esa
conciencia mítica. Basta pensar el poder aglutinante de lo que
constituye el linaje hesiódico para comprender la función del mito
como dación de sentido. Hesíodo plantea dos linajes estructurales, uno
luminoso, de cara diurna, encabezado por la figura regia por
excelencia, Zeus y otro nocturno o negativo, encabezado por las
figuras emparentadas con lo tenebroso. Las familias divinas, así como
los héroes, con ellas familiarizados, operan como el modelo-patrón
donde el hombre griego proyecta sus relaciones sociales, políticas,
antropológicas.
92
Prof.ª Dr.ª da área de Estudos Clássicos da Universidade de Morón e da
Universidade de Mar Del Plata – Buenos Aires, Argentina.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
136
Es el relato teogónico, con la doble articulación del mito de
aparición y del mito de soberanía, el universo de sentido que subsume
una forma de mirar el mundo, de ―inteligir‖ pre racionalmente las
relaciones entre los hombres, de los hombres con los dioses y de los
hombres con la naturaleza.
Ese universo es una proyección humana y es esa misma
proyección la que garantiza y conserva una primera construcción
institucional.
El mito resulta entonces una fuerza, no sólo aglutinante de
sentido, sino una fuerza instituyente de la relación hombre-mundo.
Los mitos constituyen una cierta forma de respuesta que, a
nuestro entender, ubica al mito en el marco de un ―logos explicativo‖,
de una especie de ―filosofía popular‖, tal como llama Gernet a la
poesía sapiencial de la Grecia arcaica; sabiduría popular que opera
como un magma de significaciones múltiples.
No hay experiencia humana sin este suelo posibilitante de
experiencia; el mito constituye así la condición de posibilidad de una
primera instalación-percepción de lo real. Los mitos poseen cierta
densidad ontológica porque son productores de un efecto de verdad
sin el cual la experiencia es imposible; por eso son, además, topoi de
poder Retorna así el sentido fundacional del mito como dación de
sentido. Tal como sostiene Louis Gernet, de los dioses se obtienen dos
cosas que los hombres no pueden darse a partir de su precariedad
ontológica: la idea de Kósmos y la idea de justicia, doblete de la
primera. Esta dación abre el topos de la ―religión‖ como esfera otra
de lo humano. Sólo desde esa instancia religiosa el mundo se articula
en un plexo de relaciones conforme a legalidad, se convierte en una
unidad de sentido, lo cual constituye una necesidad de esos hombres;
necesidad de ―instalarse‖ en un mundo, de darse un ―domicilio
existencial‖, que el lenguaje articula.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
137
Allí están Homero y Hesíodo para sostener esa vigorosa
fantasía. Allí está Zeus para devolver una primera configuración
pagana de la idea de ―padre de todos los hombres y los dioses‖,
epíteto que Hesíodo devuelve a cada instante. Allí está el poeta para
devolver la viva imagen de un maestro de aletheia y allí está el poder
de la conciencia mítica como primera organización de sentido.
Nuestro recorrido está marcado por el horizonte mítico como
punto de anclaje de la articulación antropológica que da cuenta de la
díada pensamiento-instalación; los mitos griegos constituyen una
primera forma de dar sentido al mundo; el hombre necesita darle un
sentido a todo lo que hace y el mito ocupa ese nicho de significación,
que articula experiencia. La experiencia se presenta atravesada por el
sentido que la mitología le impregna. El mito constituye entonces una
bisagra instituyente, tal como acontece en el mundo griego. Sin mito
no hay Grecia; la ha constituido como condición de posibilidad
histórica. Pero, es hora de ir por más; sin mito no hay pueblo ni
identidad organizada en torno al relato ancestral.
Los caracteres poéticos constituyen el primer lenguaje, así
como la palabra mágico religiosa constituye el primer logos, la
primera trabazón entre lo que se ve y lo que se nombra, la primera
trabazón entre lo visible y lo decible, el primer encastre entre las
palabras y las cosas.
Ese lenguaje poético recoge la primera experiencia de la
arkhe. El fundamento último de lo real descansa en los dioses; todo
está pensado en términos de divinidad; los dioses son ―por necesidad‖
el fundamento de lo real, por ello todos los fenómenos naturales
encarnan una voluntad anímica. Se trata de un mundo animado, donde
el pensamiento mágico religioso da cuenta, desde la peculiaridad de su
lógica, la legalidad interna de su orden. Para el hombre, la naturaleza
es un ―tú‖ que interpela desde su vastedad. He allí el mito como una
primera respuesta al impacto que la naturaleza imprime al asombro
del hombre; la respuesta se articula en lenguaje poético.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
138
Por eso, quizás, nacimos poetas y lo seguimos siendo para
seguir conservando un albergue existencial, para seguir tramando una
trama que no cesa de tejerse, una urdimbre que nos cobija en nuestra
precariedad existencial. Por eso somos y hemos sido hacedores de
mithoi.
Desde este modelo de instalación teórica abordaremos el
vínculo hombre-divinidad en lo que constituye el logos fundacional de
nuestra historia de Occidente: el mito griego, como primera trabazón
entre teología y literatura. Allí se impone el relato teogónico como
logos explicativo, como aquella palabra poética que da cuenta de lo
primerísimo como imagen originaria que satisface una pregunta
también originaria. El mundo es tal como los dioses lo han dispuesto
en el marco de una dramática divina de marcado sesgo
antropomórfico y agonístico, que parece repetirse en configuraciones
culturales de distintos estatuto. Esta primera ―religiosidad griega‖
constituye con la primera ―poesía sapiencial‖, un maridaje indisoluble
del vínculo entre el plano humano y el plano divino, reescrito de
múltiples maneras por una polifonía de voces histórico-culturales.
La experiencia poética como etho poiesis
Partimos de la idea de que no es posible captar la importancia
del hecho literario y del filosófico por fuera de sus relaciones con la
dimensión ántropo-religiosa. Poesía y filosofía parecen ser así dos
actividades emblemáticas de la Antigua Grecia y ambas,
emparentadas entre sí, no son entendibles por fuera de sus vínculos
con la sociedad. A partir de allí abordaremos cómo el lenguaje poético
y el filosófico responden, desde sus estructuras particulares, a los
vínculos que esos logoi guardan con su tiempo histórico y con la
necesidad del hombre de dar respuestas a sus interrogantes más
originarios. El lenguaje poético es el logos que corresponde a una
―lógica de la ambigüedad‖, inscrita en el horizonte mítico, mientras el
lenguaje filosófico es el logos propio de una ―lógica de la no
contradicción‖ (DETIENNE, 1986), que conoce en la emergencia de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
139
la ciudad, polis, su carta de nacimiento. Pensamiento y lenguaje
constituyen, pues, una unidad indisoluble sólo perceptible a partir de
los medios de producción que los hicieron posible como productos
sociales. Si el lenguaje de Homero señala lo verosímil, el logos
hesiódico señala lo verdadero, dividiendo las aguas entre literatura y
filosofía (GIGON, 1980). Su preocupación por la verdad, aletheia, y
el origen, arkhe, lo ubica como un antecedente fuerte de la primera
especulación filosófica. Poesía y filosofía parecen entonces rozar sus
territorios en la figura del poeta de Ascra, al tiempo que el lenguaje
poético y el filosófico intersectan sus objetos de problematización.
En este marco general, el propósito de la presente
comunicación consiste en efectuar una lectura ántropo-religiosa al
interior de la obra hesiódica. Lo pensamos desde la perspectiva de la
dualidad de planos que el marco religioso abre; por un lado, un plano
teológico y por otro, un plano humano, siguiendo en este tratamiento
la perspectiva que incluye Jean Pierre Vernant como modo de abordar
la obra hesiódica93
. Nuestro intento es efectuar un seguimiento de
ambas obras, Teogonía y Trabajos y Días, sumado a ciertas
intervenciones de carácter filosófico-antropológico, sobre todo en lo
que se refiere a la distancia que separa a hombres y dioses,
determinando dos plano heterogéneos en cuanto a la calidad de ser.
Nos parece oportuno recorrer los distintos significados del
término topos: lugar, sitio, territorio, región, espacio, condición,
categoría. De algún modo las distintas acepciones retornarán a lo largo
del trabajo. Si bien lo más familiar consiste en asimilar la noción de
topos a una imagen espacial, la propuesta es avanzar sobre otras
dimensiones.
La obra hesiódica es muy rica y pintoresca en estas
espacializaciones que pueblan ambas obras, dibujando el plano de los
93
VERNANT, J.P. Mito y pensamiento en la Grecia Antigua. Barcelona:
Ariel, 2001.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
140
dioses y de los héroes, de los hombres, a partir del mito de las edades,
y de las mujeres, a partir del mito de Prometeo; el territorio de las
potencias primordiales, el campo de los vencedores y los vencidos, a
partir de la titanomaquia y de la tifonomaquia, la región de las figuras
positivas y las negativas. Si pensamos en las otras acepciones del
término, también podemos efectuar algunas consideraciones ya que lo
que se observa son tensiones ontológicas que hablan de distintas
categorías de ser, sobre todo en la distancia que representa la
condición divina frente a la humana. En realidad los respectivos sitios
están determinados por los respectivos estatutos de ser.
Pasemos pues a recorrer el texto a fin de delimitar el proyecto
precedente. Comencemos por el plano teológico que tendrá a Zeus
como el gran protagonista del relato hesiódico, sobre todo a partir de
la solidaridad Zeus-Dike y de la absoluta confianza que el poeta de
Ascra sostiene en el Padre de todos los dioses y los hombres.
Plano teológico. Positivo.
Zeus reina sobre dioses y hombres. El final de las grandes
batallas por la organización cósmica de cuenta del reinado en términos
de absoluta soberanía: ―Luego de que los dioses bienaventurados
terminaron sus fatigas y por la fuerza decidieron con los Titanes sus
privilegios, ya entonces por indicación de Gea animaron a Zeus
Olímpico de amplia mirada para que reinara y fuera soberano de los
Inmortales. Y él les distribuyó bien las dignidades‖ (TEOGONIA,
881-886). No sólo se ha ordenado el kosmos, sino que se ha instaurado
la justicia, lo cual constituye en realidad una duplicidad. La justicia es
el doblete de kosmos, su par complementario.
Tensionando el plano divino, los hombres de la edad de oro
gozan de un estatuto semejante. ―Al principio, los Inmortales que
habitan mansiones olímpicas crearon una dorada estirpe de hombres
mortales. Existieron aquellos en tiempos de Cronos, cuando reinaba
en el cielo; vivían como dioses, con el corazón libre de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
141
preocupaciones, sin fatiga ni miseria; y no se cernía sobre ellos la
vejez despreciable, sino que, siempre con igual vitalidad en piernas
brazos, se recreaban con fiestas ajenos a todo tipo de males‖
(TRABAJOS Y DÍAS, 108-116). A la luz de lo que constituye el
mundo humano, se da una fuerte tensión entre ambos planos-
condiciones. Estos hombres desconocen la naturaleza humana,
transida por la precariedad ontológica, que retorna en males y
preocupaciones; parecen estar en un espacio más cercano a la
sempiterna felicidad de quienes habitan las mansiones olímpicas;
incluso cuando esta raza fue sepultada, por voluntad del mismísimo
Zeus, se convirtieron en démones benignos ―que vigilan las sentencias
yendo y viniendo envueltos en niebla, por todos los rincones de la
tierra‖ (TRABAJOS Y DÍAS, 124-126). Doble juego de positividad.
Por un lado, un destino casi regio, amparado por la máxima voluntad
divina, que desconoce las peripecias de la muerte de los mortales y, en
segundo lugar, un destino que complementa la acción del Padre,
vigilando la justicia en la tierra.
Plano teológico. Negativo.
Debemos rastrear la titanomaquia para dar cuenta del acto de
hybris que supone tensionar el poder real y con ello romper la justicia
instaurada por Zeus. El Padre ha castigado cada acto de desmesura y,
en este caso, obra en consecuencia con la ayuda de Coto, Giges y
Briareo, como aliados de la gesta. El combate se desarrolla y como es
de imaginar en un relato de corte optimista como el hesiódico, los
Titanes son vencidos. ―Allí los dioses Titanes bajo una oscura tiniebla
están ocultos por voluntad de Zeus amontonador de nubes en una
región húmeda al extremo de la monstruosa tierra; no tienen salida
posible: Posidón les puso encima broncíneas puertas y una muralla
les rodea de ambos lados. Allí habitan también Giges, Coto y el
valiente Briareo, fieles guardianes portador de la égida‖
(TEOGONIA, 730- 735). Interesante juego de tensiones: en primer
lugar, el plano positivo, Zeus-sophrosyne-justicia-triunfo, se distingue
claramente del plano negativo, Titanes-hybris-injusticia-derrota,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
142
permitiendo, una vez más sostener la visión optimista del mundo94
. En
segundo lugar, la tensión espacial entre lo subterráneo y lo que habita
por sobre la tierra. Las potencias negativas son sepultadas en una
territorialidad que guarda, según la imagen que devuelve el relato,
caracteres negativos; por el contrario, sabemos el topos que le
corresponde a los vencedores: las mansiones olímpicas, con los
consecuentes caracteres positivos de tan ilustre territorio. En tercer
lugar, la tensión entre lo positivo y lo negativo al interior del mundo
subterráneo. Elementos negativos y positivos se complementan: unos,
los Titanes, guardados donde corresponde encerrar la hybris, como
elemento desterritorializante del orden-justicia; otros, los
Hecatónquiros, vigilando las fronteras de la sophrosyne. Pura
complementariedad que ubica la tensión Mismidad-Otredad en su
punto justo, para seguir disfrutando de la visión optimista, a la que
aludiéramos.
El relato devuelva siempre la tensión entre lo Mismo y lo
Otro; asimismo podemos advertir una nueva tensión entre las figuras
positivas y negativas: la tensión lumínica. Las figuras negativas se
sumergen en la oscuridad de aquellos topoi que no conocen la
luminosidad.
Más allá de la especificidad de los acontecimientos puntuales
que recorrimos, el poema presenta una buena cantidad de catálogos y
genealogías que el propio Hesíodo ordena según cierta racionalidad o
bien siguiendo los parámetros de la tradición mítica. El lector se
encuentra entonces con un abundante material disperso de catálogos
de nombres, orígenes de dioses y algunos mitos. Teogonía supone la
divinización del universo que nos rodea, la personificación de los
fenómenos y las actividades con las que los hombres se enfrentan en
su vida humana. Todo lo efímero de la vida cobra un estatuto divino y
eterno y recibe un nombre que lo personifica. Así el dolor, el temor, la
94
GERNET, Louis. Antropología de la Grecia Antigua. Madrid: Taurus,
1981.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
143
alegría, la justicia y todo aquello que concierne a los hombres en su
precario existir, queda personificado a través del nombre que lo
nombra.
El otro propósito de Teogonía y más cercano a la lectura que
propusimos es dar cuenta del orden del universo, de su legalidad, de
su sentido cósmico, aludiendo precisamente a la noción de Kósmos
como orden. El universo responde a una armonía que debe
interpretarse en clave religiosa. Para ello, el poeta se ubica en su
propia tradición mítica porque ese telón de fondo que sostiene la
experiencia mítica coincide con su propia experiencia religiosa.
La posibilidad de orden cósmico viene de la mano de una
dimensión agonística, ya que la armonía del Kósmos deriva del
triunfo de ciertas potencias sobrenaturales sobre otras. El orden es el
resultado de una victoria, tras un largo ágon (combate), del que dan
cuenta la Titanomaquia, o batalla contra los Titanes y la
Tifonomaquia, o sea la batalla final contra Tifón, el más joven de los
hijos que Gea, la Tierra, pariera. Éste fue el enclave donde nos
movimos. El soberano no es otro que Zeus, quien, en realidad,
representa más que una figura en particular, un estado de legalidad
sobre aquello que debía ser ordenado. Zeus no es más que el símbolo
de un orden que garantiza un fondo optimista en torno a la percepción
de lo real. Hesíodo sostiene una visión optimista del mundo, la misma
que atraviesa la configuración de la pólis como percepción armoniosa
de la comunidad de hombres. Por detrás del caos aparente, se
garantiza la existencia de un orden, del cual es la poesía precisamente
su más lograda percepción. Como sostiene Louis Gernet, ella
constituye esa especie de ―filosofía popular‖ que al narrar las
sucesiones divinas narra al mismo tiempo la plasmación, a partir del
Caos, de un orden perfecto, sostenido por la justicia de Zeus. La
Teogonía constituye el primer intento griego de dar una explicación
divina al orden del universo. Por ello, desde una dimensión
genealógica que rastrea orígenes y líneas de sucesión, la poesía, en su
intento explicativo de lo real, es el antecedente de la filosofía como
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144
búsqueda de la arkhé (fundamento, origen) y el poeta, como maestro
de verdad, la figura que anticipa a la del filósofo. Recorriendo
genealogías, la filosofía antes de la filosofía, como señala Pierre
Hadot, nos devuelve la poesía como intento de explicación de una
armonía que subyace a lo aparente.
Se trata, en última instancia, de recorrer los caminos que
llevan del poeta al filósofo, en un desplazamiento de la figura del
maestro de verdad. En la medida en que el filósofo sigue buscando los
orígenes, los linajes conceptuales y la verdad, éste reproduce el
modelo de maestro de alétheia presente en la configuración poética.
De la figura de los maestros de verdad, poetas y adivinos,
encargados de pronunciar el discurso verdadero, a la figura del
ciudadano de la pólis, sostenedor del kósmos social, el lenguaje ha
sufrido importantes transformaciones en su modo de enunciación, en
los sujetos de tal enunciación y en la dimensión ritual de su puesta en
circulación, pero, asimismo, ha guardado un rasgo común: vehiculizar
la perspectiva que el hombre posee de lo real, plasmar en lógoi un
modo de instalación en el mundo.
El lenguaje colabora en la apropiación que el hombre hace de
la realidad, de allí que la problematización sobre el mismo no se agote
en un análisis meramente lingüístico, sino que roza un territorio
ántropo-religioso, en la medida en que el lenguaje da cuenta de la
relación entre el pleno humano y el plano divino. La palabra entendida
como discurso no es un mero instrumento para la comunicación ni
para la representación, sino que la palabra es el lugar en donde lo real
toma sentido y orden. La palabra que nos permite comprender el
inicio de este pasaje es la palabra poética. De la palabra del filósofo a
la palabra del poeta. De la palabra política a la palabra mágico-
religiosa. Siempre es el lógos el que permite ese recorrido por los
intersticios que dan cuenta de las diferentes maneras de instalación en
el mundo. La filosofía y la poesía, y entre ellas, el mundo complejo de
continuidades y discontinuidades.
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145
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147
A Rainha de Sabá e o Cristianismo da Etiópia
Maria da Conceição Silveira95
O país que é hoje conhecido como Etiópia já recebeu várias
denominações, conforme o período histórico, a extensão do seu
território e o contato com outras civilizações. Chamou-se Cuxe
quando seus limites alcançavam o sul do Egito, a partir do noroeste da
nação atual; seguiu, redesenhando sua geografia a cada conquista e a
cada derrota. Segundo Moktar (1983: 243), apesar da suposta
superioridade egípcia nunca lhes foi possível estabelecer uma
dominação efetiva das áreas situadas abaixo da segunda catarata, mas
os etíopes consolidaram seu poder no Egito em 712 a. C., formando a
XXV dinastia à frente de um Império que se estendia do Delta do Nilo
até a sexta catarata961
. Abssínia era o nome do território
compreendido pelo Sudão e Etiópia atuais e dá nome ao planalto que
se estende pelos dois países. Seus habitantes já foram, portanto,
chamados abexins. A denominação etíope, por sua vez, é de origem
grega e designava, em virtude da cor da pele, os povos que ocupavam
a região mais afastada do Mediterrâneo, além do Saara, pois o termo
significa ―homens do rosto queimado‖ e não se aplicava, portanto,
apenas aos antigos abissínios.
A Etiópia tem uma herança histórica muito peculiar e, na
qualidade de sociedade civilizada, é capaz de suportar qualquer
critério de avaliação, do mais progressista ao mais conservador. É
uma autêntica civilização africana, detentora de uma cultura rica que
se desenvolveu ao longo de milênios, sempre interagindo com os
povos que se destacaram nas épocas em que a História registra as mais
importantes transformações da humanidade. A ―situação
95
Prof.ª Dr.ª da área de letras clássicas da UFRJ. 96
O rio Nilo possui várias cataratas, mas, na Antiguidade, distinguiam-se seis
situadas entre Assuão (em território egípcio) e Cartum (capital do Sudão e
porto fluvial na confluência do Nilo Azul com o Nilo Branco).
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148
intermediária‖ da sua etnia demonstra a convergência de elementos de
variadas origens, formando um povo mestiço, vigoroso e belo,
inteiramente compatível com a superposição de culturas que forjou a
identidade nacional na Etiópia. A própria história de seus mitos
revela a natureza cosmopolita e híbrida do seu povo: a tradição
judaico-cristã que marca sua origem, a narrativa que o paganismo
grego criou para explicar a cor da pele dos seus habitantes e a lenda
que o Ocidente cristão reconstruiu e que ajudou a abrir as portas de
toda a África para o conquistador europeu.
A dinastia, que pela tradição bíblica teve início com a rainha
de Sabá, foi a mais longa da História, só extinta em 1975 com a morte
do Imperador Hailé Selassié, deposto por um golpe militar em 1974.
Havia na Etiópia um livro antiqüíssimo97
, que ao lado da
Bíblia Hebréia era muito venerado como um segundo Evangelho,
conservado na Igreja de Axum, a mais antiga Metrópole e sede do
Império, onde a Rainha de Sabá teve sua corte98
. Diz esse livro que
quando reinava na Etiópia a rainha Maqueda, chegaram notícias da
sabedoria do rei Salomão, trazidas por um rico mercador que,
retornando a sua terra, contou maravilhas sobre a justiça, a modéstia, a
doçura e a clemência, e muitas outras virtudes daquele rei. Desejosa
de ver e ouvir o sábio monarca, a rainha organizou uma caravana com
muitas riquezas, entre as quais ouro, aromas e incenso, e dirigiu-se a
Jerusalém. Com grande honra foi recebida por Salomão e hospedada
perto de sua casa. Quase diariamente o rei a visitava para verificar se
97
―Obra central da literatura e da civilização etíope, a Glória dos Reis
(Kebra Negast), escrito em geez, a língua clássica da Etiópia, é um texto
cuja forma atual foi fixada em finais do século XIII, na altura da ascensão
da chamada dinastia salomônica ao trono imperial nos planaltos do Tigré e
Amhara.‖ (RAMOS, 1998: 236) 98
―[...] o livro onde põem o catálogo dos Imperadores diz que a Rainha Azeb
(ou Maqueda) começou a reinar em Axum, e as ruínas dos edifícios que
ainda aparecem, mostram bem haver sido a mais suntuosa que houve em
Etiópia.‖ (PAIS, 1945: 25).
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149
o tratamento a ela dispensado estava de acordo com suas ordens.
Também ela ia visitá-lo para ouvir e aprender com sua sabedoria e
justiça, que eram dadas por Deus.
