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Universidade do Estado do Amazonas Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Amazônia (PPGDA-UEA) HILÉIA Revista de Direito Ambiental da Amazônia ANO 9 - N. 16 JANEIRO - JUNHO 2011 Manaus - 2012

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Universidade do Estado do AmazonasPrograma de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Amazônia (PPGDA-UEA)

HILÉIARevista de Direito Ambiental da Amazônia

ANO 9 - N. 16JANEIRO - JUNHO 2011

Manaus - 2012

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Governo do estado do amazonas

Omar José Abdel AzizGovernador

José Melo de OliveiraVice-governador

Universidade do estado do amazonas

José Aldemir de OliveiraReitor

Marly Guimarães Fernandes CostaVice-Reitora

Maria das Graças Vale BarbosaPró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação

Danielle Maia QueirozPró-Reitora de Administração

Rosineide de Melo RoldãoPró-Reitora de Planejamento

Elisabete Brocki

Pró-Reitora de Ensino de Graduação

José Antonio Nunes de MelloPró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários

editora Universitária da Universidade do estado do amazonas

Otávio Rios Portela | DiretorJuliana Sá | Editora Assistente

Lorena Nobre Tomás | Chefe do Núcleo de RevisãoAna Luiza Matos | Designer

Conselho editorialAdemir Castro e SilvaCristiane da Silveira

Maria da Graças Vale BarbosaOtávio Rios Portela (Presidente)Patrícia Melchionna Albuquerque

Sergio Duvoisin JuniorSilvana Andrade MartinsSimone Cardoso SoaresValmir César Pozzetti

— UEA EDIÇÕES —Reitoria da Universidade do Estado do AmazonasAv. Djalma Batista, 3578 - Flores - Manaus – Amazonas

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Edições

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Hiléia: revista de direito ambiental da amazônia Manaus, janeiro-junho de 2011, Ano 9, Nº 16

Comissão editorialSerguei Aily Franco de CamargoWalmir de Albuquerque BarbosaOzório José de Menezes Fonseca

Comitê Científico e ConsultivoCarlos Alberto Marinho Cirino (UFRR)

Cesar Oliveira de Barros Leal (UNIFOR)Cristiane Derani (UFSC)

David Sánchez Rubio (Universidad de Sevilha – ES)Fernando Antônio de Carvalho Dantas (PUC-PR)

José Heder Benatti (UFPA)Marcelo Dias Varella (UNICEUB)Maria Gercília Mota Soares (INPA)

Paulo Affonso Leme Machado (Université de Limoges – FR)Solange Teles da Silva (UPM)

Patryck de Araujo Ayala (UFMT)Therezinha de Jesus Pinto Fraxe (UFAM)

editorWalmir de Albuquerque Barbosa

Editor AdjuntoDenison Melo de Aguiar

Revisão TécnicaDenison Melo de AguiarFabrício Soares de Melo

Joelson Rodrigues Cavalcante

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UEA Edições Copyright © 2012

Endereço para correspondênciaPrograma de Pós-Graduação em Direito AmbientalRua Leonardo Malcher, 1728, 5.º andar, CentroCEP 69010-170Manaus – Amazonas – BrasilTel./Fax. 55 92 3627-2725E-mail: [email protected]: www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/

Permitida a reprodução parcial desde que citada a fonte.O conteúdo e as ideias deste volume não expressam, necessariamente, a opinião

do conselho editorial desta Editora Universitária.

Esta edição foi revisada conforme as regras doNovo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Solicita-se permuta |Solicitase canjeExchange desired |On demande l’échange

Vogliamo cambio | Wir bitten um Austausch

Ficha catalográficaLúcia Helena Santana Ferreira – CRB 2/1243

Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. - ano 9, n. 16 (2012). – Manaus: Universidade do Estado do Amazonas, 2012. p. 172

SemestralTítulo da CapaPublicado pelo selo UEA Edições da Editora Universitária da Universidade do Estado do Amazonas.

ISSN: 1679-9321

1. Direito Ambiental – Amazônia I.CDD: 344.046811

CDU 344 (811)

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sUmÁrio| Table of contents

Apresentação | Introduction ..................................................................................................07

Interpretações constitucionalistas e internacionalistas para a proteção do trabalho em face das dispensas coletivas em épocas de crise econômica global/ Constitutional interpretations and internationalist for the protection of labor in face of collective dispensations in times of global economic crisisAlexandre Coutinho paGliarini/ Cláudia Coutinho stepHan .........................09

Descarbonização: relevância ambiental e aspectos tributários/ Dcarbonisation: environmental relevance and tax aspectsAna Paula Duarte Ferreira MAIDANA/ Cassandra Libel Esteves Barbosa BOGGI ........17

Comunidades tradicionais e povos indígenas: distintos olhares sobre a apropriação do meio ambiente/ Traditional communities and indigenous people: different outlooks on the appropriation of the environment

Caroline Barbosa Contente noGUeira/ Danielle de Ouro mamed ...............................33

O conceito de causalidade para a reparação do dano no Direito Ambiental/ The concept of causation to repair the damage in environmental lawDjane Oliveira MARINHO/ Andréa Mazzaro de Souza FIÚZA E SILVA /Marcondes Gil NOGUEIRA/ Priscila Silva de SOUZA / Raimundo Paulino CAVALCANTE FILHO ................................................................................................................47

As alterações sofridas pelo meio ambiente face à evolução da economia e da sociedade: seus reflexos no plano internacional/ The changes undergone by the environment given the changing economy and society: its impact on the internationalDaniela Braga PAIANO/ Maurem ROCHA/ Maria de Fátima RIBEIRO ............................59

As terras tradicionalmente ocupadas: o caso dos faxinais de terra/ The lands traditionally occupied: the case of land faxinaisFabiana Carolina GALEAZZI .....................................................................................................69

Política pública de (in) acessibilidade em Manaus/ Public policy (in) accessibility ManausHevelane da Costa ALBUQUERQUE ......................................................................................79

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Os instrumentos de proteção das águas destinadas ao consumo humano no Direito francês/ The tools of protection of water intended for human consumption in french lawibrahim Camilo ede Campos/ valmir César pozzetti ...................................................91

Democracia, direitos humanos e ambientalismo/ Democracy, human rights and environmentalismLeandro Ferreira BERNARDO ...............................................................................................105

Papel do Estado na proteção do patrimônio histórico-cultural / The role of the state in the historical – cultural heritageMarialice Antão de Oliveira DIAS ............................................................................................117

O aquecimento global no contexto da cultura/ The global warming in the cultural contextMiguel Petrere JUNIOR .............................................................................................................133

Desenvolvimento econômico versus meio ambiente: um conflito insustentável/ Economic development versus environment: one conflict unbearableMárcia Santos da SILVA ............................................................................................................143

Povos indígenas e refugiados ambientais perante o sistema interamericano de direitos humanos: memorial de alegações, argumentos e provas da população indígena Aricapu e dos imigrantes da República de Mirokai – parte I de III/ Indigenouspeoples and environmental refugees before the inter-american human rights system: memorial of claims, arguments and evidence of indigenous peoples Aricapu and the immigrant of Republic of Mirokai - part I of IIIJuliana Correa TUJI / Liana Amin Lima da SILVA / Patrícia Précoma PELLANDA / edson damas da silveira ...................................................................................................159

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apresentaÇÃo | INTRODUCTION

A Hiléia – Revista de Direito Ambiental da Amazônia tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científico que corresponda às realidades sociais estudadas por pesquisadores no campo do Direito Ambien-tal e áreas afins, possuindo, neste sentido, uma variedade de temas relacionados à complexidade das questões amazônicas e do meio ambiente global.

A presente edição corresponde ao primeiro semestre do ano 9 da revista, ou seja, janeiro a junho de 2011. Os artigos deste volume buscam caracterizar uma nova fase de exogenia da revista, dando-lhe nova roupagem, com contribui-ções de autores do sul, sudeste e norte do país e, ainda, do exterior, apresentan-do temáticas atuais sobre Direito e Meio Ambiente, conectando-as com outros ramos do Direito, uma vez que o direito Ambiental é um campo difuso. Neste sentido, temos temas relacionados a Direito Tributário, Direito Econômico, Éti-ca Ambiental, Aquecimento Global, Créditos de Carbono, Povos e Comunidades Tradicionais, Direito Ambiental Penal, Direito das Águas, Direito Ambiental do Trabalho, Políticas Públicas Ambientais, Direitos Humanos e Meio Ambiente, Proteção do Patrimônio Histórico, Aquecimento Global e questões que se entre-laçam com as realidades da Amazônia Brasileira e Sul-americana.

Nesta 16a. edição da Revista, temos a colaboração de autores da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e de São Paulo (PUCSP), da Faculda-de Metropolitana de Curitiba, da Universidade de Marília, da Unisinos (RS), da Universidade Estadual de Londrina (PR), da Unibrasil (PR), da Université de Li-moges (França), da Uni Nilton Lins (AM) e da Faculdade de Rondônia (FARO). Esta diversificada rede de colaboradores demonstra a aproximação institucional do PPGDA/UEA com outras Instituições de Pesquisa, consolidando a missão deste periódico de sociabilizar conhecimentos no campo do Direito Ambiental, não só conhecimentos da região amazônica, mas de outros espaços globais onde há juristas atentos às transformações ambientais do planeta.

Importante também agradecermos aos nossos (as) colaboradores (as): Prof. Dr. José Aldemir de Oliveira, Magnífico Reitor da UEA, e a Profa. Dra. Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação, os quais garantiram os recursos necessários à atualização da periodização da revista; e ao Prof. Dr. Ozorio José de Menezes Fonseca, Prof. Dr. Walmir de Albuquer-que Barbosa e Prof. Ms C. Denison Melo de Aguiar, os quais desempenharam com sucesso a organização editorial deste número da Hiléia, agora entregue aos

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leitores; agradecemos ainda aos autores que contribuíram com seus estudos nesta revista, professores e colaboradores externos e, finalmente, aos mestrandos e seus orientadores.

Agradecemos, em especial, à Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico – CNPQ pelo apoio financeiro ao Programa de Pós-graduação em Direito Am-biental da Universidade do Estado do Amazonas.

prof. dr. valmir César pozzettiPrograma de Pós-Graduação em Direito Ambiental –

Universidade do estado do amazonas

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interpretaÇÕes ConstitUCionalistas e internaCionalistas PARA A PROTEÇÃO DO TRABALHO EM FACE DAS DISPENSAS COLETI-VAS EM ÉPOCAS DE CRISE ECONÔMICA GLOBAL/ CONSTITUTIONAL INTERPRETATIONS AND INTERNATIONALIST FOR THE PROTECTION OF LABOR IN FACE OF COLLECTIVE DISPENSATIONS IN TIMES OF GLOBAL ECONOMIC CRISIS

Alexandre Coutinho Pagliarini1

Cláudia Coutinho Stephan2

Sumário: Introdução; Interpretações e dispensas coletivas; Considerações Finais; Referências.

Resumo: O ordenamento jurídico brasileiro regula expressamente apenas a dispensa individual, não havendo diferença legal entre despedida por motivos econômicos e dispensa sem justa causa, em similares condições, ocorre nas dispensas coletivas. Neste sentido, entende-se que o sistema jurídico trabalhista brasileiro não está preparado para o enfrentamento de crises econômicas.

Palavras-chave: dispensas coletivas; dispensa individual; crises econômicas.

Abstract: The Brazilian law expressly regulates only individual exemption, there is no legal diffe-rence between dismissal for economic reasons and dismissal without cause, in similar conditions occur in collective layoffs. In this sense, it is understood that the Brazilian labor legal system is not prepared to cope with economic crises.

Key-words: collective layoffs; individual exemption; economic crises.

IntroduçãoA dispensa individual envolve um único trabalhador, ou, mesmo que atingindo emprega-

dos diferentes, não configura ato demissional grupal ou maciço. Sua origem é centrada num fato pertinente ao contrato individual de trabalho.

A despedida coletiva, por sua vez, denominada como lay-off, abrange um número signi-ficativo de trabalhadores vinculados ao mesmo empregador. Segundo Álvares (2009, p. 657), “a

1 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutor e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

2 Doutora e Mestra em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora de Direito do Trabalho da PUC/MG, Campus Poços de Caldas.

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dispensa coletiva importa o desligamento de um número significante de empregados por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos”.

Interpretações e dispensas coletivasNo Direito da Holanda, a dispensa coletiva somente pode ocorrer com a permissão do

órgão administrativo. Já na Alemanha, o empregador fica obrigado a participar a agência (autorida-de administrativa) sobre a dispensa, exigindo-lhe também tal informação ao conselho de empresa, esclarecendo o empregador sobre os motivos da dispensa, o número e as categorias de trabalha-dores a serem despedidos, os prazos da dispensa, bem como os critérios de escolha dos que serão dispensados (cf. ÁLVARES, 2009, p. 657).

O Código do Trabalho Português regulou a matéria nos seus artigos 419 e 420, e aprovou a Diretiva número 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, que esta-belece um quadro geral sobre informação e consulta dos trabalhadores (cf. ALMEIDA, 2009, p. 393).

O ordenamento jurídico brasileiro regula expressamente apenas a dispensa individual, não havendo diferença legal entre despedida por motivos econômicos e dispensa sem justa causa. En-tretanto, o Ministério do Trabalho, através das Portarias N. 3.218/87 e N. 01/92, faz referência à dispensa coletiva, sendo que a primeira portaria regula o acompanhamento das demissões coletivas, apontando soluções alternativas, como a redução da jornada nos termos da Lei N. 4.923/65 e a previsão de férias coletivas. A última portaria citada determina a fiscalização nas empresas em caso de dispensa em massa.

A Portaria N. 3.218/87 é considerada como ineficaz, já que prevê apenas recomenda-ções, inexistindo determinação penalizadora. Sendo assim ausentes os mecanismos de coerção, tal norma tornou-se letra morta. Quanto à Portaria N. 1/92, do MTPS, os motivos de sua reduzida efetividade se justificam no argumento de que um simples ato ministerial não poderia disciplinar matéria reservada à lei complementar.

Esclarece Mannrich (2000, p. 471) que a Lei N. 62, de 5 de junho de 1935, já excluía a res-ponsabilidade do empregador nos casos de força maior, quando fatos superiores à sua vontade afe-tassem sua segurança econômica, determinando a ruptura dos contrato de trabalho, por justa causa.

Vale ressaltar que o artigo 18 § 2º e o artigo 20, II, ambos da Lei N. 8.036/90, não ex-cluem a responsabilidade do empregador quando rescinde o contrato de trabalho por extinção de estabelecimento na ocorrência de força maior, devendo depositar 20% (vinte por cento) da multa fundiária, atentando-se, para tal, ao artigo 501 da CLT.

A Lei N. 4.923, de 23 de dezembro de 1965, embora não tenha conceituado a dispensa coletiva, previu, no artigo 2º, soluções alternativas à dispensa motivada por crise, a exemplo da redução da jornada ou do número de dias de trabalho durante três meses, possibilitando a prorro-gação mediante redução salarial não superior a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitando-se o salário mínimo. Ela ainda proibiu a contratação de novos empregados por seis meses; priorizou a readmissão dos empregados despedidos em razão da crise econômica, bem como vedou o trabalho extraordinário, salvo nos caso de necessidade imperiosa, força maior, ser-viços inadiáveis ou inexecução geradora de prejuízo manifesto.

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Quanto à redução da jornada e consequente redução salarial, a doutrina não é unânime quanto à recepção da Lei N. 4.923/65 pela Constituição da República, nos termos do artigo 7º, inciso VI (cf. MANNRICH, 2000, p. 470). Parece-nos mais acertado, contudo, reconhecer que a mencionada lei foi recepcionada pela Carta Política de 1988, sendo válida, tendo em vista a com-patibilidade formal e material com a norma constitucional, quando elenca medidas alternativas que pugnam pela manutenção dos postos de trabalho. Tem-se que a Lei N. 4.923/65, de fato, retrata a atual conjuntura econômica, propondo, inclusive, soluções jurídicas para evitar o desemprego em massa.

No tocante à Constituição vigente, o artigo 7º incisos I e III e artigo 10, I do ADCT, ex-cluíram definitivamente o regime da estabilidade decenal, ressalvando o direito adquirido, e sendo assim, o empregador possui amplos poderes para dispensar o empregado, com ou sem justa causa, limitando-se a pagar a multa fundiária, conforme o caso, além de outros direitos a serem determi-nados por lei complementar até hoje não editada.

Não há distinção legal entre despedida arbitrária ou sem justa causa, nem entre dispensa individual ou coletiva, podendo, então, o empregador dispensar o empregado sem qualquer motivo, inexistindo a garantia dos empregos. No que tange às dispensas coletivas, os Estados que integram a Comunidade Europeia seguem as Diretivas 75/129/CEE, de 17 de fevereiro de 1975 e 92/56/CEE9, de 24 de junho de 1992 (cf. NASCIMENTO, 2009, p. 9).

É importante destacar que em 23 de novembro de 1985, a 68ª reunião da Conferência In-ternacional do Trabalho da OIT aprovou a Convenção número 158, que trata do término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, protegendo os trabalhadores contra a despedida arbitrária.

Em 17 de novembro de 1992, tal convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional, sendo ratificada pelo governo brasileiro em quatro de janeiro de 1995, para vigorar doze meses depois. Entretanto, somente em 10 de abril de 1996, o Governo Federal publicou o texto oficial através do Decreto N. 1.855, promulgando sua ratificação.

Posteriormente, em 20 de dezembro de 1996, através do Decreto N. 2.100, o Presidente da República promulgou a denúncia da tratativa internacional, anunciando que a mencionada conven-ção deixaria de vigorar no Brasil a partir de 20 de dezembro de 1997. Ressalte-se, aqui, que segundo as regras e princípios básicos de Direito Internacional Público, mais especificamente da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a atitude do governo brasileiro em denunciar não foi bem acolhida, podendo-se considerar na contramão da normativa internacional pelas seguintes razões: (I) o Brasil é membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT); (II) o que um país se compromete internacionalmente a cumprir – pacta sunt servanda – deve ser levado a cabo; (III) o processo formal de aprovação da Convenção 158 (OIT) foi respeitado; (IV) em nada a Convenção em tela viola a Constituição brasileira de 1988.

Em fevereiro de 2008, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional mensagem para nova ratificação da Convenção. Tempos depois, na Comissão de Relações Exte-riores e de Defesa Nacional, os parlamentares aprovaram, por 20 votos a um, parecer do deputado Júlio Delgado (PSB/MG) contrário à ratificação, sendo encaminhado pedido de arquivamento da mensagem presidencial à mesa da Câmara dos Deputados.

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A discussão contemporânea já não é mais sobre a constitucionalidade ou não da vigência da Convenção número 158, nem sobre a (in)constitucionalidade da denúncia da mesma convenção – visto que tal ato foi praticado pelo Presidente da República, e não pelo Congresso Nacional.

Defende-se que tanto o Presidente da República quanto o Congresso Nacional têm auto-ridade para denunciar um tratado internacional sem que precise(m) um do outro. Efetivamente, esta autoridade pode ser exercida sem a participação do outro responsável pelo treaty making power, e isto ocorre pelo seguinte: se para fazer sustentar um tratado em seu berço de nascimento são necessárias duas vontades concordantes (a do Presidente e a do Congresso), então a falta de uma destas vontades sustentadores faz tombar o acordo internacional.

O Presidente e o Congresso são os dois pilares de sustentação do tratado; logo, na falta de um deles, o pacto cai. De qualquer modo, ressalte-se aqui que, em Direito Internacional Público, o condutor da política internacional de um Estado soberano é exclusivamente o Chefe do Executivo, o único com voz internacional de representatividade. (cf. PAGLIARINI, 2002, p. 97; REZEK, 2009, p. 111).

Discute-se, sim, a eficácia do inciso I, do artigo 7º da Constituição de 1988, que precisa ser regulamentado através da lei complementar nele prevista, para que a proteção contra a despedida arbitrária seja uma verdade jurídica e real. Sendo assim, até os dias atuais, não é raro ocorrer dispensas coletivas, envolvendo um grande número de trabalhadores, com a justificativa de fatores vinculados à situação econômica da empresa, do setor ou da atividade em geral, bem como em decorrência de causas disciplinares, tecnológicas ou financeiras, com respaldo analógico no artigo 165 da CLT.

Almeida (2009, p. 391) observa que a doutrina tradicional ainda identifica no ordenamento jurídico pátrio a natureza potestativa implícita no ato unilateral do empregador de extinguir o con-trato de trabalho, até mesmo nas despedidas coletivas, sem qualquer limite ou condição. Sob esse aspecto, a crise, na acepção econômica, é uma das justificativas pautadas pelos empregadores para a rescisão do pacto laboral. Constitui um fenômeno do modelo capitalista, ou seja:

grave desequilíbrio conjuntural entre a produção e o consumo, acarretando aviltamento dos preços e/ou moeda, onda de falên-cias e desemprego, desorganização dos compromissos comerciais; fase de transição entre um surto de prosperidade e outro de de-pressão, ou vice-versa (HOUAISS, 2009, p. 872).

Como possui várias dimensões que se correlacionam com as variações do sistema econômico nacional, empresarial e mundial, a crise econômica tem uma ligação direta com a questão dos empregos, sendo considerada, portanto, como companheira do Direito do Trabalho (cf. NASCIMENTO, 2009, p. 7).

No entanto, não é possível a aceitação da liberdade contratual de despedir em massa, desconsiderando o direito fundamental social, insculpido na Constituição vigente, da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, e também em face ao para-digma da ilicitude contratual por abuso de direito, nos moldes dos arts. 187 e 422 do Código Civil.

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Todavia, incontestavelmente, a crise financeira que assolou os Estados Unidos da América no segundo semestre de 2008 abalou profundamente a economia de produção e aumentou o índi-ce de desemprego, repercutindo seus graves efeitos em todo o mundo, voltando à baila a questão referente à despedida coletiva como medida estratégica para as empresas, sob a desculpa de evitar mal maior, quer seja, sua extinção. É certo, entretanto, que o referido mal – a crise impulsionada pelos Estados Unidos – não pode impulsionar uma injustiça que fira o direito constitucional ao trabalho digno e estável.

Observa-se que o artigo 482 da CLT não elenca a crise econômica como hipótese típica e taxativa de justa causa para rescisão do contrato de trabalho. De qualquer forma, não se pode permitir juridicamente que o empregador exerça o direito potestativo de resilição unilateral do con-trato de trabalho, dispensando coletivamente seus empregados, visto que o Texto Constitucional vigente, a partir dos pilares magnos da dignidade humana e da construção do Estado de Bem-Estar Social, autoriza a afirmação de que a dispensa coletiva deve ser evitada. Sendo assim, configura a dispensa coletiva uma agressão aos princípios constitucionais valorizadores do trabalho, da justiça social, do bem-estar e da segurança, entre outros.

Esta lição está evidente na doutrina moderna quando dispõe que uma norma constitu-cional positivadora de direito fundamental, seja ele individual ou social, só pode ser interpretada segundo o postulado da máxima efetividade da norma constitucional, mesmo pela ausência de regulamenta-ção. Isto significa que uma norma definidora de direito humano deve ser aplicada pelo magistrado e independentemente de norma infraconstitucional, devendo ele próprio – o magistrado – tratar de imprimir efetividade àquilo que foi determinado pelo constituinte originário. Ressalte-se que a falta de norma regulamentadora de direito humano, em casos particulares, pode ensejar o ajuiza-mento de Mandado de Injunção, bem como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (cf. BASTOS, 2010).

A ausência da regulamentação legal do artigo 7º, inciso I, da Constituição, a eficácia horizontal deste direito fundamental social deve ser garantida pela exigência do cumprimento pelo empregador, nas dispensas coletivas, dos valores da boa fé objetiva e dos seus deveres anexos (cf. ALMEIDA, 2009, p. 391). Sendo assim, tais valores impregnam o conteúdo do contrato de trabalho, como fonte subsidiária, por força do parágrafo único do art. 8º da CLT.

Além do exposto, é imperativo que em tempos de globalização e crise econômica, o princípio da pro-teção, edificador de todo o Direito do Trabalho, equalizador da assimetria de forças caracterizadoras das relações de emprego, seja preservado.

Igualmente, impõe-se a observância do princípio da continuidade da relação de emprego, que repudia a dispensa coletiva e o princípio do duplo controle social da dispensa operado pelos trabalhadores, através de entidades sindicais e pelo Estado, via intervenção administrativa. Nesse sentido, o Ministério Público do Trabalho tem instaurado inquéritos civis para investigar eventual abuso no poder de dispensar (cf. FABIANO et al, 2009).

A jurisprudência pátria tem inferido tratamento jurídico diferenciado entre dispensas indi-viduais e coletivas, sustentando a existência de abuso por parte da empresa que, sem prévia nego-ciação coletiva, dispensa coletivamente contingente de empregados (cf. TRT – 15º região). É bem

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verdade, igualmente, que existem decisões contrárias que reputam como lícita tal conduta patronal ante a ausência de norma jurídica expressa que obrigue o empregador a negociar antecipadamente com as entidades de classe e buscar outros métodos que precedam a dispensa coletiva.

Godinho Delgado (2009) elucida que, no ano de 2009, em julgamento de dissídio coletivo sobre despedida coletiva de empregados justificada por grave retração econômica, por maioria de votos, a Seção de Dissídios Coletivos do TST decidiu que “a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores.” Ressalvou o Relator Min. Maurício Godinho Delgado (2009) que “ad. maioria, contudo, decidiu apenas fixar a premissa, para casos futuros, de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, observados os fundamentos supra”.

Observa-se que a ordem constitucional prevê não apenas o princípio da dignidade da pes-soa humana, no artigo 1º, III; como também, o da valorização do trabalho, nos artigos 1.º, IV; 6.º e 170, VIII, e o princípio da intervenção sindical nas questões trabalhistas, no artigo 8.º, III e VI.

Desse modo, se do ponto de vista econômico, são inevitáveis as mudanças impostas pelas leis do mercado na seara das relações entre capital e trabalho, em prol da manutenção da empresa e do emprego, é preciso que seja preservada a pessoa humana, como tarefa inafastável do Estado Democrático de Direito. Justifica-se que de nada adiantaria a previsão normativa da valorização do trabalho, se nas relações jurídicas que o tem como conteúdo, ele for desprezado.

Argumenta-se, ainda, que, à medida que o Estado intervém para salvar as empresas, a sociedade deve exigir a intervenção estatal para resguardar o trabalho humano, posto ser ele, e não o capital, a razão de tudo.

O certo é que existem diplomas internacionais ratificados, a exemplo das Convenções números 11, 98, 135 e 141 da OIT, que não autorizam dispensas coletivas unilaterais e potestativas, por se tratarem de ato coletivo inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, exigindo, consequente-mente, a participação dos respectivos sindicatos das categorias profissionais. Além do exposto, a negociação é inerente ao Direito Coletivo, e no Brasil, a obrigação de negociar coletivamente está implícita nos §§ 1.º e 2.º do artigo 114 da Constituição de 1988.

É necessário, primeiramente, que se reconheça juridicamente a diferenciação entre despe-dida individual e coletiva, visto que os impactos familiares, sociais e econômicos são totalmente dis-tintos. Inegavelmente, a despedida em massa repercute de forma negativa não apenas no patrimô-nio moral e material de cada trabalhador, mas na sociedade como um todo, mediante o crescimento dos índices de pobreza, criminalidade, insegurança e revolta (FABIANO et al, 2009, p. 1503).

Por fim, o Direito do Trabalho precisa ser compreendido e aplicado à luz dos princípios constitu-cionais e internacionais valorizadores da dignidade humana, para que sejam reduzidas as injustiças sociais. Desse modo, é inaceitável, juridicamente, a dispensa coletiva imediata, sem prévia tentativa de negociação coletiva, e dessa assertiva advém a necessidade de se afirmar permanentemente a supremacia da Constitui-ção da República e do Direito Internacional em prol da concretização dos direitos fundamentais.

Entende-se que o moderno Direito do Trabalho não pode se distanciar dos instrumentos de con-trole de dispensa do trabalhador, haja vista existirem procedimentos que envolvem, desde simples consultas prévias às representações trabalhistas, até autorizações administrativas, e finalmente, a atuação jurisdicional.

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Como alternativa jurídica e social para o enfrentamento da crise econômica global, salien-ta-se a previsão constitucional da redutibilidade salarial via negociação coletiva em busca da manu-tenção dos postos de trabalho, como também, a alternativa da suspensão coletiva dos contratos de trabalho, também através da negociação coletiva.

Considerações finaisEntende-se que o sistema jurídico trabalhista brasileiro não está preparado para o enfrenta-

mento de crises econômicas, porque faltam mecanismos que prevejam as dispensas coletivas, e ine-gavelmente, a crise econômica convive com o Direito do Trabalho, sendo necessário e urgente seu aperfeiçoamento, posto que se o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o Direito.

A propósito, o agente do direito deve buscar a efetividade do direito fundamental social da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, inadmitindo, portanto, a liberdade contratual como direito potestativo de despedida coletiva.

Sendo assim, e em qualquer situação, inclusive em tempo de crise financeira, urge, pri-meiramente, valorizar e proteger o trabalho humano, pois como observou o Papa João Paulo II, trata-se de uma causa primária, enquanto o capital deve ser considerado como conjunto de meios de produção, permanecendo apenas como causa instrumental (cf. JOÃO PAULO II, 2003, p. 119).

Tem razão Antônio Álvares quando sustenta que “onde há trabalho, há dinamismo, cons-trutividade, progresso e bem-estar social. Onde não há trabalho há desemprego, miséria, estagna-ção social e desconstrutividade” (cf. ALVARES, 2009, p. 651).

Com efeito, o Estado-Nação deve intervir cada vez mais nas relações jurídicas, garantindo a realização dos direitos fundamentais dos cidadãos, essencialmente através do trabalho, enquanto meio preponderante para assegurar direito à vida com dignidade.

Referências ALMEIDA, Renato Rua de. Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas despedidas em massa? Revista LTR 73-04/391. São Paulo. LTr. Abril, 2009.

ALVARES, Antônio. Dispensa coletiva e o controle pelo judiciário. Revista LTr 73-6/650-670. São Paulo: Ltr, 2009.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. Atualizado por Samantha Meyer-Pflug. São Paulo: Malheiros, 2010.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2010.

FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Crise financeira mundial - tempo de socializar prejuízos e ganhos. Revista LTr. 73-12/1500-1509. São Paulo: Ltr, 2009.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.

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PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e direito internacional: cedências possíveis no Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009

TRT – 15º Região. Decisão de Mérito. Processo DC-00309-2009-000-15-00-4. Desembargador José Antônio Pancotti.

Artigo Recebido em: junho/2012Artigo aprovado para publicação em: julho/2012

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DESCARBONIZAÇÃO: RELEVÂNCIA AMBIENTAL E ASPECTOS TRIBU-tÁrios/ DECARBONISATION: ENVIRONMENTAL RELEVANCE AND TAX ASPECTS

Ana Paula Duarte Ferreira Maidana3

Cassandra Libel Esteves Barbosa Boggi4

Sumário: Introdução; Meio ambiente: bem da humanidade; Desenvolvimento econômico e impli-cações ambientais; Matrizes energéticas e desenvolvimento sustentável: a descarbonização; Gestão pública: um panorama geral; Políticas públicas ambientais no Brasil; A tributação como instrumen-to de atuação estatal na ordem econômico-ambiental; Normas tributárias indutoras e descarboni-zação; Considerações finais; Referências.

Resumo: A partir da premissa de que o meio ambiente saudável e equilibrado é tratado na Cons-tituição Federal de 1988 como direito humano fundamental e como princípio norteador da ordem econômica, o presente trabalho aborda a questão da utilização de matrizes energéticas associadas à emissão de gases causadores do efeito estufa e do seu efeito impactante no meio ambiente. A aná-lise do modelo energético carbonizado passa pela consideração do paradigma de desenvolvimento econômico constitucionalmente consagrado – o desenvolvimento sustentável – que compatibiliza as necessidades da racionalidade econômica com proteção ambiental. No campo da produção e utilização de energia, a ideia de desenvolvimento sustentável está atrelada à descarbonização da economia. Dada a relevância do bem jurídico ambiental, cumpre ao Estado intervir na ordem eco-nômica com o intuito de promover sua preservação, mediante a adoção de políticas públicas a ela orientadas. Dentre os diversos instrumentos jurídicos de que pode se valer o Estado para intervir na economia, destaca-se a utilização da tributação extrafiscal como meio legítimo de se induzir comportamentos. Será analisado, pois, como o instrumental tributário vem sendo empregado no Brasil em relação às diversas fontes energéticas disponíveis e a pertinência da adoção de uma polí-tica tributária voltada ao desenvolvimento de novas tecnologias que permitam a utilização em larga escala de matrizes energéticas descarbonizadas.

Palavras-chave: descarbonização; Meio ambiente; desenvolvimento sustentável.

Abstract: On the assumption that the healthy and balanced environment is regarded as a fun-damental human right by the Federal Constitution of 1988, as well as that it stands as a guiding principle of the economic order, this work deals with the use of energy matrix associated with

3 Mestranda do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília (UNIMAR). Professora do Curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).

4 Mestranda do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília (UNIMAR).

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the emission of gases causing the greenhouse effect and its impacts on the environment. The analysis of the carbonized energetic pattern concerns the paradigm of economic development that is constitutionally enshrined – sustainable development – which make environmental protection compatible with the needs of the economic rationality. In the field of energy generation and use the idea of sustainable development is associated with the decarbonisation of the economy. Given the relevance of the environmental juridical good, it is the State’s responsibility to intervene in the economy through the adoption of public policies directed at environmental preservation. Among the legal instruments that can be used to intervene in the economy stands extrafiscal taxation, as a legitimate means of inducing behavior. It will therefore be analyzed how the instruments related to taxation have been used in Brazil in relation to the different available energetic sources and the pertinence of adopting a taxation policy directed at the development of new technologies which allow the large scale use of decarbonised energetic matrix.

Key-words: decarbonised; environment; sustainable development.

IntroduçãoDiante da tomada de consciência da real ameaça à vida no planeta, resultado da exploração

predatória dos recursos naturais, a temática do meio ambiente vem ganhando novos contornos a cada dia e a preservação ambiental, antes tratada apenas por ecologistas e ambientalistas, é hoje o centro de discussões travadas por juristas, economistas, biólogos, políticos, empresários e representantes da socie-dade civil organizada de diversos países.

Tomado o direito ao meio ambiente saudável e equilibrado como um direito fundamental de terceira geração, entende-se que a todos – sociedade e Estado – incumbe a sua proteção. Na ordem constitucional brasileira, a preservação ambiental é posta também como princípio norteador da atividade econômica, ao lado da livre iniciativa, do direito ao trabalho digno e da função social da propriedade, o que revela a necessidade de compatibilização entre desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente.

Entre as inúmeras agressões ao meio ambiente causadas pela exploração econômica, talvez uma das mais graves seja a emissão de gases causadores do efeito estufa, em especial o dióxido de carbono (CO2). O problema, relacionado à utilização de matrizes energéticas dependentes da queima de combus-tíveis fósseis, vem provocando mudanças climáticas drásticas em todo o planeta.

Considerando que o modelo energético atual não é sustentável, não atendendo, portanto, à determinação constitucional de conciliação entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, este estudo busca analisar de que modo o Estado brasileiro se comporta frente à questão da descarboni-zação da economia, assim como a pertinência da adoção de uma política tributária capaz de alavancar o desenvolvimento tecnológico no campo da energia limpa, assim como sua ampla utilização.

Meio ambiente: bem da humanidadeOs direitos humanos de terceira geração abrangem os direitos de solidariedade e fraterni-

dade, que se constituem pelo meio ambiente equilibrado, pela vida saudável e pacífica, pelo pro-

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gresso e pelo avanço da tecnologia. Estes direitos são consolidados no ordenamento constitucional vigente, constituindo um mecanismo de proteção aos direitos humanos inerentes aos indivíduos.

A proteção aos direitos humanos ocorreu com o fim da Segunda Grande Guerra, em 1945, onde 50 países se reuniram na cidade de São Francisco nos Estados Unidos da América, se com-prometendo em manter como prioridade os interesses mundiais em razão da paz, da proteção dos direitos humanos, as liberdades fundamentais e o desenvolvimento dos Estados.

No mesmo ano surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU), com os mesmos fins, e por derradeiro, em 10 de dezembro de 1948, proclamou-se a tão discutida e comentada Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 3º assevera que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 2009a).

Assim, ao aludir “à vida” o texto se refere também ao meio ambiente, pois que se há de reconhecer que este bem está intrinsecamente ligado às condições essenciais para a existência da vida. Diante disso, o meio ambiente equilibrado e saudável é declarado como um dos direitos hu-manos fundamentais.

Neste contexto, não pode se deixar de referenciar a Conferência em Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, realizada pela ONU em 1972, que se atentou em uma esfera mundial à necessidade de se estabelecer critérios e princípios comuns para a preservação do meio ambiente humano (natureza/recursos naturais). Os princípios 1 e 22 da Declaração de Estocolmo determi-nam claramente a obrigação e a responsabilidade do homem e do Estado perante o meio ambiente:

Princípio 1. O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras [...]. Princípio 22. Os Estados devem cooperar para continuar desenvolvendo o direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização às vítimas da poluição e de outros danos ambientais que as atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob o controle de tais Estados causem a zonas fora de sua jurisdição. (ONU, 2009b, grifo nosso).

Diante da multiplicidade de interesses por parte dos povos e países do mundo, o meio ambiente se coloca como patrimônio comum a toda humanidade, ou seja, interesse global. Em contrapartida, acaba por ser também uma responsabilidade comum a todos, surgindo com isso preocupações em diversos países.

Há, por exemplo, países com baixo potencial de desenvolvimento, mas com alto grau de riqueza em recursos naturais; neste cenário, surgem diversos conflitos em relação às questões ambientais frente à soberania.

Para Soares (1995) as grandes questões ambientais da atualidade decorrem dos problemas surgidos com o crescimento das atividades industriais, do consumismo exacerbado, do desejo de crescer economicamente a qualquer preço, da inexistência de preocupação com o impacto da ati-vidade econômica no meio ambiente e da crença de que os recursos naturais seriam infinitos, ou recicláveis automaticamente pela natureza. Nesta ótica, os países desenvolvidos discursam que os países em desenvolvimento devam diminuir significativamente aquelas atividades consideradas degradantes ao meio ambiente (LENZA, 2008).

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Destaca-se o valor supremo que se reconhece ao meio ambiente na atualidade, que ul-trapassa as fronteiras dos Estados nacionais, por tratar-se de um patrimônio da humanidade, tor-nando-se, assim, um objeto de interesse internacional. Decorre daí um dos grandes desafios da humanidade, afinal as pretensões vão além da defesa dos recursos naturais, voltando-se à questão da proteção social e das gerações futuras, sob o enfoque dos direitos difusos e coletivos.

O embate traz inclusive uma resistência em face de uma política ambiental internacional. Enfrentar os problemas ambientais envolve ir além das fronteiras políticas: cumpre analisar as ações do indivíduo vs. natureza, fato este que ultrapassa o limite geopolítico de um território, haja vista que um desastre ambiental em um país pode vir a afetar outros países.

O processo ambiental que o planeta vem desenvolvendo no decorrer de sua existência im-plica problemas globais na atualidade, que necessitam ser enfrentados por políticas internacionais urgentes, para que as futuras gerações conheçam e possam usufruir dos bens ambientais, sob pena de se colocar em risco a vida futura.

O princípio da soberania deve ser reformulado, devendo moldar-se à ideia de responsabi-lidade ambiental dos Estados e de cooperação entre eles. Enquanto isso, cada Estado tem o dever de promover meios eficazes de proteção e preservação ambiental, levando em consideração que o regime fiscalizatório do bem da humanidade deve ser eficiente. Silva (2002, p. 24) esclarece sobre a qualidade do meio ambiente defendendo que:

a qualidade do meio ambiente transforma-se, assim, num bem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tor-naram um imperativo do Poder Público, para assegurar uma boa qualidade de vida, que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, saúde, segurança – enfim, boas condições de bem-estar do Homem e de seu desenvolvimento.

Para o cumprimento de tal mister, a Constituição Federal de 1988 traça um novo panorama da política do meio ambiente, tendo em vista que dispõe, em seu texto, sobre a maneira de discipliná-lo, afirmando ser um direito fundamental da pessoa humana e impondo tanto ao Estado quanto aos indiví-duos a obrigação de preservá-lo, estabelecendo ainda uma série de princípios que devem ser respeitados.

O artigo 225 da Constituição Federal de 1988, em seu caput, estabelece que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem este de uso comum do povo e de fun-damental importância à qualidade de vida. Em razão disso, incumbe tanto ao povo quanto ao Poder Público a sua defesa e a sua preservação, atendendo as necessidades das presentes e de futuras gerações, consagrando inclusive o princípio do desenvolvimento sustentável.

Com efeito, a Lei Federal n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que celebrou a Política Na-cional do Meio Ambiente, já estabelecia ser o meio ambiente um patrimônio público, em razão de se tratar de um bem de uso coletivo. Portanto, não há como dispor deste bem livremente, caso contrário poder-se-á estar colocando esta fonte de recursos e, consequentemente, o próprio desen-volvimento da humanidade, em risco.

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Desenvolvimento econômico e implicações ambientais

O grande crescimento da economia mundial ocorrido a partir da revolução industrial foi acompanhado de agressões ao meio ambiente na forma de devastação de florestas, extinção de milhares de espécies animais e vegetais, comprometimento da qualidade do ar e da água e alterações climáticas significativas, que hoje representam uma ameaça real à vida no planeta, não só para as futuras gerações, mas também para as presentes.

As ações do homem na natureza resultaram de um crescimento econômico predatório, sem consideração ao fato de que os recursos naturais utilizados como matéria-prima ou fonte energética eram finitos e sem a preocupação com os resíduos gerados pelas indústrias ou pelos pro-dutos por elas fabricados, que em poucos anos poluíram o ar das regiões mais povoadas e tornaram imprópria para o consumo grande parte da água potável do planeta.

A constatação dos impactos causados ao meio ambiente pelos agentes econômicos faz sur-gir, então, uma aparente dicotomia entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, na qual a atividade produtiva tende a ser vista como nociva ao meio ambiente e a proteção a este como óbice ao crescimento da economia. Como se disse, no entanto, a dicotomia é apenas aparente, pois ambos os fatores desta equação são imprescindíveis à vida digna, o que torna clara a necessidade de se compatibilizar desenvolvimento econômico e preservação ambiental.

Evidencia-se, assim, o desenvolvimento econômico sustentável, como a única maneira de garantir o direito à vida, com toda a amplitude de direitos a esta relacionados: o direito à liberdade, ao trabalho, ao exercício de uma atividade econômica que possibilite o sustento do indivíduo e de sua família, à saúde e ao meio ambiente saudável, que consubstanciam a dignidade da pessoa humana.

Todos estes valores foram consagrados pela Constituição Federal de 1988, razão pela qual o texto Magno, além de tratar do meio ambiente em capítulo próprio, coloca também a proteção ambiental, ao lado da livre iniciativa e da função social da propriedade, como princípio norteador da atividade econômica, ex vi do disposto no artigo 170 da carta maior.

O desenvolvimento sustentável passa então a ser uma determinação constitucional, o que revoluciona a maneira como vinham sendo tratados o meio ambiente e o desenvolvimento econô-mico. Segundo Souza (2007, p. 252):

Sai de cena a idéia de desenvolvimento a qualquer preço e assume destaque a idéia do desenvolvimento sustentável. O novo modelo une profissionais de diversas áreas na formação da nova realidade econômica e a conscientização ambiental exige uma nova postura da sociedade.

Neste contexto, é papel de todos, Estado e sociedade, agentes econômicos e cientistas dos mais diversos ramos do conhecimento, buscar alternativas aos modelos de exploração da atividade econômica até então empregados, de modo a conciliar preservação ambiental e desenvolvimento.

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Matrizes energéticas e desenvolvimento sustentável: a descarbonização

Não é demais afirmar que qualquer atividade econômica tem sempre um impacto am-biental, que pode ser provocado durante o processo produtivo, durante a utilização dos bens ou serviços disponibilizados ou, ainda, após o descarte do produto inutilizável.

Dentre estes impactos, interessa a este estudo destacar aqueles relacionados aos efeitos, na atmosfera, da emissão de gases causadores do efeito estufa, em especial o dióxido de carbono (CO2), que é associado à queima de combustíveis fósseis para a geração de energia. Segundo Frate (2009), as altas concentrações de CO2 na atmosfera são hoje responsáveis por oitenta por cento do potencial de aquecimento constatado no planeta. Preocupa, então, o fato de que o modelo energéti-co atual estrutura-se fortemente na utilização de combustíveis fósseis, principalmente o petróleo, o carvão e o gás. Consideradas as expectativas de aumento da população e de crescimento econômi-co, que demandarão uma quantidade de energia cada vez maior, conclui-se que a descarbonização da economia, mediante a utilização das chamadas fontes energéticas limpas, não representa apenas o anseio de integrantes dos movimentos ambientalistas de há duas ou três décadas, mas o único caminho viável para o desenvolvimento sustentável.

