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Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia Sid Nazareno da Costa Quaresma Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria e a ilha de Cotijuba (1932-1976) Belém PA 2017

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Universidade do Estado do Pará

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado

Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

Sid Nazareno da Costa Quaresma

Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria

e a ilha de Cotijuba (1932-1976)

Belém – PA

2017

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Sid Nazareno da Costa Quaresma

Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria

e a ilha de Cotijuba (1932-1976)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.

Área de Concentração: História da Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Maria do Perpétuo Socorro Gomes de

Souza Avelino de França.

Belém

2017

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Dados internacionais da catalogação na publicação (CIP),

Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA, Belém-Pa.

_____________________________________________________________________

QUARESMA, Sid Nazareno da Costa.

Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria e a ilha de Cotijuba

(1932-1976) / Sid Nazareno da Costa Quaresma; Orientadora Maria do Perpétuo Socorro

Gomes de Souza Avelino de França. _ Belém: [s.n.], 2017. 149 f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Pará, 2017.

1. Educação. 2. Educandário Nogueira de Faria. 3. Ilha de Cotijuba. 4. Memória. I. Quaresma,

Sid Nazareno da Costa. II. Título.

________________________________________________________________________

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Sid Nazareno da Costa Quaresma

Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria

e a ilha de Cotijuba (1932-1976)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.

Área de Concentração: História da Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Maria do Perpétuo Socorro Gomes de

Souza Avelino de França.

Data de aprovação: 10/02/2017

Banca Examinadora:

____________________________________ - Orientadora

Profª Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França Drª em Educação

Universidade do Estado do Pará

____________________________________ - Examinadora

Profª Denise de Souza Simões Rodrigues Drª em Sociologia

Universidade do Estado do Pará

____________________________________ - Examinadora

Profª Josebel Akel Fares Drª em Comunicação e Semiótica

Universidade do Estado do Pará

____________________________________ - Examinadora Externa

Prof. Maricilde Oliveira Coelho Drª em Educação

Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará

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Dedicado aos moradores da ilha de Cotijuba, especialmente aos estudantes e a todos aqueles

que guardam dentro de si os acontecimentos que constituíram o extraordinário passado desse

belo lugar. Dedicado igualmente à memória de todos os que padeceram os horrores do

reformatório e do presídio que pouco tempo atrás existiram na ilha.

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AGRADECIMENTOS

Sou grato, em primeiro lugar, aos meus pais, especialmente a minha mãe, Dina Costa, pelo

apoio essencial sem o qual não teria chegado tão longe. Estendo a gratidão aos meus irmãos,

Hugo, Naisa e Kadu, além de meu padrasto, Ubiraci, pois todos, de algum modo, com seu

tempo, sua paciência ou sua boa vontade, tornaram mais vigorosos os traços da minha escrita.

Sou grato a minha esposa Carline Ramos Quaresma pelos vários momentos de escuta, sempre

em primeira mão, pela atenção crítica, pelo carinho e apoio. Graças a ela, meus garranchos e

minha prosa braba ganharam em delicadeza e poesia.

Agradeço as minhas filhas, Karina e Adely, pelo simples e belo existir, por estarem ao meu

lado e até, pela atenção que os filhos sempre requererem, me tirarem da prospecção científica

e me devolverem ao mundo imediato, coisa que, na hora, não gostei, mas cujo valor

reconheço ser inestimável.

Sou grato aos meus amigos do meio acadêmico, os quais hoje, aliás, estão próximos de mim

para muito além desse pequeno mundo. Renata Costa, Elayne Santos, Francídio Abatte: vocês

moram em meu coração (e também em meu estômago), com vocês compartilhei muito do que

penso, escrevo e acredito, seja entre as paredes da universidade ou em meio à gostosa

vertigem das noites e dias ébrios.

Sou grato aos amigos do trabalho no meio insular, entre os quais fui engendrando a ideia que

um dia se transformaria em pesquisa, especialmente à Eli Pinheiro, Batista Moraes e Silvana

Farias.

Sou especialmente grato à Professora Socorro França, minha orientadora, pela paciência com

que tolerou e entendeu meu ritmo de pesquisa, além da tranquilidade com que partilhava sua

ampla experiência de pesquisadora.

Agradeço às professoras Denise Rodrigues, Josebel Fares e Maricilde Coelho, por aceitarem

compor minha banca de avaliação e pelas contribuições ao meu trabalho.

Agradeço aos que concederam depoimentos à pesquisa, sobretudo ao senhor Raimundo Oito,

homem de memória invejável, cujo relato de vida foi essencial aos caminhos pelos quais

conduzimos a investigação.

Sou grato aos moradores da ilha de Cotijuba, particularmente aos estudantes e aos amigos

Adriana Lima e Delso Conceição, além dos membros do Movimento de Mulheres, boas

gentes de quem, faz tempo, sou parceiro e a quem devo uma parte das descobertas da

pesquisa.

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Por fim, agradeço aos colegas e pesquisadores do Grupo de Pesquisa História da Educação na

Amazônia, pelo espaço aberto e pela confiança. E à Professora Ivanilde Apoluceno, docente

exemplar, mestra maior da minha trajetória acadêmica, pelos muitos anos de aprendizagem,

desde à graduação iniciada em 2002.

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Cotijuba,

sentinela da meiga e gentil Belém.

És a fonte, amiga e bela

de um sonho de fazer bem.

(Trecho do Hino da ilha de Cotijuba. Autor desconhecido.)

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RESUMO

QUARESMA, Sid Nazareno da Costa. Memorial da ilha da redenção: o Educandário

Nogueira de Faria e a ilha de Cotijuba (1932-1976). 2017. Dissertação (Mestrado em

Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2017.

A presente pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado),

da Universidade do Estado do Pará, compondo a linha de pesquisa Saberes Culturais e

Educação na Amazônia, mais especificamente a linha Instituições Educativas, Intelectuais e

Impressos do Grupo de Pesquisa em História da Educação na Amazônia (GHEDA). Trata-se

de um estudo histórico relativo a uma instituição educativa – o Educandário Nogueira de

Faria, criado no início da década de 1930 pelo governo chefiado por Magalhães Barata no

Pará –, com foco sobretudo na relação entre essa instituição e o lugar onde foi construída, a

saber, a ilha de Cotijuba, sita à região insular do município de Belém (PA). A problemática

fundamental do estudo é a seguinte: de que maneira o Educandário Nogueira de Faria, criado

durante a primeira Interventoria de Magalhães Barata no governo do Pará, com objetivo de

educar menores carentes e abandonados na ilha de Cotijuba, fez emergir as memórias

redentora e diabólica para a respectiva ilha, entre as décadas de 1930 e 1970? O objetivo geral

é: analisar de que maneira o Educandário Nogueira de Faria, criado durante a primeira

Interventoria de Magalhães Barata no governo do Pará (1930-1935), com objetivo de educar

menores carentes e abandonados na ilha de Cotijuba, fez emergir as memórias redentora e

diabólica para a respectiva ilha, entre as décadas de 1930 e 1970. E os objetivos específicos

são: caracterizar a educação oferecida pelo Educandário Nogueira de Faria; explicar a postura

protetora de Raimundo Santos a propósito da ilha de Cotijuba e do Educandário Nogueira de

Faria; contextualizar historicamente o momento da implantação do Educandário Nogueira de

Faria e sumariar a presença da ilha de Cotijuba em referenciais historiográficos locais.

Metodologicamente, caracteriza-se pela análise histórica, apoiada em fontes documentais e

memoriais, de abordagem qualitativa. Dentre as fontes documentais, as principais são:

mensagens de governo à Assembleia Legislativa (anos 1936, 1937, 1948, 1954, 1955, 1956 e

1957), além dos jornais impressos “O Imparcial” e “Folha do Norte” (1932 e 1933), a

Província do Pará (1947, 1948 e 1975) e “O Liberal” (1976). O lócus da pesquisa em história

oral foi a própria ilha de Cotijuba, onde colhemos depoimentos de três sujeitos, Raimundo

Santos, Dona Eliete e Seu Ceará. Além desses, aproveitamos depoimentos orais que constam

no filme documentário “Cotijuba: a ilha do diabo?”. Interpretamos as fontes considerando,

entre outros, os seguintes referenciais teóricos: a Nova História e Nova História Cultural

(Burke), a Micro-história (Levi e Ginzburg), a noção de Memória (Le Goff,), particularmente

de disputas da memória (Pollack), os conceitos de história oral (Thompson) instituição

educativa (Sanfelice), além da ideia de redenção (Faria). Dentre os resultados da pesquisa,

tem maior importância: a caracterização da educação oferecida pelo Educandário Nogueira de

Faria, oferecida nas modalidades elementar e técnica, funcionando em regime de internato,

bem como a descrição e análise da conformação de posturas positivas e negativas

relacionadas à ilha de Cotijuba em decorrência da implantação do reformatório e, mais tarde,

de uma colônia penal. Outra contribuição da pesquisa foi ajudar na perenização das memórias

da ilha da redenção e da ilha do diabo, ameaçadas de perecer no esquecimento pela alteração

da forma de ocupação da ilha de Cotijuba pós desinstalação das instituições reformatória e

penal.

Palavras-chave: Educação. Educandário Nogueira de Faria. Ilha de Cotijuba. Memória.

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ABSTRACT

QUARESMA, Sid Nazareno da Costa. Memorial of the redemption island: the Primary

School Nogueira de Faria and the Cotijuba island (1932-1976). 2017. Thesis (MA in

Education) – University of Pará, Belém, 2017.

This research is linked to the Postgraduate Program in Education (Master’s degree), of the

Universidade do Estado do Pará, composing the line of research Cultural Knowledge and

Education in the Amazon, more specifically the Educational, Intellectual Institutions and

Handouts from the Research Group on History of Education in the Amazon (GHEDA). It is a

historical study related to an educational institution – the Primary School Nogueira de Faria,

created in the early 1930s by the government headed by Magalhaes Barata in Pará –, Focusing

mainly on the relationship between this institution and the place where it was built, namely,

the island of Cotijuba, located in the insular region of the municipality of Belém (PA). The

fundamental problem of the study is the following: How did the Primary School Nogueira de

Faria, created during the first Interpellation of Magalhães Barata in the government of Pará,

with the aim of educating destitute and abandoned children in the island of Cotijuba, bring the

redemptive and diabolical memories to the island between the 1930s and the 1970s? The

overall objective is: to analyze how the Primary School Nogueira de Faria, created during the

first Magalhães Barata Interventory on the government of Pará (1930-1935), with the aim of

educating destitute and abandoned children to the island between the 1930s and the 1970s.

Methodologically, it is characterized by historical analysis, supported by documentary sources

and memorials, with a qualitative approach. Among the documentary sources, the main ones

are: government messages to the Legislative Assembly (1936, 1937, 1948, 1954, 1955, 1956

and 1957), as well as the printed newspapers "O Imparcial" and "Folha do Norte" (1932 and

1933), “a Província do Pará” (1947, 1948 and 1975) and “O Liberal” (1976). The locus of the

research in oral history was the island of Cotijuba itself, where we collected testimonies of

three subjects, Raimundo Santos, Dona Eliete and sir Ceará. Besides these, we take oral

testimonies that are included in the documentary film "Cotijuba: a ilha do diabo?" (Cotijuba:

devil's island?). We interpret the sources by considering, among others, the following

theoretical references: New History and New Cultural History (Burke), Microhistory (Levi

and Ginzburg), the notion of Memory (Le Goff), particularly memory disputes Pollack),

concepts of oral history (Thompson) educational institution (Sanfelice), in addition to the idea

of redemption (Faria). Among the results of the research, it is more important: the

characterization of the education offered by the Primary School Nogueira de Faria, offered in

the elementary and technical modalities, functioning as boarding school, as well as the

description and analysis of the conformation of positive and negative postures related to the

island of Cotijuba due to the implantation of the reformatory and, later, of a penal colony.

Another contribution of the research was to help in the perpetuation of the memories of the

island of redemption and the island of the devil, threatened to perish in oblivion by the change

of the form of occupation of the island of Cotijuba after uninstallation of the reformatory and

penal institutions.

Keywords: Education. Primary School Nogueira de Faria. Island of Cotijuba. Memory

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01: ENSEADA DA PRAIA DO VAI-QUEM-QUER.......................................... 13

FIGURA 02: CHEGADA PELO TRAPICHE DE COTIJUBA ........................................ 14

FIGURA 03: PLACA MUNICIPAL ..................................................................................... 15

FIGURA 04: FACE LATERAL DAS RUÍNAS DO EDUCANDÁRIO ............................ 16

FIGURA 05: MAPA DE BELÉM ......................................................................................... 38

FIGURA 06: NOTÍCIA DO JORNAL A PROVÍNCIA DO PARÁ .................................. 95

FIGURA 07: ROTA DO MOTIM E DA FUGA ................................................................ 123

FIGURA 08: NOTÍCIA SOBRE A CAÇADA HUMANA EM BARCARENA ............. 125

FIGURA 09: DETALHE DA NOTÍCIA DE RECAPTURA DE CLÉSIO E BAIANO.126

FIGURA 10: NOTA DE CAPA ........................................................................................... 127

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SUMÁRIO

1 Introdução ........................................................................................................................... 12

1.1 Veredas do pesquisar .........................................................................................................12

1.2 Delineamento teórico e metodológico .............................................................................. 23

1.3 As seções da dissertação ................................................................................................... 34

2 Panorama geográfico e histórico sobre a ilha de Cotijuba e contextualização do

período de implantação do Educandário Nogueira de Faria ...................................... 36

2.1 A ilha de Cotijuba: caracterização geográfica .................................................................. 36

2.2 Sobre o contexto atual ....................................................................................................... 39

2.3 A ilha de Cotijuba: breve cenário histórico ...................................................................... 44

2.4 O Contexto Histórico de Criação do Educandário Nogueira de Faria: a Segunda República

(1930-1934), Primeira Interventoria de Magalhães Barata ............................................... 54

3 Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria e a ilha de

Cotijuba ............................................................................................................................ 68

3.1 O ingresso de Raimundo Santos no Educandário Nogueira de Faria ............................... 68

3.2 Características da educação oferecida no Educandário Nogueira de Faria ........................74

3.3 A ilha da redenção da juventude desvalida ....................................................................... 83

3.3.1 A campanha cívica em favor da Colônia Reformatória de Cotijuba ........................... 86

3.3.2 A atividade de Nogueira de Faria e Moura Carvalho .................................................. 91

4 Memorial da ilha do diabo ........................................................................................... 100

4.1 Literatura de cárcere: duas célebres narrativas sobre prisões em ilhas ........................... 101

4.2 Histórias da ilha do diabo ................................................................................................ 113

4.3 O caso Teodorico Rodrigues ........................................................................................... 117

5 Considerações Finais ........................................................................................................ 130

Fontes ................................................................................................................................... 134

Referências ........................................................................................................................... 137

Anexo I – Roteiro de entrevistas......................................................................................... 141

Anexo II – Termos de Cessão Gratuita de Direitos Sobre Depoimento

Oral........................................................................................................................................ 144

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1 Introdução

1.1 Veredas do pesquisar

A inquietação original que engendrou o moroso processo de pesquisa, cujo relatório

final expomos agora às luzes dos interessados, foi a percepção do lugar que a ilha de Cotijuba

ocupou, e de certo modo ainda ocupa, na imaginação coletiva local. Mais especificamente: foi

na ciência de que a imagem macabra, objetivada em epítetos malditos – a ilha do diabo, a ilha

do inferno, a ilha-presídio –, está associada à existência de duas instituições instaladas na ilha

de Cotijuba, nascidas e mortas no século XX.

Uma delas tem especial interesse do ponto de vista de um trabalho em História da

Educação: o Educandário Nogueira de Faria, espécie de reformatório isolado inaugurado no

início da década de 1930, durante a primeira Interventoria do coronel Magalhães Barata no

Pará. Trata-se de uma instituição educativa, que funcionava em regime de internato e estava

destinada ao acolhimento e tratamento de menores de 12 a 21 anos, considerados abandonados

ou deliquentes. Na prática, uma prisão juvenil, da qual os jovens tinham horror e queriam

máxima distância.

O segundo estabelecimento público instalado na ínsula, conquanto não seja uma

instituição de caráter marcadamente educativo, possuía finalidade congênere. A colônia penal

foi criada em tempos da segunda Interventoria de Magalhães Barata, em 1945, quando um

aficionado pelo tema carcerário – o também militar Moura Carvalho –, exercia o cargo máximo

da segurança pública no estado. Batizada inicialmente como Instituto de Reeducação Social,

dedicou-se, de início, ao tratamento dos presos de correção, ou de menor periculosidade, ou

mesmo a sujeitos considerados então como vagabundos ou vadios. Funcionava em regime de

colônia agrícola e apostava na terapêutica do trabalho. Logo, no entanto, a instituição

degenerou, e passou a abrigar levas de presos de todo gênero, convertendo-se no lugar onde se

amiudaram os abusos policiais, os casos de violência, as fugas perigosas e as perseguições

implacáveis. Casos mais graves ou ousados disseminaram-se em miríades de histórias que

repercutiam pelas várias camadas da população de Belém, vindo a se cristalizar em vultuoso

legendário.

A bem da verdade, esse legendário macabro já vinha se configurando desde os tempos

iniciais do Educandário, afinal tratava-se este de um reformatório, local para recolhimento –

forçado o mais das vezes – de menores tidos como indesejáveis. Os ecos desse grave passado

não deixaram de reverberar pela memória das gerações que o testemunharam, ou estiveram

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expostas às histórias que o repercutiram. Passadas várias décadas, essa memória ainda encontra

ocasião para se expandir, muito embora, naturalmente, sem a mesma força de outrora.

A origem mais remota do presente trabalho está, provavelmente, na inquietação

provocada pelo contato com os ecos desse passado curioso. Mesmo antes da experiência de

trabalho ou de residência na ilha, as histórias da “ilha do diabo” já me excitavam a curiosidade.

Porém, foi depois de me fixar na ilha de Cotijuba, na condição de educador vinculado à

fundação municipal Escola Bosque, e, mais tarde, como morador do lugar, que o extenso

memorial foi ganhando sentido e indicando veredas a uma pesquisa de mais fôlego.

Antes da prolongada experiência de educador, morador e pesquisador, eu havia

visitado Cotijuba na condição mais comum, isto é, como simples turista local sequioso de

diversão barata e fácil. O afluxo de hordas de turistas, aliás, vem alimentando a imagem de um

local exuberante e exótico, cujas delícias podem ser facilmente acessadas. E é deveras excitante

deixar a crueza urbana da capital e, após cinquenta minutos de travessia de barco, descortinar

um recanto paradisíaco, de natureza intensa e com uma magnífica faixa de praias de água doce

voltadas à maior de nossas baías, a de Marajó.

Figura 1 - A enseada da praia do Vai-Quem-Quer, banhada pela Baía de Marajó, um dos locais

mais apreciados pelos turistas.

Fonte: Karla Nogueira, 2015.

No entanto, mesmo ao passante desavisado e não raro ébrio, a ilha permite entrever

notáveis vestígios de seu grave passado, particularmente urticantes aos entusiastas da História.

Ao entrar ali, por exemplo, pelo único trapiche público, o visitante, de chofre, depara-se com

as monumentais ruínas de um prédio em estilo pretérito, cujas paredes principais, altas e

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robustas, mantem-se rígidas, e cujo piso e parte do revestimento ainda subsistem, embora toda

essa estrutura seja continuamente batida pelo rigor do clima, pois completamente descoberta.

O frontispício é de alto pé direito, tem portaria e andar superior. Estendem-se, para direita e

para esquerda, simétricas, as paredes da face do prédio, cada uma delas pontilhada por quinze

espaços vazados, outrora preenchidos por janelões regulares e idênticos. Há dois grandes

pavilhões, bastante amplos, no prédio principal, vestígios da antiga cozinha, além de outros

pavilhões menores por trás, com compartimentos anexos, restos de um poço, estrutura de caixa

d’água e chaminé. O desenho da construção é austero, regular e grandioso ao mesmo tempo. A

única informação ali disponível aparece numa placa da prefeitura: “Ruínas do Educandário

Nogueira de Faria”.

Figura 2 - A chegada pelo trapiche principal da ilha depara o viajante com as ruínas do Educandário Nogueira

de Faria.

Fonte: Karla Nogueira, 2015.

No exercício de minhas funções como educador, o contexto pedagógico foi induzindo a

novas indagações. Nas reuniões de planejamento, sobretudo, apareciam demandas por

informações sobre a conformação histórica da ilha, as quais pudessem subsidiar atividades

pedagógicas da escola. Esteve a meu encargo uma primeira recolha e socialização de dados

junto ao coletivo escolar. Minhas buscas, no entanto, de início foram pouco frutíferas. Vi porém

que a Cotijuba atual, afeita ao turismo e tida como paraíso natural, é uma construção

historicamente muito recente. A integração de Cotijuba à Belém, na condição de lócus de lazer

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e curtição, data de pouco mais de trinta anos, tendo-se intensificado a partir da década de 1990.

Vi que essa “descoberta” da ilha ocorrera após a desativação das colônias reformatória e penal.

Essas informações as recolhi dispersas aqui e ali, em jornais, em revistas, na internet.

A partir do ano de 2010, quando eu já me tornara o Coordenador Pedagógico do principal

dos anexos da Escola Bosque em Cotijuba (a Unidade Pedagógica da Faveira), a pesquisa

ganhou contornos mais nítidos. Passei então a organizar um projeto experimental de difusão e

debate de cinema, principalmente de filmes produzidos no Brasil, no contexto escolar e

comunitário. Esse projeto passou a vingar a partir da parceria entre o Movimento de Mulheres

das Ilhas (MMIB) e a Escola Bosque, e se valia da estrutura fornecida por uma política nacional

de valorização do cinema brasileiro, chamada Cine Mais Cultura (um programa de governo

promovido pelo Ministério da Cultura). A missão maior do projeto era possibilitar às

comunidades mais afastadas dos centros urbanos opções de acesso à arte cinematográfica,

através da disponibilização de estruturas de difusão e de acervos de filmes.

Figura 3 - Placa Municipal.

Fonte: Karla Nogueira, 2015.

Em 2012, as atividades de exibição foram encerradas, porém não sem antes

apresentarmos à escola e à comunidade, como o necessário resultado final, um filme

documentário em média-metragem totalmente produzido pelo coletivo ligado ao projeto. O

filme, realizado de modo artesanal e minguado de maiores recursos, por decisão unânime do

coletivo de estudantes, professores e comunitários ligados ao projeto, tematizou o aspecto mais

exótico da história do lugar, consubstanciado em seu próprio título: “Cotijuba: a ilha do diabo?”.

Devemos ao processo do documentário o contato com novos vestígios históricos, dessa vez

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materializados em testemunhos de pessoas residentes na própria ilha. A maioria desses

moradores relacionou-se de alguma forma com as instituições aí instaladas no século passado.

Os relatos apontaram a face Educandário como a primeira a ser extinta, e sugeriram que a

dimensão presídio ganhou contornos dilatados devido ao modo violento como se estruturou,

provavelmente estimulado pelo contexto de Ditadura Militar (1964-1983). As histórias da

última fase eram realmente impressionantes: relatavam episódios relacionados a um período

terrível da história local, a partir do qual a ilha consolidou o epíteto inaudito inscrito no título

do documentário.

Figura 4 - Vista da face direita das ruínas do Educandário.

Fonte: Karla Nogueira, 2015.

No emaranhado dos relatos recolhidos por ocasião do documentário, um singular

depoimento indicaria a vereda principal a ser trilhada pela pesquisa.

Como em muitos filmes do gênero cinema-verdade, naquele realizáramos horas de

gravação, principalmente com entrevistas. Porém, de todo o material bruto coletado, no corte

apresentado como resultado final, foram usados, como é de praxe, apenas fragmentos.

Concluído o processo de edição, remanesceu grande quantidade de material na forma de

depoimentos. Tal material instigou novas inquietações. A maior parte delas induzida por

determinado depoente, antigo morador da ilha de Cotijuba, em cujo relato as agitações do

período que pesquisávamos apareciam minimizadas. De nome Raimundo dos Santos, é ele mais

conhecido como Seu Raimundo Oito. Para estupefação geral, esse singular sujeito não endossou

o tema do filme, em sua opinião nada senão tristes episódios a enodar a trajetória de Cotijuba.

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Seu relato levou a um mergulho mais profundo na história do lugar e nos fez vislumbrar, um

tanto perplexos, a fisionomia mais antiga da ilha e da instituição que nela vicejou por tanto

tempo. No depoimento, esse senhor de tão fecunda memória, nos entreabriu um significado

bem distinto daquele inscrito nas histórias infernais relacionadas ao lugar – até então nossa

temática dominante –, sob o qual a ilha adquiria uma acepção profunda e positiva. A ilha do

diabo, nas palavras de Seu Raimundo Oito, transformava-se na ilha da redenção da juventude

desvalida, lugar de oportunidades, de educação, de moralidade e de ordem.

Raimundo Santos desenvolveu, por aquilo a que denominava “Colégio”, uma forte

empatia. Com efeito, sua trajetória de vida intercambia-se fortemente com a história da ilha e

do Educandário: aportara em Cotijuba no ano de 1943 – quando a instituição possuía pouco

mais de nove anos de existência – aos 14 anos, na condição de interno. A partir daí viveria todas

as fases da instituição, inclusive a aproximação do Educandário e da Colônia Penal (fim da

década de 1960) e a desativação do prédio (em 1979), permanecendo na ilha mesmo após esses

fatos. A fase de internato durou quatro anos (até que completasse 18), tendo Raimundo logo

evoluído para funcionário da instituição, no desempenho, ao longo de várias décadas, de

múltiplas funções, dentre elas almoxarife-provisionador, motorista e subdiretor. Em seus

primeiros tempos no Educandário foi marcante o acolhimento que recebeu de uma funcionária

da instituição, de nome Marta da Conceição, conhecida como Mãe Preta – ropeira do

Educandário, considerada grande protetora dos internos –, de quem provavelmente Seu

Raimundo proveu-se parcialmente dos cuidados maternos dos quais fora despojado muito cedo.

Nascera no município de Cametá, no ano de 1939. Tendo perdido os pais muito cedo, vivia

agregado a uma família em Belém. Submetido a maus tratos, procurou, por conta própria, a

polícia. Daí, foi remetido ao juizado de menores e, pouco depois, encaminhado ao reformatório

insular. Sujeito carismático, devotado ao trabalho, religioso, conselheiro dos internos (e mais

tarde dos detentos), recebeu a franca estima dos diretores e intendentes, com os quais manteve

proximidade e confiança, dentre eles o Desembargador Nogueira de Faria (na fase Educandário)

e o radialista e Tenente da Polícia Militar Teodorico Rodrigues (nos tempos da colônia penal).

O relato de Seu Raimundo Oito nos fez perceber, um pouco frustrados, a limitação do

recorte temático do filme, ao mesmo tempo em que indicou novo caminho a percorrer. Nesse

sentido, a presente pesquisa lhe é tributária em grande medida.

A mudança de campo expressivo – do cinema para a pesquisa científica –, queremos

enxergá-la, tanto quanto possível, como continuidade, como projeto integrado a incidir sobre o

mesmo objeto e suas várias faces.

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Devo a tal fase a conformação inicial de decisões que eu tomaria mais tarde, já no âmbito

acadêmico, após meu ingresso no Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado da

UEPA, em 2014, na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia, e da

participação no grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia (GHEDA). Algumas

dessas decisões, antes do ingresso na academia, talvez não estivessem tão claras. Porém,

difusamente eu sabia não querer uma simples história daquela instituição, de modo a tão

somente evidenciar, por exemplo, suas fases através do tempo, ou minuciar a ação dos seus

diretores, ou, ainda, descrever os estatutos, atas, ofícios ou outros documentos institucionais.

Minha pesquisa deveria, diferentemente, pagar o devido tributo ao modo como fui

mergulhando naquele universo.

Daí que a opção pela História Oral, como aparato metodológico da incursão pelo passado

da ilha e do Educandário, deve ser vista como escolha parida no âmbito acadêmico, porém

fecundada anteriormente, no campo, na vida, no cotidiano.

A verdade é que, por conta de tão singular postura – de rejeição do tema proposto –

Raimundo Santos quase não aparece no filme “Cotijuba: a ilha do diabo?”. Sua figura de

octogenário aparece apenas em dois momentos. No último deles, perto do final do filme, Seu

Raimundo canta um trecho do hino da ilha de Cotijuba – curiosa fonte apresentada a nós, de

maneira inesperada, na ocasião das filmagens. Antes disso, no emaranhado dos depoimentos,

ele faz uma magra conceção consessão ao tema do filme, com a seguinte afirmação: “Cotijuba,

lá fora – apenas lá fora! – nunca foi um lugar bom!”.

Tal afirmação aparece corroborada nas palavras de outro depoente do filme. Seu Nildo,

ex-policial militar, empregado durante alguns anos na Colônia Penal, afirmou que “Desde muito

tempo, quando um moleque fazia alguma coisa errada, se dizia ‘vou já te mandar pra Cotijuba!’,

aí o moleque já sossegava!”1.

Sendo Cotijuba considerada, em meios locais, lugar de má fama, é inquietante a postura

de Seu Raimundo. Ele não somente não endossa o famigerado legendário maldito sobre a ilha

de Cotijuba; ele deixou-se incorporar pelo universo instituído na ilha; ali se fez homem,

trabalhou, estabeleceu-se definitivamente. Com suas palavras protegia a instituição onde se

sentiu, por sua vez, acolhido e protegido. O modo como à ela submeteu-se – atentemos –, foi

contrário à tendência geral, que é a de partir, como no caso de qualquer internação compulsória,

fugir talvez. Tal tendência fica evidenciada no comentário de Seu Nildo: a juventude temia a

ilha, isso mesmo antes da implantação da Colônia Penal e do início de uma fase mais violenta.

1 Filme documentário “Cotijuba: a ilha do Diabo?”, 2012, Direção de Kid Quaresma.

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Seu Raimundo, no entanto, parece ter encontrado em Cotijuba e no Educandário ocasião para

dar vazão a suas demandas pessoais e desenvolver seus atributos. Condição a qual, até então,

levando uma vida sofrida e instável, havia-lhe sido negada.

História pessoal entrelaçada à história do Educandário: a trajetória de Seu Raimundo Oito

foi se tornando, cada vez mais, algo empolgante de se estudar – o homem, a instituição e o lugar

interdependentes, conformando, juntos, a unidade histórica. Pareceu-nos, de início, irresistível

procurar um problema de pesquisa no qual a trajetória desse homem, sobretudo em seus

aspectos formativos, constituísse o ponto crucial. Espécie de biografia na qual as escalas de

observação histórica – individual, local, global –, se arrumassem num esquema argumentativo.

No entanto, novas evidências descobertas no correr da pesquisa fizeram alterar o foco do

interesse, conduzindo a uma dimensão que nos pareceu superior. A esse novo foco, no entanto,

a postura singular do depoente não é estranha. Ao contrário: a vereda definitiva da pesquisa,

agora nítida, decorreu das muitas veredas trilhadas até então, principalmente daquela sugerida

pelo relato de Seu Raimundo Oito.

É óbvio que essa postura de defesa da ilha, dentro da qual o legendário do lugar infernal

não tem lugar, possuía uma explicação razoável. Mergulhos em notícias de jornal, leitura de

trabalhos acadêmicos sobre a colônia correcional e sobretudo o contato com a obra de

Raymundo Nogueira de Faria, (idealizador, padrinho, primeiro diretor da instituição),

possibilitaram uma melhor apreciação do contexto dentro do qual Raimundo dos Santos erigiu

sua visão da ilha de Cotijuba e do Educandário.

Pudemos identificar agentes que se esmeraram em promover o empreendimento de uma

colônia reformatória na ilha de Cotijuba como o grande projeto de salvação da juventude

desvalida e abandonada – segmento social que causava grande incômodo à sociedade e ao

governo da época. O próprio Raymundo Nogueira de Faria, que já tinha larga trajetória como

magistrado, funcionário da alta cúpula do Estado, espírita e intelectual profícuo, conduziu, em

início da década de 1930, uma grande campanha de financiamento do empreendimento

correcional. Grandes pronunciamentos circularam na mídia impressa celebrando tão venturosa

iniciativa, contagiando a sociedade em geral com palavras eivadas de fervor pela causa

humanitária. Sobretudo no livro “A caminho da história” (1945), Nogueira de Faria alude a essa

mística redentora com a qual embelezou o projeto da colônia de Cotijuba, associando seu

esforço de tocar o empreendimento à política de seu chefe maior, na época o plenipotente

coronel Magalhães Barata.

Outro agente a endossar e difundir – outra vez com a ajuda essencial da imprensa local -

, a pretensa vocação redentora da ilha de Cotijuba foi o major Luiz Geolás de Moura Carvalho.

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O fez primeiramente quando ocupou a chefia de segurança pública na máquina estadual, durante

a segunda Interventoria de Magalhães Barata (1943 a 1945). Depois (a partir de 1947), ao

ocupar pela primeira vez o posto máximo do poder estadual, novamente voltou atenções à ilha,

reservando a ela lugar de destaque no sistema penitenciário que idealizou para resolver o

problema carcerário no Estado. Foi Moura Carvalho quem empreendeu a construção da colônia

penal, sob a denominação de Instituto de Reeducação Social, em 1945. O próprio Nogueira de

Faria narra, na obra a pouco citada, o início da nova aventura, e o faz não sem alguma esperança

idealista de ver o novo projeto somar-se ao antigo na transformação da ilha de Cotijuba na ilha

da redenção de jovens e adultos degradados pela imoralidade ou pelo crime.

Foi, portanto, a postura peculiar de Raimundo dos Santos que sugeriu percorrer a vereda

por onde chegamos aos referenciais relativos à ilha da redenção. Talvez seja esse homem

octogenário o único sujeito vivo em cuja memória ainda reverbera a mística criada por Moura

Carvalho, Nogueira de Faria e a classe da qual esses homens poderosos faziam parte, isto é, as

classes mais abastadas da sociedade paraense.

Não é de se estranhar que Raimundo dos Santos, homem do povo, haja endossado

semelhante visão idealizadora da ilha de Cotijuba, criada no seio de classes distantes dele? Não

se considerarmos dois fatores principais: órfão muito cedo, o futuramente conhecido Raimundo

Oito passou uma infância e um início de adolescência bastante sofridos, em casa de gente alheia

a sua família, e encontrou no ingresso no educandário uma oportunidade de vida, ali fixando-

se definitivamente; além disso, ao ser admitido na instituição conheceu e aproximou-se de

Nogueira de Faria, então diretor da entidade, de quem ganhou confiança e acolhimento, e por

quem nutriu a mais franca admiração.

No entanto, todo o esforço despendido por esses personagens idealistas e de sinceros

propósitos humanitários, esforço que buscamos sintetizar num memorial da ilha da redenção,

sequer arranhou outra legenda que há muito tempo vinha sendo alimentada a propósito da ilha

de Cotijuba, de significado bastante distinto, senão oposto. Foi como ilha do diabo, lugar de

sofrimentos, exílio e violência que Cotijuba foi paulatinamente sendo identificada. À excessão

de Raimundo Santos, os demais depoimentos exemplificaram episódios do extenso leque de

histórias malditas criadas a partir das arbitrariedades praticadas na ínsula. A desproporção

espelha o triunfo da legenda da ilha do diabo, amplamente disseminada, continuamente

reproduzida, fixada na memória coletiva, cujos ecos, mais tímidos que outrora, ainda ressoam.

Do ponto de vista do interesse estrito de uma pesquisa em História da Educação, a

dimensão ilha da redenção, associada à implantação do Educandário Nogueira de Faria, é a

mais importante. No entanto, o trabalho seria incompleto se permitíssemos que a dimensão ilha

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do diabo mergulhasse nas trevas do esquecimento, tal como desejam o principal depoente e

outros sujeitos afetados em seus sentimentos pelo legendário maldito.

Não obstante o interesse mais propriamente historiográfico, esmiuçar o memorial da ilha

do diabo nos foi essencial, seja pelo contraste com a memória positiva e idealizada, seja pela

missão comum reservada às instituições implantadas em Cotijuba, isto é, amparar o conflagrado

sistema prisional paraense. A própria permanência da memória da ilha do diabo em nossos dias,

nos pareceu motivo suficiente para assegurar-lhe um lugar no presente relatório.

Ao cabo dessas sinuosas veredas do pesquisar, fixamos o Educandário Nogueira de Faria

como objeto de pesquisa. Particularmente o modo como esse reformatório influenciou e

relacionou-se com a ilha de Cotijuba, aproximação tão marcante a ponto das duas instâncias

confundirem-se e da própria ilha ser referida como reformatório ou como presídio.

São vários os sujeitos com quem a pesquisa dialoga: os dois Raimundos, Santos e

Nogueira de Faria, são, evidentemente os protagonistas, homens cujas obras a pesquisa é

tributária em maior medida. Contudo, Clésio Ramos da Silva, o Mascarado, bandoleiro que

atuou em Belém nas décadas de 1960 e 1970, “rouba” a cena na última seção do estudo, num

caso alarmante envolvendo a ojeriza provocada por Cotijuba mesmo em tenazes bandidos.

Outros sujeitos coadjuvam a trama aqui descrita, a maioria deles oriundos das classes mais

humildes, gente cujo valioso testemunho colaborou na pintura geral do quadro, como os hoje

já falecidos seu Arthur e seu Mambo, além de seu Ceará, Dona Eliete, seu Getúlio e seu Jericó,

quase todos moradores da ilha de Cotijuba há 30, 40 ou 50 anos. Chefes políticos, delegados,

investigadores, funcionários do governo que intervieram na ilha ou na instituição também

emprestam à pesquisa algo de suas trajetórias.

Não lançamos mão de nenhum critério técnico na seleção de pessoas a entrevistar, pois

rareando os depoentes, entrevistamos, ou aproveitamos depoimentos, dos poucos sujeitos aptos

a tratar do assunto, maioria gente residente na ilha de Cotijuba.

Abordamos o tema com o critério histórico, em análises em que partimos principalmente

da memória negativa ou positiva formada a respeito da ilha de Cotijuba após a implantação das

instituições reformatória e penal.

O recorte temporal cronológico – entre 1932 e 1976 – considerou, em primeiro lugar, a

implantação do Educandário, a campanha em torno da construção do empreendimento e a

repercussão negativa a partir de seu funcionamento. Tivemos em vista, ainda, as intervenções

do poder público realizadas para “melhoramentos” na instituição, ao longo das décadas de 40 e

50, bem como o relato da chegada de Raimundo Santos na ilha, ocorrido no ano de 1943. O

recorte temporal se fecha na descrição minuciosa de um caso emblemático, que explodiu no

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ano de 1976, episódio cuja farta cobertura pelos jornais locais permitiu vislumbrar o nível de

saturação para o qual a ilha-presídio havia enveredado após quatro décadas da intervenção

estatal.

É preciso dizer que o Educandário Nogueira de Faria e a própria Colônia Penal foram

constantemente renomeados ao longo das décadas, ao sabor das transições administrativas. O

primeiro, por exemplo, nasceu como Colônia Correcional de Cotijuba, mas foi também referido

como Colônia Agrícola de Cotijuba, Educandário Monteiro Lobato, Educandário Magalhães

Barata, para, apenas bem mais tarde ser, enfim, denominado Educandário Nogueira de Faria,

em honra ao idealizador e principal promotor do projeto do reformatório insular. Já a Colônia

Penal, aparece inicialmente como Instituto de Reeducação Social, porém nas diversas fontes, é

também chamado de presídio, ou de colônia agrícola. Todos esses nomes, em maior ou menor

ocorrência, aparecerão ao longo da narrativa.

O levantamento de dissertações e teses junto aos bancos da CAPES, da UEPA e da UFPA,

no âmbito da educação, a partir das palavras “Cotijuba”, “Educandário Nogueira de Faria” e

“Colônia Reformatória de Cotijuba”, não obteve resultados positivos. Em meio ao universo dos

artigos científicos fomos um tanto mais felizes. Nenhum deles, porém, foi produzido no âmbito

da Educação. “Registro Histórico da Ilha de Cotijuba” (2002) de Assunção Amaral é um estudo

sociológico e “O poder das marés na Região Amazônica no final do século XVIII e início do

XIX: o Engenho de Cotijuba, Belém, Pará” (2001), de Diniz Guerra, foi urdido no âmbito da

História. Na revista acadêmica “Traços” do Centro de Tecnologia da Universidade da

Amazônia, consultamos outros dois artigos: “Cotijuba no contexto histórico da cidade de

Belém: a história da ilha que poucos conhecem” e “Belém Insular: a realidade urbana da ilha

de Cotijuba”, ambos de 2001, escritos por Pereira, Farias e Santos.

No laboratório de história da UFPA há uma monografia de especialização, autoria de

Jucivânia Moraes Gordo - “‘Punir para corrigir’: as crianças, os adolescentes e a Colônia Penal

de Cotijuba – Belem 1930 a 1936”. No levantamento de estudos sobre o tema que aqui

sumariamos, em termos de grau acadêmico, trata-se do trabalho mais graduado. Teve o mérito

de identificar o início da campanha pró colônia reformatória, deflagrada a partir de setembro

de 1931.

Fixamos a seguinte questão problema para a investigação:

- De que maneira o Educandário Nogueira de Faria, criado durante a primeira

Interventoria de Magalhães Barata no governo do Pará, com objetivo de educar menores

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carentes e abandonados na ilha de Cotijuba, fez emergir as memórias redentora e diabólica para

a respectiva ilha, entre as décadas de 1930 e 1970?

A investigação tem como Objetivo Geral:

- Analisar de que maneira o Educandário Nogueira de Faria, criado durante a primeira

Interventoria de Magalhães Barata no governo do Pará, com objetivo de educar menores

carentes e abandonados na ilha de Cotijuba, fez emergir as memórias redentora e diabólica para

a respectiva ilha, entre as décadas de 1930 e 1970.

E como Objetivos Específicos:

- Caracterizar a educação oferecida pelo Educandário Nogueira de Faria;

- Explicar a postura protetora de Raimundo Santos a propósito da ilha de Cotijuba e do

Educandário Nogueira de Faria;

- Contextualizar historicamente o momento da implantação do Educandário Nogueira de

Faria;

- Sumariar a presença da ilha de Cotijuba em referenciais historiográficos locais.

1.2 Delineamento Teórico e Metodológico

A investigação pauta-se, teoricamente falando, na Nova História. Peter Burke (2011, p.

7-38), afirma que a Nova História erigiu-se como um tipo de reação à determinada maneira de

se fazer história, amplamente aceita no século XIX, a qual pode ser denominada como “história

tradicional ou visão do senso comum da história” (Ibidem, p 10). O fazer historiográfico da

tendência tradicional preconizava essencialmente a escrita de uma história política,

preponderantemente preocupada com as ações e feitos do Estado ou dos estadistas. Ao passo

que o movimento da Nova História ampliou os horizonte do historiador ao demonstrar que

literalmente tudo o que diz respeito ao ser humano possui dinâmica histórica, abrindo assim, à

atividade historiográfica campos inexplorados e às vezes pitorescos, tais como o sexo, a

loucura, a alimentação, a virilidade, etc. A Nova História ampliou o campo historiográfico, ao

mesmo tempo que procurou provar a falta de justificativa para a preconização de determinado

aspecto da experiência humana. Burke explica ainda que a Nova História, sobretudo em sua

dimensão de história social, valeu-se do advento filosófico do relativismo cultural, ou seja, “a

ideia de que a realidade é social ou culturalmente construída”, o que, para ele, “destrói a

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distinção entre o que é central e periférico na história” (Ibidem, p. 12). Reagindo à tendência

de privilégio emprestado pelo paradigma tradicional aos grandes vultos humanos da história,

suas ações e conquistas, prossegue Burke, a Nova História fez desfilar pelos livros personagens

aparentemente medíocres: populares, criminosos, gente simples antes considerados destituídos

de interesse, fazendo possível, desse modo, a escrita de uma história vista de baixo2.