De volta ao seu reino, Maqueda teve um filho que concebera
de Salomão e chamou-o Menelik, o qual ao se tornar adulto voltou a
Jerusalém para conhecer o pai levando mensagem da rainha, que
suplicava que sagrasse seu filho rei de toda a Etiópia. Toda a corte se
admirou com a grande semelhança entre Menelik e Salomão, que não
hesitou em ungi-lo e coroá-lo rei, nomeando-o Davi99
. Depois que
prestou juramento, recebeu do pai, junto com outros presentes, muitos
primogênitos da corte de Israel para compor seu séquito, além de
oficiais de serviço da Casa Real de Judá, um Sumo Sacerdote e
ministros muito doutos, que deveriam acompanhá-lo. Tristes por
estarem sendo afastados de seus pais, os primogênitos entraram à
noite no Templo e tiraram de lá a Arca do Testamento, a que
chamavam Sion Celestial e a levaram para um Templo na terra de
Makeda100
. De posse dessa relíquia todos na Etiópia
101 reconheceram
o verdadeiro Deus102.
Também diz o livro que, ao entregar o reino ao filho,
Maqueda o fez jurar que nunca mais seria admitida uma mulher como
governante103
, e que só aos seus descendentes varões e pelo lado
99
―[...] daqui vem que os Emperadores de Ethiopia mudão o nome do
bautismo quando lhes entregão o Império.‖ (PAIS, op. cit. p. 31) 100
―Muitos de nossos sagrados expositores dizem que esta rainha era da
Arábia e não de Etiópia.‖ (TELES, 1936: 95). 101
―O livro de Reis 1-10 localiza o reino de Sabá no Iêmen, noroeste da
Arábia.‖ (ALMEIDA, 2002: 389). Com efeito, na divisão que Heródoto faz
dos etíopes aparecem os da Ásia, juntamente com os macróbios e os
trogloditas. (conf. BISPO, 2006: 28) 102
Segundo uma outra tradição, a rainha se converteu ao cristianismo depois
de batizada pelo seu eunuco (Fides). 103
Porém Menelik II, encontrando-se muito doente, transmitiu o reino a sua
filha Zaditu, em 1907. (N. A.)
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150
masculino seria dado o comando do Império. Do tempo da Rainha de
Sabá até o nascimento de Cristo consta ter havido 24 imperadores, e
que a fé católica foi adotada em 1437104
, no tempo do Imperador Zara
Jacob, que para isso enviou embaixadores abexins com carta ao Papa
Eugênio IV.
Conforme relata o Padre Baltazar Teles ―Junto a Axum, no
reino do Tigré, em Etiópia, está ainda hoje um lugar pequeno que se
chama Sabá ou Sabain, no qual dizem que nasceu a Rainha de Sabá;
também há os lugares de Azebó, que diz com o nome Azeb, e Beth
David, que significa Casa de David.‖
O período hebreu foi caracterizado pelo apogeu econômico e
cultural da Etiópia. No século III o Império de Axum já era um dos
maiores do mundo e a conquista de Méroe, então decadente, vai
aumentar seus territórios. No século IV foi adotada a fé cristã trazida
por Frumêncio, que desembarcou com seu irmão Edésio em um porto
do Mar Vermelho, onde foram aprisionados e levados à presença do
rei. Frumêncio permaneceu depois para ajudar na educação do jovem
príncipe Ezana, a convite da rainha, pois o rei Elle Ameda havia
morrido. Mais tarde foi consagrado pelo patriarca de Alexandria105
,
Atanásio, como primeiro bispo de Axum e batizou toda a família real.
Coube aos sucessores de Ezana consolidar o cristianismo na Etiópia,
dando início às peregrinações ao Santo Sepulcro.
A partir de 572 e até 975, Axum começa a perder algumas
províncias para os persas. Durante o século VIII os abissínios perdem
seus portos no Mar Vermelho106
. Em franca decadência, o Império
104
Teles (p.117), sem levar em conta o quão novo era o catolicismo entre os
etíopes, acusa-os de cismáticos. (N. A.) 105
O país ficou assim unido à Igreja Copta do Egito (culto cristão etíope e
norte-africano), que professa um cristianismo monofisista (defende a
natureza única de Jesus). (Idem, p. 13) 106
A Abissínia possuía os portos de Maçuá e Dalec, e mais ao sul, Zeila,
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151
conhece um período de devastação e trevas, até o surgimento no
século XII de uma nova dinastia. Lalibela, o ―São Luís Etíope‖,
famoso por sua devoção, construiu as famosas igrejas rupestres da
Etiópia e transferiu a capital para outra cidade que recebeu seu nome.
A nova dinastia, que remontaria a Moisés e não a Salomão, reinou por
cento e trinta e três anos. Em 1270, ocorre a chamada ―restauração
salomônica‖, com a subida ao poder da antiga aristocracia axumita. É
um período de grande renascimento literário, quando enfim a História
da Abissínia começa a ser produzida por um escriba real.
A arquitetura que se desenvolveu no período cristão ainda
hoje intriga e fascina os especialistas, pois há uma infinidade de
mosteiros construídos em altíssimos penhascos, além das Igrejas
totalmente entalhadas em blocos de pedra (igrejas monolíticas ou
rupestres)107
. Na parte noroeste ainda existem pirâmides – vestígio,
provavelmente, do império cuxita – e muitas ruínas de um passado de
esplendor.
Durante séculos a Etiópia permaneceu como reduto cristão,
cercado e assediado pelos mouros que precisavam ser energicamente
combatidos e, para cujos domínios, perdeu boa parte de seu território,
incluindo as terras às margens do Mar Vermelho, e mais teria perdido
se não fossem as freqüentes guerras travadas para defender ou
recuperar suas províncias. Na Idade Média, o Ocidente recebeu
notícia da existência de um reino cristão muito próspero na costa
oriental da África, que era o flagelo dos infiéis, e entre tantas outras
lendas e utopias em que o período medieval foi pródigo nasceu a
lenda do Preste João que foi posteriormente identificado como sendo
o chefe do Império da Etiópia
todos ocupados por muçulmanos que pagavam tributo ao reino. (conf.
SANCEAU, 1940: 57-59). 107
Existe uma cidade na Etiópia, também de nome Lalibela onde se
encontram igrejas monolíticas, esculpidas na rocha viva, por ordem do rei
Lalibela. (N. A.)
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152
Entretanto não se pode dizer que o Cristianismo triunfou
plenamente na Etiópia – bem como em outras nações africanas. A
localização do Império, às margens do Mar Vermelho, favoreceu o
desenvolvimento de uma cultura marcada por influências estrangeiras.
O reino de Axum desempenha em certa época um papel
importante na História da África Oriental: A fundação do
reino serviu de base para a edificação de um império. Do
fim do século II ao início do século IV, Axum tomou parte
nas lutas diplomáticas e militares que opunham os Estados
da Arábia Meridional. Os axumitas submeteram as regiões
situadas entre o planalto do Tigre e o vale do Nilo. No
século IV, conquistaram o reino de Méroe, então em
decadência. Desse modo foi-se constituindo um império
que abarcava as ricas terras cultivadas do norte da Etiópia,
o Sudão e a Arábia Meridional, incluindo todos os povos
que ocupavam as regiões situadas ao sul dos limites do
Império Romano – entre o Saara, a oeste, e o deserto de
Rub al-Khali, no centro da Arábia, a leste. (GIORDANI,
1985: 83)
A presença muçulmana e o freqüente contato com os hebreus
explicam o caráter híbrido, também da religião professada na Etiópia.
No século XVI, apesar do empenho de portugueses e etíopes para
aproximar o país do clero romano, as práticas pouco ortodoxas
daqueles cristãos tão afastados da cultura ocidental, levaram a que os
Papas (Paulo III, Clemente VII) dessem pouca atenção às freqüentes
embaixadas que o país enviava à Itália em busca do reconhecimento
da sua fé.
Vemos que este imperador dos etíopes com todos os seus
súditos, como será observado em nosso relato, deseja
também viver sob tua lei e nada mais deseja. Não ignora,
além disso, por causa da doutrina dos Apóstolos, que
possui, dividida em oito livros, que a primazia dos bispos e
de todo o mundo é devida ao bispo romano, a quem inteira
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
153
e santamente quer submeter-se e também ser instruído por
ele nos princípios da Igreja de Cristo. (GÓIS, 1541: 05).
O Papa Eugênio III (de 1145 a 1153), num passado remoto,
reunira-se num Sínodo, em Malta, com José, patriarca de
Constantinopla, grande número de bispos e arcebispos, e também com
os patriarcas de Antioquia, Alexandria e Jerusalém, quando foi
estabelecida e consagrada a doutrina, superando, pela reforma dos
costumes, a disciplina da Igreja e a evangelização do povo, as
dificuldades e divergências que havia em suas práticas. Legados do
imperador etíope da época levaram ao país esse código de conduta
cristã, conforme narrativa do imperador Davi, em carta ao rei D
Manuel, de Portugal, no ano de 1524.
Mas no século XVI, a expansão do Islã e o surgimento do
protestantismo, abalaram sensivelmente a antiga tolerância para com
os outros cristãos, mesmo aqueles que, em virtude de uma cultura
singular, não seguiam com rigor os preceitos do catolicismo ortodoxo.
E esse era o caso dos etíopes, que jamais conseguiram se afastar de
suas tradições, apesar de estarem entre os povos que mais
precocemente adotaram a fé cristã.
Nesse contexto, foi em vão que os sacerdotes da Etiópia
buscaram abrigo para seu cristianismo primitivo e mestiço junto à Sé
romana. Afinal, mesmo declarando-se portadores dos oitos livros
escritos pelos Apóstolos e confessando-se fiéis à Santíssima Trindade
– na época questionada por eruditos europeus, como Michael Servetus
–; embora celebrassem datas festivas, como a Anunciação, a
Natividade, a Circuncisão, os Círios, o Batismo, o Domingo de Ramos
e a Sexta-Feira Santa, entre outras, havia na sua ritualística influências
consideradas de origem pagã ou heréticas.
O jejum às quartas-feiras, em memória do Concílio dos
Judeus, e às sextas-feiras, dia da crucificação, desde a manhã até o
pôr-do-sol, o resguardo diferenciado para a mãe que deu à luz menino
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154
ou menina e a circuncisão – inclusive para as meninas – aproximava-
os do judaísmo. A permissão do casamento aos clérigos, para que não
vivessem em pecado, aproximava-os do luteranismo. A observância
do Antigo Testamento era própria do calvinismo. O costume de não
entrar no templo com os pés calçados, fazia-os semelhantes aos
muçulmanos. Por isso nunca foram reconhecidos pelas autoridades
eclesiásticas do Ocidente como autênticos e legítimos católicos.
Assim, entre os séculos XVII e XIX, depois de terem expulsado os
jesuítas de seu território, ficariam esquecidos no meio de seus
conflitos e à mercê da influência muçulmana, que acabou por reduzir
o domínio do catolicismo, ainda que seja esta a religião oficial e
professada por, mais ou menos, cinqüenta por cento da população.
Além de ter assimilado as três maiores religiões monoteístas
do mundo – Cristianismo, Judaísmo e Islamismo – a Etiópia
conservou vestígios de sua religião ancestral e seus cultos, associados
à adoração das árvores, da serpente-rei, do sol, da lua e da deusa
Astarte108
. Essas religiões da natureza possuem um número
significativo de seguidores, em torno de quinze por cento, devido, em
parte, à grande concentração populacional em áreas rurais – pouco
mais de dez por cento dos etíopes vivem nos centros urbanos. O
Judaísmo, que remonta aos tempos mais antigos do país, apesar de ter
seus fundamentos na Bíblia de Israel, desenvolveu-se contaminado
pelos cultos indígenas.
A adesão ao Islamismo, em torno de trinta e cinco por cento
da população, deve-se principalmente à tolerância característica da
religião muçulmana, onde foi possível encontrar refúgio para muitos
dos cultos nativos. Por essa razão, as relações com os representantes
estrangeiros não resultou em conflitos de natureza teológica, e a
religião islâmica foi adotada em seu estado quase puro. Também a
língua falada na Etiópia (amárico) favoreceu esse intercâmbio, uma
vez que a interação com os povos árabes foi muito mais intensa que
108
Deusa fenícia do amor e da fertilidade, associada à Afrodite.
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155
com as culturas judaicas, inclusive em virtude da localização e do
comércio na região do Mar Vermelho, desde os tempos em que a
Abissínia se estendia até a costa.
O cristianismo que se preservou na Etiópia não está submetido
à Igreja de Roma, mas à Igreja copta do Egito, de culto nestoriano. A
oposição ao domínio árabe pode ser a principal causa da
sobrevivência dessa religião, apesar de toda polêmica relacionada aos
seus dogmas. Desde a sua origem, quando se deu a conversão do
Imperador Ezana, que ao morrer deixou o cristianismo firmemente
enraizado na consciência do seu povo, nenhuma mudança significativa
se verificou na doutrina estabelecida pelos primeiros Concílios. O de
Calcedônia, em 451, que estabeleceu a doutrina das duas naturezas de
Cristo, uma divina e outra humana, foi, por esse motivo, rejeitado
pelos coptas, entretanto não produziu efeitos no cristianismo etíope,
uma vez que ali o monofisismo já era aceito e assim explicado:
mesmo na pessoa de Cristo encarnado pairava sua natureza divina. O
cisma sobre as duas naturezas de Cristo entre os cristãos do oriente,
também, deu origem a perseguições e condenações por heresia.
A Etiópia ofereceu refúgio a muitos desses religiosos
perseguidos. Contudo os imperadores de Bizâncio, que lideraram as
perseguições, especialmente Justiniano I, mantiveram com o país
abissínio relações amigáveis, talvez porque seu território distante não
fazia parte dos limites do Império bizantino, como, também, jamais
fora reduzido à condição de província romana.
O Senhor dirigiu sua promessa à descendência de Abraão,
ou seja, a todos os povos, não somente aos romanos. Em
virtude dessa promessa, já é uma realidade: diversos povos
não submetidos à dominação de Roma receberam o
Evangelho e fazem parte da Igreja que produz seus frutos e
se espalha no mundo inteiro. E poderá crescer ainda, até
se cumprirem profecias. Os povos não virão ao Senhor,
abandonando sua pátria, mas confessando a fé em sua
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156
própria terra. (SANTO AGOSTINHO, Carta a Hesíquio,
12, 47)109
De acordo com Kebra Negast, o Imperador da Etiópia e
Justiniano I haviam sido designados por Deus para se reunirem em
Jerusalém e dividir entre eles o domínio da religião no mundo. Com
efeito, a Igreja etíope manteve, por setenta anos, o controle sobre os
cristãos do sul da Arábia. O projeto por demais audacioso de
converter toda a Arábia não se efetivou em virtude do fortalecimento
do islamismo em 570.
A unificação da Etiópia como Império está intimamente
associada à adoção do Cristianismo, cerca de 900 anos antes de Cristo,
quando teve início a dinastia salomônica, com o rei Menelik I, que, de
acordo com a tradição judaico-cristã era filho do Rei Hebreu com a
Rainha de Sabá, governante de Shoa, em terras abissínias.
Unificação no passado e independência no futuro, eis o legado
da religião cristã à Etiópia. Além de não ter sido alcançado pela
dominação romana, é um dos dois países africanos que não sofreu a
colonização européia. Esta se restringiu a um curto espaço de tempo
da ocupação pela Itália, que, por não ter sido agraciada com nenhuma
parcela do Novo Mundo, resolveu empreender a conquista da região,
mas foi derotada em 1896 por Menelik II, na batalha de Adua.
Invadida novamente pela Itália, em 1935, sua ocupação
alcançou a maior parte do território até 1941. Mas a Inglaterra,
empenhada em expandir seus mercados, em decorrência da Revolução
Industrial e da ascensão do Capitalismo, desde o século anterior
passara a apoiar os movimentos de independência, como também a
França, que aliou-se aos ingleses para auxiliar na libertação do país.
109
Apud ALBERIGO, 1988: IX.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
157
Mesmo sendo um dos mais antigos países cristãos da História, a
Igreja Ortodoxa Oriental divide com outros credos a fé do povo
etíope. A intolerância religiosa, que desde as origens é motivo de
conflitos até mesmo entre cristãos, talvez tenha sido a causa principal
do crescimento do islamismo no país, impedindo a adesão
incondicional à fé católica.
Apesar de se considerarem os herdeiros e guardiães da Arca da
Aliança, furtada pelos primogênitos israelitas que acompanharam
Menelik I em seu retorno à Abissínia, os conflitos religiosos e a
instabilidade política e econômica representam um entrave ao
desenvolvimento social e humano na Etiópia. Além disso, a mudança
do regime deu origem a uma espécie de messianismo à africana desde
a morte de Hailé Selassié (o Negusa Negast da Etiópia.), pois o povo
permanece, ainda, à espera daquele que há de retornar para governar
todos os afro-descendentes do mundo.
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
160
Muçulmanos e Cristãos: uma construção da alteridade dos
fiéis das duas crenças
Maria do Carmo Parente110
A vitória dos turcos seldjúcidas sobre as tropas bizantinas em
agosto de 1071 foi um duro golpe para os exércitos cristãos, uma vez
que abriu caminho para o assentamento do inimigo na região da
Anatólia. É difícil não se reconhecer neste evento o ápice de um
processo de expansão muçulmana iniciado logo após a morte do
fundador do islamismo.
O surgimento do Islã e sua conseqüente expansão ocorreu
num momento em que as vitórias do imperador Heráclio sobre o
império sassânida pareciam ter efetivado definitivamente a soberania
cristã sobre a Ásia Menor, Egito, Síria e Mesopotâmia, áreas
importantes por seus imensos recursos naturais e humanos.
Os governantes dos impérios bizantino e sassânida foram
pegos de surpresa, quando se iniciaram as primeiras investidas dos
muçulmanos sobre suas fronteiras. A perspectiva com que ambos
encaravam os árabes não era das mais lisonjeiras. As tribos nômades
habitantes da península Arábica vivendo em permanentes conflitos
umas com as outras não pareciam constituir uma ameaça aos dois
impérios, que não acreditavam que estas pudessem transcender seus
ódios tradicionais, aliando-se para a formação de uma unidade política
obediente a um único governo.
Mas, o tribalismo e o modo de vida nômade dos beduínos era
uma característica da Arábia setentrional e média, e não de toda a
região. No sul florescia uma apreciável cultura urbana, possível pela
construção de grandes diques e sistema de irrigação. Sua posição -
110
Prof.ª Dr.ª da área de Antiga e Medieval, da UERJ. Membro do Núcleo de
Estudos da Antiguidade e do CEHAM/UERJ.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
161
saída do mar Vermelho - tornava-a ponto de convergência das grandes
rotas mercantis Oriente- Ocidente e ainda local de ligação comercial
entre o oceano Índico e as rotas terrestres que se dirigiam para a Síria
e o Egito.
Mas, uma região cuja posição favorecesse o comércio acabava
sempre por levar ao abandono do nomadismo. Tal fenômeno pode ser
observado em Meca, posicionada no entroncamento de duas grandes
rotas de caravanas, tornou-se por este motivo um vigoroso entreposto
comercial, dirigida por uma aristocracia de ricos comerciantes.
Os árabes não viviam isolados em seu território interagindo
com persas e bizantinos das mais diversas maneiras: trabalhavam
como soldados mercenários, mas também praticavam o comércio
fornecendo aos dois impérios camelos, incensos ou escravos.
Além disso, os governos de ambos os impérios defendiam
suas fronteiras de eventuais invasões incentivando a formação de
pequenos estados clientes semi-beduínos governados por príncipes
árabes.
As contínuas relações entre bizantinos e árabes e, mesmo
entre estes e os judeus explicam o aparecimento, a partir do século VI
de uma mudança espiritual, mudança esta que apontava em direção ao
monoteísmo denunciando uma grave insatisfação com a religião
politeísta tradicional.
O aparecimento de uma terceira fé monoteísta na região não
foi percebida de imediato. Primeiramente porque as querelas
religiosas que sacudiram periodicamente o império bizantino
tornavam fácil acreditar que o islamismo seria apenas uma outra
corrente teológica desviante da ortodoxia imposta pelo clero de
Constantinopla. E talvez, a própria ausência da idéia de pluralismo
religioso tornasse impossível conceber o surgimento de uma nova
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162
religião, uma vez que acreditava-se ser a Bíblia a fonte legítima de
todo o conhecimento espiritual.
A pregação de Maomé e a consequente formação da Ummá
significou a suspensão das lutas tribais e a canalização da
agressividade para fora da península Arábica, mas exatamente para
regiões pertencentes aos impérios persa e bizantino. Mas, estes
estavam por demais ocupados em manter uma guerra um contra o
outro, conflito que se arrastou do ano de 602 até 628, exaurindo as
riquezas e os exércitos de ambos.
Em 629 uma coluna de beduínos, comandada pelo filho
adotivo de Maomé atacou Mu‘ta, fortificação bizantina no mar
Vermelho. Este foi o primeiro passo de um processo que levou os
exércitos árabes a alcançar a Espanha e o Turquestão. Mas, para as
autoridades bizantinas Mu‘ta não passara de uma escaramuça de
fronteira sem uma importância maior. Mas em dez anos desapareceria
o império persa varrido pela força das tropas muçulmanas enquanto
Bizâncio passou a viver em constante estado de alerta devido a
crescente pressão islâmica, que se mostrara tão avassaladora que no
ano de 640 arrebata-lhe sua mais rica província—o Egito.
Durante muito tempo explicou-se a rapidez da conquista
muçulmana pela capacidade dos homens que compunham seus
exércitos de enfrentarem as mais duras provações, uma vez que
estavam habituados ao modo de vida nômade dos beduínos, aliado a
isto a ambição de obter a posse de enormes riquezas. Contudo, uma
análise mais acurada sobre a situação do Oriente bizantino demonstra
que existia uma debilidade intrínseca na capacidade do governo de
Constantinopla em fazer-se obedecer em suas diversas províncias.
Tal situação era, sem dúvida, o resultado das inúmeras
querelas religiosas que durante séculos sacudiram o império, criando
dissensões que na maioria das vezes sob o manto religioso
expressavam na verdade insatisfações de caráter político, aumentadas
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163
pela rigorosa política fiscal estabelecida pelo imperador Heráclio, com
o intuito de obter recursos, pois a guerra contra os persas esvaziara o
tesouro.
Além disso, o fator cultural também era um fator ponderável
nas difíceis relações do império com suas províncias. No caso da Síria
e do Egito, a primeira possuía uma cultura aramaica enquanto a
cultura egípcia era copta. A população de ambas as regiões adotara o
monofisismo. Assim, não havia nenhuma identificação com o governo
bizantino, tanto sob o ponto de vista étnico quanto cultural.
A lealdade destas populações em relação ao Império
Bizantino era bastante fraca e podemos acreditar que não houve a
oposição de uma forte resistência ao avanço muçulmano. Fontes
siríacas informam-nos que a expansão árabe foi considerada como um
castigo divino enviado por Deus para punir o pecado dos imperadores
bizantinos, especialmente Heráclio, cuja feroz política em relação às
comunidades monofisistas e nestorianas havia trazido um enorme
ressentimento contra o domínio imperial.
A própria postura tolerante dos invasores , que não forçaram
a conversão de cristãos e judeus, vistos como al-kitab (povos do
Livro) e por isso participantes da verdade levou a uma rápida
acomodação entre conquistadores e conquistados.