Razoavelmente conscientes da necessidade de se adotar posturas afirmativas de combate ao aquecimento global e de criar um modelo de desenvolvimento econômico mais compatível com a pre-servação do meio ambiente, representantes de oitenta e quatro países do mundo firmaram, em 1997, o acordo internacional que ficou conhecido como Protocolo de Kyoto (ONU, 2009). Neste pacto foram estabelecidas metas de redução da emissão de dióxido de carbono e outros gases causadores do efeito estufa pelos países considerados os principais responsáveis pela poluição atmosférica mundial.

O referido Protocolo, reverenciado por representar um marco na interação entre diversos países do mundo rumo ao reconhecimento de que o meio ambiente é um bem universal, pode ser considerado, no entanto, bastante tímido tanto no que se refere às metas estabelecidas quanto aos resultados até agora alcançados.

A utilização de fontes energéticas não carbonizadas esbarra em fatores econômicos pois, em âmbito mundial, não há ainda tecnologias que garantam a disponibilização de energia limpa su-ficiente a preços convidativos. Embora a cada dia surjam novas pesquisas relacionadas à produção de energia solar, eólica, a partir de biocombustíveis, hidrólise da celulose, células de combustível, entre outras, sua aplicação em larga escala ainda está por vir.

Com a forte crise econômica mundial deflagrada em 2007, alguns países tendem a se afastar do cerne da questão que envolve a descarbonização das matrizes energéticas. Preocupados em escapar dos efeitos ainda não conhecidos, mas certamente devastadores da crise, recorrem às velhas práticas produtivas para tentar, ao menor custo possível, estimular o consumo e aquecer suas economias.

Em movimento oposto, no entanto, outros países acenam com o investimento em energia sustentável como alternativa de enfrentamento da crise. Nos Estados Unidos, país não signatário do Protocolo de Kyoto, o pacote de estímulo à economia aprovado no Congresso americano no início de 2009 prevê gastos maiores em pesquisa, desenvolvimento e inovação em energia alterna-tiva e renovável (SIMÕES, 2009).

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No Brasil, o uso de fontes energéticas menos poluentes há muito é realidade: o país foi pio-neiro na utilização do etanol como combustível; investimentos no uso do biodiesel crescem rapida-mente; e a geração de eletricidade se faz, principalmente, por meio de usinas hidrelétricas que, embora também passíveis de provocar danos ao meio ambiente, não recorrem à queima de combustíveis fósseis para a geração de energia.

Paradoxalmente, o último Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica (2008-2017) prevê grande investimento em usinas termelétricas, o que pode elevar em cento e setenta e dois por cento o nível de emissão de gases que provocam o efeito estufa (ABCE, 2009). Há, ainda, a previsão de cortes orçamentários no setor de Ciência e Tecnologia em função da crise econômica mundial.

A relevância das ações propostas e seus possíveis impactos ambientais são tão significativos que o Ministério Público Federal resolveu, diante da exigüidade do prazo determinado pelo Ministério de Minas e Energia para análise popular do plano proposto, recomendar a dilatação do referido prazo de consulta, a fim de possibilitar aos demais órgãos públicos e à sociedade civil organizada que ofer-tem comentários e sugestões à política energética do governo (BRASIL/MPF, 2009).

A pronta atuação do Ministério Público traz à baila a discussão sobre o papel do Estado Contemporâneo na persecução dos princípios da ordem econômica delineados no artigo 170 da Constituição Federal de 1988. No que se refere à questão ambiental e à ordem econômica, o comando constitucional contido no artigo 170 – em combinação com o que disciplina o artigo 225 – revela, no dizer de Petter (2005), a opção constitucional por um modelo de desenvolvimento sustentável. Urge investigar, portanto, de que modo o Estado deverá atuar para atingir o desiderato constitucional.

Gestão Pública: um panorama geralO texto constitucional brasileiro de 1988 permitiu que as políticas públicas fossem descentrali-

zadas, deixando que os Estados e Municípios participassem de forma ativa das questões ambientais nas esferas locais ou regionais, resultando em políticas voltadas à realidade daquele Estado, ou seja, concebeu concretamente formas de atuação direta aos problemas ambientais vivenciados pelo determinado ente.

Nessa ordem, os entes federados vêm adotando políticas públicas, assumindo compromis-sos para a resolução de medidas assecuratórias ao meio ambiente. Destaca-se, no mesmo sentido, iniciativas internacionais de organizações não-governamentais sem fins lucrativos, como a Interna-tional Council for Local Environment Initiatives (ICLEI). Atuando em parceria com os governos locais em prol da sustentabilidade, estes organismos influenciam positivamente na criação de polí-ticas e programas voltados a qualidade da vida humana (MOZONI, 2009).

O ICLEI está presente no Brasil por meio do projeto The Cities for Climate Protection (CCP) Campaign. Esta campanha ocorre em razão do efeito estufa, ou, melhor dizendo, de um desastre ambiental que vem crescendo assustadoramente. Em combate às mudanças climáticas, o projeto se dedica a estudar políticas públicas de combate ao efeito estufa.

A mudança climática consistiu em um dos temas principais do Fórum Econômico Mundial realizado em Davos na Suíça, que teve início em 28 de janeiro de 2009. Destacou-se, na ocasião, a necessidade de um investimento anual no mínimo de US$ 515 bilhões para a produção de energia limpa, caso contrário os níveis de emissões de dióxido de carbono serão insustentáveis, consubstan-

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ciando em um aumento de 2 ºC na temperatura global. Este investimento, conforme os analistas, deve ser imediato e prolongado até o ano 2030 (cf. FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL, 2009).

Como bem pondera Milaré (2004), o Princípio XX da Política Nacional da Biodiversidade tem caráter integrado, descentralizado e participativo, uma vez que todos terão acesso aos benefícios gerados por estas ações de gestão da biodiversidade. Continuando, o autor ainda contorna o assunto dizendo que a biodiversidade é tida como um dos pontos nevrálgicos da questão ambiental, constituindo-se em um risco global, em razão das condições climáticas que o globo terrestre vem apresentando.

Em âmbito nacional, não se pode esquecer que, no Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981) foi um marco que acabou norteando e ba-lizando as intervenções do governo e da iniciativa privada sobre o meio ambiente, porém deve-se reconhecer que a mesma possui lacunas conceituais.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no entanto, houve a constitucionali-zação da matéria ambiental, deixando claro que a ação governamental tem o dever de implementar planos, programas e projetos que tragam benefícios e a participação de toda a coletividade.

Mesmo assim, vê-se que o mundo, e em destaque a sociedade brasileira, ainda estão alheios a sua vulnerabilidade quanto às mudanças climáticas futuras. Sendo assim, a gestão pública deve contemplar o conhecimento, informando a toda coletividade sobre os riscos inerentes, conquanto é necessário um grande investimento in loco baseado em estudos concretos e ainda avaliando estas questões na ordem da justiça social.

Políticas públicas ambientais no BrasilAs políticas públicas são na verdade ações desencadeadas pelo Estado, que podem se dar nas esfe-

ras federal, estadual e municipal, visando sempre o bem comum da coletividade. Na maioria das vezes, estas ações são desenvolvidas em parcerias com ações não governamentais e inclusive com a iniciativa privada.

No caso específico, é dever do Estado trazer a lume ações preventivas que indiquem alter-nativas que resultarão em benefícios para a população do país, atendendo principalmente a camada dos hipossuficientes, geralmente os mais afetados pelas questões ambientais, como observado nas questões das mudanças climáticas.

As políticas públicas têm como objetivo designar normas de relação social que envolvam situações emergenciais para uma coletividade, buscando instituir direitos e deveres tanto para o setor público quanto para o privado, balizando de forma clara o real papel da sociedade.

Estas políticas públicas, para Layrargues (2009), podem se apresentar de forma autoritária ou democrática, isto é, se autoritária podem ser derivadas de um poder burocrático vigente que tem como finalidade a criação de regras que mantenham determinadas alianças políticas, ou, se democráticas, podem provir de verdadeiras necessidades sociais da coletividade.

As políticas públicas devem ser investidas de força social sem privilegiar determinados se-tores, observando a diversidade natural, social, política e econômica da situação brasileira. O Brasil desenvolve políticas públicas relacionadas às mudanças climáticas desde 1980. Primeiramente, seu objetivo visava tão só as alternativas no campo do petróleo e da economia de energia, porém, com a presença marcante dos efeitos climáticos, as atenções se voltaram para o clima.

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Para alcançar os resultados necessários, há que se rever o modelo de geração de energia, mediante o estímulo à pesquisa no campo das fontes energéticas alternativas. Com a implementa-ção das políticas públicas voltadas à mitigação das mudanças climáticas, estará registrada a contri-buição da nação brasileira na redução das emissões de gases de efeito estufa.

De qualquer forma, a política pública ambiental pretendida seria aquela que coligasse as várias formas da vida na sociedade, dando relevância às questões sociais, políticas, econômicas e ambientais e valorando todas as questões equitativamente, afinal, de nada adiantaria todas as outras medidas sem o meio ambiente equilibrado.

Sem dúvida, o programa ambiental deve tangenciar o princípio da sustentabilidade, por preservar a qualidade de vida da espécie humana, considerando que as necessidades da presente geração não devem trazer prejuízo para as gerações futuras. Desta forma, os recursos naturais dis-poníveis em hipótese alguma devem ser consumidos de forma mais ágil que a reposição ofertada pela própria natureza.

É de se observar que a política ambiental brasileira ainda não está sendo abordada sob uma ótica integrada com as demais áreas, que por sua vez possuem políticas próprias que podem ser denominadas de setoriais, mas que visivelmente causam impactos ambientais. Cita-se, na área da saúde e de saneamento, a questão do esgoto descartado a céu aberto, problema comum enfrentado por uma grande parte dos brasileiros, que influi negativamente no meio ambiente e consequente-mente na saúde.

O Brasil possui uma larga dimensão de atributos na área ambiental, sendo reconhecido globalmente por se tratar de um país de grandes biodiversidades, com relevantes formações flo-restais, um expressivo sistema hídrico e um ecossistema que comporta Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e Pantanal.

Por incrível que possa parecer, o Brasil com tanta diversidade em recursos naturais, já se tornou destaque internacional por contribuir para o aquecimento global e para as mudanças climá-ticas do planeta. Esta notória participação negativa está associada ao desmatamento e à alteração de áreas florestais para a exploração desmedida da agropecuária.

Born, et al (2004) afirmam que o Brasil participou de forma ativa nas negociações da ONU quanto à mudança do clima e do Protocolo de Kyoto. Destarte, o país precisa ter uma Política Nacional para Mudança de Clima, dando cumprimento aos compromissos firmados internacional-mente, ratificados pelo Congresso Nacional.

É crucial que se observe que tal situação é urgente, pois o resultado desta implementação de políticas públicas demanda muito tempo, uma vez que o tempo da natureza é dissociado do tempo do homem, lembrando ainda que vivencia-se atualmente, o primeiro período do Protocolo, que tem vigência de 2008 a 2012.

Para esses autores, o governo brasileiro tem que apresentar uma postura “líder” e ativa frente aos princípios destacados pela Convenção. Não se pode ainda deixar de preparar o país para os próximos períodos, observando a prevenção, a mitigação e a reversão de causas que resultam em impactos ambientais.

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A tributação como instrumento de atuação estatal na ordem econômico-ambien-tal

É pacífico que incumbe ao Estado intervir na esfera econômica para atingir, entre outros objetivos, a qualidade ambiental. E poderá fazê-lo por diferentes meios: edição de normas regula-doras; fiscalização do cumprimento e efetividade das referidas normas; mediante a concessão de financiamento público a certas atividades; valendo-se da tributação como instrumento de promo-ção do desenvolvimento sustentável.

Para Tôrres (2005, p. 34) a utilização dos tributos como instrumento de atuação do Es-tado na ordem econômico-ambiental não deve causar surpresa, uma vez que “[...] não se trata de qualquer novidade o recurso a tributos com fins extrafiscais [...] desde priscas épocas o tributo vem sendo utilizado para práticas de tal natureza”.

É a tributação extrafiscal, portanto, importante instrumento de indução de que pode e deve o Estado se valer para, intervindo na ordem econômica, conciliar desenvolvimento econômi-co e preservação ambiental.

De duas maneiras pode ser exercida esta intervenção tributária por indução: mediante a concessão de incentivos ou estímulos e mediante a instituição de desestímulos fiscais, ou proibi-ções. No primeiro caso, é comum a concessão de isenções, reduções da base de cálculo, subsídios ou quaisquer outras modalidades de benefícios fiscais. Para a inibição de condutas, a instituição de desestímulos consiste basicamente na imposição de carga tributária elevada para certas condutas típicas, que se busca inibir.

Para Schoueri (2005, p. 29), dentre as diversas formas de atuação estatal na ordem econô-mica sobressai a tributação, razão pela qual o autor conclui que “[...] as normas tributárias indu-toras, longe de serem uma exceção, surgem em obediência ao preceito constitucional da atuação positiva do Estado”. Tratando especificamente da defesa do meio ambiente, o autor salienta ser este campo fértil para o emprego de normas tributárias indutoras.

Para a inibição de comportamentos prejudiciais ao meio ambiente, pode o legislador, no exercício da competência tributária extrafiscal, desestimular as práticas econômicas que afetem negativamente o meio ambiente através do agravamento da tributação, aumentando, por exemplo, alíquotas de tributos que gravam a produção e o comércio de produtos ecologicamente incorretos. Tal prática se justifica, juridicamente, segundo Ribas (2005, p. 686):

Com a agravação do tributo, a política fiscal se associa à política ambiental, estabelecendo a possibili-dade de se afastar, modificar ou até inviabilizar atividades degradadoras do ambiente e, por isso, contrárias ao interesse público, assim como o abrandamento da tributação estimula atividades convenientes à comunidade.

Insta destacar, no entanto, a advertência feita por Ferraz (2005), no sentido de distinguir a im-posição tributária onerosa sobre a conduta ambientalmente indesejável, porém lícita, da aplicação de multa pecuniária pela prática de ilícito. A primeira, conhecida como tributação ambiental, tem como pressuposto o fato de que todas as atividades econômicas que comportam a hipótese de incidência de um tributo ambiental são lícitas, pois que a essência do tributo é incompatível com qualquer forma de sanção. A função da tributação ambiental, portanto, é meramente orientadora, nunca sancionatória.

O agravamento da tributação com vistas a coibir práticas indesejadas, no entanto, nem

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sempre surte o efeito almejado pelo legislador. Isto ocorre quando o agente econômico que incorre em prática ambientalmente desaconselhável sente-se legitimado a prosseguir com o mesmo modo de exploração ambiental porque economicamente capaz de arcar com o ônus da tributação. Im-portante também lembrar que certos danos ambientais são irreversíveis, o que invalida a tributação ambiental quando da ocorrência dos referidos danos. Sua utilização, portanto, embora legítima, deve ser sopesada com critério.

Para muitos autores, mais adequada que a utilização da tributação agravada é a indução de comportamentos positivos por meio de normas tributárias de incentivo. O raciocínio, segundo o qual a técnica da recompensa positiva surte melhor efeito do que a utilização de medidas repressi-vas, é assim expresso por Petter (2005, p. 248):

[...] a adoção de uma política legislativa do tipo premial é desde logo percebida pelo agente econômico, traduzindo um benfazejo ambiente de segurança jurídica pelo exato equacionamento das conseqüências fiscais advindas das decisões que tomar. Nesse sentido, comportamentos eco-nômicos sócio-ambientalmente desejados devem ser antecipados em normas de caráter premial, havendo um direcionamento da atividade econômica não de forma autoritária e arbitrária, mas com a cumplicidade do mercado, o que é significativo do ponto de vista eficacial.

Acredita-se, no entanto, que a tributação extrafiscal é legítima tanto quando busca coibir con-dutas indesejáveis quanto nos casos em que, aplicada de modo a abrandar as exigências fiscais, estimula a adoção de comportamentos que se compatibilizam com as diretrizes constitucionais. A opção por esta ou aquela política tributária dependerá da análise do caso concreto e da finalidade a que busca atingir.

Normas tributárias indutoras e descarbonizaçãoPode-se afirmar que a tributação extrafiscal já é largamente empregada no Brasil, sobretu-

do em relação aos tributos que gravam o comércio exterior, com vistas à manutenção do equilíbrio da balança comercial. Segundo Elali (2007), também no que concerne ao desenvolvimento econô-mico sustentável, tem aumentado a cada dia no Brasil a força dos estímulos de natureza tributária.

Acredita-se, no entanto, que o mecanismo ainda seja subutilizado no campo do Direito Ambiental, sendo sua aplicação na área energética incipiente. Sendo assim, embora seja possível citar alguns benefícios fiscais destinados a estimular a produção e o consumo de energia livre de carbono, as concessões isoladas de incentivos não chegam a induzir comportamentos ou alterar velhos hábitos.

Em tramitação no Congresso Nacional desde 2007, o Projeto de Lei n. 305/2007, de auto-ria do senador Serys Slhssarenko, prevê a redução, a zero, das alíquotas do Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda, no mercado interno, de células solares fotovoltaicas, usadas para captar a energia solar e promover o aquecimento de água.

Ainda no campo da energia solar, merece destaque a isenção do Imposto sobre a Circula-ção de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal (ICMS), da competên-cia dos Estados, veiculada por meio do Convênio ICMS n. 101/1997, relativamente às operações praticadas com aquecedores solares, bem como seus componentes.

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No setor de biocombustíveis, tecnologia em que o Brasil foi pioneiro, são ainda pequenas as diferenças tributárias em relação aos combustíveis fósseis. Pode-se citar, nesta área, a edição da Lei n. 11.727, de 23 de junho de 2008, fruto da conversão da Medida Provisória n. 413, de 3 de janeiro de 2008. A lei traz a perspectiva de simplificação na tributação incidente sobre a produção e comercialização do etanol, mas a carga tributária é mantida.

Também a tributação incidente sobre a industrialização de veículos é ligeiramente diferente em razão do combustível utilizado, com tratamento mais benéfico para os veículos movidos a álco-ol, assim como para os chamados flexpower (movidos a álcool ou gasolina). A variação de alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), no entanto, não passa de um ponto percentual.

Como visto, as medidas adotadas são poucas e desprovidas de conteúdo realmente indutor de comportamentos, não cumprindo, desta feita, o papel de estimular a pesquisa e o desenvolvi-mento de novas tecnologias, ou a utilização em larga escala de matrizes energéticas descarboniza-das.

Esta realidade reflete a inexistência de políticas públicas claras e demonstra que, ao contrá-rio do que se afirma na grande imprensa e na contramão de compromissos já assumidos perante a comunidade internacional, o governo brasileiro ainda não fez uma opção clara pela descarboni-zação da economia.

Considerações finaisO meio ambiente tem papel fundamental para a existência da vida, devendo ser equilibrado

e saudável, atendendo os direitos humanos fundamentais. A Conferência em Estocolmo a nível mundial estabeleceu princípios que firmaram obrigações e responsabilidade para o homem e para o Estado. No mesmo sentido, no Brasil, tem-se a Constituição Federal de 1988. Em razão do meio ambiente ser um bem da humanidade, os Estados devem firmar responsabilidades internacionais.

O crescimento econômico vem causando impactos de larga dimensão no meio ambiente. Na atualidade, busca-se o desenvolvimento econômico sustentável, pois a preservação ambiental garante o direito à vida, atendendo, assim, os preceitos constitucionais vigentes relacionados à dignidade da pessoa humana.

A participação do dióxido de carbono (CO2) no efeito estufa é inegável, sendo a descarboni-zação um verdadeiro instrumento para se atingir o equilíbrio climático, mediante o emprego de fontes energéticas limpas. Insta destacar que o Protocolo de Kyoto estabeleceu metas para a redução de gases causadores do efeito estufa, porém os investimentos estão aquém, devido à crise econômica mundial.

Em uma visão geral, a gestão pública necessita da participação efetiva da sociedade, no entanto cabe ao Estado designar ações preventivas, políticas públicas que devem ser investidas de força social. Infelizmente, no Brasil as políticas voltadas à descarbonização da matriz energética não são integradas com outras áreas, dificultando a própria eficácia da gestão pública.

Outro instrumento relevante de atuação é a tributação, que pode ser utilizada para induzir ou desestimular comportamentos, uma vez que sua função não se resume à arrecadatória. Nesta ótica, a tributação visa inibir a exploração de atividades que tragam prejuízo ao meio ambiente e estimular comportamentos orientados à sua proteção.

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A legislação brasileira prevê alguns casos de incentivo à preservação do meio ambiente através da descarbonização. Destacam-se: a isenção do ICMS nas operações que envolvem aque-cedores solares e seus componentes; a redução do IPI para os veículos a álcool, bem como a sim-plificação dos deveres instrumentais a serem cumpridos na cadeia produtiva do etanol. As medidas adotadas, no entanto, não passam de concessões isoladas que demonstram a inexistência de uma política fiscal voltada à descarbonização.

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Artigo Recebido em: janeiro/2012.Artigo aprovado para publicação em: fevereiro/2012.

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ComUnidades tradiCionais e povos indÍGenas: distintos OLHARES SOBRE A APROPRIAÇÃO DO MEIO AMBIENTE/ TRADITIO-NAL COMMUNITIES AND INDIGENOUS PEOPLE: DIFFERENT OUTLOOKS ON THE APPROPRIATION OF THE ENVIRONMENT

Caroline Barbosa Contente Nogueira5

Danielle de Ouro Mamed6

Sumário: Introdução; Quem são as comunidades tradicionais e os povos indígenas?; A sociodiver-sidade, meio ambiente e economia na Amazônia: aspectos de uma relação múltipla e não dualista; O coletivo e o individual: os diferentes modos de apropriação como caracterizadores de uma eco-nomia diferenciada; Breves Reflexões Jurídicas sobre o tema; Considerações Finais; Referências.

Resumo: O debate proposto neste trabalho trata de questões relevantes para a atualidade, a saber, as divergências existentes entre questões econômicas e socioambientais quando se analisa o con-texto das comunidades tradicionais e povos indígenas, que, notadamente, possuem uma visão de apropriação da natureza distinta das comunidades não tradicionais. Para tanto, buscou-se refletir nos campos social e jurídico os discursos apresentados para enfatizar a problemática, procurando compreender desde a terminologia utilizada, o discurso político compositor de direitos, em especial aqueles ligados às questões econômicas e a compreensão de como o Estado Moderno e seu univer-salismo lida com as peculiaridades/particularidades das questões étnicas e sociais, garantindo seus direitos econômicos, sociais e territoriais, tanto requisitados nas lutas políticas.

Palavras-chave: comunidades tradicionais; meio ambiente; povos indígenas.

Abstract: The debate that it’s proposed on this work concerns relevant questions for the actuality, which is the divergences existing between economic and socioenvironmental issues when analyzed the context of traditional communities and indigenous people, whi-ch, notably, posses a distinct view of the appropriation of nature of the non-traditional

5 Doutoranda pelo Programa de pós-graduação em Direito Econômico e Socioambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professora da Faculdade Metropolitana de Curitiba (FAMECPR). [email protected].

6 Doutoranda em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Bolsista PUCPR). Professora de Direito Internacional e Produção Científica da Faculdade Campo Real. Membro do Grupo de Pesquisa “Direito e desenvolvimento sustentável: a proteção das florestas e dos recursos hídricos na Região Amazônica em face da mudança climática”, financiado pelo CNPq. [email protected].

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communities. For that, it was sought reflection in the social and legal areas discourses presented to emphasize the problematic, seeking to understand the terminology utilized, the political discourse composer of rights, especially those connected to the economic questions and the understanding of how the Modern State and its universalism deals with the peculiarities of the social and ethnical issues, guarantying its economical, social and territorial rights, so required in political struggles.

Key-words: traditional communities; environment; indigenous people.

IntroduçãoO presente trabalho tem como objetivo promover reflexão jurídica e social das questões

relacionadas aos povos e comunidades tradicionais e suas relações econômicas diferenciadas. De-bater estas questões inclui ao longo dos estudos repensar o Direito, sendo capaz de reinterpretá-lo como agente dialogador entre Estado e minorias, não apenas impositor ou mantenedor do “status quo” do Estado Moderno, pautado por princípios universalizadores, monistas e individualistas advindos do liberalismo, com ideais econômicos fundados no direito à propriedade individual, mas sim com reais intuitos da efetivação da democracia e satisfação das necessidades das pessoas, com o devido respeito às minorias e à diferença.

Para compreender os conceitos iniciais, será feita uma breve abordagem de clássicos do pensamento social a fim de observar os termos apropriados e construídos ao longo das lutas dos movimentos sociais. Posteriormente, a leitura trará o pensamento ambientalista, como discurso agregador de direitos e garantias aos povos e comunidades tradicionais, uma vez que a relação de tais povos com meio ambiente envolve não apenas uma relação (supostamente) econômica, mas que está imbricada com os valores culturais.

Quem são as comunidades tradicionais e os povos indígenas?Fala-se a respeito de comunidades tradicionais dentro do discurso ambientalista, mas, afinal,

quem são? E porque são chamadas de tradicionais?O conceito inicialmente observado vem da Política Nacional de Desenvolvimento Susten-

tável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto n.º 6.040 de 7 de fevereiro de 2007), que tem “por objetivo específico promover o citado ‘desenvolvimento sustentável’ com ênfase no reconhe-cimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais” (ALMEIDA, 2007, p. 13).

Neste texto, a ideia de sustentabilidade remete à “noção de uma gestão ambiental não apenas no espaço, mas também no tempo” (SILVA, 2004, p. 81). Sua origem, no entanto, remete à publicação do chamado Relatório Brundtland, de 1987 da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desen-volvimento. Esse Relatório, conhecido como “Nosso Futuro Comum”, determinou que da expressão “desenvolvimento sustentável” depreende-se que a fruição dos recursos naturais pela presente gera-ção, não deve prejudicar o mesmo direito das gerações futuras.

A referida normatização, em seu art. 3º, I, conceitua estes povos e comunidades tradicionais como:

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Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuidores de formas próprias de organização social, ocupantes e usuários de territórios e recursos naturais como condição à sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Alguns termos são de relevância para observação analítica deste dispositivo legal, como “cul-turalmente diferenciados”, implicando nas especificidades das formas de ser, fazer e viver que estes povos e comunidades possuem e que, por isso, são fatores importantes para o reconhecimento de direitos também especiais, buscando atender sua realidade.

Este mesmo termo – “culturalmente diferenciados” – também carrega consigo as questões de afirmação da identidade étnica ou cultural de um grupo e está relacionada a especificidades nos seus modos de ser, fazer e viver. Aqui, é importante um breve comentário sobre dois conceitos im-prescindíveis para a compreensão das comunidades tradicionais e povos indígenas: a identidade e a alteridade. Estes conceitos perpassam toda discussão do direito à diferença, ao reconhecimento étni-co e político, visando a garantia das condições para subsistência física e cultural dessas comunidades.

A identidade étnica é ponto de discussão para esta temática, pois a partir do conceito de identidade designa-se um grupo, e, ao designar um grupo, corrobora-se para construção de direitos e garantias que estes possam se reafirmar econômica e socialmente. Para Barth (1984), identidade étnica se dá em um grupo no qual seus membros identificam a si mesmos e são identificados pelos outros. A autoafirmação é ponto fundamental para definir identidade e mesmo que as reflexões culturais sejam necessárias, a questão étnica não pode ser determinada apenas por caracteres culturais.

A característica antropomórfica não a define, ou apenas expressões e concepções culturais, mas a autoidentificação do indivíduo perante o grupo e seu reconhecimento pelo grupo. Neste contexto, Cunha (1986, p. 39) afirma que grupos étnicos não podem ser definidos a partir de sua cultura, visto que os processos de identificação são maiores do que as percepções e representações culturais.

Observando o discurso que surge ao se perguntar quem são os índios no Brasil, busca-se compreender as fixações equivocadas em características físicas ou antropomórficas, práticas culturais peculiares ou ainda, formas de ser, fazer e viver arraigadas em um conceito, que Ramos (1995, p. 5) chama de o “Índio Hiper-Real”, ou ainda o que Rosseau (1993, p. 94) classificou como “bom selva-gem”. Há uma “frustração” a respeito do que “é” o índio e o que se espera que ele “seja”.

Quando se fala em identidade étnica, pensa-se no conceito de etnicidade que sob o olhar de Barth (1998, p. 6) se define como uma forma de “organização social”, ou seja, uma maneira de organizar e classificar diferenças entre grupos sociais. Para o autor, a cultu-ra partilhada entre os indivíduos de um grupo não é o que os define como tal, mas sim as diferenças e peculiaridades que este grupo apresenta em relação aos outros.

Pensa-se então em alteridade como componente da identidade, visto que a afirmação de um grupo surge quando este se depara com a diferença do outro. Para Laplantine (2001, p. 151), é necessária a “experiência da alteridade”, pois imerso em um único paradigma cultural, o ser huma-no é incapaz de observar a própria cultura, em vista da “familiaridade” e “habitualidade” dadas pelo cotidiano evidente. Segundo ele, “a descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar

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de identificar nossa província de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ‘selvagem’ fora de nós mesmos.” (LAPLANTINE, 2001, p. 151).

A partir desta discussão, observa-se a importância da alteridade como ponto de partida para ratificar a identidade. Na medida em que o individuo se depara com o processo de autoafir-mação perante um grupo e o reconhecimento recíproco deste mesmo grupo para com o indivíduo, ele enfrenta a oposição do grupo perante outros grupos, para assim, reconhecerem sua própria identidade, estabelecendo a autoafirmação diferenciada em relação aos demais. Assim se estabele-cem as identidades culturais.

Partindo desta interpretação, pode-se entender que o direito, em sua forma universalista, encontra dificuldades de lidar com os crescentes conflitos econômicos e socioambientais surgidos na atualidade, que precisa dialogar com sujeitos coletivos, diferenciados, com demanda de modus operandi jurídico também peculiar, questões estas que serão discutidas posteriormente.

Continuando as observações conceituais e terminológicas, notam-se os termos populações e comunidades tradicionais. Que diferenças são encontradas entre os dois termos? Segundo Al-meida (2007, p. 27), o termo “comunidade” foi o substituto de “população”, em vista este último ter raízes nas categorias estudadas pelas ciências biológicas, e consequentemente, ligada ao evolu-cionismo. Esta substituição ocorre por que o termo “comunidade” melhor comporta o status de sujeitos coletivos, além de distanciar o conceito do adjetivo “primitivo”.

A expressão “povos tradicionais”, por sua vez, constitui outro termo para definir estas comunidades culturalmente diferenciadas, mas neste caso específico a palavra “povo” é empregada de forma a designar coletividades autóctones ou indígenas que buscam nessa palavra a contextuali-zação da complexidade de suas sociedades, a fim de serem reconhecidas suas organizações sociais e suas práticas econômicas e culturais como identidade viva e capaz de conviver com o Estado.

“Comunidades” e “Povos Tradicionais” são, portanto, “categorias ocupadas por sujeitos políticos que estão dispostos a conferir-lhe substância, isto é, que estão dispostos a comprometer--se a uma série de práticas conservacionistas”, inclusive, em suas relações econômicas e, conforme Almeida (2007, p. 29), relacionando-se a direitos e garantias. Nesse sentido, observa Little (2002, p. 23) que:

a opção pela palavra ́ povos` − em vez de grupos, comunidades, socie-dades ou populações − coloca esse conceito dentro dos debates sobre os direitos dos povos, onde se transforma num instrumento estratégico nas lutas por justiça social desses povos. Essas lutas, por sua vez, têm como foco principal o reconhecimento da legitimidade, seus regimes de propriedade comum e leis consuetudinárias que os fundamentam.

Segundo Cunha e Almeida (2000, p. 16-24), há diferenças entre as duas categorias aborda-das, posto que povos indígenas e comunidades tradicionais são reconhecidos através do requisito essencial de autodeterminação cultural para conquista de direitos, especialmente os territoriais, in-timamente ligados à provisão de necessidades físicas e culturais. Entretanto, os primeiros têm vin-

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culação com a terra não pelo caráter conservacionista, mas por originariamente serem os titulares das regiões tradicionalmente habitadas, conforme a Constituição Federal de 1988, já os últimos tem como requisito a conservação ambiental para se estabelecerem como grupo social e alcançarem direitos econômicos, culturais e sociais.

Neste ponto, é necessário refletir sobre a noção de tradição. Vinculada ao sentido de conti-nuidade, hoje, numa releitura antropológica, a tradição não pode mais ser compreendida sob o véu da linearidade histórica ou sob a ótica do passado ou ainda como uma reminiscência das chamadas “comunidades primitivas” e “comunidades domésticas”, ou ainda, como amostras de um suposto estágio de “evolução da sociedade”, de acordo com Sahlins (1972, p. 45).

O significado de “tradição” em Weber (2000, p. 109), associado a “costume” e/ou “hábi-to”, passa por modificações e revisões, principalmente no que se refere a sua dissociação da ideia de “repetição”. O que hoje se chama “tradicional”, antes de conectar à história remota, aparece como reivindicação contemporânea e como expectativa de direito envolvida em formas de autodefinição coletiva. Hoje, “comunidades tradicionais” aparecem envolvidas num processo de construção do próprio “tradicional”, a partir de mobilizações e conflitos, entendendo assim que o “tradicional” é, portanto, social e politicamente construído. Hobsbawm e Ranger (1997, p. 267) interpretam tal processo de construção como uma “invenção”.

Assim, a partir da ideia de que o “tradicional” está ligado às reivindicações atuais de dife-rentes movimentos sociais o termo dissocia-se de quaisquer conexões com “origem” e “isolamento cultural”, como se observa habitualmente entre os escritos ingênuos. Desta forma, evita-se usar as ideias de “tradição” e “costume” que, atrelando o sentido de “tradicional” ao direito consuetudi-nário, pensa-o como “repetição” e “regularidade”, congelando as práticas jurídicas que lhe seriam correspondentes. Por isso, conclui-se que estas práticas só são estáticas na forma de conceber dos pensadores de viés positivista, que entendem tudo na linguagem rígida e constante da regra, ao contrário dos próprios agentes sociais de que falam, que vivem dinamicamente suas práticas econômicas e jurídicas. Neste sentido, pode-se entender que são comunidades dinâmicas, e que, consequentemente, os princípios que orientam a satisfação das necessidades de tais comunidades, também se encontram em constante transformação.

A sociodiversidade, meio ambiente e economia na Amazônia: aspectos de uma relação múltipla e não dualista

Sem dúvida alguma, a Amazônia faz parte de um dos complexos naturais mais ricos do mundo. Sua importância pode ser observada através de inúmeros aspectos, segundo Fonseca (2003, p. 146), estando entre eles as abundantes reservas minerais, alvo da ambição do capital interna-cional e da indústria de transformação, a biodiversidade contendo o maior repositório de genes do mundo à disposição da engenharia genética e da biotecnologia, além do interesse pelas comu-nidades indígenas em virtude do conhecimento que possuem da biota, diminuindo os custos de prospecção da bioindústria emergente.

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A diversidade sócio-cultural amazônica, tão importante quanto a biodiversidade, é complexa e estabelece redes que a interliga ao meio ambiente em que vive. É chamada também de sociodiversi-dade, composta por cerca de 206 sociedades indígenas com cerca de 310 mil indivíduos, 195 línguas diferentes e aproximadamente 50 grupos indígenas isolados, além destes, fazem parte dessa di-versidade as comunidades remanescentes quilombolas, seringuei-ros, castanheiros, ribeirinhos, babaçueiras, entre outras (CUNHA e ALMEIDA, 2000, p. 29).

Assim, elementos culturais pertencentes às comunidades tradicionais e povos indígenas aca-bam sendo apropriados pela economia das culturas não tradicionais. Logo, pode-se inferir que o conflito existente perpassa às diferentes visões acerca desses elementos: para as culturas tradicionais, a satisfação de suas necessidades não está atrelada à instituição de direitos privados, como nas culturas não tradicionais. Tem-se que culturas tradicionais, geralmente, possuem um modo de vida pautado na coletividade, e não na individualidade, como se observa, por outro lado, nas culturas não tradicionais.

No direito hegemônico (da sociedade ocidental, urbana e industrial) observa-se uma tradição voltada aos bens de titularidade privada, individualista: Souza Filho (2006, p. 18), a esse respeito, explica que nem o direito, nem o Estado estão aparelhados para preservar direitos coletivos, pois fo-ram construídos através do viés privatista. Assim, um problema advindo dessa concepção, mostra-se latente quando se analisa, por exemplo, a questão dos direitos culturais: bem cultural faz parte de uma nova categoria de bens, junto com os demais bens ambientais, que não se colocam em oposição aos conceitos de privado e público, nem alteram sua dicotomia (SOUZA FILHO, 2006, p. 24). Essa nova categoria de bens, ainda segundo Souza Filho (2006, p. 24), não se encontra contemplada satisfatoria-mente no direito, daí porque se observa um exaustivo rol detalhando direitos de natureza individual e pouca regulamentação de direitos coletivos.

Desta forma, torna-se inevitável o conflito quando a economia hegemônica se apropria de elementos tradicionais (como no caso dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e biopirataria na Amazônia), ignorando a visão dos detentores desses elementos sobre seu usufruto. Para comunidades tradicionais, seus conhecimentos são de caráter coletivo, tradicionais, pertencentes a todos, indistintamente. Já na organização social não tradicional, tende-se a “privatizar” tudo, inclu-sive os conhecimentos que deveriam ser de todos. Shiva (2001), ao lidar com a questão do “patente-amento da vida”, explica que:

Tal patenteamento cerca a criatividade inerente aos sistemas vivos, os quais se produzem e multiplicam em liberdade auto-organi-zada, cerca os espaços internos de mulheres, plantas e animais, e cerca também os espaços livres da criatividade intelectual ao transformar o conhecimento gerado publicamente em propriedade privada (p. 29, grifo nosso).

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Trata-se, portanto, de um evidente conflito entre visões econômicas, uma vez que o senti-do de apropriação para o suprimento das necessidades está construído sobre lógicas opostas. As-sim, quando se observam conflitos dessa natureza, mostra-se a premente necessidade de considerar as diferenças culturais, em especial no que tange às lógicas construtoras das relações econômicas.

A cultura é continuação da natureza, pois a realidade não vem da mente humana e sim dos relacionamentos entre social e natural. Nesse sentido, sugere Derani (2008, p. 50) que a relação entre ser humano e natureza está alem dos “fenômenos naturais implacáveis”, pois

muito mais presentes são as atividades sociais em que a natureza é posta a serviço do homem em sua participação social (socia-lização da natureza), o que não significa necessariamente que o homem a compreenda. Pois na sociedade moderna, é a natureza um instrumento. Tendo aquilo que apresenta de matéria, como suas exigências naturais são compreendidas na exata medida de sua utilidade imediata.

Ainda neste mesmo contexto de estabelecer parâmetros para relação natureza e cultura, Santilli (2003, p. 53) afirma que “indissociavelmente ligada à rica biodiversidade brasileira, está a sociodiversidade, o nosso extenso patrimônio sociocultural”, ou seja, não há como se compreender a natureza e estudar a biodiversidade amazônica deixando de lado todas as ligações que o homem faz com ela, construindo sua cultura e suas sociedades.

O coletivo e o individual: os diferentes modos de apropriação como caracteriza-dores de uma economia diferenciada

Há duas realidades concêntricas estudadas neste trabalho, que diz respeito à relação ho-mem/natureza. Uma coletiva, outra individualista. Uma apresentando o sujeito coletivo, conviven-te com a natureza e os espaços nos quais está inserido, outra trazendo a leitura do sujeito individual, de direitos e garantias acerca de sua propriedade, o bem maior.

Para Dantas (2007, p. 148), a complexidade de entender o coletivismo encontra-se no pro-cesso trabalhoso de estudos sobre as características diversas e peculiares antropológicas, políticas e históricas que fazem parte da construção do sujeito coletivo. Por este motivo, as classificações universalizantes, abstratas e individuais adotadas no tratamento do sujeito moderno não adequadas para definir e caracterizar o sujeito na sociedade coletiva como são as indígenas. É necessário para tal, novos conceitos plurais e flexibilizadores aparados pela realidade concreta brasileira.

A determinação de sujeito é a forma de classificar e compreender o homem no âmbito do direito. Somente se classificando como tal, o homem exerce prerrogativas indispensáveis para sua atuação no mundo jurídico. A propriedade é a mola propulsora desta classificação, pois antes de su-jeito de direito deve ser o indivíduo proprietário individual, livre e capaz de exercer sua vida civil. Esta denominação nasce na estrutura capitalista, pois as sociedades que nela se estabeleceram tratam este sujeito como parte da estratificação social originada pelo ideal burguês europeu.

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Refletindo sobre os pilares em que se soergue o sujeito individual, Ost (1995, p. 30-48) analisa a propriedade privada, e seu processo de construção na história. Observa as duas formas de exercer o direito proprietário, baseado primeiramente na convivência e sobrevivência entre ser humano e na-tureza, e posteriormente quando aquele se apropria desta última para exercer sobre ela sua liberdade de adquirir, utilizar e se dispor quando conveniente.

Assim, fala o referido autor da propriedade da terra na Idade média, durante a qual se observa o processo de apropriação “usufruto, que visa a produtividade da coisa e não a propriedade-pertença, centrada sobre a sua corporalidade”. O quadro que se apresentava era de uma “economia de subsis-tência e uma ideologia comunitária”, a partir da qual o ius fruendi (utilização fundada na sobrevivência) sobressaía-se ao ius abutendi (livre direito de obter e dispor da coisa). “As propriedades simultâneas sem dependência pessoal eram inspiradas pela cooperação mútua da comunidade, além dela, a exploração comum era evidente quando se tratava de bosques, matagais, que rodeavam as explorações familiares” (OST, 1995, p. 52). Esta é a forma de apropriação consuetudinária, segundo Ost.

O processo de incorporação do individualismo ao cotidiano europeu foi-se instalando gra-dativamente, tendo seu marco na Revolução Francesa, canonizada como fonte primária da liberdade. O trabalho como representação prática desta liberdade representava a possibilidade do indivíduo de reconhecer-se legítimo para adquirir, acumular e dispor de bens. Assim, estabelece-se um direito civil “justificado pela necessidade do trabalho, que pressupõe a ocupação e a transformação, de caráter absoluto, exclusivo e perpétuo”. (OST, 1995, p. 59-66).

Esta lógica capitalista origina o desejo de “transformar todas as coisas em valores comerci-áveis, patrimonizá-las e fazer delas objeto de apropriação e de alienação”. O proprietário possui um direito “divino” de usufruir e dispor “material e juridicamente da coisa”. É ainda nesta categoria de pensamento que a propriedade é dividida em pública ou privada, sobrando as “terras de ninguém” (comungando a res nullius), sendo o primeiro ocupando aclamado seu proprietário. Nesta corrida de apropriação, apenas o bem comum (propriedade pública tida como res communes) era o limite para o sujeito em busca da titularidade de bens (cf. OST, 1995, p. 67-69).

Com este ideal chegam as invasões colonizadoras nas Américas, tratando as terras como se não per-tencessem a ninguém baseados na descaracterização da humanidade dos povos autóctones e consequentemente não considerados sujeitos de direito capazes de exercer o direito de propriedade. Como salienta Ost (1995, p. 70):

Na altura em que se constituem os grandes impérios coloniais, o prin-cípio de soberania estatal imporá, sobre toda a terra, a pertença e o do-mínio exclusivos, com vista à sua exploração mais rendível. O Ocidente estabelecer-se-á, em nome da lei do primeiro ocupante, como se se tratasse de res nullius; os direitos dos indígenas parecem não contar [...]

Neste ensejo, também Dantas (2003, p. 97) se refere à desconsideração da existência de povos originários, organizados e complexos por parte dos colonizadores, “negando aos seus mem-bros a qualidade de sujeitos, motivo pelo qual justificavam a invasão e tomada violenta do território, a escravização, as guerras, os massacres o ocultamento sócio-cultural e a invisibilidade jurídica.”