E foi ainda o movimento da Nova História que ampliou o leque de evidências

consideradas historicamente válidas. Trata-se de outra reação ao paradigma tradicional de

história, para quem as fontes históricas – consoante as lições do grande historiador alemão

Leopold von Ranke –, restringiam-se aos papéis produzidos pelo Estado, os chamados

documentos oficiais. A expansão do interesse dos historiadores por variados campos da

atividade e da experiência humanos, no entanto, solicitou deles atenção a um número mais

amplo de evidências (BURKE,2011 p. 14).

A base teórica que garante legitimidade à fonte oral é essencial aos caminhos da presente

pesquisa. Uma parte das informações obtidas são dessa natureza.

Uma das tendências mais fortes da Nova História, pode ser denominada, conforme ainda

Peter Burke (2005), de Nova História Cultural, igualmente crucial às bases de nosso estudo.

Decorrente daquilo que Burke definiu como “virada em direção à antropologia” (2011, p. 44),

a tendência é tributária de um conceito de cultura ampliado3, não restrito à dita alta cultura ou

às ambiguidades da chamada cultura popular. Burke procura explicar o encontro entre a História

e Antropologia a partir dos princípios da congruência e da convergência4, assim como pelo

impacto dos conceitos de cultura e de descrição densa formulados pelo antropólogo Clifford

Geertz5.

Burke sintetiza no seguinte excerto as inovações das abordagens culturais em História:

2 Segundo Burke, “história vista de baixo” é aquela preocupada “com as opiniões das pessoas comuns e com sua

experiência de mudança social” BURKE, 2011, p. 13. Sobre a história vista de baixo (um dos pressupostos teóricos

da presente pesquisa), Jim Sharpe diz o seguinte: “Essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores

ansiosos por ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar

experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente

aceita ou apenas mencionada de passagem na principal corrente da história” SHARPE, 2011, p. 41. 3 Burke cita a definição de cultura “tomada em seu sentido etnográfico amplo” de Edward Taylor (em Primitive

Culture): “o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume, e outras aptidões e hábitos

adquiridos pelo homem como membro da sociedade” BURKE, 2011, p. 43. 4 “Encontros entre disciplinas, assim como encontros entre culturas, muitas vezes seguem os princípios da

congruência e da convergência. O que faz as pessoas de uma cultura sentirem-se atraídas por outra é, muitas vezes,

a ideia de uma prática análoga à sua própria e, assim, familiar e estranha ao mesmo tempo. Seguindo essa atração,

as ideias ou práticas das duas culturas passam a se parecer cada vez mais umas com as outras” Ibidem, p. 56. 5 “Geertz enfatiza o significado daquilo que ele chamou, em um famoso ensaio com este título, de ‘descrição

densa’. Em sua própria definição cultura é ‘um padrão historicamente transmitido de significados incorporados

em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens

se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida’”, Ibidem, p. 52.

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O que essas abordagens tem em comum é sua preocupação com o mundo da

experiência comum (mais do que a sociedade por si só) como seu ponto de partida,

juntamente com uma tentativa de encarar a vida cotidiana como problemática, no

sentido de mostrar que o comportamento ou os valores, que são tacitamente aceitos

em uma sociedade, são rejeitados como intrinsecamente absurdos em outras. Os

historiadores, assim como os antropólogos sociais, tentam agora pôr a nu as regras

latentes da vida cotidiana (a “poesia” do dia a dia, como a expressou o semiótico russo

Juri Lotman) e mostrar a seus leitores como ser um pai ou uma filha, um juiz ou um

santo, em uma determinada cultura. Neste ponto, a história social e a cultura parecem

estar se dissolvendo uma na outra. Alguns profissionais definem-se como “novos”

historiadores culturais, outros como historiadores “socioculturais”. Seja como for, o

impacto do relativismo histórico sobre o escrito histórico parece inevitável (2011, p

24).

Um dos principais pressupostos teóricos a basear a presente pesquisa, a micro-história –

particularmente a micro-história italiana –, consistiu inicialmente numa dissidência no interior

da Nova História, como principal reação à euforia provocada pela guinada rumo à

antropologia6. Burke cita como os primeiros grandes livros de micro-história duas obras de

enorme sucesso editorial (dentro e além do universo acadêmico), ambos lançados ao longo dos

anos setenta: Montaillou7, de Emmanuel Le Roy Ladurie, lançado em 1975, e O queijo e os

vermes8, posto em circulação no ano de 1976, clássico de Carlo Ginzburg.

Giovanni Levi, no artigo “Sobre a micro-história” (2011, p. 135-163), afirma que a

tendência não possui um corpo teórico fixo que lhe sirva de base, tal como ocorre em “todo

trabalho experimental” (Ibidem, p. 172), conformando estudos marcados pela diversidade, nos

quais, todavia, podem ser identificados alguns essenciais elementos comuns. Um desses

elementos é a reação à crise conceitual que se estabeleceu entre os anos 70 e 80, crise que

atingiu o universo científico de modo geral, a partir da qual questionou-se de modo eloquente

6 “a micro-história foi uma reação ao encontro com a antropologia. Os antropólogos ofereciam um modelo

alternativo, a ampliação do estudo de caso onde havia espaço para a cultura, para a liberdade em relação ao

determinismo social e econômico, e para os indivíduos, rostos na multidão. O microscópio era uma alternativa

atraente para o telescópio, permitindo que as experiências concretas, individuais, ou locais, reingressassem na

história” BURKE, 2005, p. 61. 7 “Montaillou faz o relato de uma pequena aldeia francesa nos Pirineus e seus cerca de 200 habitantes, no começo

do século XIV, retrato possível pela sobrevivência dos registros da Inquisição, inclusive os interrogatórios de 25

aldeões suspeitos de heresia. O livro tem a forma de um estudo de comunidade do tipo muitas vezes realizado por

sociólogos, mas cada capítulo levanta questões debatidas pelos historiadores franceses na época, acerca da

infância, por exemplo, de sexualidade, do sentido local do tempo e do espaço, ou da casa camponesa como

representação dos valores familiares. Montaillou foi uma contribuição à história cultural, no sentido amplo que

incluía cultura material e mentalidades” Ibidem, p. 61-62. 8 “O queijo e os vermes também se baseava nos registros da inquisição, dessa vez na região do Friuli do século

XVI, no nordeste da Itália, e tem seu foco na personalidade de um indivíduo interrogado sob suspeita de heresia,

o moleiro Domenico Scandella, conhecido como ‘Menocchio’. Para a surpresa dos inquisidores, Menocchio

respondeu às perguntas de maneira detalhada, expondo sua visão do cosmos. O título do livro deve-se à explicação

de Menocchio de que no princípio tudo era um caos, e os elementos formavam uma massa ‘exatamente como o

queijo faz com o leite, e naquela massa aparecem alguns vermes, que eram os anjos’. Ao longo de seu

interrogatório, Menocchio também falou longamente sobre os livros que havia lido e sobre a maneira como os

interpretava. Dessa forma, o estudo de Ginzburg contribuiu com a nova ‘história da leitura’” Ibidem, p. 62.

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a crença disseminada no progresso científico e que levou inúmeros estudiosos a proclamarem

a ascensão de uma suposta pós-modernidade. A micro-história, segundo Levi, constitui uma

das reações à crise9.

Do ponto de vista que assumimos, ou seja, do ponto de vista da escala histórica incidindo

sobre o individual ou sobre o local, sob a apreciação, que pretendemos fazer, do modo como o

indivíduo mobiliza os recursos de sua liberdade, choca-se ou adapta-se ao contexto e aos

sistemas de controle com os quais se relaciona – desse ponto de vista é imprescindível a visão

de Levi sobre o trabalho do micro-historiador:

Seu trabalho tem sempre se centralizado na busca de uma descrição mais realista do

comportamento humano, empregando um modelo de ação e conflito do

comportamento do homem no mundo que reconhece sua – relativa – liberdade além,

mas não fora, das limitações dos sistemas normativos prescritivos e opressivos.

Assim, toda ação social é vista como resultado de constantes negociação,

manipulação, escolhas, e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa

que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e

liberdades pessoais. A questão é, portanto, como definir as margens – por mais

estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e

contradições dos sistemas normativos que o governam. Em outras palavras, uma

investigação da extensão e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da

sociedade humana. Neste tipo de investigação, o historiador não está simplesmente

preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as

ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações desse

mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos

materiais (2011, p. 137-138).

Parece que a preocupação de Levi está em evitar certo radicalismo consequente ao

desencanto científico daqueles anos 70/80, desencanto que parecia sugerir, no caso da história,

a total impossibilidade de reconstruir o passado, supervalorizando o elemento subjetivo

presente no trabalho do historiador, numa postura francamente cética10.

Carlo Ginzburg resume o debate, acrescentando outro importante aspecto:

A atitude experimental que aglutinou, no fim dos anos 70, o grupo de estudiosos

italianos de micro-história... baseava-se na aguda consciência de que todas as fases

que marcam a pesquisa são construídas e não dadas. Todas: a identificação do objeto

e da sua relevância; a elaboração das categorias pelas quais ele é analisado; os critérios

9 “Havia, contudo, várias reações possíveis para a crise, e a micro-história em si nada mais é que uma gama de

possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos instrumentos e

métodos existentes” LEVI, 2011, p. 137. 10 “ao mesmo tempo, tem havido (para a crise) outras soluções propostas, absolutamente mais drásticas, que com

frequência desviam para um relativismo desesperado, para o neoidealismo ou mesmo para o retorno a uma filosofia

repleta de irracionalidade” LEVI, 2011, p. 137. Em outro trecho: “Assim, a micro-história possuía uma função

muito específica dentro da chamada nova história. Não era simplesmente uma questão de corrigir aqueles aspectos

da historiografia acadêmica que pareciam não mais funcionar. Era mais importante refutar o relativismo, o

irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente teórica que interprete os textos e

não os próprios acontecimentos” Ibidem, p. 138.

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de evidência; os modelos estilísticos e narrativos por meio dos quais os resultados são

transmitidos ao leitor. Mas essa acentuação do momento construtivo inerente à

pesquisa se unia a uma rejeição explícita das implicações céticas (pós modernas, se

quiserem) tão largamente presentes na historiografia europeia e americana dos anos

80 e início dos anos 90 (2007, p. 275-276).

O excerto de Ginzburg ao mesmo tempo que situa a micro-história no bojo de uma reação

geral à crise científica – caracterizando-a como um fazer historiográfico no qual as fases da

pesquisa e as escolhas do pesquisador são incorporados à narrativa –, rejeita os radicalismos

(ou ceticismos) que a substituição do paradigma moderno parecia sugerir, ou seja: tornar o fazer

historiográfico uma atividade estritamente subjetiva, teórica ou especulativa. Esse aspecto é

crucial, pois põe em debate o papel da narrativa no trabalho do historiador, ou mais

especificamente, o problema da comunicação com o leitor, ou, ainda, nas palavras de Giovanni

Levi, a questão das “técnicas de exposição” (2011, p. 155). Aqui o alvo é evitar as armadilhas

e negligências inerentes às grandes generalizações, as quais “acentuariam de uma maneira

funcionalista o papel dos sistemas de regras e dos processos mecanicistas de mudança social”

(Ibidem), excluindo, desse modo, qualquer experiência anômala às regras gerais. Visa-se

também, através da construção de uma narrativa que incorpora “os procedimentos da pesquisa

em si, as limitações documentais, as técnicas de persuasão e as construções interpretativas”

(Ibidem), a edificação de um discurso historiográfico através do qual o autoritarismo do

discurso objetivo da história tradicional seja evitado e criticado. Levi e Ginzburg, nesse ponto,

nos levam a refletir sobre as consequências éticas e políticas da narrativa historiográfica.

Um último aspecto da micro-história a interessar à presente investigação é o

desenvolvimento e uso que faz do procedimento analítico conhecido como redução da escala

de observação. Para Giovanni Levi, o mérito do procedimento reside nas possibilidades de

experimentação que ele oferece. Para ele, a existência individual jamais se submete

completamente às normatizações urdidas no nível da grande escala. A redução da escala

corrobora sua crítica às explicações redutoras, sejam elas funcionalistas ou estruturalistas11.

É a reabilitação do sujeito junto a uma história que teimava em reduzi-lo a resíduo. Ou a

constatação de que a abordagem histórica restrita à grande escala é inevitavelmente excludente.

Daí estudos de micro-história abordarem tanto pequenas comunidades, quanto, indivíduos

11 “Em oposição a um funcionalismo supersimples, é importante enfatizar o papel das contradições sociais na

geração da mudança social; em outras palavras, enfatizar o valor explanatório das discrepâncias entre as restrições

que emanam dos vários sistemas normativos (ou seja, entre as normas do estado e da família) e do fato de que,

além disso, um indivíduo tem um conjunto diferente de relacionamentos que determina suas reações à estrutura

normativa e suas escolhas com respeito a ela” LEVI, 2011, p. 141.

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singulares. “Reduzir a escala de observação queria dizer transformar num livro aquilo que, para

outro estudioso, poderia ter sido uma simples nota de rodapé”, diria Ginzburg (2007, p. 274).

Quanto à conceituação de memória, essencial ao presente trabalho, dentre os referenciais

consultados, a definição mais ampla e pertinente extratamos de Jacques Le Goff. No livro

“História e Memória”, o historiador francês apresenta a seguinte definição:

Fenômeno individual e psicológico (cf. soma/psique), a memória se liga também à

vida social (cf. sociedade) Esta varia em função da presença ou ausência da escrita

(cf. oral/escrito) e é objeto da atenção do Estado que, para conservar os traços de

qualquer acontecimento do passado (passado/presente), produz diversos tipos de

documento/monumento, faz escrever a história (cf. filologia), acumular objetos (cf.

coleção/objeto). A apreensão da memória depende, desse modo do ambiente social

(cf. espaço social) e político (cf. política): trata-se da aquisição de regras de retórica

e também da posse de imagens e textos (cf. imaginação social, imagem, texto) que

falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo (cf. ciclo,

gerações, tempo/temporalidade).

As direções atuais da memória estão, pois, profundamente ligadas às novas técnicas

de cálculo, de manipulação da informação, do uso de máquinas e instrumentos (cf.

máquina, instrumento) cada vez mais complexos (2012, p. 405).

No entanto, são as reflexões sobre o tema obradas por Michael Pollack em “Memória,

esquecimento, silêncio” (1989) que melhor iluminam nossa abordagem. Pollack põe em debate

as disputas da memória, e o faz a partir de exemplos nos quais, de alguma forma, as memórias

de certos grupos socialmente menos expressivos, embatem-se com versões mais globalmente

aceitas ou impostas sobre o passado. Às vezes a eclosão das memórias subterrâneas, ou

marginalizadas, é acompanhada ou mesmo motivada por uma mudança radical na própria

sociedade – como no caso da destalinização e fim da URSS, período, como se sabe, de intensa

revisão da política brutal chefiada por Josef Stalin. O passado literalmente se altera, cai o mito

do pai dos pobres, ao mesmo tempo que um mundo de crimes, violências e brutalidade vem à

tona, numa apoteose que acompanha a própria desintegração do mundo soviético comunista

(POLLACK, 1989, p. 05).

O sociólogo austríaco, além disso, mostra como o silêncio sobre acontecimentos

traumáticos opera em casos de disputa da memória. Aqui Pollack descreve o drama dos

deportados judeus em seu retorno à Alemanha ou à Austria no pós segunda guerra, num

momento em que a consciência aguda do holocausto judeu fazia o mundo tremer. Precisaram

esses deportados tornar suportável a vida junto a colaboradores judeus da política antissemita

alemã. Mesmo que a colobaração de homens e mulheres judeus aos algozes alemãos possua

justificativa razoável, a violência do holocausto, a consciência da hecatombe, a própria

deportação da gente judia, colocariam em rota de colisão a gente que sobreviveu ao conflito no

exílio e os que mantiveram a vida por colaborar com os assassinos de seus pares. Argumenta

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Pollack que a necessidade de convivência, num contexto de reconstrução da vida, operou no

sentido do silêncio, no bloqueio da memória conflituosa e na mitigação de um sentimento de

culpa inoportuno àquele contexto difícil. “Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-

se então um reflexo de proteção da minoria judia” (Ibidem, p. 06). Aqui se trata de forçar o

esquecimento diante do quadro por demais doloroso, em nome da convivência ou mesmo na

perspectiva de tornar a vida mais rozoável aos que viveram direta ou indiretamente

acontecimentos tão chocantes. Silenciar sobre um trauma de grandes proporções, como o

holocausto, mostra Pollack, é uma demanda não só dos algozes alemãos, porém, curiosamente,

dos próprios judeus, as maiores vítimas.

Nesses exemplos, ou em outros, Michael Pollack vai explicando como memórias

marginalizadas ou reprimidas vão construindo estratégias de conservação: “lembranças

proibidas[...], indizíveis [...], ou vergonhosas [...] são zelosamente guardadas em estruturas de

comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade englobante” (Ibidem, p. 07). Os

silêncios, os “não-ditos”, “o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são

evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento” (Ibidem). Em todos os exemplos

o que está em jogo no que se diz, no que se silencia ou no que se menciona, pode ser a angústia

da privação de ouvidos atentos, pode ser o temor de vir a purgar em consequência de se dizer

algo sob sigilo formal, ou, por fim, pode ser a impossibilidade ou dificuldade dos memorialistas

de se fazerem entender ou incorrerem em “mal-entendidos” (ibidem).

Nas palavras de Pollack, em cada um dos casos, dois tipos de memórias coletivas

justapõem-se, cada qual em um espaço, devidamente apartadas:

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em

nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou

de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que

uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar ou impor (IBIDEM, p. 08).

Pollack, nesse mesmo texto, curiosamente, toca em um ponto dotado de especial sabor

em se tratando da trajetória desta pesquisa: o potencial do cinema de intervir na dinâmica da

revisão do passado e dirigir em determinada direção o enquadramento da memória coletiva, ou

mesmo da memória nacional. A expressão cinematográfica é dotada de qualidades que a

diferenciam de formas mais tradicionais de enquadramento da memória – como a ação de

agentes, a propaganda, os dircursos oficiais, os monumentos. Como manifestação artística, os

filmes são capazes de se comunicar de maneira mais global, ao operar com uma linguagem,

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voltando-se não apenas à inteligência das pessoas, porém igualmente apelando a seus

sentimentos.

Cita o historiador, como exemplo, o filme Holocausto, obra cujo impacto “permitiu captar

a atenção e as emoções, suscitar questões e assim forçar uma melhor compreensão desse

acontecimento trágico em programas de ensino e pesquisa e, indiretamente, na memória

coletiva” (Ibidem, p. 07). Especialmente o filme documentário e o que chama de “filme-

testemunho”, configurou-se como “instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da

memória coletiva e, através da televisão, da memória nacional” (ibidem).

O testemunho oral recolhido em procedimentos de entrevista, configuram a principal,

mas não única fonte de informações. Outras fontes subsidiam a pesquisa. Tais fontes incluem

não apenas o levantamento documental em arquivos públicos, mas também a convivência

prolongada do pesquisador no lócus da pesquisa, a atenção detida aos sinais do passado que se

revelam no cotidiano do lugar, o relacionamento de longo prazo com os sujeitos a quem a

pesquisa é tributária. O valor dessa disponibilidade é inestimável.

No conjunto de fontes mobilizadas, além da narrativa oral, acrescemos um importante

levantamento documental junto ao Arquivo Público Estadual, à sessão de obras raras e à

hemeroteca da biblioteca pública Arthur Vianna, além de consultas ao Centro de Memória da

UFPA e à biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado. Os testemunhos orais compreendem

depoimentos de Raimundo Santos; depoimentos de uma de suas filhas (Dona Eliete), nos quais

procuramos evidenciar, entre outras coisas, a face paterna do protagonista; depoimentos de

moradores da ilha em cujos testemunhos nos situamos com relação ao cotidiano da ilha nos

tempos em que vigoravam o Educandário e a Colônia Penal. O filme-documentário “Cotijuba:

a ilha do diabo?” e as entrevistas realizadas para ele e não aproveitadas em sua totalidade,

constituem também fontes orais das quais nos servimos.

Dentre as fontes documentais levantadas constam: excertos dos seguintes livros de

Nogueira de Faria: “Instrucção e Educação Moral e Cívica” (1927) e “A caminho da história:

subsídio para a história política e administrativa do Pará” (1945); os estatutos de uma associação

criada por Nogueira de Faria em 1912, o “Instituto de Proteção e Defesa da Infância” (o que

evidencia a preocupação do futuro idealizador e primeiro diretor do Educandário com a causa

da infância e adolescência vinte anos antes da criação da instituição); mensagens enviadas à

Assembleia Legislativa do Pará pelos governadores Gama Malcher (1936 e 1937), Moura

Carvalho (1948), Zacarias de Assunção ( 1954 e 1955), Edward Cattete Pinheiro (1956) e

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Magalhães Barata (1957); e textos jornalísticos: “ O imparcial” e “Folha do Norte” (1932 e

1933) e “O Liberal” e “A Província do Pará” (1976).

Sendo a história oral a principal e mais primitiva condição da presente pesquisa,

comecemos por ela. Em primeiro lugar, registramos que, aqui, em primeiro lugar, a história oral

é entendida como metodologia.

Na perspectiva de Amado & Ferreira (2006), a história oral é dotada de características e

virtualidades específicas, as quais convém minuciar.

Em primeiro lugar, apontam: que em trabalhos dessa ordem “o testemunho oral representa

o núcleo da investigação, nunca sua parte acessória” (AMADO & FERREIRA, 2006, p. XIV);

que a geração de documentos, na perspectiva da história oral, se dá por meio da relação

dialógica entre os sujeitos da pesquisa (entrevistador e entrevistado), no ato da entrevista,

procedimento esse que empresta ao testemunho oral recolhido o status de fonte histórica; que a

“história do tempo presente” é a “perspectiva temporal por excelência da história oral” (Ibidem,

p. XV); que através do testemunho oral a história incorpora a memória, encadeando uma série

de consequências em nível teórico e metodológico; que, por fim, a narrativa – a forma de

apresentação do texto ao leitor – influenciada por um testemunho que é basicamente narrativo

– o oral – passa a ser objeto de cada vez maior atenção por parte do historiador e ilumina a

discussão sobre aquilo que as autoras denominam de “caráter ficcional das narrativas históricas”

(AMADO & FERREIRA, 2006 p. 15).

Uma característica da história oral é particularmente interessante do ponto de vista do

presente estudo: a possibilidade metodológica de ceder espaço a testemunhos (orais) cujas

vozes, via de regra, não ecoam em registros documentais. Em outras palavras, testemunhos de

pessoas inseridas em processos históricos, mas a quem é negado gerar o registro de suas

experiências. É por isso que, na história oral, pululam testemunhos e depoimentos de pessoas

simples: soldados rasos, migrantes, operários, gente do lar, mulheres vítimas da guerra,

empregados do comércio, funcionários de baixa categoria, a “raia miúda”, em suma. Daqui,

também, decorre a faculdade que a história oral oferece aos historiadores – crucial para nosso

estudo – de esclarecer trajetórias individuais.

Paul Thompson, no seu já clássico A voz do passado (1992), é enfático quanto à dimensão

social da história oral, sublinhando seu papel no processo de mudança social, ao mesmo tempo

que, ao criticar o grau de seletividade das evidências usadas nas pesquisas tradicionais da

história – restritas ao documento oficial, escrito –, confere à evidência oral uma dimensão mais

democrática e menos inclinada ao erro:

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as testemunhas podem, agora, ser convocadas também de entre as classes subalternas,

os desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais realista e

mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-

lo, a história oral tem um compromisso radical em favor da mensagem social da

história como um todo (THOMPSON, 1992, p. 26).

Do ponto de vista da história oral a categoria que mais valor possui para o presente estudo,

é a de reminiscência pessoal. É essa categoria que dá bases ao trabalho de grande parte dos

historiadores dedicados a tal metodologia. Pode ser definida como o ato de lembrar e expor as

lembranças oralmente, sobretudo por indivíduos cuja idade os permite operar aquilo que Gwyn

Prins denominou “revisão da vida” (2011, p. 194). Palavras dele: “O que a reminiscência

pessoal pode proporcionar é uma atualidade e uma riqueza de detalhes que de outra maneira

não podem ser encontradas” (Ibidem, p. 195).

As entrevistas realizadas foram baseadas nas considerações sobre esse procedimento

básico da história oral feitas por Paul Thompson e Sônia Maria de Freitas. É esta última quem

sumaria os elementos básicos da técnica:

Conforme meu entendimento, a História Oral pressupõe projeto, pesquisa, técnica de

entrevista, postura ética com relação ao entrevistado, assim como respeito ao

entrevistado, ao que foi dito. Aliás, saber ouvir é a característica fundamental do

oralista. O entrevistador não é passivo e nem neutro, na medida em que, com suas

perguntas, ele participa e dirige o processo de entrevista, prepara o roteiro, seleciona

as perguntas e introduz questões e temas a serem abordados pelo entrevistado. O

documento final é o resultado de um diálogo entre pesquisador e pesquisado (2002, p.

77).

Por sua vez, Paul Thompson (1992), fazendo valer sua experiência com a técnica,

apresenta sugestões valiosíssimas, como, por exemplo, as qualidades necessárias ao bom

entrevistador: interesse e respeito, flexibilidade, compreensão e simpatia, disposição para ficar

calado, sabendo intuir, contudo, os momentos em que é necessário intervir (Thompson, 1992,

p. 254). Ele sugere que, anteriormente às entrevistas principais, o pesquisador realize entrevistas

explanatórias, a partir das quais informações básicas possam ajudar na elaboração de roteiros

necessários às incursões ulteriores; sugere ainda que, no ato da entrevista, as perguntas a serem

dirigidas aos entrevistados sejam as mais simples e em menor número possível (Ibidem, 258-

259). Sobre o tipo de entrevistas a ser utilizado pelo pesquisador, vale a pena transcrever a visão

de Thompson:

O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais

forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidências que

valham por si mesmas, mas sim fazer um registro “subjetivo” de como um homem ou

uma mulher, olha para trás e enxerga a própria vida, em sua totalidade ou em uma de

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suas partes. Exatamente o modo como fala sobre ela, como ordena, a que dá destaque,

o que deixa de lado, as palavras que escolhe, é que são importantes para a

compreensão de qualquer entrevista... Assim, quanto menos seu testemunho seja

moldado pelas perguntas do entrevistador, melhor. Contudo, a entrevista

completamente livre não pode existir. Apenas para começar, já é preciso estabelecer

um contexto social, o objetivo precisa ser explicado e pelo menos uma pergunta inicial

precisa ser feita (1992, p. 258).

Adotamos a técnica de um roteiro de entrevista aberto. A técnica de captação dos

depoimentos tem sido a audiovisual. Nesse ponto, devo dizer que minha relação de longa data

com a maioria dos entrevistados ajudou muito na harmonização do equipamento junto a eles,

não tendo, até então, enfrentado nenhum tipo de grande dificuldade ou constrangimento, a não

ser os inerentes ao uso de semelhantes recursos, tais como as condições de enquadramento,

iluminação e ruídos, as quais, no entanto, pudemos contornar. Recrutei, para isso, um amigo,

cineasta local, com quem já havia trabalhado por ocasião de “Cotijuba: a ilha do diabo?”. O

registro fotográfico foi realizado pela fotógrafa Karla Nogueira exclusivamente para esta

pesquisa.

As orientações de Paul Thompson (1992), elencadas no capítulo 7 (A entrevista) de A voz

do passado, tem configurado o referencial de nossas incursões com a técnica da entrevista. Um

último elemento a destacar, contudo, é a sugestão que ele faz quanto à disponibilidade, por parte

do entrevistador, de um caderno de notas, no qual realize, o mais rapidamente possível após as

entrevistas, comentários e informações que o pesquisador julgue essenciais.

Outro aspecto metodológico a ser considerado diz respeito à sua dimensão de história das

instituições educativas e escolares12. Sanfelice (2007, p. 75-93) indica que o processo de

penetração no universo de uma instituição escolar pode-se dar por inúmeros caminhos, dentre

eles, por exemplo, a legislação específica, o currículo, os registros de atividades escolares, a

própria arquitetura do prédio e – o que para nosso caso é mais importante – pela memória de

pessoas ligadas à instituição, ou que com ela mantiveram algum tipo de vínculo (Ibidem, p. 77).

Sanfelice assim define a instituição escolar ou educativa:

Pode-se dizer que uma instituição escolar ou educativa é a síntese de múltiplas

determinações, de variadíssimas instâncias (política, econômica, cultural, religiosa,

da educação geral, moral, ideológica, etc.) que agem e interagem entre si,

“acomodando-se” dialeticamente de maneira tal que resulte daí uma identidade (2007,

p. 77).

12 A dimensão metodológica de levantamento e análise documentais desta pesquisa está minuciada no interior das

seções, como forma de evitar sobrecarregar sua introdução. Estão baseadas sobretudo em RODRIGUES &

FRANÇA, 2010.

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Esse conceito tem o mérito de indicar ao pesquisador que, metodologicamente, sua

investigação compreende um raio de alcance que vai além da instituição pesquisada. “Nenhuma

instituição manifesta sua identidade plena apenas no interior de seus muros, por isso é

fundamental olhar para seu entorno” (Ibidem, p. 78). Sanfelice indica, com tal conceituação, a

necessidade de se estabelecer uma relação entre as escalas que determinam a existência da

instituição, em outras palavras, de estabelecer uma relação entre o microcosmos da instituição

e o macrocosmos da sociedade e da história13.

Em resumo, as principais categorias a basear a análise histórica que iremos empreender,

são: instituição educativa, memória e internato.

1.3 As Seções da Dissertação

A dissertação está estruturada em quatro partes. Uma introdução e três seções.

Na seção pós introdução (Panorama geográfico e histórico sobre a ilha de Cotijuba e

contextualização do período de implantação do Educandário Nogueira de Faria) procuramos,

em primeiro lugar, caracterizar geofisicamente a ilha de Cotijuba, entendendo-a como

componente dos estuários confluentes em frente à Belém. Em seguida, descrevemos as

circunstâncias do contexto atual da ilha, em parte a partir de referências bibliográficas ou

documentais, em parte sob a experiência de morador e de trabalhador do lugar. O terceiro

subtópico esmera-se num panorama de referências historiográficas nos quais aparece a ilha de

Cotijuba como protagonista ou coadjuvante de eventos da história local, de modo a criar algum

entendimento quanto ao processo de ocupação da ínsula. Por fim, buscamos caracterizar

historicamente o contexto de implantação do Educandário, sublinhando a vinculação do

empreendimento à atividade política e administrativa do governo revolucionário chefiado por

Magalhães Barata. Procuramos demonstrar também que seu advento está relacionado à

mudança de mentalidade fomentada pela ascensão de intelectuais da classe média urbana no

Brasil/Pará, que passaram a ver na educação uma possibilidade de superação do atraso que

atribuíam ao país naquele início de século.

A seção seguinte – Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria e a

ilha de Cotijuba –, é dedicada, em princípio, a descrever as circunstâncias do internamento de

Raimundo dos Santos no Educandário. Tendo levado até os 14 anos uma existência instável e

13 Nosella & Buffa, a propósito, afirmam: “é preciso articular o particular com o geral, isto é, com a totalidade

social, evidenciando interesses contraditórios” NOSELLA & BUFFA, 2009, p. 62.

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sofrida, parece ter ele encontrado no internamento a primeira grande oportunidade de sua vida,

agarrando-se a ela com fervor.

O subtópico seguinte é dedicado à caracterização educacional do Educandário Nogueira

de Faria, prestando especial atenção ao modo como estruturou-se o internamento dos

abandonados e delinquentes que para lá afluíram. Aqui nos valemos de fontes documentais e

especialmente do depoimento de Raimundo dos Santos, bastante fértil nesse aspecto.

Em conclusão à seção, analisamos detidamente a conformação, para Cotijuba, da imagem

de ilha da redenção, a partir da grande campanha cívica pelo soerguimento da instituição

reformatória e, principalmente, pela atividade de dois sujeitos de destaque na sociedade e na

política paraense – Nogueira de Faria e Moura Carvalho.

A seção final – Memorial da ilha do diabo – , preocupou-se em esmiuçar as repercussões

negativas que o funcionamento das instituições reformatória e penal provocaram em relação à

ilha de Cotijuba. Introduzimos o tópico com a análise de duas obras integrantes da chamada

Literatra de Cárcere, nas quais as prisões insulares ocupam lugar destacado. Muitos dos

caracteres descritos pelos narradores das duas obras memoriais, Henri Charriére e Graciliano

Ramos, encontram par na experiência prisional da ilha-presídio local.

Em seguida, abrimos espaço para diálogo com outros sujeitos cujas experiências de vida

os fez integrarem-se, de alguma forma, às instituições insulares. A maioria deles fixou

residência na ilha de Cotijuba mesmo após a desativação das colônias. A memória desses

sujeitos guardou especialmente os aspectos mais duros do regime prisional em vigor na ilha,

assunto sobre o qual não se acanham em dar detalhes.

O derradeito subtópico da última seção presta-se a detalhar um caso bombástico

envolvendo o sistema prisional do qual a ilha-presídio fazia parte. Trata-se do sequestro e

espancamento do último diretor geral da ilha de Cotijuba, Teodorico Rodrigues, crime cujo

desdobramento foi uma perseguição implacável aos evadidos, numa ação na qual fica evidente

a demonstração de força dos agentes da Ditadura Militar então em vigor no país. A ilha de

Cotijuba havia tornado-se definitivamente a ilha do diabo.

Nas considerações finais realizamos um balanço do percurso da pesquisa e apresentamos

os principais resultados da investigação.

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2 Panorama histórico sobre a ilha de Cotijuba e contextualização do período de

implantação do Educandário Nogueira de Faria

2.1 A ilha de Cotijuba: caracterização geográfica

A ilha de Cotijuba está fincada a noroeste do centro urbano de Belém. Situa-se numa

confluência de águas provenientes de inúmeros cursos hídricos. Sua costa sul está voltada

à foz do rio Pará, ao passo que a face estendida no rumo sudoeste/norte divisa a chamada

baía de Marajó. Juntas essas duas extensões, alongando-se um tanto a nordeste, perfazem

um vasto contorno de praias de aproximadamente 20 km. O lado da ilha que se estende do

sul ao extremo leste é banhado por um furo, o qual as gentes do lugar batizaram como Furo

do Mamão. É um canal influenciado conjuntamente pelos três estuários que compõe o

complexo hídrico confronte à capital. Ou seja, tem esse canal a sudoeste o estuário da foz

do Pará (que conforma a baía de Marajó); a leste a baía de Santo Antônio, da qual o furo do

Maguari (que separa o continente, na ponta do distrito de Icoaraci, da ilha de Caratateua-

Outeiro) é tributário; e a sudeste o acidente hídrico conformado pelas águas dos rios Guamá

(de quem o Capim é tributário) e Acará (já acrescido das águas do Moju, mais embaixo),

afluxo de águas a quem denominamos vulgarmente Baía de Guajará.

De poucos pontos da face sul/leste/norte da ilha (por onde fluem as águas do Furo do

Mamão) se pode divisar o centro urbano da capital. A vista bate-se na costa de duas ilhas

adjacentes, chamadas Paquetá e Jutuba. No extremo sul de Cotijuba pode-se avistar

Arapiranga, ilha cuja face voltada a oeste integra o estuário do Pará. A leste, num ponto em

que se tocam as águas das baías de Santo Antônio e de Marajó, Cotijuba avizinha-se de uma

micro-ilha, de apenas 10 hectares de área, batizada de Tatuoca, ínsula de singular relevância

histórica, por ter sido lócus geográfico protagonista de alguns dos episódios da Cabanagem

(1835-1840), revolução popular que estourou em Belém em 07 de janeiro de 1835 (RAIOL,

1970).

Os feixes de águas que cercam a ilha de Cotijuba avizinham-se, no rumo oeste/norte

da ilha de Marajó, e ao extremo nordeste se misturam ao Oceano Atlântico. São, portanto,

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águas doces que, em certas épocas do ano, tornam-se salobras, por uma penetração mais

intensa das correntes marítimas14.

A área da ilha de Cotijuba, segundo informa o Professor Gutemberg Guerra (2001, p.

75), tendo como fonte o estudo “A dimensão insular de Belém” de José Mariano Klautau,

é de 1.602, 50 hectares. Do ponto de vista físico-geográfico, Silva e Furtado assim

caracterizam a ilha de Cotijuba:

Situada à margem direita do estuário do rio Pará, em meio às baias do Marajó e do

Guajará, a ilha de Cotijuba insere-se no polígono 1°11’36’’ e 1°18’09’’ de Latitude

Sul e pelos meridianos de 48°35’29’’ e 48º31’12’’ WGr, correspondente à Folha

AS.22-XD Belém. Tem sua posição geográfica no Farol da Ilha (1°15’30’’ S e

48°33’30’’ WGr), situado na ponta sudoeste (Ponta de Cima), no fuso 22. Localiza-

se a 18 milhas (33 km) de Belém, possuindo 15,94 Km² de extensão. Apresenta forma

alongada que segue a direção NE-SW. Ao longo do seu litoral estende-se 20 km de

praias e enseadas alternadas por formações rochosas (proveniente de solos argilosos),

vegetação, falésias (algumas com ondulações por depressões naturais nos terrenos) e

mangues (El Robrini, 1993). Limita-se ao norte com a baía de Marajó; ao sul com o

furo do Mamão que a separa das ilhas de Jutuba e Paquetá; à leste com a ilha de

Tatuoca e à Oeste com o canal da ilha de Cotijuba, posicionada nas imediações a

extremo oeste da ilha e servindo de ligação entre a baía de Guajará e o rio Pará

(Pinheiro, 1987).

Cotijuba faz parte do conjunto de ilhas antigas, formada de depósitos arenosos e

argilosos, com uma ou mais camada de arenito, com constituição semelhante à da terra

firme continental (1997, s/n).

O critério de definição, se como ilhas antigas ou ilhas novas, aparece no livro “Belém e

sua expressão geográfica” (1966), de Eidorfe Moreira, o qual dedica um tópico ao estudo e

classificação das 39 ilhas que compõem a chamada região insular de Belém. Para o geógrafo

paraense, antigas são as ilhas “formadas de depósitos arenosos e argilosos, com uma ou mais

camadas de arenito, apresentando constituição semelhante à da terra firme continental” (1966,

p. 70), ao passo que as novas são constituições geológicas recentes, soerguidas por acúmulos

de vegetais apodrecidos, agregados pelas correntes fluviais. Cotijuba, ao lado das ilhas de

Arapiranga e Tatuoca, são exemplos do primeiro caso.

Já o Barão de Marajó, estudando a região como um todo, no livro “As regiões amazônicas”

(1992), classifica a ilha de Cotijuba no conjunto insular que denomina “Ilhas do Rio do Pará

até ao Tocantins”. Atribui o Barão pouca importância a esse conjunto de ilhas, à exceção de

quatro delas: Arapiranga, Paquetá-Assú, das Onças e Cotijuba (1992, p. 336). Sobre a última,

ele acrescenta que

presta-se pelo seu solo a qualquer cultura, e muito abundante em pedreiras, tendo um

lago em seu centro. Tem alli existido alguns estabelecimentos; são possuidores essas,

14 Ver os mapas nos links: http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Mapas/1c_Mapa-RMB.pdf,

http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=695090 e http://ww3.belem.pa.gov.br/www/wp-

content/uploads/Anexo-VIII-Unidades-de-planejamento-.pdf.

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assim como outras d’este arquipélago por particulares, mas creio que com o simples

direito de posse (MARAJÓ, 1992, p. 336 e 337).

Figura 05: Mapa de Belém.

Fonte: http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Mapas/1a_Mapa-Bairros.pdf

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2.2 Sobre o contexto atual

No filme-documentário “Cotijuba: a ilha do diabo?”, no início da narrativa, como forma

de introduzir o expectador no cotidiano do lugar, mostramos um conjunto de pessoas

preparando-se para realizar matrículas na escola municipal (Unidade Pedagógica da Faveira –

Escola Bosque). Como o número de vagas é limitado e a ilha vem progredindo em termos

populacionais, mães, pais e responsáveis organizavam-se mais de 24 horas antes do início do

processo de matrícula, em filas, vindo a pernoitar à porta da escola. Nada distante, portanto, do

quadro que se divisa em qualquer periferia da zona urbana. A mesma situação de precarização

ou insuficiência pode ser generalizada aos demais serviços públicos essenciais (saúde, limpeza

pública, segurança, etc.). Pereira, Faria e Santos, em estudo sobre o processo de urbanização da

ilha de Cotijuba, asseguram que “Devido a esta falta de serviços públicos, a ilha pode ser

considerada como periferia da cidade de Belém” (2001, p. 85). Sobre as atividades econômicas

e geração de renda interna, de acordo com os autores, Cotijuba está assim caracterizada:

O índice de desemprego também é grande e a sobrevivência se dá a partir de uma

agricultura pouco desenvolvida e de um turismo de final de semana gerando uma

renda incipiente, o qual se deu depois da implantação da linha fluvial, a cinco anos

atrás, que poderia ocasionar um desenvolvimento econômico para a ilha. Mesmo com

esta expectativa de melhoria de renda, hoje não existe em Cotijuba nenhuma fonte

geradora de emprego, somente o comércio e serviços que geralmente são explorados

por pessoas vindas de fora.

Em 1995, foi criado o Plano Diretor da Ilha, visando seu desenvolvimento, porém não

chegou a ser implantado (2001, p. 85).

O Plano Diretor da Ilha de Cotijuba constitui uma das tentativas, embora frustrada, de

proporcionar desenvolvimento adequado ao lugar. Admite-se, no Plano, que a ilha de Cotijuba

possui duas faces: uma urbana e outra rural, cujas formas de ocupação são normatizadas no

capítulo IV da seção V do documento. A face urbana é constituída pelas ocupações em torno e

adiante do trapiche municipal Antônio Tavernad. É a região onde se oferece o maior número

dos serviços públicos, onde se localiza a pequena zona comercial e na qual o fluxo de pessoas

é maior, pois local de embarque e desembarque. Nesse setor, chamado pelos do lugar de centro

da ilha, a cobertura vegetal foi agredida fortemente. A ocupação se deu de modo rápido e em

conflito com o meio ambiente. O saneamento é mínimo. A especulação imobiliária é alta, muito

embora ninguém disponha de qualquer título legal de propriedade. A rede de distribuição de

água atinge apenas essa área. Nela estendem-se as praias do Farol e Saudade. Há aqui maior

densidade populacional.