A tolerância dos primeiros califas foi um reflexo da própria
carreira do Profeta, que fundara um império religioso na Arábia,
usando muito mais a diplomacia do que a guerra. Assim, os
comandantes muçulmanos ofereciam condições generosas –proteção e
tolerância— em troca de um tributo fixo, obtendo desta forma a
rendição de importantes cidades, como foi o caso de Damasco e
Alexandria.
A conquista estendeu-se e no século VIII abarcava terras que
se estendia do rio Tejo, em Portugal, ao rio Indus no Paquistão, do
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164
Atlântico ao mar de Aral, na Ásia Central, do sul do Saara aos montes
Pirineus entre a Espanha e a França. As vitórias conseguidas neste
empreendimento legitimaram-se sob a égide da Jihad , ou seja, da luta
contra o infiel. É bem verdade, que este não é o único nem o primeiro
significado desta palavra, que na sua origem queria dizer ―combate na
senda de Deus contra si mesmo a fim de se aperfeiçoar‖.
Uma segunda expansão ocorreu no século XI e não apresentou
um caráter militar, mas foi realizada por comerciantes e missionários
que adentrando da Índia Meridional, do arquipélago das Maldivas, da
ilha de Sumatra, da Malásia, da China Meridional, do arquipélago da
Indonésia, da África Oriental, da Etiópia e do Sudão procuraram
converter os príncipes e soberanos locais. A expansão do islamismo
nestas regiões configurou-se num processo de larga duração temporal.
A empresa militar iniciada logo após a morte do Profeta
conheceu sua maior expansão a oeste com a conquista da Sicília entre
827 e 902. A guerra santa havia chegado ao fim com a ascensão do
califado abássida, que mudando a capital para Bagdá no Iraque
transformou o califado do império mediterrâneo em império asiático.
O processo de expansão colocou os árabes muçulmanos em
contato direto e, por vezes, bastante estreito com povos das mais
diversas religiões. Os de fé monoteísta fizeram jus à tolerância, por
meio de um pacto - dhimma - que, se por um lado garantia-lhes o
direito de continuarem praticando sua própria religião, gozando
mesmo de certo grau de autonomia comunal; por outro os obrigava a
pagar a jyzia, imposto por cabeça.
Desta forma, numerosas minorias cristãs sobreviveram em
números expressivos no Egito, Síria, Líbano e Palestina, embora o
mesmo não tenha ocorrido na Ásia Central, Sul da Arábia e Norte da
África. Contudo, budistas, hindus e animistas, não fizeram jus à
tolerância dos conquistadores.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
165
O islamismo é apresentado no Corão como uma religião que
se define por sua oposição às outras - umma dunal-nas. Que podemos
traduzir como povo ou comunidade distinta do resto da humanidade.
Derivada desta idéia a perspectiva política tornava-se bem clara,
quando os territórios dominados pelo Islã eram denominados Dar al-
Islam, ou seja, Casa do Islã; enquanto as terras sob outra soberania
eram vistas como Dar-al-Harb - Casa da Guerra, que deve ser
conquistado para a charia, a lei islâmica, e isto poderia ser feito seja
pela pregação da palavra, ou se esta se mostrasse inútil, pela força das
armas.
Mas, esta rígida polarização mostrou-se inexeqüível durante o
processo expansionista, obrigando os juristas a criarem outras
categorias. O chamado Dar el Soth ( território da trégua) podia-se
conservar em paz mediante o pagamento de tributos aos muçulmanos.
O reconhecimento de que determinados territórios não poderiam ser
conquistados pela superioridade militar ou numérica dos infiéis ou
mesmo por imperativos econômicos, técnicos e sociais levaram a que
as relações com estes fossem regidas pela daruriyya, ou seja, pelo
estado de necessidade.
Mas, a constituição de uma marcada alteridade islâmica foi
um processo longo. Em relação aos povos politeístas havia desde o
início a consciência bastante forte da diferença, emanada do
ensinamento fundamental do Profeta, Deus é Único, impôs-se. Mas, o
mesmo não ocorria em relação aos dois outros povos de fé monoteísta.
Tais como os fiéis do judaísmo e do cristianismo, o
mulçumano é um homem ―temente a Deus‖ e preocupa-se com o
Juízo Final. Como acima já dissemos judeus e cristãos como povos do
Livro - o Antigo Testamento - não foram obrigados a converterem-se.
Isto aliado ao fato da contínua convivência entre estes e os
muçulmanos poderia levar a uma ―contaminação‖ da fé islâmica.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
166
Para compreendermos melhor esta questão devemos refletir
sobre alguns pontos importantes para entendermos as dificuldades que
se apresentaram, primeiramente ao próprio Profeta e, posteriormente
aos diversos califas no processo de definição de uma teologia
muçulmana própria, livre das idéias oriundas do judaísmo e do
cristianismo.
Como já o dissemos, desde muito cedo as tribos beduínas
entraram em contato com cristãos e judeus, tendo um grande número
destes últimos habitado na península Arábica. Deste modo sabemos
que na região, quando Maomé começou sua pregação, já haviam
tribos convertidas ao cristianismo e ao judaísmo.
Em Hira existia, por volta de 510 um bispado nestoriano,
fazendo surgir no século VI uma comunidade arábico-
nestoriana(‗ibad), que por sua combinação de grupo religioso e
organização tribal, constituiu-se num prenúncio da comunidade
islâmica. Tribos beduínas foram cristianizadas a partir do reino
gassânida, sendo que algumas destas possuíam seus próprios bispados.
Não podemos esquecer que, segundo a tradição, em Meca
acreditava-se que a Caaba havia sido fundada por Abraão e a princípio
dedicada a um único deus, mas a maldade dos homens acabaram por
desvirtuar este objetivo, dedicando-o a numerosos deuses. Deste
modo, podemos afirmar que os elementos que no final do século VI
impulsionaram uma mudança espiritual na península Arábica foram o
cristianismo e o judaísmo.
A oposição às predicações de Maomé em Meca não se
fundamentavam numa rejeição ao monoteísmo, mas por suas idéias
escatológicas e a severa condenação ao politeísmo, especialmente das
divindades locais. A animosidade dirigida ao Profeta era reforçada
pelo ressentimento social e pelo temor que suas prédicas pudessem
prejudicar a lucrativa indústria da peregrinação.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
167
A Hégira significou o primeiro passo no processo de definição
do islamismo. Até sua chegada em Medina, Maomé acreditava que a
revelação que lhe fora feita era a mesma anunciada a judeus e cristãos,
mas a refutação feita pelos primeiros de sua mensagem modificou a
sua concepção de missão religiosa. Embora, continuasse afirmando
que Moisés e Cristo não eram falsos profetas, explicava que eles não
conheciam a verdade plena, ou seus seguidores haviam-na
conspurcado após a morte de ambos. A mudança no costume de rezar
voltando-se para Meca e não mais para Jerusalém foi um reflexo do
distanciamento do Profeta das influências hebraicas.
Mas, a contínua convivência dos muçulmanos com cristãos e
judeus dentro dos territórios conquistados tornava sempre presente a
ameaça de que a doutrina islâmica fosse ―contaminada‖. Tal
convivência foi provocada pelas necessidades da montagem de um
sistema administrativo, tarefa impossível de ser realizada sem a
admissão de cristãos e judeus como funcionários.
Além disso, não podemos esquecer outra contribuição de
vital importância recebida pelos muçulmanos dos ―infiéis‖: foram eles
que lhes apresentaram a cultura da Antiguidade helenística e persa.
Igualmente, estes conhecem por meio dos seguidores de Maomé, a
sofisticada literatura poética nascida no deserto, e se deixam por ela
encantar.
Nas terras do Crescente Fértil dominadas pelos muçulmanos
estabeleceu-se uma estreita cooperação entre estes e os cristãos em
dois campos em que os estudos serviam para o avanço de ambos: os
de serviço profissional e intercâmbio intelectual.
Durante o século dos califas omíadas os costumes beduínos
ainda estavam muito presentes, conferindo uma superioridade social
aos árabes evitando que eles perdessem a sua individualidade no meio
da imensa população de povos conquistados, pois no século VIII
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168
somente uma minoria muçulmana (cerca de 10%) podia ser contada
na população do Irã, Iraque, Síria, Egito, Tunísia e Espanha.
No sul da Espanha dominado pelos árabes que ali
estabeleceram um emirado, a convivência entre muçulmanos e
cristãos levou a inúmeras controvérsias entre eles, embora a leitura
das fontes hagiográficas não deixem dúvidas sobre a cooperação
prestada por uma parte dos prelados cristãos às autoridades
muçulmanas. No século IX o bispo da cidade de Málaga foi acusado
por Samson, abade de um convento cordovês de estabelecer
compromissos com o Islã. As acusações fundamentavam-se no
trabalho que Hostégesis fazia para as autoridades árabes. Conhecedor
da língua dos muçulmanos ele traduzia para o latim as missivas que
eram dirigidas pelo Emir para o rei Carlos, o calvo.
Por outro lado, Hostégesis acusava seu inimigo de procurar
nos seus concílios agradar os libidinosos autorizando o casamento
entre primos irmãos. Tal prática, na realidade, era uma influência do
meio árabe-berbere, onde este tipo de matrimônio era reputado como
o ideal.
A presença árabe na Península Ibérica, de certa maneira isolou
os cristãos que ali residiam do restante da comunidade cristã do resto
da Europa e é inegável a fascinação que a cultura árabe exerceu sobre
eles. Em decorrência disto, o latim foi pouco a pouco sendo
abandonado e, embora em 869 ainda houvesse um bispo na cidade de
Mérida, nenhum de seus paroquianos era capaz de traduzir uma
inscrição latina.
As atas do Concílio de Córdova em 839, que condenam a
heresia denominada ―Acéphales‖ demonstram que a comunidade
moçárabe do Andalus encontrava-se exposta a todo o tipo de
influência da cultura árabe, influências não somente doutrinais, mas
referentes a práticas de casamentos consangüíneos, de interditos
alimentares, da circuncisão, e de inúmeras outras influências orientais.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
169
No século X o número de conversões ao islamismo havia
aumentado não só na Espanha, mas em todas as regiões de dominação
islâmica, tanto na população urbana quanto um considerável número
de habitantes das zonas rurais. Isto pode ter ocorrido porque a linha
entre fiéis e infiéis estava mais nitidamente estabelecida, definindo-se
mais claramente todo um sistema de ritual doutrina e lei próprio dos
seguidores da fé islâmica, claramente diferente daqueles pertencentes
a judeus e cristãos, ou seja, no referido século um seguidor dos
ensinamentos do Profeta tinha mais consciência de si mesmo como
muçulmano em oposição aos fiéis das outras religiões monoteístas.
Este processo – a definição de uma alteridade muçulmana—
foi longo, difícil e por vezes bastante tortuoso, não podendo ser
reduzido apenas à clássica oposição fiéis, muçulmanos versus infiéis,
cristãos e judeus. Na verdade, a expansão muçulmana incorporou
povos, das mais diversas culturas, que ao se converterem à fé de seus
conquistadores, acabaram por criarem suas próprias interpretações da
mensagem do Profeta entrando em conflito com os árabes. Muitas
vezes, estas interpretações eram usadas para exprimir
descontentamentos políticos.
O primeiro século da dominação muçulmana na Península
Ibérica foi marcado pela oposição entre os governantes árabes e os
berberes, estes últimos componentes das fileiras do exército que
desembarcou em 711, efetuando a conquista. Os berberes provinham
do norte da África e eram tribos bastante aguerridas, de cujos hábitos
bastante semelhantes aos das tribos beduínas habitantes da Arábia no
tempo em que Maomé iniciou sua pregação.
Os berberes eram olhados com desprezo pelos árabes e após a
conquista da Espanha, embora fossem em maior número do que estes
não receberam postos de comando e foram assentados em terras
menos produtivas. Assim, em 740 um grande levante berbere sacode o
Magrebe, alastrando-se pela Península Ibérica. Esta revolta foi
alimentada por idéias religiosas do carijismo. Em 768, outro falso
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
170
profeta, apresentando-se como descendente de Maomé levou os
berberes do centro da Península a uma grande revolta de inspiração
xiita, que durou por uma dezena de anos.
A chegada dos almorávidas à Península Ibérica constituiu-se
numa dura provação aos cristãos, num momento em que a tomada de
Toledo pelas tropas de Afonso VI parecia prenunciar a definitiva
vitória destes na guerra de Reconquista. Os recém-chegados eram
berberes e foram chamados pelo rei da taifa de Sevilha, receoso que
seus domínios fossem também tomado pelo exército inimigo.
A seita almorávida - monges soldados - iniciou-se com a
fundação de um ribat no norte africano, local ao mesmo tempo
fortaleza e monastério. O local passou a ser considerado, um lugar de
purificação e de formação do muçulmano exemplar. Seu fundador,
Abdala Bem Yasin, considerado um homem santo e propagador de
uma teologia rigorista do Islã não teve dificuldade em arregimentar
um grande número de seguidores dispostos a dar suas vidas pela causa
islâmica.
A dominação almorávida na Península Ibérica vinculou-a a
um poder extra- peninsular, uma vez que em Marrakesh é que se
encontrava o centro do poder decisório e representou uma nova
berberização do sul da Espanha. Apesar, do inegável impulso
econômico, com a introdução de uma nova moeda, o dinar, a
mentalidade almorávida estava profundamente penetrada pelo ideal de
guerra santa com um rigoroso respeito ao texto corânico, negando-se a
toda e qualquer contemporização com os infiéis.
Esta postura fez com que se estabelecesse uma severa
restrição às manifestações culturais, tendo os juristas um papel de
destaque na implementação de um política de estrito zelo à
interpretação estrita do Corão, o que significou numa restrição a todo
o pensamento especulativo.
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171
As autoridades almorávidas logo ficaram escandalizadas com
a grande tolerância com que eram tratados judeus e cristãos nos reinos
das taifas, tornando cada vez mais difícil a vida destes. Por outro lado,
o islamismo que até então fora praticado no Andalus de maneira
formal e oficial, sob o governo almorávida converteu-se, para a
maioria de seus seguidores espanhóis numa crença interiorizada e
fundamentadora de seu sentimento de alteridade.
De forma análoga, os cristãos espanhóis, agora integrados ao
resto da cristandade européia pela reforma gregoriana tomavam
consciência das diferenças teológicas que os separavam dos invasores
e, por conseguinte do caráter específico de sua comunidade, levando a
uma adesão maior à luta contra aqueles, o que explica as vitórias
seguidas dos exércitos cristãos sobre os muçulmanos.
Contudo, um novo movimento religioso havia surgido no
Norte da África com os almóades, que seguindo o rastro daqueles que
os antecederam, atravessaram o Gibraltar (1146), invadindo a
Espanha, derrubando o poder almorávida. O curioso é que os novos
invasores acusavam os almorávidas de não seguirem fielmente o texto
corânico.
A invasão almóade traduz-se num fortalecimento do processo
de berberização do sul da Península Ibérica, acompanhada de uma
sistemática política persecutória dirigida a cristãos e judeus. Estes
últimos foram duramente perseguidos em Sevilha, Granada e Lucena
enquanto a comunidade mozárabe sofreu um processo de constante
diminuição, acabando por extinguir-se por volta de 1126.
A vitória militar sobre as tropas cristãs na batalha de Alarcos
(1195) embora tenha representado um duro revés para o inimigo
demonstrou, contudo, a fragilidade do poder almóade, uma vez que
jamais conseguiu consolidar sua vitória no território conquistado,
limitando-se a defendê-los. Isto permitiu a contra-ofensiva cristã
materializada na vitória de Las Navas de Tolosa em que tropas dos
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
172
reinos de Navarra, Castela e Aragão impuseram uma derrota ao
exército muçulmano, e iniciando o declínio do poder almóade na
Península Ibérica.
Em 1238 só restava do poder muçulmano na península o reino
nazari de Granada, cujo soberano prestava vassalagem ao rei
castelhano. Mas, a dominação muçulmana na região marcou
profundamente o processo histórico dos reinos peninsulares, uma vez
que estes reinos tiveram suas estruturas políticas, sociais e até mesmo
econômicas pautadas e definidas pelas necessidades impostas pelo
estado de guerra intermitente contra o invasor. Mas, outra
característica diferenciava a Espanha das outras regiões européias – a
sua população cristã era a única que vivia em contato direto com
outras religiões.
Este contato determinou uma visão de mundo bastante
peculiar, onde a tolerância não era entendida como um respeito ao
diferente, mas sim como uma estratégia necessária à sobrevivência.
Mas, também o medo de que a convivência acarretasse uma
contaminação religiosa dos fundamentos de qualquer uma, ou na pior
hipótese, das três religiões monoteístas, promoveu uma severa luta
para manter a diferença entre elas. Deste modo, o primeiro elemento
definidor da alteridade das populações radicadas em solo ibérico foi o
fator religioso.
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
174
Santidade Feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de
Poitiers
Miriam Lourdes Impellizieri Silva111
Uma das questões que mais nos tem interessado, nos últimos
anos, é a relativa ao estudo da santidade cristã, no período comumente
denominado de Antiguidade Tardia, quando, passado o período das
perseguições, que fizera emergir o modelo do santo mártir,
testemunha preferencial do Cristo, em sua morte pela fé, novos
modelos de santidade começam a surgir, reveladores das mudanças
ocorridas na percepção religiosa dos cristãos e das suas novas
necessidades, frente aos problemas relativos ao culto e à devoção
cristãos.
Trabalhos de historiadores como Peter Brown, Andrè Vauchez,
Sofia Boesch Gajano, Evelyn Patlagean, entre outros, têm aclarado
nosso conhecimento sobre a temática, como aberto caminho a novas
discussões e problemáticas, a partir das suas reflexões e conclusões,
na maioria das vezes não definitivas.
A verdade é que o estudo da santidade seja na abordagem
metodológica das suas fontes (para o período acima citado, quase
sempre as vitae, as narrativas de translação e as narrativas dos
milagres em vida e pós-morte), seja na problematização das mesmas,
apresenta-se como um grande campo a ser desbravado pelo
pesquisador, principalmente, no que toca à santidade feminina,
relativamente pouco explorada e dependente dos modelos
determinados para a santidade masculina, ou então, vista somente a
partir do viés dos estudos de gênero.
111
Professora de História Medieval da UERJ; Doutoranda em História Social
na USP.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
175
Dos autores em questão, podemos inferir ser a santidade cristã
um fenômeno nascido no interior do cristianismo, resultante da sua
própria religiosidade e da sua percepção do sagrado112
, que se altera
de acordo com as épocas, a partir das suas necessidades religiosas (daí
os diversos modelos em que os santos são inseridos), majoritariamente
masculino, com funções bem definidas dentro da sociedade cristã,
também de acordo com o tempo: é o morto excepcional, de quem se
espera o papel de intermediação entre as pretensões e problemas
humanos e a divindade inacessível; é aquele que, graças a suas
práticas ascéticas e seu profundo amor pelos outros homens, adquire o
controle e domínio sobre sua própria natureza e um poder sobrenatural
sobre os elementos, que expulsa demônios e reintegra marginalizados,
restabelece a concórdia e a paz sociais, restaura a ordem perturbada
pelo pecado através da sua taumaturgia; e, finalmente, é o
sustentáculo da Igreja e o exemplo para os outros fiéis (VAUCHEZ,
1987: 289-291).
Após esta breve introdução, é hora de lançarmos um olhar sobre
Santa Radegunda Poitiers, tema de nossa presente comunicação, a
partir de duas questões: quem foi Radegunda, de acordo com suas
fontes, e como ela se insere no quadro da santidade do século VI,
com sua tipologia variada, de acordo com seus hagiógrafos.
112
Devemos a Peter Brown (1971) a percepção de que o fenômeno da
santidade, tal como se coloca e se desenvolve no decorrer dos séculos, é
próprio do Cristianismo, forjado a partir da sua própria religiosidade e como
tal deve ser analisado. Aqui, cabe uma observação, de que durante boa parte
do século passado, a idéia de que a santidade cristã era mera continuação do
culto dos deuses antigos, ou melhor, sua substituição dentro de um quadro
mental organizado pela Igreja, em seu processo de cristianização da
população romana e, posteriormente, dos povos germânicos, tal como o
pretendia Saintyves em seu Les saints, sucesseurs des Dieux, de 1907,
praticamente não tinha opositores, a não ser entre historiadores católicos,
como Étienne Delaruelle, Henri Marrou, Jean Leclercq.
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176
Radegunda de Poitiers e suas Fontes
A beata Radegunda, de quem recordamos no início do livro
dos mártires, depois de uma vida de trabalho e de méritos
migrou deste mundo. Tendo recebido a notícia do seu
passamento, fomos até o mosteiro que ela mesma havia
fundado, na cidade de Poitiers. Encontramo-la jazendo no
ataúde; a santa estava esplêndida, a ponto de superar a
beleza dos lírios e das rosas. Ao redor do féretro, em
realidade, estava uma multidão imensa de monjas, em
número de cerca de duzentos que, seguindo suas palavras
levavam uma vida santa, as quais segundo a dignidade do
mundo provinham não apenas de famílias senatoriais, mas
algumas também da própria estirpe real e que levavam uma
vida perfeita segundo esta forma de vida religiosa.
(Gregório de Tours, Liber in Gloria Confessorum, cap.
104)
É com as palavras acima que Gregório de Tours fala de
Radegunda, a quem conheceu de perto, em vida, e de quem participa
das exéquias, tecendo-lhe elogios pessoais e a sua obra. Princesa
turíngia, rainha dos Francos, diaconiza, e por fim, monja. Afinal,
quem era Radegunda?
Radegunda nasceu na Turíngia (cerca de 518-520), de estirpe
nobre, filha e neta de reis, seu pai, o rei Bertário, foi morto pelo tio
Ermenenfredo. Após a derrota dos turíngios para os francos (531), foi
levada para a Gália, como despojo de guerra, juntamente com um
irmão, tendo a sua posse disputada por Teodorico I e Clotário I,
ambos filhos de Clóvis. Clotário sai vencedor da disputa e a leva para
Athies, onde é educada juntamente com os outros jovens do palácio
real. Possivelmente, após a morte da rainha Ingonda (538), Clotário
manifesta o desejo de desposá-la (será a sua 4ª esposa), o que faz com
que tente fugir, sem sucesso. Já casada, mas descontente com os
costumes da corte merovíngia, e principalmente com o casamento
forçado, Radegunda procura refugiar-se na religião (vive imersa em
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
177
orações, jejuns, mortificações, cuidado com os pobres e doentes),
afastando-se cada vez mais da vida mundana, apesar de continuar a
viver no palácio real. Com o assassinato de seu irmão por ordem de
Clotário, ou pelas mãos do próprio Clotário, ela abandona de vez o
marido e se refugia junto ao bispo Medardo, a quem força a consagrá-
la diaconisa. Vai para Tours, em peregrinação ao túmulo de São
Martinho e acaba por se fixar na região do Saix, que o rei lhe havia
dado de presente de núpcias e onde funda um hospital. Mais tarde,
talvez depois da morte de Clotário, ocorrida em 561, dirige-se para
Poitiers, e em propriedade que lhe fora concedida por aquele funda
um mosteiro feminino, chamado inicialmente de Santa Maria e depois
de Santa Cruz. Ali, viverá até sua morte, em 587, que ocorre em "odor
de santidade", após anos de reclusão e de vida ascética pronunciada.