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Ost (1995, p. 75) fala a respeito do choque cultural que ocorreu durante o período colonial quando os povos autóctones se deparam com essa representação da natureza diferenciada, quando cita os chefes índios em resposta às propostas de compra de suas terras sem saber a significação da aquisição de bens, conforme se observa a seguir:

“Como se pode comprar ou vender o céu?” Respondia o chefe Seatle, da tribo dos Sioux. “Como se pode comprar ou vender o calor da terra? A idéia parece-nos estranha. Se a frescura do ar e o murmúrio da água não nos pertencem, como podemos vendê--los? Um outro chefe, o chefe Joseph, responderá, quanto a ele: “a terra foi criada sem fronteiras, não pertence ao homem estabele-cê-las. O único que tem o direito de dispor da terra é aquele que criou. “Um outro responderá ainda que a terra é a mãe da vida; que, “tal como não se vende a vida dos animais e dos homens, não é possível vender a terra que é a fonte da vida”.

Neste contexto, constata-se que o diferencial “apropriação versus acumulação” e “convi-vência versus simbiose” cria um dualismo entre as formas de pensar a natureza. Se o liberalismo econômico, desencadeado pela liberdade individualista da Revolução Industrial, consolidou o ca-pitalismo, e por sua vez, os modos de apropriação e transformação da natureza, observando seu conceito a partir da sua utilidade como instrumento para obtenção de recursos naturais nos modos de produção, Lima (1999, p. 2) afirma que os ameríndios são sociedades que não separam natureza e cultura, simplesmente ignoram essa distinção. Diz ainda que essa grande distinção apontada pelos diversos autores é uma reprodução do pensamento do homem moderno de detenção da natureza, que diferencia objetivo e subjetivo em diversos níveis. (LIMA, 1999, p. 2).

Nesse sentido, torna-se importante falar sobre o ingresso de comunidades tradicionais indígenas e não-indígenas nos sistemas de mercado. Conforme já explicitado, a inclusão de novos elementos não se traduz, necessariamente, na desagregação da tradição, ao contrário, pode signifi-car uma reestruturação ou reinvento do modo de vida. Já parece questão pacífica o fato de que a mudança faz parte da evolução cultural, sem que isto redunde em sua destruição.

Ao defender o papel dos mercados, Sen destaca a necessidade de um exame crítico dos preconceitos e atitudes político-econômicas tradicionais frente aos mercados. Para que a inclusão de comunidades tradicionais em mercados seja salutar, esses preconceitos devem ser investigados e, segundo sua ótica, parcialmente rejeitados (SEN, 2010, p. 150-151). O autor defende, assim, que o argumento mais forte em favor da liberdade de transações de mercado baseia-se na importância da própria liberdade: “temos boas razões para comprar e vender, para trocar e para buscar um tipo de vida que possa prosperar com base nas transações. Negar essa liberdade seria, em si, uma falha da sociedade” (SEN, 2010, p. 151).

Dessa forma, pode-se inferir que a entrada de comunidades ditas tradicionais no mercado não redundará na desarticulação de sua cultura. Invocando a liberdade da busca por melhores con-

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dições de vida (na visão da própria comunidade) resta entender a entrada dessas comunidades nos mercados e resguardar as devidas peculiaridades inerentes a elas, dando-lhes o poder de decidir ou não inserir elementos da economia hegemônica em seu contexto.

A partir das ideias lançadas, o foco reverte-se à diversidade cultural brasileira e às formas de como o direito pode se relacionar como mediador de garantias e proteção ao direito de ser “índio”, relativizando seus dogmas, absorvendo o pluralismo jurídico e afastando-se, até certo ponto, do pensamento eurocêntrico universalizador.

Breves reflexões jurídicas sobre o temaO campo das Ciências Jurídicas merece atenção, especialmente quando se discute as pecu-

liaridades de uma sociedade plural como a brasileira. As questões do multiculturalismo dão novos direcionamentos aos debates jurídicos. É necessário observar o pequeno universo das particulari-dades para lidar com o todo universal já conhecido do Direito e do Estado-Moderno.

Neste momento, não será relevante discutir os aspectos genéricos do pensamento univer-salizador ao longo da caminhada histórica do ser humano, apenas propõe-se aqui reflexões sobre como compreender a diversidade social do Brasil dentro do sistema econômico instaurado pelo Estado e de que forma esses direitos econômicos são refletidos nos direitos socioambientais. Se o Estado se propõe a ser o sustentáculo de uma nação, deve dispor de mecanismo que permitam compreender que é necessário lidar com as diferenças e as peculiaridades de cada grupo social submetidos à sua jurisdição.

E assim, nos debates jurídicos e políticos, procura-se o entendimento do Brasil como socie-dade plural e multiétnica e a preservação dessa pluralidade passa a explicitar seu grande valor para democracia. Nesta discussão, é favorecida a “constituição de um ‘direito étnico’” como considera Shiraishi (2007, p. 28), possuindo uma forma específica de refletir o direito. Ainda neste contexto, fala o referido autor, que é necessária a abertura para novas interpretações jurídicas, fugindo das cristalizações dos “modus operandi” e das formas de refletir e analisar o direito. Isso implicaria na

inversão da ordem de se pensar o direito a partir da situação vi-venciada pelos povos e comunidades tradicionais, leva a uma rup-tura com os esquemas jurídicos pré-concebidos. Essa dinâmica que serve para iluminar o direito tem provocado três movimentos, os quais podem ser assim delineados:a) o deslocamento de disciplinas tidas como “tradicionais”, a sa-ber: o direito civil, o direito agrário e o próprio direito ambiental;b) a relativização e reorganização hierárquica de determinadas normas e regras consagradas pelos intérpretes; e c) a reafirmação e ampliação de dispositivos jurídicos internacio-nais de proteção de direitos humanos.Em outras palavras, o “desrespeito” às diferenças existentes entre os distintos sujeitos e grupos sociais, materializado numa políti-

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ca de universalização vem provocando um aprofundamento dos problemas (SHIRAISHI, 2007, p. 29).

Na busca por esse novo paradigma, Souza Filho (2006, p. 34) ressalta a necessidade de pensar alternativas que visem sanar o problema da falta de reconhecimento dos direitos coletivos, abarcando, inclusive, direitos de apropriação de recursos e satisfação de necessidades de acordo com seus pilares culturais.

Assim, o debate sobre o multiculturalismo toma espaço no campo jurídico moderno, quan-do se evoca as situações de uma sociedade plural e, portanto, a convivência de grupos culturalmen-te diferenciados em um mesmo território, conforme se observa a seguir:

(...) o multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultu-ral no arcabouço institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das ‘necessidades particulares’ dos indivíduos enquanto membros de grupos cultu-rais específicos. Trata de afirmar, como direito básico e universal que os cidadãos têm necessidade de um contexto cultural segu-ro para dar significado e orientação a seus modos de conduzir a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para a autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vinculações normativas, representa um importante campo de re-conhecimento para os indivíduos e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças culturais apresenta-se como ampliação do leque de oportunidades de reconhecimento (COSTA e WERLE, 2000, p. 82).

No sentido de observar outros olhares sobre o direito e também sobre economia, tem--se o pluralismo jurídico, que segundo Wolkmer (2001, p. 89-111), surge em contraposição ao pensamento monista ocidental, ou seja, o pensamento universalista, que dita que os sistemas jurídi-cos devem tratar igualmente todos os seus súditos, esquecendo as especificidades e peculiaridades pertencentes aos seus povos. Como a própria etnologia da palavra, o “ser plural” de uma nação, condiz com as realidades múltiplas que esta traz, ou seja, as diversas maneiras de manifestar-se, seja economicamente, linguisticamente, ideologicamente, etc.

O pluralismo jurídico, ainda sob o olhar de Wolkmer (2001, p. 89-111), consiste em um sistema jurisdicional consciente de suas diversas realidades, que respeita, prevê seus direitos econô-micos e protege-os, dando oportunidade para que todos sejam ouvidos e atendidos de acordo com suas necessidades, ainda que múltiplas e específicas.

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Considerações finais

Ainda há muito que se discutir acerca do Direito, da Economia e das transformações sociais que nos mostram a diversidade cultural em que o Brasil sempre esteve imerso, porém optou por distanciar e silenciar estes fatos. Os movimentos sociais, sem dúvida, tem um grande potencial como formadores de direitos e garantias a estas coletividades e principalmente, trazem as demandas das minorias face-a-face com o Estado, impelindo-o a medidas necessárias, que apenas são tomadas diante das cobranças feitas ao longo das lutas sociais.

As estruturas econômicas de comunidades tradicionais se mostram baseadas na coletivida-de, enquanto que as estruturas do direito não-tradicional são patentemente ligadas à propriedade, e sempre numa perspectiva privada. Quando esta concepção privada apropria-se da concepção co-letiva, o conflito se instaura, dando margem às injustiças, exclusão e desrespeito àqueles cuja lógica diverge do direito hegemônico. No entanto, tal situação não se mostra plausível quando se defende a existência de um Estado pautado na democracia, liberdade e solidariedade. Portanto, mostra-se necessária a construção da defesa efetiva de direitos econômicos coletivos, inclusive, no que tange ao ingresso de comunidades tradicionais aos sistemas de mercado ou, ao contrário, a manutenção de seu status quo, pois a liberdade de manter tradições ou de recriar culturas já merece ser vista de forma a contemplar as reais necessidades das diferentes culturas tuteladas pelo Estado.

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Artigo recebido em: outubro/2011Artigo aprovado para publicação em outubro /2011.

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o ConCeito de CaUsalidade para a reparaÇÃo do dano no DIREITO AMBIENTAL/ THE CONCEPT OF CAUSATION TO REPAIR THE DAMAGE IN ENVIRONMENTAL LAW

djane oliveira marinho7

Andréa Mazzaro de Souza Fiúza e SilvaMarcondes Gil Nogueira

Priscila Silva de SouzaRaimundo Paulino Cavalcante Filho

Sumário: Introdução; O conceito de causalidade para a reparação do dano no direito ambiental; A teo-ria de Hume quanto a possibilidade de obtenção do conhecimento em si e do conhecimento de causa; Estabelecimento do elo entre causa e efeito e entre razão e experiência; Aplicação dos conceitos de ex-periência, causa e efeito no direito ambiental, inserindo-os em um estudo de caso; Considerações Finais.

Resumo: Toda ação humana tem algum impacto ambiental. Tal assertiva se faz presente através de experiências que nos permitem inferir que ao comer, produzir, viajar, consumir, o ser humano pratica uma ação que de alguma forma mexe com o meio ambiente. David Hume (2004; 2006) entendia que sendo efeito e causa eventos distintos, somente a investigação é que poderia estabe-lecer a relação entre os mesmos. Todavia, tal investigação – que nos levaria ao conhecimento de causa e efeito – só seria possível pela observação de eventos repetidos, ou seja, pela experiência. Portanto, experiências anteriores nos permitiriam prever a causalidade e as possíveis consequências de eventos semelhantes. O presente trabalho aborda a aplicação da teoria huminiana aos casos de danos ambientais previsíveis, de modo que seria perfeitamente possível evitá-los através da aplicação dos conhecimentos já existentes. Para tanto, um investidor ou um empresário, através dos conhecimentos e experiências aplicáveis a casos similares, têm meios suficientes para saber de que forma seu empreendimento geraria impacto ambiental, e de outro norte, também saberiam o caminho a trilhar para evitá-los. Desta forma, a empresa preocupada com seus impactos no meio ambiente, deve considerar a relação causa-efeito do seu negócio empresarial, verificando como suas atividades tem impacto ambiental direto no local onde estão instaladas.

Palavras-chave: meio ambiente; teoria huminiana; causalidade.

Abstract: Every human action has some environmental impact. This statement is due to the fact that by feeding, working, traveling, consuming etc., the humans somehow mess up with the environment. According to David Hume cause and effect are different events, and just scientific research can estab-lish any kind of relationship between them. However, such an investigation - which would lead us to

7 Mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.

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the knowledge of cause and effect - would only be possible by observation of repeated events, or by experience. Therefore, previous experiences would allow us to predict causality and the possible con-sequences of similar events. This paper discusses the application of Humean theory to environmental damage case histories. So it is expect that it is possible to avoid them by applying the existing knowl-edge. To this end, an investor or an entrepreneur, through the knowledge and experience applicable to similar cases, have sufficient means to know how their businesses would generate environmental impacts and so, knowing how to avoid them. Thus, a company worried about its environmental im-pact, should consider the cause-effect relationship of fits business, seeing how its activities have direct environmental impact at the site where they are installed and so minimize it.

Key-words: environmental; Humean theory; causality.

IntroduçãoConstantemente, vemos na televisão, jornal ou internet, cenas que comprovam a poluição

das águas, do ar, do solo, enfim, do meio ambiente. São vários os exemplos mostrando que a popula-ção local, de modo geral, não esta dando a devida importância à degradação ambiental. Desse modo, não faz mais sentido falarmos no desconhecimento das consequências de nossas ações, já que experi-ências anteriores nos permitem deduzir quase com exatidão o resultado de ações similares.

Nesse ponto, David Hume (2006) já ensinava que todo conhecimento deriva da experiência, que todas as nossas ideias têm origem nas impressões dos sentidos e somente a partir da experiência é que se pode conhecer a relação entre causa e efeito. Hume (2006) lembra como a necessidade de sobrevivência e o interesse individual fizeram com que o homem criasse uma sociedade com regras para a sua própria segurança e desenvolvimento.

Existindo um ação contrária ao meio ambiente, não é difícil que cheguemos à concretização de dano à natureza, e assim, identificando o agressor, responsabilizá-lo pelos efeitos negativos causa-dos. Todavia, apesar do aparato existente e das punições elencadas na legislação, é prática comum que empresários não respeitem as regras a serem seguidas na abertura de um empreendimento, a exemplo da multinacional Cargill que, sem realizar o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), conseguiu implantar na cidade de Santarém-PA, um porto para escoamento de soja, provocando na região sérios danos à sociedade e à natureza.

Toda empresa – seja micro, pequena, média ou grande – desenvolve atividade com impacto na natureza. Uma empresa que pratica a responsabilidade social e ambiental deve estar atenta para saber de que forma pode contribuir para minimizar e, eventualmente, prevenir esses impactos, sen-do que, por força da legislação, de uma vigilância crescente por parte da cidadania e do avanço da responsabilidade social e ambiental, as indústrias têm aprimorado muito os seus sistemas produtivos, adaptando-os aos clamores da natureza, de forma que é perfeitamente possível a concretização de um desenvolvimento sustentável.

Os conhecimentos técnicos e as experiências já obtidas nos mostram a extrema necessi-dade de utilização adequada do meio ambiente, de modo que, com a intensa industrialização dos tempos atuais, as empresas se tornaram fundamentais na preservação dos recursos naturais, essen-

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ciais para o próprio processo produtivo e para a qualidade de vida das atuais e futuras gerações.Assim sendo, o presente trabalho nos mostra que, mesmo tendo o Estado o seu papel

regulador, é a sociedade e especialmente a iniciativa privada que detêm a capacidade de aumentar a prosperidade econômica e ambiental e, para tanto, estar atento aos resultados de experiências anteriores, é um bom começo a seguir.

O conceito de causalidade para a reparação do dano no direito ambientalO ordenamento jurídico pátrio, em matéria ambiental, adota a teoria da responsabilidade

civil objetiva, prevista tanto no art. 14, parágrafo 1o da Lei 6.938/81, quanto no artigo 225 da Cons-tituição Federal. A opção do legislador brasileiro pela teoria objetiva é um importante passo para o sistema de prevenção e repressão dos danos ambientais, pois tende a suprir a necessidade de certos danos, que não seriam reparados pelo critério tradicional da culpa (teoria subjetiva).

A responsabilidade civil objetiva em matéria ambiental (independentemente da existência de culpa) é um mecanismo processual que garante a proteção dos direitos da vítima, no caso dos danos ambientais, e da coletividade. Por isso, aquele que exerce uma atividade potencialmente poluidora ou que implique risco a alguém assume a responsabilidade pelos danos oriundos do risco criado.

O dever de reparar, independentemente da existência da culpa, existe quando verificada a existência de dano atual ou futuro. No dano futuro, embora subsistam dúvidas quanto a sua exten-são, gravidade ou dimensão, as medidas reparatórias já poderão ser implementadas, porque não há duvidas quanto a levisidade da atividade, mas apenas em relação ao momento de sua ocorrência do dano futuro (cf. SILVEIRA, 2004, p. 21).

Assim, na responsabilidade civil objetiva basta a existência do dano e o nexo de causalida-de com a fonte poluidora, porque não há necessidade da demonstração da culpa. Lanfredi (2001) aponta três pressupostos para a responsabilidade civil: ação lesiva, isto é a interferência na esfera de valores de outrem, decorrente de ação ou omissão, o dano, moral ou patrimonial, e o nexo causal, ou relação de causa e efeito entre o dano e a ação do agente (cf. LANFREDI, 2001, p. 89).

O nexo de causalidade relaciona-se com o vínculo entre a conduta ilícita e o dano, ou seja, este deve decorrer diretamente da conduta ilícita praticada pelo indivíduo, sendo, pois consequ-ência única e exclusiva dessa conduta. O nexo causal é elemento necessário para se configurar a responsabilidade civil do agente causador do dano. Todavia, a prova do nexo causal compromete a eficácia da responsabilidade objetiva no direito do ambiente, porque o estabelecimento do liame de causalidade é de grande dificuldade para a vítima interessada na reparação do dano. Tal fato ocorre em função de dois fatores: a) os danos ambientais têm efeitos difusos; b) a relação entre o poluidor e a vítima é, via de regra, indireta e mediata (cf. COLOMBO, 2010).

O dano ambiental apresenta características diferentes do dano tradicional, principalmente porque é considerado bem de uso comum do povo, incorpóreo, imaterial, autônomo e insuscetível de apropriação exclusiva. Trata-se, aqui, de direitos difusos, em que o indivíduo tem o direito de usufruir o bem ambiental e também tem o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Dessa forma, a facilitação da prova do nexo de causalidade, especialmente a inversão do ônus da prova, é bastante apropriada ao dano ambiental, pois transfere-se para o potencial poluidor

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o dever de provar a não-levisidade de seu empreendimento. Ainda, a facilitação da prova do dano ambiental pode ocorrer sem a inversão do ônus probandi, por meio do critério de verossimilhança da prova produzida, que reduz o grau de exigência para o onerado.

Como já mencionado anteriormente, um dos pressupostos para a configuração da respon-sabilidade é a existência do dano, por conseguinte, a obrigação de ressarcir só se concretiza onde há o que reparar. Assim sendo, é possível afirmar que somente após uma apuração ou investigação, será possível conhecer o liame entre causa e efeito, já que os mesmos são elementos distintos, como, aliás, David Hume (2004; 2006) já havia concluído, conforme veremos a seguir.

A teoria de Hume quanto a possibilidade de obtenção do conhecimento em si e do conhecimento de causa

David Hume (1711-1776) foi um filósofo, historiador e ensaísta escocês que se tornou célebre por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. Hume abriu caminho à aplicação do método experimental aos fenômenos mentais. Sua importância no desenvolvimento do pensamen-to contemporâneo é considerável (WIKIPÉDIA, 2010).

Hume estava interessado em saber a respeito do processo de aquisição do conhecimento. Nesse sentido, sua discussão se estabelecia mediante dois aspectos fundamentais: o determinismo e a ação do sujeito como agente do conhecimento. Em linhas gerais, o primeiro aspecto diz respeito à ideia de que todo evento possui uma causa e que essa causa produz um efeito determinado. O segun-do aspecto se refere à autoria do ser humano no processo de suas escolhas (cf. HUME, 2004, p. 61).

Para Hume, os deterministas consideravam que “todos os acontecimentos provêm de uma causa, posto que nada pode haver sem ter uma causa. Sempre que a causa acontece necessariamente acontece o efeito” (MARTINS, 2010, p. 37). Eles estão certos ao atribuírem causas aos eventos, mas estão equivocados ao atribuírem obrigatoriedade entre causa e efeito. Em relação aos que acre-ditam na isenção de causas para as escolhas humanas, Hume (2006, p. 112) entende que eles estão certos ao considerarem a importância da autoria na adoção das responsabilidades, entretanto, estão enganados ao designarem livres os processos de escolhas.

Assim, as ações humanas são compreensíveis na perspectiva da causação em geral, pois somente sob essa ótica é que podemos entender que se não houvesse uniformidade nas ações hu-manas, seria impossível coligir qualquer informação geral sobre a humanidade, e nenhuma experi-ência, por digerida que fosse pela reflexão, serviria para algum propósito (cf. HUME, 2006, p. 769).

Para chegar a essa conclusão de causação em geral, Hume (2004) aborda como se dá a re-lação entre causa e efeito. Nesse sentido, argumenta que a repetição de pares de eventos estabelece nos indivíduos o hábito da expectativa, ou seja, quando um dos eventos do par ocorre, inevitavel-mente, espera-se a ocorrência do outro. Assim, “essa expectativa nos faz inferir a causa inobservada ou efeito inobservado, do evento observado, e erroneamente projetamos essa inferência mental nos eventos” (HUME, 2004, p. 189).

Desse modo, Hume (2004) entende que efeito e causa são eventos distintos. Por essa razão, somente a investigação é que pode estabelecer se causa e efeito estão relacionados. Além disso, ele aponta que o mecanismo de investigação se traduz na inferência e que o costume nos leva a crer

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que o futuro é similar ao passado. Nesse sentido, o pensamento huminiano pressupõe a causação entre pares de eventos como a regularidade com que esses eventos acontecem, mas isso não signi-fica que a relação entre causa e efeito, por ser regular, sempre ocorrerá.

Para o autor, nossas ações possuem causas, essas causas são escolhas e decisões que fazemos antes de nossas ações. Ocorre que as mesmas são originárias de outras causas. Tais causas não são percebidas conscientemente. Todavia, o ser humano tem tão arraigado a concepção de causa e feito que na ausência de uma relação entre um evento e outro considerado um par, não se consegue enxer-gar uma mudança nessa relação, mas somente a ausência de um desses fatores (HUME, 2004, p. 78).

Hume (2004) também procurou mostrar que não é possível nenhum tipo de conhecimen-to de causa e efeito que não seja dado pela experiência. Quando alguém prevê que a água que se predispõe a beber matará sua sede, fundamentar-se-á em fatos que já se deram na sua experiência passada, baseando-se no fato de que quando sempre bebeu água esta lhe saciou a sede, então, proje-ta que a água que está diante dele, semelhante às águas que tomou, terá o mesmo efeito vivido pela experiência de beber água. Nesse caso, tudo isso só fora possível porque tanto as causas (as águas que bebi), como os efeitos (as sedes que essas águas mataram), que se deram na minha experiência, foram acessíveis aos meus sentidos (cf. ABBAGNANO, 2009, p. 47).

Ora, sem o auxílio da experiência sabemos que a razão é capaz de conceber várias possibilidades de causas para um evento (como no caso da caneta que eu largo e imagino que poderia subir ou ficar parada), já que sem seu uso como critério não haveria como preferir um efeito em detrimento de outro; no nível das causas últimas da Metafísica, pode-se conceber uma série de causas possíveis, nenhuma delas contraditórias, porque proposição sobre fatos não pode ser contraditória (cf. ABBAGNANO, 2009, p. 53).

Em outras palavras, todo discurso da Metafísica, que vai além da experiência, é razoável, possível, mas não se tem meios para saber qual o discurso metafísico expressa a verdade a respeito dos poderes secretos e das causas últimas de todas as coisas. Afirma Hume (2004) que a experiência é a origem, fundamento e limite de todo nosso conhecimento, que nela começa e termina. Pode ser a experiência um conjunto de sensações (impressões de sensações), a que se reduzem todas as ideias ou pensamentos da mente, ou, ainda, se versa sobre o passado, o conjunto de percepções habituais que tem sua origem no costume.

Todo e qualquer evento que envolve causas e efeitos exige a experiência como uma con-dição necessária para que se possam fazer inferências, e dizer-se da certeza que o efeito decorrerá de determinada causa. A experiência é um critério para fazer a inferência: se digo que se soltar um corpo no ar, ele cairá, é tão somente porque o fato foi verificável no passado. A razão sem o auxílio da experiência não pode nos dar conhecimento de causas e efeitos, isso porque a experiência nos apresenta constantemente conectados a um efeito e uma causa.

Nesse sentido, pode-se concluir que no Empirismo de Hume (2006), o fato de que nosso conhecimento de causas e efeitos se dá no domínio da experiência, denota certo ceticismo pela impossibilidade do conhecimento dos poderes secretos dos objetos; estamos limitados àquilo que nos é dado na experiência, podemos fazer uma Ciência a partir disso, podemos alcançar aquilo que Hume (2006) chama de “causas gerais”, mas as causas dessas “causas gerais” estariam além de nossa experiência, pois estão no campo da arbitrariedade (cf. HUME, 2006, p. 654).

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O ceticismo de Hume (2006) está em um limite do entendimento humano porque esse não deve falar sobre causa que vai além do conhecimento dado pela experiência. Consiste, num primeiro momento, no alerta do pretenso conhecimento metafísico e na sugestão de que a ciência humana não deve pretender mais do que o entendimento humano é capaz de conhecer.

O tema do limite do entendimento humano é um tema fundamental nesse período do pensamento filosófico, não só em Hume (2004); o tema de saber até onde podemos ir, o que po-demos alcançar com o nosso conhecimento e sobre o que não devemos falar sob pena de falarmos arbitrariamente, falarmos sem nenhuma base.

Desse modo, a razão humana pode conceber várias possibilidades, mas não pode preferir uma em prejuízo da outra, porque não temos esse solo fundamental que é a experiência, sendo que é através desta que conheceremos o nexo entre a causa e o efeito, entre razão e experiência, conforme discorreremos no tópico que se segue.

Estabelecimento do elo entre causa e efeito e entre razão e experiênciaA tese fundamental de Hume (2004) é que a relação entre causa e efeito nunca pode ser co-

nhecida a priori, isto é, com o puro raciocínio, mas apenas por experiência. Ninguém, posto frente a um objeto que para ele seja novo, pode descobrir as suas causas e os seus efeitos, antes de tê-los experimentado e apenas ter raciocinado sobre eles.

Nesse sentido, pondera Russell, que Hume (2004) começa por observar que o poder pelo qual um objeto produz outro não pode ser descoberto pelas ideias dos dois objetos e que, portanto, somente podemos conhecer a causa e o efeito pela experiência, e não pelo raciocínio ou reflexão. A proposição “o que começa tem de ter uma causa”, diz ele, não é uma proposição que tenha certeza intuitiva, como as proposições da lógica, ou “não há nenhum objeto que implique a existência de outro, se considerarmos tais objetos em si mesmos, sem olhar nunca além das idéias que formamos deles” (RUSSELL, 1969, p. 207).

Não temos ideia alguma que não derive de uma impressão. O objeto denominado causa precede o outro, a que chamamos efeito. As ideias são o resultado de uma reflexão das impressões (sensações) recebidas das experiências sensíveis. A imaginação permite-nos associar ideias simples entre si para formar ideias complexas.

A formação da crença causal apresenta importantes semelhanças com alguns casos de as-sociações entre ideias e impressões, mas a ligação entre a causa e o efeito depende unicamente da observação de conjunções repetidas, não de qualquer princípio de associação.

Hume (2004) demonstra que não podemos ter certeza de nenhuma teoria a respeito da realidade. O princípio causal tem origem na experiência. Temos a mente formatada pelo costume e experiência. A causalidade não é objetiva, pois nem sempre as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. A certeza deve ser substituída pela probabilidade.

A ligação causal entre os fenômenos não é algo que possa ser observado. O que observamos é uma sucessão cronológica de fenômenos em que uns são anteriores a outros. Não observamos a relação causal entre os fenômenos. A ligação que estabelecemos, segundo Hume (2004), resulta de um hábito. Acreditamos que a natureza é regida por leis invariáveis de causa-efeito, mas tal não passa de uma ilusão. Embora no passado uma dada sucessão de acontecimentos se possa ter verificado, nada nos garante que no futuro tal venha a acontecer.

Estamos limitados pela experiência e, por consequência tudo aquilo que não possa ser obser-

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vado, não existe. O conhecimento da natureza deve fundar-se exclusivamente em impressões que dela temos. O homem não pode conhecer ou saber nada do universo. Só conhece as suas próprias impres-sões ou ideias e as relações que estabelece entre elas por hábito. Tudo o que o homem sabe, por discurso racional, acerca do universo se deve única e exclusivamente à crença, que é um sentimento não racional.

A razão nunca pode nos mostrar a conexão de um objeto com outro, embora auxiliada pela experiência e pela observação de sua conjunção constante em todos os casos passados. Portanto, quando a mente passa da ideia ou impressão de um objeto para a crença ou ideia de outro não é determinada pela razão, mas por certos princípios que associam as ideias desses objetos e os une na imaginação. A inferência depende, pois, unicamente da união de ideias.

O sentimento de crença não passa de uma concepção mais intensa e estável do que a que acompanha as meras ficções da imaginação, e que essa maneira de conceber surge da conjunção costumeira do objeto com algo presente à memória ou sentidos. A previsão dos efeitos baseia-se no hábito (cf. HUME, 2004, p. 50).

Não cabe à razão estabelecer crenças, nem tem ela o poder de aniquilá-las completamente, mas pode e deve assumir um papel de controle das crenças, evitando que se estabeleçam com base em princípios variáveis, fracos e irregulares, como os que se fazem presentes no entusiasmo poético e da loucura (HUME, 2004, p. 55).

De tudo isto resulta que, todos os raciocínios que dizem respeito à causa e ao efeito estão fun-dados na experiência e ainda aqueles que derivam da experiência estão fundados na suposição de que o curso da natureza continuará a ser uniformemente o mesmo. Conclui-se que causas semelhantes, em circunstâncias semelhantes, produzirão sempre efeitos semelhantes (cf. NICOLA, 2005, p. 63).

Aplicação dos conceitos de experiência, causa e efeito em Direito Ambiental, inserindo-os em um estudo de caso

O conhecimento adquirido pela experiência pode ser amplamente aplicado no Direito ambiental, especialmente no que tange à experiência resultante de atos repetidos, de hábitos, que acabam por resultar em uma consequência previsível, porque a mente humana, através das experi-ências anteriores, já esta ciente do provável resultado que está por vir.

Como exemplo, é certo que em Direito Ambiental, para a implantação de um empreen-dimento que possa resultar dano à natureza, necessário se faz um amplo Estudo de Impacto Am-biental (EIA). O documento, que prevê a viabilidade socioambiental do projeto, é regra legal básica para que um empreendimento de grande porte saia do papel.

Experiências anteriores nos mostram que sem esse estudo, a indústria ou empreendimento a ser instalado poderá causar sérios danos à natureza, sem, entretanto, devolver ao meio ambiente o estado anterior, já que o dano ambiental é de difícil reversão. Todavia, apesar de estar ciente acerca da imprescindibilidade desse estudo e a despeito da ausência do documento, a empresa multinacio-nal Cargill conseguiu implantar seu porto na cidade de Santarém, oeste do Pará, causando, como era de se esperar, sérios e irreversíveis danos à natureza.

A Cargill é uma empresa que produz e comercializa internacionalmente produtos e servi-ços alimentícios, agrícolas, financeiros e industriais. Sua sede fica em Mineápolis (MN), nos Estados

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Unidos, e atua em 66 países. A Cargill está no Brasil desde 1965 e suas origens estão no campo, em atividades agrícolas. Atualmente, está entre as maiores indústrias de alimentos e uma das 15 maiores empresas do país, sendo também a principal exportadora de soja do Brasil e a maior processadora de cacau da América Latina. Sediada em São Paulo (SP), a operação brasileira possui unidades industriais, armazéns, escritórios e terminais portuários em cerca de 120 municípios, onde trabalham aproxima-damente seis mil funcionários. No Pará, a Cargill possui um terminal, no município de Santarém, que opera há sete anos e movimenta mais de um milhão de toneladas de grãos (cf. PAJU, 2011).

Desde sua instalação, o porto da Cargill teve enormes impactos diretos e indiretos na região. Dos 53 mil hectares de desmatamento entre o período de 2003 e 2004, a maior parte destinou-se ao plantio de grãos, configurando o porto da multinacional como um dos motores do desmatamento na região, com impactos ambientais continuados (cf. RIOS VIVOS, 2010).

Em 1999, o Ministério Público Federal de Santarém ajuizou ação para exigir que a Com-panhia Docas do Pará (CDP), realizasse os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) antes de abrir o processo de licitação para a construção de novos terminais. A CDP contestou a decisão do Minis-tério Público e conseguiu uma liminar para licitar as áreas de instalação do terminal graneleiro. A única empresa que compareceu à licitação foi a Cargill.

A destruição de uma das praias mais populares de Santarém, chamada Vera Paz, ocorrida em 1999, quando a Cargill chegou à cidade, minou a geração de renda de cerca de 20 famílias pobres, que tinham baiúcas de vender churrasquinho e bebidas na praia; a ação também impossibi-litou que a população pudesse usufruir daquela paisagem natural, já que dispensava transporte para deslocamento, uma vez que se localizava na frente da cidade; por fim, a empresa aterrou um sítio arqueológico, fato comprovado pela arqueóloga Ana Roosevelt (cf. LAREL, 2010).

Este foi o primeiro grave problema na época, com a conivência do governo do Estado do Pará e das Docas do Pará, um departamento federal, que estava satisfeito em arrendar uma área do seu porto, e o Estado do Pará, que não se sabe quanto ganhou neste jogo, mas que deu uma “licen-ça” provisória que é ilegal. Com essa “licença”, a Cargill construiu seu monstro do Lago Ness, isto é, o monstro do Rio Tapajós. O porto é uma agressão a uma cidade preparada pela natureza para ser um ponto turístico. O rio Tapajós foi invadido, privatizando não apenas a praia, mas a enseada do Rio. Se algum desfavorecido colocasse algum bote ali naquela enseada, imediatamente viria um guarda da Cargill informando que tudo estava privatizado.

Em novembro de 2003, as instalações da Cargill já estavam operando. Na mesma época, a liminar utilizada como base legal para a construção do terminal no porto de Santarém foi suspensa. Uma audiência pública com cerca de 30 ONGs locais incentivaram o Procurador da República a usar uma ferramenta legal chamada Ação de Atentado contra a multinacional americana, já que a Cargill não realizou os estudos de impacto como deveria e o porto já estava construído, a solução seria demolir as instalações da empresa.

De 1999, quando a Cargill chegou a Santarém, até o ano de 2007, os impactos ambientais se avoluma-ram. Na época, o Ministério Público Federal moveu processo contra o Porto para não construir o porto sem o EIA-RIMA. A Cargill construiu à revelia o porto. Em 2003, começou a funcionar e desde aquele ano já exportou mais de duas milhões de toneladas de soja pelo porto à revelia da lei e da Constituição (cf. LAREL, 2010).

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Tal como era de se prever, e como Hume já afirmara, hoje, os impactos ambientais não estão mais restritos ao porto, ao local, atingem toda área de influência da Cargill, polo produtor de soja, até o Mato Grosso, região de onde vem a soja. 95% da soja da Cargill no Porto de Santarém provêm de Mato Grosso, e 5%, até agora, de Santarém, o que parece mínimo, no entanto para nossa região de Floresta é um impacto tremendo. Só em 2007, foram 17 mil hectares plantados em Santarém (cf. LAREL, 2010).

Com o estímulo da multinacional também vieram os sojeiros. O primeiro passo dos sojeiros ao chegar a Santarém foi comprar terra da produção familiar, ou seja, lotes que tinham uma ocupação tradicional. Em 2000, 2001, lotes foram vendidos por R$ 10 mil, já os últimos chegaram a R$ 52 mil. Outro resultado também esperado foi a penúria do campo. Grande parte dos produtores que venderam suas terras foram para a periferia, pois com somente dois hectares, o produtor fica sem o seu instru-mento básico de trabalho, que é a terra, crescendo o êxodo rural. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária proliferou os assentamentos, que inclusive estão sob suspeita (cf. LAREL, 2010).

Com a perda do seu instrumento de trabalho o produtor, que saiu do campo para a periferia, começa a passar necessidade, pois ele não é pedreiro, nem carpinteiro. Este é o impacto social mais grave da soja que, nessa região, não se conhecia antes de 2001. O que se conhecia de soja era o que se comprava no supermercado. As experiências com a plantação de soja sinalizam que ela vai durar cerca de dez anos em Santarém, posto que a terra não é propícia à larga escala de agricultura. O húmus é pequeno. Claro que a soja tem uma virtude, ela é uma oleaginosa, oxigena a terra. Mas se o produtor planta em larga escala durante um, dois, cinco anos, o que vai acontecer? O produtor oxigena a terra, tirando nutrientes, e em contrapartida, utiliza em demasia nutrientes artificiais. E junto com os ferti-lizantes químicos ou minerais, fosfato e outros, que é um mal que acompanha a grande escala, aplica inseticidas e herbicidas, que envenenam a terra, que é outro problema grave da soja nessa região. Então, quando dizem que apenas 5% da soja da Cargill vem de Santarém para os habitantes da cidade, são 17 mil hectares plantados, um grave impacto ambiental. É o caso da borrifação com agrotóxico. Nessa área chove muito, lavando a terra, todavia, a água acaba por envenenar os igarapés, os rios, que é outro grave impacto na nessa região.

As operações da empresa no local foram paralisadas e iniciou-se nova batalha judicial. No início de 2004, a Cargill conseguiu nova liminar para voltar a funcionar até que o mérito da ação do MP fosse analisado. Nesse período, o porto operou normalmente com base na liminar. Foram sete anos de discussão judicial sobre a pertinência ou não de elaboração do EIA, um ano e meio para levantamento de dados e elaboração do estudo, dez meses para avaliação pela SEMA e outros oito meses para complementação.

Em 24 de março de 2007, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), com o apoio da Polícia Federal, fechou o terminal graneleiro da multinacional norte-americana Cargill, em Santarém. A ação é resultado do pedido do Ministério Público Federal (MPF) do Pará de “fiscalização e paralisação imediata das atividades do porto, além de autuação da empresa por operação irregular”, sendo confirmada no final do dia pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região (REPORTER BRASIL, 2010).

A decisão da Justiça de Santarém foi elogiada, pois além de determinar a realização do estudo, também condenou a Cargill e o Estado do Pará, responsável pelo licenciamento do porto, a recuperar

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qualquer dano ambiental que for comprovado na área.Em 2010, o EIA ficou pronto e foi discutido em audiência pública em julho do mesmo ano.

Análise técnica feita pelo MP concluiu que o problema está longe de ser resolvido. O EIA não aborda as verdadeiras soluções e, principalmente, não aborda com profundidade as mitigações que devem diminuir os impactos locais do projeto, que não são poucos. Com capacidade para 60 mil toneladas de grãos, o terminal provocou verdadeira corrida por território para o plantio de soja.

Terra virou uma mercadoria caríssima. Os sojicultores chegaram, ofereciam dinheiro e com-pravam as terras, relatou Raimundo de Lima Mesquita, presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do município (STTR). Segundo Raimundo, com o terminal vieram conflitos fundiários. “Teve grilagem, intimidações, ameaças de morte, redução da população nas comunidades rurais e até a extinção de algumas delas” (D24AM, 2010).

Dados da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Finanças (Sepof) mostram que, entre 2000 e 2007, enquanto a população urbana de Santarém cresceu 30%, a rural caiu em mais de 58%, aumentando a concentração de terras e inchando a periferia da cidade. A produção local também mudou com a monocultura varrendo o município. Arroz, feijão, milho e outras culturas cultivadas por agricultores familiares deram lugar à soja (D24AM, 2010).

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na safra de 1998/1999, o grão não ocupava mais que 1,6 mil hectare no estado. Foi o terminal ficar pronto e a safra 2003/2004 já tomava mais de 35 mil hectares. “Produzíamos bem. Agora, onde colhíamos 50 sacos de arroz, colhemos oito, cinco. Não dá para competir com quem trabalha com tecnologia”, afirma o presidente do STTR (D24AM, 2010).

Com o terminal da Cargill em operação e a expansão da soja pela região, o desmatamento também aumentou. Somente em 2006, com a Moratória da Soja, as derrubadas foram contidas. O compromisso foi assumido pela Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), e As-sociação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), além de suas associadas, dentre elas a Cargill.

Pelo acordo, nenhuma soja plantada em área desmatada depois dessa data poderia ser comercializada. Mas, apesar de a devastação ter diminuído, os impactos continuam sem soluções. Enquanto os pequenos agricultores ainda buscam se recuperar do baque da soja, a Cargill anuncia seu plano de expandir o terminal com outro armazém de 30 mil toneladas de capacidade. O maior produtor de soja do Brasil, Eraí Maggi Scheffer, anunciou que em 2011 abriria um novo terminal de grãos no Porto de Santarém com a promessa de escoar três milhões de toneladas por ano.

Raquel Carvalho, da Campanha da Amazônia do Greenpeace, diz que a hora é de alerta. “O terminal da Cargill é um marco da expansão do agronegócio na Amazônia e mostra como a falta de mecanismos de governança pode ter impactos que, ao contrário dos lucros, não são absor-vidos pelos empreendedores, mas por toda a sociedade” (D24AM, 2010).

“Companheiros de roçado deixaram suas terras, igarapés secaram e foram envenenados, a grilagem correu solta e a produção caiu. A Cargill chegou de forma desordenada, arbitrária, como se aqui fosse terra de ninguém”, declarou Raimundo Mesquita (D24AM, 2010). Tendo em vista o problema socioambiental exposto, consideramos que a paralisação das atividades do porto da Car-gill deveria ser mantida, para que assim pudesse ser coroada a luta de muitos anos das comunidades locais de Santarém e daqueles que combatem a expansão da soja na Amazônia. A soja e outros

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produtos do agronegócio são vetores fundamentais do desmatamento que ameaça a biodiversidade e provoca mudanças climáticas.

Em todo caso, que o porto graneleiro e todos os outros que, porventura, possam querer se instalar na região, que primeiro seja consultada a sociedade organizada e todos os cuidados com o meio ambiente e a segurança da sociedade regional sejam respeitados, evitando-se assim, quaisquer danos que já não possam ser solucionados.

Considerações finaisA preocupação com a forma com que se gera o impacto ambiental representa um dos

itens fundamentais para a preservação do meio ambiente. Não só os indivíduos isolados, mais os empresários principalmente, devem ter em mente a prática de responsabilidade ambiental, voltada para a sustentabilidade do próprio negócio, da comunidade onde atua, do seu país e do planeta.

David Hume (2006) nos mostra a importância que nos trazem as experiências, tendo em vista que estas nos permitem prever certas consequências já conhecidas em casos similares. Daí se dizer que muitos danos ambientais são perfeitamente previsíveis, e que, portanto, poderiam ser evitados ou amenizados.

Desse modo, não seria preciso aguardar que um empreendimento promova dano ambiental para que uma atitude seja tomada. Nesse sentido, o conceito de responsabilidade social empresarial, está defini-tivamente relacionado à preocupação ética das empresas com o meio ambiente, com os recursos naturais eventualmente impactados por suas atividades. Uma empresa responsável deve estar atenta para seus im-pactos no meio ambiente local, regional e global. Em suma, a preocupação com a dimensão ambiental deve integrar a postura ética das empresas, condição essencial para o exercício da sustentabilidade.

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Artigo Recebido em: junho/2011Artigo aprovado para publicação em: julho/2011

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AS ALTERAÇÕES SOFRIDAS PELO MEIO AMBIENTE FACE À EVOLU-ÇÃO DA ECONOMIA E DA SOCIEDADE: SEUS REFLEXOS NO PLANO internaCional/ THE CHANGES UNDERGONE BY THE ENVIRON-MENT GIVEN THE CHANGING ECONOMY AND SOCIETY: ITS IMPACT ON THE INTERNATIONAL

Daniela Braga Paiano8

Maurem Rocha9

Maria de Fátima Ribeiro10

Sumário: A evolução da sociedade como marco de uma nova relação com o ambiente; As caracte-rísticas da sociedade contemporânea; A internacionalização do meio ambiente; Referências.

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a evolução da sociedade na seara econômica e os reflexos por ela produzidos no campo ambiental em nível internacional, apresentados em três par-tes. Na primeira delas, discorrer-se-á sobre esta evolução e sua relação com o ambiente, analisando, de forma breve, como o processo de urbanização, o surgimento do capitalismo e da revolução industrial afetaram a relação homem x meio ambiente. Posteriormente, serão investigadas as carac-terísticas da sociedade contemporânea marcadas pelo fenômeno da globalização, do imediatismo bem como da relativização da soberania e diminuição do Estado. Ao final, chega-se a conclusão de que a questão ambiental é algo que ultrapassa os limites internos de um país, sendo necessária a cooperação entre Estados para que se possa assegurar um ambiente habitável às futuras gerações.

Palavras-chave: meio ambiente; economia; sociedade.