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A face rural é constituída pelas localidades interiores, cada vez mais distantes do trapiche,

definidas pelos nomes das praias que as banham: Praia Funda, Flexeira, Vai-Quem-Quer, Pedra

Branca, Poção e Fazendinha. Nesse locais, o único serviço público que chega é o de energia

elétrica, advento, aliás, recentíssimo em toda a ilha, implantado no início desse século. À

medida que se avança ilha adentro, a densidade populacional vai-se rarefazendo, ao passo que

segue aumentando a proporção de cobertura vegetal em pé. A paisagem aqui foi menos agredida

pela ação humana, embora a ocupação seja, como no centro da ilha, desordenada, não planejada

e sem qualquer controle ou acompanhamento pela Autoridade Pública.

Pereira, Faria e Santos (2001, p. 85), mencionam artigo da lei Orgânica do Município de

Belém, em que as ilhas de Belém aparecem com as seguintes prerrogativas:

As ilhas do município de Belém são consideradas áreas de relevante interesse

ecológico, e todas as modificações ambientais deverão ser avaliadas em seu impacto

ecológico e regulamentadas pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e

Meio Ambiente (BELÉM, s/d).

As normas estabelecidas no Plano Diretor, bem como as imposições contidas na Lei

Orgânica de Belém, porém, estão completamente descompassadas com a realidade da ilha de

Cotijuba. A ilha vem sendo ocupada de forma ostensiva, desordenada e violenta.

A ilha sofreu uma transformação muito grande nos últimos 20 anos. A ocupação se

deu de maneira rápida e sem controle [...], parte de sua riqueza natural foi degradada

e seus recursos naturais mal aproveitados. Essa degradação se deu pela ocupação das

praias, falésias, e, principalmente, pela utilização de matéria-prima para construir essa

ocupação (PEREIRA, FARIA e SANTOS, 2001, p. 86).

Apesar de todos esses dilemas e problemas, a ilha de Cotijuba evoca, há algum tempo,

em meio à zona urbana da capital paraense, a imagem de um recanto paradisíaco. Lugar de

passeio e de lazer, próximo e de fácil acesso. Historicamente, no entanto, esse é um ideário

muito recente, construído a partir das décadas de 80 e 90 do século passado. Abrimos aqui um

parêntese para dizer que as considerações e afirmações feitas nesse e nos próximos três

parágrafos tem por base a vivência do autor da presente pesquisa, como morador e como

servidor público, em Cotijuba. Aquela é uma imagem, é preciso dizer, criada de fora, ou seja,

por pessoas que não vivem no lugar. Esse ideário estimulou e tem estimulado hordas de turistas

e aventureiros a buscarem a ilha como lugar de fuga da realidade e propício a experiências

extremadas, tais como o consumo excessivo de álcool e entorpecentes, ou mesmo a produção

de cinema pornográfico. Tráfico de drogas, prostituição, inclusive infanto-juvenil, e

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disseminação de doenças infecto-contagiosas são alguns dos problemas decorrentes desse

contexto.

Essa imagem idealizada da ilha de Cotijuba, como paraíso natural e local de êxtase, foi

sendo urdida a partir do momento em que o Estado deixou de controlar o fluxo e refluxo de

pessoas ao lugar. Os belenenses, então, perceberam, embasbacados, a exuberância natural de

uma ilha cuja costa é o último ponto de terra firme entre o município e o oceano Atlântico. São

vinte quilômetros de enseadas, protuberâncias e falésias douradas, ornadas de areias límpidas,

banhadas de marés regulares, às vezes violentas. Perceberam os locais, por exemplo, que do

alto das falésias da praia da Pedra Branca, acima 20 metros da linha d’água, podia-se

privilegiadamente estudar o movimento das larguíssimas águas da baía de Marajó. Nos dias de

atmosfera mais límpida, dali se divisa as primeiras ilhas do vastíssimo arquipélago. Adiante

irradia-se, à distância, a corrente do Atlântico. Uma brisa moderada, mas que umas vezes pode

ser ventania, e outras refrigério, sopra ilha adentro, trazendo para ali os ares oceânicos. É uma

paisagem deveras extasiante.

A vegetação da ilha é incrivelmente variada, podendo-se ali encontrar grande diversidade:

regiões de mangue, de terra firme, vegetação costeira e áreas cultivadas. Não raro se tem ideia

ali de se estar diante de um grande pomar. As safras de frutas – manga, jambo, jaca, araçá, caju

ou açaí –, nem chegam a ser totalmente aproveitadas, tão grande sua fartura. A área cultivada é

dedicada sobretudo ao cultivo de hortaliças, distribuídas ali mesmo na ilha, ou remetidas à

Icoaraci para serem vendidas nas feiras.

E a população de Belém foi dando-se conta de que tudo isso estava à distância de uma

hora de barco da capital. Iniciou-se um processo de ocupação, o qual ao longo da década de

1980 foi ainda lento, mas que na década seguinte já sinalizou aos poderes públicos a

necessidade do retorno de uma assistência mais sistemática à ilha. A crescente população local

foi-se organizando em associações (de produtores, de moradores) e passou a exigir das

autoridades um olhar mais acurado. As lutas das organizações levaram melhoramentos ao lugar,

a exemplo da ampliação do sistema de distribuição de água, da assistência à saúde, da oferta de

educação pública e da instalação de usina de energia elétrica.

Nem sempre a participação do Poder Público, contudo, deu-se em acordo com as

demandas da população local. Há um momento emblemático desse descompasso, aliás bastante

pitoresco, o qual também diz muito do ideário urdido a partir da “redescoberta” de Cotijuba

como recanto de lazer. Em 1997, o então vereador André Luís Portela Dacier Lobato, conhecido

em Belém como André Kaveira, submeteu ao Plenário da Câmara Municipal o projeto de lei nº

003/1997, através do qual se pretendia instituir uma “área de Naturismo na ilha de Cotijuba”.

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O artigo primeiro do projeto de lei definia uma área na praia do Vai-Quem-Quer a ser reservada

à prática do Naturismo. Na justificativa do projeto o edil alegava que o Naturismo constitui um

movimento cultural universal, apoiado em federações nacionais e internacionais, “que visa

desenvolver o respeito do homem por si mesmo, por seus semelhantes e pelo meio ambiente”

(Belém, 1997, s.n.). Quanto aos benefícios a serem proporcionados, o projeto menciona

“harmonia cósmica”, “paz interior” e “respeito humano”. Visando fomentar a auto-aceitação, a

harmonia do sujeito com seu corpo, o projeto acreditava que a “nudez representa o símbolo

deste encontro mágico. Estar nu e vestir-se de natureza” (Ibidem). O vereador arremata a

justificativa afirmando ser a prática do Naturismo uma alternativa ao cidadão belenense para

contrapor-se à rotina estressante a qual está submetido pelo trânsito caótico, pelo desemprego,

pelo correr atrás da sobrevivência.

O projeto tramitou. Em 07 de junho recebeu parecer favorável da Comissão de Justiça,

Legislação e Redação de Leis da Câmara. A Comissão, chefiada pelo vereador Orlando reis,

considerou a finalidade do Naturismo – “pregar a relação direta homem-natureza, tendo como

sua principal característica a prática da nudez, que segundo seus adeptos representa o encontro

mágico entre a mãe natureza e o homem” (Belém, 1997, s.n.); considerou a Lei Orgânica de

Belém como asseguradora dos direitos dos munícipes de exercitar “os direitos culturais e o

acesso às diversas fontes de cultura” (Ibidem); considerou ainda que qualquer cultura, não

somente o Naturismo, são bens de acesso livre à sociedade, além de “inexistir no campo jurídico

óbices à tramitação da matéria” (Ibidem).

O Projeto chegaria à Comissão de Cultura, Lazer, Desporto e Turismo, sob presidência

do Vereador Joaquim Passarinho, no dia 17 de junho. Enquanto o projeto era estudado pela

Comissão, os moradores da ilha começaram a se mobilizar e encaminharam ao relator um

abaixo-assinado com mais de quinhentas assinaturas. Argumentaram os nativos, entre outras

coisas, não terem sido ouvidos pelo Vereador proponente do projeto, que o Naturismo é uma

prática de povos muito distintos em termos sociais e culturais e não contribuiria em nada para

a superação dos dilemas e problemas da população da ilha. A argumentação final era também

uma alfinetada nos poderes públicos:

Cultura e riquezas naturais é o que temos de sobra. O que nos falta é a iniciativa dos

nossos representantes públicos na elaboração de projetos que priorizem o

desenvolvimento autossustentável e que não venham ferir os princípios da moral e

dos bons costumes que são inerentes a nós, nativos da terra.

Face ao exposto, solicitamos o empenho de V. Exa., e de seus pares em favor da

rejeição do referido projeto ou, em última análise, pelo pedido de plebiscito sobre o

assunto na ilha de Cotijuba (BELÉM, 1997, s.n.).

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O vereador Joaquim Passarinho, no parecer, considerou que os moradores de Cotijuba

são pessoas “com costumes e tradições bem definidos” e que “não foram consultados quanto à

destinação de uma de suas mais belas praias para uso específico de uma atividade pouco

conhecida ou imaginada por eles” (Belém, 1997, s.n.). Seria, para o Vereador, incoerente que

tal população portasse, diante da prática da nudez, o preconizado pelas normas do Naturismo

Brasileiro, sobretudo quanto a não constranger os praticantes. Considera problemática a tarefa

de habituar os locais a ter, diante da prática do nudismo, o esperado comportamento ético

específico para tal situação, como por exemplo evitar olhares curiosos (considerado

constrangimento). Sobretudo seria difícil habituar as crianças do lugar à prática, sendo elas

espontaneamente curiosas. Demonstrando temor com a atração que a prática do nudismo

poderia provocar nas crianças do lugar, Passarinho advertiu: “As consequências psicológicas e

domésticas que inevitáveis romarias de crianças locais às áreas de Naturismo provocariam, são

imprevisíveis” (Ibidem).

Os três principais jornais da cidade – “O Liberal”, “O Diário do Pará” e “A Província do

Pará” – noticiaram no dia 04 de novembro de 1997 que as galerias da Câmara Municipal de

Belém receberam um grupo de moradores da ilha de Cotijuba, interessados na aprovação do

parecer da Comissão de Joaquim Passarinho pela Câmara Municipal. “Os naturistas do Pará

perderam a esperança de praticar o nudismo bem próximo à Belém” (A Província do Pará, p.

04, 04/11/1997); “A Comissão recebeu 500 assinaturas contrárias à ideia do vereador, inclusive

com respaldo de Entidades representativas da ilha, como a Associação do Produtores” (Diário

do Pará, p. A5, 04/11/1997); “A aprovação do parecer sepulta o projeto de Kaveira. A decisão

foi tomada sob aplausos dos moradores da ilha, que fretaram um ônibus para pressionar a CMB”

(O Liberal, p. 3, 04/11/1997).

O caso do Naturismo é emblemático porque encarna a circunstância histórica recente da

ilha de Cotijba: de um lado o olhar extasiado e exótico construído na zona urbana relativamente

à ilha, manifesto na proposição de um projeto de lei; de outro, o forçado reconhecimento, pelo

Poder Público, de que na ilha existe uma população com suas opiniões e demandas próprias, a

qual requer ser ouvida naquilo que a afeta em suas formas de vida e interesses.

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2.3 A ilha de Cotijuba: breve cenário histórico

Foi o abandono pelo Estado da Colônia Penal de Cotijuba, ocorrido ao final da década de

1970, por ocasião da construção da Penitenciária de Americano, o fato deflagrador de uma nova

fase histórica para o lugar. Curioso é que, até então, acontecimentos extraordinários haviam

legado à ilha uma configuração maldita, disseminada amplamente na imaginação local. A

passagem da ilha do diabo a recanto paradisíaco está eivada de ironia histórica.

A fase final da instituição da qual se ocupa o presente estudo, e o destino derradeiro de

suas instalações, foi servir de complemento ao conflagrado sistema carcerário estadual.

Cotijuba tornara-se, como é bem conhecido, um depósito de presos. Na vigência de um regime

de Ditadura chefiada por militares, no estado de exceção no qual se vivia, no abuso do poder

de polícia, nas torturas e interrogatórios violentos, a ilha foi adquirindo a fama de lugar maldito

do qual todos queriam distância. Lúcio Flávio Pinto, em edição especial do seu Jornal Pessoal,

menciona um dos fatos desse período maldito:

O governador Aloysio Chaves determinara a instauração de inquérito policial para

apurar a violência própria da polícia contra prisioneiros que haviam escapado da

lancha ‘‘Marta da Conceição’’, a caminho da ilha de Cotijuba, hoje um local de lazer

em frente a Belém, onde provavelmente seriam torturados. A operação de recaptura

teve cenas de selvageria, documentadas por toda a imprensa, inclusive o suplemento

Encarte, que eu criara e editava em O Liberal, em 1976 (2012, p. 04).

Francisco de Assis, jornalista local, assim se refere a esse passado macabro, no artigo

“Ilha de Cotijuba já foi palco de motins e crimes”:

A ilha de Cotijuba, localizada em frente à cidade de Belém, foi, nas décadas de 50, 60

e 70, palco de motins, fugas e assassinatos. Os autores desses delitos e desmandos

foram marginais da pesada, que eram transferidos da extinta DIC – Delegacia de

Investigações e Captura – em barcos, pela madrugada, para o educandário Nogueira

de Faria, que serviu, por muitos anos, para depósito de presos. [...]

Marginais como “Caboclo da Alzira”, “Cadeado”, “Colombiano”, “Pescoção”,

“Esqueriu”, “Caboclo Enéas”, “Carcará”, “Diabo Louro”, “Nego Lucas”, “Nego

Téo”, “Lourival Baixinho”, “Luciano Cara de Cachorro”, “Tenentinho”, “Narciso”,

“Marino”, “Gatinho”, “Cheiro Verde”, “Dico Mijado”, “Caboquinho”, dentre outras

dezenas de foras-da-lei, conheceram o “Inferno Verde da Ilha” (O LIBERAL, p. 07,

12/07/1995).

O filme documentário “Cotijuba: a ilha do diabo?” dedicou-se a esmiuçar essa fase

maldita da história do lugar. O período entre o fim da década de 1960 e meados da década

seguinte, é marcado pelo endurecimento do regime militar em vigor no Brasil. Os abusos dos

quais os jornalistas citados, sobretudo Flávio Pinto, e os depoentes do filme dão exemplos,

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devem ser entendidos inseridos em tal condição histórica. O poder de coação física pela polícia

encontrou em Cotijuba – ilha distante das lentes da urbe e controlada pelo Estado – um lócus

no qual se exercitou fartamente. Os depoentes do documentário, é curioso ver, descrevem fatos

– a exemplos de interrogatórios sob tortura e castigos físicos – com um meio sorriso no rosto,

como se aquilo não passasse de coisa banal. Quanto às alcunhas atribuídas por Francisco de

Assis aos detentos da Colônia Penal, elas não deixam dúvida de que as atrocidades ali sucedidas

desabavam sobre o extrato mais baixo da escala social, classes nas quais pululam os

“Caboclos”, “Caboquinhos” e “Negos”.

A existência de uma colônia penal na ilha de Cotijuba remonta ao período entre 1943 e

1945, quando o Major Luís Geolás de Moura Carvalho estava à frente do sistema prisional do

Estado, a serviço de Magalhães Barata, este pela segunda vez ocupando a chefia máxima do

Governo do Pará. Nogueira de Faria testemunhou e descreveu as reformas que a atividade de

Moura Carvalho fez incidir sobre o sistema prisional do Estado. No livro “O caminho da

história” (1945), toda a terceira parte é dedicada a analisar a questão penitenciária no Pará.

Dentre outras coisas, o então Diretor da Colônia Reformatória de Cotijuba, descreve as

melhorias empreendida pelo major Moura Carvalho no Presídio São José, à época considerado

caótico e insalubre. Nas palavras de Nogueira de Faria, Moura Carvalho aparece como um

sujeito dedicado à causa penitenciária no Pará:

Resolvido o problema penitenciário no Pará – porque o está por muito tempo, Moura

Carvalho resolutamente enfrenta um outro, talvez mais sério ainda: o dos presos

correcionais. Belém estava cheia de vagabundos e larápios, criaturas infelizes, muitas

das quais imbuídas de pessimismo sombrio e desolador (1945, p. 125).

Um dos empreendimentos da reforma realizada por Moura Carvalho no sistema prisional

do Estado, foi a criação de uma colônia agrícola penal na ilha de Cotijuba, em 1945. O livro de

Nogueira de Faria, a nos servir aqui de fonte, foi lançado alguns meses depois da inauguração

dessa colônia penal, batizada de Instituto de Reeducação Social. O principal agente

empreendedor da colônia de menores na mesma ilha, tivera um ângulo privilegiado de

observação da gênese da nova instituição. E é como resposta ao problema dos presos

correcionais que Nogueira de Faria relaciona o advento da colônia penal:

Moura Carvalho decidiu-se encarar o assunto (dos presos correcionais), embora ainda

preocupado com os remates da obra presidiária que o empolgou para sempre! Elegeu

uma grande área na ilha de Cotijuba [...] e lá fundou o Instituto de Reeducação Social.

Cinco meses apenas de intensa operosidade e já se desenham os pródromos de mais

uma bela e humanitária vitória. Limpou Belém de malandros e bêbedos contumazes,

de rufiões e vadios, destinados ao tratamento moral pela terapêutica intensiva do

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trabalho obrigatório. O embrião do Instituto promete muito. O programa é vastíssimo:

vai do simples trabalho do Correcional condenado à pena de meses até o “lar do

presidiário”, isto é, do pequeno núcleo agrícola entregue aos presos de primeira classe

que se transformam em auxiliares da segurança e da vigilância do Instituto (1945, p.

125).

Eleito para governar o Estado dois anos depois, aplicou-se Moura Carvalho em reformar

o sistema prisional do Estado como um todo e criar uma instituição dedicada à causa prisional

e carcerária, batizada por ele de Serviço de Assistência Penitenciário-Social. O Jornal “A

Província do Pará”, posto em circulação no dia 19 de fevereiro de 1948 (menos de um ano após

Moura Carvalho ter assumido o governo), dedicou duas de suas páginas a divulgar o decreto-

lei a partir do qual emergiu a nova instituição. Sob um título que demonstrava afinamento com

o governo – “Obra de Humanitário e Sadio Idealismo: a solução do problema penitenciário tem

sido uma das preocupações máximas do major Moura Carvalho” –, a notícia veiculava o “Plano

Geral da reforma Socio-Penal, no Pará”, plano em cujo primeiro tópico (A) figura a instituição

recém criada pelo governo. A ilha de Cotijuba ocupa um lugar destacado no plano. Nela estão

localizados três de seus tópicos: C) Educandário (à época chamado) Magalhães Barata; F)

Penitenciária Agrícola de Cotijuba; e H) Lar de Cotijuba. O referido “Lar” de Cotijuba seria

“destinado aos reclusos de 1ª classe e egressos, e onde é feito o aprendizado do livramento

condicional” (A Província do Pará, 19/02/1948, p. 4 e 5).

Todavia, tanto a existência de uma colônia penal a partir de meados da década de 40 e a

coexistência dessa com o Educandário, implantado uma década antes, quanto a própria história

desse Educandário, coincidem com o período no qual a presente pesquisa pretende realizar

maiores aprofundamentos. Vimos como necessário, porém, realizar uma breve digressão, de

modo a situar a história da ilha de Cotijuba numa de suas fases, seguindo a ordem cronológica

decrescente, tal como viemos fazendo até então. Tal fase obviamente inicia com a compra da

ilha de Cotijuba de particulares para implantação, no ano de 1932-3, da colônia reformatória

para menores, mais tarde batizada Educandário Nogueira de Faria. O passo seguinte, é a

implantação do Instituto de Reeducação Social e a coexistência das duas instituições até o final

da década de 60, quando o Educandário é desativado. Durante a vigência do período mais

doloroso da Ditadura Militar no Brasil (fins da década de 1960 a meados da década seguinte),

como já referimos, Cotijuba tornou-se uma ilha-presídio, cujas práticas de violência e abuso do

poder repressor, fizeram emergir a mística da ilha do diabo. Esse período encerra-se em 1979,

com a extinção da colônia penal.

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Embora muito densa no período 1934-1979, a história da ilha de Cotijuba remonta a um

passado mais distante na escala dos séculos, constando a ilha em importantes registros da

historiografia local.

Quase cem anos antes do início do período histórico supramencionado, exatamente ao

ano de 1835, a ilha de Cotijuba aparece em registros históricos relativos à Revolução Cabana

(1835-1840), coadjuvando esse tumultuado e violento período da história paraense e

amazônica. As referências à ilha começam a aparecer na correspondência do Marechal Manuel

Jorge Rodrigues, chefe das forças legais da Província do Pará, com o Barão de Itapicuru-mirim,

então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios de Guerra. Domingos Antônio Raiol, no

último volume do clássico “Motins Políticos”, apresenta grande parte dessa comunicação, e

permite, dessa forma, apreciar o contexto de guerra em aberto na Província.

Na manhã do dia 23 de agosto de 1835, quando a esquadra imperial, acompanhada de

embarcações particulares, baixou ferros em torno da ilha de Tatuoca, a Cabanagem inaugurava

nova fase. Era a segunda vez que os cabanos tomavam o poder central do Estado para si. Antes

disso, apossaram-se do controle de Belém e dos poderes do governo em 07 de janeiro daquele

ano, fazendo a Félix Antônio Clemente Malcher o primeiro Presidente Cabano da Província.

Porém desentendimentos entre facções e líderes revolucionários levaram ao afastamento e

assassinato desse primeiro chefe, estando ele à frente do poder apenas entre os dias 07 de janeiro

e 21 de fevereiro de 1835. O segundo Presidente Cabano, Francisco Pedro Vinagre governou

desde então até 25 de junho, quando o poder retorna às forças legais, por ato dos próprios

cabanos, em negociação direta com as forças leais ao Império. Nesse momento a legalidade

reassume o poder na Província. O governo do Marechal Manuel Jorge Rodrigues é, porém,

muito instável, sendo pressionado incessantemente pelos rebeldes. Os confrontos entre os

revoltosos e as forças legais recrudescem violentamente, até que, após nove dias de combate,

entre 14 e 22 de agosto, o Interventor Imperial e seu estado Maior resolvem abandonar o front

de guerra. Na noite do dia 22 para o dia 23, no calor de breve trégua, os contingentes militares

e civis que se mantinham fiéis ao governo e a população local não ligada aos cabanos,

refugiaram-se nos navios da esquadra imperial e em outras embarcações, fundeando, na aurora

do dia 23, na Baía de Santo Antônio, em torno de Tatuoca. Embarcaram, fugidos da cruenta

guerra civil, outros tantos cidadãos, perfazendo um total de mais de cinco mil pessoas a apinhar

os navios (HURLEY, 1936; RAIOL, 1970; RODRIGUES, 2009).

Desde então, até a retomada de Belém e alhures pelas tropas legais lideradas pelo

Brigadeiro Soares D’Andreia, ocorrida em 13 de maio de 1836, a Administração Legal foi

realizada de dentro da Fragata Campista, um dos navios fundeados em torno à Tatuoca. Ali,

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governou Manuel Jorge Rodrigues nas piores condições. Ele havia de, a um só tempo, oferecer

algum tipo de resistência ao avanço cabano e cuidar da multidão que se aglomerava ao redor.

E a maioria das gentes que ali se resguardara não trouxe senão a roupa do corpo. A desgraça

não demoraria a vicejar, com epidemias, fome, sede e mais privações que uma retirada às

pressas não permitiu prevenir.

Raiol descreve a calamitosa situação:

A miséria não tardou a aparecer com todo o seu cortejo de desgraças. As provisões de

boca estavam quase acabadas. A alimentação reduzia-se à meia-ração de arroz. A água

que bebiam era da baía; barrenta e com partículas de sal, não saciava a sêde, antes

pelo contrário a excitava com sensível incômodo para quem não estava acostumado a

bebê-la. Nesse tempo baixavam, como ainda hoje baixam, as águas do Amazonas e

Tocantins, e na foz dêstes se misturavam com as do oceano, tornando-se por isso

salobras e prejudiciais à saúde dos refugiados.

Desta água e da comida salgada resultaram várias enfermidades como o escorbuto e a

diarreia de sangue que, grassando com intensidade na marinhagem, na tropa e no povo

aglomerado, deram causa depois à grande mortandade (1970, p. 864).

O Marechal Manuel Jorge Rodrigues precisava agir. E é no âmbito de suas ações e

planos, nessas circunstâncias difíceis, que a ilha de Cotijuba aparece nos registros de tão

singular conjuntura histórica.

Da Fragata Campista, no esforço de administrar tão complexa situação, o Marechal

expediu extensa documentação, transcrita ipsis litteris por Domingos Antônio Raiol, no volume

derradeiro dos “Motins Políticos”. Num ofício de 25 de agosto, dois dias após descer ferros em

torno à Tatuoca, dirigido ao Ministro da Guerra, no qual descreve primeiramente o modo como

perdeu o controle sobre a capital e refugiou-se nos navios, após resistir a “seis ataques atrevidos

de mais de trezentos tapuios” (1970 p. 869), o Marechal Rodrigues considera o estado das

hordas inimigas e, por fim, enumera as providências que está tomando para administrar a

funesta situação na esquadra. Explica, por exemplo, que para minorar o problema da carência

alimentar, tem mandado distribuir muitas famílias para Cametá e para a ilha de Marajó, onde

tem encontrado aliados da legalidade. Em seguida, Rodrigues revela o seguinte plano ao

Ministro: “Tenciono formar em uma das ilhas vizinhas, talvez na de Cutijuba, uma casa que

sirva de alfândega e arraial para desafogo das famílias, o que já fiz participar aos cônsules”

(Ibidem, p. 872).

Não encontramos, até então, indícios de que, deveras, o Marechal tenha conseguido levar

a efeito esse seu plano. Porém, considerando a proximidade das duas ilhas, como já o

descrevemos, sobressai, nessa primeira referência à Cotijuba, a coerência do plano do

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governante, denotando uma habilidade e uma calma deveras difíceis de se obter em momento

e circunstâncias tão críticos.

Participação mais consistente, no entanto, Cotijuba teria em outro episódio, ocorrido a

partir da chegada de uma tropa oriunda de Pernambuco, vinda em auxílio das forças legais, a

qual fundeou em Tatuoca no dia 15 de dezembro de 1835. É bom dizer que o período que vai

da retomada do poder central da Província pelos cabanos (23/08/1835) até a reconquista da

capital pelas forças comandadas por Soares D’Andreia (13/05/1836) – período em que o Pará

foi chefiado pelo terceiro e último presidente cabano, Eduardo Nogueira Angelim –, além de

constituir o maior excerto de tempo (quase nove meses) dos cabanos no poder, é a fase em que

eles estão mais empoderados. A força do movimento atingiu os arredores da capital e foi-se

alastrando pelo interior. Pouquíssimos lugares, como a Vila de Cametá, resistiram à sanha

cabana. Nesses lugares, no entanto, o perigo da invasão de “hordas tapuias”, alarmava a todos.

Um clima de paranoia, de grande insegurança, passou a vicejar.

É esse o contexto da segunda aparição da ilha de Cotijuba nos registros sobre a

Cabanagem. Os fatos ocorreram em meio à ação da Brigada Pernambucana e estão

documentados na correspondência entre o Comando da Brigada e o Marechal Rodrigues. Parte

dessa correspondência encontramos na obra de Jorge Hurley, “Traços Cabanos” (1936). Afirma

o historiador que a Brigada Pernambucana estava responsável pela administração de um

Hospital Militar na Ilha de Cotijuba. Apesar disso, continua Hurley, o Comandante

pernambucano, Major Francisco Sérgio de Oliveira, vinha solicitando ao presidente legal da

Província para remeter as praças que resguardavam o Hospital, de volta à Vigia (a sede do

Comando pernambucano), argumentando, em ofício de 03 de março de 1836, que assim seria

“tanto para ter o batalhão reunido como que este clima he mais salubre que o Cutijuba, e

encontra-se mais recursos para as dietas” (Ibidem, p. 121).

Explica Hurley que, entretanto, naqueles tempos de cerrado domínio cabano, a paranoia

grassava. De tal modo que tanto o comandante da Brigada Pernambucana, quanto os homens

da tropa responsáveis pela guarda do Hospital Militar, estavam aterrorizados com a expectativa

de um ataque cabano à Cotijuba. Um exemplo máximo dessa espinhosa conjuntura está

plasmado num ofício (de 29 de março de 1836) do Marechal Rodrigues ao Comandante da

Brigada Pernambucana, reproduzido por Hurley (1936, p. 151), no qual Rodrigues adverte

haver, em meio à Brigada, um soldado desertor. O Comandante Souza respondeu, em ofício de

31 de março de 1836, afirmando que tomaria “todas as medidas ao seu alcance para que tal

deserção não se reproduzisse” (Ibidem). A principal medida adotada pelo Comandante da

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Brigada foi submeter a fuzilamento quem quer que fosse identificado como “espião das tropas

de Pernambuco” (Ibidem).

O caso da deserção, mostra Hurley, haveria de levar o clima de paranoia ao paroxismo.

Alastravam-se boatos de que o chefe cabano Eduardo Angelim planejava invadir Cotijuba,

valendo-se das informações obtidas junto ao desertor quanto à precariedade das tropas

pernambucanas vigilante ao Hospital Militar.

Em novo ofício, de 05 de abril, mais um exemplo do sobressalto sob que vivia o Comando

Pernambucano. O texto do ofício, precedido e sucedido de palavras de Hurley, abaixo

transcrito, resume o clima daquele contexto melindroso. É importante também porque é um dos

mais importantes registros da participação da ilha de Cotijuba na Revolução Cabana.

O commandante da Brigada de Pernambuco que já havia fuzilado na sua ordem do

dia o desertor do segundo batalhão, em officio de 05 de abril voltando a tratar da

insegurança em que se via Cutijuba, apoiado apenas no segundo batalhão

pernambucano, disse: “o chefe dos revoltosos reúne forças na capital, e se isso hé

verdadeiro dous são os fins: 1º para deffender-se na mesma capital ou fóra dela, e no

2º, não podem ser os Pontos se não o da Vigia por ostentação ou represália, ou de

Cotijuba por conveniência provável inculcada pelo soldado desertor do 2º Batalhão, e

induzido pela certesa da pouca força que nelle existe e se V. Excia. tem em

consideração fortificar o 1º Ponto, não deve ter menos em segurar o 2º, porque este,

por sua actual fraquesa e localidade de facil acesso por mar e por terra, mais

probabilidade de melhor resultado; o que faz de absoluta necessidade vir aqui ancorar

huma embarcação armada, ainda que pequena seja, para coadjuvar a defeza, que

convier oppor a falta da qual cercado por mar e por terra este acampamento, tornará

inutil qualquer exforço e talvez que nem meios hajam de communicar a V. Excia. esse

ataque.”

A imaginação do major Souza, commandante geral da força pernambucana estava

povoada de boatos que os cabôclos que encostavam à Cutijuba com fructos da terra

contavam, desfigurados e alarmantes (HURLEY, 1936, p. 152 e 153).

O pavor instalou-se na ilha Cotijuba:

Sonha-se ali com um assalto cabano.

Qualquer vela que apareça no horisonte, quer de Marajó, quer da ilha das Onças ou

de Uarapiranga levanta célere a noticia verossimel de um ataque.

É o pavor do cabano que vae abatendo as energia do resto da força pernambucana do

2º batalhão, a que estava ligado o comando da brigada (Ibidem, p. 153).

Provavelmente assombrado pela boataria, o Comandante da Brigada Pernambucana, em

novo ofício (de 06 de abril), adverte explicitamente o Presidente Rodrigues, quanto aos riscos

de um ataque cabano ao acampamento militar instalado na ilha de Cotijuba. Recortamos do

mencionado livro de Hurley esse importante documento:

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Illmo. E Exmo. Snr.

Tenho por defesa deste acampamento 63 praças, e creio que tão diminuta força não

he sufficiente.

Se V. Excia. tem de mandar evacuar este acampamento entendo que a maior defeza

era prover de embarcações sufficientes, e effectuar esta operação e ao contrario he

indispensável mandar V. Excia. reforçallo PORQUE COM TÃO POUCA FORÇA

NÃO ME RESPOSABILISO PELA SUA DEFEZA.

Com o que venho de referir tenho respondido ao officio de V. Excia. datado de hoje

communicando-me ter sahido da cidade huma expedição dos revoltosos contra esta

ilha.

Deus guarde V. Excia. quartel do comando da brigada de Pernambuco em Cotijuba, 6

abril de 1836. Ilmo. e Exmo. Manoel Jorge Rodrigues, presidente da Província.

P.S. Além do aviso junto sei por outras vias que o ataque se dirige a esta ilha e rogo a

v. Excia. na enchente da maré 3.000 cartuchos de adarme 13. (a)Joaquim José Luiz de

Souza, comandante da Brigada (Ibidem).

As obras de Hurley e Raiol, no entanto, mostram que o tão temido ataque jamais veio

a se efetivar. As movimentações de cabanos em torno dos rios de Belém, que muitos tomaram

como preparações para novos ataques e invasões (e que tanta paranoia provocou entre a tropa

estacionada na ilha de Cotijuba), não era outra coisa senão o início da movimentação dos

cabanos para saída da cidade. Eduardo Angelim resolvera abandonar a cidade, seguindo

orientações do Bispo D. Romualdo, no fundo vislumbrando a possibilidade de anistia para si e

para seus pares e comandados (RODRIGUES, 2009, p. 249).

Essa segunda aparição da ilha de Cotijuba nos registros históricos relativos ao movimento

cabano, portanto, não chega a configurar um acontecimento, no nível factual. A invasão, que

seria esse acontecimento, não se procedeu. Mas, o episódio talvez configure um dos melhores

exemplos para se ter noção da atmosfera mental conflagrada, imposta pelo domínio cabano aos

partidários da legalidade.

Descendo um pouco mais a escala histórica, identificamos menções à ilha de Cotijuba na

obra do naturalista baiano Alexandres Rodrigues Ferreira, a conhecida “Viagem Filosófica ao

Rio Negro”. O contexto era o do Brasil Colônia agitado pelas conhecidas reformas pombalinas

(ocorridas entre 1750 e 1777). O naturalista baiano iria compor uma expedição governamental,

com múltiplas atribuições, através da bacia do Rio Negro, e permaneceria na Amazônia entre

os anos de 1783 e 1792. Nas palavras de Carlos Araújo Moreira Neto, prefaciador da “Viagem

Filosófica”:

As expedições oficiais portuguesas de limites desse período eram integradas, entre

outros, por naturalistas incumbidos de descrever adequadamente a região e seus

habitantes. Quase todos eram estrangeiros, aos quais se atribuía uma tarefa de

conhecimento que, segundo a ótica oficial, era de importância menor que as decisões

políticas sobre a demarcação (de fronteiras) (MOREIRA NETO, IN: FERREIRA,

1985, p. 18).

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Moreira neto, no referido prefácio, detalhará as vicissitudes da viagem do naturalista

baiano através do Negro e alhures. Explicará, por exemplo, que os estudos e as coleções naturais

constituídos por Ferreira na Amazônia, ao longo de tantos anos, não chegaram a ser trabalhados

pelo naturalista de modo a virem a se tornar uma obra de escrita acurada e coesa. O prefaciador

fala do “caráter compósito” (Ibidem, p. 13) dos escritos de Rodrigues Ferreira, os quais

constituem uma miscelânea de informações fragmentadas e textos de outros estudiosos da

Amazônia, um cumular de fontes a serem trabalhadas no futuro.

A primeira referência à ilha de Cotijuba aparece numa carta, de 08 de fevereiro de 1784,

transcrita pelo prefaciador da “Viagem filosófica” (Ibidem, p. 23-24), em que Alexandre

Ferreira presta contas das produções de sua viagem a Martinho de Mello e Castro, ministro do

Ultramar português15. Informa Ferreira a seu superior, entre outras coisas, que tem muito se

demorado pela região em torno à Belém, e que, àquela altura, quase quatro meses após sua

chegada na cidade, ainda não conseguiu embarcar para o Rio Negro, e que, por isso, resolveu,

junto a um seu auxiliar, ir-se até a vila de Cametá, de modo a melhor ocupar seu tempo. Sobre

esse trecho, o prefaciador Moreira Neto diz o seguinte:

Na mesma carta, Rodrigues Ferreira refere-se a uma fazenda da ilha de Cutijuba “onde

possue o Cappitão Luiz Pereira da Cunha hum perfeitíssimo Engenho de branquear o

arroz” [...] Essas e outras máquinas de beneficiar a produção agrícola foram

desenhadas a mando do naturalista e fazem parte da coleção de estampas da Viagem

Filosófica (MOREIRA NETO, IN: FERREIRA, 1985, p. 24).

Na própria “Viagem Filosófica”, o naturalista ajunta uma “Memória”, atribuída ao

Tenente-Coronel Theodozio Constantino de Chermont, em que se narra, cronologicamente, o

processo de introdução do arroz branco no Estado do Grão-Pará. Segundo esse escrito, a cultura

do arroz branco teria sido iniciada no ano de 1761 (FERREIRA, 1985, p. 133).

Cotijuba contribuiu em tal cultura. Notável é que, diferentemente do que sucedeu com o

Hospital Militar durante o período da Cabanagem, do engenho de branqueamento de arroz ainda

há, hoje, razoavelmente conservado, um perfeito sítio arqueológico. São as ruínas do Engenho

Fazendinha, localizadas na face a leste do trapiche da ilha, menos conhecidas e visitadas que as

do Educandário, porém testemunha histórica de igual valor, e de um passado mais remoto.

15 Moreira Neto informa que essa carta foi publicada por Pires de Lima, o qual “prefaciou e editou a

correspondência de Alexandre Rodrigues Ferreira e outros documentos oficiais sobre a Viagem filosófica”

(MOREIRA NETO, IN: FERREIRA, 1985, p. 22).

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Através do prefaciador da “Viagem filosófica”, foi possível saber, além do já exposto,

que o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira viria a contrair matrimônio justamente com a

filha do proprietário do dito engenho de arroz localizado em Cotijuba. Curiosamente, na

supramencionada “Memória” sobre a introdução do arroz branco na Província, a referência ao

engenho do Capitão Luiz Pereira da Cunha, apareceria apenas numa nota de rodapé. A nota

explica que até o ano de 1780 “não fazia vulto o engenho do capitão Luiz Pereira da Cunha, na

sua ilha de Cotijuba. Por isso não falou n’elle” (FERREIRA, 1985, p. 136). O autor do estudo

procurava justificar, com tal rodapé, a não menção ao Engenho de propriedade do sogro do

Naturalista, no corpo do estudo que fizera sobre o processo de implantação da cultura do arroz

branco nas terras paraenses. É a última menção à ilha de Cotijuba na “Viagem filosófica ao Rio

Negro”.

Referências mais remotas aparecem na obra de Augusto Meira Filho (1978). Trata-se de

um estudo sobre o Mosqueiro. No início do tópico “Contribuição à História da Ilha do

Mosqueiro” (Ibidem, p.25), Meira Filho utiliza-se de cartas náuticas compostas entre os séculos

XVII (1627) e XIX (1846), nas quais a ilha do Mosqueiro16 é descrita pelos viajante e

estudiosos, em geral estrangeiros, que compunham tais documentos. E como as ilhas, nas cartas,

são apresentadas em conjunto, classificadas por arquipélagos, outras ínsulas são mencionadas

pelos cartógrafos. Dentre elas, Cotijuba.

A primeira menção consta na “‘Carte Particulière du Mouillage et des Abords’ de La Ville

do Pará, de Montravel de 1846” (MEIRA FILHO, 1978, p. 26). Meira Filho explica que, nessa

carta francesa, aparecem as ilhas litorâneas, dentre elas Mosqueiro, e as ilhas confronte à Belém.

Em meio a estas menciona-se, por derradeiro, Tatuoca e, antes, uma certa “Coutejuba”

(Ibidem).

Num mapa de 1764, sem maiores identificações, Meira Filho afirma aparecerem, “ao

longo da costa paraenses” (Ibidem), inúmeras ilhas, dentre elas a de “Cutiguba” (Ibidem).

E, por último, na carta composta por João Teixeira Albernaz, de 1640, a qual demarca

desde o “Rio Turi até o Cabo Norte” (Ibidem, p. 25), aparece, no arquipélago, o nome

“cojuituba” (Ibidem).

As três menções relacionadas apresentam nomes diferentes. No caso do último nome,

“cojuituba”, sequer podemos afirmar tratar-se, de fato, da ilha cuja trajetória histórica quisemos

16 A maior das ilhas da região insular de Belém, localizada ao norte do centro urbano, com as faces praianas

voltadas às baías de Santo Antônio e do Sol. Separa-se do continente e da ilha de Caratateua-Outeiro pelo Furo do

Maguari, sobre o qual foi construída, na década de 1970, uma ponte interligando a zona urbana. É a ilha, das que

compõem o Município de Belém, mais desenvolvida em termos de urbanização.

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esboçar. E se ajuntarmos às três nominações relacionadas, as outras já mencionadas no correr

do texto (Cotijuba e Cutijuba), caso nenhum nome refira-se à outra ilha, identificamos, nos

registros históricos, cinco denominações diferentes para a mesma ínsula ao longo de quatro

séculos.

Eidorfe Moreira, em seu já referido estudo sobre as ilhas de Belém, comenta, no excerto

a seguir, o efeito da variação toponímica em relação à região insular em geral: “Várias dessas

ilhas sofreram alteração no nome, umas leves, outras radicais, razão por que nem sempre

concordam os mapas e os livros a respeito dessa toponímia” (1966, p. 69).

A aceitação geral de que a tradução do nome supostamente urdido em língua tupi,

“Cotijuba’, como sendo “trilha dourada” – numa também suposta alusão à textura e à cor das

falésias em cujo sopé localizam-se algumas praias –, configura um indício de que a história da

ilha de Cotijuba estende-se além do que nos propusemos a ir. Um mergulho de maior fôlego

deve, entre outras coisas, explorar as relações entre as ilhas, Cotijuba em especial, e os povos

originais estabelecidos no estuário. Relações essas que começaram a ser alteradas a partir do

início do domínio português sobre a Amazônia.

2.4 O Contexto Histórico de implantação do Educandário Nogueira de Faria: a Segunda

República (1930-1934), Primeira Interventoria de Magalhães Barata

Raimundo dos Santos, em entrevista realizada em 17/07/2015, disse que a data de

inauguração do Educandário Nogueira de Faria foi 24 de outubro de 1933. Entretanto, Pereira,

Faria e Santos no artigo “Cotijuba no contexto histórico da cidade de Belém: a história da ilha

que poucos conhecem” (2001, p. 80), afirmam, sem citar a fonte, que a inauguração do

empreendimento se deu em outubro de 1934, como forma de homenagem à Revolução de 1930,

a qual eclodira justamente nesse mês.

A partir de indicações contidas no estudo “Registro histórico da ilha de Cotijuba” (1992),

do historiador Assunção Amaral, localizamos notícias no jornal “O imparcial” na hemeroteca

da biblioteca pública Arthur Vianna, as quais indicam que, ao longo do ano 1933, desde o mês

de janeiro até pelo menos o mês de agosto, o canteiro de obras do futuro Educandário recebia

visitações de autoridades e da imprensa. Assunção Amaral (1992, p. 8 e 9), tendo como fonte o

mesmo jornal, demonstra que no mês de junho de 1934 a instituição já recebia menores

delinquentes remetidos à ilha pela polícia.

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As informações não coincidentes parecem traduzir a confusão característica daquele

período turbulento da história paraense e brasileira, inaugurado com a Revolução de outubro de

1930.