A permanência da memória e o culto a Radegunda, em Poitiers,
mantiveram-se ao longo de toda a Idade Média, chegando até a época
da Revolução Francesa, quando seu mosteiro foi desativado, seus
restos mortais confiscados e sua igreja, em parte, destruída.
Melhor sorte, porém, tiveram as suas fontes escritas,
relativamente numerosas, se pensarmos em termos da região e da
época em que viveu: a Gália Merovíngia, no século VI, e em se
tratando de uma rainha, que desempenhou papel importante na vida
política e religiosa do seu tempo. As fontes formam, pois, um
respeitável corpus documental.
Assim, chegaram até nós três hagiografias medievais: a de
Venâncio Fortunato, poeta, amigo pessoal da santa e bispo de Poitiers,
escrita no final do séc. VI; a da monja Baudonívia, do início do século
VII, sobre quem pairam dúvidas se havia conhecido ou não
Radegunda em vida; e a do bispo de Le Mans, Hildeberto de
Lavardin, do séc. XII, que escreve fundamentado nas Vidas dos dois
autores anteriores. Encontramos igualmente diversas referências a
Radegunda e a seu mosteiro na História dos Francos de Gregório de
Tours (livros III, VI, IX e X), inclusive com a transcrição de cartas
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
178
que teriam sido escritas pela santa. Do mesmo autor, temos a
descrição das suas exéquias, no Liber in Gloria Confessorum (cap.
104), e da chegada da relíquia da santa cruz ao mosteiro de
Radegunda (À Glória dos Mártires, cap. V), além de diversos poemas
escritos por Venâncio Fortunato em suas Poesias, que fazem
referências a fatos e situações de sua vida, e da relação entre ambos.
Seria possível, a partir da leitura e análise destas fontes, traçar
um perfil de santidade para Radegunda, inserindo-a nos modelos
existentes para a sua época? É o que tentaremos fazer, a seguir.
Tipologia da santidade feminina na Antiguidade Tardia e
Radegunda
Como é sabido, o primeiro modelo de santidade que se
desenvolve no Cristianismo é o do mártir, sem grandes distinções
entre homens e mulheres, no que toca ao sofrimento, à coragem
demonstrada diante dos suplícios, à defesa da fé através do destemor
diante da morte, da intrepidez diante dos juízes e das autoridades
romanas. Venerados pelo exemplo de fé que haviam dado, e que os
habilitava a se tornarem intermediários bem-sucedidos entre o plano
humano e o divino, bem rapidamente, o culto a suas memórias e as
suas relíquias ultrapassam a região de origem, contribuindo para a
expansão do Cristianismo no século IV, em território romano113
.
113
Como exemplo, citamos o culto a São Estevão, difundido por todo o
Mediterrâneo no século V, segundo um caso narrado por Santo Agostinho,
em seu sermão 322, da Terça-feira depois da Páscoa, de 425 ou 426. Um
homem chamado Paulo, de Cesaréia da Capadócia, em busca da cura de seus
males, juntamente com uma irmã, havia peregrinado por vários lugares de
culto a São Estevão, do Oriente ao Ocidente, passando pela Itália, até chegar
à África do Norte. Depois de um sonho, acabou dirigindo-se para Hipona,
onde na basílica do santo, junto ao bispo Agostinho, foi milagrosamente
curado. Disponível em:
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
179
Contudo, também bem rapidamente, outros modelos de
santidade começam a aparecer, mais próximos no tempo e no espaço,
dos cristãos do séc. IV. Seguindo o exemplo de Santo Antão, cuja
hagiografia, escrita por Santo Atanásio, por volta de 354, faz sucesso
retumbante por todo o Império, desenvolve-se o culto aos ascetas e
monges do Oriente, que logo encontra a sua contrapartida no culto aos
monges e bispos evangelizadores do Ocidente, modelo calcado na
figura de S. Martinho de Tours, e da sua vida, escrita por Sulpício
Severo, por volta de 397.
E quanto às mulheres? O modelo que se lhes impõe tem como
exemplo as duas Macrinas, a Velha e a Jovem. Macrina, a Velha (séc.
III), tornou-se exemplo da viúva cristã, honesta e caridosa; enquanto
sua neta, Macrina a Jovem (séc. IV), na pena de seu irmão Gregório
de Nissa, que fixa sua memória, torna-se modelo do ideal da virgem
consagrada, daquela que serve de inspiração para outras jovens que,
desistindo do século e do casamento, seguem-na em sua vida de
ascetismo e privações rigorosas, na reclusão, longe dos olhares do
mundo.
Contudo, outro modelo surge, o da rainha santa114
. Seu exemplo
fundador é a imperatriz Helena, mãe de Constantino, rígida defensora
da ortodoxia niceniana e organizadora do culto às relíquias de Cristo,
como a da verdadeira Cruz, que descobre e que traz de suas viagens
de Jerusalém para o Ocidente.
La emperatriz Elena, madre de Constantino, implicada en
primera persona en la política religiosa del hijo, revistió
como ejemplo una importante función simbolica en los
territorios del poder imperial y de sacralización de los
lugares. Peregrina en los territorios en los que el precedente
http://www.augustinus.it/italiano/discorsi/index2.htm. Acesso em: 13 de
março de 2009. 114
Apesar de surgido no século IV, este modelo só terá seu pleno
desenvolvimento nos séculos medievais.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
180
nomos pagano se sustituía por el nomos del soberano
cristiano, Elena encontrabava la cruz de Cristo, escondida
en aquellos lugares del demonío, y a éstos se presentaba
creando un paralelismo entre su papel de redentora de
emperadores y el de Virgen Maria redentora de la
humanidad [...] si las emperatrices son a menudo retratadas
con características y virtudes tipicamente marianas, la
misma Virgen es poética y litúrgicamente llamada regina e
imperatrix, en los siglos IV e V, cuando se convierte
incluso en exemplum para la tipologia feminina de la virgo,
vidua, mater."(CABIBBO, s/d: 40).
Portanto, são três os papéis da mulher, não apenas na sociedade,
mas também na santidade. Virgem, viúva, mãe. Papéis que se
entrecruzam, no caso da santidade régia feminina, a qual se estabelece
ao longo da história, em torno de três variáveis, segundo novamente
Sara Cabibbo:
1ª) Fundada na distância física e na obediência com que se
submete às estratégias matrimoniais da família de origem e às leis da
corte;
2ª) Apoiada, ao mesmo tempo, no sentimento de amor e de
amor recíproco entre a soberana e seu esposo, e na missão civilizadora
e evangelizadora que desenvolve nas relações com a corte;
3ª) Exaltatória das virtudes de adaptabilidade da mulher diante
das diferentes situações de sua vida, como filha dócil, excelente
esposa e amorosa mãe; exemplo de rigor, monacal, de obediência a
regras conventuais, de penitência corporal e espiritual, depois de seu
ingresso no mosteiro após a morte do marido soberano. (Ibid.., p. 42).
O caso de Radegunda estaria, portanto, dentro daquela primeira
variável, como veremos a seguir. Levada para longe do seu país de
origem, educada entre estrangeiros, obrigada ao casamento, fugitiva
do seu marido, reclusa em Poitiers.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
181
Voltando, porém, à questão das fontes para o estudo de nossa
santa, dos quatro autores medievais que escreveram sobre ela, seus
contemporâneos Venâncio Fortunato e Gregório de Tours, da monja
do Mosteiro de Santa Cruz, Baudonívia, e Hildeberto de Lavardin,
analisaremos, aqui, apenas as obras dos dois primeiros que lhe são
relativas115
.
Comecemos por Gregório de Tours, o único que não redigiu
nenhuma hagiografia da santa, mas cujas informações sobre sua vida,
ao longo de sua História dos Francos consideramos preciosas para
nós. Para o autor, Radegunda é a santa rainha, cujo casamento com
Clotário serviu para legitimar a conquista da Turíngia efetuada pelos
francos, já que ela foi levada para a Gália, como prisioneira após a
derrota de seu povo. Casamento que serviu para estabelecer a paz,
depois de décadas de guerras entre francos e turíngios, confirmando,
assim, a inserção de Radegunda na primeira variável que citamos mais
atrás.
Ao mesmo tempo, Gregório a reverencia como cristã e, pela
sua religiosidade, a considera uma "nova Helena".
Como Helena, que dois séculos antes, descobrira a Cruz de
Cristo, em sua peregrinação ao Oriente, Radegunda, utilizando-se de
suas ligações com o imperador de Constantinopla (um primo seu,
Hamalafredo, havia fugido do ataque dos francos e se refugiara junto
à corte do imperador bizantino, passando a viver ali), pede que ele lhe
envie algumas relíquias sagradas, das quais o Ocidente carecia, e entre
estas, um pedaço do "lenho santo", o que engrandece o mosteiro de
Poitiers.
115
Esta comunicação é apenas a primeira onde estudaremos a figura de Santa
Radegunda. Nos trabalhos a seguir, usaremos suas outras fontes,
principalmente a escrita pela monja Baudonívia.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
182
Da cruz e das suas maravilhas. Comparada a Helena, pelas
relíquias e méritos, a rainha Radegunda obteve uma porção
da verdadeira cruz e a colocou devotamente com outras
relíquias no mosteiro que havia fundado em Poitiers [...] (À
Glória dos Mártires, V).
Nossa Radegunda é também, uma "confessora", termo usado
preferencialmente para os homens, já que Gregório não hesita em
colocá-la entre os santos com tal atribuição, em sua obra, Livro à
glória dos confessores, dedicando-lhe largo capítulo. No texto ela é
chamada de "beata rainha", "santa rainha", já para as monjas é a
"mãe santa", enquanto os notáveis da cidade que pedem ao bispo de
Tours que presida as cerimônias de consagração do túmulo,
denominam seus despojos de "carne santa". E isto não acontece por
acaso, pois
quando estávamos salmodiando e comecávamos a
transportar o corpo santo, subitamente os possuídos pelo
demônio a proclamaram e a glorificaram santa de Deus,
confessando serem torturados por ela (Ibid. ibidem),
confirmando a continuação do poder de seu corpo de fazer milagres
depois da morte, o que caracteriza a sua virtù.
Quanto a Venâncio Fortunato, sua ligação com Radegunda foi
sempre muito forte. Aliás é a presença de Radegunda em Poitiers e
graças a suas admoestações que Fortunato, italiano de nascimento, em
passagem pela Gália, em peregrinação a Tours, para agradecer a São
Martinho pela cura de uma doença nos olhos, resolve estebelecer-se
definitivamente naquela cidade, de onde, segundo algumas fontes
fidedignas, tornou-se bispo após a morte da santa. A relação pessoal
com Radegunda é bem evidenciada em suas Poesias, assim como o
afeto e a veneração que lhe dedicava:
Vós que sois minha mãe por vossa dignidade
e minha irmã pelo privilégio de um puro amor,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
183
a quem eu rendo homenagem, nela fazendo concorrer meu
coração,
minha fé e minha piedade,
que eu amo com uma afeição celeste, totalmente espiritual,
e sem a criminosa cumplicidade da carne e dos sentidos
(Poesias, XI,6)116
No Prólogo de sua "Vida de Radegunda", esquecendo-se dos
lugares-comuns apresentados por outros hagiógrafos e por ele mesmo
em outras hagiografias que escreve, Fortunato apresenta Radegunda
de forma nova, a da mulher que, mesmo de frágil complexão, com a
ajuda divina, pode chegar a rivalizar com os homens, em pé de
igualdade, na luta para alcançar a santidade (PEJENAUTE RUBIO,
2005: 173).
I 1. A magnanimidade do nosso Redentor é tão grande por
realizar freqüentemente no sexo feminino esplêndidas
vitórias e por tornar as próprias mulheres, mais frágeis de
corpo, ilustres pela capacidade de uma alma forte. Cristo
torna vigorosas pela fé aquelas que têm uma inata
delicadeza, assim como aquelas que parecem frágeis,
apesar de serem decoradas pelos méritos, levam ao cume a
fama do seu Criador, de quem são rezes eficientes,
conservando em vasos de argila os tesouros escondidos do
céu: nos seus corações habita o mesmo Cristo Rei com as
suas riquezas. (Vida de Radegunda, Prólogo).
O tema da narrativa que Fortunato apresentará a seguir está
centrado na idéia mulier/femina fortis/virilis, já encontrada e definida
nos Padres dos primeiros séculos.
A idéia de que a mulher constitui um sexo inferior é voz
comum em toda a literatura antiga, tanto clássica como
116
"Mater honore mihi, soror autem dulcis amore/ Quam pietate, fide,
pectore, corde colo:/Cœlesti affectu, non crimine corporis ullo, /Non caro,
sed hoc quod spiritus optat, amo."
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
184
cristã. Assim, se a mulher quiser, no terreno da santidade,
chegar a ser coroada, terá que sofrer o martírio ou levar a
cabo uma série de atos de autêntico heroísmo (vida
ascética, renúncia ao mundo, sacrifícios e mortificações em
alto grau), o que lhe valerá o qualificativo de "mulher
forte/mulher viril". (PEJENAUTE RUBIO, op. cit., p. 176).
Daí se entender, o porquê de Fortunato enfatizar, não só no
processo de conversão (passagem da vida laica para a religiosa), como
depois em sua vida no mosteiro, de forma pormenorizada, os
sacrifícios e penitências a que se impunha, principalmente no período
da Quaresma, conforme se pode ler nos capítulos XXII, XXV, XXVI,
o que faria dela um modelo de santidade ascético-monástico, próprio
dos homens, indo mesmo além deles, e que difere radicalmente dos
papéis representados pelas outras mulheres santas conhecidas, até
então117
.
Como exemplo do rigor com que tratava seu corpo, a narrativa
da penitência a que se impôs em uma Quaresma:
[...] Mas, aquela que era a torturadora de si mesma, pensava
em algo ainda mais grave. Durante uma das quaresmas,
além de um severo jejum e do tormento de uma sede
ardente, além do risco do cilício que com as ásperas cerdas
machucava seus membros sensíveis, manda que lhe tragam
uma bacia de bronze cheia de carvões em brasa. Tendo
117
De forma a corroborar questão, recordemos as palavras de Andrè
Vauchez, a respeito da formação do ideal do "homem de Deus", do vir Dei,
famoso porque "recusa os valores dominantes da sua época (poder, riqueza,
dinheiro, vida citadina), para se refugiar na solidão e levar uma vida
totalmente religiosa, isto é, consagrada à penitência e à mortificação. [...]
apesar de todos os esforços destinados a dissimular os seus carismas, essas
personagens rapidamente se tornaram famosas devido às excepcionais
privações a que se sujeitavam. (...) Violando os limites da condição humana
em matéria de nutrição e de sono [...] apresentavam-se aos olhos dos
contemporâneos como seres extraordinários." (VAUCHEZ, 1989: 213).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
185
todas as outras ido embora, com o coração palpitante, o
ânimo armado contra o sofrimento, pelo fato de não ser
mais o tempo das perseguições, meditava como tornar-se
mártir por si mesma [...] delibera de queimar o corpo;
assim, coloca sobre o bronze incandescente os membros
que queimam estridentes, a pele se consome e onde encosta
o calor se forma uma profunda cavidade... (Vida de
Radegunda, XXVI, 62-63).
O desejo de martírio já estaria esboçado na infância. A vitória
dos francos sobre os turíngios118
e a condução da pequena Radegunda,
como prisioneira, ao reino dos primeiros, faz com que seja comparada
a uma "filha de Israel", passando a viver no exílio (a corte franca, de
onde tenta se subtrair), a partir daí:
[...] a menina, entre os outros trabalhos próprios a seu sexo,
foi erudita nas letras; falando freqüentemente com os
rapazes, mostrava-se desejosa de tornar-se mártir, se as
condições da época o tivessem permitido (Ibid., II, 4)
Em outra passagem, Fortunato não hesita em chamá-la, além
de mártir, também de "confessora", o que o aproxima da visão de
Gregório de Tours, acerca da santidade de Radegunda:
Quanto afluxo de povo houve no dia em que a santa decidiu
encerrar-se no mosteiro, tanto que se amontoaram sobre
tetos, subindo neles, os que os caminhos não puderam
118
Segundo Gregório de Tours, a ferocidade da guerra de conquista da
Turíngia, levada a cabo pelos francos, em 531, levou à imensa mortandade
entre os turíngios, "todo o leito do rio ficou repleto de cadáveres e os francos
passavam por cima deles como sobre uma ponte para ir de uma margem à
outra. Conseguida, assim, a vitória, os francos recuperaram a região e a
colocaram sobre seu poder" (História dos Francos, III, 7). Já Venâncio
Fortunato, em De excidio Thruringiae, associa o massacre da Turíngia àquele
de Tróia: "Nom jam sola suas lamentent Troja ruinas: Pertulit et caedes
terra Thoringa pares".
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
186
conter? Que coisa além de jejum, de submissão, de
humildade, de caridade, de fadiga e de mortificação
fervorosamente a santíssima fez? Se alguém examinasse
todas estas coisas, a proclamaria tanto confessora como
mártir (grifo nosso) (Ibid., XXI, 50).
Mas, como entender a santidade sem a realização do milagre,
prova irrefutável da ligação estreita entre a santa e Deus, que a atende
em todos os pedidos?
Dos 39 capítulos pelos quais se estende a narrativa da vida de
Radegunda, 14 são dedicados a milagres. No XI, há liberação de
condenados com a quebra das correntes que os prendiam; no XX,
relata-se a cura de doentes não diretamente, mas através de objetos
que haviam tido algum contato com ela (folhas sobre as quais fazia o
sinal da cruz, restos de velas que havia usado durante a noite, frutas e
doces que enviava aos doentes); no XXVII é a cura de uma mulher da
cegueira; no XXVIII, livra duas mulheres dominadas pelo demônio;
no XXIX, devolve a saúde a uma monja doente havia seis meses; no
XXX, são recordados episódios relativos a vitória sobre os demônios -
é o demônio que cai por terra diante das suas palavras, livrando uma
mulher, o rato que morre ao morder um novelo que havia sido fiado
pela santa; no XXXI, salva um seu dependente de um naufrágio; no
XXXII, liberta da febre uma jovem através de uma vela acesa; no
XXXIII, realiza milagres através da oração - caso do pé de loureiro
que revive, da mulher que é libertada do demônio, que sai pela sua
orelha; no XXXIV, temos dois milagres, o da monja que recupera a
visão, e do neonato que é ressuscitado; no XXXV, é a monja curada
de hidropisia; no XXXVI, fica em êxtase durante a oração; no
XXXVII, ressuscita uma irmã; no XXXVIII, realiza milagres perto da
morte, como o da libertação de prisioneiros, da cura de um alto
funcionário que sufocava, a quem indica, em sonho, o lugar em que se
encontravam os restos de São Martinho, para que ali fosse construído
um templo digno do santo.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
187
Assim, os milagres promovidos por Radegunda são
direcionados a todos os necessitados, homens (serviçais, prisioneiros,
altos funcionários), mulheres (laicas ou religiosas), crianças.
Radegunda é taumaturga e profeta, encaixando-se, no relato de
Venâncio Fortunato, no quadro das funções dos santos, estabelecido
por Andrè Vauchez e que vimos no início deste trabalho.
Fortunato omite, de caso pensado, a relação de Radegunda com
o mundo depois da sua entrada no mosteiro, o que as cartas editadas
por Gregório de Tours e a hagiografia de Baudonívia, centrada no
modelo da rainha santa, demonstram ter sido intensa. A verdade é que,
mesmo no interior do mosteiro, ela manteve-se em destaque, estando
diretamente interessada na política da época e nos conflitos entre os
filhos de Clotário, seus ex-enteados, a quem busca pacificar. Contudo,
o posicionamento do autor não deve nos surpreender, já que um dos
elementos da santidade ascética era justamente o do afastamento do
mundo e dos seus problemas, de forma a se poder vivenciar, de forma
mais pura, a religião.
Para finalizar, fiquemos com as palavras de Fortunato na
conclusão da hagiografia, onde ele pede que a grandeza de Radegunda
seja avaliada não pelo número de milagres realizados, mas pela
"piedade, moderação, bondade, doçura, humildade, honestidade, fé,
fervor, com que ela viveu, coisas que ainda depois da morte a
acompanham nos milagres da passagem à beatitude eterna" (Ibid.,
XXXIX).
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Disponível em:
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____________________. Histoire des Francs. Disponível em:
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le première fois par M. Charles Nisard. Paris: Librairie de Firmin
Didot et C., 1887. Disponível em:
http://remacle.org/bloodwolf/eglise/fortunat/poesies1.htm. Acesso em:
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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
190
O Culto Imperial como “Transcrito Público”
Norma Musco Mendes119
A institucionalização do sistema imperial romano de acordo
com a documentação textual de natureza diversa, com as evidências
epigráficas e arqueológicas teve início no final do período
republicano, sob a forma de uma infra-estrutura frágil, marcada pelos
caóticos expedientes administrativos locais empreendidos pelos
magistrados que por delegação assumiam a soberania (maiestas) do
povo romano e tiveram o controle temporário da res publica. Somente
pode ser acelerada e consolidada pelos Imperadores, durante o século
I d.C.
Partimos do pressuposto que a institucionalização do sistema
imperial não pode ser vista meramente como obra do Imperador
Otávio Augusto, mas fruto das amplas transformações causadas pelo
impacto da conquista (imposição de novas formas de taxação, de nova
classe política, de novas práticas sócio-políticas, de nova orientação
jurídica, novas formas de organização do espaço) nas sociedades
provinciais. Enfim, foi um processo que acompanhou a
provincialização da cultura romana e, consequentemente, a formação
da cultura provincial.
Ser romanizado significava introduzir-se num sistema de
relações muito mais amplas, que colocava as cidades no âmbito de
relações comerciais e políticas mais complexas e de caráter
internacional (ROWLANDS, 1987: 04-09). Essa possibilidade era
extremamente atraente para as cidades com potencial econômico a ser
explorado, ou mesmo para grupos que viam, no contato com Roma, a
possibilidade de implementarem suas condições de vida através da
manutenção e afirmação do seu status perante a comunidade local.
119
Prof.ª Dr.ª da área de História Antiga, da UFRJ. Membro do
LHIA/PPGHC/UFRJ.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
191
A extensão do poder imperial nas províncias representou
desafios e oportunidades para aqueles que se encontravam localizados
nas novas e amplas interfaces entre o Império e a comunidade
(WOOLF, 1995: 12). O principal mediador eram os membros das
elites locais sejam aristocratas, chefes tribais, reis clientes, aqueles
que viviam próximos dos colonos e serviam como soldados romanos.
Portanto, a institucionalização do sistema imperial coincide
com os primeiros vestígios de documentação de cultura material e de
inscrições epigráficas, datados do século I d.C. O crescimento destes
testemunhos denota mudanças socioeconômicas, políticas e culturais
nas províncias ocidentais. Talvez o principal vetor destas mudanças
tenha sido a civitas que passam a funcionar como centros difusores do
domínio romano e signos da concepção cosmológica romana.
Posto isto, o estudo da institucionalização do sistema de
domínio imperial romano deve considerar os aspectos formais
(criação dos governos provinciais, centralização imperial, nova
organização militar, organização municipal, estabelecimento de um
novo sistema de imposto), assim como, os informais (apropriação de
práticas sociais próprias da vida urbana, relações de patronato,
patrimonialismo, nova sensibilidade para a importância das
representações do imperador e da família imperial e novas formas de
sentimento religioso, dentre os o culto imperial).