Abstract: This work aims to analyze the evolution of society in the economic area and the effects brought by it in the environmental field at the international level, having been divided into three parts. In the first, will talk about this development and its relationship with the environment, analyzing, brie-fly, as the process of urbanization, the emergence of capitalism and the industrial revolution affected the relationship between man x environment. We will then verified the characteristics of contempo-rary society marked by the phenomenon of globalization, the immediacy and the relativization of so-vereignty and reduction of the state. Finally, we come to the conclusion that the environmental issue

8 Mestre em Direito pela UNIMAR. Professora no Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) e Faculdades Catuaí.

9 Mestre pela UNISINOS, Professora no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

10 Doutora em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Curso de Mestrado em Direito da Universidade de Marília (UNIMAR).

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is something that goes beyond the internal boundaries of a country, requiring cooperation between States so that we can ensure a habitable environment for future generations.

Key-words: environmental; economic area; society.

A evolução da sociedade como marco de uma nova relação com o ambienteNa transição do mundo medieval para os ‘tempos modernos’, o desenvolvimento da ciên-

cia, da razão e os enfrentamentos no espaço da religião conduziram a discussões que acabaram por subverter o monopólio da Igreja Católica, o mercado e todos os elementos que o constituíram. Em função disso, foi provocada uma modificação da relação do homem com tudo o que o cercava, es-pecialmente o ambiente, já que esse se apresentava como um objeto natural à conquista da vontade humana, sedenta por reconstruir espaços e sentidos.

Foi assim que o ‘mundo natural’ terminou sendo colocado não mais como um espaço de conservação ou compartilhamento, mas como cenário em que a ação humana, manifestada pelas necessidades materiais da modernidade, depara-se com toda uma geração que não mantém mais com o ambiente qualquer relação de uniformidade, ou mesmo respeito, mas apenas utiliza-se dele como cenário da vontade de conquista, transformação pela destruição.

Ao longo dos séculos XVII e XVIII, em toda a Europa Ocidental, pôde-se perceber que essa avidez – convertida em necessidades do mercado – devastou florestas e campos com uma voracidade que, em poucas décadas, alterou a paisagem do continente europeu, mais fortemente na Inglaterra, onde se desenvolvia um novo modo de produção.

As consequências sociais e ambientais acabaram sendo mitigadas pela ciência que, à época, justificava a destruição de todo esse universo com afirmações que buscavam criar o mito de uma capacidade ilimitada de recursos naturais ou mesmo de uma capacidade desconhecida da natureza em se recuperar naturalmente das agressões sofridas pelas exigências desenfreadas da indústria. Neste sentido, destaca Peter Burke (1989) que, no imaginário europeu do século XVIII, surgiu a crença de que a natureza detinha em si uma enorme capacidade de renovação e recuperação.

Agora, com a emergência do mercado, da urbanização e do capitalismo, o tempo humano se sobrepôs ao tempo da natureza e, em se tornando senhor, passou a justificar no imaginário uma alteridade fundada no mito de que o ambiente é domínio do homem, e como seu ‘bem’, não tem um valor subjetivo, mas apenas material.

Curiosamente, ao longo das lutas trabalhistas desenvolvidas pelos sindicatos ao longo do século XIX, e que acabaram por marcar esse período conhecido como segunda revolução indus-trial, pode-se observar, entre as muitas reivindicações, uma crítica ainda incipiente ao movimento industrial no tocante à destruição da natureza, somente, como reflexo das condições de vida dos trabalhadores nos bairros operários, abandonados pelo Estado quanto ao desenvolvimento das mí-nimas condições de infra-estrutura. Porém, igualmente neste período as preocupações não se vol-tam ao ambiente como sujeito, como parte de uma relação, mas como instrumento de sobrevivên-cia que, naquele momento, era alvo de inúmeros ataques e já mostrava sinais bastante evidentes de suas alterações, de sua derrota. Os olhares, portanto, não se voltavam ao natural, mas ao humano.

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Inegavelmente, o século XX representou uma transformação no paradigma tradicional, sobretudo em relação ao espaço social, ao direito e às questões ambientais. Neste contexto, a crise não pode ser compreendida apenas como efeito das duas grandes guerras, bem como da revolução tecnológica e comunicacional que ambas acabaram por significar, mas toda uma epistemologia, marcada pela exatidão da verdade e da certeza que já na década de 1960 encontrava o seu contra-ponto na emergência da pós-modernidade. Essa é entendida por Lyotard (2002), como uma crise de conceitos, ou nas palavras de Jameson (2005) como uma quebra no método cartesiano, ou mesmo como reafirma Morin (2002) como a emergência de uma complexidade que trouxe uma possibilidade de incerteza para o imaginário social, abrindo espaços, fundamentalmente no discur-so jurídico, ao direito ambiental. Também, essa emergência da complexidade, do risco que permite ao direito reconhecer a existência de direitos de terceira e quarta gerações, como o direito difuso do espaço social marcado por essa indeterminação que se traduz no direito de todos, igualmente, a proteção à natureza.

As características da sociedade contemporâneaPode-se dizer que a sociedade atual se encontra em tempo de rupturas, de indefinições, de

uma nova percepção daquilo que se aceita como realidade. No século XIX, vivia-se numa moderni-dade dominada por um imaginário industrial, caracterizado pela aparência de estabilidade, rigidez, solidez, estagnação. Nela, aquilo que se aceitava como padrões morais e éticos eram miticamente obedecidos porque inquestionáveis.

No século XX, a sociedade passa da era industrial para uma modernidade dinâmica, intensa e virtual, emergindo dos processos de modernização autônomos, que, no consenso ou na certeza da inafetabilidade dos efeitos e riscos gerados por suas ações, ignoraram os efeitos dela advindos. É esta, agora, uma sociedade de risco. Risco proveniente das escolhas perpetradas enquanto socie-dade industrial.

A modernização é dissolvida nessa modernidade complexa. O que antes, de uma maneira geral, se acreditava manter estável em uma sociedade de classes, toma a forma de novos fenômenos sociais. A complexidade implica afrontar todas essas relações, enfrentando as verdades caseiras, as certezas confortáveis e, por vezes, até mesmo os ideais mais caros e aparentemente generosos (cf. SILVA, 2002, p. 35).

Fala-se hoje em uma nova era que já foi chamada de pós-modernidade, modernidade lí-quida, transmodernidade, modernidade reflexiva, sociedade de risco. Enfim, atribui-se muitas de-nominações para o mesmo fenômeno: uma época de transição. Bauman (1999, p. 67), por sua vez, prefere falar em globalização. Refere-se a ela como um termo da moda, mas que transmite toda a insegurança e a indeterminação da nossa realidade, desse fenômeno em que se vive na atualidade. Para ele, a globalização está na ordem do dia. É o destino irremediável do mundo, um processo irreversível.

Etimologicamente, globalização significa “processo de integração entre as economias e sociedades dos vários países, especialmente no que se refere à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros, e à difusão de informações” (FERREIRA, 2000, p. 348). A acepção do

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termo globalização é tão ampla quanto seu próprio sentido; engloba desde o campo econômico até o social e cultural, de forma que se pode asseverar existir diversas espécies de globalização. No que tange ao campo econômico, esta globalização refere-se à quebra de barreiras econômicas, implicando no livre comércio entre as nações. De modo geral, seria o mesmo afirmar que o Estado soberano, detentor de supremacia interna e independência externa, não mais detém esse poder de forma tão absoluta quanto se defendia, estando sua soberania cada vez menor, à medida que esse país mostre dependência econômica. Conforme explicam Ferrer e Silva (2003, p. 118):

[...] o chamado processo de globalização (grifo do original), como foi salientado, se configura como uma etapa determinada do pro-cesso de acumulação do capital, que se caracteriza pela mundiali-zação do capital financeiro, cuja dimensão não se restringe apenas ao aspecto econômico.

No entendimento de Ferreira (2004, p. 39),

globalização é a metáfora de nossos dias que exprime condição econômica e cultural. Promove a hegemonia do capitalismo e de percepções neoliberais, anunciando uma escatologia que consagra novos moldes de soberania, de relações humanas e idiossincrasias.

Na verdade, trata-se de uma palavra que não transmite respostas, mas aponta inseguranças, acontecimentos inesperados, imprevistos no que concerne aos resultados, acontecimentos que se tornam alheios à intenção do homem. Essa desordem causada pela globalização favorece o desen-volvimento da nova forma de economia e sociedade, na qual os Estados fracos são restringidos ao papel de guardadores de uma ordem mínima, que permite apenas o desenvolvimento de empresas globais. Para que o poder tenha a liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de fronteiras e barrica-das. Qualquer laço denso ou enraizado é empecilho e deve ser eliminado: este é o pressuposto dos poderes globais, cuja fluidez é a fonte de energia e garantia de sucesso (cf. BAUMAN, 2001, p. 22).

Um dos efeitos da globalização foi diminuir o poder do Estado. Houve uma ruptura entre o Estado e cidadão. Segundo Bauman (2004, p. 29), “tem-se a impressão de que o Estado deixou de preocupar-se com as pessoas e de que os indivíduos evitam qualquer contato não obrigatório com o poder.” Gerou-se uma crise no Estado, de governabilidade. O capitalismo trouxe consigo a ideia de que o Estado deve ser o menos intervencionista possível (Estado-mínimo), razão pela qual ele deixa, cada vez mais, de cumprir suas obrigações para com os cidadãos, acarretando um enxugamento deste Estado. Incentiva-se a privatização, abre-se espaço para as grandes corporações internacionais e liberação unilateral do comércio.

Nessa globalização, tem-se a construção de uma sociedade voltada para o consumo. Uma sociedade líquida em que o tempo é que importa. Os fatos nela são instantâneos e associados com leveza pela própria mobilidade, levando muitos a falarem em pós-modernidade, face a velocidade

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com que as informações transformam hoje as relações que nela transitam.Aos efeitos que surgem dessas novas escolhas que se apresentam juntamente com essa rea-

lidade posta, pode ser denominado de risco. É assim definido porque deriva de escolhas. Qualquer tipo de decisão traz consigo o risco, que lhe é inerente. Isso porque, quanto maior o conhecimento, maior o número de possibilidades de ação. E, consequentemente, maior é o risco e a responsabili-dade por essas escolhas.

Segundo Luhmann (1996), não existe conduta isenta de risco. Pode-se dizer que as consequên-cias hoje vistas nesta sociedade de risco têm origem nas (in)certezas produzidas pela sociedade industrial. Isto porque nesse período ocorre a convergência de ideias para o progresso a qualquer preço e a certeza da inesgotabilidade dos bens naturais à disposição, através da abstração dos riscos ecológicos. Beriain (1996, p. 24) ressalta que o risco aparece como uma categoria chave orientada ecologicamente:

Así como la sociedad industrial de clases se centraba em la pro-ducción y distribución de la ‘riquesa’ de los recursos, la sociedad del riesgo se estructura em torno a la producción, distribución y división de los riesgos que conlleva la modernización industrial.

O que antigamente as sociedades tradicionais atribuíam à fortuna, a uma vontade me-tassocial divina ou ao destino, as sociedades hoje ditas modernas atribuem ao risco. Risco esse oriundo das próprias decisões e por isso não perigo, já que o perigo advém de forças externas ao próprio controle e afetam a terceiros, indivíduos que sequer participaram da escolha realizada. (cf. BERIAIN, 1996, p. 18).

No plano ambiental, a questão se reflete no campo de que estas decisões devem ser to-madas de forma que se possa acarretar um menor prejuízo ao meio ambiente, tais como “superar da melhor forma possível o conjunto de imprevisões, incertezas e indefinições que tipificam os processos em que decisões e escolhas devem ser realizadas para a concretização dos objetivos de proteção do ambiente nas sociedades de risco” (LEITE; AYALA, 2004, p. 128).

Neste sentido, as ameaças ecológicas podem ser vislumbradas como resultados do de-senvolvimento socialmente organizado bem como do avanço industrial em larga escala (cf. GID-DENS, 1991, p. 112); assim, o advento da modernidade introduziu esse perfil de risco característico da vida social moderna.

A internacionalização do meio ambienteO direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental, tendo

em vista que o sentido de fundamental é algo básico que deve existir, rege-se por sua própria necessidade, e conforme entendido por Lassale (1998, p. 25) parte “de um desdobramento da proteção do direito à vida, pois a salvaguarda das condições ambientais adequadas à vida depende logicamente da proteção dos valores ambientais” (GOMES, 1999, p. 172). Se esse direito essencial não for respeitado, a própria vida se põe em risco – lembrando que os reflexos de mau uso do meio ambiente já vêm sendo sentidos pela humanidade.

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Conforme se verifica da evolução mencionada, esse direitos passam de um caráter individua-lista para o sentido de coletivo, no qual, pode-se afirmar que existem bens os quais, devido ao seu inte-resse, não pertencem apenas a uma pessoa em particular, mas sim a várias, tal como o meio ambiente.

Este fato ocorre como consequência dos fatos marcantes na sociedade pós-moderna: rela-tivização da soberania, fatos que ultrapassam os limites territoriais, surgimento de blocos econômi-cos, efeitos da incessante busca pela modernização e industrialização, ou seja, fatos cuja relevância tornou-se tamanha que ultrapassaram os limites de controle do homem e têm uma enorme dimen-são na atualidade. São questões que atormentam o homem hoje e trazem uma preocupação de nível global tamanha sua importância.

Nos dias atuais, muitas pessoas têm perdido seus lares, famílias e/ou pertences em decor-rência de tragédias ambientais. Por isso, além da guerra, os desastres ecológicos têm dizimado vidas, gerando o deslocamento em massa de pessoas de determinados lugares. Ou mesmo se lá permane-cem, devem recomeçar do zero, pois tudo que tinham foi destruído. O exposto é confirmado pelo entendimento de Robert e Séguin (2000, p. 42), que percebem na

preservação do ambiente […] um interesse difuso. Cabe ao Direi-to proteger os interesses plurindividuais que superam as noções tradicionais de direitos individuais homogêneos. Interesse difuso é o direito transindividual (grifo do original), de natureza indivisí-vel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas sem qualquer distinção específica, semelhante à tutela prevista no art. 81, da Lei nº 8.078, de 01.09.1990, que institui o Código de Defesa do Consumidor.

Ao discorrer sobre a evolução dos direitos do homem, Bobbio (1992) explica que, em um primeiro momento, ocorre a proteção dos direitos de liberdade para os direitos sociais e políticos, ao passo que, em um segundo momento, a titularidade de direitos deixa de ser de cunho individual e passa a ter grupos de pessoas como seus titulares, levando-se em conta as especificidades do ser humano, e até outros grupos que não o homem, incluindo o meio ambiente. Ele afirma ainda que emerge “nos movimentos ecológicos [...] quase que um direito da natureza a ser respeitada ou não explorada, onde as palavras ‘respeito’ e ‘exploração’ são exatamente as mesmas usadas tradicional-mente na definição e justificação dos direitos do homem”. (BOBBIO, 1992, p. 69).

A preocupação hoje gira em torno dos limites ecológicos relacionados aos direitos humanos. Como já alertado por Bosselmann (2001, p. 38), a “liberdade individual não é apenas determinada por um contexto social – a dimensão social dos direitos humanos-, mas também por um contexto ecológico.” Ele mostrou que os séculos XVIII, XIX e XX foram marcados pelo princípio da liberda-de, igualdade e fraternidade, respectivamente. O século XXI, propõe o autor, deveria ser o século da consciência ecológica, sendo esta a base comum para os direitos humanos e o meio ambiente.

Pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico industrial trouxe inúmeros avanços no campo tecnológico, no setor de emprego, no faturamento das indústrias, promoveu melhorias para

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o setor industrial no que se refere às facilidades trazidas pela industrialização. Enfim, esse modelo produtivo veio para facilitar o cotidiano do homem em seu lar, seu emprego e em seus rendimen-tos. A par disto, gerou também as devidas consequências negativas, tais como desemprego, confli-tos entre nações, e o que se refere a este trabalho, uma grande perda ao meio ambiente.

Essa melhora na qualidade de vida em determinados lugares e para determinadas pessoas, desencadeado pela globalização, trouxe o desequilíbrio ecológico do meio ambiente. Visto sua proteção ser de interesse difuso e coletivo, ela não pode ser limitada aos contornos da soberania. O dano ambiental causado em um lugar específico trará consequências mundiais e não apenas naquele lugar de origem. Desta forma, é necessário que haja uma cooperação mútua entre os di-versos entes soberanos para que se possa, de forma eficaz, buscar soluções visando evitar o dano ecológico e punição a quem os causar. “Trata-se, na verdade, de optar por um desenvolvimento econômico qualitativo, único, capaz de propiciar uma real elevação da qualidade de vida e do bem--estar social” (PRADO, 2005, p. 65).

Neste sentido, entende Kiss (2002, p. 41) que:

Nenhum país, nenhum continente no mundo é capaz de resol-ver sozinho o problema da camada de ozônio, da alteração do clima global ou do empobrecimento dos nossos recursos gené-ticos. É doravante indispensável a cooperação da Terra inteira. Ora, a Terra compreende também e sobretudo as populações que vivem nos países não industrializados, as quais são pobres e que-rem desenvolver-se. Assim, o problema do desenvolvimento nas suas relações com o ambiente pôs-se em toda a sua amplitude e de modo definitivo.

À medida que essa conscientização mundial de se preservar o meio ambiente foi aumentando, passou-se também a buscar sua inserção no plano constitucional. É necessário que as nações reconhe-çam dentro dos limites de sua soberania e coloquem-se dispostas a essa meta: desenvolvimento eco-nômico com o devido respeito ao meio ambiente e não seu desenvolvimento a todo e qualquer preço.

Um dos grandes problemas trazidos pelo desenvolvimento foi o aquecimento da tempera-tura na Terra, aumentando a emissão dos gases dióxido de carbono e metano, ocasionando o efeito estufa, que tem gerado instabilidade climática e acarretado diversos desastres. Como forma de so-lução para este problema, várias alternativas têm sido buscadas para alcançar a meta acima exposta. Uma das alternativas vislumbradas foi o compromisso do Protocolo de Kyoto, firmado em 1997, na cidade de Kyoto no Japão, o qual entrou em vigor em 16 de fevereiro de 2005.

Esse Protocolo visa reduzir as taxas de emissão dos gases causadores do efeito estufa na Terra, fenômeno que acarreta o aumento da temperatura e as mudanças climáticas repentinas que se tem enfrentado na atualidade. Veio para fazer valer as medidas previstas na Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) com meta de redução já determinada em 5,2 % da emissão dos gases causadores do efeito estufa.

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Para se estabelecer metas de redução, deve levar-se em conta o grau de desenvolvimento dos países integrantes, devendo recair sobre os já desenvolvidos uma maior exigência, tanto para redução quanto para ajuda financeira e tecnológica aos países em desenvolvimento. Desta forma,

cada país recebeu uma meta de redução dos níveis de poluição diferente, devendo, contudo, ser mantida a meta global combi-nada. Para alcançar os seus objetivos, os membros do Protocolo poderiam reduzir a emissão de GEE (gases de efeito estufa – grifo desta autora) em seu território ou negociar com outros países os mecanismos flexíveis, que são o comércio de certificados de car-bono, o mecanismo de desenvolvimento limpo e a implementação conjunta (CALSING, 2005, p. 75).

Desta forma, foram estabelecidos prazos e metas diferenciadas aos países para que se al-cance seus objetivos, sendo usados relatórios anuais para esta verificação, sofrendo punições o Es-tado que não obedecer a essas regras. As sanções a serem sofridas pelos países que não alcançarem suas metas incluem ate suspensão quanto ao aumento da cota de emissão a ser reduzida. Elas não são de ordem financeira, ou mesmo de restrições comerciais, uma vez que estas medidas inibiriam os países a integrarem o Protocolo.

Algo inovador surgido com o Protocolo foi a comercialização de créditos de carbono, possibilitando que os países que não consigam atingir sua meta, possam comprar daqueles que já conseguiram alcançá-la. Esses créditos de carbono “são certificados emitidos por agências de proteção ambiental para projetos de empresas que possam contribuir para a redução de emissões, incluindo desde reflorestamentos até a substituição de combustíveis fósseis por energias limpas, como o biodiesel” (CALSING, 2005, p. 118).

Como este Protocolo deve seguir a vontade dos países que o integram, a qual deverá ser uníssona, reside aí a grande relutância por parte dos Estados Unidos da América do Norte e de outros países para compô-lo. Eles não querem se submeter a uma vontade que seja diferente da sua e não querem assumir nenhum compromisso de redução.

Mesmo com a relutância de alguns países, este instrumento tende a se fortalecer e a crescer. Já foi um grande avanço trazido até agora e as expectativas são de que aumente o número de integrantes, quer de livre vontade, quer por pressão social, financeira ou de organizações não governamentais.

Considerações finaisTendo em vista que a preocupação ambiental não pode ser algo limitado pelos contornos

da soberania estatal, sob pena de se ver frustrada toda forma de proteção, deve-se ter em mente que esforços entre as nações devem ser somados a fim de que o nível de conscientização da população bem como a ação por ela provocada sejam no plano global, tanto quanto o é na área comercial. Não se pode permitir que o desenvolvimento econômico nacional, marcado pela união de mercados e países em blocos regionais, prejudique de forma irreversível o próprio ambiente que dá suporte ao

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crescimento econômico. Finalmente, é de grande importância que os países somem esforços a fim de preservar, conscientizar sua população e buscar medidas que visem prevenir o dano e punir o transgressor de forma eficaz.

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Recebido em: junho /2012Artigo aprovado para publicação em: julho /2012

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AS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS: O CASO DOS FAXINAIS de terra/ THE LANDS TRADITIONALLY OCCUPIED: THE CASE OF LAND FAXINAIS

Fabiana Carolina Galeazzi11

Sumário: Introdução; Terras tradicionalmente ocupadas; Faxinais de terra; Considerações Finais; Referências.

Resumo: Desde os primórdios, o homem mantém relação de exploração do solo. Na medida em que houve o avanço desta relação, a discórdia social se fez presente, em razão do uso do solo como meio de subsistência e da necessidade do acesso a este bem. Não sendo igualitário esse acesso, houve o aumento da desigualdade e do desequilíbrio econômico. No Brasil, em especial, a desigualdade é presente na vida do campo, ressaltada nas áreas em que a propriedade é explorada de forma coletiva, as chamadas comunidades tradicionais. A função social da propriedade surge como meio de equilibrar as relações e garantir o acesso à propriedade, para que a concentração da propriedade não seja tão evidente. O presente trabalho tem como escopo analisar as perspectivas constitucionais da função social da propriedade rural, em especial, verificar a peculiaridade nacional dos faxinais de terra que exploram a propriedade de forma coletiva, cuja relação com a propriedade vai além da titularidade, baseando-se no modo de vida e na cultura.

Palavras-chave: exploração do solo; propriedade rural; faxinais de terra.

Abstract: From earliest times, man has respect of land use. To the extent that there has been pro-gress in this respect, the social discord was present, due to the use of land for their livelihoods and the need for access to this well. Because access was not equal there was an increase of inequality and economic instability. In Brazil, in particular, inequality is present in the life of the field, hi-ghlighted areas where property is exploited collectively, the so-called traditional communities. The social function of property arises as a means to balance the relationship and ensure access to the property, so that the concentration of ownership is not so evident. The present work has as scope to analyze the constitutional perspectives of the social function of rural properties, in particular, to verify the uniqueness of national faxinais exploring the land collectively owned, whose relationship with the property goes beyond the title. Is based on the way of life and culture.

Key-words: land use; rural properties; faxinais.

11 Mestranda em Direitos Fundamentais na instituição Faculdades Integradas do Brasil (Uni Brasil). E-mail: [email protected].

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Terras tradicionalmente ocupadas

Conforme já exposto no processo histórico, a terra foi transformada em propriedade privada e individual como decorrência da influência europeia, que espalhou o colonialismo no resto do mundo – apesar de no Brasil o modo de propriedade existente anteriormente à colonização ser totalmente distinto.

O processo de ocupação histórica no Brasil demonstra a existência de grupos sociais que estabelecem relações de uso comum com os recursos naturais, firmando ligação estreita com tais recursos na construção de sua identidade. Dentre tais grupos, incluem-se os quilombolas, as que-bradeiras de coco, os faxinais de terra, os índios, entre outros.

Nestas sociedades, o direito é essencialmente coletivo. O grupo é visto como um todo, não havendo a visão de que cada um é uma pessoa, como na concepção individualista.

Alves de Sá (2010, p. 63) considera que

o território das comunidades tradicionais se apresenta como uma teia: um território traçado pelo Estado, manifestado na jurisdição como projeção da soberania centralizadora de autoridade, e o ter-ritório que se traduz na identidade cultural, cujas articulações das dimensões econômica e política da vida social estão atreladas sob o fio condutor das relações sociais, onde é exercido um padrão de ocupação territorial formador de uma materialidade geográfica que sustenta a geração das estruturas sociais, econômicas e cultu-rais de uma comunidade.

A propriedade é uma extensão da própria identidade da comunidade e é essencial para a sua manutenção, uma vez que seu uso coletivo da propriedade está atrelado ao processo histórico--cultural. Da propriedade, a comunidade retira o alimento, e nela, exercem o trabalho, a atividade religiosa e cultural. O indivíduo pertence ao seu grupo e não há como individualizá-lo. A existência de um é condicionada ao outro.

A concepção de propriedade é inapropriada para as comunidades que ocupam terras tra-dicionalmente ocupadas, pois a propriedade tradicionalmente concebida é um bem mercantil, com título formal e, na situação em questão, a propriedade além de ultrapassar a concepção contratua-lista da terra e dos recursos naturais configura-se um direito coletivo.

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto n.º 6.040, de sete de fevereiro de 2007) estabelece como conceito de comunidades tradicionais:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuidores de formas próprias de organização social, ocu-pantes e usuários de territórios e recursos naturais como condição à sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi-tidos pela tradição.

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Os novos movimentos sociais são formas de organização da sociedade civil, originadas a partir de 1970, que compartilham a ideologia do antiautoritarismo e representam possibilidades de fortalecimento da sociedade civil em relação ao aparelho estatal e às formas tradicionais de atuação política pela via partidária (cf. SCHERER-WARREN, 1993).

Nas palavras de Almeida (2004, p. 12):

A própria categoria “populações tradicionais” tem conhecido des-locamentos no seu significado desde 1988, sendo afastada mais e mais do quadro natural e do domínio dos “sujeitos biologizados” e acionada para designar agentes sociais, que assim se autodefi-nem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição. Ela designa, deste modo, sujeitos sociais com existência coletiva, incorporando pelo critério político organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos denominados seringueiros, que-bradeiras de coco, babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores que têm se estruturado igualmente em movimentos sociais.

As comunidades diferem do projeto moderno social na interação com a natureza, agin-do de forma cooperada e com ajuda mútua, combinando o uso comum de certos recursos e a apropriação privada de bens. O que se observa em comum, nas comunidades tradicionais acima expostas é que:

As propostas levadas pelas comunidades revelam-se inadequadas ao padrão dos direitos subjetivos utilizados pelo direito civil, prin-cipalmente no que se refere às demandas nucleadas em conceitos como sujeito/ identidade coletiva, território/propriedade privada, situações existenciais nas quais o direito não encontra soluções adequadas. Isso mostra a urgência com que esses conceitos devem ser repensados, levando em conta as ações dos grupos, povos e comunidades, que hoje estão mais conscientes do seu papel na composição do patrimônio cultural brasileiro (ALVES DE SÁ, 2010, p. 124).

O adjetivo “tradicional” empregado a estes povos não se resume à comunhão histórica tampouco aos modos de manejo da natureza estabelecidos. É construído justamente pelos confli-tos e antagonismos divididos pelo grupo social. São nas lutas diárias, frente à negação da vida con-creta, que as comunidades se constroem (também pelo fator identitário de antagonismos comuns), mobilizam-se e reivindicam suas demandas em face do Estado (cf. ALMEIDA, 2004, p. 13-15).

A noção de “comunidade” não deve ser compreendida como entidade ideal, imóvel e iso-

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lada, que se constrói a partir de ficções jurídicas insensíveis às influências externas. Ao contrário, as comunidades

são marcadas pelo signo da mudança social e econômica, em um processo dinâmico que interfere, e que demanda, por consequên-cia, a reelaboração permanente por parte dos pesquisadores de grupos e das comunidades indígenas e tradicionais (RIOS, 2008, p. 198).

No intuito de diminuir o distanciamento do Estado, o paradigma do Estado democrático de direito traz à tona novas interpretações e anseios sobre o papel do direito nos processos de legi-timação das ações políticas. Não somente as relações dos indivíduos entre si e em relação ao Estado tornam-se um problema: carece que o aparato estatal seja também legítimo no que concerne às relações com os agrupamentos de sujeitos de direito vinculados por quaisquer que sejam as formas de compartilhamento de vidas em comum (cf. TAYLOR, 2005).

Para os quilombolas, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de-termina que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas ter-ras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Quanto aos indígenas, a Constituição Federal de 1988 preceitua que:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habi-tadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produti-vas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessá-rios a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.§ 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam--se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusi-vo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indíge-nas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.§ 4.º As terras de que trata este artigo são inaliená-veis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad

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referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epide-mia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.§ 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º.

Nas Constituições anteriores, inexistia qualquer previsão legal que garantisse, de forma específica, as necessidades étnicas e territoriais, entendidas na sua dimensão socioeconômica e cultural. É o que decorre da literalidade das regras antes referidas, inscritas nos artigos 215 e 216 da Constituição, que discorre sobre o patrimônio cultural, em seus aspectos materiais e imateriais, em referência à identidade, ação e memória dos grupos que formaram a identidade brasileira.

Reforçando o que a Constituição Federal abarca, o Decreto Legislativo n. 143, assinado pelo Presidente do Senado Federal, ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de junho de 1989, que estabelece o direito de posse e propriedade das terras tradi-cionalmente ocupadas em seu artigo 14: “dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

O Decreto nº 6.040, de sete de fevereiro de 2007, institui a Política Nacional de Desenvol-vimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. O instrumento tem por objetivo es-pecífico promover o desenvolvimento sustentável com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais. O referido decreto preceitua também o respeito e valorização da identidade de povos e comunidades tradicionais, em suas formas de organização e diferentes instituições.

O artigo 225 da Constituição Federal foi regulamentado pela Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da natureza, mencionando nos artigos 17 e 18 as “populações tradicionais” ou “populações extrativistas tradicionais” e enfoca a relação entre elas e as unidades de conservação.

Além da relação cultural identitária, decisiva na relação das comunidades tradicionais e seus territórios, destacam-se os meios peculiares de manejo da natureza, que são marcados pelo respeito aos ciclos naturais e a exploração dentro do potencial de recuperação dos animais e plantas utiliza-dos, cujas tradições são transmitidas ao longo das gerações. Fica clara a racionalidade distinta das práticas da sociedade urbano-industrial, que se transpõe em relação íntima de respeito entre o ho-mem e a natureza, onde esta representa fator considerado inclusive no plano das simbologias e do

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imaginário destes povos (cf. SANTILLI, 2005. p. 121.). Todavia, as reivindicações dos movimentos sociais não são acatadas, o que acarreta na tensão em torno daquelas formas intrínsecas de apro-priação e de uso comum dos recursos naturais, abrangendo áreas por todo o território nacional.

Construir um arcabouço teórico-jurídico para assegurar esses direitos não é tarefa fácil, uma vez que é necessária a ruptura dos valores essenciais à formação da sociedade e do direito moderno e a reivindicação da crítica aos institutos jurídicos basilares do direito privado, na busca da formulação de uma base epistemológica diferenciada, que se funda na garantia dos direitos coletivos.

Faxinais de terraO sistema de faxinais é composto por um grupo social portador de identidade, onde o

modo de exploração da propriedade é diferenciado, havendo áreas em que a propriedade é privada e outras coletiva. A mão de obra utilizada é familiar e a forma de exploração da atividade agrária contribui para a preservação ambiental.

Chang (1988, p. 54) define o sistema da seguinte forma:

Um sistema de produção familiar que apresenta os seguintes com-ponentes: a produção animal – criação de animais domésticos, tanto para o trabalho, quanto para o consumo próprio, na técnica “à solta” em criadouros comuns, destacando-se os eqüinos, suínos, caprinos e as aves domésticas; a policultura alimentar – lavouras de subsistência circunvizinhas ao criadouro, destacando-se o milho, feijão, arroz, ba-tata e a cebola e; a coleta da erva-mate – o mate nativo se desenvolve dentro do criadouro e é coletado durante o inverno, desempenhando papel de renda complementar, tanto para o proprietário na venda do produto, quanto para os empregados na remuneração de sua força de trabalho. O que torna o Sistema Faxinal um caso único é a sua forma de organização. Ele se distingue das demais formas camponesas de produção no Brasil pelo seu caráter coletivo no uso da terra para a produção animal. A instância do comunal é consubstanciada, nesse sistema, em forma de criadouro comum.

Nos criadouros, também se encontra a moradia, geralmente cercada em pequenas áreas de terra denominadas “quintais”, espaço de produção de hortaliças e pequenas culturas de subsistên-cia. Além do espaço de uso comum, há também aqueles de uso privado, as lavouras, que situam-se do lado externo do criadouro (cf. BERTUSSI, 2009, p. 156).

Este modo de exploração da terra é totalmente distinto dos demais, havendo a mistura entre o espaço privado e coletivo, inexistindo um único proprietário do imóvel. Há diversas práticas de uso comum em combinação com o uso privado dos recursos naturais, estabelecidas de forma consensual pelo grupo social. Os faxinais configuram situações coletivas, na combinação entre a apropriação comum e a familiar dos recursos naturais.

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No Paraná, os faxinais desenvolveram-se nas áreas de relevo suave ondulado e plano, que vem a serem áreas contínuas de matas de araucária degradadas pelo pastoreio extensivo, feito nos criadores comuns. Estes criadores comunitários podem abarcar grandes áreas com algumas centenas de hectares e são cercados em todo o seu perímetro por cercas de arame (cf. GUBERT FILHO, 2009, p. 132).

Os territórios são uma extensão das relações sociais projetadas no espaço, e não simples espaços concretos. Estamos frente a um verdadeiro campo de forças, onde as relações de poder são igualmente especializadas e onde convergem sujeitos sociais diversos (cf. SOUZA, 2007). Os faxinalenses são produtos do território que habitam, uma vez que a relação com a terra é muito mais intensa e diferenciada do que a de uma pessoa com sua casa, na vida urbana.

Seu modo de vida e produção é diversificado, conforme explica Almeida (2004, p. 6):

O fortalecimento das comunidades de faxinais e de suas formas es-pecíficas de apropriação e uso dos recursos naturais, baseada no tra-balho familiar e no uso comum da terra, contrasta vivamente com a posição de seus antagonistas. Estes antagonistas, vinculados às grandes plantações e aos empreendimentos industriais, cuja produ-ção circula no mercado de commodities, negam a racionalidade do sistema econômico intrínseco aos faxinais, considerando-os “primi-tivos”. De igual modo não reconhecem que a economia destas si-tuações sociais possui leis de uso e de produção de alimentos que a diferenciam daqueles que regem o mercado de commodities. O valor de uso dos bens pelos faxinalenses e sua forma de produção familiar contrapõem-se ao valor de troca e aos circuitos de mercado que ca-racterizam uma economia mercantil e “privatista”, que nega a esfera pública e as atividades econômicas baseadas no trabalho familiar.

A título de ilustração deste modo de vida e agricultura peculiar, citamos o Faxinal da Barra dos Andrades, localizado no município de Rebouças, no Estado do Paraná, que possui um criador comunitário com cerca de três mil hectares, abrigando em torno de 150 famílias. Na área do Faxi-nal, são criados equinos, muares, bovinos, caprinos, sinos e aves em regime extensivo. A par disso, as famílias em sua maioria, dedicam-se a atividades agrícolas, realizadas em áreas localizadas fora do criador (cf. GUBERT FILHO, 2009, p. 134).

Um dos problemas enfrentados por este Faxinal, como tantos outros da região, é o assé-dio dos agricultores para venda de terras. O modo de uso da terra, baseado na cooperação e no comunitarismo, sofre constrangimentos em decorrência da expansão da modernização no campo, o agronegócio, e absorção pelo paradigma do desenvolvimento rural, o qual impõe a inclusão dos faxinalenses na lógica do mercado, através da mercantilização de sua produção agropecuária ou da própria venda de seu território.

Os faxinalenses fizeram um levantamento dos conflitos estruturando-os em três eixos: a perda de território para o agronegócio, destruição dos recursos naturais e omissão do Estado.

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Como consequência, sofreram diversos danos. A contaminação das águas que banhavam os Faxi-nais, decorrente das práticas agrícolas; com a morte de suas criações; invasão do Faxinal por “cha-careiros”; ou descaso dos órgãos ambientais do Estado que não fiscaliza a retirada ilegal de mata nativa (cf. SOUZA, 2007, p. 579).

Em função da degradação dos territórios dos faxinais e dos diversos conflitos fundiários, os faxinalenses organizaram o movimento chamado “Puirão dos Povos Faxinalenses”, desde se-tembro de 2005, para reivindicar não apenas a terra, mas seu direito ao território. A luta faxinalense extrapola limites geográficos e pretende, através de mudanças locais, garantir a emancipação dos pequenos produtores e de seu direito à identidade.

Quanto à legislação, a Constituição Estadual do Paraná reafirma as diferenças e a necessidade de proteger esses grupos sociais, em função de seu patrimônio cultural, em seus artigos 190 e 191:

Art. 190. A cultura, direito de todos e manifestação da espiritua-lidade humana, deve ser estimulada, valorizada, defendida e pre-servada pelos Poderes Públicos estadual e municipal, com a par-ticipação de todos os segmentos sociais, visando a realização dos valores essenciais da pessoa.Parágrafo único. Fica assegurada pelo Estado a liberdade de ex-pressão, criação e produção no campo artístico e cultural e garan-tidos, nos limites de sua competência, o acesso aos espaços de difusão e o direito à fruição dos bens culturais.Art. 191. Os bens materiais e imateriais referentes às caracterís-ticas da cultura, no Paraná, constituem patrimônio comum que deverá ser preservado através do Estado com a cooperação da comunidade.Parágrafo único. Cabe ao Poder Público manter, a nível estadual e municipal, órgão ou serviço de gestão, preservação e pesquisa relativo ao patrimônio cultural paranaense, através da comunidade ou em seu nome.

O Decreto n. 3.446, de 14 de agosto de 1997 define o sistema faxinal como “Áreas Espe-ciais de Uso Regulamentado”, e trata apenas da questão ambiental, deixando de lado o contexto do grupo social, que vai muito além.

Dentre as conquistas do movimento, destaca-se a Lei n. 15.673, de 13 de dezembro de 2007, que reconhece os faxinais e sua territorialidade pelo Estado do Paraná. O artigo 2º, parágrafo único, da referida Lei estabelece como faxinalense o seguinte:

Entende-se por identidade faxinalense a manifestação consciente de grupos sociais pela sua condição de existência, caracterizada pelo seu modo de viver, que se dá pelo uso comum das terras

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tradicionalmente ocupadas, conciliando as atividades agrosilvo-pastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas so-ciais tradicionais, visando à manutenção de sua reprodução física, social e cultural.

Toda a luta dos povos de faxinais e das demais comunidades tradicionais visam o reco-nhecimento de sua existência coletiva, o pertencimento étnico, buscando derrubar os obstáculos para efetivação dos dispositivos constitucionais, que insiste em categorizações socialmente vazias a partir da evocação de conceitos que não contemplam a diversidade social e as contradições que perpassam a sociedade, quando está em jogo a legitimidade de diferentes modalidades de apropria-ção dos recursos do território.

Considerações finaisA exploração coletiva da propriedade é destacada pelo movimento dos povos tradicionais,

que têm em comum a luta pelo reconhecimento ao território. A ligação destes povos com a terra é muito maior e diferenciada que a do proprietário que tem um título de propriedade. A prova de propriedade não é subsumida a partir do direito escrito e cartorial, uma vez que está guardada na lembrança de todo o grupo, estendendo-se por séculos e por gerações.

A propriedade rural para os faxinalenses é questão de identidade, pois se constitui no local onde todos se reconhecem e desenvolvem suas práticas. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 promoveu um Estado multicultural e pluriétnico, isto é, a terra não pertence a um só povo e a uma só cultura.

A revisão crítica dos elementos do direito vigente com vistas a construir um arcabouço jurídico apto a concretizar os direitos das comunidades tradicionais e de outros povos que aqui vivem é essencial. Ferramentas jurídicas que possibilitem a atuação contra-hegemônica devem ser encontradas, permitindo fazer do campo do direito um espaço de combate para a conquista da transformação social.

O direito baseado em premissas modernas, individual-patrimonialistas, encontra-se hoje com a imposição de respostas dos direitos coletivos, cuja titularidade é identificada com a subjetivi-dade também coletiva e seu vínculo de pertencimento transcende a relação imobiliária e utilitarista.

O reconhecimento dos sistemas de faxinais de terra é o fim do silêncio da escravidão e da exploração dos latifundiários, mas em especial, é o estopim de transformação maior que exige do direito um olhar da realidade para que a diversidade de experiências jurídicas seja reconhecida.

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Referências

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ALVES DE SÁ, Andrea. Territórios de uso comum das comunidades tradicionais: uma visão jus socioambiental do criar, fazer e viver dos fundos de pastos da Bahia/Brasil. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Para-ná. Curitiba, 2010. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/24096/An-drea%20TESE_DE_DEFESA%5B1%5D.pdf?sequence=1>. Acesso em: 29 nov. 2011.

BERTUSSI, Mayra Lafoz. Faxinais: Um olhar sobre a territorialidade, reciprocidade e identidade étnica. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de e SOUZA, Roberto Martins (Org.). Terras Faxinais. Manaus: UEA Edições, 2009. p. 150-166.

CHANG, Man Yu. Sistema Faxinal: uma forma de organização camponesa em desagregação no centro-sul do Paraná. Londrina: IAPAR, 1988.

GUBERT FILHO, Francisco Adyr. O faxinal. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de e SOUZA, Roberto Martins de (Org.). Terras Faxinais: Manaus: UEA Edições, 2009. p. 132- 149.

RIOS, Aurélio Virgílio. Quilombos e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; DE SOUZA, Douglas Martins (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008. p. 198.

SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005.

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

SOUZA, Roberto Martins de. Da invisibilidade para a existência coletiva: Redefinindo fronteiras étnicas e territoriais mediados pela construção da identidade coletiva de Povos Faxinalenses. In: Seminário Nacional Movimentos Sociais, participação e democracia, UFSC, 2007.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: Multiculturalismo. Lisboa: Piaget, 2005.

Artigo Recebido em: janeiro/2012.Artigo aprovado para publicação em: fevereiro/2012

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POLíTICA PÚBLICA DE (IN) ACESSIBILIDADE EM MANAUS/ PUBLIC POLICY (IN) ACCESSIBILITY MANAUS

Hevelane da Costa Albuquerque12

Sumário: Introdução; Perspectivas acerca da incapacidade: breve histórico; Integração e acessibilidade no ordenamento brasileiro; Acessibilidade e mobilidade em Manaus; Considerações Finais; Referências.

Resumo: O artigo trata da acessibilidade, entendida como o conjunto de medidas adotadas pelos entes públicos com o fim de eliminar as barreiras e permitir que as pessoas portadoras de deficiên-cia ou com mobilidade reduzida tenham acesso, em igualdade de oportunidades frente aos demais indivíduos, ao meio físico, ao transporte, e demais equipamentos urbanos. Analisa-se a problemá-tica citadina que polariza a acessibilidade e a mobilidade (principalmente dos veículos), e privilegia o trasporte privado, muitas vezes individual, em detrimento do transporte urbano e do pedestre. Destaca princípios e ações que devem ser adotadas para dar efetividade às normas que garantem o direito de ir e vir a todos, sem distinção, no território nacional.

Palavras-chave: acessibilidade; mobilidade; políticas públicas.

Abstract: The article deals with the accessibility, understood as a set of measures adopted by public entities, in order to eliminate barriers and allow people with disabilities or mobility reduced access, on an equal basis with other people, physical environment, transportation, and other urban facilities. It analyses the issue that polarizes the city and accessibility mobility (mainly vehicles), and favors the private transportation, to the detriment of urban transport and pedestrians. It highlights the principles and actions that should be adopted with effective standards that guarantee the right to come and go to all citizens without any distinction in the national territory.

Key-words: accessibility; mobility; public politics.

IntroduçãoDeslocar-se é necessidade essencial, quase inevitável. Alheios ao ir e vir nas urbes estão,

por exemplo: os enfermos em seus leitos, conectados a fios, mangueiras e à própria doença que os impede a locomoção; os anciãos enclausurados em sua masmorra corporal, pela perda do vigor físico; e aqueles, que por algum distúrbio físico ou psicológico não conseguem transpor os limites de seu próprio lar. A regra das grandes cidades é o trânsito contínuo de pessoas, quer seja a pé ou em automóveis, bicicletas, ônibus e demais meios de transporte.