Considerando, por outro lado, que a ilha de Cotijuba, consoante informações veiculadas

em “O imparcial”, recebia ao longo do ano de 1933 visitas para acompanhamento das obras de

construção do prédio onde futuramente a instituição viria a funcionar, assim como as

dificuldades para soerguer um prédio vultuoso numa ilha distante do centro urbano, é bastante

provável que ao longo desse ano (1933), não ocorrera a inauguração do Educandário, à

diferença do afirmado por Raimundo dos Santos. É bom lembrar que seu Raimundo aportara

na ilha apenas em 1943, sendo tal informação obviamente ouvida de terceiros. É de se notar,

contudo, a coerência do dia atribuído à inauguração da instituição pelo depoente: em 24 de

outubro comemora-se o aniversário da Revolução de 1930. Convém, além disso, notar que

coincidem a informação prestada por ele e pelos historiadores Pereira, Farias e Santos, quanto

ao mês de inauguração da instituição: outubro.

Porém, se tais evidências fazem perceber que em outubro de 1934 ocorrera, de fato, a

inauguração do Educandário, como explicar que, antes disso (desde pelo menos junho de 1934,

segundo o jornal “O imparcial”), a instituição já recebia sua clientela? Nesse caso, o mais

provável é que os menores já eram encaminhados ao reformatório meses antes da inauguração

oficial, a qual ocorreria mais tarde, em outubro. Naturalmente, a Revolução, aninhada ao poder

recentemente (há quatro anos), aproveitava a ocasião para sua autoafirmação e autopromoção.

O mais importante de todas essas considerações, todavia, é a percepção de que o contexto

histórico vigente quando da proposição, construção e início do funcionamento do Educandário

Nogueira de Faria (então denominado Colônia Reformatória de Cotijuba), é o período iniciado

com a chamada Revolução de 1930. Porém, como se caracterizou esse peculiar período

histórico? Como se criou um clima favorável à criação de um reformatório? Quem foram os

agentes responsáveis pela criação?

Em primeiro lugar, devemos entender o movimento revolucionário que eclodiu em

outubro de 1930, e que elevou Getúlio Vargas ao governo central do país e Magalhães Barata

à chefia política no Estado do Pará, como uma reação às formas de dominação das elites

oligárquicas do país, domínio esse que vicejou ao longo de mais de quatro décadas, de 1889 a

1930.

A dominação oligárquica tinha como traço mais manifestamente característico o chamado

coronelismo, forma política de controle de massas difundida amplamente na sociedade

brasileira de então. Mota e Lopez comentam esse traço marcante:

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A Primeira República foi, por excelência, uma república de “coronéis”. Se, no plano

federal, as oligarquias economicamente mais poderosas e um pouco menos arcaicas

tomaram conta do governo central, no plano local a cena política era dominada pela

figura do “coronel”, grande proprietário rural que quase sempre detinha uma patente

militar. O resultado das eleições – nos planos municipal e estadual tanto como no

federal – dependia dos coronéis, pois esses potentados controlavam os eleitores e as

eleições, dando o tom da vida social e política. Com seus bandos de jagunços e

capangas armados, garantiam a vitória das oligarquias estaduais nas eleições (2015,

p. 568).

Nesse contexto, pouco ou nenhum espaço sobrava para as classes humildes, postas à

parte do sistema dominante. A miséria vicejava, as possibilidades de ascensão social eram

diminutas ou inexistentes, a educação um bem distante do grosso da população. A Segunda

República, socialmente falando, era atrasada e selvagem. Mota e Lopez analisam a situação:

A República prolongava os hábitos do Império. Os pobres permaneciam excluídos

(seja pelo censo, seja pela exigência da alfabetização), assim como as mulheres, os

indigentes, os menores de idade, os praças de pré, os membros de ordens religiosas.

A exclusão dos analfabetos era duplamente discriminatória, pois a constituição

republicana retirava do governo a obrigação do oferecer instrução primária, que

constava do texto imperial (2015, p. 569).

No Estado do Pará, a situação ia de mal a pior. Além dos desmandos políticos, da

dominação irrestrita por parte das elites locais, da miséria abatendo a população humilde –

características do contexto nacional –, havia uma crise geral específica do Estado: o Pará não

conseguia superar a convulsão que se instalara com a falência do modelo econômico baseado

na exportação da borracha. A decadência atingia todos os setores da sociedade local. O

descrédito dos políticos vinha induzindo a inúmeros motins, revoltas e tentativas de revolução.

Em livro dedicado a esquadrinhar a vida e a obra de Magalhães Barata, o político que mais se

empoderaria com o advento da revolução de 1930 no Pará, o historiador Carlos Rocque, faz um

resumo da situação extrema no Estado:

Se no alvorecer dos anos 30 o Brasil enfrentava grande crise financeira por causa da

queda do café e da quebra da Bolsa de Nova Yorque, o Pará ainda sofria as graves

consequências da debacle da borracha. Aos dourados anos da primeira década do

século, quando Antônio Lemos transformou Belém numa moderna metrópole e

Augusto Montenegro realizou o mais profícuo de todos os governos, sucederam-se

anos de penúria. João Coelho assumiu em 1909 já com o problema financeiro

agravando-se; Enéas Martins, em seu quatriênio, ficou sem condições de melhorar o

erário estadual, completamente exangue: a falência da economia regional tornara-se

total. Lauro Sodré também nada pôde fazer e saiu desgastado, pois realizou um

governo muito diferente daquele que realizara entre 1891 e 1896, quando a borracha

dava o equilíbrio necessário na balança de pagamentos. Com Souza Castro a crise

atingiu o ápice: o funcionalismo com seus vencimentos atrasados em muitos meses, a

penúria batendo em quase todas as portas. Para uma despesa fixada em 14 mil contos

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de réis, a arrecadação não ultrapassava a casa dos cinco mil contos, ou seja, quase

36% do mínimo necessário (1999, p. 85).

A revolução que eclodiria em outubro de 1930, estimulada por esse contexto de atraso e

pela mais franca exclusão das classes humildes do mundo dos negócios públicos, foi facilitada

por outro fator importante: é que nas primeiras décadas do século vinte emergiu, influenciada

por um conjunto de acontecimentos e de inovações nas visões de mundo e de sociedade que se

difundiam, em nível interno e internacional, uma nova mentalidade. Relativa a diversos ramos

da atividade humana, tal mentalidade fazia parecer cada vez mais rústica e atrasada a conjuntura

nacional.

A hegemonia dos estados Minas Gerais e São Paulo, capitaneada por elites econômicas

ligadas sobretudo à produção cafeeira e que se vinham alternando no poder desde o advento da

República em 1889, passou a ser dissecada e questionada duramente por historiadores e

intelectuais, e acusada de responsabilidade pelo atraso estrutural da nação. Mota e Lopez

afirmam que:

Embora atrasado do ponto de vista político-institucional, em algumas regiões,

sobretudo no sudeste, com a imigração, a industrialização e o crescimento urbano, o

país ia lentamente mudando de fisionomia. Refletindo a respeito de tantas alterações,

algumas lideranças mais atentas e viajadas denunciaram o tremendo atraso a que o

país parecia condenado. Surgiram nesse período após 1930 – depois da República

Velha (1889-1930) – intelectuais formados na Primeira República – como Euclides

da Cunha, Manuel Bomfim, Astrojildo Pereira, Monteiro Lobato, Jorge Amado,

Miguel Couto (“o Brasil só tem um problema nacional: a educação do povo”),

Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Mário de Andrade, Fernando de Azevedo, Anísio

Teixeira, entre outros –, que denunciaram o peso da herança colonial e propuseram

novas formas de organização social, política, educacional e cultural para o país (2015,

p. 524 e 525).

O permanente questionamento das formas de domínio político do país tornará as duas

décadas anteriores à Revolução de 1930 um período extremamente agitado. Será um período

também em que se desenvolverá a necessária consciência ideológica por parte dos futuros

revolucionários, fase de desenvolvimento de um discurso contestatório cada vez mais ousado.

Em nível nacional, a classe que mais relevo histórico possui quando se trata da agitação política

peculiar do período, é a dos tenentes. São eles oficiais do exército brasileiro, não raro

provenientes das classes sociais mais modestas e em geral formados nas escolas militares, sob

influxo da filosofia positivista. Mota e Lopez afirmam que “Durante a Primeira República, os

militares triplicaram o número de seus efetivos. A organização militar cresceu rapidamente,

aumentando seu poder” (2015, p. 604). Entre as revoltas e motins protagonizados pelos tenentes

ao longo da década de 1920, são mais debatidos pela historiografia: o levante de 1922

(conhecido como os 18 do forte), ocorrido no Rio de Janeiro e acompanhado no Mato Grosso;

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e a tentativa de revolução de 1924, chefiada por Izidoro Dias Lopes, que, tendo São Paulo como

epicentro, se espalhou pelo Brasil, inclusive pelo Pará, com a adesão de segmentos do exército

sediados em Óbidos e Belém. A famigerada Coluna Prestes também consistiu num movimento

contestatório, o mais radical de todos, eivado da ideologia comunista e chefiado também por

um oficial do exército, o Capitão Luís Carlos Prestes. O clima permanente de contestação e de

atividade revolucionária levou os últimos governantes da República Velha, Arthur Bernardes

(1922-1926) e Washington Luís (1926-1930), a adotarem posturas extremamente violentas

“acionando o tempo inteiro a Lei Celerada, de repressão, desterro e deportação dos dissidentes

e revolucionários”, nas palavras de Mota e Lopez (Ibidem, p. 607).

Há um episódio significativo, antecedente alguns meses à operação revolucionária de

1924, o qual importa aqui narrar, e que demonstra o descontentamento geral e a estratégia de

luta permanente empreendida pela oposição ao governo republicano, nesse caso o encabeçado

por Arthur Bernardes. O protagonista desse episódio pitoresco é o sujeito que se consagraria

como o mais importante político da Revolução de 1930 no Pará, o então primeiro-tenente

Joaquim de Magalhães Cardoso Barata. O comando revolucionário determinara uma ação após

a qual seria deflagrado o movimento de tomada dos governos. A ação seria a de aprisionar o

ministro de guerra do Governo de Arthur Bernardes, quando de uma viagem empreendida por

ele ao sul do país. Carlos Rocque, tomando por base estudo do historiador Hélio Silva, assim

resume o episódio:

quando o ministro de guerra, general Setembrino de Carvalho, regressava do Rio

Grande, em dezembro de 23, o tenente Barata seguira do Rio para o Paraná, e no dia

24, com a missão de prender no dia 28, na Cidade de Ponta Grossa, o chefe do

Exército, o que seria o sinal para o levante simultâneo de todos os corpos aquartelados

no Rio de Janeiro. Mas o plano fora denunciado e Barata preso em 25, em São Paulo,

e recambiado diretamente para o 27° Batalhão de Caçadores de Manaus (1999, p. 36).

Magalhães Barata é um dos muitos militares que atuaram de forma intensa e incansável

ao longo dos anos 1920, em prol da superação do status quo. Sua persistente motivação em

levar adiante a causa revolucionária o levou à prisão, inúmeras vezes, inclusive ao exílio.

Haveria, com efeito, de atuar revolucionariamente na própria cidade para onde fora

encaminhado quando de sua prisão por conta do caso do general Setembrino. Porém em

Manaus, quando da eclosão da revolta de julho de 1924, Barata iria muito mais longe que nessa

malograda tentativa de captura do chefe do exército nacional. Dessa vez, ao lado de militares

como José Carlos Dubois e Ribeiro Júnior, Barata veria triunfar o ato de tomada do governo do

Amazonas, numa ação rápida e precisa, ocorrida a 23 de julho de 1924, pouco mais de duas

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semanas após a eclosão do movimento em São Paulo. Barata assumiria, uma vez instalado o

governo revolucionário em Manaus, a chefia da Polícia Militar.

As atividades revolucionárias de Magalhães Barata e de seus pares estenderiam-se para

além da capital do Amazonas, a jusante do grande rio, alcançando as cidades de Óbidos (onde

estava localizada estrategicamente a instalação militar 4º Grupo de Artilharia e Costa do Forte

de Óbidos), Juruti e Santarém. Carlos Rocque (1999, p.37), afirma que o desejo de Barata era

o de conquistar sua terra natal. Sabe-se porém que o insucesso da revolução em São Paulo,

esmagada pelas tropas legalistas, e a expedição chefiada pelo General Menna Barreto para deter

o avanço revolucionário no Baixo Amazonas, não permitiriam a Barata concretizar, por ora,

suas pretensões em relação ao governo do Pará. A ação revolucionária que eclodiu em Belém,

por ocasião das agitações desse conturbado julho de 1924, foram controladas pelas tropas

legalistas que protegiam o governo Souza Castro. A atividade revolucionária frustrada em

Belém, ocorrida a 26 e 27 de julho, teve como marco, como amiúde foi escrito nas páginas da

história do Pará, a morte do Capitão do exército Assis de Vasconcelos, fulminado por fuzilaria

na rua que, recentemente, foi batizada com seu nome.

Magalhães Barata ganharia vulto entre seus pares do exército em inúmeras outras

ocasiões em que se pugnava em favor da revolução, as quais não há espaço aqui para descrever.

Importa, entretanto, destacar que semelhante atividade pela alteração estrutural do país,

alteração a qual se constituía, de fato, como uma demanda nacional, criaria grande expectativa

quanto aos feitos do governo revolucionário. A convulsão nacional que levaria à superação da

República Velha e à instalação de novo sistema político a partir de outubro de 1930, induziu os

chefes revolucionários a responder à crise geral que vicejava no Brasil. É no âmbito das medidas

revolucionárias, e no significado de tais medidas para o governo instalado em nível local e no

Brasil como um todo, que reside a explicação histórica mais ampla, a qual permite elucidar a

gênese de nosso objeto de estudo.

A Revolução de outubro de 1930 implicou uma alteração nas formas de domínio político

e econômico no país. Fala-se aqui em revolução no sentido de alteração das formas de domínio,

de inauguração de nova fase da história, não, obviamente, revolução como redistribuição da

propriedade ou, tampouco, como superação da contradição opressores/oprimidos. Afinal, para

usar da argumentação de Boris Fausto:

Ao se caracterizar a Revolução de 1930, é preciso considerar que as suas linhas mais

significativas são dadas pelo fato de não importar em alteração das relações de

produção na instância econômica, nem na substituição de uma classe ou fração de

classe na instância política. As relações de produção, com base na grande propriedade

agrária, não são tocadas; o colapso da hegemonia da burguesia do café não conduz ao

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poder político outra classe ou fração de classe com exclusividade. Esta última

circunstância elimina as explicações monistas do episódio, em termos de ascensão da

burguesia nacional, revolução das classes médias (1989, 86).

As medidas ditas revolucionárias, que visavam promover as tão almejadas mudanças

estruturais no país – referência histórica significativa ao desenrolar da presente pesquisa –,

obviamente não se manifestaram com igual intensidade nos diversos rincões do continental

território nacional. Em algumas partes da nação foram tais medidas mais radicais. No Pará, por

exemplo, a atividade política do Interventor Federal Magalhães Barata, foi, consoante as

afirmações de Carlos Rocque, bastante ousada. Escreve o historiador que Barata

Tomou medidas altamente populares, que contrariavam os ricos, ou a chamada “elite”.

Foi ele quem fez a primeira reforma agrária em todo o Brasil, quando desapropriou

muitos castanhais, lá no sul do Estado, entregando as terras aos posseiros. E em Belém

também desapropriou muitos hectares de terras de ricos proprietários, ou

“latifundiários urbanos”, dividindo entre os sem-terra de então, os lotes que

praticamente confiscara. Obrigou a indústria e o comércio a terem, pelo menos, dois

terços de seus empregados nascidos no Brasil (como a maioria dos empresários de

então era de estrangeiros, preferiam estes ter seus “patrícios” como empregados, em detrimento aos naturais da terra). E muito antes da Justiça do Trabalho, instituiu uma

carga máxima de trabalho semanal. Sem falarmos no congelamento dos preços do

remédio e dos aluguéis residenciais. Além de ter criado a Assistência judiciária

(modelo imitado em quase todos os outros Estados). Como vivíamos em um período

de exceção, ele podia mandar e desmandar. Porém, mais mandou que desmandou

(1999, p. 13).

A socióloga Denise Simões Rodrigues, em estudo relativo ao período, sublinha o risco

que as medidas mais ousadas tomadas pelo Interventor no Pará implicavam a ele próprio:

Tomando o poder, era preciso proceder as reformas administrativas difundidas pela

propaganda revolucionária. O governo foi assumido por uma junta governativa, até

que foi nomeado Interventor – Tenente Joaquim de Magalhães Cardoso Barata,

paraense bastante conhecido por sua participação nos movimentos de 1922 e 1924. A

preocupação de provocar mudanças efetivas, dentro dos limites das propostas

tenentistas, dominou a ação do Interventor, levando-o a assumir posições perigosas

porque feriam interesses pessoais importantes no jogo político ou porque eram

posições marcadas pelo autoritarismo, pelo arbítrio (RODRIGUES, 1979, p. 32).

É importante dizer que o Pará, como diversos outros estados brasileiros, vivia, ao longo

dos anos antecedentes à revolução, uma situação terrível tanto social quanto economicamente.

As palavras mais usadas para referir-se a esse período são: decadência, descalabro e bancarrota.

O historiador Walter Pinto de Oliveira, em estudo relativo a um movimento de contestação à

Revolução de 1930 (a revolta do Forte de Óbidos, ocorrida em 1932), analisa a manipulação do

uso dessa caracterização pelo governo Barata, a partir de um documento (“Resumo da situação

do Pará”), no qual o Interventor presta contas de sua administração ao chefe maior da nação. O

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historiador atribui o procedimento manipulatório de Barata a sua busca de “rodear-se de

representações coletivas, mantendo enfeixado nas mãos o domínio do imaginário e do

simbólico, com vistas a garantir obediência e legitimidade ao poder” (2013, p. 36). Daí,

argumenta ainda o pesquisador, a busca incessante de Barata e de seus auxiliares de demarcar

a história, tendo como grande marco inaugurador do novo período a própria revolução. O

documento em questão é uma expressão dos atos do governo revolucionário e nele o Interventor

afirmou “que, na década de 1920, o Pará estava entregue à ‘bancarrota’” (Ibidem).

Não obstante, a crise financeira e a situação dramática do Estado existiam de fato e

constituíam um dos principais problemas a ser enfrentado pelo governo. Denise Simões

Rodrigues resume, a seguir, os termos da crise que afligia o Estado do Pará:

A crise econômico-político-social que já se arrastava por vários anos no Pará levou o

governo do Estado a uma situação dramática, de total descrédito perante o povo. O

atraso no pagamento dos vencimentos do funcionalismo público e dos empréstimos

assumidos com instituições públicas e particulares são indicadores valiosos da

situação de descalabro, de desorganização administrativa do aparelho do Estado

(RODRIGUES, 1979, p. 24 e 25).

Como o governo chefiado por Magalhães Barata procedeu para dar tento à crise financeira

a ponto de poder investir, apenas após três anos de instalado o governo, num educandário na

ilha de Cotijuba?

Uma vez aninhado ao poder central do estado, o governo de Barata adotou medidas que

podem ser consideradas radicais, dado o impacto de seu alcance. Tais medidas – batizadas por

Carlos Rocque como “medidas de choque” (1999, p. 178) – produziram dois efeitos principais,

os quais seriam características marcantes da administração revolucionária no Estado. Um

desses efeitos – o alcance de anseios populares através de ações imediatamente benéficas à

população – geraria dividendos políticos a Barata ao longo de toda a sua carreira política. Eis

três exemplos desse tipo de medidas com efeito popular imediato: a que reduzia os aluguéis

residenciais em 25 ou 30%; a desapropriação de latifúndios urbanos na capital do Estado e a

legalização da posse pela população que lá vivia; e a criação de uma Assistência Judiciária para

a população carente que não pudesse arcar com as custas de um processo judicial.

Por outro lado, o governo revolucionário necessitava reequilibrar as contas públicas,

recapitalizar o Estado e recuperar seu poder de investimento, sem o quê, obviamente, grande

parte do programa de poder revolucionário não se efetivaria. As medidas nesse âmbito

produziriam o efeito de restabelecer a força do Estado, de modo a possibilitá-lo dirigir

novamente o desenvolvimento local, conformando, ao mesmo tempo, um patrimônio de obras

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e um legado aos futuros governantes. Como exemplos dessas medidas de recuperação

financeira do Estado estão: os inúmeros decretos confiscando bens privados ou sequestrando

vultosas quantias em dinheiro de contas de pessoas físicas ou jurídicas; o aumento de impostos

em certos setores da indústria e dos serviços; a pronta cobrança de impostos não pagos por

grandes grupos econômicos em atividade no Estado do Pará, às vezes, inclusive, procedendo

ao confisco de bens puro e simples; a reversão ao Estado de alguns milhares de hectares de terra

concedidos a particulares ao longo dos governos da República Velha e o restabelecimento dos

modos de exploração desses latifúndios. Essas medidas atingiram diretamente alguns dos

principais nomes da antiga política paraense, como os ex-governadores Eurico Valle (que

chegou a ser detido), Dionísio Bentes e os latifundiários José Júlio Andrade e Francisco

Chamié. O jornal “Correio da manhã” e a sede do Partido Republicano Federal (PRF), foram

sumariamente confiscados. Denise Simões Rodrigues assim se refere a esse conjunto de

medidas adotadas pelo governo de Barata:

Mas, sem dúvida foram os impostos aliados à boa situação do mercado internacional

em relação à castanha-do-pará, que lhe permitiria ao menos o indispensável: pagar os

funcionários, resgatar algumas dívidas, amenizando a situação de descrédito que

pairava sobre o Estado e realizar obras, que dariam ao seu desempenho no cargo um

dinamismo e um caráter empreendedor talvez excessivo, falso, mas que convencia o

povo e estimulava a relação governante-governados, mobilizando-os a seu favor.

Pobre povo, sofrido, mal vestido, mal alimentado, quase que analfabeto que precisava

crer em alguma coisa desesperadamente, para poder suportar a própria miséria

(RODRIGUES, 1979, p. 42).

O governo revolucionário havia extinguido o legislativo estadual, reformado o judiciário

e, sobretudo, aninhado-se ao poder num momento em que a sociedade considerava

completamente falido o modelo político adotado pelo sistema governativo anterior. Daí as ações

empreendidas, além de encontrarem guarida na maioria das classes sociais de então, todas elas

ressentidas da antiga política, não sofrerem as vicissitudes as quais estariam submetidas caso

estivessem em vigor um legislativo e um judiciário em dissonância com a administração central.

O governo Barata governou de maneira plena num momento incomum da história nacional, daí

seus atos, mesmo os mais ousados, terem podido se efetivar, num primeiro momento, sem

outras grandes convulsões. Obviamente, as reações virão mais tarde, quando se reorganizar a

oposição dos que, fora ou mesmo dentro do governo, sentirem-se logrados ou não atendidos em

seus anseios pelas medidas adotadas por Barata e seus pares na administração estadual.

Convém agora esboçar um rápido quadro das medidas educacionais adotadas pelo

governo revolucionário de Magalhães Barata. Nesse sentido, o Professor Alberto Damasceno,

no livro “A 2ª República e a Educação no Pará”, analisando a evolução das matrículas e o

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avanço da educação escolarizada para o interior do Estado, afirma ser muito expressivo o

aumento quantitativo das matrículas nas escolas públicas. “De maio de 1929 a 1936, as

matrículas cresceram cerca de 242%, o que caracteriza, de fato, maior preocupação com a

expansão das oportunidades de escolarização.” (2012, p. 59). O estudo de Damasceno, que vai

além do governo de Barata e alcança os dois primeiros anos de seu sucessor, Gama Malcher,

aponta o aumento da oferta de educação pública não apenas na capital do Estado, porém interior

adentro, em outra atitude inédita do governo revolucionário: levar serviços públicos aonde

jamais o Estado o havia feito. Acrescenta Damasceno:

Este é um bom indicador da direção da política educacional na 2ª República adotada

no Pará, em consonância com as diretrizes emanadas do comando geral do governo

revolucionário, na perspectiva de “invadir” as bases das oligarquias rurais através da

implantação das políticas sociais nas áreas rurais (2012, p. 63).

As ações do governo revolucionário de Barata no âmbito da escolarização devem ser

analisadas com a devida prudência crítica. Pois, embora haja algum avanço na oferta de ensino

público, na inclusão do interior do Estado e na educação oferecida às mulheres e aos

abandonados, é preciso enxergar criticamente os limites impostos pelo novo estado de coisas.

A qualidade do ensino oferecido é um fator a ser olhado com criticidade, afinal, as demandas,

no campo educacional, eram urgentes e muito amplas, o tempo de governo era curto e o

descalabro radical demais. Impossível que se dispusesse dos recursos necessários (sobretudo os

recursos humanos), à oferta de um ensino de qualidade em tão pouco tempo e com a

infraestrutura ainda precária do Estado. Como nos diz Damasceno (2012, p. 72), Barata, na sua

sede de reformar em pouco tempo o ensino público, também cometeu “agressões à qualidade

do mesmo, permitindo – à custa de interesses eleitorais – equívocos, como a inclusão de

professoras sem habilitação no quadro de pessoal docente das escolas públicas” (Ibidem).

A reforma do ensino público, com todas as suas inovações e veleidades, não constitui

aquilo que chamamos, na esteira de Carlos Rocque, de “medidas de choque” do governo

revolucionário. Tal reforma foi progressiva, assim como foram progressivos o aumento do

número de matrículas na rede de ensino – variando de 20.765 em 1929 para 61.784 matrículas

em 1936, o que significa aumento de 241,9% (Damasceno, 2012, p. 59) – e a expansão da

educação pública para o interior. Magalhães Barata e seus pares no poder fizeram da reforma

do ensino um conjunto de medidas de consolidação do governo revolucionário. Era uma forma

de atender a uma demanda social cada vez mais presente na pauta nacional – isto é, a educação

do povo –, criando, ao mesmo tempo, oportunidade de controle ideológico, pois em nenhum

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momento tal reforma transcendeu os limites do ideário tenentista revolucionário. Como adverte

Damasceno:

É preciso que se diga, todavia, que a modernização do ensino não tinha em todos os

momentos e lugares a marca da transformação social. No Estado do Pará pareceu-nos

ficar patente o forte vínculo que tal processo manteve com a “manutenção da nova

ordem” não atingindo, em nenhum momento, outro campo teórico, político e

ideológico que não fosse aquele permitido pelas novas oligarquias encrustadas no

poder estadual (2012, p. 70).

O advento de uma colônia reformatória na ilha de Cotijuba, do mesmo modo que a

reforma do ensino, constitui medida de consolidação do governo revolucionário. Responde

igualmente a uma demanda social, a saber, dar tratamento ao problema da infância desvalida, e

configura outra oportunidade de disseminar a ideologia revolucionária. Através de tais medidas

o governo revolucionário ia perfazendo sua obra e criando um legado.

O governo de Magalhães Barata no Estado do Pará contou com a atividade intensa de

inúmeros colaboradores, a maioria deles gente com participação direta nas campanhas

revolucionárias. Entre tais colaboradores, podemos destacar o padre Leandro Pinheiro, que

assumiu a Intendência Municipal de Belém; Ismaelino de Castro, assistente militar do Estado;

Eduardo Chermont, chefe de Polícia; e Moura Carvalho, comandante da Força Pública no

período da primeira Interventoria de Barata e quem, mais de uma década depois da Revolução,

viria a chefiar o governo do Estado.

Nos caminhos da presente pesquisa, porém, é um sujeito não envolvido diretamente com

as causas e campanhas revolucionárias, quem vai assumir importância crucial: Raymundo

Nogueira de Faria. Declarou ele, em livro publicado em 1945 (“O caminho da história”), já

exercer cargos públicos de caráter político desde o governo de Lauro Sodré, a partir de 1916,

compondo desde então o quadro funcional de primeira linha dos demais governos anteriores à

Revolução de 1930. Definitivamente, Nogueira de Faria não fora um revolucionário. É

significativo, portanto, que o futuro primeiro diretor da Colônia Reformatória de Cotijuba (mais

tarde rebatizada com seu nome), tenha alcançado tamanha importância junto ao governo

revolucionário. É muito provável que as atividades de Nogueira de Faria em defesa da infância

pobre, sua capacidade intelectual (autor de muitos livros), seu caráter e sua capacidade

administrativa, numa palavra, seu mérito pessoal, sejam os fatores os quais levaram Barata a

atribuir-lhe tanta importância, a ponto, inclusive, de Nogueira de Faria assumir interinamente

o governo nas ausências do chefe maior.

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No início do governo revolucionário, quando a administração ainda estava sob o poder

de uma junta governativa, foi baixado o Decreto nº 04, de 30 de outubro de 193017, o qual

visava uma reforma na magistratura do Estado, e através do qual Raymundo Nogueira de Faria

é nomeado Juiz de Direito na 5ª vara de Belém. É impressionante, portanto, a ascensão que ele

terá no governo, principalmente se considerarmos que Nogueira de Faria não compunha o grupo

dos revolucionários. Menos de dois anos depois, em 03 de março de 1933, consoante notícia

veiculada no jornal “O imparcial”, ele assumiria a Secretaria Geral do Estado. Antes disso, e

afastando-se do juizado de Belém, já exercera a função de Chefe de Polícia do governo. Essa

notícia é uma fonte interessante para compreendermos a relação bastante forte que o grande

protetor do futuro educandário, objeto do presente estudo, estabeleceu com o Interventor

Federal. Informa o Jornal (03.03.1933, p. 01 e 04) que a cerimônia de posse ocorreu às cinco

horas da tarde, tendo afluído ao evento grande número de pessoas gradas da sociedade e da

administração pública. Em seguida, o jornal reproduz o discurso de Magalhães Barata no ato

de posse de seu Secretário Geral. Eis alguns momentos desse discurso:

O dr. Nogueira de Faria não participou, é certo, dos conciliábulos revolucionários, das

luctas passadas.

E eu nunca reconheci essa qualidade como a única sufficiente a recommendar alguém

ao desempenho de alta funcções do Estado. [...]

Depois que a Revolução venceu esqueci as luctas, as paixões e me senti regressado

aos sentimentos que eu alimentava antes da victória. [...]

É justamente o que eu poderia declarar quanto ao dr. Nogueira de Faria.

Ele possue qualidades sufficientes para bem ajudar me.

Tem dado provas de lealdade, tão necessária a quem governa, nesta hora de paixões,

esforçando se, para que eu chegasse, pacificamente, aos fins desejados pelo meu

governo.

Lembro de seus actos que bem corresponderam ao meu contentamento ao vel o

acceder ao convite que lhe fiz, em acceitando aquella tremenda missão, deveras

espinhosa, verdadeira prebenda, que foi a chefia de polícia. [...]

Só elle e eu poderemos conversar, a sós, e lembrar o que occorreu, as iniciativas que

tomamos, os resultados que colhemos, tudo isso sem alarde, sem estrepitos,

silenciosamente. [...]

Ao dr. Nogueira de Faria, pois agradeço, o seu assentimento em vir colaborar mais

diretamente em meu governo (O IMPARCIAL, 03.03.1933, p. 01 e 04).

A quem quer que se detenha em estudos sobre o período histórico aqui analisado, não

passará despercebido o modo quase sempre agressivo com que, sobretudo a cúpula do governo,

dirigia-se e interpelava pessoas ligadas aos círculos de poder estabelecidos antes da Revolução

17 Ver: Pereira, Escorço histórico dos atos da Revolução de 30 no ParḠBelém: 1998. Nesta obra constam os atos

do governo revolucionário, desde os decretos do governo militar, chefiado pelo Coronel Landry Salles, passando

pelos decretos da Junta Governativa Provisória, até os emanados pelo governo do Interventor, ao longo dos meses

de outubro a dezembro de 1930.

Compunham a Junta Governativa: Antonio Rogerio Coimbra; Octavio Ismaelino Sarmento de Castro; Mario M.

Chermont e Padre Leandro Pinheiro.

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de 1930. E não obstante o discurso do Interventor parecer consagrar certa imparcialidade, a

escolha de Nogueira de Faria para aquele alto cargo, constitui um fato realmente incomum. É

muito provável que a atividade judiciária e a vida pregressa de Nogueira de Faria tenham

chamado a atenção do Interventor, assim como o equilíbrio com que ele exerceu o cargo de

Chefe de Polícia. O discurso permite entrever o grau de intimidade existente entre os dois

políticos (“Só elle e eu poderemos conversar, a sós, e lembrar o que ocorreu...”). Permite ver

igualmente a capacidade de Barata de capitalizar qualquer fato ligado a seu governo, fazendo

parecer aos leitores do jornal “O imparcial”, aquele seu ato singular, uma prova de que ele,

Barata, administrava de maneira neutra, para além dos embates e paixões políticas vigentes

naquele contexto espinhoso.

A data de posse de Nogueira de Faria no segundo mais alto cargo do Estado do Pará

(abaixo apenas do chefe maior) é significativa: 03 de março de 1933. Meses antes, em 06 de

janeiro, noticiava o Jornal “O imparcial”, a visita de Barata à ilha de Cotijuba para inauguração

das obras de construção da futura colônia reformatória. Foi, portanto, na condição de Secretário

Geral do Estado que Nogueira de Faria encarou a tarefa de edificar, numa ilha distante dezenas

de quilômetros da urbe, a instituição que ampararia a juventude abandonada e delinquente da

capital. Conta-nos o Secretário Geral do primeiro governo de Barata que, porém, a ideia de

realizar semelhante projeto, nasceu antes, quando ainda estava na chefia de polícia. Ele atribui,

em seus escritos, à sensibilidade de Barata para com os pobres, sobretudo com as crianças

pobres, a motivação primeira da criação do futuro educandário. Num livro no qual narra casos

exemplificando a bondade e a sensibilidade do Interventor Federal para com as classes

humildes, Nogueira de Faria faz o seguinte relato:

Mas, aqui mesmo, na Capital, presenciei comovedores fatos. Foi a detenção de uma

criança na central de polícia o motivo da criação da Colônia Reformatória de Cotijuba,

que hoje conta por muitas e muitas dezenas de menores que, apanhados na Rua, se

encontram amparados e encaminhados, exercendo profissões dignas (1945, p. 89 e

90).

Seu Raimundo Oito muito provavelmente deve ter ouvido a narrativa do próprio Nogueira

de Faria. Na entrevista que nos concedeu em 17 de julho de 2015, ele fala o seguinte sobre o

advento do educandário:

O General Joaquim de Magalhães Cardoso Barata, quando ele era Interventor do

Estado, vindo pela central de polícia, ele encontrou menores no meio de adultos... O

juiz encontrou... E propuseram procurar um lugar onde eles pudessem fazer um

colégio para menores. Conclusão: ele (Barata) era Interventor do Estado na época. O

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juiz falou com ele, e eles andando por aí vieram bater em Cotijuba. E compraram essa

ilha de uma viúva por 36 mil réis... Aí começa a história por aqui.

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3 Memorial da ilha da redenção: o Educandário Nogueira de Faria e a ilha de Cotijuba

A presente seção está divida em três partes, constando duas subdivisões na última delas.

A primeira parte está focada no relato de Raimundo dos Santos relativo às circunstâncias

de seu ingresso no Educandário. O futuramente conhecido Raimundo Oito chegou na instituição

aos 14 anos de idade, já tendo ultrapassado algumas etapas da vida, nas quais viveu em meio a

grandes sofrimentos. Cotijuba apareceu a ele como uma alternativa à existência atribulada.

Em seguida, intentamos minuciar, tanto quanto as fontes documentais e a memória

nostálgica de Raimundo Oito permitem fazer, as caraterísticas da educação formal oferecida no

Educandário. O testemunho, nesse caso, ajuda a conformar ideia da rotina da instituição, em

termos de funcionamento, ao passo que as fontes documentais revelam nomes e dados.

A última parte é dedicada a explorar o sentido positivo incrustado na imagem da ilha da

redenção, sobreposta à Cotijuba pelos governos e governantes responsáveis pelo soerguimento

do reformatório e da colônia penal. No primeiro subtópico, descrevemos e analisamos os termos

da campanha cívica em torno da construção da colônia de Cotijuba, em princípios da década de

1930, a partir principalmente das comunicações feitas nos jornais impressos da cidade de

Belém, em defesa do empreendimento redentor.

No segundo subtópico a preocupação principal está em identificar os ecos redentores na

atividade dos dois homens públicos que mais pugnaram pela efetivação da ilha de Cotijuba

como local de recuperação de jovens e adultos desvalidos. Nogueira de Faria e Moura Carvalho,

não obstante todas as energias que dedicaram aos empreendimentos, toda a sinceridade com

que se devotaram às causas, não obtiveram êxito na batalha que se travou em torno da memória

da ilha de Cotijuba. A legenda da ilha da redenção, não fosse Raimundo Oito, se perderia no

limbo das décadas. E Cotijuba seria lembrada simplesmente como a ilha do diabo.

3.1 O ingresso de Raimundo dos Santos no Educandário Nogueira de Faria

Como já no presente trabalho foi uma vez referido, é no ano de 1943, aos 14 anos de

idade, que Raimundo dos Santos ingressa no Educandário e passa a morar na ilha de Cotijuba.

Ele já galgara então algumas etapas da vida: a infância e a puberdade. Ao longo de nossas

muitas conversas e entrevistas, contudo, fomos amadurecendo a constatação de que, para ele, a

fase venturosa da existência inicia com o ingresso no reformatório. Daí a narrativa dos

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acontecimentos precedentes a tal ingresso ser por ele minimizada, descrita em resumos e

pausas, fragmentada e dita de uma forma desapaixonada, ou mesmo irônica.

Foi da seguinte forma, por exemplo, que ele introduziu o relato das circunstâncias sob as

quais fora internado no Educandário: “É aí que minha história vai começar!”. Tal afirmação,

acreditamos, consubstancia um aspecto muito singular da persona de Raimundo dos Santos, a

saber: sua declarada empatia pelo ritmo da vida com o qual se deparou na instituição, empatia

que o harmonizou e o ligou profundamente ao lugar, de sorte a, desde aí, jamais se apartar nem

da instituição nem da ilha, a não ser por força de circunstâncias alheias a sua vontade.

A memória desse sujeito e a própria exposição das reminiscências de seu passado anterior

à chegada à Cotijuba, são afetados por aquela singularidade. A narrativa do passado anterior à

ida para a ilha é mais sombria, ao passo que o relato de muitos dos acontecimentos ocorridos

depois disso, contrariamente, chegam a fulgurar.

Ambas as circunstâncias exigem, naturalmente, alguns cuidados do pesquisador, de modo

a evitar certas “ciladas” que o uso de dados de origem memorial tem levado amiúde. O primeiro

deles, para o qual alertou Pierre Bourdieu, é prevenir-se quanto à tendência organizadora do

sujeito relator em relação a seu passado, tendência de unificação da vida em torno de princípios

e coerências, pela qual também o escritor do relato costuma enveredar. Ensina Bourdieu que tal

tendência tem sido o principal problema de muitos estudos de cunho biográfico ou

autobiográfico, baseados preponderantemente em dados de natureza memorial. Para Bourdieu,

os relatos de tal natureza baseiam-se

sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável,

de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência

e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa

eficiente ou final, entre os estado sucessivos, assim como constituídos em etapas de

um desenvolvimento necessário (2006, p. 184).

Seguir tal tendência, alerta Bourdieu, é aceitar o paradigma tradicional da História, isto

é, a visão dessa ciência como descrição de uma “sucessão de acontecimentos” (Ibidem),

encadeados num relato coerente, e procurando extrair desse relato aquilo que muitos chamam

de “sentido”, seja esse o sentido da vida que está sendo narrada ou mesmo o sentido da história

de um tempo ou de um lugar.

A vida, no entanto, é de tal ordem variada, é plasmada de tantas dimensões, é revolvida

sem cessar por um dinamismo tão incessante, que reduzi-la a princípios unificadores ou a

sentidos únicos, não passa, nas palavras de Bourdieu, de uma “ilusão retórica” (Ibidem, p. 187).

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Nos vários momentos de diálogos e entrevistas que tem subsidiado a presente pesquisa, a

tendência organizadora do passado através de relato coerente, sobre a qual alerta o sociólogo

francês, esteve presente nas narrativas colhidas junto a Raimundo dos Santos. A discrepância

entre os modos menos eloquente com o qual trata do seu passado anterior ao ingresso no

Educandário, e mais entusiasmado com que desenvolve a narrativa dos acontecimentos

posteriores a tal ingresso, configuram, em nossa leitura, os meios a partir dos quais Raimundo

dos Santos organiza e dá coerência a sua própria história de vida.

Cabe a nós, com efeito, evitar a ilusão retórica. Porém, ao mesmo tempo, devemos

entender a significação, para o próprio sujeito e para a conjuntura na qual viveu, dessa atitude

em relação a sua trajetória. Por que afinal Raimundo dos Santos assegura que sua história só

começa quando da entrada no Educandário?

No clássico “A voz do passado”, Paul Thompson – que diferentemente de Bourdieu é um

entusiasta da História Oral – sugere um caminho para lidar com o grau de parcialidade implícito

nos relatos autobiográficos. Num tópico onde defende a entrevista livre de determinações

prévias inflexíveis e perguntas rígidas – a qual ele prefere em relação a roteiros de entrevista

fechados –, como forma de interlocução principal com os depoentes, o historiador inglês diz o

seguinte:

O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais

forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações e evidências que

valham por si mesmas, mas sim fazer um registro “subjetivo” de como um homem,

ou uma mulher, olha para trás e enxerga sua própria vida, em sua totalidade ou em

uma de suas partes. Exatamente o modo como fala sobre ela, como a ordena, a que dá

destaque, o que deixa de lado, as palavras que escolhe, é que são importantes para

compreensão de qualquer entrevista (1992, p. 258).

Na defesa da entrevista livre, Paul Thompson sugere um caminho para lidar com o grau

de subjetividade presente nos relatos autobiográficos: entender como e porque um sujeito

“ordena” de determinado modo sua vida, “destaca” certo aspecto ou “escolhe” essas ou aquelas

palavras. Eis o que intentaremos fazer no caso de Raimundo dos Santos. Além de descrever sua

infância e o início de sua adolescência, cabe no presente tópico investigar as formas com as

quais esse sujeito singular constrói e ordena o relato dessa fase de sua história pessoal.

No ano de 1929, quando Raimundo dos Santos veio ao mundo, a situação social no Estado

do Pará era caótica. A falta de perspectivas, a crise econômica, o descalabro do Estado

flagelavam a população mais pobre. Como em todo momento agudo de crise, havia muita

miséria. Sequer as classes médias urbanas seriam poupadas, porém obviamente as classes mais

humildes foram as mais afetadas. Como já foi dito aqui uma vez, a crise transmudou-se em

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convulsão política, gerando mudanças no controle do Estado e nas diretrizes administrativas

usadas pelos novos gerentes do poder, processo consagrado com a chamada Revolução de 1930.

O que, entretanto, não levou a nenhuma mudança estrutural na sociedade, ou, em outras

palavras, não significou a extinção ou mesmo a redução drástica da pobreza e da miséria. As

péssimas condições sociais afetavam o grosso da população e permaneceriam fazendo vítimas.

Dentre tais vítimas, as crianças e os adolescentes, compunham um segmento expressivo.