O objetivo desta intervenção não é uma análise da religião
romana. No entanto, parece-me importante ressaltar que no âmbito do
Império Romano é preciso fazer uma distinção entre religião
tradicional da cidade de Roma, e demais religiões, sejam aquelas
ligadas às famílias, distintas corporações de ofícios, ou mesmo, fora
de Roma, às distintas cidades anexadas.
Talvez, o mais certo seria falarmos em ―religiões romanas‖.
No entanto, a religião pública foi estruturada em torno dos rituais que
eram considerados imprescindíveis para a proteção e prosperidade das
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
192
cidades e do Império, de tal forma que podemos falar num modelo de
religião normativa, plenamente de acordo com as elites e que
fundamentava a identidade cívica local e imperial (RIVES, 2000:
262).
Aproximar-nos-emos, assim, do conceito criado por Fustel de
Coulange de religião cívica que abrange apenas os officia publica: os
cultos que apareciam nos calendários, para os quais o Estado provia
sacerdotes e fundos e eram realizados como cerimônias públicas,
assistidas por todos os cidadãos da cidade.
G. Wooff (2009: 22) relativiza a aplicação deste conceito não
somente porque enfocam a religião a partir do estudo do poder da elite
cívica, mas também porque surge no universo intelectual do
nacionalismo. Desta forma, o conceito exclui os cultos rurais,
domésticos e outras formas de culto politeísta como, por exemplo,
Isis, Dionísio, Eleusis que tiveram grande importância para no mundo
Mediterrâneo e, mesmo, para os imperadores. Considerando-se apenas
as religiões politeístas, o conceito não analisa o pluralismo religioso e
a diferenciação de grupos religiosos existentes no Mediterrâneo.
O estabelecimento do Principado representou um momento de
reorganização política, espacial e temporal, durante o qual foi
acelerado os processos de Romanização, entendidos como as
transformações multifacetadas e bidirecional que tornaram possível o
domínio romano nas regiões banhadas pelo Mar Mediterrâneo e do
litoral do Oceano Atlântico.
Neste contexto, a religião foi identificada com o poder
político não somente pelo fato de Otávio ter recebido o título de
Augusto, mas também, por ter assumido a posição de pontifex
maximus. Assim, o imperador se tornava o chefe da religião romana e,
como tal, o responsável pela manutenção da pax deorum.
Naturalmente, diante da sua própria auctoritas perante o mundo
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
193
romano e por ser o filho do divus, incorpora uma posição semi-divina,
passando a ser cultuado em vida.
O culto imperial teve origem nos reinos helenísticos quando
as cidades gregas pela primeira vez tiveram que lidar com governantes
que eram mais gregos do que estrangeiros, mas não faziam parte da
cidade–estado. Roma substituiu os reis helenísticos nas cidades gregas
e as cidades começaram a criar novos cultos. Algumas vezes era em
relação ao Senado e aos lideres militares, porém era mais freqüente à
deusa Roma, a personificação da cidade.
Com o estabelecimento do Principado o Imperador se tornou o
foco destes cultos e sob Augusto se espalhou para a parte Ocidental.
O culto imperial não pode ser considerado uma forma de
religião nos moldes do pensamento monoteísta, pois não havia
nenhuma teologia explicita ou doutrina determinada a qual se
esperava a adesão das pessoas. Ao contrário, o culto imperial era
centralizado no ritual. Seguia a idéia de que as práticas básicas do
sacrifício e das preces articulavam as relações de poder entre os
homens e os deuses e assim também serviam para articular as relações
entre o imperador e seus súditos. Era uma forma de se entender e
conceber o mundo.
Era caracterizado pela inexistência de homogeneidade dos
meios empregados (rituais, poesia, iconografia, dedicatórias), assim
como, dos tipos de associação dos imperadores às divindades
específicas.
Apesar de os imperadores serem representados e adorados
como homem e deus, dualidade que caracterizou as tensões políticas
ao longo do Principado, o culto imperial tinha um significado
diferente daquele do culto aos deuses.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
194
Os deuses também possuíam numen, mas as oferendas não
eram feitas ao numen dos deuses e sim aos próprios deuses.
Diferentemente, no culto imperial às oferendas eram em honra ao
numen, quer dizer, ao Gênio do Imperador, o qual personificava todas
as suas virtudes inatas. O culto ao Gênio era uma modalidade de culto
tradicional, o qual podia estar ligado às pessoas (Paterfamilia), às
divindades, aos lugares (Roma) e ao Gênio do povo romano.
Ressaltamos que os imperadores romanos somente se
transformavam em deuses após a sua morte através da cerimônia da
apoteose e do reconhecimento senatorial consecratio. Caso contrário,
se os feitos de imperador não fossem reconhecimentos pelo Senado
(damnatio memoriae) sua memória deveria ser proscrita.
O culto imperial tinha como característica principal criar
vínculo entre as diversas localidades do Império e Roma, bem como a
lealdade ao Imperador vigente. Era realizado em ocasiões especiais,
como por exemplo: o aniversário do imperador, para celebrar uma
importante vitória.
Se seguirmos a linha de raciocínio do conceito de ―religião
cívica‖, acima mencionado, o culto imperial estaria parcialmente
excluído porque interagiu com a religiosidade local, assumindo
diferentes modalidades de culto.
No caso da Península Ibérica há vestígios de moedas,
inscrições, estátuas em louvar da família imperial de altares e
inscrições, datados desde fins do século I a.C., em honra a Otávio
Augusto e a membros da família imperial: a Caio ou Lúcio César e a
Agripa Póstumo, na cidade de Braga, por exemplo (ALARCÃO,
1988: 178).
A construção de templos e a organização do culto a Augusto
se expandiram para a capital da Lusitânia, para os municípios e até
para os oppida, a partir do reinado de Tibério. Desenvolvia-se, assim,
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
195
o culto dinástico para os herdeiros de Augusto (ENCARNAÇÃO,
2007: 356)
A devoção ao imperador poderia ser expressa por indivíduos
pela construção de templos ou em altares dedicados a Iuppiter
Optimus Maximus, nos locais em que o culto municipal não estava
organizado.
O culto a Júpiter, por sua vez, alcançou as mais diversas
camadas sociais. Por ser o principal deus do Panteão romano
angariava diversas funções, tornando-se de fácil associação com
diversos deuses locais, o que facilitou sua divulgação e adaptação
entre as diversas classes sociais locais. Desta forma encontramos
vestígios deste culto mesmo em áreas pouco romanizadas. Diante
dessa capacidade de diálogo com a cultura nativa, que marcou a
tipologia de domínio do sistema imperial romano, foi também, um
importante difusor da cultura romana.
Podemos, também, incluir os miliários como suportes para se
registrar o culto aos imperadores. São monumentos epigráficos de
formato semi-cilíndrico com conteúdo textual específico:
identificação em dativo do imperador em cujo reinado a estrada foi
construída, designação dos seus títulos e indicação do número de
milhas referente á distância entre o local da sua colocação e a cidade
de origem da estrada.
Encarnação, (1984: 750; 1996: 39-43; 2010: 385-394) ressalta
que os miliários são importantes documentos históricos, revestidos de
caráter propagandístico, pois não podem ser considerados
simplesmente como um mero indicador de distâncias. Se a sua função
fosse apenas esta não se teria perdido tanto tempo para gravar os
títulos imperiais.
Existem testemunhos seguros do culto imperial em diversos
municípios representado por inscrições que mencionam os flamines,
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196
flaminicae, augustales ou seviri augustales, sacerdotes ou sacerdotisas
encarregados da celebração do culto.
Para honrar oficialmente o gênio imperial geralmente
associado à deusa Roma, existiam os flâmines, sacerdotes eleitos
anualmente dentre os notáveis dos municípios e das colônias.
No Ocidente, se desenvolveu o flaminato provincial. Os
municípios elegiam um sacerdote (flâmine municipal) que num
santuário comum, geralmente na capital da província, celebrava o
culto ao Imperador. Desnecessários dizer a importância de tais títulos
nas relações de poder nos municípios e na província.
Os seviri Augustales eram eleitos pelos membros das collegia
existentes nos municípios da Itália ou das províncias. Eram libertos
imperiais ou libertos de ex-amos particulares que tinham contraído
compromissos especiais com os imperadores. Tratava-se de uma
posição importante nos municípios reservada para aqueles que em
virtude de sua origem não podiam ser eleitos nem magistrados e nem
pertencer á ordem dos decuriões. Eram libertos ligados às atividades
mercantis que através da realização do culto imperial demonstravam a
sua coesão e zelo pelos atos públicos, pelos espetáculos e sacrifícios.
A celebração do culto imperial se transformava num ato ritual de
demonstração de riqueza, prestígio e poder local. (GAGÈ, 1964: 140).
Ademais, o cerimonial do culto incluía a distribuição de
presentes, alimentos e vinho, algo que pode ser interpretado como
uma tentativa de se buscar a unanimidade de participação das
diferentes classes sociais das cidades. O seu cerimonial era, assim, um
fator de integração social. Portanto, os cargos religiosos no nível
provincial além de demonstrar a fidelidade a Roma atuava como um
fator de desigualdade e mobilidade social, na medida em que marcava
identidades no nível local e em relação ao centro hegemônico.
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197
Logo, a sua celebração congregava os distintos grupos sociais
existentes na comunidade.
Diante dos limites desta intervenção apresento abaixo algumas
epígrafes provenientes da Lusitânia, as quais comprovam as
afirmações que acabamos de fazer. Limitar-me-ei a destacar destas
epígrafes os aspectos relacionados com os objetivos desta
participação, com base nas análises realizadas pelo epigrafista já
bastante conhecido entre nós, Prof. Dr. José d´Encarnação.
1) Inscrição Honorífica
Ach: Alcácer do Sal
Par: Museu nacional de arqueologia e etnologia. Lisboa
Data: ano 5 a 4 a. C com base nas qualificações honoríficas atribuídas
a Augusto
Descrição: bloco paralelepipédico em granito. Dimensão 44,5 X 90 X
31
Inscrição
IMP • CAESARI • DIVI • F • AVGVSTO
PONTIFICI • MAXVMO • COS • XII
TRIB • POTESTATE • XVIIII
VICANVS • BOVTI • F
SACRVM
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198
Transcrição
Consagrado ao imperador César Augusto, filho do divino,
pontífice máximo, cônsul pela 12ª vez, no seu 18° poder tribunício.
Vicano, filho de Búcio (IRPC 184)
Testemunho do culto ao Imperador Augusto por um indígena
romanizado que se identifica à maneira indígena, através do seu
cognome e do seu pai. Vicano acredita-se que deriva de vicus (aldeia)
e Boutius (Búcio) é um nome celta.
2) Pedestal dedicado a Marte Augusto
Ach: Sines
Par: Museu Arqueológico de Sines
Data: Segunda metade do século II d.C
Descrição: bloco de pedra possivelmente colocado no fórum da
cidadede Sines. Posteriormente, foi utilizado como peso de lagar.
Dimensão: 96,5 x 54,5 x 41,5 cm
Inscrição em texto corrido:
SIGNUM MARTI AUGUSTO.
CICERIUS IUVENALIS
AUGUSTALIS EX TESTAMENTO
PONI IUSSIT. MASCLIONUS (?)
SIVE RAICIRRI […]PONENDUM
(?) CURAVIT.
Transcrição:
O augustal Cicério Juvenal mandou colocar por testamento.
Mascliono –
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199
também chamado Raicirri… – tratou de executar a cláusula
testamentária.
Era habitual entre os augustales oferecerem estátuas às
divindades de sua devoção. Entretanto, no caso acima antes de morrer,
Cicério Juvenal determina, por testamento, que os beneficiários da sua
herança mandassem fazer, em seu nome, uma estátua ao deus Marte
na sua qualidade de Augusto. Podemos interpretar como um reflexo
da devoção do dedicante. No entanto, fica também evidenciada a sua
intenção de ficar publicamente perpetuada a sua memória, como uma
demonstração de prestígio político e social.
Fonte: (ENCARNAÇÃO, 2008)
3) Pedestal
Ach: Faro, largo da Sé. Par:
Museu de Faro
Data: Segunda metade do século II d.c
Descrição: paralelepípedo de calcário, com
pátina amarela. Dimensão 82 X 54 X 53
Inscrição:
M(arco) CORNELIO/ Q(uinti) F(ílio)
GAL( eria tribu) PERSAE / FLAMINI /
PROVINCIAE LYSITANI(ae) [sic]
CIVITAS OSSONOB(ensis) /
PATRONO
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
200
Transcrição:
A Marco Cornélio Persa, filho de Quinto, da tribo Galéria,
flâmine da província da Lusitânia – a cidade de Ossonoba ao
patrono. (IRPC: 7).
Inscrição dedicada ao patrono da civitas ossonobensis, pelo
cidadão romano inscrito na tribo Galeria. M. Cornélio Persa era um
flâmine do culto imperial. Devido a menção à tribo a que pertence e
ao cognome Persa, trata-se de um indígena que recebeu a cidadania
romana, pois esta era uma condição sine qua non para ser flâmine.
Interessante ressaltar que esta epígrafe foi encontra no local
onde muito possivelmente se situaria o fórum da cidade de Ossonoba
(Faro).
4 ) Dedicatórias a Caio
Boco
4.1. Ach: Alcacer do Sal
Par: Murete da Quinta do
Solar da Sempre Noiva
(Évora)
Data: século I d. C.
Descrição: Bloco
paralelepipédico de
mármore azul. Dimensão
29 X 49 X?
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201
Inscrição:
[L(ucio)] C[ORN]ELIO C(aii) [F(ilio)] / BOCCHO / [FL]AM(ini)
PRO[V]IN C(iae) TR(ibuno) MIL(itum) / [CO]LONIA
SCALLABITANA / [OB E(ius)] MERITA IN COLON(iam)
Transcrição
A Lúcio Cornélio Boco, filho de Gaio, flâmine provincial,
tribuno militar – a Colônia Escalabitana, devido aos serviços por ele
prestados à colônia. (IRPC 185)
4.2) Ach. Alcacer do Sal
Par: Museu de Alcacer do Sal
Data: século I d. C.
Descrição: Parte direita de uma placa
honorífica em mármore destinada a
ser encaixada num monumento.
Dimensão 53 X 164 X 10
Inscrição:
[L(ucius) CORNELIVS C(aii) F(ilius) BOC]CHVS PR(aefectus)
CAESARVM BIS / [FLAM(em) PROVINC(iae) PON]T(ifex)
PERP(etuus) FLAMEN PERP(etuus) / [DVVMVIR AEDILIS ] (?) II
(bis) PR(aefectus) FABR(um) V (quinquies) TR(ibunus) MIL(itum)
D(e) S(ua) P(ecunia) F(ecit)
Transcrição:
Lúcio Cornélio Boco, filho de Gaio, prefeito dos Césares pela
segunda vez, flâmine provincial, pontífice perpétuo, flâmine perpétuo,
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202
duúnviro, edil duas vezes, prefeito dos artífices cinco vezes, tribuno
militar, fez a expensas suas. Fonte : IRPC 1895)
5) Ach. Quinta da Torre dÁires, Luz, Tavira
Par: Museu de Faro
Data: século III d. C.
Descrição: Pedestal de calcário que foi utilizado para plinto do púlpito
de uma Igreja. Com moldura da base constituída por filete e gola
reverso Dimensão 119 X 60 X 45
Inscrição:
FORTVNAE • AVG (ustae) • / SACR(um)
• / ANNIVS • PRIMITIVVS / OB•
HONOREN • / IIIIIIVIR (atus) • SVI •. /
EDITO BARCARVM / CERTAMINE •.
ET• / PVGILVM SPORTVLIS / ETIAM•
CIVIBVS / DATIS • / D(e) • S(ua) •.
P(ecunia) •. D(ono) •. D(edit) •
Transcrição:
Consagrado a Fortuna Augusta.
Ânio Primitivo, um liberto ofereceu, em
honra do seu sexvirato, tendo realizado um
combate de barcas e de pugilistas e também
oferecido dádivas aos cidadãos, a expensas
suas. ( IRCP, 73)
Até o momento não há evidências
da existência de templos em Balsa. No
entanto, a inscrição abaixo faz menção a um
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
203
séxviro, pertencente ao colégio dos augustales, que ao ser nomeado e
como prova de ostentação de riqueza cumpriu a summa honorária,
quer dizer ofereceu ao povo presentes, provavelmente dinheiro e
financiou a apresentação de duas modalidades de ludi (jogos):
combate de pugilistas e batalha naval (naumaquiae). Isto não somente
atesta a existência de um circo na cidade com a apropriação da prática,
assim como, da internalização do significado da realização dos
festivais.
6) Ach: Capela de S. João dos Azinhais, Torrão, Alcácer do Sal.
Par: Museu Regional de Évora
Data: Segunda metade do século I d.c
Descrição: Possivelmente uma Ara Votiva em
mármore branco com bandas cinzentas. Uma
das fases apresenta a inscrição. Do lado
esquerdo, em relevo vemos a representação da
águia de braços abertos, símbolo de Júpiter,
apoiada numa árvore ou num tronco. A fase do
lado direito, também em relevo é decorada com
um motivo vegetal, possivelmente
simbolizando a fecundidade.
Inscrição
IOVI · O (ptimo) · M (aximo) · / FLAVIA ·
L(ucii) · F (ilia) · RVFINA / EMERITENSIS /
· FLA/MINICA · PROVINC (iae) · /
LVSITANIAE · ITEM · COL(oniae) /
EMERITENSIS / · PERPET(ua) · / ET ·
MVNICIPI(i) · SALACIEN(sis) / D(ecreto) ·
D(ecurionum).
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
204
Transcrição
A Júpiter Óptimo Máximo. Flávia Rufina, filha de Lúcio, natural de
Mérida, flamínia da província da Lusitânia assim como perpétua da
Colônia Emeritense e do Município Salaciense. Por decreto dos
decuriões. (IRPC. 183)
Esta epígrafe demonstra uma variável do culto imperial na
Lusitânia representado pelo culto a Júpiter Ótimo Máximo, celebrado
por uma flaminica provincial com apoio da ordo decurionum da
cidade de Salácia120
. Trata-se de uma celebração oficial, na qual
Rufina se preocupou em enumerar os seus cargos. O fato de ter sido
flaminica perpétua da sua cidade natal, Emerita Augusta (Mérida) e de
Salacia (Alcácer do Sal), demonstra a importância das relações sociais
e de poder entre o município de origem nativa, Salacia e a sede do
governo provincial instalado no município Romano de Emerita
Augusta. Esta epígrafe representa uma importante contribuição para os
estudos de História de Gênero, visto que comprova a difusão pela
província da atuação cívica de uma categoria de mulheres
privilegiadas, ou seja, a sacerdotisa pública Flávia Rufina, cuja família
teria atingido provavelmente o grau eqüestre ou decurional com o pai
L(ucius) Flavius.
7)Ach. Faro
Par. Museu de Faro
Data: ano de 274
Descrição: Um pedestal de calcário que possivelmente sustentava uma
estátua. Dimensão: 96 X 50 X 44
120
Salacia Urbs Imperatoria deve ter sido o nome atribuído por Sexto
Pompeu a um oppidum indígena.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
205
Inscrição:
IMP - CAES
L - DOMITIO
AVRELIANO
PIO - FEL - AVG
P-M-T-P-P-P-
II - COS - PROC
R - P - OSSONOB
EX DECRETO
ORDIN
D - N - M - EIVS
D - D
Transcrição
Ao Imperador César Lúcio Domicio Aureliano , Pio, Félix,
Augusto, pontífice máximo, no seu poder tribunício, pai da Pátria,
cônsul pela segunda vez, procônsul – a República Ossonobense, por
decreto da ordem, ofereceu e dedicou, por devoção ao seu gênio e
majestade. (IRPC 47)
A res publica dos ossonobense dedica ao imperador Aureliano
que já é denominado como dominus. Fica aqui registrada a
transformação do culto ao imperador que já adquire um caráter
sagrado, diante das interações com as religiões orientais,
principalmente o culto de Mitra.
Conclusão
Inicialmente, chamo a atenção para a importância da
documentação epigráfica para a História, visto que pode ser
considerada uma ―fonte primária‖ no estrito sentido do termo. Trata-
se de um texto deixado pelos antigos que passou à posteridade sem
intermediários e sem possibilidades de deturpações e rasuras. Pode ser
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
206
utilizada com segurança pelo historiador, como um documento
absolutamente fidedigno (ENCARNAÇÃO, 2006: 17).
Considerando a prática comparativa da equipe de pesquisadores
as conclusões apontam para a conexão entre poder e cultura como
fundamentais para o estudo das sociedades imperialistas. Portanto,
defendemos a hipótese de que a dimensão cultural do imperialismo
romano foi materializada pela cidade.
As cidades não podem ser entendidas simplesmente como um
mecanismo estatal de observação e controle. Os vestígios de cultura
material que são identificados como marcos espaciais urbanos e
rurais: o teatro, o fórum, a basílica, os templos, as estátuas, as pontes,
as estradas, os aquedutos, as villae não são meramente imagens.
Podem ser entendidos como signos repletos de significados
simbólicos que atuavam como fatores de integração política, social e
da solidariedade das elites em relação ao corpo cívico (PREUCEL,
2006: 84).
Tais signos foram unificados pela dimensão religiosa
representada pelo ―circuito litúrgico do culto imperial‖
(WHITTAKER,1997:149ss.).
Tais afirmações validam o título da presente comunicação.
Ou seja, o culto imperial conceituado como uma modalidade de ato
ritual de poder: produção intelectual e artística; atos de deferência e
comando; cerimonial; punição pública; uso de títulos honoríficos;
procissões; festivais; comportamento e indumentária do governante e
da elite; funerais; inaugurações de construções públicas; coroações.
São sistemas de representação simbólica que exprime um determinado
padrão de poder em substituição ao uso da coerção. Estes tipos de
formação discursiva construídos pelas elites dominantes são
conceituados pelo sociólogo J.C. Scott por ―transcrito público‖, visto
que exercem na comunicação política, as seguintes funções:
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
207
1) Afirmar e ratificar a hierarquia de poder, a potencialidade da
coerção e a estrutura normativa da sociedade;
2) Dissimular. Ao controlar e custear a organização do transcrito
público a classe dominante cria uma aparência ideal do poder para ser
vista pelos subordinados, protegendo o seu status quo;.
3) Eufemizar. Usada para obscurecer o uso da coerção e os aspectos
que podem comprometer o poderio e a autoridade, exaltando o caráter
benéfico, inofensivo e positivo das relações de poder;
4) Estigmatizar como nefastas as atividades ou pessoas que se opõem
aos parâmetros oficiais de sustentação do Estado;
5) Unanimidade. O comparecimento às reuniões coletivas autorizadas,
promovidas e custeadas por aqueles que detêm o poder veiculam a
noção de consentimento dos subordinados que se revela como
importante componente visual da ideologia hegemônica, fornecendo
plausibilidade à eufemização do poder e buscando promover a
integração social (SCOTT, 1990)
Portanto, a organização e os rituais de culto ao imperador devem
ser entendidos como um testemunho de hibridismo cultural de
dimensão política, social e religiosa e representou um indicativo de
pertencimento à ordem mundial globalizada por Roma.
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“Pondo o lixo pra fora” – da relação entre exclusão de
grupos sócio-religiosos e interdição literária na tradição
judaico-cristã – João, Judas e Lutero.