Até aqui se disse o óbvio, do qual decorrem indagações constantes acerca da necessidade de efetivar o comando constitucional que garante a livre locomoção no território nacional em tempo de

12 Mestre, Docente do Curso de Direito da Universidade Nilton Lins, em Manaus/AM.

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paz (art. 5º, XV, CF/88), mais especificamente, sobre a promoção da acessibilidade para as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, nos termos do art. 227, II e §2º; art. 244, da CF/88.

Em 19 de dezembro de 2000, regulamenta-se o art. 227, II, da Constituição Federal a Lei 10.098, a qual estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. Em seguida, no ano de 2004, é promulgado o Decreto nº 5.296, cujo fim é estabelecer normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Ainda, sob tais influxos, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU, bem como seu Protocolo Facultativo, em 2008, o qual, por tratar de direitos fundamentais e seguir as exigências contidas no art. 5º, ingressou em nosso ordenamen-to com status de emenda constitucional.

A partir de tais premissas, se buscará, com este artigo, analisar algumas soluções adotadas para dar fluidez ao trânsito na cidade de Manaus, a partir da observação de sua malha viária, com seus viadutos, passagens de nível, passarelas de pedestres e demais mobiliários urbanos, indagando sobre sua adequação à política pública de acessibilidade. Todo o estudo terá como pano de fundo além das previsões legais que impõem ao poder público o planejamento, execução de medidas, obras, adaptação de espaços públicos que tornem possível o ir e vir de todos os cidadãos, as con-tradições existentes, os desafios que devem ser enfrentados.

Perspectivas acerca da incapacidade: breve históricoHá registros da forma como as sociedades antigas tratavam os portadores de deformidades

ou deficiências. De acordo com Gugel (2007), em Roma, a Lei das 12 Tábuas permitia que o pai matasse o filho que nascesse “disforme”, mediante o julgamento de cinco vizinhos. Na Grécia, conforme se extrai d’A República, de Platão, bem como d’A Política, de Aristóteles, há indicações de que os nascidos “disformes” deveriam ser destinados à eliminação, o que poderia ocorrer por exposição, abandono ou, ainda, atiradas do aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Taygetos (GUGEL, 2007, p. 39).

Nos períodos subsequentes da História, foram ignorados por alguns povos, considera-dos seres com poderes especiais por outros, ou tratados como possuídos por espíritos malignos, ganharam relevo os mutilados, em decorrência de guerras, de forma que se tornaram objeto de preocupação a ponto de se vislumbrar um tratamento, ou tentativa de reabilitação.

Acerca da reabilitação, Gugel (2007, p. 45) assevera:

Napoleão Bonaparte determinava expressamente a seus generais que reabilitassem os soldados feridos e mutilados para continu-arem a servir o exército em outros ofícios como o trabalho em selaria, manutenção dos equipamentos de guerra, armazenamento dos alimentos e limpeza dos animais. Nasce com ele a idéia de que os ex-soldados eram ainda úteis e poderiam ser reabilitados.

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No entanto, somente no século XX, após a humanidade ter sofrido com as sequelas de duas guerras mundiais, foi que o Estado e a sociedade passaram a dar um tratamento jurídico mais efetivo ao problema da deficiência, sobretudo em razão da turba de mutilados que retornaram dos campos de guerra.

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1971, aprovou a Declaração sobre os Di-reitos das Pessoas com Deficiência Mental, na qual, dentre diversas previsões, expõe a necessidade de auxiliar as pessoas com retardo mental para desenvolver suas habilidades em vários campos de atividades e de promover a sua integração, tanto quanto possível na vida normal.

Em 1975, a ONU aprovou a Declaração sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que traz como escopo a necessidade dos Estados membros agirem de modo a prevenir deficiências físicas e mentais e também a prestar-lhes assistência, proporcionando condições para que desenvol-vam suas habilidades nos mais diversos campos de atividades e promovam, tanto quanto possível, sua “integração na vida normal”.

Em dezembro de 1982, a Assembleia Geral da ONU formulou o Programa de Ação Mun-dial para as Pessoas Deficientes, no qual se nota a adoção de perspectiva que amplia a proteção, por aliar, ao discurso da integração, a ideia da acessibilidade.

Deste modo, não basta que os Estados membros proporcionem a reabilitação, é impera-tivo que eliminem barreiras à locomoção. Importa ressaltar que o documento reconheceu que as pessoas portadoras de deficiências não formam um grupo homogêneo, em razão de haver vários tipos de limitações, tais como as visuais, auditivas, motoras. Assim sendo, enfrentam diferentes barreiras que devem ser superadas de maneiras distintas. Vislumbra-se assim, o direito à prevenção, reabilitação e igualdade de oportunidades.

Os documentos que se seguiram expressaram a mesma finalidade, reconhecem a necessi-dade de ampliar a acessibilidade, de proporcionar a igualdade em sua acepção substancial, oferecen-do tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades.

No âmbito da Organização das Nações Unidas, outro importante documento foi aprova-do: a Classificação Internacional da Incapacidade e Saúde, que não representa um mero catálogo informativo de doenças ou incapacidades do ponto de vista do indivíduo, mas da relação deste com o diversos fatores ambientais.

Sob a luz de tal documento, se reconheceu a concepção médica (modelo médico) e o modelo de caridade da incapacidade como insuficientes para defini-la, para transpor suas desvanta-gens, passando-se a adotar o modelo social.

A título de esclarecimento, destacamos a definição de tais modelos, aposta por Maciel (2007, p. 169), com tradução livre de texto:

a) modelo médico: visualiza a deficiência como uma doença, e as pessoas com deficiência como pacientes que precisam de cura para que possam adaptar-se a sociedade ‘normal’. A ênfase está na condição e não na pessoa.

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b) modelo de caridade: enfatiza o aspecto ‘trágico’ da deficiência. A pessoa com deficiência é vista como uma corajosa vítima, que dependerá de ajuda e suporte da sociedade. A arrecadação de fun-dos financeiros tenta atingir o sentimento de cult da população.c) modelo social: reconhece que a pessoa com deficiência é igual a outra que esteja lutando contra injustos obstáculos – por exemplo, atitudes da sociedade. A ênfase é na responsabilidade da socieda-de ao invés do problema da pessoa com deficiência.

A adoção do modelo social importa na necessidade de revisão dos fatores ambientais, den-tre outros, para a efetivação da acessibilidade, com adoção de políticas públicas voltadas para uma nova configuração dos espaços, equipamentos e demais mobiliários urbanos. É o reconhecimento da diversidade, assim considerada por Shiraishi Neto (2004, p. 34):

A diversidade importa no acatamento de “práticas jurídicas” diferenciadas, nem sempre catalogadas e que necessitam ser in-corporadas às reflexões jurídicas para garantir direitos efetivos à diversidade de sujeitos e grupos sociais, que sempre ficaram dis-tantes dos tratamentos jurídicos. As dificuldades de interpretar os fenômenos sociais à luz dos padrões jurídicos tradicionais, sem-pre ficaram evidenciadas diante dos fatos , embora os intérpretes preferissem ignorá-los, já que a todo custo procuravam enquadrar as situações aos dispositivos legais, apesar de reconhecerem as dificuldades. Para cada situação, um dispositivo, o que implicava numa simplificação das situações, quando reduzidas ao mundo jurídico.

Destarte, impõe-se a adoção de um fazer jurídico que efetive a acessibilidade, mister que se identifiquem e eliminem obstáculos e barreiras em edifícios, rodovias, meios de transporte e outras insta-lações internas e externas, inclusive escolas, moradia, instalações médicas e local de trabalho; bem como, informações, comunicações e outros serviços, inclusive serviços eletrônicos e serviços de emergência.

Integração e Acessibilidade no Ordenamento BrasileiroA Constituição do Império foi silente quanto a qualquer tipo de proteção aos incapacita-

dos. Já a Constituição de 1924, conferiu uma incipiente proteção, a qual se limitava à concessão de aposentadoria em caso de invalidez ao serviço da Nação (art. 75). Também se limitaram a temas relativos à aposentadoria, as Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967, sendo que nestas foi esta-belecida a ampliação das hipóteses de concessão.

Foi a Constituição de 1969, com sua Emenda Constitucional n. 12, de 17 de outubro de 1978, que inaugurou tratamento específico para os deficientes, consoante transcrito a seguir:

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Artigo único - É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante:I - educação especial e gratuita;II - assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e so-cial do país;III- proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários;IV - possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

A Constituição de 198813, por seu turno, prevê um amplo rol de direitos, desde vedação a tratamentos discriminatórios, reserva de percentual de vagas e concessão de benefício previdenci-ário, até as questões atinentes à acessibilidade.

Os dois últimos dispositivos citados tratam, de forma específica, da mobilidade urbana ao preverem que lei deve dispor sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. Também versa sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

Note-se que as normas constitucionais apontadas referem-se a edifícios públicos, diferente do disposto na Lei 10.098/00, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. A emenda ampliou o comando constitucional, impondo também às edificações privadas a observância dos requisitos de acessibilidade por ela descritos.

Além disso, as normas infraconstitucionais estabelecem o conceito de acessibilidade, con-forme se lê no art. 2º, da Lei 10.098/00, e art. 8º, do Decreto 5.296/04, qual seja: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equi-pamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, promulgada pelo Decreto 6.949/09, por sua vez, define acessibilidade como o conjunto de medidas adotadas pelos Estados partes a fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver com autonomia e participar plenamente de todos os aspectos da vida, assegurando-lhes o acesso, em igualdade de oportunida-des com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ou propiciados ao público, tanto na zona urbana como na rural.

13 Conforme se verifica nos seguintes preceitos constitucionais: art. 7º, XXI; art. 23, II; art. 24, XIV; art. 37, VIII; art. 40, §4º, I; art. 201, §1º; art. 203, IV e V; art. 208, III; art. 227, II e §2º; art. 244.

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Impende destacar que as normas mencionadas, devem ser entendidas à luz do art. 182, da CF, que trata da política de desenvolvimento urbano, a qual deve ser executada pelo Poder Público Municipal, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, ressalvadas as obrigações dos demais entes públicos em adaptar seus respectivos mobiliários.

Ao se tratar da ordem urbanística, não se pode olvidar que seu conceito está cada vez mais conectado ao de justiça. Machado (2007) assevera que a ordem urbanística deve significar a institucionalização do justo na cidade. Assim, a ordem urbanística deve tornar possível uma nova cidade, que imprima em todos os moradores alegria de morar, trabalhar, fruir o lazer nos equipa-mentos comunitários e de contemplar a paisagem urbana sem qualquer distinção, e de forma mais inclusiva possível.

É o Município o principal gestor desta ordem, contando com seu plano diretor, Código de Postura, Código Ambiental e demais normas voltadas para a consecução das diretrizes gerais fixadas pela União e o alcance da “cidade justa”.

Acessibilidade e Mobilidade em ManausManaus, que já conta com pouco mais de 1,7 milhões de habitantes (IBGE, 2010), concen-

tra uma frota de quatrocentos e trinta e oito mil, quatrocentos e um veículos (dados do DETRAN/AM, 2012). Esta quantidade de veículos dificulta, cada vez mais, a mobilidade na cidade, tanto de veículos automotores quanto de pedestres, pois, ao mesmo tempo em que se avolumam causando grandes congestionamentos, tornam quase impossível ao pedestre a tarefa de atravessar uma via.

As soluções dadas aos problemas decorrentes do trânsito intenso são as mais questionáveis possíveis. Vão desde a retirada dos semáforos de pedestres, até o bloqueio de trechos extensos de ruas, a fim de impedir que atravessem em meio aos veículos, forçando-os a utilizar a passarela de pedestres, não “atrapalhando” o fluxo de veículos.

Antes de prosseguir, importante frisar que o trânsito, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, é a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, condu-zidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga. Assim, é de se notar que os pedestres estão inseridos no conceito de trânsito. E mais: eles têm preferência de passagem nas faixas a eles destinadas, devendo o Poder Público velar pelas boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização das faixas e passagens de pedestres (arts. 70 e 71, Lei 9.503/97).

A título de exemplo, mencionamos três pontos da cidade de Manaus: a) Av. Torquato Ta-pajós, nas proximidades do Terminal Rodoviário Eng º Huascar Angelim; b) Av. Darcy Vargas, no quarteirão do Amazonas Shopping; c) Av. Torquato Tapajós, nas imediações da Escola Denizard Rivail. Os locais apontados foram escolhidos por concentrarem uma gama dos principais proble-mas que impedem o pleno acesso dos pedestres portadores de deficiência ou mobilidade reduzida a trechos urbanos. Alem disso, retratam de forma inelutável o drama dos pedestres em diversos pontos da cidade de Manaus e mesmo de outras grandes cidades.

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Em apertada síntese, na Av. Torquato Tapajós (próximo a rodoviária), o que se nota é a afli-ção de pedestres, sobretudo nos horários de pico do trânsito, para traspor a via, restando-lhes duas opções: arriscar a vida correndo para alcançar o destino, ou fazer uma longa caminhada, de cerca de quatrocentos e cinquenta metros até alcançar a passarela mais próxima, retornando os mesmos 450m até o ponto diametralmente oposto ao ponto de partida. Isto significa uma caminhada, com obstáculos (as escadas da passarela), de quase um quilometro.

Na Av. Darcy Vargas (ao lado o Amazonas Shopping), foi inaugurada no dia 17 de setem-bro de 2011, uma passarela, juntamente com a instalação de um gradil de 449,20 m (quatrocentos e quarenta e nove metros e vinte centímetros) com a finalidade de coagir o pedestre a utiliza-la.

Seguindo o mesmo raciocínio matemático do caso anterior, alguém que esteja em um ponto mediano em relação a extensão do gradil, se precisar atravessar, terá que percorrer cerca de quatrocentos e cinquenta metros para alcançar um ponto a sua frente. Tendo em conta que a velocidade média de travessia é de 1,3 metros a cada segundo, a base média adotada mundialmente considera que o pedestre gasta 1 segundo para percorrer 1,3 metro de distância, totalizando apro-ximadamente 6 minutos de tempo gasto para realizar o percurso, ou seja, 360 segundos (Tempo obtido por meio da equação tempo = distância/velocidade ).

Considerando que a via em tela possui cerca de 20 metros de largura, o tempo gasto seria de 14 segundos, que é vinte e cinco vezes menor que o tempo anterior, se ao invés de passarela, fosse adotada a faixa de pedestres.

A Av. Torquato Tapajós, nas proximidade da Escola Denizard Rivail, por seu turno, apre-senta as mesmas dificuldades relativas à distância da única passarela ao longo de seu percurso e os demais pontos de acesso, com um gravame: seu canteiro central apresenta uma altura intransponí-vel para quem utiliza cadeira de rodas.

Evidentemente que estas são formas simplistas de encarar a dicotomia entre fluidez do trân-sito e segurança dos pedestres, pois outros fatores devem ser enfrentados pela engenharia de tráfego, porem, por ora, este não é o escopo deste trabalho, que se fixa apenas em parâmetros diretamente relacionados à acessibilidade. A despeito disso, é curial acrescentar o dado importante explicitado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que revela a importância do transporte urbano para o equacionamento dos problemas de congestionamento, conforme transcrito a seguir:

[…] o espaço ocupado por um ônibus (com 70 passageiros) é duas vezes maior do que o do automóvel (com 1,5 passageiros), resultando que uma pessoa no automóvel ocupa, em média, 23 vezes mais espaço que uma pessoa no ônibus, no mesmo período do dia.

Então, à problemática apontada se deve acrescentar a ausência de efetiva política pública voltada para a melhoria qualitativa e quantitativa do transporte público municipal da cidade de Manaus. Cremos ser necessário que os municípios, em particular Manaus, observem as orientações do Ministério das Cidades enunciados no Caderno de Referência para Elaboração de Plano de

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Mobilidade Urbana, revertendo essa ordem estabelecida há, pelo menos, 40 anos nas cidades brasi-leiras, a qual privilegia o transporte privado em detrimento do público e aumenta cada vez mais os gastos com alargamento de vias, construção de viadutos e outras medidas paliativas que só adiam o retorno do próximo congestionamento.

As ações pretendidas pelo Ministério das Cidades visam justamente uma mudança de valo-res, dentre os quais destacamos os seguintes:

• Apoio a projetos de corredores estruturais de transporte co-letivo urbano.

• Apoio à elaboração de projetos de sistemas integrados de transporte coletivo urbano:

• Apoio a projetos de sistemas de circulação não motorizados.• Apoio a projetos de acessibilidade para pessoas com restri-

ção de mobilidade e deficiência.• Apoio à elaboração de Planos Diretores de Mobilidade Ur-

bana

Dentre os princípios que norteiam o PlanMob (Plano de Mobilidade Urbana), que preci-sam ser adotados nos municípios brasileiros, sobretudo em Manaus, dados os problemas aponta-dos estão:

Reconhecer a importância do deslocamento dos pedestres, valori-zando o caminhar como um modo de transporte para a realização de viagens curtas e incorporando definitivamente a calçada como parte da via pública, com tratamento específico.;Propiciar mobilidade às pessoas com deficiência e restrição de mobilidade, permitindo o acesso dessas pessoas à cidade e aos serviços urbanos. Repensar o desenho urbano, planejando o sistema viário como su-porte da política de mobilidade, com prioridade para a segurança e a qualidade de vida dos moradores em detrimento da fluidez do tráfego de veículos.

Em suma, a julgar pelas diretrizes apontadas, a cidade de Manaus – sem a pretensão de fazer trocadilho – está na contra mão das políticas de acessibilidade e mobilidade.

Considerações finaisDentre os inúmeros desafios que se pode identificar na cidade de Manaus e, certamente,

em inúmeras outras metrópoles, estão as necessidades de adequação do espaço urbano – para

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garantir de forma plena a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiências ou restrições de mobilidade – e de redução do tempo perdido em congestionamentos.

É impensável que sejam adotadas, como vem sendo, ações que fomentem o aumento ex-ponencial da frota de automóveis (v.g. Redução de IPI – Imposto sobre produtos industrializados, para automóveis para incrementar as vendas), que, se por um lado, representam ganhos para o poder público com impostos (IPI, ICMS, IPVA), taxas nos Departamentos de Trânsito, multas etc, por outro lado, implica prejuízos significativos na qualidade de vida das pessoas, aumento de gastos com construção e manutenção de vias, dentre outras consequências negativas.

Premente que sejam adotadas ações conjuntas entre os entes públicos, federal, estadual e municipal, para superar a mera letra da Lei de Acessibilidade, tornando-a eficaz. Afinal, a todos os entes da federação incumbe o dever de proteção aos portadores de deficiências, de desenvolver políticas em seu favor, de lhes propiciar os meios necessários para uma vida atrelada, sem ressalvas, a dignidade da pessoa humana.

Não mais se admite que a administração pública ignore a “deseconomia” gerada pelo ele-vado número de automóveis circulando nas ruas. Outrossim, chega de desconsiderar o percentual da população que não possui condições de mobilidade, que não há pessoas portadoras de neces-sidades especiais ou que todos podem comprar um automóvel e que sempre haverá como abrir e ampliar novas vias.

A sustentabilidade, o equilíbrio entre as forças antagônicas na sociedade devem constituir um “fazer constante” da administração pública e não apenas um item enumerado em um rol de metas. O mesmo se diga da acessibilidade e do respeito aos direitos dos menos favorecidos, quer econômica, física ou mentalmente.

Portanto, o papel da municipalidade é fundamental para concretizar os direitos assegurados pela Constituição Federal e normas infraconstitucionais no âmbito da cidade, sobremaneira quan-do se destinam às pessoas mais frágeis da trama urbana, os portadores de necessidades especiais.

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Artigo Recebido em: dezembro/2011Artigo aprovado para publicação em: fevereiro/2012

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os instrUmentos de proteÇÃo das ÁGUas destinadas ao Con-SUMO HUMANO NO DIREITO FRANCÊS/ THE TOOLS OF PROTECTION OF WATER INTENDED FOR HUMAN CONSUMPTION IN FRENCH LAW

ibrahim Camilo ede Campos14

valmir César pozzetti15

Sumário: Introdução; Os instrumentos jurídicos de proteção das águas no entorno das captações; Os instrumentos jurídicos de proteção das captações em dimensões territoriais mais amplas; A gestão contratual das águas: um quadro complementar para a proteção das áreas de captações; Conclusão; Referências.

Resumo: O presente artigo objetiva traçar um panorama dos instrumentos de proteção das águas destinadas ao consumo humano no ordenamento jurídico francês, relativamente ao abastecimento das populações. Enquanto alguns instrumentos foram concebidos no início do século XX, ainda com problemas de efetividade, apesar de um notório esforço político legislativo e executivo nos últimos anos e sob o influxo das questões sanitárias e ambientais contemporâneas, novas proble-máticas desencadearam a necessidade de criação de novos instrumentos jurídicos para a proteção de recursos hídricos contra as poluições difusas, impondo-se, para tanto, um quadro de atuação em dimensões territoriais mais amplas, evidenciando as interfaces positivas entre proteção da saúde humana e proteção ambiental.

Palavras-chave: proteção das águas; ordenamento jurídico francês; proteção ambiental.

Abstract: This article provides an overview on the means of preservation of water intended for human consumption in the French juridical system, regarding the public water supply. While some instruments were created in the early twentieth century, thereof with problems of effectiveness, in spite of a notorious executive and legislative effort in recent years, new issues under the influx of contemporary sanitary and environmental matters gave rise to the need of creating new legal instruments to protect such waters against diffuse pollution, imposing, for such, a framework for action in broader territorial dimensions, showing the beneficial interfaces between human health protection and environmental protection.

14 Mestre e Doutorando em Direito Ambiental pela Université de Limoges – CRIDEAU/OMIJ. França.

15 Mestre e Doutor em Direito Ambiental pela Université de Limoges/França. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade Estadual do Amazonas e do curso de graduação em Direito da Faculdade Martha Falcão, Manaus/AM.

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Key-words: preservation of water; French juridical system; environmental protection.

Introdução

As áreas de captação de águas destinadas ao consumo humano podem ser compreendidas como intersecção entre questões sanitárias e ambientais, tendo por finalidade exclusiva a proteção da saúde humana. Ora, a abordagem sistêmica do direito ambiental convida a apreender tal dimen-são sanitária sob um outro ângulo, mais aberto, integrado e complexo. Projetando o homem para fora dele mesmo, o direito ambiental constitui-se em um direito que ultrapassa a atividade humana, para, de uma certa maneira, dela se desinteressar (cf. CANS, 2009). Todavia, certo é que o homem faz parte e interage com o meio ambiente, e, nesse sentido, a proteção da saúde humana não deve ser excluída das considerações ambientais.

A proteção das águas destinadas ao consumo humano, por meio da instauração de áreas de proteção, tal como previsto pela Agenda 21 Global16, revela convergências entre meio ambiente e saúde, através de influências recíprocas, miscíveis e interconexas que são tão mais perceptíveis à medida que a proteção de determinado espaço, uma das categorias centrais do direito ambiental (cf. SOLEILHAC, 2006), ganha dimensões territoriais mais amplas. Em outros termos, a proteção das águas e dos meios aquáticos como elementos constitutivos do meio ambiente e a proteção da saúde humana não são concorrentes, porquanto encontram-se em sinergia.

Sob o enfoque da proteção das águas destinadas ao abastecimento público no ordena-mento jurídico francês, serão analisados, primeiramente, os instrumentos de proteção no entorno das captações, para, em seguida, abordar os instrumentos que se aplicam a extensões territoriais maiores. Por fim, a contratualização no âmbito da gestão hídrica, podendo ser aplicada às águas destinadas ao consumo humano, será analisada como uma proteção complementar à qualidade da água captada.

Os instrumentos jurídicos de proteção das águas no entorno das captaçõesNo fim do século XIX, os trabalhos de Édouard-Alfred Martel sobre a contaminação das

águas subterrâneas em regiões calcárias foram significativos para a adoção, no direito francês, de um perímetro de proteção em torno dos pontos de captação das águas subterrâneas. Como afirma Billet (2007), referindo-se ao espeleólogo acima mencionado,

sua apresentação da Théorie de l’origine hydrique des maladies transmis-sibles [Teoria da origem hídrica das doenças transmissíveis] vai ser determinante neste tocante, que sintetiza a maior parte dos traba-

16 Agenda 21, 18 D, 18.50, a, I - Todos os Estados, segundo sua capacidade e recursos disponíveis e por meio de cooperação bilateral ou multilateral, inclusive as Nações Unidas e outras organizações pertinentes, quando apropriado, podem implementar as seguintes atividades:(...) (I) Estabelecimento de zonas protegidas para as fontes de abastecimento de água potável, […].

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lhos anteriores e suas próprias observações e coloca em evidência os riscos, para a saúde, dos poços contíguos às latrinas e aos de-pósitos de estrume e de depósitos em superfície (p. 64, tradução nossa).

A criação de um perímetro de proteção no entorno das captações pela lei de 15 de feve-reiro de 1902 – inicialmente restrito à proteção das águas subterrâneas – e, posteriormente a todos os tipos de captação de água subterrânea, por uma circular de 12 de julho de 1924, foi estendida às captações de águas superficial pelo decreto no 53-1001, de 5 de outubro de 1953.

Assim, o artigo 10, da lei de 15 de fevereiro de 1902, relativa à proteção da saúde pública, inserido no capítulo primeiro do referido diploma legal (“Medidas sanitárias gerais”), prevê a ins-tauração de um único perímetro contra a poluição, proibindo ali a adubação. Por sua vez, a circular de 12 de julho de 1924 prevê a instauração de um perímetro imediato e outro perímetro de prote-ção geral, integral ou parcial, da bacia de alimentação.

Essa proteção será aperfeiçoada pela lei no 64-1245, de 16 de dezembro de 1964, relativa ao regime e à repartição das águas e à luta contra a poluição, que revoga as disposições do artigo L. 20 do Código de Saúde Pública pelo artigo 7 e instaura três zonas perimetrais sequenciais, a saber, o perímetro de proteção imediata (périmètre de protection immédiate), o perímetro de proteção próxima (périmètre de protection rapprochée) e o perímetro de proteção afastada (périmètre de protection éloignée), com um caráter interditivo inversamente proporcional à distância do ponto de captação.

Os perímetros de proteção de captação de água, seja ela superficial ou subterrânea, têm vocação contra as poluições pontuais (identificadas de modo preciso, com um único exutório) ou acidentais, com a finalidade de afastar as fontes potenciais de degradação das águas utilizadas para o consumo humano (BUCHET, HENRY DE VILLENEUVE, 2009, p.112), revelando-se insuficientes contra as poluições difusas (VERNOUX , BUCHET, 2009, p. 15), que se estendem sobre uma superfície, tendo vários exutórios, o que torna difícil sua identificação precisa. O regime jurídico dos referidos instrumentos encontra-se no código da saúde pública, sem que haja uma pre-determinação legal de seus limites territoriais, os quais realizam-se através de estudos hidrológicos ou hidrogeológicos.

Trata-se de uma proteção qualitativa do recurso hídrico, baseada na instauração dos três perímetros sequenciais no entorno do ponto de captação, quais sejam, os perímetros de proteção imediata, próxima e afastada, somente o primeiro sendo obrigatório, sem nenhuma possibilidade de exceção. Há igualmente a possibilidade de instauração de perímetros-satélites disjuntos a essas zonas sequenciais.

o perímetro de proteção imediataA instauração do perímetro de proteção imediata (périmètre de protection immédiate) é obriga-

tória, geralmente de superfície muito limitada (algumas dezenas de metros) (cf. BOSC, DOUSSAN, 2009). Sua delimitação deve ser adaptada ao local da captação, ao contexto hidrológico e hidrogeo-lógico assim como aos riscos de poluição existentes (cf. ERIC; LANDOT, 2009). A instauração do

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perímetro visa coibir toda introdução de poluentes na água captada e a impedir a degradação das instalações, devendo ser necessariamente cercado, salvo derrogação prevista no ato de declaração de utilidade pública que autoriza a realização dos trabalhos para fins de captação da água para abas-tecimento público. Nos termos do artigo R. 1321-13, do Código de Saúde Pública, todos os traba-lhos, instalações, atividades, depósitos, obras, ordenamento ou ocupações dos solos são proibidas nesse perímetro imediato ao ponto de captação, à exceção daqueles expressamente autorizados no referido ato declarativo de utilidade pública. Com efeito, seria totalmente incoerente a autorização de atividades potencialmente conflitantes com a proteção exclusiva da captação.

O perímetro de proteção próxima O perímetro de proteção próxima (périmètre de protection rapprochée), segunda zona sequen-

cial em torno da captação, é de instalação obrigatória, salvo quando as condições hidrológicas e hidrogeológicas permitem assegurar a qualidade da água através de medidas restritas à proximidade imediata da captação (art. L. 1321-2 do código da saúde pública). De extensão variável segundo o contexto, geralmente de algumas dezenas de hectares (KERNST, 2006) e adaptável segundo o caso, como o perímetro de proteção imediata, tem como finalidade a redução da migração de poluentes até a captação, tendo em conta geralmente o tempo de transferência de cinquenta dias no que con-cerne às águas subterrâneas (cf. BUCHET; HENRY DE VILLENEUVE, 2009). No seu interior, são proibidas todas as atividades acima mencionadas suscetíveis de poluir a água a ponto de torná--la imprópria para o consumo humano. Aquelas que não o são fazem objeto de regulamentações previstas no ato de declaração de utilidade pública, além de serem submetidas a um controle estrito.

Resulta deste duplo enquadramento, a saber, a interdição e/ou a regulamentação de ati-vidades em um mesmo perímetro – não determinadas a priori pelo legislador, sublinhe-se – um campo propício ao surgimento de conflitos envolvendo atividades diversas, como atesta a jurispru-dência na matéria (Cf. BILLET, 2007, p. 63-65; BOYER, 2004, p. 20-21; COLIN, 2010, p. 79-84.). Em outros termos, é a zona de proteção da captação onde pode haver a existência de atividades próximas à captação, distinção essencial para quem investe nessa área.

o perímetro de proteção afastadaPor sua vez, o perímetro de proteção afastada (périmètre de protection éloignée), de instauração

facultativa, cobre geralmente uma extensão territorial relativamente ampla. Assim como os períme-tros de proteção próxima, sua superfície varia de um contexto a outro, em função das condições hidrogeológicas, assim como do grau de urbanização e da existência de atividades potencialmente poluentes (PENNEQUIN et al, 2007).

Segundo a circular de 24 de julho de 1990, relativa à implementação dos perímetros de prote-ção dos pontos de captação de água destinada ao consumo humano, o perímetro de proteção afastada não é adaptado para as águas superficiais, sendo mais adequado intervir sobre o todo ou parte de uma bacia hidrográfica que sirva à captação de água. No perímetro de proteção afastada, as atividades su-pra-referidas podem ser objeto de regulamentação, desde que, tendo em vista a natureza dos terrenos, apresentem perigo de poluição em razão das características e da quantidade de produtos utilizados.

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Com efeito, por se tratar de uma delimitação territorial mais distante da captação, o grau de proibição é menos intenso que o dos perímetros de proteção imediata e próxima.

Os instrumentos de proteção das captações em dimensões territoriais mais am-plas

A proteção das águas destinadas ao consumo humano pode igualmente ser considerada a partir de uma perspectiva territorial mais ampla, tendo finalidades diferentes daquelas concebidas para os instrumentos de proteção no entorno das captações. Na França, entretanto, a proteção territorial das áreas de captação de águas, realizadas em áreas de maior extensão, volta-se mais ao controle da poluição difusa, o que foi reforçado com o instrumento das “áreas de alimentação de captações” (aires d’alimentation de captages), criado pela lei n0 2006-1772, de 30 de dezembro de 2006, sobre a água e os meios aquáticos.

As áreas de alimentação de captaçõesAs áreas de alimentação de captações (aires d’alimentation de captages), igualmente denomina-

das bacias de alimentação de captações (bassins d’alimentation de captages), são, nos termos da circular de 30 de maio de 2008, as “superfícies sobre as quais a água que se infiltra [água subterrânea] ou corre [água superficial] participa à alimentação do recurso hídrico na qual se faz a captação, tal recurso sendo atualmente utilizado para alimentação de água potável ou suscetível de o ser no futuro” (tradução nossa).

As áreas de alimentação de captação e os perímetros de proteção de captação são dois ins-trumentos complementares, agindo geralmente sobre extensões territoriais diversas e com finalidades igualmente diversas. Com efeito, conforme mencionado anteriormente, os perímetros de proteção de captação têm vocação contra as poluições pontuais ao passo que as áreas de alimentação de captação de águas visam preferencialmente a combater as poluições difusas, por serem, geralmente, de maior extensão territorial. Nesse sentido, o relatório do comitê de avaliação do primeiro Plano Nacional Saúde e Ambiente (plan santé environnement 1) recomenda a articulação dos dois instrumentos, a fim de se propiciar uma maior coerência na política de água potável (MOMAS, CAILLARD, 2007, p. 131).

Como será evidenciado, o direito da União Europeia tem, nas palavras de Drobenko (2004), um papel “estruturante” para o direito francês de águas, influenciando diretamente a for-mulação e implementação de políticas públicas que visem à melhoria da qualidade hídrica.

Em harmonia com o considerando 24 da diretiva 2000/60 do Parlamento Europeu e do Con-selho, de 23 de outubro de 2000 (diretiva-quadro no domínio da água), segundo o qual uma água de boa qualidade garantirá o abastecimento de água potável para as populações, seu artigo 7.3 prevê que

os Estados-Membros garantirão a necessária proteção das mas-sas de água identificadas, a fim de evitar a deterioração da sua qualidade, a fim de reduzir o nível de tratamentos de purificação necessário na produção de água potável. Os Estados- Membros poderão criar zonas de proteção dessas massas de água.

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Assim, em complemento à transposição da referida diretiva-quadro, minimamente realiza-da pela Lei n. 2004-338, de 21 de abril de 2004 (cf. DROBENKO, 2004), a lei no 2006-1772, de 30 de dezembro de 2006 sobre a água e os meios aquáticos cria, no seu artigo 21, as áreas de alimentação de captações (aires d’alimentation de captages), acrescentando-se a redação ao artigo L.211-3, do código do meio ambiente. O que está em jogo aqui é, notadamente, a luta contra as poluições difusas, provenientes da agricultura, assim como a erosão difusa dos solos agrícolas.

O contencioso europeu relativo à poluição das águas por nitratos exprime bem a dificulda-de do Estado francês, assim como de outros Estados-membros da União Europeia, de responder a tal desafio, onde economia e meio ambiente formam uma relação delicada e frequentemente problemática, como mostram as condenações da França pelo Tribunal de Justiça das Comuni-dades Europeias (atual Tribunal de Justiça da União Europeia), seja relativa ao teor em nitrato além do limite estabelecido em virtude da diretiva 80/778/CEE, seja referente à designação de zonas vulneráveis conforme a diretiva 91/676, de 12 de dezembro de 1991, em razão da diretiva 75/440 CEE, ligada ao descumprimento de exigências relativas ao teor em nitratos e a obrigações procedimentais e de planos de gestão ou de ação, ou ainda devido ao não respeito das disposições da diretiva 98/83/CE, de 3 de novembro de 1998. Ao passo que a Comissão põe fim, em 24 de junho de 2010, a um processo relativo à última diretiva supramencionada (o instrumento de áreas de alimentação de captação de águas tendo exercido um papel significativo para tanto), um outro processo foi intentado em 20 de novembro de 2009, devido à não conformidade com a diretiva 91/676 de 12 de dezembro de 1991, dita “diretiva nitratos”.

Neste sentido, as áreas de alimentação de captações, ao lado das zonas de ação prioritárias, consoante será visto, permitem oferecer um instrumento adaptado ao controle das poluições difu-sas, particularmente no que se refere aos nitratos de origem agrícola.

O artigo L. 211-3, II, 50, do Código do Meio Ambiente, que trata das áreas de alimentação de captações, assim como das zonas úmidas e de erosão, foi regulamentado pelo decreto no 2007-882 de 14 de maio de 2007, relativo a determinadas zonas submetidas a obrigações ambientais e que modifica o código rural. Segundo a circular de 30 de maio de 2008, relativa à aplicação deste decreto, a prioridade será conferida nos seguintes casos: a) situações em que as implicações ambien-tais traduzem-se em riscos para a saúde ou para a segurança das populações; b) contencioso euro-peu e situações que apresentam um risco de sê-lo; c) áreas de alimentação de captação identificadas como prioritárias, notadamente em virtude dos correios de DE/DGS, de 18 de outubro de 2007 e de 28 de fevereiro de 2008; e d) determinados territórios nos quais pré-existem iniciativas de gestão concertada em que são necessárias ações rápidas e fortes para melhoria da situação.

Para cada zona de alimentação de captação considerada – a mobilização deste instrumento resta à discricionariedade do préfet, tendo em conta as implicações territoriais e ambientais, permi-tindo definir uma situação de início e de fixar um objetivo a ser alcançado –, um programa de ação é estabelecido, contendo medidas a serem realizadas pelos proprietários e pelos produtores, tais como a cobertura vegetal do solo e a gestão de fertilizantes e de produtos fitossanitários (artigo R. 114-6, do código rural). A delimitação do perímetro dessas áreas (após parecer do Conselho De-partamental do Meio Ambiente e dos riscos sanitários e tecnológicos, da Câmara Departamental

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de Agricultura e, sendo o caso, da comissão local da água) e o programa de ação respectivo serão fixados pelo préfet por um mesmo arrêté. O perímetro deve englobar, sendo o caso, a zona relativa ao plano de gestão dos recursos hídricos relativo à captação de água para consumo humano e não conforme aos limites de qualidade fixados pelo arrêté de 11 de janeiro de 2007 relativo aos limites e referências de qualidade das águas brutas e das águas destinadas ao consumo humano. Por outro lado, afigura-se oportuno mencionar que:

a proteção da totalidade de uma área de alimentação torna-se notadamente muito difícil a pôr em prática quando esta atinge uma dimensão significativa (notadamente nos casos de captação de águas superficiais), ou em certos contextos hidrogeológicos (aquíferos cársticos, por exemplo). Será então necessário definir na AAC zonas estratégicas, por sua contribuição à alimentação das captações e pela importância das pressões de origem agrícola, sobre as quais será conveniente focalizar a proteção e pôr em prá-tica o programa de ação (Circular de 30 de maio de 2008, tradução nossa).

O programa de ação deve ser compatível com as disposições do Plano Diretor de Orga-nização e de Gestão das Águas (Schéma Directeur d’Aménagement et de Gestion des Eaux - SDAGE) e, a depender o caso, conformar-se ou ter em conta as medidas regulamentares ou contratuais realizadas nesta zona.

Segundo o artigo R. 114-8 do referido código, em um prazo de doze meses a contar da pu-blicação do programa de ação, o préfet poderá, após as consultas previstas pelo art. R.114-7, tornar obrigatórias algumas medidas, caso ele estime que os objetivos previstos não serão alcançados ao fim deste período. Conforme o Decreto n0 2008-453 de 14 de maio de 2008, relativo à indenização compensatória de obrigações ambientais, as medidas tornadas obrigatórias no programa de ação podem ser objeto de indenização.

Como assinala Billet (2008, p. 83), constata-se aqui uma lógica em que as obrigações am-bientais são um custo que deve ser suportado pela coletividade em favor dos atores privados que impactam o meio ambiente. Em razão do artigo 1o do mencionado decreto, prevendo que “um arrêté dos ministros da agricultura, do orçamento e da ecologia define as zonas geográficas, as me-didas suscetíveis de indenização, o conteúdo dos seus cadernos de encargos assim como o período de subscrição da indenização”, o arrêté de 14 de maio de 2008 precisa as formas de indenização e outras medidas em determinadas zonas de proteção das áreas de alimentação de captações.

Duas modalidades indenizatórias são possíveis, desde que o caderno de encargos seja res-peitado: aquelas que têm uma incidência sobre as “perdas de rendimento sobre as produções ve-getais relativas à limitação dos aportes [de azoto], excluídas as culturas perenes e as superfícies em gel não cultivado”; e aquelas que compensem os “sobrecustos relativos à adaptação da gestão dos efluentes de produção animal”. No que concerne ao exercício de poder de polícia administrativa,

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o artigo 10 prevê uma percentagem de controle anual in situ de 10% do número de agricultores beneficiários de uma indenização.

A partir destas considerações, afigura-se pertinente retomar e traçar algumas diferenças e necessidades de coordenação entre as áreas de alimentação de captações e os perímetros de proteção de captações. Como visto, ao passo que o primeiro tem como alvo as poluições difusas, o segundo visa principalmente às poluições pontuais e, nesse sentido, é necessário que haja uma coerência na aplicação conjunta dos dois instrumentos. Assim, algumas diretrizes relevam-se per-tinentes, como: a) a zona de proteção de uma área de alimentação de captação deve englobar os perímetros de proteção próxima, b) a elaboração simultânea dos perímetros das AAC e dos PPC, quando estes últimos não foram ainda objeto de uma declaração de utilidade pública.

No que se refere ao nível de exigências, no perímetro de proteção próxima, é necessário que as medidas sejam mais rigorosas que aquelas estabelecidas no programa de ações, ao passo que, no perímetro de proteção afastada, são as medidas constantes ao programa de ações que devem ser mais rigorosas. Neste sentido, as similitudes de tais medidas com relação a essas zonas devem ser excepcionais, conforme os termos da circular de 30 de maio de 2008, relativa à aplicação do decreto no 2007-882, de 14 de maio de 2007.

Os outros instrumentos de proteção contra as poluições difusasA proteção das águas destinadas ao consumo humano contra as poluições difusas pode

igualmente realizar-se por meio de outros instrumentos. Assim é para as zonas de ação comple-mentares, em aplicação da diretiva “nitratos” e da proposição de criação de parques naturais hidro-lógicos ou hidrogeológicos.

As zonas de ações complementares em aplicação da diretiva “nitratos” A diretiva 91/676/CEE, de 12 de dezembro de 1991, relativa à proteção das águas contra

as poluições por nitratos a partir de origens agrícolas, tem como objetivo “reduzir a poluição das águas causada ou induzida por nitratos de origem agrícola e impedir a propagação da referida polui-ção” (art. 1o). Tal diretiva preconiza a definição, pelos Estados-membros, de zonas vulneráveis para as águas atingidas pela poluição ou suscetíveis de o ser, instaurando programas de ações contendo medidas obrigatórias (seja um apenas para todas as zonas vulneráveis, seja vários relativos à parte ou ao todo dessas zonas vulneráveis (artigo 5, item 2). Paralelamente, é adotado um código de boas práticas agrícolas contra a poluição por nitratos, cuja aplicação é facultativa.

A referida diretiva foi inicialmente transposta pelo decreto de 27 de agosto de 1993, tra-tando notadamente da designação de zonas vulneráveis e do código de boas práticas agrícolas. O decreto de 10 de janeiro de 2001 relativo à implementação dos programas de ação a completa. O artigo 4 da diretiva, codificado no artigo R. 211-83 do código ambiental, prevê a definição, pelo préfet, de ações complementares àquelas estabelecidas no programa de ação, quando se tratar de bacias situadas a montante das captações de águas superficiais destinadas ao consumo humano que apresentem concentrações de nitratos que não respeitem as exigências de qualidade exigidas pela legislação (atualmente fixadas no artigo R. 1321-13 e pelo arrêté mencionado na primeira alínea do

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artigo R. 1321-38 do Código de Saúde Pública). Tais medidas comportam, entre outras, obrigação de cobertura do solo durante os períodos de risco de lixiviação e de limitar a transferência de azoto para as águas superficiais por meio da permanência de vegetação ao bordo dos cursos d’água.

A proposição de criação de parques naturais hidrológicosA criação de parques naturais hidrológicos, preconizada por Ghislain de Marsily, hidrogeó-

logo internacionalmente reconhecido, visa a favorecer a proteção das águas naturalmente próprias ao consumo humano, sem que haja, portanto, uma despoluição das águas antes de serem distribuí-das para a população. Deste modo, determinadas partes do território seriam destinadas à produção de água potável, protegida de toda intervenção humana poluente, como os territórios florestais (cf. MARSILY, 2002, p. 88-89).

Essa proposição de criação de parques naturais hidrológicos ou hidrogeológicos (a deno-minação utilizada varia) tem o mérito de se inscrever em uma lógica preventiva, contra as poluições pontuais e difusas, por meio de bacias protegidas sob um regime estrito (por exemplo, agricultura sem insumo químicos, zonas de lazer, espaços florestais), sofrendo poucos tratamentos ou tendo poucos produtos indesejáveis.