Em 26 de abril de 1947 o Jornal “A Província do Pará” publicava matéria, não assinada,

que ecoaria pela sociedade local, com a seguinte manchete: “4.000 menores abandonados

perambulam em nossa capital” (p. 5). Note-se que, nessa data, transcorreram quase dezessete

anos da Revolução de 1930 e o Educandário Nogueira de Faria (a quem os jornalistas

denominam “Colônia de Cotijuba”) funcionava a quase treze. Não obstante, o Jornal queria

mostrar terem sido, até então, insuficientes os esforços para prevenir e tratar o problema do

abandono e da delinquência de crianças e adolescentes na capital. O não identificado redator

admite que “várias providências tem sido tomadas”, porém “Essas medidas, lamentavelmente,

não alcançaram o objetivo visado”. Em seguida, diz o seguinte:

Também o desembargador Nogueira de Faria muito vem realizando em benefício

dessa infeliz infância. A Colônia de Cotijuba constitui uma obra magnífica que,

ampliada, solucionaria o problema. Porém, se ainda subsiste é graças única e

exclusivamente, ao esforço e à paixão que o desembargador Nogueira de Faria devota

a essas crianças. Os auxílios que tem recebido são insuficientes para a manutenção da

Escola e respectivos departamentos (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 26/04/1947, p. 05).

E, de fato, se o problema do desamparo à infância pobre persistia sem solução, não era

por falta de empenho de Raymundo Nogueira de Faria. Fazia muito tempo ele pelejava pela

causa dos menores desamparados. Quase trinta e cinco anos antes dessa notícia, em 06 de

outubro de 1912, o futuro desembargador, de par com os senhores Ophir Pinto de Loyola e

Raymundo de Campos Proença, fundava o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do

Pará, “instituição de intuitos philantrópicos, destinada a amparar e proteger a infância

necessitada” (Pará, 1913, p 03.).

Dentre os inúmeros objetivos a que se devotava esse Instituto, consubstanciados em seus

estatutos, estão:

b) Inspecionar as condições em que vivem as creanças pobres, e especialmente

quanto à alimentação, à habitação, à educação, à instrução, etc., com o fim de

proporcionar-lhe o devido amparo, procurando concentrar nesse sentido os esforços

de outras associações de caridade;

c) Dispensar toda a protecção possível às creanças que receberem maos tratos,

habituaes ou excessivos; as que se entregarem à vagabundagem e à medincância; às

que se occuparem em misteres condenados pelos bons costumes e inconvenientes à

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puerícia; e, finalmente, às moralmente abandonadas, taes sejam os filhos de paes de

má conducta, mendigos ou condemnados (PARÁ, 1913, p. 03-04).

Raymundo Nogueira de Faria contava com menos de trinta anos quando ajudou a criar o

Instituto de Proteção à Infância. Nascera em 15 de outubro de 1884, em Belém. Santana, Pontes

e Barbosa (2006), em livro dedicado a traçar a história do Espiritismo no Pará – na qual

Nogueira de Faria figura como um dos vultos –, afirmam que o futuro diretor da Colônia de

Cotijuba ainda fundaria, em parceria com Sylvio Nascimento, em 19 de dezembro desse mesmo

ano de 1912, “a escola Mont’Alverne para crianças necessitadas. Os dois fundaram ainda ‘o

Grupo Espírita Filhos Pródigos’, em 1930” (Ibidem, p. 250). Com a fundação da Colônia

Reformatória de Cotijuba, em 1934, Nogueira de Faria ampliava sua obra dedicada à causa da

juventude desamparada.

Tal obra seria determinante na vida de Raimundo dos Santos. Nascido na ilha do Guajará,

região insular de Cametá, exatamente a 11 de junho de 1929, nem chegou ele a conhecer o pai,

Raimundo Machado. Quanto à mãe, Orminda dos Santos, de quem herdou o sobrenome único,

morrera quando Raimundo ainda era uma criança de dois anos. Conta Raimundo que, a partir

de então, fora criado pela família, por uma avó. Não muito depois, fora “adotado”

informalmente por um vendedor de castanhas que ia e vinha, a montante e a jusante do rio

Tocantins. Viera morar em Belém. Chegou a estudar, mas não mais que três anos, o suficiente

porém, para alfabetizar-se. Raimundos dos Santos não menciona, intencionalmente em parte, e

por esquecimento em outros casos, nenhum dos nomes desses sujeitos com quem conviveu

durante a infância, inclusive os dos pais.

Parece ter havido, após a “adoção”, uma definitiva ruptura com Cametá e com os

familiares remanescentes na ilha de Guajará. Evidência disso encontramos nas entrevistas

realizadas com uma de suas filhas, Dona Eliete, moradora da ilha de Cotijuba e também

testemunha do funcionamento das instituições aí implantadas. Raríssimos e breves contatos

teve a família com a parentada de Cametá, nenhum vínculo formado.

O “Padrinho” trabalhava no transporte de castanha, subia e descia o rio Tocantins, até

Marabá e adjacências, deixando semanas o pequeno Raimundo sob responsabilidade de uma

“Madrinha”. Nessas condições foi ele submetido a maus tratos.

essa senhora que eu estava lá, ela me maltratava muito. Aí que vai começar minha

história! Ela me maltratava muito, me batia muito, com fio elétrico, com imbigo de

boi. Qualquer coisa que a gente vacilasse... Eu senti que eu já tava crescendo, que não

ia ser fácil. Num dia ela me bateu muito, que eu fiquei todo marcado. Porque ela foi

no dentista e deixou uma comida lá, e eu dei atenção pra essas brincadeira de

papagaio. Aí a comida queimou. Foi uma surra de imbigo de boi que eu fiquei todo

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marcado! A gente almoçou, eu almocei o feijão queimado... Depois mandou eu tomar

banho. Quando joguei água no corpo assim parece que não ia resistir. Lavei a louça e

fui tomar a bença dela, pra mim ir pra escola. Aí foi o erro dela! Ela disse: “Deus te

abençoe, e quando tu voltar vai pegar uma surra pior do que essa!”. Se eu voltava pra

casa? Fui bater na Central de Polícia (ENTREVISTA REALIZADA EM 17/07/2015).

Grandes sofrimentos, portanto, afligiram o jovem Raimundo durante os primeiros anos

de sua vida. A perda dos pais, a separação precoce dos parentes, a vida numa cidade grande sob

a tutela de desconhecidos, os maus tratos e pancadas: não é de se espantar que ele suspirasse

por uma “oportunidade”. Vê-se, logo, que há motivações concretas para ele encarar a infância

e o início da adolescência como uma pré-história de sua vida. Se apegou-se com ardor ao

Educandário e transformou o acesso a essa instituição em oportunidade de vida, em parte é

porque, até então, muito padecera.

Raimundo dos Santos iniciou, então, nova ruptura. Da delegacia foi encaminhado ao

Juizado de Menores. Após os procedimentos de praxe, foi interpelado pelo Juiz sobre qual

caminho desejava seguir, e recusou-se a voltar ao lar do “Padrinho” ou para junto da família

que havia deixado em Cametá. É então que a Colônia de Cotijuba aparece como alternativa. O

episódio aparece da seguinte forma em suas palavras:

Ele (o Juiz) falou comigo: “Que tal Raimundo o que tu escolheste pra ti?” “Doutor eu

estou escolhendo Cotijuba”. Aí ele me abraçou porque ele queria que eu fosse para

Cotijuba. O Doutor Nogueira de Faria, que era Desembargador, trabalhava num

gabinete assim bem perto dele (do Juiz). O Doutor Nogueira de Faria era o Diretor

daqui (do Educandário) e trabalhava lá como Desembargador. Então o Juiz me levou

com ele, me apresentou. Eles prepararam os papéis e me mandaram para Cotijuba.

Poderia alguém dizer assim: “E daí o senhor se arrepende?” “Não! Antes eu tivesse

nascido aqui no Cotijuba!” Com isso que eu estou falando eu já disse tudo. O que foi

Cotijuba para mim e para os outros colegas que aqui viveram (IBIDEM).

É certo que em 1943, a Colônia de Cotijuba, então com 09 anos de fundada e mantida

com os esforços pessoais sobretudo de Nogueira de Faria, não era o melhor lugar do mundo.

Aliás, o próprio Raimundo dos Santos, grande entusiasta do empreendimento, não escondeu

sua perplexidade diante da sugestão que ouviu do Juiz de Menores: “Quando ele falou em

Cotijuba, meu cabelo arrepiou todo. Porque Cotijuba tinha má fama. Não era verdade, mas tinha

má fama.” (Ibidem). Ir para lá implicava submeter-se às regras da internação, ao ritmo de vida

de uma instituição controladora do cotidiano. Era estar distante da cidade. Tudo indica, no

entanto, que Raimundo dos Santos não teve maiores problemas para se integrar ao novo

contexto. Ao contrário, valeu-se da internação como ocasião para iniciar o empreendimento de

uma vida melhor em relação àquela que, até então, pudera viver.

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Ele jamais esqueceria o dia 25 de setembro de 1943, data de seu primeiro desembarque

em Cotijuba.

Hoje, o octogenário Raimundo – na ilha muitas vezes alcunhado Seu Oito –, resiste a

pisar no continente, não obstante todos os esforços de seus filhos para leva-lo dali. A fragilidade

de sua saúde é motivo de preocupação permanente. Debalde, porém, tem sido os esforços no

sentido de demovê-lo do apego ao lugar. Reside solitariamente num quarto de pousada no bairro

central da ilha. Setenta e dois anos após sua chegada, mantém total fidelidade ao lugar.

3.2 Características da educação oferecida no Educandário Nogueira de Faria

Num extracto do Estatuto da então “Colônia Reformatória de Cutijuba”, garimpado entre

documentos congêneres no Centro de Memória da Universidade Federal do Pará, a instituição

que aqui nos propomos investigar aparece com a seguinte principal finalidade: “receber

menores, abandonados, viciosos e delinquentes e reeducal-os” (1936, s/n). Embora proclamada

a face educacional explicitamente, como inerente à instituição, consubstanciada em sua primeva

finalidade, as autoridades jamais vinculariam a Colônia Reformatória à Secretaria de Educação

ou Instrução Pública do Estado, como a princípio supomos. Ao longo das mais de quatro

décadas de existência, o futuro Educandário Nogueira de Faria aparece vinculado sobretudo à

Secretaria de Interior e Justiça, ou mesmo ao Departamento de Segurança Pública.

É o que se depreende da leitura de diversas mensagens de governadores produzidas entre

os anos de 1936 e 1956. A caracterização da educação formal oferecida pelo Educandário

Nogueira de Faria, objeto do presente tópico, está alicerçada na leitura desse tipo de documento,

particularmente na mensagem apresentada pelo governador General Zacarias de Assumpção,

no ano de 1955. Como alternativa ao discurso oficial que empresta o tom a semelhantes

documentos, abrimos espaço à curiosa afirmação de Raimundo dos Santos sobre essa mesma

educação, a qual, aliás, pudera ele experimentar em seus tempos de aluno.

Antes do mergulho nas mensagens, porém, é preciso dizer que havia um código de

menores em vigor no país desde 1927, considerado a primeira legislação específica a tratar da

questão da criança e do adolescente. Entre outras coisas importantes, a lei chancelada pelo

presidente Washington Luís torna responsabilidade do Estado a proteção de órfãos e

abandonados. Ao passar a vigorar, esse código estimulou as várias instâncias da administração

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pública a criar mecanismos e instituições encarregados de tratar o problema, considerado uma

vergonha nacional, sobretudo naqueles tempos de considerada evolução de mentalidade.

No trabalho que Jucivânia Gordo realizou sobre a Colônia Reformatória de Cotijuba

(2002), foi mencionado o código de menores como importante dispositivo usado na cooptação

da clientela do empreendimento reformatório local. Conforme argumentação da historiadora,

ao mesmo tempo em que a lei trazia melhoras para seu público alvo (como a regularização do

trabalho por crianças e jovens), ajudava a consolidar os estereótipos que estabeleciam ligação

entre delinquência e pobreza.

A prática das medidas elencadas no código, portanto, recaiu pesadamente sobre as frontes

dos jovens pobres. O código de 1927 passou logo a funcionar como mecanismo social para

“higienizar” socialmente as ruas de grandes dos centros urbanos, locais nos quais a circulação

de jovens pobres, pretos, delinquentes e miseráveis era intensa.

Jucivânia Gordo explica que o período pós Revolução de 1930 :

intensificou a atuação do Estado junto a essa categoria (órfãos, abandonados e

delinquentes), aumentando o número de colônias agrícolas e internatos, assim como

também a vigilância policial nos centros urbanos para conter a vadiagem, a

mendicância, a prostituição, em nome da preservação da ordem social, da educação

estatal obrigatória, e da necessidade de integração de crianças e jovens pobres pelo

trabalho (2002, p. 12 e 13).

Feitas as considerações obrigatórias sobre o código de menores, retornamos ao conteúdo

das mensagens. Tais documentos nada mais são que uma forma de prestação de contas, em

formato de relatório e apresentadas pelo chefe do Poder Executivo Estadual à respectiva

Assembleia Legislativa, para apreciação. Trata-se de um discurso do governo sobre sua própria

atuação, sobre seus atos, gastos e a situação geral do patrimônio, instituições e finanças do

Estado. Todas as mensagens consultadas no labor do presente estudo – localizadas na seção de

obras raras da Biblioteca Pública Arthur Vianna e no Arquivo Público do Estado –, houveram

sido editadas e impressas em suporte de livro, a maioria pelo serviço gráfico da Imprensa Oficial

do Estado, o que certamente contribuiu para sua devida conservação. A leitura de semelhante

fonte, portanto, deve estar revestida dos cuidados e crivos críticos sem os quais se corre o risco

de forjar uma imagem ingênua ou distorcida do objeto em análise.

Com o nome de Colônia Reformatória de Cotijuba, o objeto do presente estudo aparece

na mensagem apresentada por José Carneiro da Gama Malcher, em 1936, sendo esse o mais

pretérito dos documentos consultados. Com vistas a fazer o relato dos feitos do primeiro ano

de governo (entre 1935 e 1936), tal mensagem encarna um período de grande turbulência

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política, marcado pela primeira derrota mais consistente do baratismo, até então soberano. No

documento, é relatado que a Colônia há recebido ajuda financeira do governo, de modo a aliviar

sua ruim situação pecuniária, e para poder perpetuar “a obra meritória que realiza, subtrahindo

a juventude abandonada ao ambiente vicioso da rua” (1936, p. 88); tal ajuda é oriunda de fundo

pertencente à “Caixa especial da Polícia” (Ibidem). As instalações da Colônia contavam então

com dois pavilhões onde conviviam os menores internos e onde estavam instalados um posto

médico, as oficinas para efetivar o ensino técnico, a residência dos operários e “duas escolas,

destinadas á instrução dos filhos dos moradores da ilha” (Ibidem). Sabe-se além disso que o

mais tarde batizado Educandário Nogueira de Faria, está por receber a equipagem completa de

uma serraria, destinada pelo Governo Federal à ilha de Cotijuba, após a desativação da colônia

de Clevelandia, com o que espera o relator da mensagem “dest’arte apparelhar a Colonia com

elementos de renda, que lhe assegure a existência” (Ibidem).

Conclui-se o pequeno relato com a informação de que a direção da Colônia, até então

confiada ao Desembargador Nogueira de Faria, mudara recentemente, por ocasião da

reorganização formal da instituição, que tornara em Fundação, no mesmo ano de 1936, ora

denominada “Instituto de Assistência Social de Cotijuba” (Ibidem).

Uma constatação interessante da leitura dos dois documentos até então aludidos no

presente tópico é a de que a Colônia Reformatória de Cotijuba, embora haja recebido ajuda do

Estado para se erguer e se manter, principalmente por atitude dos dois maiores mandatários do

primeiro governo revolucionário – Magalhães Barata e Nogueira de Faria –, não constituía um

ente subordinado formalmente à Administração Pública. Tratava-se então de uma sociedade

civil, um Instituto. E pareceu mesmo motivo de preocupação ao governo Malcher a autonomia

financeira da Colônia.

Quanto à questão central do presente tópico, embora sem detalhar as práticas, a mensagem

apresentada por Gama Malcher deixa entrever que a educação oferecida pelo então Instituto

era, ao mesmo tempo, elementar e técnica, operada em parte no estilo escolar e em parte nas

oficinas.

Na mensagem apresentada no ano de 1948 por Luís Geolás de Moura Carvalho, no tópico

referente ao Departamento de Segurança Pública, assinado pelo Chefe de Polícia João Guédes

da Costa Neto, aparece um Educandário Magalhães Barata, com a informação de que se

vinculara recentemente àquela secretaria. Nesse mesmo tópico, pareados ao Educandário,

aparecem o Instituto de Reeducação Social (Colônia Penal instalada também na ilha de

Cotijuba), além de outras repartições sediadas em Belém, como o Albergue Policial, o Asilo de

Mendicidade D. Macedo Costa e a Ação Social da Polícia. Afirma o relator que o Educandário

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“tem dado os melhores resultados dentro da finalidade para que foi instituído” (1948, p. 243),

e que nele encontram-se “internados, presentemente, 90 menores, os quais, recebendo as luzes

da instrução e exercendo uma profissão condizente com a sua idade, de certo, far-se-ão homens

úteis à pátria”.

O pequeno relato é rematado com a afirmação segundo a qual as duas instituições

coexistentes na ilha de Cotijuba, isto é, o Educandário e a Colônia Penal, “vêm sendo

cooperadoras de grande importância na ação social a que se propõe o Departamento” (Ibidem).

Em 1954, na mensagem submetida pelo General Alexandre Zacarias de Assumpção,

aparece o Educandário Monteiro Lobato, agora a compor o quadro da Secretaria de Interior e

Justiça. É curioso notar a composição ampla e heterogênea dessa Secretaria, em cuja malha

coabitam, entre outros, o Departamento de Segurança Pública, a Polícia Militar, o Presídio São

José, o Departamento de Assistência aos Municípios e a Junta Comercial.

A gestão de Zacarias de Assumpção empreendeu vistosa reforma e ampliação do

Educandário, investimento, aliás, estendido à própria ilha de Cotijuba. Não é estranho, portanto,

que o empedernido inimigo político de Magalhães Barata, como o foi o General, não permitisse

ao Educandário, onde investiu esforços, seguir reverenciando seu renhido opositor. O fato é que

a primeva Colônia Reformatória de Cotijuba haveria de ser fartamente rebatizada ao longo de

sua história, sem que a memória guardasse uma denominação específica. Algumas vezes essa

instabilidade de nomes refletia os jogos de poder, as oscilações políticas tão próprias da história

local.

Há certa ironia no fato de que a Colônia Reformatória de Cotijuba – criada no princípio

da década de 1930, na gestão de Magalhães Barata –, haja recebido consistente atenção da

facção política inimiga, vinte anos depois, em meados da década de 1950. A mensagem

submetida à Assembleia Legislativa no ano de 1955, por Zacarias de Assumpção, detalha a

intervenção então realizada pelo Estado na instituição e na ilha como um todo, e é esse

documento a melhor referência para visualizar as características da educação oferecida pelo

Educandário aos internos.

No tópico referente ao Educandário Monteiro Lobato, o relator do documento ocupa

grande parte do texto com descrições das reformas empreendidas pelo governo na instituição,

reformas iniciadas em 1951, primeiro ano da administração de Zacarias de Assumpção. Não

poupa acidez na descrição do estado das instalações físicas do Educandário no início do atual

governo, quando apresentava “um aspecto lastimável e de total abandono. A falta de sanitários,

água corrente e conservação da pintura, dizia bem do estado anti-higiênico em que viviam os

educandos” (1955, p. 32). Segue o relator detalhando as intervenções empreendidas pelo

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governo, com a reforma dos três pavilhões do prédio e construção de quatro outros, nos quais

vieram a se instalar os setores de rouparia, dormitórios, banheiros, sanitários, salas de aula e

alpendre (Ibidem). Outras reformas são mencionadas, inclusive melhorias na própria estrutura

da ilha de Cotijuba, tais como abertura de estradas, construção de trapiche, da Igreja e da Praça

de São Francisco.

Serviços médicos e odontológicos eram prestados pelo Educandário não apenas aos

alunos, porém estendidos à comunidade em geral da ilha de Cotijuba e demais ilhas ao redor.

No tocante diretamente à educação oferecida pelo Educandário, o relato é cindido em

quatro partes: Primária, Física, Agrícola, Moral e Cívica e Religiosa. É importante transcrever

o trecho:

PRIMÁRIA – Com referência ao ensino primário, o Educandário é subordinado à

Secretaria de Educação e Cultura, tendo seguido as orientações que foram

determinadas pela mesma, terminando o ano letivo com bons aproveitamentos para

os alunos, tanto externos como internos.

As aulas foram ministradas por duas professoras.

FÍSICA – Na continuidade do programa de ensino, todos os alunos recebem

“instrução física”, compatível com o estágio de desenvolvimento e idade.

AGRÍCOLA – Todos os dias úteis da semana, das oito às onze horas, foram mostrados

aos educandos ensinamentos teóricos e práticos de campo, por um funcionário

designado pela direção para tal fim.

MORAL E CÍVICA – Nas salas de aula foram prestadas, em dias e horas certas,

ensinamentos sobre hinos patrióticos e Nacional, fatos cívicos e históricos, seguidos

de exemplos e longas preleções pelos professores.

RELIGIOSA – Quanto à parte religiosa, continuou sob orientação da Sra. Marta da

Conceição, catequista da Igreja de São Francisco de Assis, da ilha, que diariamente,

das dezenove às vinte horas, prestou os devidos ensinamentos da Igreja Católica,

Apostólica Romana. (1955, p. 31 e 32).

Os períodos letivos anuais dividiam-se em duas partes: de 1 de janeiro a 14 de junho e de

2 de julho a 15 de outubro.

Na mensagem apresentada por Magalhães Barata em 1957, o único fato notável é a

mudança, outra vez, na denominação da instituição: aí aparece, enfim, o Educandário Nogueira

de Faria. E não coincidentemente nesse ano de 1957, a 10 de maio, havia se dado o falecimento

do sujeito homenageado na nova denominação.

As informações veiculadas pelas mensagens e pelo extrato do estatuto do Educandário,

infelizmente, por demais fragmentadas, não são suficientes para reconstituir, senão vagamente,

o tipo de vida que internos e funcionários adotavam a partir do ingresso na instituição. Entrever

a situação do internado dependeu, em maior medida, da oitiva de testemunhos.

Dentre os sujeitos ouvidos no correr da pesquisa, apenas dois puderam tratar da vida no

Educandário em fase anterior à aproximação com a Colônia Penal. E apenas Raimundo dos

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Santos fixara na memória algo do funcionamento da instituição nos tempos em que Raymundo

Nogueira de Faria a dirigia. Os demais sujeitos cujos testemunhos dispusemos referiam no todo,

ou em maior porção, a episódios relativos à colônia penal, em período cronologicamente mais

recente.

A memória de Raimundo Oito permitiu vislumbrar algumas características da rotina do

interno, as quais descreveremos a seguir. Antes disso, porém, cabe mencionar um ponto do

clássico estudo de Erving Goffman, especificamente sobre a situação do internado em

instituições totais. Conforme o estudioso, tais instituições, através da tensão provocada pela

separação entre o sujeito internado e o mundo onde esse sujeito vivia, engendram processos nos

quais sucede a “mortificação do eu”. Ao adentrá-las, o internado é de supetão instado a uma

brusca ruptura com as concepções anteriormente urdidas sobre si próprio, na vida civil, ao

mesmo tempo em que é levado a adotar um conjunto de regras, preceitos e rotinas organizadas

formalmente. “Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais,

começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu

é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado” (GOFFMAN,

1961, p. 25).

A profanação sistemática do eu, ensina Goffman, prossegue num turbilhão de práticas,

interdições e controles. Essa desfiguração manifesta-se, por exemplo, na perda da possibilidade

de apresentação do eu, traço tão comum na vida civil, e na correspondente impossibilidade de

assunção de papéis sociais distintos da condição de internado. É quase uma morte civil,

separação prolongada ou definitiva em relação a tudo aquilo que vinha caracterizando o eu do

sujeito em sociedade. Profana-se o eu pelos testes de admissão ou as tradições de boas-vindas,

nos quais constrangimentos e sofrimentos são infligidos através de exames, interrogatórios,

diversos tipos de exposição e até, no caso de ritos de ingresso (boas-vindas), suplícios físicos.

Mortifica-se o eu pela separação do sujeito em relação as suas propriedades, pela perda de

controle da aparência, pela suscetibilidade da segurança pessoal, pela exposição de fatos

íntimos. Ser forçado a movimentos aviltantes, estar obrigado a repostas verbais humilhantes,

ou a realizar atividades sem sentido simbólico para quem o faz, receber tratamento vil: são

outras formas de mortificação do eu (GOFFMAN, 1961, p. 24-69).

No relato de Raimundo dos Santos, no entanto, todo o peso do processo de mortificação

estudado por Goffman, parece estar relativizado. Sua narrativa é a de um sujeito nostálgico.

Houve certo voluntarismo em sua adesão à entrada no Educandário, sobretudo porque a vida

que levava antes do ingresso na instituição estava completamente desestruturada, como já

referimos aqui. O sociólogo não omite tal condição, embora a refira como menos comum,

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tratando-a como um processo de ruptura, iniciado, porém, anteriormente ao ingresso do sujeito

no novo sistema: “Eu poderia acrescentar que quando a entrada é voluntária, o novato já

parcialmente se afastara de seu mundo doméstico; o que é nitidamente cortado pela instituição

é algo que já tinha começado a definhar” (GOFFMAN, 1961, p. 24-69).

Raimundo Oito, por exemplo, relativiza a radicalidade da ruptura com a vida civil: nunca

refere o Educandário como reformatório, e execra quem o denomina prisão ou presídio. Para

ele, trata-se do “colégio”. Se aludimos à ruptura ou aos problemas a ela consequentes, eis como

retruca: “Agora, isso é uma coisa natural, que aproveita as coisas, quem tem bom tino de

aprender... E eu sempre no meu caso era trabalho” (Entrevista realizada em: 20/09/2016).

O tom parcial, note-se, não omite a galeria dos descontentes. Por tal comentário, é certo

haver quem não “aproveitasse”. O que quer dizer: quem desse trabalho, quem se opusesse,

quem subvertesse. Mesmo na documentação oficial encontramos exemplo de tais desagravos.

Num ofício do Educandário ao Secretário de Interior e Justiça, assinado pelo diretor interino

Sérvulo dos Santos Ramos, escrito em 29/03/1954, descreve-se o caso de um contumaz

descontente, desses de quem Raimundo Oito diria não saber “aproveitar”. Note-se o tom

imperioso do subordinado, numa comunicação com seu superior:

I – Venho respeitosamente a presença de V. Excia., com a finalidade de comunicar o

desligamento do menor Benedito Wilson da Silva, de 15 anos de idade, filho de Pedro

Henrique da Silva, residente no município de Ananindeua, por motivo do citado

menor vir se tornando rebelde e insubordinado, o que levou esta Direção cancelar sua

matrícula, e fazer apresentação do mesmo ao seu genitor... (PARÁ, SIJ, 29/03/1954,

s/n).

Arthur Claudio Melo, então secretário de Interior e Justiça, escreveu a resposta ao diretor

interino à caneta, por sobre o próprio ofício original: “...falece de competência á sua Diretoria

para desligar educandos, antes de prévia e expressa autorização desta Secretaria” (Ibidem).

Os dramas da ruptura brusca com a ordem civil, tensão fundamental do internamento em

instituições totais, não foram, portanto, silenciados completamente no relato de Raimundo Oito.

Ele não os nega, porém os minimiza. Certamente vivenciara o caso do menor Pedro Henrique

da Silva, porém reserva a semelhantes casos um lugar marginal na memória e na correspondente

narrativa dessa memória.

Em nenhum dos relatos de Raimundo Oito aparece o castigo físico, prática não incomum

em semelhantes instituições. Os falíveis seriam admoestados de formas alternativas: eram

alijados de diversões, de brincadeiras e sofriam outras sanções leves. Aqui, porém, há

contradição com o depoimento de outro sujeito cujo testemunho ouvimos no correr da pesquisa.

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Seu Jericó, embora haja sido internado apenas uma curta temporada de 5 meses, no início

da década de 1950, foi marcado pela experiência no Educandário. Não raro, a menciona entre

os amigos e clientes que frequentam seu pequeno comércio. Tudo indica haver amiúde

respondido a afirmações segundo as quais Cotijuba era lugar de ladrões, pois reafirma mais de

uma vez que ali encontrara apenas meninos levados, cheios de energia, como ele, José, aliás

internado por “excesso de traquinagem”. Não saiu de sua memória o choro de crianças,

principalmente à noite, por nostalgia de casa e da família; ou a brusquidão com que inspetores

da instituição tratavam os internos. Seu Jericó descreve uma educação severa e repressiva:

palmatória, cascudos e maus tratos. Na conclusão de sua narrativa tenta, contudo, minimizar a

brutalidade dos termos: “Mas isso aí era coisa comum na época, tinha em todo lugar”

(Entrevista realizada em 22/06/2016).

Diferentemente de Raimundo dos Santos, Seu Jericó menciona muitas das vicissitudes da

vida numa instituição total: a opressiva sensação de solidão, de abandono das condições de

vida, da distância da família. “A gente tinha que fazer outras amizades e sentia falta da vida de

antes. Muitos, à noite, choravam e sofriam. Os inspetores não ajudavam” (Ibidem).

Casos de fuga, portanto, não eram incomuns. Os mais ousados furtavam montarias de

moradores da ilha e arriscavam-se na travessia da baía. Raimundo dos Santos não esconde tais

ocorrências: “Sempre aparecia esse tipo de pessoa: pegava a montaria do morador e ia embora”;

porém, logo em seguida, acrescenta: “Tinha uma coisa que acontecia, logo a polícia segurava

ele” (Entrevista realizada em 05/05/2016). Muitas das fugas não se chegavam a efetivar devido

à vigilância dos inspetores.

A rotina estava dividida entre a educação formal, em sala de aula; a educação técnica, nas

oficinas; e as atividades de ajuda ao funcionamento do Educandário, como faxina, limpeza

interna e externa, reparos de avarias, etc. Os internos dormiam em dois alojamentos, em camas

patentes, e eram acordados ao soar de alvorada da corneta às cinco horas da manhã. Seguia-se

uma sessão de exercícios físicos, após o que o grupo tomava banho, às seis da manhã, no

trapiche do Educandário. Após o café, em torno das sete ou sete e meia, havia a formatura dos

internos na praça em frente ao prédio da instituição, para o hasteamento das bandeiras do Brasil,

do Pará e de Cotijuba e a execução dos respectivos hinos. Às seis da tarde, reuniam-se todos

novamente no pátio do prédio, e, ao som dos hinos, as bandeiras desciam dos mastros.

Havia dois turnos educativos, os que o frequentassem pela manhã, à tarde estariam

encarregados da limpeza, e vice-versa, ou frequentariam o ensino técnico, nas oficinas, ensino

esse ministrado pelos chamados mestres: marceneiros, padeiros, mecânicos, etc. As atividades

de sala de aula eram as elementares de leitura, escrita e cálculo, ministradas geralmente por

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professoras vindas de Belém. Concluídos os turnos, havia um tempo de descanso até as

refeições, realizadas em coletivo. Antes de cada uma dessas refeições, era rezado um ponto

cristão. Raimundo dos Santos lembra-o rigorosamente: “Agradecemos a Deus pelo dia de hoje,

que ao deitar ou levantar sejamos movidos pelo Espírito Santo de Deus. Amém!” (entrevista

realizada em 05/05/2016). A vestimenta era típica: calças curtas e camisetas de mescla azul,

além de pijamas.

Já falamos da progressão obtida por Raimundo dos Santos na instituição. No auge de sua

evolução, chegaria o ex-interno a subdiretor. Dois dos postos pelos quais passou são

particularmente importantes no funcionamento da instituição: o inspetor-aluno e o inspetor-

chefe lidavam diretamente com os internos e exerciam grande controle sobre a atividade das

várias turmas. Assunção Amaral em seu já mencionado estudo sobre Cotijuba e o Educandário,

ouviu de ex-alunos, inclusive do próprio Raimundo Oito, explicações quanto a essas duas

categorias. Sobre o inspetor-aluno, quanto às atribuições e vantagens desse posto, o sociólogo

comenta o seguinte:

Os alunos que alcançavam o posto de inspetor-aluno desenvolviam, como vimos,

diversas atividades, além das normalmente atribuídas aos menores, tais como: dar

“plantão” na instituição e dirigir turmas, além disso estavam mais próximos da equipe

dirigente, eram considerados por ela e pelos outros como “chefes” de alguma forma

(ASSUNÇÃO AMARAL, 1992, p. 14).

O posto de inspetor-chefe estava alguns graus acima na hierarquia funcional: os que o

assumissem já se tornariam funcionários do Estado. Ocupavam-se da condução das turmas às

diversas atividades, zelavam pelo respeito geral às regras da casa, aconselhavam, previniam

fugas.

Assunção Amaral, no mencionado estudo, e o próprio relato de Raimundo Oito sugerem

que se tratava de uma política da instituição fixar ex-internos como funcionários do

Educandário e até mesmo como colonos da ilha. A dar ouvidos às afirmações de Goffman, é o

caso de forçar o enquadramento pelos privilégios atribuídos aos simpatizantes das regras

institucionais.

O fato é que, ainda ao tempo da escrita dessa dissertação, várias famílias de ex-alunos e

ex-detentos oriundos tanto do Educandário, quanto da Colônia Penal, ainda residem na ilha de

Cotijuba. Muitas dessa famílias detentoras de extensos terrenos, às vezes fatiados entre

herdeiros.

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3.3 A ilha da redenção da juventude desvalida

Ao longo dos últimos 80 anos foram urdidas três visões ou ideias sobre a ilha de Cotijuba,

três imagens aliás bastante pitorescas. Ao presente trabalho convém buscar elucidar a gênese

de tais ideias-visões-imagens, ou, ao menos, descrever a conjuntura dentro da qual foram

forjadas – por quais agentes, com quais intenções.

Como é natural, cada uma dessas visões ou ideias, na síntese que empreendem, são a seu

modo redutoras da realidade global da ilha, demarcadoras de uma única dimensão da ação

humana e objetivadas em clichês ou chavões: a ilha da redenção, a ilha do diabo e a ilha dos

prazeres. Ao mesmo tempo, porém, revelam elas um contexto, dizem de alguma forma de uma

atitude mental coletiva e induzem à reflexão histórica.

A mais recente dessas imagens nasceu ao longo dos anos 80 e 90 do século passado e a

descrevemos no tópico referente à história da ilha de Cotijuba, legenda que identifica a ínsula

a um local de lazer, rápido e de fácil acesso, cujas facilidades aliás fizeram surgir a imagem do

recanto bucólico, dos prazeres sensuais, do cinema pornográfico, etc. Não a retomaremos aqui.

Quanto às demais, nos deteremos nelas a partir de agora, no presente tópico e em tópico

posterior, pois dizem elas diretamente do objeto do presente estudo. Convém aqui demarcar

uma espécie de constatação: não se pode estudar, em nossa opinião, a história do Educandário

Nogueira de Faria em separado da história da ilha de Cotijuba. A presença do Educandário, e

mais tarde do Instituto de Reeducação Social, definirá em maior escala as formas de ocupação

e, portanto, de evolução histórica da ilha; assim como a derrocada de tais instituições facilitou

a urdidura de outra forma de ocupação e de uma distinta imagem do lugar. A história das

instituições e a história da ilha de Cotijuba se confundem e se interpenetram muitas vezes no

período em questão.

A conformação de uma atitude mental negativa em relação à ilha de Cotijuba foi sendo

urdida logo após a implantação do Educandário, no início da década de 1930. O Educandário,

de início batizado Colônia Reformatória de Cotijuba, constituía um internato forçado, e

funcionava em estilo instituição total. Era natural que despertasse repulsa. A atitude de

Raimundo dos Santos, de endosso da vida que lhe fora oferecida (ou imposta) na instituição, é

completamente singular. Porém mesmo ele, defensor ardoroso da instituição, em mais de uma

ocasião, reconheceu haver inúmeros descontentes. Seu depoimento no filme “Cotijuba: a ilha

do diabo?”, é revelador; disse ele: “Cotijuba, lá fora, apenas lá fora, nunca foi considerado um

lugar bom!”. E porque seria considerado? Tratava-se de um lugar onde os jovens iriam cumprir

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medidas extraordinárias, completamente apartados da vida que levaram até então, submetidos

às regras da casa, encerrados numa bucólica ilha.

Em outra ocasião, comentando o trânsito burocrático antecedente a sua internação, o futuro

interno número 8, não sem uma nota de contrariedade, esmiuçou em maiores detalhes o assunto:

Quando o juiz de menores me chamou, ele me deu três opções: voltar pra casa onde

eu estava e tinha sofrido; ir pra uma casa de família em Belém; ou ir pra Cotijuba...

Quando ele falou em Cotijuba, aquilo me arrepiou todinho, porque Cotijuba nunca foi

bem vista lá fora. Não era verdade, mas nunca foi bem vista (ENTREVISTA

REALIZADA 05/05/2016 ).

A má fama parece ter-se difundido pela capital paraense. Outro depoente do filme – Seu

Nildo – é mais incisivo: “Quando algum moleque fazia algo de errado, se dizia logo ‘olha vou

te mandar pra Cotijuba!’, aí o moleque se quietava”.

José da Costa, alcunhado Seu Jericó, morador do bairro da Sacramenta, em Belém, onde

cuida de um pequeno comércio de periferia, passou uma temporada na ilha, internado no

Educandário, no ano de 1952, quando contava 11 anos de idade. Em depoimento, explicou que

foi remetido à instituição por atitude da família, preocupada com sua insubordinação, ou

“excesso de traquinagem”, nas palavras com as quais se referiu ao episódio. Vivia na rua,

dormindo às vezes longe da casa onde residia com a irmã e o cunhado. Por intermédio desse

último foi internado, numa medida extrema para conter os excessos de energia do jovem José.

A documentação oficial levantada ao longo da pesquisa parece confirmar essa tendência: a

internação – e a ameaça de internação –, constituiu por muito tempo um recurso usado pelas

autoridades oficiais e pelas famílias como meio de debelar a rebeldia juvenil. A consulta aos

livros de protocolo da Secretaria de Interior e Justiça, ao longo da década de 1950,

principalmente a partir de 1954, revelaram inúmeros pedidos de internação por parte de

familiares, sobretudo mães.

Em 26 de janeiro de 1954, por exemplo, está anotado no livro de despachos que a senhora

Madalena Ferreira Fáro solicita o “internamento dos menores Edvam Antônio Ferreira Fáro e

Francisco de Assis Ferreira Fáro, no I. Lauro Sodré ou no Educandário ‘Monteiro Lobato’”

(1954, p. 44). Em seguida, o veredicto do Secretário: “Interne-se no ‘Educandário Monteiro

Lobato’. Comunique-se á requerente” (Ibidem, p. 143). Outro exemplo, é o do menor Manoel

Afonso Alves da Silva, internado por petição de sua mãe, Zeneide Alves da Silva, petição

aquiescida pelo Secretário a 15 de março de 1954.

É bom dizer que ao longo da década de 1950, a partir da gestão de Zacarias de Assumpção

(1950-55), o Educandário e a própria ilha de Cotijuba receberam incremento oficial, em ambos

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os casos com melhoras infraestruturais. Não é estranho, portanto, que com as novas condições

da instituição e a consequente propaganda oficial em torno das ações do governo, passassem a

chover petições como as sobrecitadas à mesa do Secretário de Interior e Justiça ou mesmo do

Governador do Estado.

Porém mesmo antes disso, como mostrou o sociólogo Assunção Amaral em sua pesquisa

sobre o Educandário Nogueira de Faria, os insubordinados já haviam de se esquivar de tão

funesto destino. Notícias do jornal “O imparcial”, de 09 de junho de 1934, fontes do sociólogo,

asseguram que o menor Aurino Alves de Lima, de 13 anos, será em breve remetido para a

“Escola Reformatória de Cotijuba”, como medida para refrear a falta na qual ele incorreu, a

saber: perambular “sem ocupação”, pelo bairro de Val-de-Cans (1992, p. 08). Em 1936, a 15

de julho, “O imparcial” noticiava nova remessa de menores à C.A.C. (provavelmente Colônia

Agrícola de Cotijuba), dessa vez em grupo de seis indivíduos. A causa: eles “andavam pelas

nossas ruas sem destino certo” (Ibidem, p. 09).

Na sequência, o historiador afirma o seguinte: a clientela da instituição reformatória

compunha-se de “menores que não se enquadravam nos padrões sociais exigidos pela capital

da Amazônia; a maioria era filho de famílias residentes na periferia” (Ibidem).

Na monografia que realizou sobre a Colônia Reformatória de Cotijuba, período entre 1930

e 1936, a historiadora Jucivânia Moraes Gordo (2002), indica o início da conformação da

atitude mental negativa sobre a ilha e a instituição. Passada a euforia da campanha em prol do

soerguimento da colônia, a ação policial de cooptação dos menores, muitas vezes violenta,

inaugurou, nas palavras da historiadora uma

segunda fase da história da colônia correcional Nogueira de Farias (sic), a partir de

1934 quando a ilha de Cotijuba, passa a ser denominada de ‘ilha do inferno’, através

das notícias de ameaças, violência e medo, que estampam quotidianamente os jornais

da época (2002, p. 31).

Em sua monografia Jucivânia Gordo dialoga principalmente com notícias veiculadas no

jornal Folha do Norte, às vezes com determinações e portarias oficiais ordenando o modo de

proceder da polícia junto aos menores considerados ameaçadores. Em 13 de fevereiro de 1934,

exemplifica, o juiz de menores baixou uma portaria recomendando a condução para Cotijuba

de todo menor reincidente na prática da “vagabundagem” (ibidem). A atividade policial, de

acordo com a historiadora, forçou o aparecimento de estereótipos sobre o menor delinquente,

os quais facilitavam ou induziam a repressão policial, por exemplo “o modo de andar, de falar

com gírias, trajes humildes, o ‘perambular’ pelas ruas” (ibidem).

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Tudo isso posto, não é descabido afirmar que a ascensão da colônia reformatória forçou

pouco a pouco a emersão de uma visão negativa do lugar, correspondente à repulsa provocada

pela simples menção ao nome Cotijuba. Trata-se de uma legenda com valor prático explícito:

forçar o enquadramento de jovens rebeldes ao padrão civilizatório então reinante. “Vou te

mandar pra Cotijuba!”, passou a ser a frase maldita, cuja menção provocava calafrios e cuja

ressonância ainda hoje não se extinguiu na memória de muitos dos que viveram aqueles tempos.

A instalação da colônia penal, a partir de meados da década de 1940, e mais tarde a

degeneração desta instituição em um depósito de presos, multiplicou a má fama já sobreposta

à ilha de Cotijuba, principalmente a partir da instalação dos militares no poder central do país,

pós abril de 1964, a partir de quando os abusos e truculências praticados pela polícia

disseminaram na imaginação coletiva local as histórias da “ilha do diabo”. Haveremos de nos

ater especificamente a esse aspecto em tópico próprio.

Queríamos a partir de agora, entretanto, empreender o movimento contrário, objetivando

descrever a forja de outra visão sobre Cotijuba, diametralmente oposta à visão maldita que se

formou consequentemente à instalação das instituições reformatória e penal.