Osvaldo Luiz Ribeiro121
Introdução
A tradição judaico-cristã foi, desde o início, constituída por
múltiplas representações sócio-religiosas. Fossem todas harmônicas e
homogêneas, tenderiam a uma fusão pacífica. Mas não foi o caso.
Essa tradição (re)conhece uma multiplicidade de tradições, a maioria
das quais, à medida que o Cristianismo vai se consolidando e
aproximando do poder romano, vai-se constituindo como um fundo
―herético‖, logo, a ser combatido (cf. Judas 3 – ―batalhar pela fé que
uma vez foi dada aos santos‖).
Por outro lado, combater tradições de ―fundo herético‖
implica no conflito direto com os respectivos portadores dessas
mesmas tradições, de modo que o combate pela fé tem por
consequência o banimento dos ―soldados‖ do exército ―inimigo‖ –
fenômeno que pode, por exemplo, ser ilustrado por referências à
expulsão da comunidade ―cristã‖ (joanina) da sinagoga, em João 9,34
(―Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a
nós? E o expulsaram‖) e 16,2 (―Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem
mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um
serviço a Deus‖).
Todavia, os dois fenômenos – rejeição de literatura e expulsão
de comunidades – não são explicitamente relacionados. De um lado,
podem-se mapear as histórias em torno de inúmeros cânones,
estabelecidos sempre politicamente pelas inúmeras comunidades
121
Doutor em Teologia pela PUC-Rio.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
211
históricas – é o caso do cânon farisaico, que exclui deliberadamente
certas porções da LXX, bem como é, também, o caso da literatura
mais tarde classificada como gnóstica, mas que, no entanto, fora base
para argumentações de norma e tradição dentro daquela que se tornará
literatura canônica do Cristianismo.
Ora, não é revelador que os dois fenômenos, ainda que
tomados isoladamente, tangenciem as mesmas bases literárias? De um
lado, João e a comunidade joanina, expulsa da sinagoga e, de outro,
Judas, a convocação para o combate pela fé, fundamentado em
literatura então traditivo-normativa e a posterior exclusão dessa
literatura, classificada, então, como ―apócrifa‖.
É necessário, pois, alinhar os dois fenômenos, relacioná-los
histórico-socialmente. É preciso verificar em que medida, na tradição
judaico-cristã, a interdição de literatura está relacionada à expulsão de
comunidades sócio-religiosas.
1. O “caso” João – o cisma sinagogal e o “cânon” dos fariseus
O cisma sinagogal do primeiro século (isto é, a expulsão dos
judeus messiânicos, aderentes à fé em Jesus de Nazaré como messias,
das sinagogas judaicas [BROWN, p. 42-45]) pode122
/deve123
estar
diretamente relacionado à formação do ―cânon‖ farisaico – o que
Könings (p. 36) permite subentender. De um lado, a expulsão de
judeus aderentes à ―fé‖ messiânica em Jesus de Nazaré como messias,
e, de outro, a interdição político-normativa de literatura constante da
―lista de rolos‖ dos LXX, em que essa comunidade se baseava na
elaboração de sua cristologia ―alta‖ – para o que aqui importa:
Eclesiástico, Sabedoria e Baruque. É possível que o fenômeno da
expulsão de judeus-―cristãos‖ da sinagoga esteja consignado em três
passagens do Evangelho de João – a) a expulsão do cego de nascença,
122
Princípio de plausibilidade. 123
Minha hipótese de trabalho.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
212
curado por Jesus, cuja história está em Jo 9 (RIBEIRO, 2010), b) a
referência ao medo de judeus – criptocristãos (BROWN, p. 74-76) –
de serem identificados como aderentes à fé messiânica em Jesus de
Nazaré e, por isso, expulsos da sinagoga, e c) o vaticinium ex eventu
da expulsão dos discípulos, constante de Jo 16,2.
Ora, é justamente nesse entroncamento histórico – cânon
sinagogal e interdição de literatura judeu-―cristã‖ (LXX), de um lado,
e de outro, a formação da ―comunidade joanina‖, ou seja, a ―primeira
fase‖ de Brown (p. 20-21 – não muito seguro disso está Könings [p.
33ss]) – que se instala o tema fundamental da cristologia joanina: a
―alta‖ cristologia.
A identificação de Jesus, o messias, com a Sabedoria da
tradição judaica (MATEUS; BARRETO, p. 14-17 – e esta justamente
na forma da ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ [Eclesiástico 24,8])
parece ter sido elaborada por meio do recurso à literatura agora
deuterocanônica (RIBEIRO, 2006). Parece justo considerar-se que,
ainda quando vinculada à sinagoga, a plataforma retórica da apologia
da comunidade devesse estar disponível ao acesso da comunidade
sinagogal como um todo, resultando necessário admitir que, por
conseguinte, devesse estar bem assentado na consciência sinagogal o
fato de a defesa judaico-messiânica da identificação de Jesus de
Nazaré como ―a Palavra que arma a tenda em Jacó‖ ser possível por
meio da LXX, ou, ao menos, ser por meio dela eficientemente
legitimada. Conseqüentemente, em tendo sido expulsos os judeus
aderentes à fé messiânica, resulta compreensível que também a sua
literatura apologética (MATEUS; BARRETO, p. 14-17) tenha sido
interditada à comunidade sinagogal remanescente. Para isso não
faltaram ―argumentos‖ – por exemplo, o fato da redação grega dessa
literatura. A determinação das ―razões‖ é, nesse(s) caso(s),
posterior(es) à determinação política.
Além disso, o fato de os judeus aderentes à fé messiânica
afirmarem que Jesus de Nazaré era ―a Palavra que arma a tenda em
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
213
Jacó‖ constituiria flagrante polêmica com o judaísmo tradicional das
sinagogas, que, nos termos de Baruque 4,1, por exemplo, afirmava
que essa ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ era – já – a Torá. Ora,
aos ouvidos de judeus, a declaração de fé de que essa Palavra é Jesus
ressoaria na forma polêmica de ―a Palavra que arma a tenda em Jacó
é Jesus e não a Torá‖. Com efeito, o Prólogo de João não diz outra
coisa que não isso: Jesus é a ―Palavra que arma a tenda em Jacó‖ (Jo
1,14), ao passo que ―Moisés‖ é – apenas – a lei (Jo 1,17a). Ainda que
se possa considerar que tal declaração tenha sido formulada de modo
decisivo somente após a expulsão dos judeus messiânicos da
sinagoga, não se pode descartar a hipótese de que ela já se fazia
pronunciar nas próprias reuniões sinagogais, expondo a
constrangimentos os portadores da Torá – é inclusive plausível supor
que, no decurso da polêmica entre judeus messiânicos e judeus
tradicionais, aqueles tenham se servido da tradição da Sabedoria-
Palavra criadora que sai da boca de Yahweh (Provérbios, Sabedoria),
que arma a tenda em Jacó (Eclesiástico) e é então identificada à Torá
(Baruque), aplicando-a, polemicamente, então, ao messias – Jesus de
Nazaré (RIBEIRO, 2006).
Se tal polêmica poderia ser resolvida internamente é uma
questão para além da investigação histórica. Permanece, apenas, o fato
de que ela não foi resolvida, e, uma vez que não se tenha chegado a
um bom termo, a sinagoga expulsa os judeus heterodoxos (BROWN,
p. 20), impede de circulação nas sinagogas a sua literatura fundante e
recusa terminantemente a sua interpretação verbo-messiânica do judeu
de Nazaré: ―a batalha entre a sinagoga e a comunidade joanina era,
no final das contas, uma batalha sobre cristologia‖ (BROWN, p. 45).
Na conclusão dessa hipótese, o cânon farisaico é um cânon-
espelho – que ―reflete‖ a polêmica grave entre a comunidade farisaica
e a recentemente expulsa comunidade joanina. Cânon e construção de
identidade interceptam-se no campo de batalha.
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214
2. O “caso” Judas – um cisma “gnóstico” e a interdição de
apócrifos
O cisma gnóstico de que aqui se trata constitui, sob o regime
indiciário, um ―estudo de caso‖. A epístola de Judas foi escrita como
tentativa de combater a pregação heterodoxa de um grupo de
pregadores que se havia infiltrado na comunidade de destino da
epístola (Jd 3).
O tom da carta inspira autoridade. Ela apela para o combate à
fé uma vez por todas dada aos santos (v 3), fé essa que podia ser
recordada facilmente pela comunidade (v. 5) e que fora, inclusive,
pronunciada pelos apóstolos (v. 17), de cuja autoridade constitui,
agora, tradição e norma. Sobre esse fundamento normativo e apelando
justamente para ele, a carta enumera condenações sobre condenações
que os antepassados haviam merecido, quando se comportavam da
forma como aqueles ―homens ímpios‖ agora se comportavam.
Grande parte dos argumentos e da peroração da carta baseia-
se na citação de literatura hoje classificada como apócrifa: Testamento
dos 12 Patriarcas (ou Enoque), Ascenção de Moisés e Enoque. A
carta cita textualmente, ainda que, eventualmente, de memória, uma
passagem de Enoque – da mesma forma como Mateus o fizera com
―profecias‖ da tradição judaica ―canônica‖: ―Quanto a estes foi que
também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que
veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra
todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras
ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras
insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele‖ (v. 14-15). O
registro performativo é o mesmo: o que a literatura citada afirma é
norma para a comunidade.
Não é uma tarefa de todo fácil determinar o caráter histórico
da pregação dos ―homens ímpios‖ a que se refere Judas. Ela está
relacionada, contudo, a alguma forma de religiosidade ligada a a)
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
215
anjos, b) sexualidade e c) mística extática. Tratar-se-ia de um caso
dentre aquelas variadas correntes religiosas do cadinho judaico-
helênico do final do primeiro século, dentre os quais se destacarão a
partir daí, os movimentos gnósticos.
Para o contexto desse ensaio, o que é relevante é o fato de
Judas recorrer à literatura agora classificada como apócrifa para
combater a ―invasão‖ dos ―homens ímpios‖. Toda a autoridade da fé é
sobreposta às referências a essas Escrituras.
Com que se deve, então, saltar para 2 Pd 2. Em termos
histórico-literários, é mais do que meramente provável, é
superlativamente plausível, que 2 Pd 2 seja uma compilação de Judas,
levada a termo por razões de, quem sabe?, sua autoridade traditiva,
mas, agora, em contexto de interdição da literatura ―apócrifa‖, em que
a ―primeira edição‖, digamos assim, da carta, se baseava. Uma
―segunda edição‖ se fizera necessária, mas encomendara-se o expurgo
total das referências que permitissem fossem ligados as duas
grandezas: de um lado, a fé e, de outro, a literatura interditada –
porque a fé não bote brotar da literatura ―apócrifa‖...
O que resulta de uma comparação entre 2 Pd 2 e Judas é a
quase absoluta manutenção do teor original da epístola, inclusive na
estrutura narrativa, com alguma variante não muito significativa, e
com a flagrante determinação de ―purificar‖ o texto das referências
aos ―apócrifos‖ – na prática, uma erasio memoriae daqueles
conteúdos e fontes.
É preciso aprofundar a investigação desse ―caso‖, e buscar-se
entender mais precisamente a razão de a literatura que serviu de base
para a ―primeira edição‖ de Judas ter-se tornada proibida na ―segunda
edição‖ De algum modo, comunidades que eventualmente aderiram às
práticas consideradas heterodoxas pelas autoridades passassem a
utilizar em sua defesa justamente a literatura sacada contra ela, de
modo que a ―excomunhão‖ de tais comunidades implicava na
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
216
proibição do uso de sua literatura. Ou, alternativamente, a leitura da
literatura empregada em Judas terminava por aguçar a teologia dos
anjos e sua relação sensual com os homens, de modo que o ―remédio‖
podia conter efeitos colaterais, algo como a preocupação com a
educação sexual de crianças, sob o argumento de que falar de sexo
com elas, em tão precoce idade, pode revelar por efeito colateral
justamente o despertamento sexual precoce que se espera evitar.
Seja como for, o desenvolvimento do cristianismo deixará
revelar dois dos aspectos identificados no caso Judas versus 2 Pd 2.
Primeiro, a comunidade cristã tenderá, sob o regime da política
clerical, a acomodar-se na tradição ―romana‖ (aqui, meramente
―conceito‖ para a ―ortodoxia‖), de modo que as práticas alternativas,
as teologias ―heterodoxas‖ e a fé não-tradicional serão cada vez mais
perseguidas e banidas. Segundo: paralelamente a essa segregação do
―escandaloso‖, a coleção canônica tenderá a acatar o princípio
presente em 2 Pd 2 – o expurgo de um certo tipo de literatura,
princípio tão mais revelador quando se percebe que tal expurgo se
tenha dado em flagrante contradição com o fato de que o livro
canônico – Judas – tenha se servido dele com tamanha força de
autoridade.
3. O “caso” Lutero – cisma protestante e a re-encenação
deuterocanônica
O Antigo/Primeiro Testamento da Bíblia protestante está
marcado definitivamente pelo cisma luterano. Mais uma vez, é o
cisma o fator sócio-determinante: eles usam esses livros: fora com
eles, fora com esses livros... No caso luterano, a pressão foi ainda
mais forte, uma vez que se tratava da crítica do cânon tecnicamente
formado, milenar. Mas do que interditar um conjunto de rolos no
momento da formação canônica (sinagoga), mais do que interditar um
conjunto de rolos e pergaminhos de conteúdo perigosamente sugestivo
(Judas versus 2 Pd 2) – trata-se, com Lutero, de impor-se a uma
Tradição com ―T‖ maiúsculo. Se for recordada, ainda, a questão
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
217
muitíssimo delicada de Lutero com Tiago, o livro canônico que
parecia justificar a teologia das obras, revelar-se-á ainda mais
claramente a relação entre a interdição de literatura fundante e o cisma
sócio-religioso.
É natural que, no caso Luterano, as circunstâncias tenham sido
substancialmente diferentes, se comparadas aos casos anteriormente
discutidos. O recurso luterano ao ―cânon judaico‖ poderia, sob certo
enfoque, reduzir a questão a um caráter meramente ―técnico‖ – o
cânon judaico era o cânon menor, de modo que, inspirado por valores
renascentistas, e, por isso, recorrendo aos ―originais‖, Lutero tenha se
pronunciado criticamente em face da Vulgata. Contudo, por si só isso
não explicaria, absolutamente, a também conseqüente recusa do
caráter ―canônico‖ de Tiago.
Com Tiago, estamos diante da ―repetição‖ do princípio de
exclusão anterior? Trata-se não de Tiago em si, mas da Igreja romana
– que, em sendo ―banida‖, leva tudo o que se fizer referir, direta ou
indiretamente a ela, tudo o que tiver seu ―cheiro‖, a ser igualmente
banido?
É conveniente admitir que não se trata de um princípio
―cego‖. É mais adequado considerar-se que se trata de um princípio
mais ou menos elástico. Fosse cego, já que Lutero retira-se da Igreja
de Roma, deveria, então, ter-se separado de tudo que fosse romano –
inclusive o Credo, e, até, as próprias Escrituras. Mas não se trata
disso. Trata-se de um princípio ―seletivo‖, operado pela consciência
de ―verdade‖ e ―norma‖.
A comunidade responsável pela interdição da literatura não é,
sempre, a comunidade ―forte‖. Ao contrário do caso sinagogal, no
caso luterano, é a comunidade expulsa que se ―vinga‖, interditando
internamente a literatura que a comunidade que a expulsara emprega
como normativa.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
218
Além disso, a comunidade que opera a interdição não reage
diretamente à comunidade adversária. Ela opera, antes, sob o regime
da ―verdade‖, da ―norma‖ e da ―tradição‖. Expulsando ou sendo
expulsa, ela se mantém sobre a plataforma da ―verdade‖, e é desde aí,
e sobre esse ―valor‖, que julga a literatura prévia, expurgando dela
aquilo que, à luz da norma e da verdade, deve ser ―descartado‖. Esse
princípio ajudaria a compreender a razão pela qual, de um lado,
Lutero exclui a literatura ―deuterocanônica‖, mas, por questões
relacionadas à ―norma‖ protestante, não pára aí, mas investe contra o
coração do próprio cânon nicênico, arrancando dele uma peça
tradicional. São o calor da batalha e o furor da norma os fatores que
operam o critério luterano. Mais tarde, quanto mais distante se estiver
da batalha e do calor do momento, tanto mais facilmente o ―excesso‖
luterano poderá ser esquecido, e Tiago poderá retornar para seu lugar
de honra.
Conclusão
É possível fazer uma afirmação teórico-metodológica a
respeito da relação histórico-social, na tradição judaico-cristã, entre,
de um lado, a interdição de literatura, e, de outro lado, a expulsão de
comunidades sócio-religiosas, concluindo que a interdição de
literatura está diretamente relacionada à expulsão de comunidades. A
rigor, não se trata de dois fenômenos, mas de um fenômeno mais
complexo.
Em algum momento da história de certas comunidades,
instaura-se o conflito ―teológico‖ em torno da tradição, da ―verdade‖,
da ―norma‖, conflito sempre caracterizado pelas implicações políticas
que potencialmente carrega. O conflito substancia-se na forma de
fundamentação traditiva, de modo que cada lado alicerça-se sobre
determinada literatura, até então, de comum circulação, se
considerado o grupo amplificado, dentro de cujo conjunto encontra-se
deflagrado o conflito.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
219
Ao conflito, se seguirá o rompimento geográfico e traditivo.
Cada grupo aprofundará a sua posição, tornando ainda mais aguda a
distância entre a sua hermenêutica da fé e a do ―outro‖ grupo. Esse
agudamento redundará no estreitamento da relação desse grupo com
certa porção da literatura mais ampla, anteriormente disponível no
campo de batalha, e, ao mesmo tempo, implicará na rejeição política
da porção dessa mesma literatura endossada pelo grupo oponente.
O rompimento do grupo trará por conseqüência uma cisão no
corpus literário, de modo que cada grupo assumirá mais radicalmente
a sua tradição sobre determinada porção da literatura antes comum,
rejeitando a parte endossada pelo grupo adversário.
Não se trata, pois, de uma decisão investigativa acerca da
―verdade‖. Trata-se do posicionamento político de uma comunidade.
Cada qual tenderá a não apenas assumir com cada vez mais
engajamento a sua própria interpretação, mas ocorre ainda de esse
engajamento administrar, por assim dizer, cada vez mais
politicamente as rotinas de interpretação, de modo que o conflito
político-ideológico se transfere cada vez mais radicalmente para as
rotinas de interpretação da tradição. No final do processo, aquelas
duas comunidades que, antes, gravitavam em torno da mesma
tradição, flagram-se distantes quilômetros de distância uma da outra –
unicamente por força do aprofundamento das diferenças já
perceptíveis no período de confluência, quando, então, não
representavam necessariamente motivo de desagregação do grupo.
O gatilho que há de disparar a intolerância em face das
―heterodoxias‖ que orbitam o grupo ampliado será político, traduzido
em termos de definição de identidade e de autoridade.
Aqui se assume, esse foi o caso clássico da comunidade
joanina – expulsa das sinagogas, estas interditam a literatura sobre a
qual a comunidade sustentava a sua diferença em relação ao grupo
―hegemônico‖.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
220
Esse foi também o caso da comunidade a que Judas se destina
– considerável porção da tradição literária serve de ―arma‖ na batalha
da defesa da fé, mas, ao menos no que diz respeito às comunidades
afetadas, a batalha é perdida para a pregação heterodoxa, por razões
que precisam ser aprofundadas, até a própria carta de Judas vê-se
expurgada dessa literatura, o que apontaria para o fato de ela ter sido,
de algum modo, cooptada – se já não lhe servia de base, antes – pelas
comunidades ―gnósticas‖. Com a cisão entre cristãos clássicos e
gnósticos, toda a literatura, até então valiosa para a fé, torna-se
herética. Porque os gnósticos são classificados como heréticos, a sua
literatura é rejeitada, pela mesma razão.
Finalmente, esse é o caso de Lutero. Sob sua ótica, a expulsão
dos ou pelos católico-romanos implica na recusa categórica de sua fé e
de sua base de argumentação. Nesse sentido, a rejeição da
canonicidade de Tiago reflete bem esse mesmo conflito político-
teológico, milênio e meio após aqueles dois primeiros ensaios da
cristandade.
Do mesmo modo como nenhum texto bíblico constitui
―tratado teológico‖, assumindo, antes, inexoravelmente, o tom de
literatura político-performativa, tão pouco as seleções de literatura, os
processos de quase-canonização – e mesmo esses – constituem
fenômenos de reflexão teológica ―pura‖. Quando se aproxima a lente
histórico-social de cada um desses momentos, verifica-se o conflito
humano, a segregação do outro, a exclusão do diferente. Com as
pessoas expulsas, vão os livros que carregam.
Referências Bibliográficas
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado. 2 ed. São
Paulo: Paulinas, 1984.
KÖNINGS, J. Evangelho Segundo João – amor e fidelidade. São
Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2000.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
221
MATEUS, J. e BARRETO, J. O Evangelho de João. São Paulo:
Paulinas, 1989.
RIBEIRO, O. L. A Invenção do Cristo Celeste no Prólogo de João.
Importações de Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico em contexto
polêmico. 2006. Ensaio disponível em
http://www.ouviroevento.pro.br/biblicoteologicos/A_invencao_do_Cr
isto.htm.
RIBEIRO, O. L. “É a Tradição que os cega!” – intertextualidade
programática entre Jo 5,1-18 e Jo 9 como retórica apologética
joanina, Revista Jesus Histórico e sua Recepção, v. 1, n. 1, 2010,
disponível em
http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos4/3Osvaldo.pdf.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
222
Considerações sobre a religiosidade grega
Pedro Paulo A. Funari124
Introdução
Os gregos da Antigüidade nunca foram muito unidos. Falavam
dialetos variados, viviam em diferentes regimes políticos e sociais,
variadas eram suas origens étnicas. Embora sua religião fosse também
local e particularizada, havia tanto características compartilhadas,
como especificidades que nos permitem falar em religiosidades gregas
antigas. Neste capítulo, essa diversidade religiosa será explorada, para
mostrar sua originalidade e o quanto dela ainda nos diz respeito.
Mesmo quando completamente estranha para nós (por ser baseada em
outros valores), essas experiências continuam a inspirar as gerações
posteriores. Ou a causar espanto e admiração ao mesmo tempo.
Talvez se possa afirmar que a religião grega, ou seus aspectos e mitos,
constitua o fundamento mais sólido da maneira como nós pensamos o
nosso próprio mundo moderno. Ela surge no nosso quotidiano, a cada
vez que falamos em ―complexo de Édipo‖, ou nos referimos a um
―bacanal‖. Para nós, podem ser conceitos elaborados, como o
complexo de Édipo da Psicanálise, como podem ser uma expressão
popular e despretensiosa para descrever uma festa meio desregrada (o
tal bacanal). O que significavam para os gregos? Como chegaram até
nós? O que nos dizem, ainda hoje? Estas algumas das perguntas desta
conferência.