Além disso, os parques naturais hidrológicos teriam uma vantagem de ordem econômica, dado que “produzir água potável sem tratamento ‘economiza’ à sociedade um custo por hectare de solo por bacia de uma ordem de grandeza comparável ao que pode oferecer a cultura poluente e intensiva do mesmo hectare” (MARSILY et. al., 2005, p. 24). Tal ideia é aplicável para as fontes de águas minerais da França e de alguns países como Bélgica, Irlanda e Austrália, por exemplo (MARSILY et. al.;, 2005). Todavia, duas questões importantes devem ser consideradas: o custo do transporte da água até as aglomerações e a propriedade das terras. Vale, ainda, dizer o encargo que seria incumbido a apenas um município em favorecimento de outros (MARSILY, 2009).

A gestão contratual das águas: um quadro complementar para a proteção das áreas de captações

A contratualização constitui uma forma de produção de normas que encontra uma impor-tância considerável no direito ambiental francês (cf. FONTAINE, 2010). Não obstante, já que o ca-ráter imperativo e unilateral do direito moderno coexiste com esse direito flexível, negociado (negocié) (cf. CHEVALLIER, 2003), pode-se afirmar que em determinadas tipologias contratuais, como os contratos de agricultura sustentável na França, tendo uma contrapartida do poder público com rela-ção à adesão dos agricultores, os contratos configuram uma sorte de complementaridade, devendo necessariamente ir além do mínimo legalmente exigido (cf. BOSC, DOUSSAN, 2009, p. 69).

Em áreas de maior extensão territorial, notadamente atingidas pelas poluições difusas, impõe-se a negociação entre os atores sob forma de engajamentos que não correspondem neces-sariamente aos contratos enquanto categoria juridicamente definida.Os contratos que servem à proteção das áreas de alimentação de captações Os contratos agroambientais

As medidas agroambientais, baseadas na adesão voluntária dos agricultores em contrapar-

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tida a uma remuneração, fazem parte da aplicação da Política Agrícola Comum (PAC) através da contratualização. Como afirma Bodiguel (2008, p. 38):

desde os anos 1990, a fórmula contratual foi considerada como o instrumento mais eficaz para conduzir, sem brutalidade, os pro-dutores para mudanças nas práticas de cultura ou de produção animal. Trata-se de uma verdadeira escolha política fundada sobre o voluntariado e o consensualismo.

Nessa perspectiva, pode-se mencionar os contratos de agricultura sustentável, que substituí-ram os contratos territoriais de exploração desde a edição do Decreto n. 2003-675 de 22 de julho de 2003. Os contratos de agricultura durável são contratos administrativos assinados por um período de cinco anos entre o Estado e o agricultor, tendo por objeto incitar o produtor a pôr em prática ações favorecendo o meio ambiente ou objetivos econômicos e sociais, como o desenvolvimento em áreas de qualidade e de emprego, os objetivos ambientais referindo-se notadamente à luta contra erosão dos solos, a preservação e a fertilidade dos solos, a água, a diversidade biológica, entre outras.

O Decreto n. 2007-1261, de 21 de agosto de 2007 relativo ao financiamento das explora-ções agrícolas revogou as disposições relativas ao contrato de agricultura sustentável, tais normas restando aplicáveis aos contratos celebrados antes da publicação do referido decreto, em 24 de agosto de 2007.

Assim, o Decreto n. 2007-1342, de 12 de setembro 2007, relativo aos engajamentos agro-ambientais e que modifica o código rural prevê a possibilidade de subscrição de engajamentos agroambientais a fim de pôr em prática uma ou várias medidas em favor da proteção e da melhoria do meio ambiente. As medidas ambientais previstas são postas em prática por meio de dispositivos, tendo sido definidos nove para Hexágono: dois dispositivos nacionais, seis dispositivos desconcen-trados com um caderno de encargos nacional e um dispositivo desconcentrado zoneado (as Me-didas Agroambientais Territorializadas – MAET), este último centrado sobre as bacias prioritárias relativamente à diretiva-quadro sobre a água assim como sobre as zonas Natura 2000, conforme prevê a circular DGPAAT/SDEA/C2011-3030, de 22 de abril de 2011, sobre o Programa de De-senvolvimento Rural Hexagonal (PDRH) 2011-2013. Nessa perspectiva, a proteção das áreas de alimentação de captações pode ser objeto destes engajamentos pelos agricultores que ali possuem terrenos, à exemplo das MAET propostas na área de alimentação de captação de Guiscard.

Por outro lado, há também contratos que não têm um conteúdo pré-determinado, vale dizer, que são concebidos de maneira espontânea pelos atores locais envolvidos, em razão de uma maior adaptabilidade às situações. Ao passo que o serviço de distribuição de água incumbe aos municípios, a instauração no plano jurídico das áreas de alimentação de captação limita este exercício, sobretudo no que se refere às demandas que fazem objeto de indenização. Como afirmam Bosc e Doussan (2009, p. 79), “se determinadas medidas podem ser objeto de ajudas públicas, o programa de ações indica as condições e modalidades de atribuição”. O mesmo ocorre com a redução da margem de negociação do conteúdo das ações, já que ele se encontra definido no programa. Esta

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redução de liberdade de ação dos atores locais é colocada em relevo pelos mesmos autores: “(...) nessas zonas, os atores locais têm um ano para negociar as práticas e suas indenizações [já que o préfet torna obrigatórias as medidas caso os resultados não sejam atingidos ao término de um ano] e obter os resultados em termos de melhoria da qualidade da água...” (2009, p. 79).

Os contratos de rio e de baíaOs contratos de rio (contrats de rivière) constituem uma iniciativa voluntária entre vários ato-

res públicos e privados, caracterizando-se, destarte, por “um modelo de negociação territorial ba-seado na construção de política pública ‘por baixo’ [par le bas]” (tradução nossa), dado que os atores locais exercem um papel significativo, quando, por exemplo, da fase de elaboração do contrato. Tal engajamento consiste em um programa, no âmbito de uma bacia, cobrindo um período plurianual financiado por parceiros tais como a Europa, o Estado, as agências de águas, as regiões, os depar-tamentos. Os contratos de rio (estendidos às baías pela circular interministerial de 13 de maio de 1991) foram previstos inicialmente pela circular de 5 de fevereiro de 1981, como uma continuidade às operações “rios limpos” (rivières propres) – as quais visavam à restauração dos cursos d’águas dei-xadas ao abandono – de modo a reabilitar as ações de conservação regular dos cursos d’água e de servir como “instrumento de realização das cartas departamentais de objetivos de qualidade sobre determinados rios.” (BRUM, 2010, p. 46, tradução nossa).

Os dispositivos que regem os contratos de rio e de baía foram, ao longo do tempo, base-ados sobre circulares. Assim, o procedimento de elaboração dos mesmos era previsto pelas circu-lares de 22 de março de 1993 e de 24 de outubro, ambas revogadas pela circular de 30 de janeiro de 2004. Tais contratos podem ter, como objeto, trabalhos de saneamento, prevenção contra as inundações, conservação e a restauração de margens e do leito, a qualidade de água, luta contra as poluições difusas e a proteção das águas para o consumo humano. Como afirma Brum (2010), apesar de ser designada como um contrato, tal instrumento caracteriza-se sobretudo como um engajamento moral. Por consequência, ele não tem os efeitos jurídicos inerentes a um contrato.

Nesse sentido, como sugere Drobenko (2007), a julgar pelo modo com que o contrato de rio se constitui atualmente, trata-se de uma “ferramenta programatória de financiamento” (DRO-BENKO, 2007, p. 111) que poderia mais corretamente designar-se como um “programa de gestão de um rio” ou “programa financeiro com objetivo ambiental” (DROBENKO, 2004, p. 399). As-sim, o autor propõe uma reforma de fundo deste instrumento, a fim de lhe conferir um estatuto jurídico preciso, que defina os papéis de cada ator e as sanções em caso de transgressão.

Em maio de 2008, 85 contratos haviam chegado ao termo final, 55 contratos assinados em execução, 58 em fase de elaboração e 18 “suscetíveis de serem implementados nos próximos anos” (BRUN, 2010, p. 315).

Considerações finaisA proteção das áreas de captações de águas destinadas ao consumo humano constitui uma

relação de convergência entre as questões sanitárias e ambientais. Segundo Truchet (2007, p. 939, tradução nossa), saúde e meio ambiente são “estados, situações que não se pode delimitar com a

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precisão que a análise jurídica requer normalmente”. Tendo em vista que o direito ambiental e o direito sanitário têm objetos difíceis de delimitar, as finalidades de cada um desses ramos jurídicos, vale dizer, a proteção da saúde humana e a proteção ambiental, importam tanto quanto os respecti-vos campos materiais (DE FORGES, 2004; PRIEUR, 2004; VAN LANG, 2002). Nesse sentido, as finalidades devem passar diretamente às ações, sem se limitarem a considerações teóricas distantes da realidade para nela intervirem. Assim, os instrumentos de proteção das áreas de captação em di-mensões territoriais mais extensas ou reduzidas exercem um papel importante, visto que tais áreas constituem um quadro privilegiado de interações entre o Homem e o meio natural, contribuindo igualmente para uma garantia de abastecimento sustentável de água às populações.

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DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E AMBIENTALISMO/ DEMOCRA-CY, HUMAN RIGHTS AND ENVIRONMENTALISM

Leandro Ferreira Bernardo17

Sumário: Introdução. A democracia no mundo ocidental; A emergência do valor “direitos huma-nos”; A emergência da problemática ambiental; Ambientalismo X Democracia; Os direitos am-bientais como direitos humanos?; Considerações finais; Referências.

Resumo: O racionalismo moderno nos legou importantes institutos e valores que se constituíram nos fundamentos da sociedade ocidental nos últimos séculos. Os ideários da liberdade do indiví-duo, da igualdade entre os homens dentro de uma mesma sociedade, a vontade da maioria, surgem, assim, dentro daquela tradição, como superiores aos demais valores. Por outro lado, a realidade atu-al tem imposto uma reanálise daqueles institutos que leva em conta os direitos dos grupos sociais minoritários e a questão ambiental. O presente trabalho tem por objeto, assim, analisar três institu-tos surgidos nos últimos séculos, como frutos de importantes momentos da história. Tratar-se-ão as relações existentes entre Democracia, Direitos Humanos e Ambientalismo, suas aproximações e, sobretudo, formas de superar as dificuldades decorrentes de possíveis choques entre vontade popular e o resguardo de outros valores.

Palavras-chave: democracia; direitos ambientais; ambientalismo.

Abstract: The modern rationalism has given us important institutions and values that formed the foundations of the Western society in the lasts centuries. The ideals of individual liberty, equal-ity between men within a society, the will of the majority, this way, appear within that tradition, as superior to other values. On the other hand, the current reality has imposed a review of those institutions in a new light, which takes into account the rights of minority social groups and the environmental issues. This paper purpose analyze, this way, three institutes have arisen in recent centuries, as fruits of important moments in the history. This paper will analyze the relationship between democracy, human rights and environmentalism, their approaches and, above all, ways to overcome the difficulties arising from possible confrontation between popular will and the other values.

Key-words: democracy; human rights; environmentalism.

17 Mestrando em Direito Socioambiental na PUC/PR, na área de Sociedades e Direito. Procurador Federal. E-mail: [email protected].

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Introdução

O período das grandes revoluções liberais na Europa e Estados Unidos, em fins do século XVIII e início do século XIX, fundadas nos lemas da liberdade do indivíduo e na igualdade de to-dos, foram responsáveis por uma mudança no paradigma de organização social, com repercussões em todo o mundo.

Por outro lado, a precipitação de novos eventos ocorridos ao longo do século XX – em especial a eclosão de duas guerras mundiais e a constatação de que vários grupos minoritários dentro dos espaços estatais estavam sujeitos a toda sorte de abusos – fez eclodir o discurso dos direitos humanos no mundo.

Já se fazia sentir nas últimas décadas do século XX a preocupação com outra questão que traz impactos diretos à vida em sociedade. Trata-se da questão ambiental, que ganha cada vez maiores espaços de debate, à medida que se agravam os problemas de degradação do meio em que vivemos.

A emergência da preocupação com os direitos humanos – independentemente de se per-tencer a um grupo minoritário dentro de determinada sociedade ou se ostentar uma nacionalidade diversa ou não identificada – e a necessidade de se preservar valores e bens ainda que contra a vontade da maioria impõem uma releitura dos valores e institutos formulados na modernidade racionalista europeia. A Democracia no mundo ocidental

O início da modernidade na Europa, contextualizada entre fins do século XIV e início do século XV, é marcado por um período de maior centralização do poder público, na figura dos Estados-Nação. Naquele momento histórico, caraterizado por uma expansão marítimo-comercial, os Estados, juntamente com o poder religioso, passam a deter grande preponderância sobre a ação dos cidadãos. É o período dos Estados absolutistas, caracterizado por uma restrição à liberdade do povo maior do que aquela experimentada na Idade Média (cf. KERSTING, 2003, p. 47).

Em contraposição àquele estado de coisas, começaram a se desenvolver a partir do sécu-lo XVII importantes correntes filosóficas que propugnavam maiores liberdades ao povo, e uma menor intromissão do Estado nos assuntos de caráter particular. Merecem destaque, aí, as teorias contratualistas, com concepções individualistas da sociedade (KERSTING, 2003, p. 40).

De acordo com Hobbes, um dos mais importantes teóricos contratualistas, o homem pos-sui uma individualidade intrínseca, decorrente de sua natureza. Nas palavras de Kersting (2003, p. 42), o homem seria:

[...] um indivíduo a-social, desprovido de vínculos, situado fora de todas as ordens preexistentes da natureza, do cosmo e da criação e que só pode contar consigo mesmo e com sua inteligência. A filosofia política de Hobbes é o local de nascimento do indivíduo moderno, atomístico, livre de tudo e absolutamente soberano, o qual só pode ser compreendido de modo adequado como projeto

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construtivo contrário ao ser humano comunitariamente integrado da tradição […].

Essas teorias individualistas da sociedade funcionariam como o principal mote para a eclo-são de vários movimentos sociais que surgiram entre fins do século XVIII e início do século XIX, dos quais se destaca, principalmente pela sua repercussão no mundo, a Revolução Francesa, com a consequente aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 178918.

Como consequência daquelas teorias, movimentos e revoluções, e fundada sobremaneira na ideia de liberdade é que surge a democracia moderna (cf. BOBBIO, 2004, p. 109). O ideário de-mocrático, ao reservar ao povo o verdadeiro poder soberano na sociedade política, garantia maior liberdade ao cidadão na participação dos assuntos estatais e, em contrapartida, uma maior restrição à ação do Estado nos assuntos particulares19. Estabelece-se, neste período, como nunca antes, uma clara separação entre o público e o privado.

O individualismo é o fundamento maior da democracia surgida naquele período (BOB-BIO, 2004, p. 57). A vontade estatal seria decorrência do poder popular (WOODS, 2011, p. 45). Assim, obviamente, a vontade da maioria, embora nunca absoluta, passa a ser determinante na direção da ação estatal (ROUSSEAU, 2011, p. 35).

Não demorou muito para que ganhasse força na maioria dos países ocidentais a ideia de democracia e que, dentro dos Estados, passasse-se a garantir, ainda que formalmente os seus valo-res. O século XIX foi o momento de grande expansão dos regimes democráticos.

Embora o regime democrático representasse infindáveis vantagens sobre o sistema ante-rior, não foi capaz de garantir, de fato, o acesso à liberdade propugnada. Além disso, muitas vezes travestida de uma “vontade do povo”, o sistema, na prática, concorria para a garantia de direitos a alguns grupos a despeito de outros. O direito, embora aparecesse como fundamental para a or-ganização do Estado e na limitação do poder (FERREIRA FILHO, 2007, p. 4), representava uma importante ferramenta para a manutenção daquele status inalterável (HABERMAS , 2003, p. 82).

Assim, após a conquista pela sociedade de novas liberdades políticas, inclusive a participa-ção democrática na esfera pública, tornou-se necessário, por outro lado, o surgimento de formas de limitação ao poder da maioria (RAWLS, 2000, p. 372). Observou-se que o “governo do povo” não era ilimitado em seu poder, uma vez que deveria observar os direitos individuais mínimos, inclusive das minorias, sob pena de ilegitimidade (TOCQUEVILLE, 1987, p. 193).

Não se poderia impor àquela minoria definitivamente uma decisão que lhe fosse prejudi-cial, tendo em vista que, no futuro, poderia ser maioria (HABERMAS, 2003, p. 224). Nesse sentido

18 Embora de maior repercussão, a Revolução Francesa é posterior e se inspira, em grande medida, na Revolução Americana (1776).

19 Estabelece-se aí uma grande diferença no conceito de liberdade moderno quando contrastado com aquele imperante na antiguidade. Enquanto na modernidade a liberdade possui um caráter negativo, de não intromissão do Estado nos assuntos particulares, na antiguidade aquela liberdade consiste no poder de participar dos assuntos sociais.

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é que Tocqueville (1987), no século XIX, apresenta em diversos momentos a preocupação com um de desvirtuamento da democracia, quando se eleva a vontade da maioria a um verdadeiro dogma. Para o autor, o despotismo parecia “particularmente temível nas eras democráticas” (TOCQUE-VILLE, 1987, p. 534).

A emergência do valor “Direitos Humanos” A instalação do regime nazista na Alemanha foi marcada pela negação de direitos fun-

damentais a milhões de pessoas não pertencentes ao grupo hegemônico no território sob sua dominação. A indivíduos e grupos minoritários, em especial os judeus, foram suprimidos o reco-nhecimento da nacionalidade e, consequentemente, o status de cidadãos pertencentes àquele Estado (cf. PIOVESAN, 2010, p. 123).

A ausência de reconhecimento daquela nacionalidade pelo Estado alemão, somada à recusa de outra nacionalidade a que pudesse recorrer, tornava esses grupos detentores de praticamente nenhum direito (cf. TOCQUEVILLE, 1987, p. 193).

O conceito de Estado-Nação, que combinava o poder público com determinada comuni-dade, parecia necessitar de limites mais enfáticos (ARENDT, 1989, p. 262). Tornou-se evidente a necessidade de um grande incremento na proteção dos direitos dos indivíduos e grupos, indepen-dentes de sua nacionalidade, mas, pelo contrário, decorrente da condição de ser humano. A defesa dos direitos humanos passou a ser uma preocupação cada vez mais supra estatal (cf. PIOVESAN, 2010, p. 123).

Em resposta às violências praticadas na Segunda Guerra, importantes organismos e do-cumentos na ordem internacional foram criados. Em 1945, surge oficialmente a Organização das Nações Unidas e, em 1948, é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (cf. PIO-VENSAN, 2010, p. 116). De acordo com Hannah Arendt (1989, p. 324):

a Declaração dos Direitos Humanos destinava-se também – ao lado da pretensa elevação do Homem a um status de maior liber-dade, independente da sua condição social – a ser uma proteção muito necessária numa era em que os indivíduos já não estavam a salvo nos Estados em que haviam nascido, nem [...] seguros de sua igualdade perante Deus.

Sobretudo na segunda metade do século XX, multiplicaram-se os instrumentos de defesa dos direitos humanos na esfera internacional, inclusive com a criação de tribunais internacionais (cf. PIOVESAN, 2007, p. 109), a fim de garantir maior eficácia aos seus preceitos (cf. BOBBIO, 2004, p. 40). Multiplicaram-se, também, neste período, o reconhecimento de direitos a grupos específicos de pessoas, em função de suas deficiências específicas (cf. ARAUJO & LEITÃO, 2007, p. 31).

Embora submetida a avanços e retrocessos, reconhece-se, no âmbito dos mais importantes organismos internacionais, enfim, a defesa dos direitos humanos como questão pertinente a toda humanidade (PIOVESAN, 2007, p. 113). Sem dúvida, a proteção dos direitos humanos não encon-

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trou repercussão apenas na esfera internacional. Constata-se, nas últimas décadas, um movimento de internalização de garantias aos direitos humanos pelos mais diversos ordenamentos nacionais ao redor do mundo.

O desenvolvimento da ideia de direitos humanos representou, fundamentalmente, a neces-sidade de se criar novos limites e novas obrigações aos Estados, como forma de garantir os direitos mais básicos de toda pessoa ali inserida, independente de pertencer ou não a qualquer categoria hegemônica.

Ao estabelecer a necessidade de uma nova conformação do Estado, os direitos humanos representaram também, nesse sentido, uma limitação maior à vontade estatal, fosse esta formada por um grupo hegemônico, fosse ela formada de modo democrático (cf. ARENDT, 1989, p. 169). Em outro sentido, para que a ação estatal possua legitimidade não é suficiente apenas que seja fundada na vontade democraticamente expressa pela maioria do povo, mas, também, que respeite e promova os direitos humanos (cf. HABERMAS, 2003, p. 133).

Assim, cada vez mais, o ser humano passa a ocupar papel central, tanto no âmbito in-ternacional, como interno (cf. TRINDADE, 2006, p. 18) e, nesse sentido, passa a ser elemento fundamental na aferição do desenvolvimento dos Estados a apuração da garantia dos direitos mais básicos ao homem (SEN, 2000, p. 31).

O reconhecimento da primazia dos direitos humanos nas últimas décadas fez alterar ou relativizar conceitos anteriormente tidos por imutáveis ou intocáveis. Isso se dá, hoje, em relação ao conceito de Estado e os limites de sua soberania (HÄBERLE, 2007, p. 1). No âmbito internacional, os movimentos de maior garantia aos direitos humanos têm permitido a criação de mecanismos inimagináveis até pouco tempo atrás. Tal se dá com o acesso do indivíduo diretamente, e indepen-dente de provocação dos Estados, aos mais diversos órgãos e foros internacionais (PIOVESAN, 2007, p. 121).

Exemplo de maior acesso do indivíduo aos organismos internacionais de garantia ocorre dentro do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, em que se defere ao indiví-duo uma série de instrumentos que o capacitam a reivindicar seus direitos e apontar a sua violação dentro dos Estados (ALTHAUS; BERNARDO, 2011).

Embora nas últimas décadas tenha ocorrido uma verdadeira revolução na esfera interna-cional de proteção dos direitos humanos, não se pode deixar de constatar como preponderante a internalização dentro dos Estados. De acordo com Kersting (2003, p. 94), no atual desenvolvimen-to dos direitos humanos a função reservada ao Estado, resta insubstituível. Defende o autor que:

o único ser humano relevante em termos de fundamentação teóri-ca dos direitos humanos é um ser finito, mortal, vulnerável e capaz de sofrer; a proteção dos direitos humanos baseia-se na simples evidência da vulnerabilidade humana e na preferencialidade, não menos evidente, de um estado de ausência de assassinato e homi-cídio, dor e violência, tortura, miséria e fome, opressão e explora-ção. E essa proteção só pode ser concedida num Estado. Os direi-

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tos humanos são, por conseguinte, essencialmente um direito ao Estado; a ligação entre os direitos humanos e a pertença a um Es-tado nacional é bem mais estreita do que pensam os cosmopolitas.

O discurso dos direitos humanos tem mobilizado uma maior proteção aos homens, pro-teção esta não restrita aos limites dos Estados. A historicidade do surgimento daquele discurso, como resposta a uma série de desrespeitos à integridade de grupos e indivíduos não pertencentes às maiorias, não impede que novos direitos sejam a ele integrados. Pelo contrário, aquela historicidade impõe que dentro dos direitos humanos sejam enquadradas as novas necessidades fundamentais do ser humano, com o passar dos tempos.

A emergência da problemática ambiental O desenvolvimento da sociedade industrial nos últimos séculos, a par de trazer grandes

benefícios à humanidade, provocou consequências muito graves para o meio em que habitamos. Ações do homem sobre o meio ambiente, como poluição do ar, das águas, devastação das florestas, contribuíram, em grande medida, para problemas sentidos em todo o planeta.

A temática ambiental tem entrado na pauta das principais discussões de interesse da hu-manidade nos últimos anos. Um importante marco histórico foi a ocorrência da Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, no ano de 1972, a primeira ação importante em nível mundial com o intuito de tratar da temática ambiental.

A emergência da questão ambiental no cenário mundial se deve à constatação de que há sinais claros de esgotamento do sistema de produção industrial, sob o qual se fundou nossa sociedade nos últimos séculos, que coloca em lados opostos o desenvolvimento econômico e a preservação dos recursos naturais (cf. LEFF, 2009, p. 89).

As evidências de graves danos causados na natureza, somada à existência de riscos reais de dimensões incalculáveis, em função da ação humana, já não permitem uma posição de passividade (cf. BECK, 2006, p. 113). Nesse ponto, a variável “ambiental”, desprezada tanto pelo sistema pro-dutivo até então vigente, como pela crítica que lhe fora ordinariamente dirigida (cf. LÖWY, 2005, p. 42), tem se transformado numa das principais barreiras à exploração irracional e pela construção de alternativas de desenvolvimento para a humanidade (cf. CAPRA, 2004, p. 23).

Tanto no âmbito internacional, como dentro dos Estados, a temática ambiental tem ga-nhado maior relevância nas últimas décadas. De acordo com Capella (1998, p. 159), “em nosso próprio tempo, a problemática ecológica está passando ao primeiro plano, da autoconsciência não ideológica da humanidade em várias formas”.

A menos que o homem passe a utilizar os recursos existentes no meio de forma susten-tável, corremos graves riscos para a manutenção da vida das futuras gerações. Esta constatação traz como exigência lógica a necessidade de um desenvolvimento que tenha pressupostos diversos daqueles propalados pela sociedade industrial. De acordo com Leff (2009, p. 9):

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A sustentabilidade é o tema do nosso tempo, do final do século XX e da passagem para o terceiro milênio, da transição da moder-nidade truncada e inacabada para uma pós-modernidade incerta, marcada pela diferença, pela diversidade, pela democracia e pela autonomia.

Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, inúmeros organismos foram criados e vários documentos aprovados no âmbito internacional, a fim de tratar dos mais diferentes problemas ambientais e da necessidade de preservação dos bens ambientais. Movimento parecido, e influen-ciado pelo desenvolvimento da temática no direito internacional, deu-se dentro dos ordenamentos jurídicos internos dos países.

Atualmente, uma grande parte dos países do mundo possui legislação voltada à proteção ambiental e, ainda que não haja uma perfeita similitude naquela proteção, em razão das peculiarida-des locais de cada país, é possível verificar que a normatização internacional tem funcionado como um importante norteador da ação dos Estados (cf. LIBERATO, 2007, p. 15).

ambientalismo versus DemocraciaA emergência da questão ambiental nas últimas décadas em todo o mundo tem tornado

presente, cada vez mais, o debate sobre a necessidade de novos limites ao sistema produtivo, prin-cipalmente quando a produção em tela deixa de considerar os efeitos maléficos trazidos ao meio ambiente (cf. CAPELLA, 1998, p. 161).

Por outro lado, a importância da questão ambiental está longe de se limitar apenas ao sis-tema produtivo industrial, embora este tenha sido o principal desencadeador do esgotamento dos recursos naturais pela mão do homem. Pelo contrário, tendo em vista a inserção do homem dentro do meio em que habita, a temática ambiental traz reflexos para as mais diversas relações e áreas do saber (CAPRA, 2004, p. 26). No que toca ao presente trabalho, importa, em especial, os resultados decorrentes da interação entre o ambientalismo e a democracia.

Como já observado anteriormente, o sistema democrático representou para muitos países uma verdadeira revolução na forma de organização do poder público, na medida em que repre-sentava uma alternativa aos regimes despóticos até então existentes, bem como representava uma maior garantia dos direitos individuais do povo, inclusive em face do Estado.

Entretanto, a constatação de que os problemas de ordem ambiental trazem reflexos impossíveis de serem limitados no espaço – a apenas algum país ou região – e no tempo – uma vez que seus efeitos perduram à posteridade –, o fundamento individualista do sistema democrático deve se submeter a novos filtros.

Um exemplo potencial de embate entre os valores ambientais e os democráticos ocorre quando interesses de repercussão social mais imediata se sobrepõem à necessidade de se garantir um desenvolvimento que respeite os limites da natureza. É o caso de interesses econômicos, como a geração de empregos (BERNARDO, 2011, p. 165), que sobrepujam a preservação do meio em que se vive. Nesse ponto, afirma Souza Filho (2005, p. 33) que são

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contradições muito mais complexas, porque não comportam definição jurídica prévia, são aquelas existentes no próprio seio de uma comuni-dade, como, por exemplo, a preservação cultural ou natural, e o chama-do desenvolvimento econômico. Essas situações são corriqueiras e têm afetado com especial ênfase os bens ambientais naturais.

Diante da possibilidade de que os valores ambientais venham a ser preteridos em favor de outros mais imediatos, ainda que legitimados por uma vontade coletiva democraticamente eviden-ciada, a questão que se coloca é saber se existiriam limites à vontade da maioria, e quais os limites para a expressão dessa maioria (cf. CAPELLA, 1998, p. 60).

De acordo com Leff (2009, p. 67), o ambientalismo exigiria uma mudança das teorias e valores preexistentes, em favor de uma racionalidade – não mais predominantemente econômica e produtiva – mais próxima às interações entre natureza e cultura. Esta racionalidade ambiental deve representar um limite à vontade estatal, ainda que esta tenha sido alcançada de forma democrática, ou seja, mediante deliberação e concordância da maioria dos cidadãos.

Assim como o desenvolvimento dos direitos humanos representou uma limitação à ação dos Estados, em função da necessidade de proteção dos indivíduos – sobretudo de grupos não hegemônicos – pela simples ostentação de uma condição humana, o ambientalismo deve se sobre-por a interesses mais imediatistas, tendo em vista que as consequências dos danos ambientais são suportadas por uma quantidade incalculável de pessoas, não restritas a lugar e tempo definidos.

Por outro lado, tendo em vista a inexistência de um discurso ambientalista único, há dificul-dades para a implementação de limites claros que venham a ser respeitados pela ação do homem e do Estado. Pelo contrário, muitas vezes os discursos ambientais são contraditórios (cf. HARVEY, 2010, p. 138). Diante disso, o ambientalismo representa o surgimento de novos limites à democra-cia e ao individualismo que lhe dá fundamento. Tratam-se de limites fundamentais para garantir a manutenção da vida no planeta (BOFF, 2010, p. 2).

Tais limites democráticos impostos pelo ambientalismo tendem a reduzir-se na medida em que a educação ambiental seja adequadamente levada a toda a humanidade (SANTILLI, 2005, p. 158). Por outro lado, a implementação de tais limites pode significar, legitimamente, restrições à democracia, na atualidade, quando se observa que o conhecimento dos problemas ambientais ainda é deficiente e que o risco de um agravamento dos problemas ambientais é real e torna necessária a adoção de medidas em caráter de urgência (cf. CAPELLA, 1998, p. 57).

Os Direitos Ambientais como Direitos Humanos?Observa-se, na atualidade, o agravamento da crise ambiental e dos prejuízos para toda a

humanidade, inclusive para as gerações futuras. Embora seja inegável a expansão da proteção am-biental, tanto no âmbito internacional, como dentro dos ordenamentos jurídicos estatais, há várias dificuldades, ainda, para uma mais completa efetivação dos valores ambientais.

A mais importante, como acima citado, seria a existência de barreiras – muitas delas demo-craticamente impostas – que relegam o ambientalismo a um segundo plano, quando este representa

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óbice ao desenvolvimento econômico. Estas barreiras muitas vezes acabam por impedir a real efetividade jurídica das normas ambientais existentes (BOBBIO, 2004, p. 7). Nesses casos, ainda se parte de concepções que desvinculam o desenvolvimento humano do destino do meio em que vivemos.

Por outro lado, tem se desenvolvido nas últimas décadas teorias que aproximam o discurso dos direitos humanos à necessidade de preservação ambiental (LEFF, 2009, p. 92). Tal aproximação decorre da constatação de que a proteção dos direitos humanos decorre logicamente da garantia de um meio ambiente equilibrado, ou, em outras palavras, a negligência com a segurança do meio reflete diretamente na proteção dos direitos de toda a humanidade (LÖWY, 2005, p. 73). Neste ponto, afirma Leff (2009, p. 90):

Além do direito a um bem-estar fundado na satisfação de neces-sidades básicas (vestido, trabalho, educação, moradia), a Carta dos Direitos Humanos incorporou o direito a um ambiente sadio e produtivo, inclusive os novos direitos coletivos para a conserva-ção e aproveitamento do patrimônio comum de recursos da hu-manidade, pela dignidade e pelo pleno desenvolvimento das facul-dades de todos os seres humanos.

Por um lado, sabemos que os direitos humanos são produtos culturais, surgidos em uma realidade específica, e que ostentam valores, regras, objetivos de difícil delimitação (FLORES, 2009, p. 14). Por outro lado, a aproximação do ambientalismo e dos direitos humanos tem se tornado cada vez mais efetiva à medida que se tem adotado uma concepção mais ampla de direitos humanos (cf. SEN, 2000, p. 35) e de ambientalismo (cf. SOUZA FILHO, 2005, p. 15).

Decorrem importantes efeitos práticos da aproximação entre aqueles dois valores. Obser-ve-se que, como já explicado acima, houve um grande desenvolvimento dos sistemas protetivos de direitos humanos nas últimas décadas, sobretudo no âmbito internacional. Esse sistema conta, hoje, com inúmeras instituições que garantem a aplicação dos direitos humanos de forma razoavel-mente impositiva, inclusive com a imposição de sanções no caso de descumprimento das obriga-ções que prevê (cf. SEN, 2000, p. 261).

O reconhecimento da questão ambiental como efetivamente um problema que afeta dire-tamente o ser humano poderia permitir a sua inclusão no rol dos direitos humanos. A consequência mais importante para tal inclusão seria a garantia de maior efetividade ao ambientalismo, na medida em que passaria a contar com todo o sistema previamente existente de proteção aos direitos huma-nos (cf. NICKEL, 2001, p. 615).

Não há um rol exaustivo dos direitos humanos preexistentes que possa se contrapor à inclusão dos direitos ambientais em seu rol. Pelo contrário, reconhece-se a historicidade dos direitos humanos, de modo que é perfeitamente cabível a inclusão de novas garantias na medida em que surgem novas necessidades ao ser humano, como se dá no caso do ambientalismo (cf. PIOVESAN, 2010, p. 113).

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Considerações Finais

A democracia representou uma importante conquista da humanidade – sobretudo na Europa setecentista – no caminho da garantia de maiores liberdades ao cidadão e de transferência da legitimidade do poder estatal ao povo. A este passou a ser deferida a legitimidade, até então nas mãos dos monarcas, de decidir os rumos do Estado e ao indivíduo eram garantidas liberdades impensáveis no regime antecessor.

Contudo, a ação estatal, ainda que pudesse traduzir a vontade popular democraticamente expressa, demonstrou não ser imune a desvios, sobretudo quando a vontade da maioria deixava albergar garantias mínimas a grupos minoritários.

Sobretudo no período da Segunda Guerra Mundial, verificou-se a necessidade de maiores garantias ao ser humano, independente de sua nacionalidade ou enquadramento em grupos ma-joritários dentro de cada nação, tomando para isso o preceito de que bastaria atestar a condição humana para que se garantisse o acesso a direitos fundamentais básicos.

Assim, nas últimas décadas houve um aprofundamento das garantias dos Direitos Huma-nos no mundo, inicialmente na esfera internacional e depois dentro dos Estados. Após anos de desenvolvimento, os Direitos Humanos contam com vários sistemas normativos e organismos que lhe garantem uma não desprezível efetividade.

A emergência da questão ambiental expõe novas problemáticas à humanidade, principal-mente no que diz respeito à forma de exploração dos recursos naturais e, consequentemente, apresenta novos desafios para a organização da sociedade política. A questão ambiental representa, tal como os Direitos Humanos representaram, um limite à ação estatal, mesmo quando esta repre-senta a vontade da maioria.

A potencialidade de que os efeitos da crise ambiental sejam rapidamente aprofundados, de modo, inclusive, a colocar em risco a manutenção da vida no planeta, somada a pouca educação ambiental da população em geral, exige, muitas vezes, soluções demoradas e que contrariem inte-resses mais imediatistas, sobretudo aqueles ligados à acumulação de dinheiro.

O ambientalismo representa, assim, uma nova variável a ser contabilizada na organização do ser humano em sociedade, sobretudo no Estado, e que traz a necessidade de reformulação de institutos já existentes, submetidos a novos limites, como é o caso, p. ex., do poder popular20.

Por fim, a aproximação entre ambientalismo e direitos humanos, diante da inegável imbricação entre a proteção do meio ambiente e a garantia de direitos mínimos de vida ao ser humano, tem tudo para fazer com que se garanta, sobretudo no âmbito internacional, maior efetividade na proteção ambiental.

O reconhecimento do meio ambiente seguro como condição fundamental ao desenvolvi-mento do homem é pressuposto fundamental para se compreender aquele sob uma perspectiva de

20 Sob a perspectiva da emergência da questão ambiental, torna-se necessário a revisão de importantes pressupostos da organização social. Não parece ser possível sustentar o ponto de partida, p. ex., de John Rawls – op. cit., p. 59 – ao afirmar que “apenas com a ideia de que podemos razoavelmente tomar como ponto de partida a estrutura básica da sociedade considerada como um sistema de cooperação fechado e autossuficiente”. Diante da impossibilidade dos problemas ambientais se limitarem a limites intranacionais, a concepção acima se torna impraticável atualmente.

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direitos humanos e, consequentemente, englobá-lo como valor a ser protegido pelos sistemas de proteção de direitos humanos existentes na atualidade.

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o papel do estado na proteÇÃo do patrimÔnio HistÓriCo--CULTURAL / THE ROLE OF THE STATE IN THE HISTORICAL – CULTU-RAL HERITAGE

Marialice Antão de Oliveira Dias21

Sumário: Introdução; Conceito; A descaracterização do patrimônio cultural: um afrontamento às leis protetivas dos bens históricos; A evolução do comportamento correto na preservação do patrimônio histórico; O Estado e a Eco-Rio/92; Políticas Públicas para a proteção do patrimônio cultural; O comportamento sustentável na Constituição Federal de 1988; A cooperação interna-cional na preservação do patrimônio histórico-cultural; A atuação da UNESCO; Tombamento do patrimônio histórico-cultural de Rondônia; O cemitério da Candelária; A estrada de ferro Madeira--Mamoré; Conclusão; Referências.

Resumo: Sob o pretexto de levar às populações um nível econômico que beneficie a sua sobrevi-vência, os empreendimentos grandiosos tem se avolumado de forma irracional, sem levar em conta os sentimentos das comunidades afetadas em relação aos bens que fazem parte da sua história e cultura. Atropelando as leis, os empreendedores, na sua maioria, visam única e exclusivamente os seus próprios interesses. O patrimônio histórico-cultural fica à mercê da vontade ora negativa (empreendimentos irracionais), ora positiva (empreendimentos sustentáveis). O papel do Estado é imprescindível para a continuidade desses bens, quando concilia o desenvolvimento com a con-servação destes.

Palavras-chave: patrimônio histórico-cultural; preservação; Estado.

Abstract: The massive enterprises, under the pretext of bringing people to a level that benefits the economic survival has occurred in an irrational way, without taking into account the feelings of the affected communities in relation to goods that are part of their history and culture. Trampling laws, entrepreneurs, mostly, intended solely for its own interests. The historic and cultural heritage is at the mercy of sometimes negative (irrational enterprises), sometimes positive (sustainable enter-prises). The state’s role is essential to the continuity of these goods, when reconciling development with the preservation of these.

Key-words: historic and cultural; preservation; State.

21 Doutora em Direito pela Universidade de Limoges - França e Mestre em Direito do Urbanismo e do Meio Ambiente. Professora de Direito Ambiental e Minerário da Faculdade de Rondônia (FARO). Vice-Presidente da Associação Amigos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

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Introdução

O nosso atual modelo econômico exige um crescimento contínuo e ilimitado, em contra-posição aos limitados recursos naturais que o sustentam, podendo resultar não só no esgotamento de diversos recursos necessários a sobrevivência dos seres humanos, como também tornar a terra inóspita em função de atividades em uma escala maior do que a necessária para atender às neces-sidades humanas. Tais desequilíbrios, se não forem remediados num tempo próximo, ameaçam a sobrevivência da espécie humana e, quem sabe, a sobrevivência de toda a vida terrestre.

Ao se tratar de Política Ambiental, visualiza-se uma terminologia que caracteriza a decla-ração das intenções do Estado em relação ao seu desempenho ambiental, global e que estabelece uma estrutura para ação e definição de metas ambientais. Neste sentido, o Patrimônio Histórico possui sua importância por estar inserido num sistema de desenvolvimento econômico que tem como paradigma o crescimento irracional, entendendo, porém, que suas bases de racionalidade estão na melhoria de qualidade de vida. Esse tipo de crescimento está sempre em direção oposta à destruição dos bens históricos sob os pretextos de exercício do desenvolvimento, reconhecendo os direitos das gerações presentes e futuras em desfrutar dos bens ambientais do planeta, ao se buscar fazer as atividades humanas funcionarem em harmonia com o sistema natural.

As ações propostas pelo Estado, em forma de planejamento econômico resultante de polí-ticas de governo, nem sempre atendem às expectativas de permitir que as gerações futuras usufru-am de acesso aos bens que representam a história e a cultura de um povo, tais como as ações que levam em conta as potencialidades, as restrições de uso e a proteção dos recursos naturais. Assim determina a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valo-rização e a difusão das manifestações culturais”.

Fiorillo (2011, p. 19) disserta que “ao se tutelar o meio ambiente cultural, o objeto imediato de proteção relacionado com a qualidade de vida é o patrimônio cultural de um povo”. Destarte, se um povo não tem resguardados os seus bens culturais, é um povo sem memória, sem referências, sem raízes e consequentemente tem sua qualidade de vida afetada.

Conceito O artigo 1º do Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, assim conceitua patrimônio

histórico e artístico nacional:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja do interesse público, quer por sua vinculação a fatos memo-ráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arque-ológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

Desta maneira, o Patrimônio Histórico refere-se a um bem móvel, imóvel ou natural que possua valor significativo para uma sociedade, podendo ser estético, artístico, documental, científico, social, espiritual ou ecológico.

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A preservação do patrimônio histórico-cultural teve início no século XIX, após a Revolu-ção Francesa e a Revolução Industrial, cujo objetivo inicial foi restaurar os monumentos e edifícios históricos destruídos na guerra. Neste entendimento, o Patrimônio ambiental é um bem natural que, dado seu valor em biodiversidade, valor econômico ou paisagístico, merece ser protegido pela sociedade.

A descaracterização do patrimônio cultural: um afrontamento às leis protetivas dos bens históricos

Atualmente, há um processo de descaracterização do centro histórico de Porto Velho. Este processo tem o aval de instituições de Estado que possuem o dever de proteger e preservar o Pa-trimônio Histórico, uma vez que, por exemplo, há patrimônios históricos abandonados no pátio da Empresa Navegação Rondônia (ENARO). Com o fim do território federal e o início do Estado, o governo criou a ENARO. Sendo uma empresa de economia mista, suas atividades foram extintas, restando o prédio onde foram abandonados grande parte do acervo da Madeira-Mamoré.

Compunham este acervo: 1. material que fazia funcionar os troles de embarque e desem-barque de carga pesadas para os navios; 2. sino de bronze forjado; 3. duas lunetas que foram uti-lizadas na época da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (desaparecidos); e 3. vinte e dois pares de rodeiras próprios de locomotivas (desaparecidos). Outro aspecto que descaracteriza o patrimônio cultural é descrito como o destelhado do prédio do museu que era coberto com zinco--ferro e substituído por alumínio, anulando o seu aspecto original. Além destas ações de descarac-terizações, soma-se ainda, a falta de programas de educação ambiental.

Estas ações negativas têm contribuído para a descaracterização do patrimônio histórico--cultural de imensurável relevância do Estado de Rondônia. Dessa se descumpre a Constituição Federal; o Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e a Lei dos Crimes Ambientais, Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.

Neste sentido, o Estado pode intervir na propriedade regulando bens (coisas ou locais) particulares ou públicos, em razão da supremacia do interesse público por conter esses bens ines-timável valor histórico e cultural.

Segundo Gasparini (2011, p. 121):

o tombamento nada mais é do que uma servidão administrativa, porém, com outro nome, instituída sempre que o Poder Público deseja preservar determinado bem, seja público ou particular [...] o assunto recebe tratamento diferenciado em razão de sua rele-vância, mas isso não significa qualquer nova espécie de interven-ção na propriedade.

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A finalidade do tombamento é a proteção a própria identidade nacional. Na esfera federal, o órgão responsável pelo tombo é o Instituto Brasileiro do Patrimônio Histórico Artístico Nacio-nal (IPHAN), uma autarquia federal que se vincula ao Ministério da Cultura. Destarte, o tomba-mento é procedimento administrativo, vez que não se realiza em um só ato, mas em uma sucessão de atos preparatórios, essenciais à validade do ato final que somente se efetiva após o registro do objeto tombado no Livro do Tombo.