3.3.1 A campanha cívica em favor da Colônia Reformatória de Cotijuba

A mística da ilha da redenção, local de recuperação da juventude desvalida, alternativa ao

problema local da delinquência e abandono de jovens, começa a ser urdida provavelmente desde

o momento em que Raymundo Nogueira de Faria esboçou o plano inicial de uma colônia

reformatória. E são, a nosso ver, justamente os esquemas retóricos de semelhante legenda que

explicam a postura de Raimundo dos Santos em relação ao lugar, isto é, a empedernida recusa

por parte desse sujeito singular de comentar ou dar eco à visão sombria sobre Cotijuba e as

instituições aí instaladas, assim como a postura defensora e a estima com as quais se refere às

mesmas.

A pesquisa de Jucivânia Gordo teve o mérito de demarcar precisamente o surgimento do

esquema retórico a dar suporte à legenda da ilha da redenção, esquema esse responsável em

grande medida pela aceitação que o empreendimento recebeu por parte da população local.

Vasculhando as páginas do jornal Folha do Norte, a historiadora anotou o princípio da grande

campanha em favor da construção do reformatório, cruzada organizada pelo poder central

revolucionário, nas pessoas de Nogueira de Faria e Magalhães Barata. Para a historiadora, a

campanha se inicia com o decreto 474 de 2 de setembro de 1931, assinado pelo Interventor

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Magalhães Barata, induzindo doações em dinheiro à futura colônia por parte do funcionalismo

estadual. Em nossa pesquisa, no entanto, localizamos um pronunciamento de Nogueira de Faria

de 29 de agosto, três dias antes, na mesma Folha do Norte, “Rôgo a fazendeiros e

commerciantes”, no qual conclama as classes abastadas a contribuir com o projeto cívico.

Importa, nisso tudo, notar que a campanha ecoaria fortemente pela imprensa local, sobretudo

ao longo desse mesmo mês de setembro.

Aqui é importante não perder de vista – e o texto de Jucivânia Gordo confirma isso – que

a sociedade paraense respirava um sentimento de renovação política consubstanciado pelo

governo revolucionário de Barata, após mais de vinte anos mergulhada numa crise

socioeconômica catastrófica. Ou seja, ao mesmo tempo em que ocorria a ascensão de uma nova

classe ao poder, um conjunto de expectativas positivas de melhorias sociais também se erigia.

Além disso, havia necessidade de superação de problemas espinhosos engendrados pela crise

de duas décadas. A questão da delinquência e abandono de crianças e jovens na capital

constituía um flagelo com o qual o governo revolucionário, em sua ânsia de ordem e

higienização social, haveria de se trombar necessariamente.

A presença de jovens delinquentes e mendicantes pelas ruas de Belém já constituía,

portanto, a justificativa do empreendimento correcional. A sociedade da capital encontrava no

projeto redentor esperança de regeneração dos jovens desvalidos vitimados pela má sorte. Ou,

mais provável, simplesmente encontrasse via de se ver livre da escória malsã que estorvava as

ruas da bela capital paraense.

Os agentes empreendedores da campanha cívica em favor da construção da colônia,

sobretudo a militância de Raymundo Nogueira de Faria, aproveitaram-se largamente do vácuo

de políticas públicas beneficiadoras de crianças e jovens. E azeitaram, com palavras singelas, a

benevolência geral da sociedade. Nesse particular, ninguém parece ter sido mais eficiente que

o magistrado espírita. Um quarto de século mais tarde seria ele homenageado com o empréstimo

de seu nome à instituição pela qual tanto pelejou.

Nas palavras de Gordo:

Os discursos do Dr. Nogueira de Farias na imprensa, nos clubes, na igreja,

caracterizava a campanha de donativo para a construção da colônia reformatória,

como “cruzada do bem”, e conclamava todo cidadão belenense, a engajar-se naquela

grande cruzada em favor das crianças desamparadas da cidade de Belém. Foi a partir

da atuação incessante do Dr. Nogueira de Farias na campanha, que o mesmo passou

a ser denominado na sociedade como “apóstolo do bem” (2002, p. 19).

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A ressonância da campanha, sobretudo nos jornais impressos, mídia então dominante,

endossada pelas altas autoridades, por cidadãos gabaritados, por empresas, por trabalhadores e

funcionários públicos, ajudou a erigir a aura de obra sã e redentora à colônia reformatória.

Como já tivemos ocasião de escrever aqui, o apóstolo do bem, Nogueira de Faria, fazia

tempo militava pela causa da infância desvalida. Ajudara a criar, em parceria com Ophir

Loyola, o Instituto de Proteção e Defesa da Infância, organizara por iniciativa própria escolas

para crianças carentes, pugnara pela construção da colônia reformatória de Cotijuba, vindo a

compor o quadro da entidade como seu primeiro diretor. Sua obra de grande humanista, de

político, de escritor polímata e polígrafo, no entanto, ainda está por ser melhor conhecida e

estudada18. No espaço acanhado do presente trabalho, infelizmente, não podemos escrutar a

contento tão vasta obra, porém adiantamos estar ela eivada do espírito humanista típico de

Nogueira de Faria. A aura humanista, com cujas cores o distinto paraense ornou o projeto da

colônia reformatória, sobretudo no momento da campanha cívica, e o acolhimento inicial desse

projeto pela sociedade local, constituem, em nossa tese, a primeira etapa na trama histórica que

engendraria a mística da ilha da redenção.

Servia-se o futuro diretor do reformatório de uma retórica pomposa e às vezes ardente, em

permanente luta pelos valores humanos: “Os seus discursos animados dos estremecimentos

artísticos duma larga inspiração, refletem a expressão sintética da educação moral dum espírito

formoso, voltado para as aspirações imanentes da Justiça e da fraternidade humana”

(BARREIROS apud FARIAS, In: PARÁ, TJ, 1994).

No pronunciamento publicado pelo Jornal Folha do Norte, em 29 de agosto de 1931, em

forma de rogo às classes abastadas, à época comerciantes e fazendeiro, há muito das flores de

um estilo idealista, altaneiro, sem deixar de ser contudo pragmático. Desse idealismo, por certo,

ficou tingido o projeto da colônia reformatória. Vejamos o exemplo das belas palavras com as

quais corteja Nogueira de Faria as classes abastadas de seu tempo: “Ao seio christão da vossa

bondade, conduzo, cheio de fé, o rôgo expresso nestas linhas, pleiteando a vossa adhesão á

causa dos menores abandonados e delinquentes” (Folha do Norte, 29/08/1931, p. 01). Mais à

frente: “Fala-vos, por esta palavra escripta, o infortúnio ameaçador de centenas de menores

18 Curioso notar que esse sujeito de vida política e social tão intensa, ainda arranjasse oportunidade para

desenvolver consistente produção como escritor, cuja eloquência, aliás, requereu concurso de variados gêneros. À

maneira de outros intelectuais profícuos contemporâneos ou de gerações anteriores – Bruno de Meneses, Dalcídio

Jurandir, José Veríssimo –, o homem forte do governo interventor no Pará escreveu em diversas linguagens,

disseminando sua retórica humanista e moralizante em prosa e verso. Diria mesmo que em variedades da expressão

escrita, dentre os intelectuais de seu tempo, seja Nogueira de Faria insuperável. Escreveu livros nas áreas de

história, educação, direito, política, literatura infantil e religião (espiritismo), além de haver contribuído na

imprensa e ser inclinado à poesia.

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material e moralmente abandonados” (Ibidem). Sem perder o timbre pomposo, e introduzindo

motivações concretas, Nogueira de Faria faz lembrar aos abastados da vez que ninguém está

imune aos males decorrentes do problema em foco, afinal “O vagabundozinho de hoje será o

bandido temivel de amanhã” (Ibidem). Daí que, prossegue o estiloso argumentista, dar conta

desse problema significa proteger a própria sociedade. Tudo é um investimento: essa era a

mensagem.

Um pragmático Nogueira de Faria, nessa ocasião, chega ao paroxismo de indicar o tipo de

contribuição a ser feita pelos membros de cada uma das classes as quais dirige o discurso: de

comerciantes, uma cota mensal em dinheiro; uma rés de cada fazendeiro. No sentido de nossa

argumentação, porém, importa marcar os floreios utilizados: na difusão desses pomposos

esquemas retóricos, vendidos ao público nas páginas da Folha do Norte, erige-se e dissemina-

se a ideia do projeto redentor. Pouco importa a direção proclamada do discurso, uma vez

publicado na imprensa de largo alcance, a sociedade toda é tocada. Trata-se, pois, de “obra de

humanisado patriotismo”, para a qual os caridosos homens ricos devem concorrer ouvindo seu

coração, sem, portanto, outro desforço senão a boa vontade: “a espontaneidade deve ser o traço

mais lindo dessa cruzada, o compasso, o rythmo divino desta obra”, “edificação magnífica”

(Ibidem).

Em nossa pesquisa nas páginas da Folha do Norte, constatamos que o tom afável e

consternado, logo será replicado por outros sujeitos, num esforço de tornar a campanha uma

“cruzada social”. O zelo idealista está disseminado. As notas vão aparecendo: doações de

empresas, eventos promovidos por organizações estudantis, consignações de funcionários

públicos. A causa tocava os justos sentimentos da sociedade. E Nogueira de Faria açulava tais

sentimentos, certamente por inclinação de seu espírito benfazejo, mas provavelmente também

por haver constatado a fecundidade de argumentar nessa direção. Assim é que em dado

momento da campanha ele anuncia o surgimento do “‘cofre material’ dos abandonados” (Folha

do Norte, 04/09/1931, p. 02), numa nota na qual narra o surgimento dessa caixa como sendo

ideia da filha de uma senhora, cuja sensibilidade fora tocada pelo projeto redentor. A singela

nota é rematada com o reconhecimento da atitude dos jornais locais, os quais vem se mostrando

sensíveis à causa, abrindo espaço à “luminosa colmeia de trabalho e regeneração que será a

sonhada ‘Colonia Correcional de menores abandonados e delinquentes’” (Ibidem).

A visão algo romântica relativa à colônia reformatória, vendida ao grande público pela

campanha, como de um empreendimento são e redentor, seria brutalmente rebatida com a

irrupção da mística da ilha do diabo. A internação forçada de magotes de menores e jovens cuja

atividade pelas ruas de Belém fosse considerada irregular ou criminosa, haveria de criar uma

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mística que lhe correspondesse em gravidade, não estranho ser ela diametralmente oposta à

matriz romântico-ingênua empunhada pela alta sociedade na campanha, Nogueira de Faria à

dianteira.

Uma conclusão razoável seria a de que a mística da ilha da redenção foi chocada em meio

às elites locais, ao passo que a legenda da ilha do diabo nasceu em meio à camada do povo

sensível à brutalidade da instituição. Para esta e aquela visões muito contribuíram os jornais

impressos locais, como a Folha do Norte e O Imparcial, nos quais ecoaram e difundiram-se no

primeiro momento a campanha redentora, e, mais tarde, as histórias da ilha do diabo.

O trânsito entre o domínio de cada uma das versões foi rápido: entre o início da campanha,

em 1931 e a má ressonância das atividades de cooptação de menores, a partir de 1933, temos

apenas dois anos. Era o tempo no qual Magalhães Barata reinava quase absoluto no poder

central do estado, do qual seria apartado, temporariamente, apenas em 1935. A trama explica

porque ainda hoje, oitenta anos além, é na costa larga de Barata que bem cabe a conta dos

abusos praticados contra os internos pela polícia. Afinal, era a polícia de Barata, a responsável,

junto com o juizado de menores, pela cooptação e encaminhamento de menores à colônia.

Todavia, o tenaz empenho com o qual Raymundo Nogueira de Faria lançou-se à causa não

esmoreceria ao longo dos anos. De fato, alguns testemunhos veem no empreendimento

reformatório em Cotijuba a grande obra da vida do paraense ilustre. Silvio Hall de Moura, outro

notável magistrado local, afirma o seguinte: “O ponto alto, porém, da vida do Desembargador

Nogueira de Faria, foi a criação da ilha de Cotijuba como reformatório de menores carentes”

(1994, p. 34). No parágrafo seguinte do discurso – feito por Moura especialmente em alusão ao

centenário do nascimento de Nogueira de Faria –, porém, há uma espécie interessante de

ressalva: “Infelizmente não souberam aproveitar idéia tão magnífica e a ilha de Cotijuba,

aparelhada para reformatório, transformou-se em uma terrível prisão correcional” (Ibidem).

Outro relato de interesse, é o de Luís Farias, um dos filhos de Nogueira de Faria, cuja

carreira também enveredou pela magistratura, coletado num discurso de agradecimento,

reproduzido numa coletânea impressa19 do Tribunal de Justiça sobre ilustres integrantes da

repartição. Diz o seguinte:

Nogueira de Faria dedicou-se de corpo e alma à causa da infância desvalida. A

concretização de um velho sonho seu, criando, fundando e organizando uma colônia

de menores, com um educandário e abrigo para a infância abandonada que

proporcionasse às infelizes crianças senão o conforto e o carinho de um verdadeiro

lar, ao menos uma assistência material e moral, capaz de lhes garantir um futuro

promissor, muito diferente daquele que decerto teriam se continuassem criados como

19 Dessa mesma referência foi extraído o fragmento do discurso de Silvio Hall de Moura.

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párias, ao Deus dará, sem outra escola que a própria rua, sem outro destino que a

própria miséria, chegando ao crime – e é o que hoje se verifica – conseguiu na ilha de

Cotijuba (PARÁ, TJ, 1994, p. 43).

Não estranho parece ter sido a omissão, nesse discurso, relativa ao aspecto lúgubre do

legado da colônia de Cotijuba, afinal envolve o pai do autor do relato. Ignoramos a fragilidade

de tal fonte propositadamente, para cotejar esse discurso com o depoimento prestado pelo

mesmo Luís Farias ao sociólogo Assunção Amaral, quando realizava este sua pesquisa sobre a

colônia de Cotijuba. Para Farias, a construção da colônia penal na ilha de Cotijuba distorceu o

projeto original criado por seu pai. Os descendentes do magistrado ilustre, naturalmente

preocupados com a má fama que Cotijuba ia cumulando na imaginação local, e com a

vinculação inevitável do nome de Nogueira de Faria às instituições instaladas na ínsula,

posicionaram-se pelo legado do parente: “Durante décadas a família Faria travou uma intensa

luta para rever e desligar o nome do Desembargador ‘Nogueira de Faria’, do presídio”

(AMARAL, 1992, p. 18). Tudo debalde: a memória remanescente parece ter sido injusta com

o idealizador e principal criador do projeto de redenção da juventude desvalida. “No

depoimento, incialmente negado, Luis Farias, relatou com bastante sentimento, que a luta foi

árdua e chegou um momento que a família preferiu esquecer” (Ibidem).

Trata-se de um caso curioso de disputa pela memória. E se vê na postura de Luís Farias o

modo pelo qual tal contenda torna vulneráveis certos grupos humanos. O fato de nos dias de

hoje a memória histórica obscura sobre Cotijuba e as instituições que aí nasceram e

extinguiram-se, sobressair-se na imaginação coletiva local, em detrimento de visões positivas,

às vezes pitorescas, sugere o triunfo de uma memória eminentemente popular.

Dizemos isso ressalvando a singular visão de mundo de Raimundo dos Santos, homem do

povo que se posicionou – conscientemente – na batalha travada pela memória local, assumindo

a mística redentora.

3.3.2 A atividade de Nogueira de Faria e Moura Carvalho

Há um livro de Nogueira de Faria, aliás já mencionado aqui, lançado em 1945, “O

caminho da história”, em cujas páginas pudemos identificar novos ecos da mística redentora.

Tal obra, esmaecida no limbo das décadas, é dotada de um interesse especial, por seu valor de

testemunho quanto à conjuntura pós revolução de 1930 no Pará, sobretudo nos altos círculos

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políticos e em especial na figura do chefe maior do movimento, Magalhães Barata, com quem

o autor, como é sabido, manteve laços estreitos.

Em nota introdutória (Este Livro), na qual depõe sobre a condição daqueles tempos de

mudança política em todo o país, Nogueira de Faria fixa inicialmente o microscópio na

condição contraditória de seu chefe: sujeito de grandes virtudes, mas de rompantes

desagradáveis na mesma medida. “Personalidade complexa e insubmissa, êsse homem foi

sempre ele mesmo, num total de virtudes e defeitos, cujas parcelas se não alinham em verticais

exatas, dificultando a soma das nossas observações” (1945, p. 01). O autor, no entanto,

manteve-se distante dos dilemas, e pugnou por iluminar, com o livro “uma nêsga do lado bom

desse homem” (Ibidem), pois acreditava ser Barata alguém “Posto a destino de um povo, em

uma hora de transição difícil” (Ibidem). Eis os termos com os quais o autor descreve o “lado

bom” de Barata: “seu profundo e sincero idealismo; sua constante simpatia pelas classes pobres;

seu acolhimento reconfortante à queixa dos humildes; sua inclinação amiga pelas crianças”

(Ibidem, p. 01 e 02).

A cada uma das virtudes do chefe, Nogueira de Faria dedicará um capítulo do livro: às

formações revolucionária e ideológica; à instituição da Assistência Judiciária (em favor dos

direitos das classes pobres); à assistência prestada por Barata à infância, com a ampliação do

alcance do ensino público e a criação da Colônia Reformatória em Cotijuba.

Mas é no último capítulo desse livro laudatório, lançado mais de década após a inauguração

da Colônia Reformatória, que a ideia da ilha da redenção outra vez se desdobra. Cá, mais um

ilustre personagem entra em cena: Luís Geolás de Moura Carvalho, então chefe de polícia na

segunda Interventoria de Magalhães Barata (1943-45), e futuro governador do Estado.

Um dos militares a integrar a revolução tenentista em 1930 no Pará, o oficial militar Moura

Carvalho desde então integrou a vida pública regional, participando ativamente dos percalços

políticos próprios desse meio. Seja nos altos postos supracitados, ou na condição de deputado,

inclusive constituinte em 1946, ou mesmo como vice-governador no período agitado sucedido

ao falecimento de Magalhães Barata (1959), o Major Moura Carvalho inscreveria seu nome na

história paraense.

Pois na terceira parte de “O caminho da história”, Nogueira de Faria desloca atenção de

Magalhães Barata e, no mesmo tom laudatório, passa a focar um aspecto, a nós de grande

interesse, da obra pública de Moura Carvalho. No item “O problema penitenciário no Pará”

(Ibidem, p.95), o autor sugere ser o Major um dos dirigentes públicos cuja trajetória mais

concorreu para rebater as mazelas do sistema penal do Estado. Foi sob influência de Moura

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Carvalho que se havia pouco antes procedido melhoramentos no maior centro penal do Estado,

o Presídio São José. Nas palavras, sempre estilosas, de Nogueira de Faria:

Resolvido o problema presidiário no Pará, – porquê o está por muito tempo, Moura

Carvalho resolutamente enfrenta um outro, talvez mais sério ainda: o dos prêsos

correcionais. Belém estava cheia de vagabundos e larápios, criaturas infelizes, muitas

das quais imbuídas de pessimismo sombrio e desolador (1945, p. 125).

E foi na senda de resolver o problema dos presos correcionais, e por atitude de Moura

Carvalho, que se urdiu o projeto do Instituto de Reeducação Social, cujo decreto de criação,

publicado em “O caminho da história”, aparece em 20 de fevereiro de 1945. Seria a segunda

instituição implantada pelo governo chefiado por Magalhães Barata na ilha de Cotijuba.

Raymundo Nogueira de Faria parece recobrar o entusiasmo com a nova obra, e mais uma vez

disseminará aos quatro ventos a vocação redentora com a qual veio dourando a ilha de Cotijuba

desde o início da década anterior.

Witzwil é uma penitenciária agrícola localizada no cantão de Berna, na Suíça, criada em

1895. Nogueira de Faria espelha o novo empreendimento a tal modelo, afirmando que Moura

Carvalho – “preocupado com a obra penitenciária que o empolgou para sempre” (Ibidem,

p.126) –, selecionou “uma grande área da ilha de Cotijuba para nossa Witzwil, para seu ‘novo

campo de operações’ e lá fundou o Instituto de Reeducação Social” (Ibidem). O autor não

testemunhara além de cinco meses de atividade da nova instituição – o livro é de 1945 –, mas

já arrolava os dividendos da obra e do autor: Moura Carvalho “Limpou Belém de malandros e

bêbados contumazes, de rufiões e vadios, destinados ao tratamento moral pela terapêutica

intensiva do trabalho obrigatório” (Ibidem).

Um empolgado com a vocação redentora da ilha a quem tanto trabalho já dedicara e ainda

haveria de o fazer, Nogueira de Faria parece delirar com os esperados frutos da nova obra:

antevê campos arados, lavouras, hortas, psicultura. Louva, em tom grandiloquente o “espírito

culto e idealista” do chefe de polícia, pela manutenção do qual roga a Deus. O excerto é prenhe

de exclamações: “Bendita obra! Três vezes bendita!” (Ibidem).

Após transcrever um ponto de Noé Azevedo, então professor de direito penal da

Universidade de São Paulo, no qual o docente descreve brevemente o surgimento da

penitenciária suíça e a atitude de seu primeiro grande agente, Kallerhals, Nogueira de Faria

outra vez delira:

Comprazemo-nos na profecia: Moura Carvalho será o nosso Kallerhals; Cotijuba será

a nossa Witzwill. Será a futura cidade penitenciária industrial-agrícola. E quem sabe?

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Lar de egressos! Da seção industrial já tem minúscula semente: a serraria da Colônia

Reformatória de Menores Abandonados e suas modestíssimas oficinas de carpintaria,

marcenaria, sapataria, etc.

Unificada a administração geral da ilha, C.R.C.e I.R.S. formarão um todo, na

realização de uma missão social divinamente humana. Construídas ao longo da

estrada central, as vilas de casas, em seções correspondentes – teremos transformada

a humilde Cotijuba de hoje na operosa Cidade da Redenção, de amanhã (1945, p. 129

e 130).

Transparece no texto de Nogueira de Faria a preocupação, talvez naquele momento

generalizada, com a presença de mendigos, vadios e malandros na cidade. Criminosos em grau

menor que não raro ascendiam na escala do crime pelo contato, nos cárceres, com elementos

de maior periculosidade. “O Instituto de Reeducação Social visa resolver, no Estado do Pará, o

importante problema dos vadios e mendigos” (Ibidem, p. 129), explica Nogueira de Faria. Em

seguida, faz ver que também são recolhidos à colônia agrícola: condenados à prisão simples

com penas decorrentes de contravenções penais; maiores oriundos do educandário, cujas

medidas de internação não houvessem sido revogadas no princípio da maioridade; e menores

considerados de alta periculosidade, aos quais o Instituto reservava seção especial.

Deposita o autor as maiores esperanças numa terapêutica do trabalho intensivo como saída

à crise moral e física a qual estão submetidos os pobres-diabos da sociedade. Até então

recolhidos no pátio da central de polícia, esses homens desvalidos, fugiriam à “prejudicial

promiscuidade” a que ali eram submetidos, e ao “inevitável estiolamento físico e moral”

(Ibidem, p. 130). No novo empreendimento encontrariam eles seus devidos lugares. Nogueira

de Faria remata o texto em seu peculiar estilo pomposo, cruzando o destino desses párias sociais

com o empreendimento redentor (e voltando a louvar o chefe maior):

Cerraram-se, enfim, para êles, simples desajustados sociais, as portas das enxovias de

negredada memória e, palmilhando a estrada larga da Redenção quando em breve

retornarem ao convívio social, regenerados e úteis pelo trabalho, pela moral e pela

saúde, bendirão o Govêrno do Cel. Magalhães Barata que lhes estendeu a mão,

considerando-os afinal, em lance de larga visão administrativa, sêres humanos dignos

(Ibidem, p. 130).

Uma polêmica matéria do jornal local “A Província do Pará”, publicada dois anos após os

sucessos de “O caminho da história”, exatamente a 26 de abril de 1947, dará oportunidade a

novas expansões da legenda redentora. Outra vez a imprensa abrirá espaço às palavras algo

extravagantes de Nogueira de Faria. O foco aqui voltava à colônia reformatória, apontada como

alternativa à resolução do problema dos menores delinquentes e abandonados, assunto que

agora retornava, com toda a força, à ordem do dia.

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Eis o título da matéria: “4.000 menores abandonados perambulam em nossa capital” (A

Província do Pará, 26/04/1947, p. 05). Encimando a manchete, uma fotografia exibe a chamada

turma do “reco-reco”: cinco meninos, dois pardos e três negros, focalizados numa rua da capital,

dois deles ostentando cigarros. Estão todos descalços, em trajes pobres e rotos. Em baixo da

fotografia, o seguinte comentário: “Esta é a conhecida turma do ‘reco-reco’, que passa o dia

curvada nos calçamentos tratando do asseio de nossas ruas. Por dois cruzeiros apenas, trocam

o tempo escolar pelo trabalho. Com chuva ou com sol, estão em atividade. A turma do ‘reco-

reco’ fuma, joga e não é ‘sopa’ não” (Ibidem).

Figura 06: Notícia do jornal “A Província da Pará”

Fonte: “A província do Pará”, 26/04/1947.

Em outra fotografia, é enquadrado apenas um dos cinco garotos, aliás o menor em estatura.

A legenda é a seguinte: “Com apenas nove anos ele já fuma como gente grande. Frequenta a

escola? Não. Para quê ? – Perguntou-nos” (Ibidem).

No texto, várias críticas são feitas ao tratamento do problema do menor em Belém,

problemática que, nas palavras do Jornal, fora já estudada, porém permanecendo sem soluções

satisfatórias. As medidas até então tomadas, critica o anônimo redator, “não alcançaram o

objetivo visado” e “Inúteis tem sido as portarias do juizado de menores” na “luta contra o

alastramento dos menores abandonados” (Ibidem). Contudo, “o desembargador Nogueira de

Faria muito vem fazendo em benefício dessa infeliz infância” e a Colônia de Cotijuba poderia

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solucionar o problema, se fosse ampliada; “Porém, se ainda subsiste, é graças única e

exclusivamente, ao esforço e à paixão que o desembargador Nogueira de Faria devota a essas

crianças. Os auxílios que tem recebido são insuficientes para manutenção da Escola e seus

respectivos Departamentos” (Ibidem).

No dia seguinte, 27 de abril de 1947, a repercussão da reportagem nos meios sociais

paraenses, conforme indica o matutino, fará abrir espaço novamente ao tema. A manchete

traduz a atitude rápida de resposta do governo, ora chefiado por Moura Carvalho: “Passará para

o Estado o Reformatório de Cotijuba: Empenhado o governo em transformar a Colonia de

Menores em um dos melhores estabelecimentos do gênero” (A Província do Pará, 27/04/1947,

p. 12).

Até então recebendo apenas pequeno auxílio do Estado e de firmas particulares, o

Educandário, indica o jornal, constituía uma instituição particular. Porém, através de carta

assinada por Nogueira de Faria e publicada em parte pelo matutino, é noticiada a assunção total

da instituição por parte do Estado. E não apenas isso: é sugerido o empenho de Moura Carvalho

em transformar o Educandário num “modelar estabelecimento”, como parte de um grande

programa de reforma sociopenal, no qual a ilha de Cotijuba possuía lugar destacado.

A grande confiança que Nogueira de Faria parece depositar no correligionário governador,

multiplicará seu entusiasmo com a ilha de Cotijuba, levando-o a disseminar, pela mídia

impressa, mais uma vez, a legenda redentora. Eis um trecho da carta enviada ao jornal:

O Educandário Magalhães Barata vai receber do atual govêrno amplo e eficaz auxílio,

sob a direção do sr. major Francisco José de Menezes, administrador geral dos

serviços socio-penais. Tranformar-se-á, então realmente, na ilha de Redenção. Não há

lisonja nem otimismo ou exagero nessa afirmativa. Endossa-la-á quem conhecer o

plano socio-penal do sr. Major Moura Carvalho [...] Em breve, o depósito de menores

abandonados, de hoje, se transformará num dos mais notáveis estabelecimentos

congêneres de nosso país (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 27/04/1947, p. 12).

Curioso no texto dessa carta, se é que não foi mal editada pelo jornal, é a atribuição

redentora (ilha da Redenção) ao Educandário. Pelo texto, é o Educandário quem deve ser

transformado em ilha da redenção. De todo modo, é bom não perder de vista que a história do

Educandário Nogueira de Faria, em tese nossa, determinou, em linhas gerais, a face da ilha de

Cotijuba pelo tempo no qual vigorou a instituição, isto é, entre o início da década de 1930 e fins

da de 1970. A história da instituição, na verdades das instituições (colônias reformatória e

penal), confunde-se com a história da ilha de Cotijuba, sendo impossível tratar de uma

escamoteando as outras. Não seria tão absurda, portanto, a notável construção textual de

Nogueira de Faria.

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De todo modo, a mística redentora outra vez aparecia e difundia-se junto à sociedade

paraense, através da imprensa. Havia transcorrido década e meia da inauguração do

empreendimento – e não arrefecia a tenacidade com a qual o então desembargador lançava-se

à defesa do grande projeto de salvação da juventude desvalida.

O tom crítico adotado pelo Jornal “A Província do Pará” quanto ao tratamento dispensado

ao problema da juventude, e o conteúdo bombástico da matéria (4000 menores pelas ruas de

Belém), parece haver induzido novas esperanças com relação à missão redentora do

Educandário. O próprio matutino reconhece isso: a colônia de Cotijuba seria uma solução ao

problema, afirma.

Não é de estranhar, portanto, haver se difundido pelas diversas classes sociais a mística da

ilha da redenção.

Já dissemos que a postura do principal interlocutor da pesquisa é incomum. A singularidade

de Raimundo dos Santos, na leitura de interesse à presente pesquisa, reside na assunção

consciente que faz da legenda da ilha da redenção, e, inversamente, na recusa da legenda da

ilha do diabo. Em várias ocasiões deixou ele transparecer tal postura. Em mais de um momento,

por exemplo, queixou-se da inépcia de alguns entrevistadores que o tem procurado amiúde, por

se referirem às ruínas à porta da ilha de Cotijuba como presídio.

Numa de nossas entrevistas, houve ocasião na qual Raimundo dos Santos propôs algo

inesperado. Tratava-se de uma entrevista filmada. Na ocasião, se pôs ele alguns segundos a

meditar e, muito emocionado, entoou o hino da ilha de Cotijuba. Seus olhos enrubesceram.

Com efeito, esse hino, cuja execução compunha a rotina dos internos e cuja melodia

sobreviveu aos anos intacta na memória de Raimundo dos Santos, é mais uma instância onde

se desdobra o legendário da ilha da redenção. Infelizmente não pudemos apurar a autoria da

letra e da melodia. Mas pelo tom pomposo e idealista, pela menção ao ideário redentor, pelo

estilo em geral, não é impossível haver aí algo da verve de Nogueira de Faria, sujeito que, como

referimos uma vez, exercitava-se na composição poética. Seguem os versos do hino:

Cotijuba, sentinela da meiga e gentil Belém

És a fonte amiga e bela de um sonho de fazer bem

És a paz de muitos lares, és um gênio protetor

Cujas asas dos telhares são feitas de luz e amor

Teu nobre seio de graças mil

Palpita cheio só do Brasil

Cotijuba és agasalho, és ensino de fazer bem

Oficinas de trabalho, estrelas de redenção

Lá do céu, Deus te abençoe, e o Brasil te ame

Porque és mãe paciente e boa da juventude infeliz

Serás feliz Cotijuba, gentil filha do Pará

E da história a grande turba, teus primores descansará,

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Sobre o céu puro de anil, passarás os dias teus

Para orgulho do Brasil e glória imensa de Deus

Não é improvável ser Raimundo dos Santos um caso isolado, único, a ainda endossar o

ideário desdobrado nesse hino. Nenhum outro interlocutor com quem dialogou a pesquisa

reservou-se com relação à má fama de Cotijuba. Aliás, todos depuseram mais ou menos

abertamente sobre os episódios da ilha do diabo. O conhecido Raimundo Oito, que muito

testemunhou, restringe o depoimento. Para ele, os episódios da ilha do diabo devem cair no

esquecimento.

Nesse ponto, é de se notar em Raimundo dos Santos o caráter singular dos dilemas da

memória relativos à ilha de Cotijuba. Além disso, ele guarda um lugar certo à outra dimensão

do acontecimento mnemônico. O octogenário Raimundo Oito, tal como já o vimos em Luís, o

filho de Nogueira de Faria, recorre ao artifício do esquecimento. A ambos o dilema afeta de

modo muito radical nas próprias concepções do passado. A irrupção e o domínio de uma

legenda recheada de terror sobre o local e a instituição aos quais devotam memórias plenas de

afeto, é por demais doloroso a ambos os lados.

Naturalmente a postura algo passional que assumem esses dois depoentes tende a inclinar

o analista a reservas. As visões de realidade que ostentam são explicitamente parciais. Pugnam

abertamente por um lado da contenda. No entanto, a parcialidade com que se referem ao

passado, e aqui pesa mais a postura de Raimundo dos Santos, é crucial para visualizar o ponto

central das nossas problematizações nesse tópico, ou seja, a presença de uma memória

“positiva” relativamente à ilha de Cotijuba, em nossos dias ofuscada por outra memória,

“negativa”. A tais memórias, contrárias muitas vezes, correspondem as legendas da ilha do

diabo e da ilha da redenção.

São os esquemas retóricos da ilha da redenção que explicam, em maior grau, as posturas

dos sujeitos ora referidos. A presença de Nogueira de Faria nos respectivos ambientes – familiar

e institucional –, deve ter pesado suficientemente.

Especificamente no Educandário, Raimundo Oito guardou na memória um dos modos de

Nogueira de Faria operar. Versado na arte do uso das palavras, o diretor do Educandário

exortava regularmente internos, funcionários e até moradores da ilha através de palestras e

encontros. É de supor que nesses encontros, plenos de um sentido pedagógico, ele se esmerasse

em promover a vocação redentora da ilha de Cotijuba. Foi com as seguintes palavras que

Raimundo Oito aludiu ao assunto:

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O Dr. Nogueira de Faria quando era diretor ele fazia assim, à noite, uma preleção.

Ensinar as coisas pra nós, até morador ia pra lá também pra assistir a preleção, os

ensinamentos e tal, etc. E ele ensinava muito a gente aí nessa parte. Ele falava,

ensinava alguma coisa pra nós. Ele tratava de vários assuntos e no que ele falava era

cabível que falasse mesmo. Era uma beleza! (ENTREVISTA REALIZADA EM:

05/05/2016).

As preleções constituem evento significativo para Raimundo Oito. Guarda para tais

encontros uma memória cheia de afeto: “Era uma beleza!” (Ibidem). A vida no Educandário o

empolga. A influência de Nogueira de Faria sobre o jovem interno, e mais tarde sobre o jovem

funcionário, ocorreu de maneira direta, no cotidiano da instituição. O ideário consequente a tal

influência, parece, consolidou-se ao longos dos anos, cristalizou-se em memória indelével.

A ascensão da mística da ilha do diabo, com toda sua razão de ser, não logrou arrefecer tão

tremenda obstinação. Em Raimundo Oito ainda subsiste a memória da ilha da redenção.

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4 Memorial da ilha do diabo

Já explicamos que, não obstante todo o esforço desferido ao longo da campanha cívica em

favor da construção da Colônia Reformatória de Cotijuba, a efetivação do empreendimento

produziu um efeito profundamente negativo, devido principalmente à truculência com a qual

operou. Pouco tempo depois de instalada a colônia, a ilha da redenção metamorfoseou-se na

ilha do diabo.

Cabe ao presente tópico explorar os aspectos relativos à mística da ilha do diabo. Tais

aspectos estão relacionados mais à operacionalização das instituições que com a dimensão

formal da institucionalização. Em termos formais – isto é, de nomes, projetos, estatutos –,

sobressai na análise das duas instituições seus aspectos edificantes, sobretudo a dimensão

educacional. Seus principais idealizadores, Nogueira de Faria e Moura Caravalho, dedicaram-

se com paixão aos respectivos projetos redentores. Moura Carvalho batizou a colônia penal com

um nome significativo: era o Instituto de Reeducação Social.

O decreto de criação do Instituito de Reducação Social foi publicado na íntegra por

Nogueira de Faria no aqui já citado “O caminho da história” (1945). O artigo quinto do

documento enfatiza a dimensão educativa (e redentora) da nova instituição erguida em

Cotijuba:

Art. 5º – Os mendigos e vadios internados no Instituto de Reeducação Social, serão

submetidos a rigoroso regime de reeducação moral, melhoria de condições físicas e

inteligência e á predisposição para o trabalho, que, conforme o preceito do art. 764 do

Código de Processo Penal, será educativo e remunerado, de modo que assegure ao

internado meios de subsistência, quando cessar a internação (1945, p. 132).

No entanto, e de forma semelhante ao ocorrido com o reformatório, a atividade da colônia

penal implantada em 1945, multiplicou a má fama já atribuída à ilha de Cotijuba. O

funcionamento em conjunto das duas instituições, desde 1945 até mais ou menos 1976, longe

de repercutir os nobres princípios com os quais foram caracterizadas em documentos e

discursos, geraram grande repulsa, propagada em ditos obscuros que ainda hoje reverberam.

Daí, no correr do tópico, abrirmos espaço para o diálogo com outros sujeitos, cujas

trajetórias não foram marcadas pela mística redentora, à maneira de Raimundo dos Santos. A

maioria desses sujeitos, ainda hoje residentes na ilha de Cotijuba, guardou na memória fatos

relativos ao aspecto mais brutal do funcionamento das instituições, geralmente histórias

violentas.

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O que intentamos realizar no presente tópico é explorar os aspectos mais dramáticos do

funcionamento das instituições. Aqui, portanto, pouca importância possuem discursos e

documentos oficiais. Importa, sobretudo, entender como o funcionamento das duas instituições,

que iriam coexistir no mesmo prédio no fim de suas trajetórias, induziram à criação da mística

da ilha do diabo, fazendo de Cotijuba um lugar repulsivo, cuja simples menção gerava asco na

gente de modo geral, e temor nos desviantes.

Em primeiro lugar, como base para o mergulho na experiência local de Cotijuba,

exploramos o universo da literatura de cárcere, especialmente em dois exemplos emblemáticos

de narrativas nas quais os regimes prisionais insulados ocupam notável lugar. Destacamos nas

obras de Graciliano Ramos (“Memórias do cárecere”) e Henri Charriére (“Papillon, o homem

que fugiu do inferno”), principalmente as semelhanças com a experiência de Cotijuba.

No segundo subtópico, o espaço está aberto aos diversos sujeitos cujos depoimentos

obtivemos por conta da produção do documentário escolar “Cotijuba: a ilha do diabo?”. As

histórias de violência por eles presenciadas, ou mesmo vivenciadas, marcaram suas

experiências existenciais, e cativaram lugar em suas memórias.

Em conclusão, descrevemos com detalhes um dos casos mais dramáticos envolvendo a ilha

do diabo: o sequestro e espancamento do último diretor geral das instituições instaladas na ilha

de Cotijuba. O chamado caso Teodorico Rodrigues provocou violenta reação por parte das

forças militares então no poder – era o ano de 1976 – e desencadeou uma verdadeira caça aos

fugitivos, documentada aberta e fartamente pela imprensa local.

4.1 Literatura de Cárcere: duas célebres narrativas sobre prisões em ilhas

A título de introdução ao assunto geral dos regimes prisionais insulados – aqui no sentido

de instituições prisionais erguidas em ilhas –, sejam no estilo reformatório ou prisão, antes de

mais nada, convém dizer que tais regimes tem cativo seu lugar na perplexidade humana. A

atenção ao assunto ganhou corpo em obras urdidas nas mais variadas linguagens, especialmente

nas expressões de caráter narrativo, sejam elas literárias ou audiovisuais.

Ricardo Lopes, em pesquisa de mestrado (UFJF, PPGL, 2014), sumaria e investiga a

denominada Literatura de Cárcere, apresentando, logo ao primeiro capítulo, um conjunto de

obras exemplificadoras desse gênero literário. A conceituação usada pelo pesquisador quanto à

Literatura de Cárcere como gênero literário autônomo, ancora-se na definição de gênero

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discursivo em Mikhail Bakhtin, segundo a qual a língua, nas suas variadas formas de

articulação, desenvolve enunciados cuja estabilidade relativa forja tipificações discursivas – ou

seja, faz surgir os chamados gêneros discursivos (2014, p. 20).

Do verso à prosa, da ficção à autobiografia, do conto ao quadrinho, a Literatura de

cárcere encontra diversas formas de manifestação sobre um enredo que invoca mais

do que discursos isolados sobre sistemas prisionais, compondo em seu conjunto uma

ordem entre diferentes expressões que constituem um gênero literário do discurso

(LOPES, 2014, p. 19 e 20).

De acordo com o pesquisador, ao longo da história da literatura, o desforço expressivo de

várias gerações forjou uma Literatura de Cárcere em sentido mais estrito, na qual o cárcere –

ou a experiência de encarceramento – é o elemento “definidor de toda a obra” (Ibidem);

subgênero distinto, por sua vez, da representação do cárcere na literatura, padrão no qual o

cárcere figura como acessório ou coadjuvante a uma trama mais ampla (Ibidem). Lopes cita,

ainda, outras formas de absorção do cárcere pelo discurso literário, a exemplo de obras

influenciadas de alguma forma pela presença dos autores na prisão, embora sem que o cárcere

constitua o recheio fundamental da narrativa; ou obras nas quais a condição de encarcerado

define o modo de enunciação do discurso literário, ainda que, neste caso, outra vez, o espaço

prisional apareça minimizado no fluxo narrativo (Ibidem).

Ao correr da presente pesquisa, não obstante toda a diversidade da Literatura de Cárcere,

interessa, porém, uma ocorrência particular a esse gênero. Trata-se da presença de regimes

prisionais insulados em dois exemplos expressivos da Literatura de Cárcere do século XX.

Em “Memórias do cárcere”, o escritor alagoano Graciliano Ramos empreende o relato de

sua experiência prisional, ocorrida no período entre março de 1936 e janeiro de 1937, no

princípio do período histórico comumente denominado Estado Novo. Na verdade, o golpe de

estado que fincaria Getúlio Vargas no poder até 1945, a partir de então plenipotenciário, com

fechamento da Câmara e Senado, extinção de partidos políticos e permanente estado de guerra,

só eclodirá a 10 de novembro de 1937. Todavia, práticas ditatoriais já eram empreendidas desde

antes, como exemplifica a experiência do memorialista sertanejo.

A prisão ocorrera sem nenhuma acusação formal, com alusões muito vagas à suposta

adesão do escritor ao comunismo, ideologia demonizada sistematicamente à época. Em todo o

périplo horroroso por porões de navios, em cárceres nas cidades de Recife e Rio de Janeiro, ou

na Colônia Correcional de Dois Rios, o autor de “São Bernardo” não seria submetido aos ritos

básicos de uma acusação formal. “Não me acusavam, suprimiam-me” (2006, Vol. I, p. 52). O

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encarceramento configurou o isolamento arbitrário e a submissão do sujeito à mortificação

física e mental através de diversas práticas, as quais convém aqui esmiuçar.