124
Professor Titular do Departamento de História da Unicamp, Bolsista em
produtividade científica do CNPq, líder de Grupo de Pesquisa do CNPq,
coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp, CEAv/Unicamp.
www.gr.unicamp.br/ceav.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
223
A religiosidade e a historiografia
O estudo do poder tem longa tradição - e em certo sentido,
a própria narrativa historiográfica- está atrelada às lides do
poder. O historiador grego Heródoto preocupou-se com as
relações entre gregos e persas, assim como Tucídides escreveu
sua obra a partir da contraposição entre as cidades gregas em
guerra. Portanto, na origem da narrativa histórica, como gênero
literário, o poder, kratos, esteve ligado à coerção física e à luta,
polemos. Esta dimensão militar e bruta da força permeou,
também, ainda que de forma diversa, a nascente ciência
histórica moderna, motivo pelo qual reis e generais continuaram
a ocupar lugar de destaque no discurso histórico. O século XX
viria a testemunhar uma ampliação das preocupações do
historiador e o poder foi relacionado a outras esferas da atuação
humana, em particular, às representações, sentimentos,
identidades e sensibilidades. Poder e saber passaram a serem
termos correlacionados e em constante conexão.
Um dos aspectos relevantes dessa ênfase no simbólico tem
sido o estudo das conexões entre poder e religiosidade ou
conjunto de sentimentos relativos às forças superiores, mágicas
ou espirituais. Segundo as concepções dos próprios antigos, os
deuses e as manifestações de forças desconhecidas faziam parte
da vida quotidiana, nas formas mais variadas e freqüentes.
Mesmo um autor como Tucídides, historiador considerado pelo
positivismo como precursor da descrição neutra e imparcial, não
deixava de mencionar a fortuna, tykhé, e o mesmo pode ser dito,
a fortiori, dos restantes antigos para os quais, claro, o próprio
amor, Eros, era uma força divina.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
224
A separação moderna entre razão e religião viria a tardar a
expansão da atenção aos aspectos simbólicos e religiosos das
manifestações de poder, mas estes estudos expandiram-se, de
forma exponencial, nas últimas décadas, tanto na análise das
sociedades modernas, como antigas.
O estudo da religiosidade insere-se nos debates
epistemológicos das últimas décadas. As discussões da teoria
social das últimas décadas foram importantes para criticar os
modelos normativos, ainda muito difundidos, em contribuição
significativa para os estudos também das sociedades do passado.
Estudos empíricos e reflexões teóricas apontaram para o caráter
heterogêneo da vida social, da fluidez das relações, e das
contradições e conflitos sociais. No lugar de normas e desvios às
normas, surge uma pletora de comportamentos e visões de
mundo. Outro aspecto importante, proveniente das reflexões
filosóficas e antropológicas, consiste no papel central dos
conflitos na vida social. À tendência de se enfatizar a
reprodução social, contrapôs-se a atenção aos conflitos. Na
tradição marxista, já se havia ressaltado que as contradições de
classe eram o motor da História, na famosa assertiva do
Manifesto Comunista de 1848. Contudo, a tradição sociológica
do século XX, tributária de Max Weber ou de Émile Durkheim,
havia relevado o conflito à categoria de anomalia, doença social,
desvio da reta via. As últimas décadas do século XX, entretanto,
testemunharam uma série de lutas sociais, intensas, como a luta
pelos direitos civis, contra a discriminação racial, contra a
guerra, pela diversidade sexual, pela emancipação feminina, mas
também movimentos em sentido contrário, como o
fundamentalismo religioso e o nacionalismo xenofobista.
Sociedades dilaceradas pelo conflito armado ou civil
multiplicaram-se e muitos estudiosos não hesitaram em retomar
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
225
e melhor explorar o caráter intrinsecamente conflitivo das
relações sociais.
A religiosidade representou, com freqüência, um aspecto
pouco assimilável para o conceito de identidade decorrente do
estado nacional moderno. As igrejas constituídas, em geral, não
se limitavam a uma nação, como no caso das denominações
protestantes ou no universalismo do Catolicismo ou da
Ortodoxia, assim como na diversidade das congregações
judaicas ou das seitas muçulmanas. A diversidade, em qualquer
caso, seria uma conseqüência indesejável, assim como a falta de
controle da autoridade do estado nacional, perante as hierarquias
religiosas e, mais ainda, aos sentimentos religiosos das pessoas,
que fugiam ao controle e às determinações nacionalistas e
tendentes à homogeneidade. A religiosidade, tanto por sua
imensa variedade, como pelos poderes paralelos, constituía
antes um problema a ser, se possível, evitado.
A historiografia sobre o mundo grego, de alguma forma,
foi afetada por tais humores. A imensa diversidade étnica,
cultural, mas também religiosa, no mundo de língua grega, foi
sempre reconhecida, mas não sem certo receio de perder a
unidade, supremacia e homogeneidade desse neologismo, o
helenismo. Neologismo, pois nunca houve o termo helenismo,
na própria antiguidade, mas o próprio conceito de helenização
implicava um telos, um objetivo final, o ser grego. Neste
quadro, as religiosidades do mundo grego, não apenas com sua
diversidade, mas com suas contradições e conflitos,
representaram desafios para a historiografia normativa, aquela
que considera que a sociedade está regida por normas sociais
respeitadas pela maioria e rejeitada apenas pelos desviantes.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
226
Como podemos saber sobre a religião grega?
Os gregos deixaram-nos muitas obras e um grande número
delas trata, de uma forma ou de outra, da religião e constituem fontes
primárias e de primeira importância para quem quiser ter um
conhecimento direto da religiosidade grega. As principais foram
traduzidas para o português, algumas em edições muito acuradas e
bonitas. A Ilíada de Homero, traduzida pelo poeta Haroldo de
Campos constitui uma porta de entrada privilegiada, assim como duas
outras jóias: Édipo Rei de Sófocles e As Bacantes de Eurípides, ambas
traduzidas por Trajano Vieira; ou a Teogonia de Hesíodo, vertida por
Jaa Torrano. Na verdade, quase todas as obras de autores gregos
tratam, de alguma forma, da religião. Os historiadores não deixam de
mencionar a deusa Fortuna, nem os filósofos o deus do Amor (Eros).
Mas não foram apenas os gregos a escrever sobre sua
religiosidade: os latinos também o fizeram e são, para nós, guias
importantes, pois tudo que estranhavam ou era diferente, eles
relatavam. Claro, os gregos nem sempre escreviam aquilo que era
óbvio para eles mesmos. Talvez o mais envolvente autor latino seja
Ovídio, em suas Metamorfoses, com suas tantas historinhas
mitológicas, na boa tradução de Bocage. Tomemos cuidado, contudo:
como veremos, os gregos nunca tiveram relatos de suas história
míticas como se fossem um manual, como dá a entender a leitura de
Ovídio.
A Arqueologia produziu, desde o século XIX, uma infinidade
de informações que vieram a complementar, mas também a
contradizer a tradição literária. As escavações trouxeram à luz uma
infinidade de inscrições que mostram o dia-a-dia da religião, assim
como os edifícios e objetos retratam a imensa variedade e
especificidade das práticas religiosas gregas. São dados que podem
contradizer o que nos dizem os antigos, como no caso mais notável,
que trataremos abaixo, de Dioniso. Ele era considerado pelos antigos
como deus vindo do Oriente, pouco tempo antes da sua época, o
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
227
século V a.C. Hoje, sabemos, por meio da Arqueologia, que esse deus
já era conhecido em Micenas, muito antes, em 1400 a.C. O melhor
estudo arqueológico ainda não foi traduzido e está citado na
Bibliografia (Ancient Greek Religion).
Os gregos e suas religiosidades
Os gregos nunca constituíram um estado, com fronteiras
delimitadas, uma língua nacional, uma capital. Eram definidos, por si
mesmos, como os helenos: aqueles que falavam dialetos aparentados e
cultuavam mais ou menos os mesmos deuses. Isto significa que, onde
houvesse gregos, havia religiosidade grega. Quando pensamos na
Grécia Antiga, logo pensamos na cidade-estado, conhecida por seu
nome original: polis. A polis, contudo, é tardia, tendo surgido nos
inícios do primeiro milênio a.C. e muitos gregos viviam em
assentamentos humanos que não eram cidades, como os povoamentos
ou etnias (ethné). Suas origens, também, são mais longínquas no
tempo e mais variadas do que se pode supor. Desde o início do
segundo milênio a.C., existiram civilizações que foram as precursoras
da Grécia Antiga: os minóicos e os micênicos. Estes últimos, em
particular, são melhor conhecidos, tendo nos deixado escritos, em um
grego arcaico, que foram decifrados no século XX. Em meados do
primeiro milênio a.C., no Peloponeso floresceu uma civilização
micênica centrada em palácios. Nos tabletes decifrados, foram
encontrados os nomes de algumas das principais divindades gregas
clássicas: Zeus, Hera, Posidão, Ártemis, Atena, Hermes, Ares, e
Dioniso, entre outros. Também, encontraram-se vestígios de templos e
referências a sacerdotes e sarcerdotisas, chamados com os mesmos
nomes que teriam posteriormente (ijereu, que daria hieros, prefixo que
chegou até nós: ―hierarquia‖, poder sagrado).
Nos primeiros séculos do primeiro milênio, surgiram as cidades
(poleis), em sociedades aristocráticas e guerreiras e o início dos Jogos
Olímpicos, em 776, segundo a tradição, marca a presença da religião
como base cultural dos helenos. Essas competições eram reuniões de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
228
caráter religioso. A religiosidade grega que conhecemos é a das
cidades-estados, desde o século VIII a.C., que atinge seu apogeu nos
séculos seguintes, mas que continuará até a instituição do
Cristianismo como religião oficial em 380 d.C.
A religião grega, com suas origens no Mediterrâneo oriental,
expandiu-se junto com os colonos gregos para o sul da Itália, Sicília e
costas da França e da Espanha. A partir das conquistas de Alexandre o
Grande (356-323 a.C.), a religião grega - adaptada por inúmeros
povos - atingiu culturas a oriente e a ocidente.
Considerações sobre as características da religiosidade grega
Religião sem livro sagrado, a vivência espiritual dos gregos
baseava-se em algumas crenças que, em grande parte, eram vistas
como meras especulações do ser humano, diante do que sabiam
ignorar. Não havia informações incontestes, nem textos ou sacerdotes
que pudessem definir, sem direito a contestação, dogmas. Por isso
mesmo, as explicações e mitos variavam de um lugar a outro, de uma
época a outra e mesmo de um indivíduo a outro. As divergências entre
as versões dos mitos, que podem parecer ilógicas, resultam,
justamente, de saberem que nada está certo de forma segura sobre o
mundo dos deuses. Sem nada saber com certeza, não por acaso, uma
premissa básica da religião grega era: ―conhece-te a ti mesmo‖. Isto
significava: saiba da sua ignorância e mortalidade (esta a grande
certeza).
Chegamos, aqui, a um segundo aspecto essencial: a mortalidade
humana e imortalidade divina. Essa divisão era essencial e
instransponível. Ou, como tudo para gregos, mais ou menos: havia
dúvida se um humano poderia tornar-se divino, ou em que medida era
divino. Os heróis eram seres humanos que, mortos e enterrados,
recebiam culto e, de alguma forma (mas só parcialmente) eram
deuses. Os deuses tudo podiam, os homens, nada, daí a importância do
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
229
culto. A morte levaria a uma situação miserável, como está na
Odisséia (11, 488-91):
Não tente falar-me com subterfúgio da morte, glorioso
Odisseu. Preferia, se pudesse viver na terra, servir como
escravo de outra pessoa, como serviçal de um sem-terra de
poucos recursos, do que ser um grande senhor de todos os
mortos que já pereceram.
No dia-a-dia, as lápides funerárias mostram que não se pensava
que houvesse senão lembrança entre os vivos, após a morte:
Se tivesses alcançado a maturidade, pela graça da fortuna,
todos antevíamos em ti Macareus, um grande homem, um
mestre da arte trágica entre os gregos. Mas, agora, tudo o que
permanece é a tua reputação de temperança e virtude
(Inscriptiones Graecae, II, 2, 6626).
A importância dos ritos
Em qualquer tradição religiosa, a maioria das pessoas tem
pouca ou nenhum conhecimento dos preceitos teológicos e mesmo os
relatos sagrados podem ser apenas parcialmente conhecidos. Os ritos,
contudo, constituem a vivência, aquilo que torna vivo o sentimento
religioso. Isto era tanto mais verdadeiro para os gregos antigos, pois
acreditavam que dos rituais dependesse a sorte dos humanos. Em
geral, os ritos existentes levaram os gregos a proporem mitos que os
explicassem. Daí que os rituais precediam os deuses, o que já nos diz
muito sobre sua importância. Os gregos distinguiam o templo, um
edifício (naos), do terreiro (temenos) e do lugar sagrado (hieron). O
edifício sagrado recebia, muitas vezes, o nome do deus, como
Artemision (da deusa Ártemis, Diana). O terreno sagrado era
delimitado por muros que separavam a propriedade divina do mundo
humano: eram os limites sagrados (horoi), que cortavam o espaço dos
homens (cortar é a origem da palavra temenos). Tudo girava em torno
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
230
do altar de sacrifícios (bomos), a tal ponto que havia altares sem
edifícios, mas nunca o contrário.
Para os deuses celestes, o sacrificador ficava sobre uma
plataforma, onde se cortava o pescoço do animal. Uma parte da carne
era queimada para que o odor agradasse ao deus, sendo o restante da
vítima consumida. Para os deuses subterrâneos, havia um buraco para
se verter o sangue do animal e queimava-se toda a vítima. Os
sacrifícios para os deuses ligados aa morte estavam contaminados,
impuros, com um miasma a ser eliminado, daí que tudo fosse posto ao
fogo. Sacrifícios humanos não eram desconhecidos: um casal de
inimigos podia ser morto, como remédio mágico (pharmacoi) para os
males da coletividade. À exceção do deus infernal Hades, todos os
cultos podiam ser celestes ou infernais (urânios e ctônicos, em grego).
A palavra grega para denominar o sacrifício significa também
festa religiosa (thysia). Quase todas eram de caráter local, ainda que
ligadas a eventos do calendário agrícola, como, em particular, as
festas de renascimento da vida e da vegetação, que marcam o fim do
inverno e o início do ano agrícola. Os sacrifícios, parte essencial do
culto e das festas, são acompanhados de cânticos e música, de caráter
mágico, assim como danças, com movimentos ritmados. A pureza
ritual podia exigir a abstinência sexual, assim como morrer ou nascer
estavam vedados no recinto sagrado (os casos excepcionais deviam
ser superados por um sacrifício de purificação).
A maior parte das festas nos santuários incluía jogos ou
competições, o que chamavam de uma disputa (agon). Eram artísticas
(canto coral de crianças e adultos, de instrumentos musicais), de
ginástica e atléticas. Os jogos em honra a Zeus em Olímpia, com a
participação de todos os gregos, fundados em 776 a.C. davam-se em
volta do Templo do deus.
Não apenas os jogos eram religiosos, mas também as
representações teatrais, tragédia e comédia, tinham esse caráter
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
231
ritualístico. Dioniso era o deus do êxtase, que significa ―estar (stasy)
fora (ec) de si‖. Era o deus das vinhas e das moças tomadas pelo
êxtase: as mênades. Ai estava a origem das representações teatrais. A
saga de Dioniso, retratada tão bem nas Bacantes de Eurípides (século
V a.C.), revela bastante sobre a relação dos gregos com seus deuses.
Em uma palavra, o deus, tendo sido rejeitado, é apresentado, ao
mesmo tempo, como o mais terrível e o mais gentil para a
humanidade. Terrível, se não for satisfeito. Gentil, se for cultuado.
Religiosidade e hierarquias
Os gregos mantinham uma relação ambígua, em relação ao
poder e o faziam a partir de um questionamento religioso do mundo.
Os deuses tudo podem, já o homem estava sempre diante da
possibilidade de extrapolar, de ser arrogante, descontrolado,
desmedido. Chamavam essa arrogância de hybris. Para o ser humano,
deixar-se levar pela soberba era ―não se conhecer a si mesmo‖, não
reconhecer as limitações do humano, à diferença do divino, sendo
Édipo um bom exemplo disso. Este mito mostra como as relações de
poder estavam no cerne da religiosidade grega. Aparecem a incerteza
(moira) e o acaso (tykhe) - ambas forças mágicas - mas o tema central
é o poder ilimitado e sua punição. O que causa a perdição de Édipo é
sua pretensão:
A desmedida gera a tirania.
A desmedida –
Se infla o excesso vão
Do inoportuno e inútil –
Galgando extremos cimos, decairá
No precipício da necessidade,
Onde os pés não têm préstimo.
(Édipo Rei de Sófocles, 872-878, tradução de Trajano
Vieira)
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
232
O nome da peça de Sófocles, no original, não por acaso é
Édipo Tirano. Essa aversão ao poder não significa, contudo, que não
houvesse hierarquias. O culto, tanto doméstico como da cidade, era
masculino, mas isso favoreceu o florescimento de uma religiosidade
que admitia mulheres e outros excluídos: os cultos de mistério, de
cunho salvacionista. O mais famoso, em Eleusis, na Ática, revela suas
características principais: secreto, para iniciados, voltado para a
fertilidade e a salvação, como diz um fragmento de Sófocles (837):
―três vezes abençoados os mortais que, após terem visto os ritos vão
ao Hades. Apenas eles viverão lá, os outros terão todos os males‖.
Era como se os mais excluídos das hierarquias citadinas tivessem nos
mistérios uma religiosidade popular que invertia, pela expectativa pós-
morte, as relações de poder quotidianas.
Do lado das hierarquias controladas pelas elites, havia o
sacerdócio, que não era profissional, mas podia ser mais ou menos
hereditário, sendo apenas uma das atividades do sacerdote, cujo nome,
hiereus, significa apenas ―sagrado‖ ou ―consagrado‖. Deuses
costumavam ser servidos por sacerdotes e deusas por sacerdotisas. O
sacerdote vivia, no dia-a-dia, longe do santuário e não tinha qualquer
vestimenta ou comportamento especial. Só era reconhecido durante a
celebração.
Uma clivagem básica reflete-se na religiosidade grega: seu
localismo. Embora houvesse festivais pan-helênicos, os cultos e
festividades religiosas eram de caráter local e mesmo familiar, sem
que houvesse possibilidade de inclusão dos que estavam de fora.
Assim, o culto doméstico nunca incluiria os escravos, nem quaisquer
agregados. Nos bairros, os cultos só estavam abertos aos cidadãos do
bairro, excluídos os escravos e mesmo um cidadão de outro bairro. Os
cultos da cidade excluíam os metecos (estrangeiros residentes). Isso
significa que a hierarquização nós/eles estava presente a todo tempo (à
exceção, em parte, dos cultos de mistério) e que a religiosidade
adquiria características paroquiais. Assim, a Atena cultuada em
Atenas não era a mesma que recebia culto em outro lugar.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
233
Conclusão
A religiosidade grega assentava-se em um preceito ético:
conhece-te a ti mesmo. O ser humano em sua pequenez, sem nunca
poder ambicionar a vida eterna, apanágio dos deuses, mas sempre
atento a si mesmo e às suas limitações. Ainda mais ético, pois era
sabedor daquilo que, em seu interior, podia destruí-lo: a hýbris, a
arrogância. Por isso, estava preocupado não com uma outra vida, mas
com agir com valor, preservar uma reputação de modéstia e virtude.
Ética também aqui, pois essa lembrança constituia um bem comum, só
tinha sentido como parte de uma comunidade que dela se lembrava e
valorizava.
Agradecimentos
Este artigo retoma o paper que apresentei no Núcleo de
Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro informa, 08 e 12 de novembro, I Congresso
Internacional de Religião, Mito e Magia no
Mundo Antigo. Agradeço a Maria Regina Cândido e a José Geraldo
Costa Grillo. Menciono, ainda, o apoio institucional do CNPq,
FAPESP e UNICAMP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se
ao autor.
Referências Bibliográficas
GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MIKALSON, Jon D. Ancient Greek Religion. Oxford: Blackwell,
2005.
ROBERT, Fernand. La Religion Grecque. Paris: Presses
Universitaires de France, 4a.ed. 1997.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
234
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1984.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
235
Um manuscrito pseudo-zoroástrico e o papel do Salvador na
cristandade primitiva oriental
Vicente Dobroruka125
Para Patricia
ἔκ τοί με τήξειρ: καί σ᾽ ἀμείψασθαι θέλω
υιλότητι χειπῶν.
Eurípides, Orestes 1047-1048.
Este capítulo discute brevemente um dos aspectos menos
explorados do cristianismo primitivo - suas relações com o tema da
―refeição sagrada‖ e desta com o culto a Mitra. Todavia, o caminho
para se chegar ate essa discussão é tortuoso e, ao final do capitulo,
possivelmente o leitor terá a impressão de que a evidência material
mitraica importa menos do que a documentação escrita compulsada,
de natureza sincrética e, talvez, oracular.
Os possíveis paralelos para a comunhão e para a Santa Ceia são
inúmeros: entre os estudiosos dos Manuscritos do Mar Morto não ha
quem ignore as regras relativas às refeições (os exemplos são vários,
mas fiquemos com 1QS 1.11-13, na Regra da Comunidade), ou para
Para as citações bíblicas utilizei a Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus,
1985), cotejada com os trechos em grego do software BibleWorks 7.0. Para
os textos clássicos utilizei as edições da Loeb Classical Library e, para a
única referência aos Manuscritos do Mar Morto, a edição inglesa de Geza
Vermès. The Complete Dead Sea Scrolls in English. London: Penguin,
1997. As demais fontes são listadas conforme aparecerem ao longo do
capítulo. 125
Doutor em Teologia pela Universidade de Oxford. Professor de História
Antiga na UnB e Membro do Ancient Indian and Iran Trust.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
236
os que crêem que sejam os essênios os autores ou consumidores dos
Manuscritos, quem se refira ao testemunho de Josefo sobre o assunto
(Guerra dos judeus 2.129 ss., entre outros).
Aqui tratarei de um lugar-comum entre os apologetas cristãos
da Antigüidade tardia, que é o uso de personagens pagãos para
―confirmar‖ a vinda do Messias (Jesus Cristo), ou da Parusia, ou de
ambos. De certa maneira, a técnica pode ser vista como um
desdobramento (lógico) do uso da Bíblia Hebraica pelos cristãos para
construírem com mais solidez o enredo soteriológico no qual se
fundamenta o Cristianismo.
Entre os muitos personagens pagãos que tiveram esse uso, os
mais famosos são, sem duvida, as sibilas. Outros devem ter sido muito
consumidos ao final da Antigüidade, mas pouco nos restou deles -
oráculos envolvendo Apolo, Zoroastro126
ou Hystaspes (o Vištasp da
tradição persa, seja ele o rei mítico que acolheu Zoroastro, seja ele o
pai de Dario)127
. O tema da relação entre a refeição sagrada tal como
entendida pelos apologetas cristãos e um texto árabe tardio é o objeto
deste capítulo, portanto. Dito de outro modo, um desenvolvimento
tardio de um tema que deve ter sido bem comum ao final da
Antigüidade e começo do medievo oriental.