Afirma ainda Gasparini (2011, p. 121) que o fundamento da atribuição de tomar é tríplice. Político, na medida em que compete ao Poder Público exercer o imperium sobre os administrados, por possuir exercício sobre todas as coisas, bens e pessoas em seu território; constitucional, por estar o tombamento previsto na Lei Maior e legal em razão de existir legislação própria a amparar o tombo.

As limitações ao bem tombado, como já aludido, estendem-se à vizinhança, pois esta não poderá construir de modo a impedir a visibilidade do bem tombado. A interpretação do alcance da expressão “redução de visibilidade”, está definida conforme Meirelles (2001, p. 341):

Redução de visibilidade é muito ampla, pois abrange não só a tira-da da vista da coisa tombada como a modificação do ambiente ou da paisagem adjacente, a diferença de estilo arquitetônico e tudo o mais que contraste ou afronte a harmonia do conjunto, tirando o valor histórico ou a beleza original da obra ou do sítio protegido.

Dispõe o artigo 18 do Decreto-Lei 25 da seguinte forma quanto às restrições aos imóveis vizinhos:

Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada des-truir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinqüenta por cento do valor do objeto.

A lei dos Crimes Ambientais, por sua vez, preconiza a este respeito, ao reportar-se aos crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural e, consequentemente, às agressões ao patrimônio cultural, nos seus artigos 62 a 65:

Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou de-

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cisão judicial:Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local espe-cialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monu-mental, sem autorização da autoridade competente ou em desa-cordo com a concedida:Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueo-lógico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autorida-de competente ou em desacordo com a concedida:Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histó-rico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa.

A Lei da Vida (Lei de crimes ambientais) não só determina no seu bojo as ações claramente degradadoras do retrato da memória popular, como também as sanções que devem ser aplicadas ao degradador. Logo, participa de um âmbito geral de legislações ambientais.

Neste sentido, conforme o princípio 22 da Declaração do Rio:

As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente e no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimen-tos e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses dessas po-pulações e comunidades, bem como habilitá-las a participar efeti-vamente da promoção do desenvolvimento sustentável.

Observe-se que o Estado deve estar imbuído em reconhecer e apoiar as comunidades “de forma apropriada “à identidade, cultura e interesses dessas populações e comunidades”, o que prioriza o seu papel na proteção do patrimônio cultural de forma determinante.

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A evolução do comportamento na preservação do patrimônio histórico

A preocupação com a preservação do patrimônio histórico não é fato novo, o que se constata nos primórdios do século XIX com o desenvolvimento de atividades sistemáticas ocorridas após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial - a priori para restaurar os Monumentos e edifícios atingidos pela Primeira Guerra Mundial. No Brasil, tal preocu-pação está presente. Em 1937, houve o advento do Decreto-Lei 25 e a criação do Insti-tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Machado (2011) afirma que a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 225, combinado com o artigo 81, parágrafo Único, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, mudou a categoria dos bens ambientais. No artigo, estes são tratados como bens públicos e difusos, não significando que teremos livre acesso ao seu uso, mas limitando esse uso quando houver risco de extinção ou inutilidade do bem. Assim, entende-se ser este princípio apropriado não só aos recur-sos naturais, mas também, à cultura, história e sistemas sociais.

a Lei N. 12.343 de 2010, que instituiu o Plano Nacional de Cultura (PNC), criando o Sis-tema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), também reforça a valorização do patrimônio histórico e cultural, o que vem contemplado no seu artigo 2º, I e II:

Art. 2o São objetivos do Plano Nacional de Cultura: I - reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira; II - proteger e promover o patrimônio histórico e artístico, mate-rial e imaterial.

Nestes termos, a história e a cultura são elementos indissociáveis, por ser a forma mais expressiva de identificação pessoal e histórica integrando segmentos intergeracionais, ao permitir que não seja posta em extinção a memória de um povo.

O Estado e a Eco-Rio/92O homem, desde a sua mais remota existência tem buscado de todas as formas modificar

o meio ambiente, não se preocupando com os resultados das suas ações. Preocupados com esta situação, ambientalistas de todo o mundo promoveram movimentos cuja finalidade é a preser-vação das espécies para as presentes e futuras gerações. Movido por essa preocupação, em 1972, na Conferência de Estocolmo criou-se o Princípio do Desenvolvimento Sustentável, de cunho intergeracional.

A despeito disso, só vinte anos depois, mais precisamente na Conferência das Nações Uni-das sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, este princípio foi amplamente divulgado, através do seguinte texto: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvol-vimento sustentável. Eles são designados a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza.” (Princípio 1 da Declaração do Rio).

Nos princípios 5 a 12 desta mesma declaração, observa-se o papel do Estado na aplicabi-

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lidade deste mega princípio, haja vista que este deve cooperar na tarefa essencial de preservação e conservação dos bens ambientais. A Agenda 21, em seus 40 capítulos e 800 páginas, editada na referida Conferência, lançou o conceito de sustentabilidade assim como diretrizes para o desenvol-vimento sustentável.

Ao Estado, a agenda incumbe também a tarefa de promover uma efetiva legislação am-biental, refletindo no seu contexto os padrões ambientais, as prioridades e objetivos de gestão, refletindo o contexto desenvolvimentista e ambiental aos quais se aplicam.

Políticas Públicas para a proteção do Patrimônio CulturalO desenvolvimento econômico e a evolução tecnológica vêm crescendo de forma signifi-

cativa ao longo dos séculos, fato que causa a existência de uma sociedade cuja maior preocupação é o consumo imoderado, levando à prática do extrativismo irracional e alterando o meio ambiente de forma agressiva e devastadora, não só aos recursos naturais, como também aos recursos culturais.

Assim sendo, as políticas públicas ambientais são densificadoras da aplicabilidade estatal dos direitos humanos, não devendo, portanto, dissociar-se da realidade sócio-cultural. Para Següin (2000, p. 67), “a questão não pode ser encarada de forma minimizada nem tampouco paternalista eis que a vitimização ambiental deve ser avaliada no universo das relações humanas”.

Neste termos, as políticas ambientais devem ser direcionadas a todos, sem nenhuma dis-tinção, mas com a participação da comunidade e do Poder Público, já que a estes incumbe a defesa do meio ambiente. Tais políticas, ao lado de programas desenvolvidos em prol de uma economia ecologicamente correta, têm levado comunidades e famílias habitantes de espaços culturais a tomar consciência e buscar formas de manter-se econômica e socialmente através de atividades que con-tribuam também para a conservação dos bens histórico-culturais de seu espaço geográfico.

Quanto aos Estados, o desenvolvimento sustentável vem exigindo-lhes uma nova defi-nição de atuação que deve ser pautada nos princípios da nova forma de desenvolvimento, mas, para isso, é necessário que entrem na era da modernidade administrativa, com o fortalecimento do binômio desenvolvimento/bem cultural.

Os agentes públicos devem estar em sintonia com as tendências mundiais, bem como afe-tos aos métodos que exigem novos paradigmas do desenvolvimento para que possam direcionar estas novas e necessárias funções do Estado. Neste sentido, “a flexibilização, ou seja a mobilidade das decisões em vista dos crescentes e novos desafios, deve ser a tônica da administração dos novos tempos” (SANTOS, 1999, p. 81).

O comportamento sustentável na Constituição Federal de 1988Quando se analisa o direito consuetudinário constata-se que se conhece um povo e seus costumes

através das leis que regem a sua vida em sociedade e a forma como funciona a respectiva Justiça, sendo a lei o meio que possibilita a realização das suas aspirações e ideais. Na primeira Constituição Republicana do Brasil de 1891, assim como as posteriores, não se demonstrou grandes preocupações com o meio am-biente. Porém, a atual Carta Magna Brasileira é considerada como uma das mais inovadoras do mundo em matéria ambiental, influenciando positivamente outros textos constitucionais estrangeiros.

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No artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988, é fato notório tal preocupação quando dispõe que

todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê--lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Constata-se ao analisar este dispositivo constitucional, a função do Estado para a obtenção dos propósitos desenvolvimentistas, especialmente, quando aborda a imposição do mesmo à tutela do meio ambiente, nele compreendido o meio ambiente cultural, “ao se tutelar o meio ambiente cultural, o objeto imediato de proteção relacionado com a qualidade de vida é o patrimônio cultural de um povo” (FIORILLO, 2011), o qual ocorre de forma imediata quando se trata do disposto no caput do artigo 215, IV, V, § 1º, da Constituição Federal:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incenti-vará a valorização e a difusão das manifestações culturais.IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, pro-moverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Machado (2011, p. 52) analisa a atividade de pensar e praticar o desenvolvimento sustenta-do de forma biocêntrica, quando afirma que:

o homem não é a única preocupação do desenvolvimento susten-tável. Nem sempre o homem há de ocupar o centro da política ambiental, ainda que comumente ele busque um lugar prioritário. Haverá casos em que para conservar a vida humana ou para colo-car em prática a ‘harmonia com a natureza’ será preciso conservar a vida dos animais e das plantas em áreas declaradas inacessíveis ao próprio homem.

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A cooperação internacional na preservação do patrimônio histórico-cultural

Para que possa falar em desenvolvimento sustentável, não se pode negar nem desprezar a cooperação internacional – desde que tal cooperação não aspire interferir na política ambiental do País, haja vista que tal comportamento seria uma agressão à soberania nacional. Assim sendo, toda cooperação será sempre bem-vinda, mas a interferência jamais deverá ser tolerada.

Algumas das diretrizes principais para se alcançar o desenvolvimento sustentável estão na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Comissão Brundtland). O relatório Brundtland apresentou uma lista geral de medidas que os Estados deveriam tomar, como: a limita-ção do crescimento populacional, para que a qualidade de vida seja alcançada; a garantia de alimen-tação a longo prazo, uma forma de atender às necessidades humanas de subsistência a preservação da biodiversidade e dos ecossistemas, visando a continuidade das espécies.

Além disso, há também de se observar a necessidade de diminuição do consumo de energia e desenvolvimento de tecnologias que admitem o uso de fontes energéticas renováveis, entenden-do-se com esse comportamento a situação finita dos recursos naturais, o aumento da produção industrial nos países não-industrializados à base de tecnologias ecologicamente adaptadas, não per-mitindo a prática de atividades que venham a degradar de forma irreparável o meio ambiente, o controle da urbanização selvagem e integração entre campo e cidades menores.

As necessidades básicas devem ser satisfeitas para que a função social e ambiental da cida-de ocorra de forma racional. Ficou consignado nas conclusões do Congresso de Cidades Alemãs em 1957, o qual declarava que, para se alcançar os objetivos e metas do urbanismo moderno é necessário contar com uma política do solo que se inspire num justo equilíbrio entre o direito de propriedade imobiliária, constitucionalmente garantido, e o dever que, por sua função social, recai sobre ela e que tem idêntico fundamento constitucional.

Em nível internacional (política externa), tais medidas poderiam ocorrer através da cria-ção de um clima de cooperação e solidariedade internacionais com efetivas ações, criação de um ambiente econômico dinâmico e propício as novas políticas ambientais, apoio recíproco entre co-mércio e meio ambiente, estimular políticas macroeconômicas mais favoráveis ao meio ambiente.

A atuação da UNESCO O Brasil enfrenta um desafio por conta da pressão exercida pelos empreendedo-

res irracionais, que ao implementar empreendimentos cujos impactos podem ser con-siderados de efetiva ou potencial degradação, considerando que, não demonstram pre-ocupação pelas estruturas tradicionais brasileiras, sejam eles referentes a sítios urbanos de valor cultural, sítios arqueológicos, assentamentos indígenas bem como também, as populações tradicionais, seus conhecimentos e práticas.

A UNESCO, não atua apenas pela paz mundial, mas tem uma ampla atuação em outros segmentos significativos para a humanidade: a missão da UNESCO está em contribuir para a “construção da paz”, bem como, reduzir a pobreza, através da promoção do desenvolvimento sustentável e do diálogo intercultural, instrumentalizado através da educação, ciências, cultura, comunicação e informação. Ela possui duas prioridades globais: África e igualdade de gênero.

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Dentre outras prioridades, a Organização inclui a busca da qualidade da educação para todos e da educação continuada, objetivando superar novos desafios éticos e sociais, conforme promoção da diversidade cultural. Dessa forma, construindo sociedades de conhecimento inclusivo através da informação e comunicação (WIKIPÉDIA, 2011).

Tendo em vista a degradação e o descaso com o patrimônio cultural e natural, culminando com a exposição dos tais bens a um alto índice de destruição, e paralelamente primando pelo desen-volvimento social e econômico agravado por fenômenos de alteração ou de destruição ainda mais preocupantes. Para tal proteção, foi realizada em Paris a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura, de 17 de outubro a 21 de novembro de 1972, em sua décima sétima sessão.

Tombamento do patrimônio histórico-cultural de RondôniaOs artigos 219 e 221 da Constituição Estadual de Rondônia determinam a proteção do

patrimônio histórico-cultural da seguinte maneira:

Art. 219. É dever do Poder Público, através de organismos pró-prios e colaboração da comunidade: VII - proteger os monumentos naturais, os sítios paleontológicos e arqueológicos, os monumentos e sítios históricos e seus elemen-tos;Art. 221. Para assegurar efetividade do disposto no artigo anterior, incumbe ao Estado e aos Municípios, na esfera de seus respectivas competências:IV - proteger, nos loteamentos em áreas de expansão urbana, os espaços de importância ecológica, social, paisagística, cultural e científica.

O objetivo destes que é justamente a preocupação com o bem-estar das gerações, prin-cipalmente com a presença predatória, cada vez maior, do ser humano. No qual este deveria não contribuir negativamente com o exaurimento dos bens ambientais, que são finitos, mas com a sua preservação e conservação, não desmerecendo o desenvolvimento econômico, mas conciliando-o com um comportamento sustentável.

Por estar situada na Amazônia legal, Rondônia encontra-se exposta aos interesses de paí-ses estrangeiros por sua biodiversidade, o que a torna integrante do centro das preocupações das populações que poderiam prejudicar-se quando esse interesse vir a interferir na soberania nacional.

A degradação ambiental do meio ambiente urbano em Rondônia revela-se, sobretudo, na poluição do Rio Madeira e o lixo jogado irresponsavelmente pela própria população, mesmo com a presença de lixeiras em algumas ruas de Porto Velho.

Inicialmente, os bens histórico-culturais de Rondônia foram tombados por via constitu-cional, conforme expressa o artigo 264, da Constituição Estadual. Isto, entretanto, não surtiu os

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necessários efeitos, pois tais bens foram abandonados e o descaso ao cumprimento do que deter-mina a lei básica estadual, com inobservância ao que dispõe a Constituição Estadual do Estado de Rondônia:

Art. 264 - Ficam tombados os sítios arqueológicos, a Estrada de Ferro Madeira- Mamoré com todo o seu acervo, o Real Forte do Príncipe da Beira, os postos telegráficos e demais acervos da Co-missão Rondon, o local da antiga cidade de Santo Antonio do Alto Madeira, o Cemitério da Candelária, o Cemitério dos Ino-centes, o Prédio da Cooperativa dos Seringalistas, o marco das coordenadas geográficas da cidade de Porto Velho e outros que venham a ser definidos em lei.Parágrafo único - As terras pertencentes à antiga Estrada de Ferro Madeira- Mamoré e outras consideradas de importância histórica, revertidas ao patrimônio do Estado, não serão discriminadas, sen-do nulos de pleno direito os atos de qualquer natureza que tenham por objeto o seu domínio, uma vez praticados pelo Governo do Estado, sendo seu uso disciplinado em lei.

Desse modo, observa-se que o patrimônio histórico-cultural referente à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, assim considerado por exercer uma influência na história e na cultura local foi inicialmente tombada via Constituição Estadual. Entretanto, mediante pressão popular, em 2005, a ferrovia Madeira-Mamoré, as terras do Cemitério da Candelária e seu entorno foram tombadas pelo IPHAN. Os principais responsáveis pela conquista do tombamento foram: a Associação de Amigos Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e ferroviários, como Luiz Leite de Oliveira, os quais se articularam para tornar realidade a aplicabilidade legal para a proteção deste patrimônio. A cons-trução de futuras hidrelétricas no Rio Madeira, entretanto, diminui ainda mais as chances de se reaver a ferrovia.

Ainda não está clara a solução para o problema de alagamento de um trecho da área tom-bada da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, considerado o mais importante patrimônio histórico de Rondônia, apesar das condicionantes impostas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

O rio Madeira é um rio de formação recente que não possuindo leito definido. De sua nascente à foz, há um desnível de aproximadamente 65 metros. São pelo menos vinte trechos de corredeiras, tombos e cachoeiras no seu alto curso que sustentam um regime hidrológico complexo e delicado. A alteração da dinâmica do rio e da bacia com a construção das barragens pode acarretar níveis imprevisíveis de alagamento, de assoreamento e de erosão, afetando inclusive alguns bens históricos.

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o Cemitério da Candelária

No Cemitério da Candelária, citado como bem tombado no artigo 264 da Constituição Estadual de Rondônia, foram enterrados trabalhadores de mais de 50 nacionalidades, cujas vidas foram ceifadas na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

A ganância da especulação imobiliária, a partir dos anos 1990 pas-sou a invadir, a lotear e cercar a Candelária. Um momento difícil estava por vir, pior que no tempo da ditadura militar de 1964. Agora, mais sofisticado: um grupo político tomou de assalto a Candelária e a EFMM em 2000. Apoiado por autoridades de Brasília, esse grupo desrespeitou a Constituição de Rondônia e o Decreto 10, de março de 1992, que transfere para o Estado de Rondônia o acervo ferroviário da EFMM e um plano macabro passou a ser executado. Antes, em abril de 2006 expulsaram os vigilantes Amigos da Madeira-Mamoré. Em seguida, com o apoio de forças militares comandados pela Gerência Regional do Patri-mônio da União (GRPU) e AGU tomaram as chaves das instala-ções ferroviárias do governo estadual. A vigilância e o trabalho de reativação feitos ao longo dos anos pela Associação de Amigos foram suspensos brutalmente e a partir daí veio uma truculenta intervenção. (OLIVEIRA, 2010, p. 29).

Posteriormente tombado pelo IPHAN em 2005, o patrimônio praticamente desapareceu em disputa acirrada e com a destruição brutal dos seus vestígios. A destruição foi principalmente das cruzes metálicas que existiam dentro do setor cristão do cemitério, haja vista que foram sepul-tados naquele espaço, judeus, árabes, indianos e tantas outras pessoas de diversas nacionalidades.

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré Degradada pela ação da ação do tempo e por ações criminosas, a Estrada de Ferro Madei-

ra-Mamoré foi tombada pelo IPHAN em novembro de 2005. A reforma ocorrida trouxe danos, alguns deles impossíveis de serem corrigidos.

Segundo determinado na Lei 9.605 de 1998 é crime:

Art 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial [...]Art 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico

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ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida.Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueo-lógico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autorida-de competente ou em desacordo com a concedida [...]Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:

Neste sentido, compreendemos que o empreendedorismo irracional é, indubitavelmente, uma forma de vandalismo. Relatos supersticiosos dão conta de que, naquela região, disseminam-se histórias envolvendo um trem fantasma conduzindo os mortos na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Esses monumentos estão sendo destruídos por causa de lembranças dolorosas que lhes são inerentes.

Outra causa de vandalismo é a total ignorância daqueles que não desconhecem a impor-tância dos bens que fazem parte da sua própria história. Além disso, há também o vandalismo pelo simples prazer de degradar, atingir e divertir-se com irresponsabilidade e rebeldia, comuns em pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano tombado.

Considerações finaisEvolui o homem ao estabelecer a intervenção do Estado na propriedade como forma

de preservação da cultura do seu povo. Ao relegar ao ente público a faculdade de preservar a sua identidade, a sociedade busca resgatar o orgulho pela sua origem, pela sua cultura, pelo seu povo, enfim, pela sua história.

Portanto, estará o Estado cumprindo com o seu papel de forma satisfatória? Ou estamos frente a um Poder Público desinteressado pelo bem estar daqueles que vivem e dependem de espa-ços dignos para a qualidade de vida e exercício pleno da cidadania?

Após uma análise acerca da descaracterização dos bens histórico-culturais, nos deparamos com uma dura realidade, existente a cada passo, mas que até então não se havia ter atentado. Passa--se a ver o ser humano como um degradador em potencial, imbuído do antigo reflexo Not In My Back Yard (NIMBY - Não no meu quintal).

Se não houver uma mudança em caráter de urgência, este comportamento degradador nos colocará frente ao sábio provérbio indígena: “somente quando for cortada a última árvore, pescado o último peixe, poluído o último rio, é que as pessoas vão perceber que não podem comer dinheiro”. Sob essa triste expectativa é passível não esquecer que “ao expulsarmos a natureza ela voltará a galope” (Chassez le naturel, il revient au galop) (MUKAI, 2002, p. 34), e só então lamentare-mos o irreversível.

O controle do cidadão da sociedade civil sobre o aparato estatal torna-se cada vez mais atuante e capaz de imprimir uma nova dinâmica à própria democracia representativa. Por conse-

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qüência, o controle popular caracteriza-se como instrumento que possibilita a participação direta dos administrados no Poder Público.

Neste sentido, é necessário se construir uma gestão democrática e participativa e afastar definitivamente a concepção autoritária do Poder Público tendo em vista que o meio ambiente é de todos. Constituindo-se, portanto, num bem de natureza essencialmente difuso.

Ao se assumir um comportamento ecologicamente correto e com o Estado cumprindo o seu papel na construção de políticas públicas ambientais e com a participação da sociedade, estar--se-á preservando o meio ambiente para futuras gerações, deixando um legado de qualidade de vida num planeta economicamente sustentável, onde o Estado cumpriu o seu papel de realizador dos objetivos do Princípio do Desenvolvimento Sustentável.

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Artigo Recebido em: dezembro/2011Artigo aprovado para publicação em: fevereiro/2012

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O AQUECIMENTO GLOBAL NO CONTEXTO DA CULTURA/ THE GLOB-AL WARMING IN THE CULTURAL CONTEXT

Miguel Petrere Junior22

Sumário: Introdução; Interpretação mítica; Interpretação psicanalítica; Interpretação econômica; Conjugação ecofilósofica; Considerações Finais; Referências.

Resumo: Este artigo trata da relação entre o aquecimento global e cultura numa análise interdisci-plinar. O fundamento advém das contribuições de Freud e outros pensadores da cultura moderna, a qual pode ser determinante para a degradação ambiental, levando à nossa autodestruição. Final-mente, o conceito tradicional de conservação biológica da natureza é questionado.

Palavras-chave: Aquecimento global; Cultura; Mitos; Psicanálise; Economia.

Abstract: This paper deals with the relationship between the global warming and culture in an interdisciplinary analysis. The foundation comes from the contributions of Freud and other culture´s thinkers in which might be crucial to environmental degradation, lead-ing to our self-destruction. Finally the classical concept of biological conservation is questioned.

Key-words: Global Warming; Culture; Myths; Psychoanalysis; Economy.

IntroduçãoNeste artigo, pretendo especular sobre três interpretações para o estado de coisas que

levaram ao aquecimento global: interpretação mítica; psicanalítica; e econômica. Por fim, vamos conjugá-las sob o manto da Ecofilosofia.

A humanidade vem explorando os recursos naturais e modificando continuamente o meio ambiente natural para seu sustento, proteção e conforto. Antes da chegada dos europeus na Nova Zelândia, no século XIX, estima-se que os maoris, que lá aportaram em torno do ano 1000, já ti-nham levado à extinção cerca de 20 espécies de aves. Essa mesma saga de extinção se repetiu em outras ilhas, como Madagascar, no continente africano. Há cerca de 12000 anos durante a última glaciação, caçadores exímios provenientes da Sibéria penetraram na América do Norte pelo Estrei-

22 Doutor pela School of Biological Sciences - University of East Anglia, Inglaterra (1982), Mestre em Ecologia (1977) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), 1977 e Graduado em Filosofia (1972) e Matemática (1974). Professor Livre-Docente aposentado do Departamento de Ecologia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Atualmente, é Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Professor de Ecologia na Pós-Graduação em Biologia Urbana na Universidade Nilton Lins, em Manaus.

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to de Behring, então ligada por uma faixa de terra à Sibéria, devido ao nível do mar mais baixo, e ao se dispersarem, em apenas 1000 anos chegaram até a Terra do Fogo. Provocaram a extinção de ma-mutes, bisões, mastodontes, tapires, camelos, cavalos e ursos. Neste período, a América do Norte perdeu 73% de seus grandes mamíferos, animais dóceis, fáceis de caçar por não estarem adaptados à presença humana e a América do Sul, 80%. Essa extinção foi tão maciça que Diamond (2010) se refere a ela como um blitzkrieg (guerra-relâmpago). Assim, a ideia de que o homem primitivo era um predador prudente se torna difícil de aceitar.

À medida que a tecnologia progride, essa mudança vem se tornando cada vez mais rápida e irreversível, pois, com a contínua destruição dos habitats naturais, o equilíbrio original talvez não possa mais ser alcançado. Além disso, temos a capacidade imediata de destruir a biosfera através da conflagração de uma guerra termonuclear total, o que levaria ao suicídio global de nossa civilização (usamos aqui a definição de Freud no ano de 1928: “civilização humana é tudo aquilo que o homem criou para ultrapassar sua condição animal”), isto é, algo sem paralelo na História.

Mesmo com a queda do muro de Berlim, o perigo persiste. No interlúdio entre as duas grandes guerras do século passado, e principalmente depois da segunda, estamos constantemente envolvidos em outras guerras, tanto econômicas (especialmente, entre as grandes potências) como civis e militares – especialmente entre as potências menores ou entre as grandes potências com outras menores, ou antes da década de 1990 entre as grandes potências através das menores. Para-fraseando Clausewitz (1873), a guerra seria a continuação da paz por outros meios (cf. KEEGAN, 1993).

O avanço da civilização e a deflagração da guerra tem um grande impacto sobre o meio ambiente. Afinal, qual terá sido o custo ambiental das duas guerras recentes contra o Iraque? O aquecimento global (global warming, greenhouse effect) é a grande ameaça à biodiversidade em nosso planeta, num horizonte não muito distante. De acordo com Lovelock (2006; 2009), o ponto de não retorno já passou, e em sua opinião, com a presente tecnologia, podemos fazer muito pouco para reverter a situação atual, pois os oceanos já começaram a se aquecer e, devido à sua imensa massa d’água, o processo não pode mais ser detido. Acredita-se que até o ano de 2100, haverá redução de cerca de 30 a 40% da biodiversidade do planeta, tanto de plantas como de animais, e boa parte das terras agricultáveis estarão perdidas para a produção de alimentos, devido ao calor abrasador (LOVELOCK, 2006; 2009).

Como chegamos a tal situação? Que motivação (des)humana nos levou a cometer tal lou-cura (inconsciente) contra nossa oykos (casa)? Em 1907, o físico-químico Arhenius já nos alertava sobre a possibilidade do aquecimento global, anunciando que se o aumento do nível de emissão de CO2 se der em proporções geométricos a temperatura ambiente irá aumentar de modo aritmético (cf. WIKIPEDIA, 2011).

Provocado pela crescente demanda de energia (Gráficos 1 e 2), especialmente a partir da quei-ma do carvão e do petróleo, iniciada na metade do século XIX, o aumento de CO2 vem se intensificando cada vez mais, sem nenhuma alternativa energética viável a curto prazo, pois as outras fontes de energia para os carros, navios, máquinas etc., não conseguiriam imediatamente suprir as necessidades atuais.

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Gráfico 1 - consumo de combustível. Fonte – US Energy Information Administration.

Consumo histórico mundial de energia por tipo de fonte - 1635-2000

Gráfico 2 – demanda de energia e o aquecimento global. . Fonte – US Energy Information Administration.

Aumento da demanda no futuro

Carbon concentration

Temperatures

1) Demanda de energia

2) Preocupação com o ambiente

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O Gráfico 2 também mostra o aumento da concentração de CO2 na atmosfera durante o milênio passado. Notemos que ela se manteve mais ou menos constante até a metade do século XIX e daí se intensificou, acompanhada do aumento da temperatura, concomitante com a queima de petróleo e carvão. Embora haja uma correlação entre esses fenômenos, sabemos que correlação necessariamente não implica em causa, e assim não podemos inequivocamente concluir apenas a partir dos dois gráficos que o acúmulo de CO2 cause o aquecimento global. A despeito do fato de alguns poucos cientistas, a exemplo do professor Luis Carlos Molion, da Universidade Federal de Alagoas (cf. MADEIRO, 2011), não acreditarem nessa dependência, os debates mais acalorados se concentram mais em seu ritmo e consequências (cf. IPCC, 2011), devido a conflitos de predições de cenários entre modelos computacionais de simulação climática.

Interpretação Mítica É discurso corrente aquele que declara que a Ciência (originalmente chamada de Filosofia

Natural) surgiu à medida que os mitos não mais conseguiam explicar o mundo (cf. CHAUI, 2000). Fazemos notar o argumento de Hegel, o qual interpreta a construção da alta torre de Babel como uma reação dos homens para se proteger de um segundo dilúvio próximo e certo (cf. PINTO, 2011), que ao perderem a confiança na Natureza, foram pouco a pouco se convertendo em inimi-gos dela; “somos humanos, entonces no somos naturaleza!, ya que ésta, a causa del Diluvio Univer-sal, há destruído todo lo que habiamos construído desde la expulsión del paraíso.” Tal “inimizade e desconfiança” se instalou definitivamente em nosso inconsciente, provocando o eterno conflito entre o cultural e o natural.

Pinto (2011) cita dois personagens que classifica como derrotados: Abraão que buscou a proteção de Deus, abstrato, eterno, superior à Natureza e capaz de garantir ao ser humano uma participação em seu poder ao afastá-lo da realidade empírica, protegendo-o dela; e Nimrod, o gigante fundador de cidades, que ao invés de se entregar a Deus, o desafiou, dedicando seus esfor-ços ao domínio da Natureza, sujeitando-a a Engenharia, ao tentar controlar os processos naturais como única possibilidade de sobrevivência num mundo natural hostil a nós, estabelecendo uma tirania baseada na expansão técnica, segundo a qual Natureza é nossa inimiga, e a cultura é nosso refúgio. Aqui vemos a forte presença do mito que poderia nos levar a uma explicação cultural para o aquecimento global.

Interpretação Psicanalítica Por outro lado, Freud (2006) não distingue cultura (essencialmente o reflexo em grande

escala dos conflitos dinâmicos internos no indivíduo) de civilização e disserta sobre: (I) o co-nhecimento e a capacidade por nós adquirida para dominar as forças da Natureza e dela extrair riquezas (serviços ambientais) e sobre (II) as regras necessárias para adequar as relações entre os homens visando distribuir a riqueza obtida. Freud (2006) ressalta que as duas assertivas não são independentes e afirma que as criações humanas podem ser destruídas e a própria tecnologia que as engendraram também podem ser utilizadas para sua aniquilação.

O processo civilizatório tem um preço: o sentimento de culpa, um ódio à civilização, pois

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as próprias instituições organizadas para proteger a sobrevivência da humanidade, também geram seu mal-estar (GAY, 1988), consequência do “antagonismo irremediável entre as exigências do instinto e as restrições da civilização”. Esta é construída sobre uma renúncia ao instinto, onde o complexo de Édipo e o tabu do incesto desempenham papel primordial em uma de suas obras mais polêmicas: o “Totem e Tabu” (cf. FREUD, 1950; GAY, 1988; GASPAR, 2007). Assim, o sentimen-to de culpa se apresenta como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização acompanhado do instinto de destruição ou de agressão. Daí o dilema da humanidade civilizada: “os homens não podem viver sem civilização, mas não podem ser felizes nela” (GAY, 1988, p. 70).

Esses dois instintos sub-repticiamente poderiam estar por trás do seguinte argumento:

Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a ta-refa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos (FREUD, 2006, p. 82).

E assim a substituição do poder individual pelo poder da comunidade constitui o passo decisivo da civilização (FREUD, 2006). É exatamente aqui que se dá a armadilha do aquecimento global: ao atacarmos a natureza trabalhando com todos para o bem de todos, fomos por ela surpre-endidos. Freud (1930, p. 189) vai ainda mais adiante:

[...] o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satis-fação prazerosa que poderiam esperar da vida e não nos tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, podemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única pre-condição da felicidade humana, assim como não é o único objeti-vo do esforço cultural.

Interpretação EconômicaApelidado de “o profeta de Bloomsbury”, o filósofo George Moore (1873-1958), através

de seu livro Principia Ethica foi quem mais influenciou John Maynard Keynes (1883-1946), um ícone do pensamento econômico do século XX. A influência de Moore sobre Keynes foi tão grande que ao apregoar uma moral que “atém-se ao imediato no que se refere à ação” (GAZIER, 2011, p. 41), Moore deve ter induzido Keynes a proferir a frase (infeliz), a ele atribuída “a longo prazo estaremos todos mortos” (The long run is a misleadind guide to current affairs. In the long run we are all dead), frase que de tão lapidar, está inscrita em seu túmulo!

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Essa frase serve como um leitmotiv (do alemão, motivo condutor ou motivo de ligação) para os economistas tradicionais ao defenderem que devemos crescer a qualquer custo, pois a vida é breve e nossas ações são fugazes. Como os economistas ocuparam o centro do poder político nas democracias ocidentais e nas antigas economias socialistas “planificadas”, a receita para o caos am-biental se completou, sem levar em consideração que a natureza é o único limite para o “progresso” econômico, pois não é possível crescer sempre numa biosfera com recursos limitados.

Atualmente, já nos apropriamos de 40% da produtividade líquida da Terra. Levando em conta que a duplicação do total da população humana se dá a cada 40 anos, logo vamos atingir o limite biológico do crescimento, quando vamos lutar violentamente por recursos naturais li-mitados (DIAMOND, 2010, p. 11). Esse é um alerta lançado pelo economista romeno Nicolas Georgescu-Roegen (1906-1994),aos seus colegas economistas (cf. CECHIN, 2010), pois a maioria dos ecólogos acadêmicos profissionais já percebia essa limitação. De acordo com Cechin (2010), o paradigma econômico predominante no século XX teve como modelo a física do século XIX, principalmente a mecânica clássica, tanto que Keynes que se espelhava muito em Isaac Newton, comprou a maioria de seus manuscritos quando estes foram postos em leilão.

Ainda segundo Cechin (2010), nem Marx levou em consideração as questões ambientais ao alicerçar seu Das Kapital apenas no capital e no trabalho, não atribuindo nenhum papel ao meio ambiente, tanto como provedor de recursos naturais como repositório de resíduos. Essa visão perdurou até o início da década de 1960, onde nenhuma escola de pensamento econômico de modo explícito levava em conta a entrada dos recursos naturais para a produção de bens. Isto levou a economia a ser vista como um sistema isolado, autocontido e a - histórico, que começou a ser questionada por Georgescu em dois artigos publicados em 1965 e 1966 (cf. CECHIN, 2010, p. 44).

É interessante notar que esses argumentos de escassez, já estavam implícitos nos modelos biomatemáticos de manejo dos estoques pesqueiros desde o início do século XX nos estudos de Fiodor Baranov, na antiga Rússia e, posteriormente, na ex-União Soviética e na Grã Bretanha com os estudos de Michael Graham e D’Arcy Thompson em meados da década de 30. Estes autores postularam para os estoques pesqueiros o conceito de rendimento máximo sustentável (MSY – Maximum Sustainable Yield); isto é, eles consideravam que devesse existir um ponto de referência, uma quantidade ótima que pode ser retirada pela pesca e ainda manter o estoque em equilíbrio em longo prazo.

Gordon (1954) foi o primeiro economista a acrescentar argumentos econômicos realistas para completar esses modelos através do MEY (Maximum Economical Yield). Embora debatido a partir da década de 1960 (cf. LARKIN, 1977), o conceito de MSY ainda persiste, talvez como uma miragem, pois mesmo com a grande quantidade de informação que temos sobre a maioria dos estoques pesqueiros preferenciais – como exemplo típico temos o bacalhau do Atlântico (Gadus morhua) –, boa parte deles já ultrapassou o MSY, alguns sofreram extinção comercial como o aren-que de Hokkaido no Japão em meados do século XX (CLARK, 1985; Table 1.1), e provavelmente duas espécies de raias marinhas sofreram extinção biológica – esta mais grave, pois seus efeitos são perenes devido à pesca. Esta exposição nos indica que mesmo a informação científica abundante não é suficiente para a proteção dos estoques pesqueiros.

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Se estes fossem manejados apenas por ecólogos e biólogos pesqueiros, não teríamos che-gado a tal situação. E por que chegamos? Porque o manejo é político, devido ao grande valor econômico das pescarias para alguns países, como a Islândia onde o pescado em 1993 representava cerca de 80% de suas exportações (Hanesson, 1996; p. 9). Reverter essa situação, ao se tentar di-minuir a pesca para permitir que os estoques “descansem” e se recuperem, não é fácil visto que a pesca gera empregos e envolve muitos interesses econômicos e sociais. Os maiores barcos da pesca marinha industrial são arrendados ou financiados por bancos, operando sob a forma de leasing envolvendo milhões de dólares que devem ser pagos ao final do contrato. Deve ser ressaltado que os peixes são os últimos animais ainda explorados em larga escala pela humanidade. Países como o Brasil capturam de forma não sustentável cerca de 90 milhões de toneladas nos rios, mares e oce-anos do mundo, gerando um mercado direto e indireto, através da agregação de valor ao pescado processado, que se pode estimar a grosso modo ao redor de 1 trilhão de dólares ao ano. Dessas (tardias) discussões entre os economistas se originou a Economia Ecológica ou Bioeconomia e os conceitos de crescimento zero e decrescimento.

Conjugação EcofilósoficaA Ecofilosofia ou Ecosofia se iniciou com o filósofo norueguês Arne Naess em 1973 e

com o psicanalista e filósofo francês Felix Guattari (cf. WIKIPEDIA, 2011b), ambos notórios ambientalistas em seus países que muito influenciaram o Partido Verde. A visão que ambos têm da interdisciplinaridade não é coincidente e a definição de Ecofilosofia, de acordo com Naess, seria a seguinte:

By an ecosophy I mean a philosophy of ecological harmony or equilibrium. A philosophy as a kind of sofia (or) wisdom, is openly normative, it contains both norms, rules, postulates, value prior-ity announcements and hypotheses concerning the state of affairs in our universe. Wisdom is policy wisdom, prescription, not only scientific description and prediction. The details of an ecosophy will show many variations due to significant differences concerning not only the ‘facts’ of pollution, resources, population, etc. but also value priorities (DRENGSON; INOUE, 1995, p. 8).

A Ecofilosofia vê o “mundo como um santuário”, em oposição ao ponto de vista newto-niano que vê o “mundo como uma máquina”. Desta sacralidade do mundo, emanam cinco prin-cípios (SKOLIMOWSKI, 2010): (I) O mundo é um santuário; (II) a reverência pela vida deve ser nossa guia; (III) a frugalidade é uma pré-condição para a felicidade interior; (IV) a espiritualidade e a racionalidade não são excludentes, mas complementares; (V) para curar o planeta, nós temos que curar a nós mesmos. Esses seriam os cinco pontos norteadores para um humanismo ecológi-co, que parece ingênuo, mas não é, sendo bastante necessário. Assim, ao adentrarmos na floresta amazônica, por exemplo, o nosso sentimento genuíno seria o de visitarmos uma catedral e não

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encará-la friamente como um dossel a ser derrubado para estabelecer uma pastagem ou uma plan-tação intensiva de soja, sem nos preocuparmos com a miríade de organismos que dependem de sua integridade.

Esses cinco pontos também constituem a chamada Deep Ecology (ou Ecologia Profunda) que é uma visão ecológica holística a qual reconhece o valor inerente dos outros seres vivos além de sua utilidade, enfatizando a interdependência da vida humana e não-humana bem como a im-portância do ecossistema e os processos naturais, servindo de base para uma ética ambiental (cf. WIKIPEDIA, 2010).

O termo Ecologia Profunda também foi empregado pela primeira vez por Arne Naess em 1973. “Profundo” porque insiste em levantar questões mais profundas a respeito do “por que” e “como”, portanto preocupado com as questões filosóficas sobre o impacto da vida humana na biosfera, evitando encarar a Ecologia como um mero ramo da Biologia e fugindo do ambientalismo antropocêntrico.

Considerações finaisAqui devemos evitar cair na armadilha da conservação: conservar para quê? Para manter

o ecossistema de modo que ele continue a ser explorado por nós (como uma reserva particular de caça à raposa) ou encarar a conservação apenas pela conservação? Devemos observar o direito básico universal de que de a qualidade de vida não pode ser quantificada, no sentido de que o ser humano, dotado da razão consciência e a alma teria mais direito à vida do que uma formiga, uma bactéria ou um sapo. Se não adotarmos essa postura, seremos levados à autodestruição (cf. WIKI-PEDIA, 2010).

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Recebido em: junho /2011Artigo aprovado para publicação em: setembro /2011

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desenvolvimento eConÔmiCo VERSUS MEIO AMBIENTE: UM CONFLITO INSUSTENTÁVEL/ ECONOMIC DEVELOPMENT VERSUS EN-VIRONMENT: ONE CONFLICT UNBEARABLE

Márcia Santos da Silva23

Sumário: Introdução; O modelo jurídico econômico adotado pela Constituição Federal de 1988; O meio ambiente: bem de uso comum de todos; Desenvolvimento econômico versus proteção ao meio ambiente: o ideal do desenvolvimento econômico sustentável; Desenvolvimento sustentável e as externalidades ambientais negativas; As externalidades negativas e os instrumentos econômi-cos de controle; Considerações finais.

Resumo: O modelo jurídico econômico adotado pelo Estado Brasileiro é insculpido no artigo 170 da Constituição Federal no qual depreende que o desenvolvimento econômico sustentável é aquele que se estabeleça em respeito a todos os princípios lá albergados. Já no meio ambiente para que proteção ao bem ambiental seja um valor posto e não imposto, é de fundamental relevância o papel do Direito enquanto instrumento de pacificação social e defesa do direito à vida, inclusive a vida humana. Assim, não basta que, a proteção do meio ambiente seja um valor fundamental e constitucional, é preciso que sejam estabelecidos mecanismos que conduzam à absorção deste valor por toda a sociedade.

Palavras-chave: desenvolvimento sustentável; meio ambiente; Estado Brasileiro.

Abstract: The model law adopted by the Brazilian economy is registered in Article 170 of the Cons-tituição Federal which understands that sustainable economic development is one that is established in respect of all the principles housed there. Already, in the environment so that environmental protection is well worth a post and not imposed, is of fundamental importance the role of law as an instrument of social peace and defending the right to life, including human life. Thus, it is not enough, the protection of the environment is a core value and constitutional, it must be established mechanisms that lead to the absorption of this value throughout society.

Key-words: sustainable development; environmental; Brazilian State.

IntroduçãoCompõe a História recente dos povos, a percepção jurídica dos direitos de terceira di-

mensão. Na primeira e segunda dimensão dos direitos, estão os direitos individuais e os sociais,

23 Mestre em Direito Econômico pela Universidade de Marília (UNIMAR), pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela UNIVEM e em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina. Professora de Direito Processual Civil na (Unimar).

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respectivamente. A terceira dimensão dos direitos, ancorada no ideal revolucionário francês da fraternidade, alberga direitos metaindividuais, bens de uso comum de todos, de natureza difusa e dentre os quais está inserido o bem ambiental.

O modelo jurídico econômico adotado pelo Estado Brasileiro e insculpido em nossa Cons-tituição Federal de 1988 pode ser observado a partir da análise do artigo 170 da Constituição Federal e de onde se depreende que o desenvolvimento econômico sustentável é aquele que se estabelece em respeito a todos os princípios lá albergados.

A racionalidade econômica embasada nos princípios da eficiência, do livre mercado, da livre concorrência, em razão da conformação necessária com princípios outros de igual relevância, tais como, o respeito ao valor do trabalho humano, da pessoa humana do consumidor, da prote-ção ambiental, todos também elevados ao patamar máximo do ordenamento jurídico nacional, na condição de valores fundamentais, necessita ser revista a fim de perfazer os ditames da ordem econômica estabelecida pelo Estado Brasileiro.

Mais especificamente no que tange à proteção ambiental, necessárias as diligências jurídicas no sentido de se encontrar meios que viabilizem a internalização dos custos, pelos agentes econô-micos que desenvolvem atividades causadoras de impactos ambientais, as chamadas externalidades negativas.