Graciliano Ramos inicia sua desventura – ou como ele mesmo definiu sua “aventura

chocha” (2006, Vol. I, p. 290) –, exatamente a 03 de março de 1936, detido em casa, na cidade

de Maceió, onde vivia com a mulher, Heloísa, e os filhos, e exercia cargo na burocracia da

Instrução Pública de Alagoas. Nos primeiros capítulos da longa narrativa, que se estende por

mais de 600 páginas, o criador de “Vidas secas” relata os boatos e avisos, ditos à meia voz, a

referirem o perigo que corria. Pouco antes, em novembro do ano anterior, sucedera o levante

do 3º Regimento, em Natal, frustrado movimento revolucionário, comunista, usado pela

máquina oficial para justificar o endurecimento do regime político e a decretação do estado de

sítio (MOTA E LOPEZ, p. 618 a 670). Perseguição aos adversários do regime e prisões em

massa logo se tornariam práticas correntes. “Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo

anulava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã” (RAMOS, p.

51). A referência final faz menção, obviamente, ao avanço da ideologia e de práticas fascistas

no país, através da ação do movimento integralista.

Uma primeira ação dos agentes repressivos do Estado, extremamente nociva, logo

desponta na narrativa: a ausência de esclarecimentos aos detidos quanto às atitudes da máquina

carcerária. “Essa idéia de nos poderem levar para um lado ou para outro, sem explicações, é

extremamente dolorosa”, ideia essa que levava a perspectivas sombrias: “impressão de que

apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos” (Ibidem, p. 62 e 63). A estratégia do agente

repressor passava, de fato, pela movimentação, aparentemente súbita e sem sentido, do

prisioneiro por diversos estabelecimentos carcerários. Daí que, após a detenção em Maceió, o

escritor viaja de trem para Recife, onde não se demora, sendo logo remetido ao Rio de Janeiro,

em perturbadora viagem no porão do navio Manaus.

Aí confinado, em meio ao calor brutal, ao mal cheiro de excrementos e vômitos, à sujeira

generalizada e ao alvoroço do formigamento humano em promiscuidade ruidosa, o romancista

experimentará a violência do processo de mortificação imposto pelo regime em vigor.

Enfim, naquele infame lugar todos nos importunávamos. Os roncos, a tosse,

borborigmos, vozes indistintas, vômitos eram incessantes. Acavalavam-se no espaço

exíguo camas e redes. E como o ar escasseava, a nossa respiração constituía dano

recíproco. Está aí o máximo do requinte de perversidade, enquanto os verdugos

repousam, as vítimas são forçadas a afligir-se mutuamente (Ibidem, p. 132).

No fluxo do relato das ocorrências havidas no porão do Manaus, outro aspecto, próprio

daquela conjuntura, ganha relevo. A prática da tortura, sobretudo em relação aos chamados

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presos políticos, passaria a vicejar nos setores repressivos do governo, e sua efetivação tornaria

célebres alguns agentes públicos, como Filinto Müller, Serafim Braga e Emiliano Romão. Um

relato contundente, amiúde citado nos estudos sobre esses tempos espinhosos, foi o conjunto

de reportagens especiais realizadas pelo jornalista (e compositor) David Nasser, inicialmente

publicadas na revista O Cruzeiro, ao longo de 1946, e editadas em livro no ano posterior. Em

“Falta alguém em Nuremberg”, Nasser refere-se diretamente ao chefe de polícia da capital do

país (entre 1933 e 1942), então o Rio de Janeiro, Fillinto Müller (1900-1973). Nas reportagens,

o jornalista divulgava, também, relatos de sua própria experiência no cárcere, inclusive a

passagem pela Colônia Correcional de Dois Rios, num capítulo intitulado “A ilha miserável”

(NASSER, 1966, p. 37). O início da narrativa jornalística dá uma ideia do clima tenso da época:

As atrocidades praticadas no Brasil pela polícia política do Capitão Fillinto Strubling

Muller excederam, em alguns pontos, as torturas infligidas pela Gestapo aos judeus,

antinazistas e prisioneiros aliados. Difícil é comparar a maldade com a maldade, a

barbaria com a barbaria, o perverso com o perverso. Os nazistas alemães retiraram

pele tatuada dos condenados para fabrico de “abat-jours”. Os policiais brasileiros

esmagavam testículos com uma espécie de alicates, a que chamavam pelo diminutivo

de “anjinho”, corruptela de Higino, nome do escrevente da polícia que os inventou.

Os nazistas alemães matavam seus presos e faziam sabão com os cadáveres. Os

policiais brasileiros do Sr. Getúlio Vargas enfiavam arames nos ouvidos dos presos.

Os nazistas alemães faziam experiências científicas com os recolhidos aos campos de

concentração. Os policiais brasileiros enfiavam arames nas uretras dos presos e, com

um maçarico, aqueciam esses arames até ficarem em brasa. Os nazistas alemães

executavam os presos em câmaras de gás. Os policiais brasileiros apertavam o crânio

dos presos até que eles morressem ou enlouquecessem (Ibidem, p. 05).

José Murilo de Carvalho, em artigo sobre as práticas de tortura durante o governo

ditatorial de Getúlio Vargas, explica que, não obstante a concessão de anistia pelo presidente

em 1945, houve, no ano seguinte, em meio ao processo da Constituinte, pressão para que se

investigasse e punisse os culpados pelos crimes de tortura. A atitude foi encabeçada por

Euclides de Oliveira Figueiredo (1883-1963), general do Exército, então deputado constituinte

eleito pelo Rio de Janeiro. Apesar da gravidade da denúncia e das evidências apresentadas,

explica Carvalho, as atividades da comissão formada para apurar os crimes, não surtiram

nenhum resultado (2010, s/n).

Embora truncada essa primeira atitude, relata o historiador, o constituinte, outra vez,

naquele mesmo ano de 1946, peticionaria em favor da criação de nova comissão com o mesmo

fim, intitulada “Comissão de inquérito sobre os atos delituosos da ditadura” (Ibidem). Antes

que essa nova comissão novamente se esvaziasse, vários testemunhos foram colhidos e

deixaram registros nas atas das reuniões, entre vítimas e acusados. Nas palavras de José Murilo

de Carvalho:

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Um dos depoimentos mais dramáticos foi o de Carlos Marighela (1911-1969),

deputado pela Bahia do Partido Comunista do Brasil, dado em 25 de agosto de 1947.

Ele descreveu várias torturas que sofreu ou que presenciou. Entre elas, espancamento

com canos de borracha, aplicado na sola dos pés e nos rins, queimaduras com pontas

de cigarro, introdução de alfinetes por baixo das unhas, arrancamento das solas dos

pés ou de pedaços das nádegas com maçaricos. Em se tratando de presas, costumava-

se introduzir esponjas embebidas em mostarda em suas vaginas (Ibidem).

Na experiência do memorialista alagoano, o contato com as práticas de tortura aparecerá,

de início, na forma de marcas e chagas divisadas nos corpos dos companheiros de prisão. Tanto

no porão do Manaus, quanto depois, já chegado à capital, na Casa de Detenção, Pavilhão dos

Primários, a presença de sujeitos espancados causará espanto ao romancista. Aqui, por exemplo,

em meio ao relato dos acontecimentos na ala de presos políticos, o famigerado Pavilhão dos

Primários, o memorialista comenta o caso de três jovens presos, fardados com uniformes da

marinha: “O terceiro, quase criança, tinha o busto nu, escoriado e contuso; manchas alargavam-

se, lanhos cruzavam-se no peito, no dorso, nas costelas, sinais vermelhos, com certeza novos,

outros violáceos, azuis, negros, a revelar que o garoto havia sido maltratado várias vezes”

(2006, Vol. I, p. 357). A narrativa prossegue com a polícia a buscar outra vez o marinheiro para

interrogatório. Graciliano, angustiado, especula:

A lembrança das torturas, ali visíveis na pele, desalenta-se ao ouvir as sílabas fatais

(o nome do rapaz ecoara pouco antes da porta da cadeia), e a significação delas surge

clara: perguntas invariáveis multiplicadas, a exigir denúncias, a teimosia silenciosa do

paciente punida com sevícias: golpes de borracha, alicate nas unhas, o fogo do

maçarico destruindo carnes. Quando a horrível ordem soou, o rapaz se ergueu aflito,

o rosto lívido crispado:

- Ah! Meu Deus! Não agüento mais. Vão matar-me (2006, Vol. I, p. 358).

Mas é na parte mais bruta da experiência de encarcerado do autor de “Angústia”, durante

o período em que esteve internado na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, que

serão descritas cenas de tirana violação de direitos e da segurança individual.

Importante detalhe relativo ao envio do ficcionista sertanejo à Colônia aparece ainda no

cárcere da Casa de Detenção. Notícias alarmantes correm entre os presos sobre o regime

prisional na ínsula. Sabe-se da imposição de trabalhos degradantes, da parca alimentação, do

contato direto com presos comuns, em geral malandros e ladrões. Ao correr das ameaças,

sempre veladas, o memorialista admite a hesitação nervosa: “Apenas desejava afastar a previsão

funesta: sem termos idéias seguras da Colônia Correcional, enxergávamos nela a miséria, a

degradação completa” (Ibidem, p. 319). Baldado esforço de afastar a perspectiva sombria, pois

as informações fragmentadas e espantosas que se espalhavam pelo pavilhão não cessavam e,

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em pouco, associavam-se à chegada de mais presos, em péssimas condições físicas e mentais,

oriundos da prisão insular.

E é já afastado do bloco dos presos políticos, confinado no Pavilhão dos Militares, que

Graciliano Ramos receberá um assomo de espanto quanto ao destino reservado aos detentos na

prisão da Ilha Grande. Em tumultuosa aglomeração, o romancista passa a divisar um grupo de

sujeitos de aparência degradada, os quais só aos poucos vai reconhecendo, embora os haja visto

há pouco tempo. “Os homens da frente, quase nus, cabeças lisas, tinham muita sujeira, muita

amarelidão, órbitas cavadas, bochechas murchas” (2006, Vol. II, p. 15). São egressos da

Colônia Correcional. “Farrapos. Regressavam da Colônia farrapos” (Ibidem, p. 16). “Vivemos

como bichos” (Ibidem), segredou um dos sujeitos.

Uma vez na ilha, Graciliano e a turma com a qual viajou são submetidos à praxe corrente:

caminhada por doze quilômetros pelas serras do lugar até a Colônia, raspagem dos cabelos,

formatura geral regular com a multidão dos presos obrigatoriamente de braços cruzados,

alimentação degradante, tirania de funcionários e ajudantes. O sujeito responsável pela

recepção dos novatos, “um tipinho de farda branca, de gorro branco, a passear em frente às

linhas estateladas” (Ibidem, p. 69), destila a arenga bruta: “– Aqui não há direito. Escutem.

Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disso. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que

têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm corrigir-se: vêm morrer” (Ibidem).

E, de fato, não se demora fazer sentir a ausência total de quaisquer direitos. O regime

extremo em vigor na ilha fará com que as práticas de tortura e violações congêneres, as quais o

romancista até então percebera apenas indiretamente, por sinais e chagas, eclodam a seu redor

em toda radicalidade. Eis como ele narra um episódio ocorrido junto às fileiras obrigatórias,

violência extrema assistida de forma impassível pela multidão de detentos, todos literalmente

de braços cruzados, como era a ordem:

vi a dois passos um soldado cafuzo sacudir violentamente o primeiro sujeito da fila

vizinha. Muxicões terríveis. A mão esquerda segura à roupa de zebra, arrastou o

paciente desconchavado, o punho direito malhou-o com fúria na cara e no peito. A

fisionomia do agressor estampava cólera bestial [...] Presa e inerme, a vítima era um

boneco a desconjuntar-se: nenhuma defesa, nem sequer o gesto maquinal de proteger

alguma parte mais sensível. Foi atirada ao chão, e o enorme bruto pôs-se a dar-lhe

pontapés. Longo tempo as biqueiras dos sapatos golpearam rijo as costelas e o crânio

pelado... (Ibidem, p. 66 e 67).

Inapetente, eivado de dores no abdômen, dormência nas pernas e fraqueza, Graciliano é

poupado do trabalho obrigatório. Deixado em meio aos doentes e moribundos, o romancista

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pintou um dos quadros mais angustiantes da obra memorialística, no qual se acentuam os

aspectos degradantes do infame cárcere constituído em Dois Rios:

A gente mais ou menos válida tinha saído para o trabalho, e no curral se desmoronava

o rebotalho da prisão, tipos sombrios, lentos, aquecendo-se ao sol, catando bichos

miúdos. Os males interiores refletiam-se nas caras lívidas, escaveiradas. E os externos

expunham-se claros, feridas horríveis. Homens de calças arregaçadas exibiam as

pernas cobertas de algodão negro, purulento. As mucuranas haviam criado esses

destroços, e em vão queriam dar cabo delas. Na imensa porcaria, os infames piolhos

entravam nas carnes, as chagas alastravam-se, não havia meio de reduzir a praga.

Deficiência de tratamento, nenhuma higiene, quatro ou seis chuveiros para novecentos

indivíduos. Enfim, não nos enganavam. Estávamos ali para morrer (Ibidem, p. 73 e

74).

Um curioso aspecto de “Memórias do cárcere”, que se vai amiudando no fluxo da

narrativa, é a atitude de aceitação pelo escritor, não sem uma nota de ironia, da sanção imposta

de maneira tão sumária pelos agentes do poder. É com a valise devidamente arrumada, com a

família reunida na sala de casa, e após afugentar vagas ideias de evasão, que ele recebe os

agentes policiais. Ademais, problemas conjugais, receio da brutalidade agressiva dos magotes

de integralistas, vontade extrema de concluir um trabalho literário20 e o clima geral hostil, o

empurravam a aspirar o isolamento carcerário: “Naquele momento a idéia de prisão dava-me

quase prazer: via ali um princípio de liberdade” (2006, V. I, p. 45). Remoendo as memórias, na

expectativa da detenção, Graciliano menciona especulações que então fazia sobre possíveis

culpas: “Estaria eu certo de não haver cometido falta grave?” (Ibidem, p. 46); e embora não

fosse alinhado formalmente ao subversivo Partido Comunista, ideias revolucionárias

atravessavam seus pensamentos: “ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo [...] Não

me repugnava a idéia de fuzilar um proprietário. Era natural que a propriedade me castigasse

as intenções” (Ibidem). Assim, é que admite: “E se quisessem transformar em obras os meus

pensamentos, descobririam com facilidade matéria para condenação” (Ibidem).

A aceitação da condição de encarcerado parece consubstanciar o espírito sertanejo de um

sujeito que se ajusta, sem grandes dificuldades, às condições mais extremas. Associe-se a isso

a curiosidade natural de um espírito dado à observação do mundo, sobretudo nos aspectos mais

sofríveis e angustiantes. Todavia, a experiência permanece brutal, especialmente nos aspectos

cujo sentido escapam à compreensão. Daí algumas aparentes inversões, como a aceitação da

violência e a perturbação extrema com atos de insondáveis sentidos (ainda que inofensivos):

“As facadas e os tiros não nos abalam. Mas o acessório brutal, as formalidades esquisitas, as

20 Trata-se do romance “Angústia”, publicado em 1936, enquanto o autor estava preso, e sem que ele procedesse

a revisão do escrito.

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frases absurdas e insubstituíveis desarrumavam-me conceitos mais ou menos estabelecidos”

(Ibidem, p. 334 e 335); ou esse: “Acomodava-me a ambientes novos – e quando neles surgia

uma brecha, alarmava-me” (Ibidem, p. 335). A vivência da experiência penosa é tida como

necessária, como matéria essencial ao trabalho do escritor: “Conseguiria um livre, em casa,

diante de uma folha de papel, adivinhar como nos comportávamos entre aquelas paredes

escuras? Tipos iguais a mim seriam incapazes disso” (Ibidem).

Na “aventura chocha” de Graciliano Ramos pelos cárceres do Estado Novo sobressai,

portanto, a redução esmagadora do sujeito às condições políticas do momento, por vezes a

aceitação da pena imposta sumariamente, ainda que sem acusação, não raro o medo da

“liberdade” e a admissão de certa “justiça” na sanção arbitrária. Não se fala em enfrentamento,

em injustiça ou em vingança. Não se fala em fuga.

Evasão é justamente o tema superior da segunda obra a ser citada como pródromo do

conteúdo principal deste tópico. A aventura que o francês Henry Charriére narra em “Papillon:

o homem que fugiu do inferno” (s/d), na forma de relato autobiográfico, enreda-se nas inúmeras

tentativas de fuga empreendidas pelo protagonista, até a conquista da liberdade definitiva, onze

anos além da condenação.

A narrativa de Papillon tem início com o julgamento, ocorrido a 26 de outubro de 1932,

na cidade de Paris. Aos 25 anos, seria ele condenado à prisão perpétua com trabalhos forçados,

sob acusação de homicídio. Daria, nesse mesmo dia, os primeiros passos no que chamou de “o

caminho da podridão” (s/d, p. 11). A via abjeta inicia pela detenção na Conciergerie, e, a seguir,

pela custódia na Central de Caen, à espera do comboio para a colônia penal, no além mar,

Guiana Francesa. Passagem rápida pela ilha de Saint-Martin-de-Ré, seguida de 18 dias de

viagem encarcerado no porão do La Martiniére, até Saint-Laurent-du-Maroni, o famigerado

complexo penitenciário na Guiana Francesa, destino final para quem envereda pelo caminho da

podridão.

Ainda em viagem, Papillon ouve de Julot (que seguia no comboio degredado pela segunda

vez), uma explicação sobre o sistema penitenciário da Guiana. Explica entre outras coisas, que

Saint-Laurent é um povoado às margens do rio Maroni, distante 120 quilômetros do Atlântico,

centro do sistema de degredo do ultramar francês. Há uma penitenciária com o mesmo nome à

distância de 50 quilômetros, para onde são remetidos os presos cuja pena é o desterro. Já os

apenados com trabalhos forçados, explica Julot, são ali classificados em três grupos, divididos

por escala de periculosidade. Os considerados mais perigosos

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serão chamados na hora da chegada e colocados nas celas do quartel disciplinar, na

espera de sua transferência, para as ilhas da Salvação. Ficam aí internados para o resto

da vida. Estas ilhas estão a 500 quilômetros de Saint-Laurent e a 100 quilômetros de

Caiena. Elas se chamam: 1) ilha Royale; 2) a maior, que é a ilha Saint-Joseph, onde

está a reclusão do degredo; e 3) a ilha do Diabo. Os forçados vão para a ilha do Diabo,

salvo exceções muito raras. Os homens da ilha do Diabo são forçados políticos, em

geral (s/d, p. 53 e 54).

A primeira evasão sucede a partir do hospital da penitenciária de Saint-Laurent-du-

Maroni, pouco depois do desembarque, estando então Papillon acompanhado por dois

companheiros de degredo, Maturette e Clousiot. A fim de evitar o internamento nas ilhas da

Salvação, donde se considera em geral inviáveis as evasões, Papillon se desdobrará em esforços

para viabilizar o plano, efetivado graças a subornos financiados pelo dinheiro que carrega em

pequenos cilindros ocultos em seu reto.

A viagem de mais de 2 mil quilômetros através da costa do Atlântico Norte e pelo Mar

das Caraíbas, as passagens por Trinidad, Curaçau, a prisão e nova fuga em Riohacha, serão

recheadas de aventuras sensacionais, para algumas a custo o leitor há de afastar a ideia de

criação ficcional. Desde a saída do presídio, com o espancamento de guardas e vigilantes, a

frustração com o mau negócio do barco, a ajuda recebida dos leprosos da Ilha dos Pombos, a

fúria dos elementos em alto mar; até o idílio vivido entre os índios Guajiros, na Colômbia –

tudo é narrado em extrema velocidade, com grandes lances de ousadia e muitos golpes de sorte.

Frustrado nove meses depois da evasão de Saint-Laurent, Papillon não esmorecerá sua

ânsia de liberdade. E ainda em Santa Marta, e depois na penitenciária 80, em Barranquilla,

empreenderá novas tentativas de evasão. Mas é com a recaptura de Papillon, ainda na Colômbia,

em Santa Marta, que a narrativa, do ponto de vista do presente trabalho, passa a ter maior

interesse.

A 16 de novembro de 1934, Papillon, Maturette e Clousiot, entregues às autoridades

francesas, retornam ao degredo em Saint-Laurent, no aguardo do conselho de guerra onde suas

transgressões serão julgadas. Vem a sentença: dois anos de reclusão.

A pena – condenação sobreposta a um sujeito já condenado a trabalhos perpétuos –,

deverá ser cumprida na reclusão disciplinar da ilha de Saint-Joseph. As palavras com as quais

o comandante da reclusão recebe Papillon, são semelhantes, em termos de dureza, àquelas

transcritas no relato de Graciliano Ramos em sua recepção na Colônia de Dois Rios. Ei-las:

- Prisioneiros, vocês sabem que essa é uma casa de castigo para as faltas cometidas

pelos condenados. Aqui, não tentamos corrigi-los, porque sabemos que isso seria

inútil. Queremos é domar vocês. Aqui há só uma regra: bico calado. Silêncio absoluto.

Qualquer comunicação com as celas é arriscada: pode dar uma punição bastante dura.

Se vocês não estiverem gravemente doentes, não peçam médico, pois uma chamada

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injustificada resulta em castigo. É tudo o que eu tenho para dizer. Ah, e é

rigorosamente proibido fumar! (CHARRIÉRE, s/d, p. 229).

O regime na reclusão é extremo, perturbador: incomunicabilidade completa, imobilidade,

dieta mínima e degradante, rotina invariável. Não à toa a prisão em Saint-Joseph é conhecida

como a “devoradora de homens”. Avultam casos de enlouquecimento, suicídio, degradação

física, adoecimento. As estratégias de Papillon para fugir ao perecimento passam pela

caminhada permanente por dentro da sala, pela ajuda recebida para melhora da alimentação e,

em nível psicológico, por extensos mergulhos na memória íntima, divagações em que revive

trechos felizes de sua vida na França.

Finda a reclusão, o condenado retoma o cumprimento da pena original, agora na ilha

Royale. Imediatamente retoma os planos de evasão, os quais, no entanto, não conseguirá

efetivar tão rapidamente. Ao longo de mais sete anos, outras aventuras se sobreporão ao destino

do intrépido fugitivo, inclusive uma fuga frustrada pelos guardas da cadeia e o assassinato de

Bébert Celier, o delator. Reunido outra vez o conselho de guerra, a nova sentença é

desesperadora: oito anos de reclusão na devoradora de homens. Em caminho de Saint-Joseph,

Papillon ouve de um guarda algo aterrador: até então ninguém sobreviveu a mais de seis anos

na condição de recluso.

Coincidências e golpes de sorte, porém, intervirão para comutar a sentença brutal, de

modo que 19 meses depois do início da segunda reclusão, Papillon volta à Royale, com

renovados intuitos de evasão. A partir daí, sobressaem na narrativa as agruras da vida nas ilhas.

São lugares tidos como extremamente perigosos. Lugares nos quais, como em geral acontece

nos regimes prisionais, viceja um conjunto de leis tácitas, sob as quais os condenados arranjam

suas vidas. A organização em grupos (as “patotas”), o comércio de pequenos bens, os jogos de

carta produzem um certo equilíbrio, pouco estável, transgredido muitas vezes por explosões de

violência, revoltas, numerosos assassinatos e brigas.

A fuga definitiva, espetacular, antecedida de outras mil e uma aventuras sensacionais,

ocorrerá a partir da ilha do Diabo. Esta é, dentre as ilhas da Salvação, a menos extensa, porém

a mais avançada no rumo Atlântico Norte, permanentemente castigada pelo fluxo violento da

maré oceânica e pelos alísios. A classe dos presos políticos cumpre aí as penas. Foi na ilha do

Diabo que Alfred Dreyfus (1859-1935) amargou quase quatro meses de degredo, consequente

à falsa acusação de vender segredos militares, no ano de 1894, num caso mundialmente

famigerado.

Num banco de pedra polida, no alto do penhasco ao extremo norte da ilha do Diabo, conta

Papillon, Dreyfus costumava suspirar pela França, em lamentos nostálgicos. E foi dali, do banco

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de Dreyfus, em permanente observação do comportamento do mar – sobretudo quanto ao ritmo

com que ondas e vagalhões batiam o penhasco escarpado –, que o fujão inveterado viu nascer

a ideia libertadora.

Justamente a partir daquele violento acidente geográfico, no ponto de colisão da maré

oceânica com os ásperos rochedos da ínsula selvagem, de onde menos se esperava uma tentativa

de evasão: nesse lugar espinhoso Papillon principiará sua última grande aventura anterior à

conquista da liberdade. Num lance de ousadia extremada, e em parceria com o prisioneiro

Sylvain, Papillon se lançará ao mar a bordo unicamente de uma jangada de cocos, aproveitando

o refluxo de um vagalhão, formado a cada seis ondas menores, cuja energia empurra os

prisioneiros até a corrente oceânica principal, trezentos metros adiante da ilha. Sylvain perece,

engolido pela areia pantanosa, às margens da terra firme, onde chegam quarenta horas após a

partida. Já Papillon, após nove fugas frustradas, não seria recapturado, enfim desviante do

caminho da podridão.

Saint-Joseph, Royale e a Ilha do Diabo, chamadas em conjunto de as Ilha da Salvação,

integram a parte mais bruta do sistema carcerário então vigente na Guiana. Abrigam os

condenados mais perigosos, o asilo dos considerados loucos, os presos políticos e a reclusão. A

má fama do regime nas ínsulas, a crença geral da impossibilidade de fuga, repelem os

condenados com anelos de evasão.

No entanto, chama atenção o nome curioso com o qual foram batizadas. Por que afinal

ilhas da Salvação? Papillon conta ter ouvido a explicação da esposa de um dos comandantes do

regime prisional insular, a senhora Barrot: “numa epidemia de febre amarela em Caiena, alguns

padres e as freiras de um convento se refugiaram nas ilhas e todos se salvaram. Daí veio o nome

de ilhas da Salvação” (Ibidem, 274).

“Papillon: o homem que fugiu do inferno” é uma obra cujo espaço mais amplo é dedicado

à luta pela liberdade. É sobre a tenacidade e a intrepidez com as quais um homem confrontou-

se com um poderoso sistema de poder, triunfando apesar de tudo, e sobretudo não se deixando

esmorecer pelas contínuas frustrações ao longo de uma década de degredo.

“Memórias do cárcere”, por sua vez, trata do arbítrio do Estado em tempos de exceção.

A sujeição das pessoas a uma ordem sem outra lógica senão a vontade tirana de um poder

extremamente centralizado. E a forma como tal ordem subjuga as vontades, afrouxando-as,

extenuando-as, através do suplício prolongado. “Não caluniemos nosso pequenino fascismo

tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos

verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu de escrever. Apenas nos

suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício”, diria Graciliano (2006, vol. I, p. 34). Daí

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essa obra só ter sido publicada, inconclusa, em 1953, em edição póstuma, quase vinte anos após

a experiência do cárcere. A sevícia atroz inevitavelmente esmoreceria as forças do escritor.

Distintamente do famoso livro de Henri Charriére, as memórias de Graciliano Ramos não

narram nada de espetacular e heróico. Prisão sem acusação formal, sem sentido, desaventurada,

prisão da qual, muitas vezes, o recluso teme a libertação.

Há, contudo, certas convergências nas duas narrativas, a começar pelo fato de serem

extraídas da experiência dos escritores e narradas a partir da memória pessoal. Escritos

autobiográficos, portanto. Literatura de Cárcere. Ambos descrevem e comentam as agruras da

experiência de encarceramento num contexto histórico comum, ou seja, no chamado período

entre guerras, ao longo da década de 1930, conjuntura em que avançavam no Brasil, e no mundo

afora, as ideologias fascista e comunista.

Há outros pontos de contato importantes: os dois relatos descrevem o endurecimento do

regime prisional nas respectivas faces insulares, constituindo as ilhas da Salvação e a Ilha

Grande, locais de intenso mal falar, e onde os reclusos são submetidos a trabalhos extenuantes,

condições precárias de salubridade (no caso da Ilha Grande), ou onde cumprem as penas

“especiais”, como o isolamento total em Saint-Joseph. Além disso, despontam nesses locais,

nos quais o isolamento assegura o domínio quase absoluto dos agentes repressores – em geral

policiais e carcereiros –, a prática da tortura, como modo de obter do prisioneiro informações

ou de sumariamente castigá-lo.

Um aspecto especial das duas narrativas memoriais corrobora a afirmação feita

anteriormente, quanto ao lugar especial que ocupam na expressividade humana os regimes

prisionais, especialmente as prisões insulares. Trata-se da fecundidade com que o tema foi

apropriado e articulado pela expressão cinematográfica. As obras de Graciliano Ramos e Henri

Cherriére constituem exemplos expressivos. Os dois livros ganharam desdobramentos nas

grandes telas. No Brasil, o filme “Memórias do cárcere”, com Carlos Vereza no papel de

Graciliano Ramos, e dirigido por Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1984. “Papillon”,

o filme, foi produzido nos Estados Unidos, dirigido por Franklin J. Schaffner, lançado em 1973,

e estrelado por Steve MacQueen, como Papillon, e Dustin Hoffman, na pele de Louis Dega, o

falsário.

O cinema dedicou especial atenção às prisões insulares. Nos Estados Unidos, na Baía de

São Francisco, Califórnia, a ilha de Alcatraz abrigou um legendário presídio, do qual a fuga era

considerada impossível. Ao longo de 29 anos, desde 1934, não houve registro de fugas, até o

ano de 1962, quando três reclusos desapareceram dos seus cárceres. A histórias dos fugitivos

Frank Morrris e os irmãos Anglin, John e Clarence, é narrada no filme, de 1979, “Alcatraz: fuga

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impossível” (“Scape from Alcatraz”), dirigido por Don Siegel e tendo Clint Eastwood no papel

de Frank Morris. É um suspense no qual o enredo centra-se na minuciosa execução do plano de

fuga.

Outro filme conhecido sobre Alcatraz centra-se na figura de Robert Franklin Stroud, um

dos célebres criminosos ali internados. Lançado em 1962, “Birdman of Alcatraz” teve direção

de John Frankenheimer e foi protagonizado por Burt Lancaster.

Recentemente (2010), um filme norueguês deu a conhecer um pedaço da história do

Reformatório de Bastoy, erguido na ilha homônima, próximo a Oslo. O reformatório funcionou

entre os anos de 1900 e 1954, e a acreditar no enredo do filme, baseado em histórias verídicas,

foi palco de abusos e atrocidades. O filme foi dirigido pelo dinamarquês Marius Holst.

O essencial nos exemplos citados, em se tratando dos rumos do presente trabalho, é a

introdução que permitem fazer quanto aos regimes prisionais insulados. Sobretudo nas obras

de Henri Charriére e Graciliano Ramos, algumas características importantes relativas a tais

regimes ganham relevo. Constantes como prática de tortura, fugas espetaculares, revoltas,

arbítrios de agentes públicos, má fama, etc.

4.2 Histórias da ilha do diabo

A partir de agora, tomando como base depoimentos orais e reportagens impressas,

enveredaremos por alguns dos acontecimentos que fizeram da ilha de Cotijuba o par local de

Alcatraz, da Ilha Grande e das Ilhas da Salvação.

Já dissemos, no tópico anterior, que a ascensão de uma visão negativa sobre a ilha de

Cotijuba foi se intalando logo após a implantação da colônia reformatória, por volta de 1933.

Deveu-se, em maior medida, ao modo truculento como as forças policiais a serviço das

autoridades revolucionárias interceptavam e recolhiam menores considerados socialmente

desajustados, os remetendo, a seguir, ao internamento.

Desde então, a memória acolherá inúmeras histórias e personagens relacionados a eventos

sucedidos na ilha do diabo local. Foi com base na presença e circulação de tal memória entre

os moradores mais antigos residentes na ilha de Cotijuba que realizamos, anos atrás, o filme

“Cotijuba: a ilha do diabo?”. Os depoimentos deles conformam o recheio mais expressivo do

documentário. Ao presente trabalho, constituem-se como fontes valiosas. Na descrição e análise

dessas fontes, contamos não apenas com o conteúdo explícito no filme, porém ainda com

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detalhes da vida ou da postura dos entrevistados, os quais fomos percebendo no correr dos

procedimentos de pesquisa ou no contato pessoal prolongado. Dizemos isso, porque é na

postura do depoente, ou em eventos específicos de sua vida pessoal, que algumas vezes aflora

o conteúdo mais importante para esta pesquisa, e não apenas na fala, no conteúdo verbal

emitido, por assim dizer.

Seu Artur, que se dizia ex-pracinha e ex-subdiretor da colônia penal, hoje já falecido,

tratava do assunto da maneira mais natural, não sem algum contentamento, às vezes com um

sorriso. Aliás, semelhante postura, de um quase escárnio com fatos não raro chocantes, é uma

constante entre os entrevistados do filme, à excessão do sempre circunspecto Raimundo Oito.

É em tom meio irônico que Seu Artur admite, sem pudores, os excessos por ele praticados na

instituição: “Eu era o chefe, eu é que mandava bater a palmatória na bunda. Não quer falar...

Que eles não tinham pena do cidadão na cidade, tomava o dinheiro do cidadão, dava no cidadão,

ou então matava, metia a faca. E eu não ia ter pena de um desgraçado desse!...” (In: Cotijuba:

a ilha do diabo?, 2012).

Outro depoente foi Seu Getúlio, ainda hoje morador da ilha de Cotijuba. Tendo prestado

serviço de transporte de gêneros à administração das instituições, ao tempo em que Teodorico

Rodrigues era diretor geral, teve oportunidade de presenciar algumas das situações responsáveis

pela má fama do lugar.

Aí eu via aquele movimento dos caras deitado, tudo apanhado, tudo batido, é isso aí

que eu via. Lá em cima, naquele sobradinho, eles apanhavam de palmatória (nas mãos)

até botar sangue no canto das unha todinho. Aí eles botavam as mão lá (na parede) e

ficava certinho a marca da mão dele lá... Nesse tempo a gente não falava nada, porque

não podia falar mesmo. A gente via, mas não podia falar (Ibidem).

A presença de tortura é evidente. Semelhante prática, como vimos, não é estranha aos

regimes de detenção em ilhas. Mas torturas em quais circunstâncias? Trata-se aqui

principalmente de “interrogatórios”, ou como se dizia então – e ainda hoje se diz – de “dar o

serviço”. É o que se depreende de outros depoimentos.

Seu Mambo, outro depoente cuja voz só se ouve pelo documentário, pois falecido há

pouco, morador antigo da ilha, prestou alguns serviços às instituições ao tempo de Teodorico

Rodrigues (década de 1970). Afirmou haver presenciado as bárbaras sessões.

Cheguei a presenciar uns dois ou três lá e o negócio não era fácil mesmo não. Os cara

apanhava mesmo. Aqueles que confessava logo, eles não batiam. Aí eles iam

averiguar se o cara tava falando a verdade. Se ficasse certo e recuperasse o roubo, aí

eles não batiam. Mas quando eles descobriam que o cara tava mentindo, voltava pra

cá e apanhava mais (Ibidem).

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Seu Ceará é um ex-funcionário da colônia penal que atuava como marítimo no serviço de

transporte entre Cotijuba e Belém. Já aposentado, manteve-se na ilha, onde constituiu numerosa

família. Começou a trabalhar para a instituição no início dos anos 1970, auxiliando nos serviços

de transporte realizados com os barcos Marta da Conceição e Nogueira de Faria. Oriundo do

município cearense de Coreaú, e estando desempregado em Belém, conservou ele grande

reverência ao tenente Teodorico Rodrigues, pela oportunidade de trabalho. Em sua narrativa, o

tenente aparece como um sujeito razoável, cuja atividade como diretor geral das instituições

insulares, contribuiu para minimizar as explosões de violência que granjearam tanta má fama

junto à população local. Muito embora, como se sabe, Teodorico Rodrigues tenha sido quase

trucidado num violento motim de presos no ano de 1976, caso que narraremos em detalhes mais

à frente. Seu Ceará nos concedeu entrevista na ilha de Cotijuba, no dia 20/07/2015.

Para seu Ceará, as explosões de violência estavam principalmente associadas ao sistema

de polícia interna, então comum nos presídios. A polícia interna, afirma o ex-funcionário, era

constituída, em maior porção, por presos de justiça (já sentenciados), os quais gozavam de

alguns privilégios pelo serviço de controle prestado à administração. Responsabilizavam-se

pela chefia das turmas de trabalho que saíam dos pavilhões regularmente para atividades

laborais pela ilha. É o par, na dimensão do presídio, do inspetor-aluno no Educandário.

João Capiberibe, recentemente, fez publicar narrativa autobiográfica na qual descreveu

sua experiência nos cárceres paraenses, iniciada em 1970, experiência sucedida pela fuga até

Santiago do Chile, sob encalço dos agente da Ditadura Militar, então em vigor. O hoje senador

era acusado, como outros tantos à época, de conspiração pró-comunista. Encerrado em princípio

no Forte do Castelo, pouco depois é remetido ao presídio São José. Aqui, entra em contato com

o esquema da polícia interna. É provável haver mais excessos no caso de uma prisão insular,

porém o relato de Capiberibe já permite entrever algo do curioso e bruto sistema de poder

interno aos cárceres:

A responsabilidade pela segurança e disciplina interna do presídio estava inteiramente

nas mãos de um seleto grupo de reclusos, escolhidos a dedo entre os homicidas, quase

todos analfabetos. Investido do poder de polícia pelo diretor, exerciam com arrogância

e truculência, sua autoridade no quadrilátero interno dos muros da penitenciária. Com

mais de quarenta anos de pena por vários homicídios, entre eles o da própria mãe,

Raimundo Tabacão era o chefe, autoridade máxima da polícia interna, temido e odiado

por todos (CAPIBERIBE, 2013, p. 112).

Quase todos os depoimentos, constantes no documentário ou nas entrevistas concedidas

diretamente à pesquisa, tocaram num certo caso, cuja violência extrema parece ter feito cativar

lugar na memória comum. Envolveu um sujeito, por nome Elizeu, que exercia função de polícia

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interna na colônia, sendo nisso bastante temido. Cruel e violento, esse sujeito não tardou a sofrer

revés à altura. Chefiava um grupo de presos responsáveis pela roçagem da estrada que então

ligava a ponta de baixo à ponta de cima da ilha. Nessas horas os cativos recebiam os respectivos

instrumentos de trabalho: foices, terçados, enxadas. Constituíam momentos propícios a motins

e fugas. Seu Getúlio referiu-se assim ao caso: “Elizeu era o nome do homem que era o polícia

interna. Deram uns golpes nele graúdo assim pelo pescoço, pelo peito, pelo braço. Cortaram ele

muito mesmo. E depois fugiram pelos matos” (Cotijuba: a ilha do diabo?, 2012).

Casos de fuga avultavam. Os relatos coincidem quanto aos métodos: era comum o furto

de montarias e pequenas embarcações dos moradores; referiam também a prática de construir

jangadas com o tronco de árvores flutuantes, mormente as comuns aningueiras, tão próprias da

região; houve casos de gente a sair nadando da ilha; e, por fim, casos de apropriação de

embarcações a serviço das colônias. Os destinos variavam, embora segundo Seu Ceará fosse

mais comum o desembarque na Vila da Barca. Seu Getúlio mencionou o Ver-o-Peso e as ilhas

costeiras, Mosqueiro e Outeiro, como destino dos evadidos.

Muitos dos planos e tentativas de evasão foram frustrados pelos agentes policiais a serviço

das colônias, ou mesmo pelas dificuldades da empreitada, pois os fugitivos haviam de encarar

a travessia sobre a baía Guajará, às vezes turbulenta, agitada pela maré, pelos ventos ou por

soberbas enxurradas. Casos de afogamento foram mencionados.

É possível que se usasse o afogamento como forma de acorbertar abusos e violências

cometidos, na ilha, pelos agentes públicos. O irônico Seu Artur, em depoimento usado no filme

“Cotijuba: a ilha do diabo?”, mencionou que sob a capa de afogamento decorrente de evasão

frustrada, certos indivíduos eram sumariamente eliminados. Seu relato, a respeito, foi em meio

a riso sarcástico:

Acontecia mesmo. Por que tinha inspetor que era mau. As vezes ele, com a turma

dele, no campo trabalhando, fugia dois, então esses já ia morrer, porque ele não ia

fazer o boletim de fuga deles... Então fazem a viagem pra ir pra Belém ou pra Icoaraci

e lá eles jogam o cara na maré e depois faz o boletim dizendo que ele fugiu meia-noite

numa embarcação do pescador, dizendo que tinha muito vento, muita onda na

travessia do Guajará e revirou ele e mais quatro colega de cima da embarcação e

morreu afogado. Ponto final.

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4.3 O caso Teodorico Rodrigues

Já dissemos, sobre a localização da ilha de Cotijuba, estar ela cravada no intermédio das

baías de Guajará, Marajó e Santo Antônio. É comum, no entanto, que se denomine esse

conjunto de águas, conformadoras de um vasto estuário, como simplesmente Guajará ou

Marajó. É o caso do modo como fala Seu Artur. Mas é também como se referem aos afluxos

aquáticos adiante de Belém, e em torno à Cotijuba, alguns historiadores e escritores que

registraram, mais detidamente, ou de passagem, acontecimentos extremos aí sucedidos.

A travessia do Guajará, ao longo dos períodos colonial, imperial ou republicano,

constituiu-se palco de várias atrocidades. Os casos envolvendo prisioneiros remetidos à

Cotijuba, tão fecundos na memória local, e comumente atribuídos à sanha de Magalhães Barata,

constituem os exemplos mais recentes.

Muitas desgraças tingiram de sangue as águas turvas do Guajará. Ainda em 1616, no mês

de agosto, por exemplo, recém fundada a cidade de Belém, os alferes Pedro Teixeira e Gaspar

de Freitas Macedo, no retorno da famigerada viagem à São Luís, onde foram levar a novidade

da fundação do povoado, mediram forças com uma nau holandesa, que transitava pelas águas

do estuário. Os portugueses sob mando de Francisco Caldeira Castelo Branco, “Assaltando a

embarcação, depois de nutrido e sangrento combate, conseguiram exito, incendiando-a”,

noticiou Arthur César Ferreira Reis (1993, p. 10), em livro bastante lido.

Ao longo das comoções sociais do período imperial, novas e sanguinolentas tragédias

arrebentaram sobre as águas barrentas em torno à Belém. Em meio às circunstâncias graves do

processo de adesão do Pará ao Império brasileiro, o Guajará foi o palco onde cenas de horror

inaudito timbraram indelevelmente a história local. Na tristemente célebre tragédia do Brigue

Palhaço, 256 paraenses pobres (entre soldados rasos, trabalhadores, gente do povo) foram

confinados no exíguo porão do referido navio, padecendo rapidamente dos mais atrozes

sofrimentos. A reclusão ocorrera em represália às agitações motivadas por protestos populares

contra a manutenção de gente de origem portuguesa, contrária à independência da Província,

na Junta do Governo e em empregos públicos. A medida fora determinada pelo Capitão John

Pascoe Greenfell, cuja chegada às águas paraenses, dois meses antes, forçou o processo de

anexação do Pará ao Brasil. A tragédia ocorreu entre a noite do dia 21 e a manhã do dia 22

de outubro. Sob as cores fortes da manhã amazônica, uma vez descerradas as escotilhas do

porão do brigue, o comandante em chefe e seus auxiliares depararam-se com 252 homens

mortos, em cujos hediondos traços traduziam-se tormentos terríveis. Cadáveres dilacerados,

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encarnados, jazentes no próprio sangue. Os quatro sobreviventes, estropiados, não demoraram

a perecer (RAIOL, 1970, V. I, p. 45-52; CRUZ, 1973, p. 236-240; MUNIZ, 1973).