No Evangelho de Lucas, após o anúncio de catástrofes cósmicas
(Lc 21:24-28) semelhantes ao material escatológico encontrado nas
126
Utilizo alternadamente ―Zoroastro‖ quando tratar-se de referência comum
e geral ao personagem, e Zardušt, Zaradušt ou outros mais próximos do
persa quando lidar com passagens específicas em que não faria sentido
―helenizar‖ o nome próprio. 127
Que tal confusão tenha apenas aumentado com o passar do tempo é bem
atestado pela obra de Amiano Marcelino. História romana. 23.6 - Magiam
opinionum insignium auctor amplissimus Plato machagistiam esse verbo
mystico docet, divinorum incorruptissimum cultum, cuius scientiae saeculis
priscis multa ex Chaldaeorum arcanis Bactrianus addidit Zoroastres, deinde
Hystaspes rex prudentissimus Darei pater.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
237
fontes zoroástricas (usando um termo propositalmente genérico),
Jesus anuncia um aspecto peculiar de Seu ministério:
E tomou um pão, deu graças, partiu e distribuiu-o a eles
[aos discípulos], dizendo: „isto é o meu corpo que é dado
por vós. Fazei isto em minha memória‟. E, depois de
comer, fez o mesmo com o cálice [...]128
Passagens paralelas encontram-se em Mt 26:26-28 (catástrofes
e Juízo em 25:31 ss.) e Mc 14:22-24 (semelhante em sua simplicidade
à descrição da ceia pascal de Lucas). A parte as discussões mais
recentes sobre o ―Jesus histórico‖, que analisam estas passagens no
contexto do judaísmo da época129
, vejamos o tema central da
narrativa: a analogia do corpo de Jesus com o pão (Lc e Mc) e o
significado de sua ingestão (desenvolvimento posterior ou idéia
original, encontrado em Mt). O significado da ingestão em Mt reveste-
se de importância que só se pode entender após a compreensão da
primeira analogia: ―Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o
abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: „Tomai e
comei, isto é o meu corpo‟‖.
Aqui o caráter sagrado da refeição reveste-se de um significado
especial: a identificação do fiel com Jesus. Não se fala em
―identificação‖ como linhagem biologicamente estabelecida (que,
128
Lc 22:19-20. 129
Geza Vermès. A religião de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
p.23. O cuidado de Jesus com relação às observâncias pascais deveria, nos
termos de Vermès, deixado Jesus ―nauseado‖ (op.cit. p.23; para exemplos
desse cuidado, cf. Mc 14:12-16; 26:17-19; Lc 22:7-15). Em meio a tanta
discussão infrutífera sobre o ―Jesus histórico‖ (já tornado clichê), Vermês
analisa com sensatez o que se pode ou não inferir legitimamente do material
de que dispomos sobre Jesus. Convém lembrar que os Evangelhos não são,
nem pretenderam ser, biografias de Jesus. Para a falta de sensibilidade de
investigadores modernos como Crossan, cf. p.13.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
238
aliás, é cuidadosa e criativamente estabelecida ao começo de Mt); mas
os apologetas cristãos dariam um passo audacioso nesse sentido.
O primeiro desses apologetas a ser examinado aqui é Teodoro
bar Konai, em seus Comentários (σχόλιον). Teodoro deve ter vivido
entre 780-823 d.C., ou seja, durante o patriarcado de Timóteo I130
, e
seus scholia fornecem material muito importante para a compreensão
de outras doutrinas ―concorrentes‖ ao cristianismo - entre as quais o
zoroastrismo.
Tal como modernamente organizado, vemos na passagem de
Teodoro um Zoroastro notavelmente semelhante a Jesus. Reunido
também com seus discípulos Gouštasp131
, Sāsan e Māhman (ou
Māh-i-man), inicia-se um diálogo interessante entre os quatro132
.
130
É a opinião consensual entre a maior parte dos estudiosos de bar Konai,
embora alguns o tenham identificado com outro personagem, um bispo do
séc.IX. 131
Gouštasp pode ser Vištasp, em função da troca do ―vi‖ inicial ―pelo ―gu‖,
a partir do séc.I d.C.; todavia, em Pahlavi , a similaridade dos traços pode
explicar também a troca devida a erros ou descuidos dos copistas. Cf. Franz
Cumont e Joseph Bidez. Les mages hellénisés. Zoroastre, Ostanès et
Hystaspe d‟après la tradition grecque. Paris: Belles Lettres, 2007. Na
reimpressão da edição de 1938, que é a citada e utilizada, o trecho encontra-
se no que era originalmente o tomo II, p.127, nota 2. 132
Os três personagens são mencionados com freqüência entre os primeiros
discípulos de Zoroastro, e encontra-se aqui novamente o tema da ―vinda do
grande rei‖ (do Oriente), e a associação (talvez análoga à de Is 53:2) do
Messias com uma ―grande árvore, impossível de desenraizar‖ - cf. Cumont e
Bidez, op.cit. p.127). Pode tratar-se aqui da ―árvore da vida”ou ―pilar
cósmico‖, tema comum nas grandes religiões do Oriente Próximo, mas talvez
seja uma referência mais específica à árvore do Bahman Yašt. Sāsan aparece
também na Caverna dos tesouros, com o nome de Sīsan; o texto da Caverna
é atribuído a Efraim (306-373), mas na forma em que chegou até nós não
deve ser anterior ao séc.VI d.C.. Cf. a edição da Caverna, Ernest W. Budge.
The Book of the Cave of Treasures. London: The Religious Tract Society,
1927.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
239
Gouštasp pergunta a Zaradušt quem é maior, o Messias ou o
próprio Zoroastro responde que o Messias virá de sua linhagem, de
sua família (aqui Teodoro pode estar mal-interpretando - ou
interpretando bem demais - a tradição segundo a qual os
ensinamentos dos magoi eram transmitidos de pai para filho,
literalmente). ―Ele sou eu, e ele é [mim]. Eu estou nele, e ele em
mim‖.
A semelhança com o Saošyant, onde a transmissão também
é, ao seu modo, biológica, é notável - o Messias zoroástrico virá ao
mundo após uma virgem banhar-se no lago Kasaoya, onde o
esperma de Zoroastro foi, miraculosamente, preservado, e será
fecundada desse modo. Assim, temos ao mesmo tempo uma
linhagem biológica e a manutenção da virgindade da ―mãe‖ do
Messias.
Prosseguindo na análise do texto de Teodoro, Zaradušt é
portanto um avatar de Jesus. O tema encontra eco não apenas em
Lc 21:25 mas, em termos mais amplos, na tradição sibilina e na
propaganda mitradaica também. A passagem termina com uma
exortação típica da literatura apocalíptica: o topos segundo o qual
os três discípulos devem ―guardar‖ em seus corações o que
ouviram (semitismo? O ―coração‖ era tido por outros autores
apocalípticos como o locus do pensamento; p.ex. TestPatr,
Test12Jud 13:2; também como sede do desejo em Test12Rub 3:6;
ApAbr 23:30; como órgão ligado à função do intelecto em Jub
12:20 e, finalmente, como ligado à função volitiva em 1En 91:4 e
Jb 1:15133
).
Teodoro encerra essas palavras foram proferidas pelo ―segundo
Balaão‖. Ao referir-se a Zaradušt como um ―homem do vulgo‖,
133
Para uma discussão aprofundada da relação entre órgãos e funções na
apocalíptica, cf. David S Russell. The Method and Message of Jewish
Apocalyptic. Philadelphia: The Westminster Press, 1964. Pp. 142 ss..
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
240
Teodoro acreditava que Zoroastro fosse de origem judaica, como o
Livro da abelha faz o mesmo (37 - ―Profecia de Zârâdôsht acerca de
Nosso Senhor‖)134
:
Gûshnâsâph lhe disse, ‗O que tem de poder, esse de quem
falas? Ele é maior do que ti, ou és maior do que ele?‘
Zârâdôsht lhe respondeu, ‗Ele descenderá de minha família;
eu sou ele, e ele sou eu; ele está em mim, e eu nele. Quando
Sua aparição tiver começo, sinais prodigiosos aparição no
Céu, e sua luz superará a do Sol135
. Mas vós, nascidos da
semente da vida, que viestes dos tesouros da vida, da luz e
do espírito, e fostes plantados na terra de fogo e água, a vós
cabe esperar a Sua vinda e guardar estas coisas de que vos
falo, para que aguardeis a Sua vinda; pois sereis os
primeiros a notar a vinda do grande rei136
, que libertará os
134
Bidez e Cumont, op.cit. p.129. O Livro da abelha, em 55 capítulos, é de
autoria de Salomão de Akhlat (1222). Como a Caverna, o Livro da abelha
discute uma variedade de temas teológicos ligando o AT ao NT, mas revela
grande preocupação com a genealogia de Jesus e com o Juízo Final (os
mesmos temas presentes no uso de Zoroastro por Teodoro bar Konai). Para
os interessados, cf. a edição (relativamente) moderna de Ernest W. Budge.
The Book of the Bees. Oxford: Clarendon Press, 1886. O ―Prefácio‖ trata da
analogia entre a atividade das abelhas com a base ―de cera‖ que se deve
estabelecer para o estudo das Escrituras - sem indagar de menos, mas
tampouco em excesso, para ―não saciar-se mel até o vômito‖ (remissão a Pr
25:16). 135
No OH, cf. especialmente a passagem de Lactâncio nas Instituições
divinas 7: DI 7: [...] naquele tempo o Filho de Deus será enviado pelo Pai,
para destruir os perversos e libertar os pios [...] essas coisas são verdadeiras
e certas, tendo sido anunciadas unanimemente por todos os profetas, já que
Trimegisto, Hystaspes e as Sibilas anunciaram, todos, as mesmas coisas‖; cf.
ainda Lc 21:8-19, Mt 24:4-8 e Mc 13:5-13. 136
O ―grande rei‖ pode ser entendido, nesse contexto, como o rei persa, dada
a proveniência de Zoroastro - e o fato de Teodoro bar Konai estar
familiarizado com os temas padrão da patrística oriental, grega - cf. entre
muitos outros exemplos possíveis Tucídides, História da Guerra do
Peloponeso 1.110 e a propaganda mitradaica em geral. O Oráculo de
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
241
prisioneiros137
. Agora, meus filhos138
, guardai este segredo
que vos revelei, e que seja guardado nos cofres139
de vossas
almas. E quando surgir a estrela de que vos falei, enviai
embaixadores com oferendas [vossas], e oferecei-lhas em
culto140
. Olhai, observai, e não O desprezei, para que Ele
não vos destrua pela espada141
; pois ele é o rei dos reis, e
todos os reis dele recebem suas coroas. Ele e eu somos um
[só]‘. Essas foram as coisas ditas por esse segundo Balaão e
Deus, segundo o Seu costume, compeliu-o a interpretar
essas coisas; ou ele nasceu de um povo acostumado às
profecias relativas a Nosso Senhor Jesus Cristo, e declarou-
as antes do tempo. [grifos meus]
Além de todos os temas relacionados nas notas à passagem
acima, outro salta aos olhos como elemento comum à ―profecia‖ de
Zoroastro e outros usos de personagens pagãos para ―confirmar‖ a
verdade do Evangelho e a iminência da Parusia. Trata-se da passagem
final em que Teodoro afirma ser ―costume‖ de Deus ―compelir‖ à
profecia - exemplos desse tipo poderiam ser encontrados no AT (p.ex.
Jr 1:4; 4:19), mas os paralelos com a Sibila mostram-se mais
evidentes. OrSib 2:1-5 faz a Sibila dizer que142
Quando Deus parou minha canção perfeitamente sábia,
Hystaspes também faz amplo uso do tema. Todavia, ao final do texto
Teodoro afirma que Zoroastro era judeu, o que torna a interpretação da
passagem difícil. 137
Cf. Jo 8:36; Lc 12:58 ss. e Mt 5:25-26. Algo da discussão sobre ―quem é
mais forte‖ pode ser um eco de Lc 9:46 e Mt 18:1-5. 138
Cf. nota abaixo. 139
Lit., ―casas de tesouros‖ - alusão à Caverna? 140
Referência ao tema dos reis magos. 141
Mt 10:34 e Lc 2:35. 142
Para os Oráculos sibilinos utilizei a edição de John J. Collins in: James
H. Charlesworth (ed.). The Old Testament Pseudepigrapha. New York:
Doubleday, 1983-1985. Vol.1 comparada com o texto grego estabelecido em
Alfons Kurfess. Sibyllinische Weissagungen. München: Heimeren, 1951.
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242
conforme [eu] rezava por muitas coisas,
Ele novamente colocou em meu peito
o delicioso proferimento de palavras maravilhosas.
Falarei do seguinte com todo o meu ser em êxtase
Pois [eu] não sei o que dizer, mas Deus me inspira cada
coisa falada.
A passagem enfatiza o caráter compulsório da inspiração da
Sibila, embora também revele um certo ―deleite‖ por parte do
visionário. Em contraste direto com esse tipo de experiência temos
OrSib 2:340; 3:1-7; 11:315-324, 13:1 e por fim, o fragmento 8 é muito
curto mas cheio de indicações do processo de indução extática por
parte do visionário143
, com a indagação a Deus da razão do dom
profético ser impingido à Sibila:
A [Sibila] eritréia, então, a Deus: ‗Por quê‘, diz ela, ‗ó
Mestre,infliges a compulsão da profecia sobre mim144
e não
me proteges, erguida sobre a Terra, até o dia de Vossa mui
bendita vinda?‘
Em comum, todas essas passagens sibilinas atribuem a Deus o
dom da profecia e o expõem como algo compulsório - exatamente
como ocorre com Zoroastro ao final da passagem de Teodoro bar
Konai.
A passage de Teodoro bar Konai relaciona-se, de modo
surpreendente, com uma homilia pertencente à Coleção Mingana de
mss., bem mais tardio. Trata-se do ms. Mingana 142, ff.48-61,
143
Sabemos bem pouco desse fragmento, encontrado no Discurso aos santos
de Constantino (de datação incerta, composição original em latim e teor
―popularesco‖). Dado o caráter tão ―franco e aberto‖ da passage, é realmente
uma pena termos somente este fragmento - que de algum mode parece
relacionar-se a OrSib 3:1-5 and 296. 144
Evidência bem escassa, mas que merece a citação por extenso: ―i¿dein me lo/gon ke/letai me/gan‖.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
243
atualmente em Birmingham. O manuscrito está em árabe registrado
em caracteres siríacos (Garshūni); ele oferece uma discussão paralela
entre Jesus e Zoroastro na qual os ―erros‖ do zoroastrismo são
expostos. A homilia, redigida em letra clara, encontra-se na escrita
siríaca ocidental (Serṭā)145
, e desenvolve de modo surpreendente
alguns dos aspectos encontrados no texto de Teodoro bar Konai.
O texto ―denuncia‖ a diferença entre os milagres realizados
pelo Deus verdadeiro e os milagres ―falsos‖ de outros. Também
encontram-se nele citações de Aristóteles (que devem ser
interpolações tardias, supondo que o autor do ms. Mingana
conhecesse os scholia de Teodoro), e fala-se do deus cultuado até a
vinda de Cristo, 146 ܒܝܕܐܪܛܘܣ.
No fol. 59a encontra-se um novo diálogo entre Zoroastro e seus
discípulos:
Esse Zardasht disse a seus discípulos: ‗Quem não comer do
meu corpo nem beber do meu sangue, de modo a que eu me
misture a ele e ele a mim, esse não terá salvação [...]‘ Mas o
Cristo disse a seus discípulos: ‗Quem comer o meu corpo e
beber o meu sangue terá a vida eterna‘.
Tal como Teodoro bar Konai, o autor da homilia conhecia a
tradição segundo a qual atribui-se ao banquete mitraico a fundação
145
Alphonse Mingana. Catalogue of the Mingana Collection of
Manuscripts now in the Possession of the Trustees of the Woodbrooke
Stettlement, Selly Oak, Birmingham. Vol.1. Syriac and Garshūni
Manuscripts. Cambridge: W. Heffer and Sons, 1933. Pp.323-324. O ms.
deve ter sido confeccionado em torno de 1690. 146
Idem, p.323.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
244
por Zoroastro147
; lamentavelmente o final do ms. Mingana 142 B
encontra-se incompleto.
O sacerdote mitraico, ao vestir a pele do touro sacrificado,
poderia adquirir suas qualidades vitais - e desde os princípios do
cristianismo isso foi interpretado como uma paródia satânica da
comunhão. Justino, o Mártir e Tertuliano já falavam do mitraísmo
nesses termos148
. Efetivamente, existe um paralelo entre a
―reutilização‖ da pele de um boi ou touro e a imortalidade, ou a
comunicação com o mundo dos mortos149
. A associação com o
―banquete‖ cristão, i.e. a participação do fiel na imortalidade de Cristo
mediante a comunhão é quase inevitável; o touro forneceria apenas
um aspecto da ligação.
O surpreendente é a ligação, estabelecida em algum momento
entre o texto de Teodoro e o ms. Mingana, com relação à promessa de
imortalidade e o fogo, ambos relacionados à figura de Zoroastro. O
culto ao fogo estaria ligado a vários aspectos possíveis da
imortalidade:
Em primeiro lugar, à lenda segundo a qual Zoroastro ainda
criança teria pulado numa fogueira e saído incólume (possível
embelezamento de uma prática de ordálio). Assim, no Livro de
147
Franz Cumont. Un bas-relief mithriaque du Louvre In: Revue
Archéologique 25, 1946. P.193. 148
Respectivamente, na Apologia 1.60 e em De Praescriptione
Haereticorum 40. 149
Carlo Ginzburg. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. Pp.37 ss.; o autor mostra como o tema tem sido
continuamente estudado desde Benveniste. Para a especificidade do tema
com relação ao mitraísmo, cf. Monuments relatifs aux mystères de
Mithra. Tome I, p.186, e Cumont, op.cit. p.185 para a associação do touro
mitraico com o touro primordial [do zoroastrismo, suponho, uma vez que
Cumont não se detêm no ponto].
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
245
Zoroastro 8 (Zarâtusht Nâma, em persa): trata-se do ―terceiro
milagre‖ realizado por Zoroastro150
:
Vendo-se com problemas, os feiticeiros tomaram Zarâtusht
de seu pai. Foram para o deserto, onde juntaram uma
montanha de madeira, que empaparam de betume negro e
de enxofre amarelo. Tendo acendido a chama gigantesca,
jogaram Zarâtusht. Mas por ordem do Deus Vitorioso [um
dos epítetos de Ahuramazda], não lhe ocorreu qualquer
mal; para ele, as chamas ardentes fizeram-se doces como a
água, e ele dormiu no meio delas151
.
Em segundo lugar, à apropriação das qualidades do animal
sacrificado que, ressuscitado mediante a entrada de um sacerdote
dentro de sua pele (ritual xamanístico típico, no qual o xamã
―renasce‖ ou entra em contato com o mundo dos mortos)152
.
Em terceiro lugar: tanto Teodoro bar Konai quanto o autor
anônimo de nossa homilia do ms. Mingana empenham-se em
distinguir a vitória sobre a morte obtida tanto por Zoroastro quanto
por Jesus; mas não conseguem livrar-se da tradição, que devia ser
comum na cristandade oriental, que associava os dois líderes
religiosos.
150
A edição utilizada para este artigo é a de Frederic Rosenberg. Le Livre de
Zoroastre, Zarâtusht Nâma: De Zartusht-I Bahram Ben Padju. S.
Petersburgo: Académie Impériale dês Sciences, 1904. P.12. 151
O paralelo com os três jovens na fornalha em Dn 3 é inevitável; nos dois
casos, pelo fato das histórias ambientarem-se entre persas não há como evitar
a associação com alguma forma de ordálio. O tema do Juízo Final pelo fogo é
corrente no NT e na literatura persa (Seleções de Zâd-Sparam 16.8. Dinkart
7.8. Nas Seleções a ordem de apresentação dos milagres é ligeiramente
diferente). A passagem mais óbvia é a Bundahišn 30.18. 152
Mircea Eliade. Shamanism. Archaic Techniques of Ecstasy. London:
Penguin, 1989. Pp.32-33; 93; 107-108 e principalmente pp.375-427.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
246
Em suma, os usos que Teodoro bar Konai e o autor anônimo da
homilia do ms. Mingana 142B fazem são bastante semelhantes entre
si: o que salta aos olhos nesse ms. pseudo-zoroástrico é que a refeição
―sagrada‖ não é tratada como paródia, mas levada à sério num
contexto que envolve talvez outros ―filósofos‖ pagãos que
―predisseram‖ a vinda de Jesus.
Entre eles, obviamente, encontra-se Zoroastro.
Uma retrospectiva desses ―filósofos cristãos‖ avant la lettre
encontra-se noutro ms. da coleção Mingana, o 481B. Mas isso é tema
para uma discussão própria, a ser feita noutro artigo ou capítulo153
.
De todo modo, a apropriação crista parece dever mais à
traditional leitura helenizante do Oriente como espaço do inusitado,
do grotesco ou do diferente154
e ao ―orgulhoso monoligüismo‖ dos
gregos155
do que ao desejo de combater o zoroastrismo como doutrina
rival; ao mesmo tempo, convém não esquecer que, não obstante os
usos feitos por Teodoro e pelo autor anônimo de nossa homilia, a
semelhança evidente com os Evangelhos, por um lado, e com
153
O ms. 481B expõe, nos ff.221b-225b ―uma coleção de ditos de filósofos
pagãos acerca da vinda de Cristo. Em Garshūni‖ (Mingana, op.cit. p.889. Os
filósofos citados (seguidos de seus nomes em Garshūni, que não repito aqui
por razões de ordem prática são: ―(a) Hermes, (b) [nome não-identificado],
(c) Archias (?), (d) Eriphus, (e) Platão, (f) Aristóteles, (g) Íon (?), (h) [nome
não-identificado], (i) [nome não-identificado], (j) Zoroastro‖. Embora não
tenha data, o ms. 481B apresenta muitas características em comum com o
142B, incluindo as marcações freqüentes em vermelho e uma curiosidade -
ao final do texto, ficamos sabendo que, nas margens largas há notas sobre o
―cliente‖ que encomendou a cópia e pagou por ela 2 rīyâls‖. É bom lembrar
que os nomes ―não-identificados‖ estão em escrita legível e bonita, em Serṭā. 154
Diógenes Laércio. Vidas dos filósofos ilustres, 1. 155
Arnaldo Momigliano. Essays in Ancient and Modern Historiography.
Middletown: Wesleyan University Press, 1987. Pp.12-13.
Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ
247
episódios da vida de Zoroastro tal como narrados em fontes persas não
podem ser ignorados.
Nisso tudo, os elos fundamentais na transmissao da idéia da
―paródia‖ da refeição sagrada podem ter sido Justino e Tertuliano.
Um dos problemas mais sérios e que levou a discussões mais
graves entre os iranólogos é precisamente o da datação das fontes.
Amiúde essa discussão resume-se ao questionamento da data deste ou
daquele ms.156
; isso é ma metodologia, em minha opinião. Ninguém
usaria o mesmo argumento para datar, digamos, Josefo (cujos mss.
mais recentes são dos sécs.X-XI); portanto, a sobrevivência da
historieta pseudo-zoroástrica mostra uma notável continuidade entre
os temas tradicionais da hagiografia referente ao próprio Zoroastro e
um ms. do séc.XVII para o qual o paralelo mais próximo, até onde sei,
é o texto do séc.VII de Teodoro bar Konai.
O papel de Zoroastro na difusão e compreensão do cristianismo
no Oriente pode ter durado muito mais do que se imagina, e
certamente muito mais do que o zoroastrismo durou como religião de
Estado.
156
Philippe Gignoux. L’apocalyptique iranienne est-elle vraiment la
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