Já citamos, no correr do presente trabalho, as inúmeras desgraças que acometeram as

gentes evadidas de Belém nas embarcações da esquadra imperial, no período da Cabanagem. A

tragédia principiou quando as tropas cabanas, chefiadas por Eduardo Angelim e Antônio

Vinagre, retomaram o controle de Belém, em agosto de 1835. A esquadra, junto a outros barcos,

carregou da capital, algo em torno de cinco mil pessoas. Fundeou em frente à ilha de Tatuoca,

ao arrepio da Baía de Santo Antônio. Penúria de alimentos e água potável, a par da insalubridade

do ambiente, além de epidemias de doenças infecciosas, provocaram intensa mortandade.

Ainda no período da Cabanagem, no paroxismo do embate entre cabanos e tropas

legalistas, intensos bombardeamentos, oriundos da esquadra imperial, então estacionada em

frente à Belém, arruinaram a cidade. Peças de artilharia disparavam intensamente dos barcos

de guerra e das fortificações em terra. Balaços incandescentes cruzaram-se, por horas, sobre o

Guajará. Nesse conflito, o chefe rebelde Francisco Vinagre triunfou sobre o comandante da

esquadra imperial, Pedro da Cunha. A batalha (começada a 12 de maio de 1835), no entanto,

foi causadora de grande destruição e numerosa mortandade (RAIOL, 1970, V. II, p. 686-695).

Uma vez dominada a revolução cabana (a partir de maio de 1836), sob a bruta reação

legal chefiada pelo Marechal Francisco José Soares de Andréa, novo morticínio, prolongado,

teve lugar em navio oficial estacionado sobre as águas pacíficas do Guajará. A se acreditar no

Príncipe Adalberto da Prússia – viajante que passou por Belém e pelo interior da Província

pouco após a derrota do movimento revolucionário –, cerca de três mil vidas de revoltosos

cabanos foram suprimidas na prisão constituída pelas autoridades na Corveta Defensora,

vítimas de maus tratos, doenças, inanição e outras mazelas e sofrimentos. (Apud: MOREIRA,

2011, p. 29 e 30).

Dando um salto de um século, agora no contexto da chamada Segunda República,

anotamos um curioso registro de mortandade nas águas guajarinas, descrito no romance “Rio

de raivas” de Haroldo Maranhão (1987). Como se sabe, “Rio de raivas” é uma obra ficcional

que encarna, num tom algo sarcástico, o período histórico dominado pela figura de Magalhães

Barata, o qual já descrevemos aqui, aliás período coincidente com o que viemos estudando. O

foco mais estrito da narrativa é o embate entre o dono jornal de oposição O Folharal, o enérgico

Palma Cavalão, e o governador do Estado, de nome igualmente pitoresco, o Cagarraios Palácio.

São encaranações ficcionais dos célebres inimigos Paulo Maranhão, dono e redator do jornal A

Folha do Norte, e do Interventor Magalhães Barata.

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O trecho de interesse à presente narrativa integra a miríade de histórias violentas

atribuídas à polícia do governo baratista, histórias relacionadas à truculência com que operavam

os agentes policiais e à suposta imolação de vítimas jogadas ao fundo das baías, com pedras

atadas ao corpo. A história macabra aparece no diálogo entre os jornalistas Sandro Fiock e Élder

Carvaló, travado na redação de O Folharal. Discutem os repórteres a prisão, pela polícia do

governador, de um militante comunista, no interior do Estado, o Chapéu de Palha. Em tom

melancólico, Fiock lamenta ao amigo: “Olha, Élder, se pegaram mesmo o ‘Chapéu de Palha’,

conforme dizem e o trouxeram para Belém, a esta hora deve estar no fundo do Guajará, que não

iriam deixá-lo ficar de bubuia” (1987, p. 116). Em defesa de sua tese, Fiock cita o caso do

ladrão Tatu, capturado pela polícia logo após roubar a casa de um oficial militar. O jornalista

descreve o funesto destino reservado ao larápio: “meteram o ‘Tatu’ num Catalina, amarrado a

um ferro ou pedra e o largaram para as profundezas da Baía de Marajó” (Ibidem, p. 117).

O derradeiro salto no tempo, como conclusão ao tópico, tocará o ano de 1976, em

contexto mais recente, porém igualmente duro – a Ditadura Militar –, no qual acontecimentos

ultraviolentos, envolvendo repressão de massas por forças policiais, amiudaram-se Brasil

adentro. No Pará, não foi diferente.

Foi nos furos intermediários entre as baías que se deu o caso do espancamento do tenente

Teodorico Rodrigues. Bem falar, foi tentativa de homicídio. Diretor Geral da ilha correcional,

ou ilha presídio – como Cotijuba era tratada nos jornais –, o tenente atravessava o Guajará,

como de costume, na lancha Marta da Conceição, a escoltar uma leva de presos com destino ao

cárecere insular, embarcados no Ver-o-Peso. A lancha, miúda e obsoleta, estilo dos tradicionais

popopôs, desatracou por volta das duas da madrugada do dia 17 de fevereiro de 1976. A viagem

seguia normalmente até que, nas imediações de Cotijuba, entre os furos conhecidos como

Paciência e Mamão, explodiu um motim. E assim, outra vez, o Guajará foi tornado palco de

horrores (O Liberal, 16 a 22/02/1976).

A cadeia de acontecimentos irrompera dois dias antes, na madrugada do dia 15,

aproximadamente às três da manhã. Havia, por esse tempo, no centro comercial de Belém,

exatamente na rua Gaspar Viana próximo à rua da Indústria, um estabelecimento – o

mercadinho Vidigal. O centro comercial era, e ainda o é, um lugar ermo em horas não úteis,

sobretudo à noite. Àquelas três horas da madrugada, não se via vivalma nas ruas, e é provável

que a umidade, a penumbra e o silêncio de gentes (em estranho contraste com a barafunda das

horas comerciais), espantasse o vivente comum (O Liberal, 17/02/1976, Caderno II, p. 01).

Porém, como logo se veio a saber, a solitude humana por ali não era total. E foi esse o

detalhe que frustrou um plano audacioso de arrombamento e saque. Um vigia a serviço da antiga

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estatal de telefonia paraense, a Telepará, de plantão ali perto, percebeu a estranhíssima e ruidosa

aproximação de um caminhão que, obliterando os ruídos da noite úmida, estacionou exatamente

em frente ao mercadinho Vidigal. Em segundos, seis indivíduos saltaram do carro e,

manipulando ferramentas pesadas, se puseram a estourar os cadeados da entrada do

estabelecimento. O vigia não deu alarde, e fez o que podia fazer: ligou para a Rádio Patrulha

(Ibidem).

Uma guarnição da Polícia Militar, sob ordem do Sargento Barbosa, chegou em poucos

minutos ao local. Antes, porém, irrompendo a calmaria da noite, permitiu aos arrombadores

dispersarem-se. Os policiais, apesar disso, capturaram dois dos meliantes. E foi o suficiente

para desbaratar uma pequena organização criminosa, cuja especialidade fez as autoridades

policiais de então, e os redatores de jornal em consequência, a batizarem de “a quadrilha do

cofre” (Ibidem).

Havia algum tempo que o problema perturbava a polícia. Firmas comerciais de Belém

pressionavam as autoridades, queixando-se de saques em estabelecimentos, crimes nos quais o

maior prejuízo decorria da subtração dos cofres das empresas e a decorrente perda de valores e

documentos importantes. Talvez, por isso, ou por pressão de autoridades do alto escalão, o

interrogatório daqueles bandidos seria realizado pelo comissário William Lima, policial cujos

métodos o celebrizavam como “o comissário do diabo”. Seja como for, se tem notícia de que o

temido policial preteriu a folga e o compromisso de passeio familiar a balneário próximo, para

atender o dever de ofício (Ibidem).

Vetererano, mal falado entre os bandidos, truculento, o comissário submeteu os dois

detidos à implacável sessão de interrogatório. As fontes escritas não dizem, mas não é

improvável que a energia empregada no procedimento fosse além de perguntas e pressões

psicológicas. Espremidos brutalmente, os dois bandidos, Clésio Ramos da Silva e Iadir Almeida

Braga, não demoraram a ceder. Além disso, o nome de um dos bandidos, Clésio, atiçou os

instintos e intuições do experiente comissário Lima. Recordou ter sido esse o criminoso que,

no início da década anterior, dera trabalho à polícia por roubos ousados que pertubaram Belém,

sendo então muito odiado por haver baleado policiais em truculentos conflitos. Como

realizasse, nessa época, suas empresas criminosas com um lenço a ocultar os traços, ganhou

Clésio a alcunha de “Mascarado”. Após capturado, passara por toda sorte de sevícia, inclusive

pelos temidos interrogatórios em Cotijuba. Mascarado havia sido libertado há um mês e poucos

dias da nova ocorrência, após longos anos cumprindo pena no presídio São José. Ligando as

peças, provavelmente não foi difícil para o “comissário do diabo” deduzir: aquele criminoso

incorrigível estava implicado em outros casos de arrombamento e saque (Ibidem).

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Mascarado, possivelmente temendo maiores truculências, não tardou a revelar as

identidades dos demais membros da quadrilha não capturados: José Aparecido Eusébio, o

Baiano; João Reis do Nascimento, o motorista, responsável pelo roubo do veículo usado nas

operações da quadrilha; e outros dois, identificados nas fontes como Escurinho e Américo.

E não ficou nisso: confessou onde se embrenhava a quadrilha e onde se ocultavam

produtos das ações criminosas. A polícia, prontamente, deu uma batida no local, nas redondezas

da cidade, região agreste, estrada do Agronômico, 576. Na casa, naquele momento,

encontravam-se duas mulheres, duas crianças, o motorista João Reis, além de Baiano. Este

último, à chegada da polícia, evadiu-se mata adentro. João Reis, que ressonava, despertou

assustado com os agentes de armas em punho (Ibidem, p. 02).

Clésio, que acompanhava a ação, indicou um ponto no chão de terra batida do chalé, onde

nitidamente notava-se uma diferença na textura da terra. Fizeram João Reis escavar o local.

Logo, os policiais botavam as mãos num dos cofres, surrupiado recentemente da Casa do

Pirarucu, uma das firmas cujas queixas vinham perturbando o pessoal da polícia. Nova

escavação no quintal e João Reis fazia aparecer o cofre de outra firma, a Guaraná Real,

arrombada há poucos dias. Em ambos cofres, documentos, talões, apólices. Nos carros da

equipe chefiada pelo comissário do diabo, avolumaram-se dezenas de outros produtos de ações,

criminosas apreendidos no esconderijo: perucas, redes, roupas, ferramentas e rádios (Ibidem).

Naquele mesmo dia, os receptadores dos roubos seriam delatados por Clésio e pelo

comparsa ora preso. Numa diligência para prender esses receptadores, o motorista João Reis,

que acompanhava o procedimento, aproveitou o descuido dos policiais e, mesmo algemado,

evadiu-se do carro da polícia, onde foi deixado sozinho enquanto os agentes davam o flagrante.

Ainda àquele dia, os jornais haviam publicado uma foto de João Reis: ele escavava o chão,

enquanto o agente policial segurava uma corda enlaçada em seu pescoço (O Liberal,

17/02/1976, Caderno I, p. 12).

Clésio não teve sorte igual. Confinado junto há uma horda de outros criminosos no pátio

da Central de Polícia, logo soube que seria remetido à ilha de Cotijuba. Testemunhas dizem que

ele protestou contra tal medida, a qual temia, arguindo em sua defesa a cooperação prestada aos

serviços policiais, com a entrega dos roubos e com as delações. À reportagem daquele dia,

Clésio revelou ter horror à ilha, lugar onde já estivera na década anterior. Seja, no entanto,

devido à superlotação das cadeias de Belém, ou por arbítrio dos policias, a viagem para a ilha

do diabo estava selada. Porém, a diligência não chegaria ao destino final, atrapalhada pelo

motim cuja trama fora urdida por Mascarado e seus parceiros de cárcere, horas antes, numa das

celas da Central de Polícia (O Liberal, 18/02/2016, Caderno I, p. 19-21; Caderno II, p. 01).

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Às duas da manhã, a lancha Marta da Conceição desatracou do Ver-o-Peso. Levava quatro

tripulantes: o piloto Osvaldo Ferreira de Lima, por alcunha Cupuí, um sujeito que realizava

serviços a bordo (o nome não aparece nas fontes), o tenente Teodorico Rodrigues e Edvaldo

Gomes Chaves, o Vavá. Este último, declarou participar da diligência atendendo a convite

informal do tenente, pois não tinha vínculo com a secretaria de segurança. Vavá, no entanto, já

auxiliara a polícia na condição de “encostado” – categoria de sujeitos recrutados para reforçar

batidas policiais, em geral contra criminosos supostamente de maior periculosidade. Teodorico

Rodrigues era o único militar na lancha e o único a estar armado (Ibidem, p. 19-21).

Seguiam viagem 16 detentos. Entre eles, os dois arrombadores da quadrilha do cofre,

Clésio e Iadir, além de outros criminosos tidos por perigosos, como Goiano, Tamuatá, Paraíba

e Sapo. Dos dezesseis presos, apenas Caboquinho e Loló, eram levados para Cotijuba por

iniciativa própria. Desejavam integrar-se ao sistema de trabalho em vigor na ilha, dedicando-se

à agricultura. Afora esses dois, a quem o tenente devotava confiança, os demais seguiam viagem

sentados nos bancos laterais, com as mãos para trás, atadas por cordas (Ibidem).

A embarcação singrou as águas do Guajará entre Belém e a ilha das Onças, adentrado,

em seguida, no pequeno arquipélago onde se vê as ilhas da Barra, Jararaquinha e Urubuoca.

Quando penetrou o furo que separa as ilhas Nova e Paquetá, mais ou menos duas horas haviam

se passado desde a partida. Com a viagem quase a se concluir, algum dos presos, talvez Clésio

ou talvez Goiano, conseguiu se desamarrar. Com um plano mais ou menos urdido, eles ainda

se aproveitaram de nova imprudência do tenente Teodorico Rodrigues. Havia ele dependurado

uma bolsa com itens pessoais e uma arma – um revólver taurus calibre 38 – na parede da lancha.

Não bastasse isso, e ao que pareceu a muitos um excesso de autoconfiança, aquele sujeito tão

versado na prática de transporte de presos, pôs-se a conversar tranquilamente com o piloto Picuí

e o encostado Vavá, sentado à popa da lancha. Àquele ponto da viagem, não fosse a penumbra

da cerrada madrugada, o tenente diretor geral da ilha presídio já divisaria o trapiche onde

esperava desembarcar (Ibidem).

Vavá e Picuí contaram aos jornalista ter sido nesse momento que Clésio, livre das cordas,

conseguiu se apossar da bolsa do tenente, repassando-a rapidamente a Goiano. Teodorico

Rodrigues percebeu a movimentação e de pronto arremeteu sobre os sublevados. Goiano não

hesitou em disparar na direção do empedernido militar, mas a bala se perdeu sem acertar

ninguém. Desejava o tenente provavelmente desarmar Goiano, porém aquele impulso corajoso

deixou seus flancos abertos aos demais. Rapidamente, um quadro de espancamento se

desenhou: duros golpes explodiam sobre Teodorico, vindos de todos os lados, e ele não

demorou a cair, no que passou a receber uma saraivada de chutes. Alguns dos amotinados

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destacaram tábuas estreitas do assoalho da lancha, aumentando com elas o grau do

espancamento. Em meio à balbúrdia, Clésio gritava para que Goiano diparasse logo a arma

sobre o homem desacordado (Ibidem).

Figura 07: Rota do motim e da fuga

Fonte: O Liberal, 17/02/1976, microfilmagem.

O piloto Picuí, então, afirmando que o tenente já morrera, conseguiu evitar o disparo. Foi

dele a atitude de jogar Teodorico nas águas do Guajará. Picuí sabia que a lancha, então à deriva,

estava próxima da margem da ilha de Paquetá. No entanto, Teodorico Rodrigues, estonteado

pela sevícia brutal e sem a habilidade do nado, só não pereceu afogado devido à atitude de um

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daqueles bandidos que seguiam espontaneamente para a ilha. Loló lançou-se à agua e conduziu

o tenente para a margem. Picuí não demorou a fazer o mesmo (Ibidem).

Os amotinados, ato contínuo, disfarçaram o nome da lancha com lama, de modo a evitar

a fácil identificação, e tomaram caminho inverso, porém agora percorrendo o furo entre as ilhas

de Arapiranga e das Onças, desembocando no rio Pará e penetrando, em seguida, o Barcarena.

Os fugitivos abandonaram a lancha às margens daquele leito lamacento e mergulharam na mata

serrada (Ibidem).

O que aconteceu depois sempre contou com a maior publicidade pelos jornais. Durante

dias, as forças policiais locais mobilizaram um conjunto de homens – recrutados entre a Polícia

Militar e Civil, a Rádio patrulha, a Patrulha Rodoviária, além de cidadãos comuns que se

voluntariaram para a empreitada. Seguiu-se 72 horas do que os jornais alardearam como “a

grande caçada humana”. Aos poucos, os fugitivos foram sendo recambiados. Carioca Preto,

Goiano, Tamuatá, Poconé e o Menino de Ouro foram presos no dia seguinte ao motim. A

maioria deles chegava num estado lastimável, não apenas vitimados pela fome e pelo cansaço,

mas pela sevícia a que foram submetidos pelos policiais. Muitos seguiam direto ao Pronto

Socorro para retirada de balas do corpo (O Liberal, 18 a 22/02/1976).

Clésio foi o último a ser recapturado. A grande caçada chegou ao fim por volta das 12

horas do dia 20, quando uma guarnição da Patrulha Rodoviária localizou Mascarado, em

companhia do comparsa Baiano, a vagar pela rodovia Barcarena-Abaetetuba.

As informações veiculadas pelos jornais, embora abundantes, não raras vezes são

desencontradas. Não há espaço aqui para esmiuçar o volume dessas informações, tampouco

detalhar desencontros e contradições nos textos jornalísticos que serviram de fonte

à presente narrativa. Observamos, no entanto, textos cheios de hesitação, nos quais fica evidente

a pressão pela divulgação de versões oficiais dos eventos. Às vezes, versões urdidas mais ou

menos sob o relato dos policiais, embatem-se com matérias nas quais os jornalistas narram com

mais liberdade os acontecimentos. E sobretudo versões baseadas nos relatos policiais se

contradizem com as foto-reportagens, nas quais se vê nitidamente cenas de violência explícita

contra homens já dominados. É de se estranhar que os jornais não temessem repressão ou

censura por parte do poder instituído, pois as informações veiculadas não deixam margem de

dúvida quanto ao uso excessivo (e criminoso) da força pelos policiais. Sobressai, ainda, nas

matérias o espírito de revanche e de demonstração de poder de que estava investida aquela

missão de recaptura.

Nas matérias sobre as buscas de Goiano e Clésio, principalmente, fica explícita a

truculência desnecessária com a qual agiram as forças policiais. No caso de José Eurípedes de

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Souza, o Goiano, como legenda às fotos que documentam sua prisão, os jornalistas escreveram

o seguinte: “Manietado e atirado ao chão, o marginal ‘Goiano’ é espancado, depois despido

pelos soldados empenhados na captura, e intimidado com armas de fogo que todos portavam”

(O Liberal, 21/02/1976, Caderno I, p. 14). Goiano

Figura 08: Notícia sobre a caçada humana em Barcarena

Fonte: O Liberal, 19/02/1976, microfilmagem.

Clésio Ramos da Silva, o Mascarado ou “Careca”, não teve melhor sorte. Uma vez

recapturado, foi seviciado com brutalidade e baleado. Poucas horas depois, Clésio dava entrada,

acompanhado pelo igualmente estropiado Baiano, ambos em estado crítico, no Pronto Socorro.

Ainda assim, naquele mesmo dia, os repórteres o entrevistaram. Naturalmente, se

encontrava em péssimo estado, reclamando grandes dores. As declarações foram publicadas em

páginas impressas no dia seguinte. Sobre as motivações do crime, disse:

- Nós tomamos conta do barco e imobilizamos o tenente Teodorico Rodrigues e a

outros tripulantes, para não chegarmos à Cotijuba naquela madrugada, porque soube,

quando estava no presídio São José, que toda semana estão matando um na ilha e,

depois, quando os parentes do elemento perguntam por ele, a polícia diz que “fulano

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fugiu e morreu afogado na Baía do Guajará. Eu, particularmente, sabia que eles

queriam dar cabo da minha vida” (O LIBERAL, 22/02/1976, p. 19).

Figura 09: Detalhe da notícia da recaptura de Clésio e Baiano

. Fonte: O Liberal, 21/02/1976, microfilmagem.

A reportagem afirma que Clésio fazia as declarações à frente do investigador Paulo

Vieira. É de se estranhar, portanto, os nomes de gente no poder que aparecem nos textos,

divulgados abertamente, sem que nem o preso, nem os responsáveis pelo jornal, julgassem nisso

algo de anormal, ou se preocupassem com represálias. Sobre as práticas de tortura e os

torturadores, afirmou:

- Na época da DIC, quando era delegado o tenente Dantas Brasil, o pau era violento.

Atualmente, na gestão do delegado Manoel Menezes, o regime é igual. No presídio,

soube por intermédio de outros colegas, que o atual delegado da DFR, era um papel

carbono do Dantas Brasil, no pau (Ibidem).

Enfim, a argumentação de Clésio vai sempre na direção de afastar a hediondez da

tentativa de assassinar o tenente Teodorico Rodrigues, em favor do argumento de evitar a ida

para a terrível Cotijuba. Lembrou ter protestado ao chefe da Delegacia de Furtos e Roubos

(DFR) quanto à transferência para ilha do diabo, pois não era um sujeito “desse que apanha

para ‘dar o serviço’” (Ibidem). Em seguida, o repórter narra o seguinte:

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Entretanto, segundo o bandido, seus argumentos não satisfizeram ao delegado Manoel

Meneses, que afirmou a Clésio que iria manda-lo á ilha de Cotijuba, a fim de que ele

fosse interrogado, ali, pelo comissário William dos Santos que, atualmente, segundo

o marginal, é quem comandava o pau, naquela dependência da SEGUP (Ibidem).

Figura 10: Nota de capa

Fonte: O Liberal, 22/02/1976, microfilmagem.

É bem possível que em muitos aspectos a fonte jornalística seja imprecisa. Essa

imprecisão, não obstante os cuidados críticos usados na leitura, de algum modo pode invadir a

esta narrativa. É possível até mesmo que as declarações de Clésio, as descrições do caso, em

particular a narrativa da recaptura, estejam contaminados pelas circunstâncias graves do caso,

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desviando-se em cada um desses parâmetros. Por exemplo: Clésio precisava mitigar, de alguma

forma, seu peso no motim, justificar o espancamento de que fora o líder. Daí recuperar o esforço

que fez para não ser transferido para Cotijuba, ou distribuir a responsabilidade entre os demais

sublevados. A maioria dos recapturados, aliás, e como é natural, minimizou sua participação,

distriubuiu o peso sobre o caso, acusou comparsas.

A própria narrativa jornalística, já o mencionamos, em muitos pontos se desencontra. No

calor dos acontecimentos, é bem possível que a boataria desatada que se estabelece em torno

de casos como esse, ganhe status de verdade e assim seja transmitida aos leitores dos jornais.

O tempo era curto para checar tudo o que se escrevia. Daí imprecisões, contradições,

desencontros. A influência da versão oficial é evidente. No entanto, tal influência não é total.

Uma versão dita aqui, é logo desdita depois, por outro jornalista mais ousado.

É o caso do jornalista Paulo Ronaldo, aliás único repórter que aperece no extenso material

consultado, a assinar a coluna de sua autoria. Ele acompanhou as diligências da grande caçada

humana a pedido do editor do caderno Encarte – suplemento noticioso publicado em O Liberal

aos domingos, sob direção de Lúcio Flávio Pinto. Em texto publicado no dia 22, não poupou

críticas aos procedimentos extremados e desnecessários com que a polícia seviciou os

criminosos recapturados. Em particular, descreveu a violência contra Goiano, fugitivo dos mais

odiados, porque tido como dos maiores responsáveis no caso. Goiano sofreu, nas mãos dos

policiais “não uma surra normal de polícia em bandido, mas um espancamento incrivelmente

impiedoso, onde as armas utilizadas sucederam-se entre coronhadas e golpes repetidos de

pedaço de pau” (O Liberal, 22/02/1976, Caderno Encarte, p. 9). A ousadia da descrição repete-

se no caso da prisão de Tainha, fugitivo que, nas palavra do repórter destemeroso, padeceu

“mordido pelos cães, espancado e com quatro balaços encravados nas costelas” (Ibidem).

É preciso dizer que a ousadia do repórter custou, a ele e ao editor do Caderno Encarte,

problemas com os homens da Ditadura Militar então em vigor no país. Lúcio Flávio Pinto

lembrou o caso mais tarde, nas páginas do Jornal Pessoal. Ele e Paulo Ronaldo foram

convocados a depor no inquérito que se instalou para apurar o caso. Ao chegar ao quartel de

Polícia, Lúcio Flávio foi induzido pelos policiais a incriminar Paulo Ronaldo, a quem já tinham

como desafeto, desacreditando em depoimento a versão apregoada pelos jornais sobre os

excessos cometidos pela polícia na recaptura. Ficou sabendo que outros jornalistas já haviam

corroborado a versão da manipulação de imprensa. No entanto, não só reafirmou a veracidade

dos fatos veiculados, como se declarou corresponsável pela divulgação das matérias. Em

conclusão: “O inquérito foi remetido pela PF à Auditoria Militar, Paulo e eu enquadrados na

lúgubre Lei de Segurança Nacional” (2012, p. 04).

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O caso Teodorico Rodrigues, fixo por essas fontes imprecisas, portanto, configura um

episódio da Ditadura Militar envolvendo o sistema correcional implantado em Cotijuba. Evento

que, por si só, já mereceria trabalho específico.

À presente narrativa, no entanto, interessa outro aspecto desse material jornalístico, cujo

relevo transcendeu a fragmentação ou a imprecisão geral das fontes. A ilha de Cotijuba, após

quarenta anos abrigando as instituições reformatória e correcional, havia consolidado-se como

o mais indesejável dos lugares. A legenda da ilha do diabo disseminou-se em toda a sociedade.

Cotijuba tornou-se um nome que causava arrepios e temores, mesmo a criminosos

empedernidos como Clésio Ramos da Silva. “O certo é que os moradores de Belém sempre

tiveram a ilha de Cotijuba como um lugar de sofrimentos”, escreveu Lúcio Flávio Pinto, em

texto não assinado, naquele mesmo Caderno Encarte (Ibidem, p. 10), em matéria publicada sob

o título “A ilha dos silêncios pavorosos”.

Com o caso Teodorico, no entanto, toda essa história tormentosa chegaria a seu clímax.

A partir daí, a desinstalação da colônia apressaria-se. Em meio àqueles acontecimentos

chocantes que envolveram o motim e a recaptura, o governador Aloysio Chaves anunciou a

conclusão, para os próximos meses, da penitenciária de Americano. A notícia foi publicada em

O Liberal no dia 21/02 (p. 05).

Uma década depois, Cotijuba tornaria-se um paraíso turístico de belezas naturais, enfim

aberto à população civil. Abria-se, então, nova legenda: a da ilha dos prazeres.

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5 Considerações Finais

Algumas décadas antes de participar como protagonista da cena turística local, a ilha de

Cotijuba era considerada um lugar de sofrimentos, do qual as pessoas gradas e mesmo

destemidos e intrépidos bandidos, queriam distância. A aura maldita, disseminada aos quatro

ventos numa extensa coletânea de histórias, foi motivada pela criação e funcionamento, na ilha,

de duas instituições: a Colônia Reformatória de Cotijuba, criada no inicio da década de 1930,

mais tarde rebatizada como Educandário Nogueira de Faria, e destinada à reclusão de menores

considerados delinquentes ou abandonados; e o Instituto de Reeducação Social, colônia penal

agrícola instalada em meados da década de 1940, em cujo regime eram vinculados,

inicialmente, os chamados presos de correção, tidos como de menor periculosidade.

O Educandário é, dessas instituições, a que possui maoir relevância do ponto de vista de

um trabalho em História da Educação. Pois, em se tratando de atender uma clientela jovem,

oferecia educação formal elementar e técnica. Foi concebido em projeto e erguido em seus

primeiros pavilhões durante a primeira interventoria de Joaquim de Magalhães Cardoso Barata

no Pará (1930-1935). O idealizador e principal defensor do empreendimento compunha os altos

escalões do governo dito revolucionário: Raymundo Nogueira de Faria já atuava há décadas em

prol da causa dos menores desvalidos, tendo criado, por conta própria ou em associação com

outros homens dedicados aos mesmos princípios (como Ophir Loyola), várias entidades

preocupadas com a defesa dos direitos, com o acolhimento ou com a educação das crianças

órfãs, abandonadas ou degeneradas pelo crime e pela pobreza.

O empreendimento reformatório insular fora apresentado e vendido à sociedade paraense

numa campanha monumental de arrecadação de fundos, perfeitamente identificável nos jornais

daquele agosto e setembro de 1931. Através dessa campanha, com Nogueira de Faria à

dianteira, inúmeros pronunciamentos foram divulgados pela imprensa, vozes por meio das

quais reconhecemos uma versão bem distinta, às vezes oposta, da imagem macabra forjada em

consequência do funcionamento das instituições. O projeto do reformatório havia sido urdido

sob o signo da redenção, numa singela imagem perfeitamente cambiável com a visão de mundo

do magistrado espírita, caridoso e moralista, que foi Nogueira de Faria.

Na década seguinte, a vocação redentora da ilha de Cotijuba será outra vez articulada por

gente do governo, dessa vez pelo chefe de polícia do Estado, em período no qual Magalhães

Barata assumiu, pela segunda vez, o governo em regime de Interventoria. O major Luís Geolás

de Moura Carvalho, que dois anos mais tarde assumiria o cargo de governador do Estado,

estendeu à ilha de Cotijuba sua obra de militante pela causa penitenciária, inaugurando, em

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1945, o Instituto de Reeducação Social. Moura Carvalho sonhava com um sistema prisional

integrado para o Estado do Pará, baseado em modelos internacionais modernos, que ao mesmo

tempo saneasse o grave problema da precariedade das cadeias públicas locais e oferecesse à

clientela a possiblidade de redenção por meio da terapêutica de trabalho. Cotijuba, à época,

recrudesceu fortemente em sua dimensão de ilha de trabalho e redenção, lócus no qual os

socialmente degenerados encontrariam uma oportunidade de vida digna. Na difusão dessa visão

algo idealizada, os jornais da época muito contribuíram.

A presença das duas instituições na ilha de Cotijuba, a partir de 1945, determinou as

relações que a ínsula estabeleceu com Belém. O funcionamento do reformatório e da colônia

penal caracterizaram Cotijuba como a ilha-presídio, tornando-a o par local de empreendimentos

semelhantes e mais famigerados, como a norte americana Alcatraz, as Ilhas da Salvação na

Guiana Francesa ou a Ilha Grande no Rio de Janeiro.

E foi precisamente o funcionamento das instituições e toda a carga de violência que, via de

regra, cadeias e reformatórios instalados em ilhas geram em torno de si, que nos levou trilhar a

vereda em cujo término agora chegamos. Não nos ativemos ao aspecto educacional em sentido

estrito. A dimensão educacional da instituição reformatória (o Educandário) e mesmo da

instituição penal (o Instituito de Reeducação Social), ganha maior relevo quando analisamos os

documentos legais ou uma parte das notícias de imprensa. Isto é, quando se trata da missão

proclamada nos projetos, ou das boas expectativas em relação aos empreendimentos. A maior

parte da carga memorial relacionada ao lugar Cotijuba, no entanto, atrela as duas instituições a

um mosaico de histórias macabras, envolvendo violência, maus tratos e mortes.

Consequentemente, a amplitude do trabalho foi além do aspecto educacional formal, de

modo a abrir espaço para descrever e entender a memória maldita estabelecida sobre a ilha de

Cotijuba, memória essa não estranha às gerações que puderam viver ao tempo das instituições

ou que estiveram expostas às histórias da ilha do diabo.

Ao longo do tortuoso caminho do pesquisar, a face ilha da redenção foi vislumbrada

inicialmente a partir de um curiosíssimo depoimento colhido junto à comunidade da ilha de

Cotijuba. A política que induzia ex-internos e ex-detentos de ambas instituições a

permanecerem na ilha como colonos, resultou na presença de muitos deles no lugar mesmo

após a fim do ciclo de vida das colônias. A maioria desses homens e mulheres, como ocorre de

modo geral, guardou na lembrança fatos e histórias relacionados à dimensão mais grave e

terrível dos empreendimentos públicos. No entanto, em meio à miríade de histórias macabras,

localizamos um sujeito para quem a ilha de Cotijuba e sobretudo o Educandário Nogueira de

Faria são dotados de um sentido profundamente positivo.

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Raimundo dos Santos, popularmente conhecido como seu Raimundo Oito, após uma

infância plena de sofrimentos e instabilidades, ingressou no Educandário Nogueira de Faria aos

14 anos, em 1943. Desde então, dedicou-se integralmente ao Educandário, à colônia penal e à

ilha de Cotijuba. A tenacidade com que procurou sempre afastar qualquer imagem negativa do

lugar e da instituição, de par com a defesa aberta que fazia de ambos, nos levaram inicialmente

a dedicar o trabalho à explicação de tão singular postura. Pois, a depender dos desígnios do

ilustre morador de Cotijuba, todas as histórias cujos sentidos repercutem os percalços da ínsula

maldita, deveriam soçobrar no esquecimento. A trajetória de Raimundo dos Santos como

interno, e mais tarde como funcionário, perfazendo mais de três décadas, parece induzir esse

sujeito peculiar a proteger o Educandário e a ilha de Cotijuba, tal como o faria com a própria

história pessoal.

Porém fomos além dos limites próprios do estudo de uma trajetória pessoal. Meses no labor

da pesquisa nos levaram a perceber os esquemas retóricos com os quais Raimundo Oito

constituía a defesa do lugar e da instituição, como correspondentes ao ideário redentor

propagado por Nogueira de Faria e Moura Carvalho nos jornais impressos da capital ou em

outros escritos.

É provável ser Raimundo dos Santos o único sujeito vivo a ainda endossar a mística

redentora criada para dourar os projetos das colônias insulares e, consequentemente, o único a

ainda se incomodar com a má fama que a ilha de Cotijuba foi cumulando, ao longo das décadas,

em meio à sociedade local. No entanto, encontramos evidências de que a aura maldita sobre

Cotijuba afetou a outros sentimentos.

A família de Nogueira de Faria lutou, durante anos, contra a vinculação do nome do

patriarca ao sistema em vigor na ilha de Cotijuba. Constituiu, por muito tempo, motivo de doído

constrangimento aos descendentes do magistrado espírita, sobretudo aos filhos, ver o nome do

patriarca associado a instituições tão repelentes. Não sendo possível, porém, efetivar o intento

de dissociar o nome e as instituições, a família optou pelo mesmo caminho que Raimundo dos

Santos sugeriu em caso semelhante: o esquecimento.

A trama sugere não apenas uma distinção, mas uma oposição, ou uma verdadeira disputa

entre a memória positiva e idealizada (a ilha da redenção) e a memória negativa (a ilha do

diabo).

Nessa batalha sobre o modo de olhar o passado de Cotijuba, não fosse a tenacidade de

Raimundo dos Santos, a memória da ilha da redenção teria se esmaecido sob a poeira das

décadas e não forneceria o recheio principal de nossa pesquisa. A imagem da ilha maldita, no

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entanto, ainda resiste na imaginação de algumas gerações de belenenses, o que dá medida de

qual das memórias triunfou em tão curiosa batalha.

No entanto, a transformação de Cotijuba em lócus de lazer e curtição, desde a desinstalação

das instituições em fins da década de 1970, tem feito a memória da ilha do diabo, outrora tão

consistente, vir paulatinamente perdendo o viço. Tal memória vai sobretudo esmaecendo

quando vão deixando de existir testemunhos ou histórias que a propaguem, o que parece ser

algo natural no fluxo das gerações. Hoje, Cotijuba figura na imaginação local sobretudo como

a ilha dos prazeres.

Entre as principais contribuições científicas da pesquisa a que nos propomos construir,

certamente está a caracterização pedagógica do Educandário Nogueira de Faria. Outra

contribuição, menos óbvia, é o memorial que fazemos de Cotijuba como ilha da redenção e ilha

do diabo. Aqui, nos dispomos senão a evitar o esquecimento, porém atenuar o efeito memorial

desarticulador da passagem das gerações. Criamos um ponto fixo, a partir do qual podem

decorrer desdobramentos que permitam a presença mais duradoura dos feitos e fatos relativos

ao passado da ilha de Cotijuba na memória coletiva dos belenenses.

Não é impossível havermos incorrido em erros e imprecisões. O assunto, por demais

rebelde, não poucas vezes se embaralhou e recusou-se a um ordenamento linear e bem

comportado. Rogamos, entretanto, à paciência e à delicadeza dos leitores, aos quais oferecemos

o contrapeso da sinceridade e da paciência com as quais nos submetemos a tão tormentosa

tarefa de pesquisar. Se acaso a tal exigente leitor imprimirmos uma nota de satisfação, seja

intelectual, seja emotiva, já nos daremos por satisfeitos.

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em sua Reunião Ordinária de 1955, pelo General do Exército Alexandre Zacarias de

Assunção, Governador do Estado. Belém: Imprensa Oficial, 1955.

- PARÁ. Assembleia Legislativa. Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa do Pará

em sua Reunião Ordinária de 1956, pelo Doutor Edward Cattete Pinheiro, Governador

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Entrevistas

COSTA, Eliete dos Santos Campos. 59 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma.

Ilha de Cotijuba, Belém, 17/07/2015.

COSTA, José. 75 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma, Belém, 22/06/2016.

PINTO, José Wilson. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma, Belém, 22/06/2016.

SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Ilha de

Cotijuba, Belém, 20/07/2015.

SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Ilha de

Cotijuba, Belém, 20/09/2015.

SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Distrito de

Icoaraci, Belém, 05/05/2016.

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140

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ANEXO I – Roteiros de Entrevista

Roteiro de Entrevista com Raimundo dos Santos

1. Lar e parentesco: informações elementares. Depoente: nome, endereço, nascimento,

estado civil, local de nascimento. Onde passou a infância? Até quando morou junto à

família? Quanto irmãos teve? Qual a fonte financeira da família? Seus pais contavam

com que idade em seu nascimento? Qual a ocupação principal de sua mãe? Havia outros

parentes próximos? Se lembra dos avós e/ou de tios?

2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam

nessa casa? Quem cuidava das tarefas domésticas? Como foi seu primeiro contato com

a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia? Onde fazia as

refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de animais ou

algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como era a relação

com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles?

3. Educandário e trabalho: Com que idade ingressou no Educandário? Como era a rotina

da internação? Onde dormia? Como eram as condições de higiene do ambiente? Como

funcionava o cotidiano dos estudos? O que pensa, sente ou se lembra dos professores

desse tempo? Que disciplina ou assunto mais gostava de estudar? Que tipo de formação

recebeu (pedagógica e técnica)? Houve oportunidade de frequentar o ensino superior?

Com que idade passou a trabalhar e em que função? Descreva suas atividades e seus

horários no primeiro emprego. Que tipo de vínculo possuía (informal, carteira assinada

ou outro)? Qual o salário recebido? Considerava bom o salário? Como usava esse

recurso? Nessa época como era o cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência

saía da ilha? Quando saía, onde se hospedava?

4. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a

pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa

pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu

casamento? Que idade tinha sua noiva quando se casaram? Como foi a relação com a

família da noiva? Ela trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?

Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como

se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?

5. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De

que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua

juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos

tempos no lugar em que mora?

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Roteiro de Entrevista com as senhoras Eliete Campos Santos e Edina Campos Santos, filhas de

Raimundo dos Santos

1. Lar e parentesco: informações elementares. Depoente: nome, endereço, nascimento,

estado civil, local de nascimento. Como foi sua infância? Até quando morou junto à

família? Quanto irmãos teve? Seus pais contavam com que idade em seu nascimento?

Qual a ocupação principal de sua mãe? Havia outros parentes próximos? Se lembra dos

avós e/ou de tios?

2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam

nessa casa? Como estavam divididas as tarefas domésticas? Como foi seu primeiro

contato com a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia?

Onde fazia as refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de

animais ou algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como

era a relação com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles? Como era a relação

de Raimundo dos Santos com os filhos?

3. Educação e trabalho: Com que idade começou a estudar? Como era a rotina da escola?

O que pensa, sente ou se lembra dos professores desse tempo? Que disciplina ou assunto

mais gostava de estudar? Que tipo de formação recebeu (pedagógica e técnica)? Houve

oportunidade de frequentar o ensino superior? Com que idade passou a trabalhar e em

que função? Descreva suas atividades e seus horários no primeiro emprego. Que tipo de

vínculo possuía (informal, carteira assinada ou outro)? Qual o salário recebido?

Considerava bom o salário? Como usava esse recurso? Nessa época como era o

cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência saía da ilha? Quando saía, onde se

hospedava?

4. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a

pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa

pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu

casamento? Que idade tinha seu noivo quando se casaram? Como foi a relação com a

família da noiva? Ele trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?

Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como

se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?

5. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De

que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua

juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos

tempos no lugar em que mora?

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Roteiro de Entrevista com moradores da ilha de Cotijuba

1. Lar e parentesco: informações elementares. Depoente: nome, endereço, nascimento,

estado civil, local de nascimento. Onde passou a infância? Até quando morou junto à

família? Quanto irmãos teve? Qual a fonte financeira da família? Seus pais contavam

com que idade em seu nascimento? Qual a ocupação principal de sua mãe? Havia outros

parentes próximos? Se lembra dos avós e/ou de tios?

2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam

nessa casa? Quem cuidava das tarefas domésticas? Como foi seu primeiro contato com

a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia? Onde fazia as

refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de animais ou

algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como era a relação

com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles?

6. Educação e trabalho: Estudou? Com que idade começou a estudar? Como era a rotina

da escola? O que pensa, sente ou se lembra dos professores desse tempo? Que disciplina

ou assunto mais gostava de estudar? Que tipo de formação recebeu (pedagógica e

técnica)? Houve oportunidade de frequentar o ensino superior? Com que idade passou

a trabalhar e em que função? Descreva suas atividades e seus horários no primeiro

emprego. Que tipo de vínculo possuía (informal, carteira assinada ou outro)? Qual o

salário recebido? Considerava bom o salário? Como usava esse recurso? Nessa época

como era o cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência saía da ilha? Quando

saía, onde se hospedava? A existência do educandário na ilha interferia na rotina dos

moradores? Que tipo de relação o senhor manteve com o educandário ou presídio?

Presenciou o modo como eram tratados internos ou presos?

3. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a

pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa

pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu

casamento? Que idade tinha sua noiva quando se casaram? Como foi a relação com a

família da noiva? Ela trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?

Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como

se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?

4. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De

que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua

juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos

tempos no lugar em que mora?

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Anexo II: Termos de Cessão Gratuita de Direitos Sobre Depoimento Oral

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2

Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação Travessa Djalma Dutra, s/n – Telégrafo

66113-200 Belém-PA www.uepa.br/mestradoeducaca