Os instrumentos econômicos utilizados pelo Estado para intervir na racionalidade econô-mica apontam para uma maior eficácia, em relação aos meios meramente fiscalizatórios e adminis-trativos, porque permeiam o mundo da Ciência Econômica, facilitando assim a operacionalidade do sistema.

Dentre esses instrumentos econômicos, merecem destaque os tributos ecológicos que não chegam a ser, no Brasil, uma nova modalidade tributária, mas a adequação dos tipos tradicionais em busca de recursos à proteção do meio ambiente.

Considera-se, finalmente que, até o momento em que a proteção ao bem ambiental seja um valor posto e não imposto, é de fundamental relevância o papel do Direito enquanto instrumento de pacificação social e defesa do valor maior e razão de ser de todos os sistemas no qual se traduz o direito à vida, inclusive a vida humana.

O modelo jurídico econômico adotado pela Constituição Federal de 1988O modelo econômico traçado na Constituição Federal de 1988 (cf. BRASIL, 2008) pode

ser compreendido a partir da análise do artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna”. É possível vislumbrar a relativização de direitos individuais até então absolutos, como a propriedade, a livre iniciativa, numa clara proposta normativa de infiltração no valor econômico da eficiência, traçando um modelo de eficiência juridicamente aceita, porque em respeito não apenas às regras do mundo econômico, mas à luz de direitos metaindividuais como o meio ambiente.

Dentro dos conceitos puramente econômicos, uma empresa pode ser viável e eficaz, en-tretanto, pode não estar estabelecida nos moldes traçados pelo Estado brasileiro que desenhou os contornos de sua ordem econômica no texto constitucional. Do estudo do artigo 170, é possível

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verificar que a propriedade privada é um direito protegido, entretanto, desde que cumprida a sua função social.

A iniciativa e a concorrência são livres, desde que o poder econômico não seja desenvolvi-do de forma abusiva e se faça também em consideração e respeito à dignidade da pessoa humana, aqui se compreendendo a valorização do trabalho humano, a defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente.

A concepção de empresa, na condição de agente realizador da proposta jurídico-econô-mica albergada pelo texto constitucional de 1988, deixa claro o necessário abandono da ideia da busca pelo lucro pura e simples, relativizando, conforme exposto, o direito à propriedade e à livre iniciativa.

A Constituição Federal de 1988, concebida no final do século XX, acolheu direitos de natureza metaindividual, incorporando-os como valores fundamentais a traçar as diretrizes de fun-cionamento de todo o sistema normativo, inclusive no que tange à ordem econômica.

O meio ambiente: bem de uso comum de todosÉ recente na história dos povos, a preocupação em positivar e criar mecanismos para

proteção e efetiva defesa do direito ambiental. A Constituição Federal de 1988 trata expressamente da questão ambiental de modo não anteriormente concebido por outra Carta Política precedente.

Direitos de terceira geração ou de terceira dimensão, fazendo uso das palavras do Bo-navides (1997, p. 525), não advieram para suplantar os direitos das gerações anteriores (direitos subjetivos e institucionais), mas para estabelecer um novo degrau na escala de valores que norteiam a vida humana na terra:

Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo “dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualita-tiva, o termo “geração”, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda geração, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvi-mento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a Hu-manidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo.

A subjetividade é o traço característico dos direitos de primeira geração. A primeira geração de direitos advém dos reflexos normativos do ideal revolucionário francês da liberdade. A segunda geração de direitos diz respeito às garantias institucionais, afrouxando-se a ideia do individual em

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favor do social, constituindo a vertente normativa do princípio da igualdade:

Não se pode deixar de reconhecer aqui o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, vinculado materialmente a uma liberdade “objetivada”, atada a vínculos normativos e ins-titucionais, a valores sociais que demandam realização concreta e cujos pressupostos devem ser “criados”, fazendo assim do Estado um artífice e um agente de suma importância para que se concreti-zem os direitos fundamentais de segunda geração (BONAVIDES, 1997, p. 520-521).

Os direitos fundamentais de terceira geração configuram o traço normativo do princípio revolucionário francês da fraternidade. Tem como destinatário o gênero humano:

Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acres-centa historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de ter-ceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquan-to direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (BONAVIDES, 1997, p. 523).

Os direitos ao meio ambiente, à paz e ao patrimônio comum da humanidade estão entre os direitos fundamentais de terceira geração e que admitem a tutela jurídica coletiva, através de meca-nismos como a Ação Popular, a Ação Civil Pública, o Mandado de Segurança Coletivo.

No que diz respeito ao meio ambiente, a Constituição Federal de 1988 tratou do tema de forma expressa, elevando a questão ao justo patamar de princípio fundamental. Verifica-se que a defesa do meio ambiente é também princípio da ordem econômica nacional, ao lado da proprieda-de privada, da livre iniciativa, da livre concorrência, não havendo de se falar em hierarquia entre os princípios constantes dos incisos do artigo 170 da Constituição Federal.

Vale dizer, o direito à propriedade está tão resguardado quanto o dever de que esta atenda à sua função social. A iniciativa é livre e a concorrência também, desde que respeitados os direitos dos consumidores e o meio ambiente. O desenvolvimento econômico há de se estabelecer desde que fundado no respeito ao trabalho humano, na existência humana digna e a esta está estreitamen-te ligada a defesa do meio ambiente, na qualidade de direito humano:

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A evolução histórica fez mostrar, especialmente na democracia, que a sobrevivência de todos está ligada à proteção do mais fraco ou de coisas e elementos que, por não serem de ninguém, for-mam um coletivo desprotegido [...] Podemos conceituá-lo como sendo aqueles que, mesmo utilizado por todos, não lhes pertence, pois nunca os terão por completo, sendo permitido, no máximo, assumir-lhes a gestão até o limite legal. (MORAES, 2002, p. 15).

O meio ambiente está enquadrado neste conceito de “macrobem”, bem de uso comum de todos e, justamente por essa qualidade difusa, recebeu atenção especial da Lei Maior, no momento em que os povos despertam para a escassez de recursos naturais e para os efeitos nocivos da de-senfreada evolução econômica e tecnológica, colocando em estado de alerta toda a humanidade.

Desenvolvimento econômico versus proteção ao meio ambiente: o ideal do de-senvolvimento econômico sustentável

Princípios fundamentais ou valores como estes elencados no artigo 170 da Constituição Federal devem coexistir de forma equilibrada. Tais princípios alocados sob o mesmo título e dis-postos em forma de incisos de um mesmo artigo, que trata dos fundamentos da ordem econômica nacional, exigem técnicas de interpretação e solução de eventuais conflitos que transcendem os critérios interpretativos tradicionais:

Os direitos fundamentais, em vigor, não se interpretam; concreti-zam-se. A metodologia clássica da Velha Hermenêutica de Savig-ny, de ordinário aplicada à lei e ao Direito Privado, quando em-pregada para interpretar direitos fundamentais, raramente alcança decifrar-lhe os sentidos.Os métodos tradicionais, a saber, gramatical, lógico, sistemático e histórico, são de certo modo rebeldes a valores, neutros em sua aplicação, e por isso mesmo impotentes e inadequados para inter-pretar direitos fundamentais. Estes se impregnam de peculiarida-des que lhe conferem um caráter específico, demandando técnicas ou meios interpretativos distintos, cuja construção e emprego ge-rou a Nova Hermenêutica (BONAVIDES, 1997, p. 545).

A Nova Hermenêutica mencionada por Bonavides (1997) está ancorada no princípio da propor-cionalidade, onde se faz a ponderação de valores, bens e interesses e aquele princípio que deva, naquela cir-cunstância concreta, ceder espaço ao outro, mantém-se no sistema, nada perdendo de sua carga axiológica.

Conciliar valores como o desenvolvimento econômico – pautado na livre iniciativa e na livre concorrência e, ao mesmo tempo, na proteção do meio ambiente, do consumidor, na valoriza-ção do trabalho humano – passou a ser uma necessidade moderna advinda da constatação de que,

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no que tange ao meio ambiente, os recursos naturais são limitados e que esta limitação termina por constituir obstáculo ao próprio desenvolvimento econômico.

A partir do reconhecimento de que se o mundo capitalista está ancorado nas necessidades ilimitadas e que, em contrapartida, não há mais tempo para deixar de admitir que os recursos na-turais são esgotáveis, ganhou destaque a preocupação com a positivação do Direito ambiental, nas esferas material e processual e sua elevação à condição de princípio fundamental, inclusive da or-dem econômica nacional, visto que, se a existência humana estiver em risco, nada mais faz sentido.

O desenvolvimento econômico é também um direito fundamental, mas precisa fazer-se de forma sustentável, porque os valores fundamentais devem coexistir de forma equitativa. No momento em que um valor fundamental é preterido descriteriosamente, o desequilíbrio começa a ser gerado e passa a corroer as vigas do próprio sistema:

São dois valores aparentemente em conflito que a Constituição de 1988 alberga e quer que se realizem no interesse do bem estar e da boa qualidade de vida dos brasileiros. Antes dela, a Lei 6.938, de 31.08.1981 (arts. 1º e 4º) já havia enfrentado o tema, pondo corretamente, como principal objetivo a ser conseguido pela polí-tica nacional do meio ambiente, a compatibilização do desenvolvi-mento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico. A conciliação dos dois valores consiste, assim, nos termos deste dispositivo, na promoção do chamado desenvolvimento sustentável, que consiste na explora-ção equilibrada dos recursos naturais, nos limites das necessidades e do bem-estar da presente geração, assim como de sua conserva-ção no interesse das gerações futuras (SILVA, 1995, p. 7-8).

O desenvolvimento econômico concebido, tão simplesmente, pela viabilização do acúmu-lo do capital, do avanço tecnológico a qualquer custo e mediante a ilusória pretensão de que tais recursos tecnológicos impediriam que a humanidade, um dia, viesse a padecer em razão de um colapso dos recursos que a natureza é capaz de ofertar, cedeu espaço ao ideal do desenvolvimento sustentável.

Desenvolvimento econômico sustentável pode ser definido como aquele que, dentro da realidade nacional, permita a conciliação dos princípios estabelecidos nos incisos do artigo 170 da Constituição Federal.

A concepção de uma terceira e quarta dimensão de direitos significa a evolução cultural das nações, rompendo as amarras que impediam a relativização de direitos subjetivos, como o da propriedade, do livre mercado, ampliando o campo de visão, para incorporar valores metaindividu-ais – como é o caso da defesa do meio ambiente, da pessoa humana do trabalhador, da condição do consumidor.

Implementar o chamado desenvolvimento sustentável, conduzindo a uma consciente uti-

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lização dos recursos naturais, no que diz respeito ao meio ambiente, é a grande questão e que supera o campo teórico, vai além da positivação de valores pelo poder constituinte, implicando na internalização desses valores pelos seres humanos em todo o mundo.

No artigo 225 da Constituição Federal, estão definidas incumbências ao Poder Público no sentido de efetivar providências necessárias à defesa e preservação do meio ambiente. Em boa par-te dos incisos do artigo 225 mencionado, é possível verificar limites à iniciativa privada. São alguns exemplos aquelas atividades para cujo desenvolvimento se faz necessária a autorização estatal, após estudo de possíveis impactos ao meio ambiente e também o estabelecimento de áreas de proteção ambiental, deixando clara a relativização do direito de propriedade.

A preocupação ambiental alcançou também os empreendedores econômicos, senão por concebê-la como um direito humano, mas como um fator do ciclo econômico que, se deixado de lado, conduzirá irreversivelmente ao colapso. Conforme De Andrade et. al (2002):

a questão ecológica não questiona a ideologia do crescimento eco-nômico, que é a principal força motriz das atuais políticas econô-micas e, tragicamente, da destruição do ambiente global. Rejeitar essa ideologia não significa rejeitar a busca cega do crescimento econômico irrestrito, entendido em termos puramente quantitati-vos como maximização dos lucros ou do PNB. A gestão ecoló-gica implica o reconhecimento de que o crescimento econômico ilimitado em um planeta finito só pode levar a um desastre. Dessa forma, faz-se uma restrição ao conceito de crescimento, introduzindo-se a sus-tentabilidade ecológica como critério fundamental de todas as atividades de negócios. (p. 12, grifo nosso).

A questão ambiental destacada em nosso Texto Constitucional de 1988, de forma expressa e contundente, a fim de que não pairem dúvidas acerca de se tratar de um princípio fundamental é, sem dúvida, um grande passo, entretanto, a concretização da norma, demanda esforço constante.

Verifica-se que as medidas elencadas no artigo 225 da Constituição reclamam eficiência do serviço público prestado em todo o País, no cumprimento da função fiscalizatória especialmente, o que nem sempre ocorre:

No entanto, os órgãos ambientais responsáveis institucionalmente pela fiscalização e pela aplicação efetiva desse arcabouço legal não escapam às mazelas e deficiências que normalmente caracterizam a Administração Pública no País, fazendo com que a opção re-presentada pelos instrumentos econômicos assuma cada vez mais um papel de destaque, como meio de implementação racional, eficiente e viável de um modelo concreto de desenvolvimento equilibrado (CARNEIRO, 2003, p. 75).

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Os instrumentos econômicos de que trata Carneiro (2003) seriam mecanismos econômi-cos em sintonia com a regulação direta, estabelecendo-se, por exemplo, um custo para a utilização de um recurso natural, cuja redução possa se dar à medida em que esta utilização predatória vá sendo minimizada. O autor relaciona alguns desses mecanismos, lamentando que sejam pouco uti-lizados em nosso País: tributos ambientais, sistemas de cobrança pelo uso de recursos ambientais, subsídios públicos, sistemas de devolução de depósitos, licenças ou créditos negociáveis e seguro ou caução ambiental (CARNEIRO, 2003, p. 77).

Desenvolvimento sustentável e as externalidades ambientais negativasA consciência de que os recursos naturais são finitos conduziu a uma ampla revisão de con-

ceitos por todas as ciências. O bem ambiental é mataindividual, conforme exposto, e esta qualidade justifica a pluralidade das atenções que lhe são voltadas.

A ciência econômica não escapou a esta revisão conceitual, fazendo surgir a economia ecológica (valores econômicos conciliados com a ética ambiental):

Os economistas já não podem ver a ciência econômica apenas como ciência da geração e distribuição de riquezas, isenta de cuidados com os impactos, conseqüências e efeitos da atividade econômica sobre o homem e o meio que o cerca. A nova ciên-cia econômica também denominada economia ecológica, é for-temente influenciada pela ética ambiental (NASSER FERREIRA et al, 2007, p. 254).

Conforme exposto, no que tange ao meio ambiente, a resposta das empresas foi descon-siderando a irresignação rebelde e dentro da lógica econômica que as movimenta, não permanece-ram desatentas aos olhos vigilantes dos consumidores. O número dos chamados “consumidores

verdes” (DE ANDRADE, et al, 2002, p. 7) nos países desenvolvidos cresceu, significativamen-te, promovendo o repensar das empresas no que tange à aceitação no mercado: como transformar em lucro a preocupação ambiental?

Em países em desenvolvimento como o Brasil, essa consciência por parte dos consumi-dores ainda é reduzida. O preço termina por ser o único norteador da concorrência. Produtos não são preteridos, porque houve uma investigação acerca de como e onde foram produzidos; isto sem contar que é necessário estabelecer a diferença entre função e responsabilidade social.

Quando a empresa atua no mercado respeitando o meio ambiente está, tão somente, cum-prindo com sua função social, com seu dever legal. Quando estes limites são superados, quando a preocupação ambiental supera o dever de cumprir a lei e ainda obter com isso, lucros advindos da publicidade deste conceito de empresa ambientalmente correta, aí sim, é possível falar em respon-sabilidade social.

A questão ainda é fortemente cultural e está atrelada ao desenvolvimento econômico e

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social dos povos. No que tange à Ciência Econômica e seus valores, o Direito precisa encontrar meios de adentrá-los, visto que, analisando sob a ótica ambiental, uma vez perpetrado o dano, de nada ou pouco adianta o simples converter em indenização, porque o patrimônio ambiental é de valor incomensurárel.

Quanto às externalidades negativas, são definidas por Carneiro (2003) como sendo os efeitos externos negativos produzidos pelo mercado operando com falhas. Estas falhas advém da utilização de bens ambientais, chamados de bens livres e sobre os quais não há um preço a pagar. “Agindo assim, alheio aos efeitos externos de sua atividade produtiva – a dizer, sem internalizar suas externalidades –, o poluidor transfere para a sociedade um custo que deveria ser privado, ou seja, transforma um custo privado em um custo social” (CARNEIRO, 2003, p. 66).

Destaca-se que: “Os custos sociais decorrentes da atividade causadora de impactos am-bientais não integram os custos dos produtos gerados. Por isso, esses custos são inferiores aos reais e resultam em um nível de produção superior ao que permite a manutenção do equilíbrio ecológi-co” (NASSER FERREIRA et al, 2007, p. 280).

O combate às externalidades negativas do mercado demanda atuação estatal através de políticas públicas, que logrem êxito em reduzir a utilização de recursos naturais, minimizando o custo social desta utilização.

As externalidades negativas e os instrumentos econômicos de controleO Estado pode, através de lei, estabelecer limites à atividade empresária no que tange à

utilização de recursos naturais. Esses limites podem ser exemplificados como a obrigatoriedade de instalação de filtros, a proibição de utilização de determinados produtos, as restrições referentes ao zoneamento urbano e rural, a implementação de áreas de preservação ambiental.

Boa parte das disposições do artigo 225 da Constituição Federal e que exige do Estado o fortalecimento de seu aparato fiscalizatório, sem contar a necessária especificação legal de penalida-des que desencoragem o não cumprimento da lei através da simples incorporação deste “prejuízo” pelos agentes econômicos, caracterizam o controle das externalidades negativas através da regula-ção direta por parte do Estado (CARNEIRO, 2003, p. 73-76).

Mecanismos econômicos de contenção das externalidades negativas fazem com que o ca-pital da natureza seja considerado nos custos da produção e na atividade econômica em geral, propiciando a obtenção dos custos reais, podendo até tornar as relações econômicas mais comple-xas, mas propiciando a composição de preços reais, evitando-se a capitalização de benefícios e a socialização de custos (NASSER FERREIRA et al, 2007, p. 301).

Os instrumentos econômicos para proteção ambiental podem ser efetivados por meio de incentivos fiscais (redução de tributos para aquisição de equipamentos que reduzam a emissão de poluentes, por exemplo) ou instituição de tributos ambientais que desestimulem a agressão ao meio ambiente e em ambos os casos através da intervenção estatal na economia. Neste sentido, portanto,

a correção das falhas de mercado ocorre com a atuação do Esta-do na economia, desenvolvendo políticas públicas por meio de

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prestações positivas do Estado com o intuito de concretizar o de-senvolvimento econômico e social brasileiro. Assinala-se, dentre vários instrumentos para concretização dessas políticas estatais, pode se revelar eficiente a utilização de tributos, com o intuito de obrigar os agentes econômicos a suportar as externalidades nega-tivas geradas em razão da sua atividade econômica poluidora ou, por outro lado, estimular por meio de incentivos fiscais que eles desenvolvam comportamentos não agressivos ao meio ambiente (AMARAL, 2008, p. 222).

O Estado enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica encontra respal-do no artigo 174 da Constituição Federal, bem como, no artigo 170 quando trata da proteção ao meio ambiente. A Lei Maior estabelece a possibilidade de tratamento diferenciado, de acordo com o impacto causado ao meio ambiente pelos agentes econômicos, através do processo de produção ou prestação de serviços.

Dentre os mecanismos econômicos de contenção das externalidades negativas estão os tributos ambientais:

Dessa forma os custos nos quais a sociedade incorre ao suportar os danos externos negativos causados pelos poluidores são, por assim dizer, a ela ressarcidos por meio da obrigação tributária, que desempenha o papel de instrumento para a internalização das externalidades, através da incorporação aos preços dos bens e serviços, dos verdadeiros custos sociais impostos pelas atividades degradadoras (CARNEIRO, 2003, p. 78).

Carneiro (2003) aponta prós e contras desta modalidade de contenção das externalidades negativas, visto que, ao mesmo tempo em que podem incentivar os produtores (e a receita oriun-da destes tributos financiar políticas públicas revertidas à própria preservação ambiental) a uma revisão de seus mecanismos produtivos e nos consumidores despertar a consciência ecológica (produtos produzidos em respeito ao meio ambiente tendem a alcançar maior aceitação e procura no mercado), de outro lado, a exigência pode não ser tolerável por muitas empresas, que deixariam de ser viáveis dentro da racionalidade econômica.

A cobrança pela utilização de recursos naturais, como os recursos hídricos ou ainda, es-tabelecimento de um custo para o volume de lixo produzido por uma empresa, por exemplo, in-cluindo-se neste cálculo as despesas com o serviço de coleta e tratamento destes resíduos, também são formas econômicas de solução do problema, ao lado de incentivos fiscais, a fim de se facilitar a incorporação de mecanismos de redução e controle da poluição pelos agentes econômicos.

Os sistemas de devolução de depósitos também são mencionados por Carneiro (2003), ocorrendo quando o consumidor assume o pagamento de um valor incorporado no preço final do

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produto, podendo ser reembolsado deste custo adicional, na ocasião em que promover a devolução de embalagens.

Necessário pontuar que os mecanismos econômicos, especialmente os tributos ambientais, não devem ter o escopo de valorar o bem ambiental, a fim de que através do pagamento da exação se adquira o direito de poluir, de degradar o meio ambiente. A arrecadação estatal com os tributos compõe fundos que devem retornar à sociedade em forma de investimentos na promoção do bem--estar social (saúde, educação, transporte, proteção ambiental).

No que tange ao meio ambiente, os tributos ambientais hão de ser compreendidos não como uma penalidade ao ofensor, mas como um meio de se incentivar a proteção e ainda anga-riar recursos para a preservação. A proteção e a preservação ambientais devem ser os princípios norteadores em desfavor da indenização, da reparação, justamente em razão da natureza difusa do bem ambiental e da impossibilidade de mensuração patrimonial. É preciso que eventuais resultados negativos sejam antevistos e prevenidos.

Os instrumentos econômicos de proteção ambiental e dentre eles os tributos ambientais, permitem o estabelecimento de um ponto de intersecção entre as racionalidades econômica e jurídica. Em outras palavras, o Estado através do aparato normativo infiltra-se na racionalidade econômica, fazendo uso de valores que podem ser assimilados pelos agentes econômicos.

Quando a degradação ambiental passa a ser internalizada pelos agentes econômicos como custo, a consequência natural também passa a ser a tentativa de redução deste custo e, via reflexa, a proteção ao meio ambiente ou o estudo de formas de minimização da agressão ambiental. No Brasil, merece destaque o chamado ICMS ecológico, implantado pioneiramente no Estado do Pa-raná, na década de 1990, sendo o Estado de São Paulo o segundo estado a implementá-lo em 1993, através da Lei.N. 8.510/1993 (cf. SÃO PAULO, 1993). Não se trata de um novo tributo, tampouco alteração da descrição legal do fato gerador do ICMS.

A Constituição Federal estabelece no inciso II, do parágrafo único do artigo 158, a possibilidade do Estado, através de lei específica, aumentar o repasse do ICMS aos municípios. O aumento deste repasse foi então condicionado à implementação de políticas de proteção e preservação do meio ambiente pelos municípios.

Nascido da pressão política de municípios paranaenses que buscavam o ressarcimento do custo da manutenção de mananciais de abastecimento público para diversos territórios, o ICMS ecológico tornou-se uma rea-lidade nacional. Hoje, já é praticado em cerca de 15 estados brasileiros e está em vias de aprovação em diversos outros. (JUNIOR, 2009, p. 67).

As pesquisas apontam que o interesse dos Municípios pelo aumento do repasse já incen-tivou uma série de medidas protetivas ao meio ambiente. No Paraná, primeiro estado a implantar o ICMS ecológico, inicialmente como compensação em razão das restrições de uso do solo, os avanços são significativos:

Incentivo porque têm, por força da metodologia adotada, espe-cialmente no Paraná, estimulado os municípios que não possuem

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unidades de conservação a criar ou defender a criação destas, ou ainda aqueles municípios que já possuem unidades de conservação em seu território, que tomem parte de iniciativas relacionadas a regu-larização fundiária, planejamento, implementação e manutenção das unidades de conservação.No caso paranaense, cabe realce que entre 1992 e 2000 houve um incremento de 1.894,94 por cento em superfície de das unidades de conservação municipais, de 681,03 por cento nas unidades de conser-vação estaduais, 30,50 por cento nas unidades de conservação fede-rais e terras indígenas e de 100 por cento em relação as RPPN estadu-ais. Houve ainda melhoria na qualidade da conservação dos parques municipais, estaduais e das RPPN (LOUREIRO, 2009, p. 45).

Também são exemplos de instrumentos econômicos as taxas de licenciamento ambiental. Importante destacar aqui as discussões acerca da natureza jurídica desta contraprestação, se de taxa ou preço público, visto que, se reconhecido como tributo, o princípio da anterioridade deve ser respeitado quando da instituição, o que nem sempre ocorre, gerando discussões jurídicas e enfraquecendo o sistema. De qualquer sorte, quando certas atividades são submetidas, por lei, ao necessário licenciamento ambiental, almeja o Estado estabelecer um controle no exercício destas atividades econômicas.

É possível constatar que ainda não se trata de tributos ambientais como uma nova modali-dade, mas adaptação dos tipos tributários já existentes com reflexos na proteção ambiental:

Os chamados tributos verdes são designados tecnicamente tributos ambientais. Tributos verdes é expressão leiga que se refere a tri-butos que têm motivação ambiental. Mas, cientificamente, há dois sentidos de tributos verdes ou tributos ambientais: um sentido amplo e um sentido estrito. Em sentido amplo, tributo ambiental é um tributo tradicional ou ordinário adaptado de molde a servir aos esforços de proteção ambiental. Em sentido estrito, significa um tributo novo cobrado em razão do uso do Meio Ambiente pelos agentes eco-nômicos (OLIVEIRA, 2009, p. 78).

Pelo descrito acima, os tributos como instrumentos econômicos de proteção ambiental ainda são utilizados de forma tímida no Brasil e em sentido amplo, ou seja, são os tipos tributários tradicionais adaptados à proteção ambiental. Carneiro (2003, p. 146-147) aponta quais seriam algu-mas das razões para a utilização inexpressiva dos instrumentos econômicos no Brasil:

a) A instabilidade econômica contribui para a não utilização dos instrumentos econômicos em favor da proteção ambiental, na me-

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dida em que estes venham a gerar insegurança quanto aos custos da produção, que influenciam diretamente no preço e elevam o receio da derrota do agente econômico no mercado competitivo.b) A racionalidade econômica antevê na atividade meramente fis-calizatória do Estado, um caminho mais fácil à desobediência e à corrupção dos agentes públicos, não tendo interesse em alterar esse modelo.c) Os próprios agentes públicos responsáveis pela função fiscali-zadora e punitiva preferem desmerecer os instrumentos econômi-cos e assim manterem-se em seus postos.d) Os setores econômicos governamentais também contribuem para o esvaziamento do mecanismo, ora deixando de reverter a ar-recadação para a proteção ambiental, ora rechaçando as propostas que impliquem em renúncia de receitas fiscais, ora aniquilando as condições competitivas das empresas frente ao mercado interna-cional, onerando em demasia os custos da produção.e) Os tributos econômicos são ainda muito pouco utilizados, mes-mo em países desenvolvidos, havendo incerteza e reduzido co-nhecimento acerca dos resultados. A justa medida da intervenção estatal no mercado é também de difícil aferição e a novidade do sistema termina por se traduzir em relutância na sua implemen-tação.

A grande vantagem, a nosso ver, dos instrumentos econômicos de proteção ambiental, especialmente dos tributos ecológicos, é justamente o fato de constituir mecanismo jurídico de in-terferência na racionalidade econômica, ou seja, traduzem a presença da Ciência Jurídica no mundo da Ciência Econômica, visto que o que se pretende é o incutir na visão mercadológica dos agentes econômicos o valor vital do bem ambiental.

A racionalidade econômica, calcada tão somente na eficiência e nos valores do mercado, precisa ser revista e a integração das ciências jurídica, econômica e social, especialmente, traduz um apelo da humanidade. Tais ciências devem trabalhar em conjunto, reunindo esforços no sentido de estabelecer novos parâmetros, até que a preservação do meio ambiente deixe de ser uma imposição legal ao mercado e à sociedade em geral, mas um valor sinônimo do próprio direito à vida.

Considerações finaisA inserção em seus ordenamentos jurídicos de direitos de terceira dimensão e a preocupa-

ção efetiva em tutelá-los denotam a evolução dos povos. Entretanto, a consagração de direitos pela sua inclusão normativa não é suficiente. Não basta para a proteção ambiental que o meio ambiente seja um valor fundamental insculpido em nossa Lei Maior; é preciso que sejam estabelecidos me-canismos que conduzam à absorção deste valor por toda a sociedade.

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A Ciência Econômica possui a sua racionalidade e infiltrá-la, a fim de se produzir o chama-do desenvolvimento sustentável, é tarefa que a Ciência Jurídica pode e deve desempenhar. A uti-lização pelo Estado de instrumentos também econômicos de ingerência, pautando a conduta dos agentes econômicos, com vistas à proteção ambiental, em que pese a tímida utilização no Brasil, apresenta-se como um caminho digno de ser desbravado.

Quanto aos tributos ecológicos, não temos ainda os chamados tributos verdes, mas ade-quações de tipos tributários tradicionais, como o ICMS, através do aumento do repasse pelos Es-tados aos Municípios, do referido imposto. Em Estados como o Paraná, pioneiro na implantação deste instrumento econômico, estudos revelam os resultados positivos.

Driblar os entraves à implementação destes instrumentos que, por vezes esbarram na au-sência de vontade política do próprio Estado, é a grande e urgente questão, visto que a natureza tem usado de seus argumentos, contundentes o bastante, para esclarecer eventuais dúvidas que ainda possam existir acerca da fragilidade da existência humana, na condição de mera integrante da incomensurável grandeza representada pelo ciclo da vida no universo.

Por fim, a conciliação entre desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente, mediante a relativização de direitos subjetivos em favor dos direitos metaindividuais, promovendo o chamado desenvolvimento sustentável, é simples questão de garantia da vida, não apenas a hu-mana, e razão de ser de todos os sistemas, mas também o jurídico e econômico.

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SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

Recebido em: junho /2012Artigo aprovado para publicação em: julho /2012

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POVOS INDíGENAS E REFUGIADOS AMBIENTAIS PERANTE O SIS-tema interameriCano de direitos HUmanos: memorial de ALEGAÇÕES, ARGUMENTOS E PROVAS DA POPULAÇÃO INDíGENA ARICAPU E DOS IMIGRANTES DA REPÚBLICA DE MIROKAI – Parte I de iii/ INDIGENOUSPEOPLES AND ENVIRONMENTAL REFUGEES BEFORE THE INTER-AMERICAN HUMAN RIGHTS SYSTEM: MEMORIAL OF CLAIMS, ARGUMENTS AND EVIDENCE OF INDIGENOUS PEOPLES ARICAPU AND THE IMMIGRANT OF REPUBLIC OF MIROKAI - Part I of III

Juliana Correa Tuji24

liana amin lima da silva25

Patrícia Précoma Pellanda26

edson damas da silveira27

Sumário: parte i: Introdução; Preâmbulo; Síntese dos fatos; Das razões fáticas; Do procedimen-to diante do Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Considerações iniciais; Das supostas vítimas; Da admissibilidade; Competência; Provas documentais; Mérito; Da proteção dos grupos vulneráveis indígenas e refugiados ambientais; Os direitos dos integrantes da população indígenas Aricapu como grupo vulnerável e sujeito coletivo de direitos; Os direitos dos integrantes da po-pulação imigrante de Mirokai como grupo vulnerável e sujeito coletivo de direitos; Conclusões.

Resumo: O presente artigo é resultado do memorial de alegações apresentado como requisito formal para fins de avaliação e participação na Moot Court Competition in Sustainable Development Law Before the Inter-American Court of Human Rights, realizada entre os dias 17 e 20 de março de 2011, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). O memorial é, em simulação, apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em defesa dos povos indígenas Aricapu e dos imigrantes da República de Mi-rokai, em razão da violação dos direitos humanos da população indígena e comunidade tradicional

24 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Conselheira Fiscal do Centro de Estudos em Direito Ambiental da Amazônia (CEDAM), gestão 2010-2012.

25 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professora de Direito no Centro Universitário Indígena do Alto Rio Negro da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Conselheira Consultiva do CEDAM, gestão 2010-2012.

26 Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Conselheira Consultiva do CEDAM (2012-2014) e vice-presidente do CEDAM, gestão 2010-2012.

27 Doutor e Mestre em Direito Econômico e Socioambiental. Mestrando em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Desenvolvimento Sustentável. Professor do curso de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

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mencionados, no caso hipotético do alagamento de seus territórios para a construção da Hidrelé-trica de Cinco Voltas. Ao final, conclui-se pela efetiva violação dos direitos humanos dos grupos vulneráveis indicados, devendo o Estado proteger a vida e integridade física e moral das vítimas, abstendo-se de restringir ilegalmente a livre circulação dos membros das comunidades e proteger a especial relação da comunidade indígena com o seu território e, ainda, manter as tradições vividas por essas comunidades.

Palavras-chave: povos indígenas; direitos humanos; Mirokai.

Abstract: This article is the result of the memorial of claims submitted as a formal requirement for evaluation purposes and participation in the Moot Court Competition in Sustainable Development Law Before the Inter-American Court of Human Rights, held between 17 and 20 March 2011, in the city of Rio de Janeiro/RJ. The memorial is in simulation, presented to the Inter-American Court of Human Rights, in defense of indigenous peoples Aricapu and immigrants of the Re-public of Mirokai, due to the violation of human rights of indigenous and traditional community mentioned in the hypothetical case of flooding their territories for the construction of hydroelec-tric (Hidrelétrica de Cinco Voltas). At the end, it is concluded by the effective violation of human rights of vulnerable groups above, the State must protect the life and physical and moral health of victims, by refraining from illegally restricting the free movement of members of communities and protect the special relationship indigenous community with its territory and also keep the traditions experienced by these communities.

Abstract: indigenous communities; human rights; Mirokai.

IntroduçãoO presente trabalho consiste no memorial de alegações apresentado como requisito for-

mal para fins de avaliação e de participação na Moot Court Competition in Sustainable Development Law Before the Inter-American Court of Human Rights, realizada entre os dias 17 e 20 de março de 2011, na cidade do Rio de Janeiro/RJ. O referido evento foi organizado no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), por intermédio do seu curso de Direito e Meio Ambiente, em parceria com a Tu-lane University Law School, Universidad de los Andes e Universidad Rafael Landívar, assim como apoiado integralmente pelo Consulado Geral dos Estados Unidos da América na cidade do Rio de Janeiro.

Importa por escopo destacar que referido evento se desenvolveu na sistemática de uma competição organizada na forma de seções simuladas junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual participaram 19 (dezenove) equipes, de 06 (seis) países diferentes, a saber: Brasil, Estados Unidos da América, Guatemala, Colômbia, Porto Rico e República Dominicana.

Na condição de coach da equipe que representou o Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas no aludido evento, Edson Damas da Silveira teve a oportu-nidade de testemunhar a condução dos trabalhos, razão pela qual insistiu para que fosse publicado o memorial que lhes serviu de embasamento teórico, dada a qualidade técnica das razões expostas

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e o forte adensamento normativo que restou sustentado em todos os debates.Tal desempenho mereceu também reconhecimento por parte da comissão julgadora que

examinou a primeira rodada da competição, uma vez que saíram dela vencedoras, se destacando ainda a mestranda Patrícia Santos Précoma Pellanda como a melhor debatedora do enclave.

Em face da inédita participação, a par da bem elaborada pesquisa promovida pelas re-presentantes do mestrado tornou-se imperiosa a necessidade de publicação e atenta leitura do memorial a seguir reproduzido, estimulando-se assim novas e futuras inscrições em eventos inter-nacionais desse jaez. Segue, portanto, a parte I do memorial.

Preâmbulo

Ao Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos,

El ser humano tiene necesidad espiritual de raíces. Los miembros de comunidades tradicionales valoran particularmente sus tier-ras, que consideran que a ellos pertenece, así como, al revés, ellos “pertenecen” a sus tierras. (Corte IDH. Caso Yakye Axa vs. Para-guai. Sentença de 06 de fevereiro de 2006.)

A população indígena Aricapu e os imigrantes da República de Mirokai (doravante supostas vítimas), por seu representante legal e interveniente comum, vêm a essa Honorável Corte Intera-mericana de Direitos Humanos (doravante Corte IDH, Corte ou Tribunal), apresentar a presente peça de alegações, argumentos e provas, com fundamento nos arts. 33 e 44 da Convenção Americana de Direito Humanos (CADH) e nos arts. 25 e 40 do Regulamento da Corte IDH, referente ao caso População Indígena Aricapu e Imigrantes da República de Mirokai Vs. República Federal de Tucanos relatado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante Comissão ou CIDH), a fim de que seja declarada a procedência do pedido, com base nos artigos 4, 5, 8, 21, 22 e 25, em consonância com o artigo 1.1 todos da CADH, acrescidos dos fundamentos fáticos e jurídicos ora apresentados. O presente memorial, juntamente com seus anexos, segue por meio de correio eletrônico, nos termos no artigo 28.1 do Regulamento da Corte IDH. Com a expressão de nossa mais elevada considera-ção e renovando a afirmação do nosso respeito aos Direitos Humanos, subscrevemo-nos,

Respeitosamente,Representante das supostas vítimas.

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síntese dos fatos

Das Razões Fáticas

A República de Tucanos (doravante denominada Estado) pertence ao continente Sul-Ame-ricano, fazendo fronteira com o Principado de Araras na confluência dos rios Betara e Corvina. Histórica e culturalmente, o Estado demonstra o seguimento de um regime democrático estável. Além disso, apesar de conturbados conflitos territoriais no passado devido aos limites transfron-teiriços com o país vizinho, atualmente a República Federal de Tucanos tem mantido relações pacíficas e cooperativas com o Principado de Araras.

Não obstante o célere crescimento econômico e industrial do Estado, parte da população ainda preserva seus laços e costumes, tradições seculares que foram transmitidas de geração a geração. Nos arredores da confluência dos rios, a manutenção das tradições e a heterogeneidade das culturas da população Tucana predominam, sendo possível localizar populações indígenas e comunidades tradicionais que garantem a diversidade cultural da região cujos povos vivem de for-ma pacífica, porém mantendo as suas tradições, tanto na estrutura organizacional da comunidade, como no método adotado para a sua subsistência.

Ao menos 15 das 20 vilas da população indígena Aricapu e a maioria das 10 mil pessoas que migraram da República de Mirokai habitam a área da confluência dos rios Betara e Corvina, no território do Estado. Ressalta-se que, ambos os grupos, dependem dos recursos naturais da região como fonte primária de trabalho e subsistência e ambos possuem seus direitos coletivos à terra reconhecidos pelo Estado.

Entretanto, o Estado pretende investir na construção de uma hidrelétrica nesse local, atu-almente habitado pela população indígena Aricapu e pela comunidade tradicional composta pelos imigrantes da República de Mirokai, conforme já mencionado. Segundo o Estado, a hidrelétrica, que será denominada “Hidrelétrica de Cinco Voltas”, irá suprir as necessidades do país por novas fontes energéticas, com o objetivo de prevenir futuros apagões na região e manter o crescimento econômico e industrial do país.

Diante desses fatos, após a aprovação do Relatório de Impactos Ambientais (RIA) pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente (IMA), a população indígena Aricapu e os imigrantes da República de Mirokai (doravante denominadas supostas vítimas) ajuizaram ação contra o Estado, objetivando a anulação da aprovação do RIA e interrupção das obras da hidrelétrica, em caráter liminar. As supostas vítimas alegaram que a construção da hidrelétrica destruiria um território pre-servado pelos índios, considerado sagrado por estes. Além disso, violaria o direito de propriedade dessas populações e geraria impactos ambientais superiores aos estabelecidos pela Política Tucana de Meio Ambiente (PTMA) de 1991. No entanto, apesar de todas as alegações pertinentes acima, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido em 14 de maio de 2010.

Inconformados com a decisão, as supostas vítimas recorreram à Corte de Apelações da República de Tucanos, a qual deferiu o pedido, ordenando, liminarmente, a suspensão das obras da hidrelétrica em 30 de junho de 2010. O Estado, na pessoa de seu Advogado Geral da União, apresentou recurso à Suprema Corte de Tucanos, alegando que as supostas vítimas não trouxeram

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evidências concretas dos impactos negativos resultantes da construção da hidrelétrica e, por isso, as obras deveriam continuar, uma vez que a hidrelétrica é essencial ao crescimento econômico do Estado.

A Suprema Corte deferiu o recurso do Estado, em 2 de agosto de 2010, confirmando a decisão em primeira instância. Assim, revogou-se a liminar da Corte de Apelações, permitindo a retomada das obras da hidrelétrica.

Após esgotarem todos os recursos internos, não houve outra alternativa às supostas víti-mas a não ser recorrer ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no intuito de obter uma decisão justa e eficaz ao caso, e evitar a ocorrência de fatos similares a esse.

Do procedimento diante do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Diante do resultado desfavorável obtido perante o sistema judiciário interno da República de Tucanos, as supostas vítimas ofereceram petição individual à CIDH, em 6 de outubro de 2010, sendo o petitório admitido em 15 de outubro. Após o prazo de resposta pelas partes, nos termos do art. 40 do Regulamento da Comissão e do art. 49 da Convenção, houve a tentativa de mediar um acordo amigável, o qual não teve êxito.

Em ato contínuo, a Comissão, verificando a violação pelo Estado dos arts. 4, 5, 8, 21, 22 e 25 em consonância com o at. 1.1, todos da Convenção, apresentou o presente caso à Corte IDH, em razão da gravidade da situação e a posição dos peticionários no caso, relatando-o em conformi-dade com o art. 45.2 do Regulamento da CIDH.

Por todo o exposto, as supostas vítimas, através de seu representante e interventor comum, vêm a esta Corte apresentar o presente escrito de alegações, argumentos e provas, no intuito de contribuir ao esclarecimento dos fatos e motivar a demanda através da juntada de novas provas e fundamentos jurídicos, nos termos em que passa a expor.

Considerações Iniciais

Das supostas vítimasPor tratar-se de violação de direitos coletivos e metaindividuais, não há a possibilidade de

individualização das supostas vítimas, conforme requer o art. 40.2.c do Regulamento da Corte. A presente demanda versa sobre a violação massiva dos direitos pertencentes a dois grupos distintos em sua origem, porém igualitários frente aos direitos violados e a pretensão jurídica ora oferecida:

• População indígena de Aricapu: habitam a região norte da Repú-blica de Tucanos e, juntamente com os habitantes do Leste do Principado de Araras, representam um dos mais antigos e tradicionais grupos étnicos;

• Imigrantes da República de Mirokai: instalaram-se na Repúbli-ca de Tucanos, por volta de 1975, na confluência dos rios Betara e Corvina. Referem-se acerca de 10 mil imigrantes,

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que migraram de seu pequeno país localizado no continente Asiático, devido à extensa destruição de seu território, cau-sada pelo impacto de sucessivas ondas tsunamis. Foram re-gistrados pelo Estado, de acordo com as normas da Agência Nacional de Auxílio aos Estrangeiros (ANAE), criada pela Lei Complementar nº 101/1924 da República de Tucanos.

Diante da ausência de determinação das supostas vítimas, a Corte tem utilizado critérios aplicáveis às particularidades e circunstâncias de cada caso, considerando como supostas vítimas pessoas que não foram mencionadas como tal na demanda, sempre que houver respeitado o direito de defesa das partes e das supostas vítimas, guardando relação com os atos descritos na demanda e com a prova apresentada diante da Corte (Corte IDH. Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia. Sentença de 1º de julho de 2006).

No que concerne à subjetividade legal dos povos no Direito Internacional, trata-se de uma evolução que tem contribuído para a expansão da personalidade legal e internacional dos indivídu-os (pertencentes a grupos, minorias ou coletividades humanas) como sujeitos (contemporâneos) do direito internacional (Corte IDH. Caso de La Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Sentença de 15 de junho de 2005. Voto fundamentado do Juiz A. A. Cançado Trindade - §§10 e 12).

As supostas vítimas em questão pertencem a grupos organizados, residentes em local geo-gráfico determinado e, por isso, podem ser identificadas, aplicando-se os direitos aqui discutidos a todos os membros dessas comunidades (Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Kankuamo vs. República de Colombia. Medidas provisórias. Resolução da Corte IDH de 5 de julho de 2004). Trata-se de uma plu-ralidade de pessoas que, apesar de não terem sido nominadas, são identificáveis e determináveis, e se encontram em uma situação de grave perigo em razão de pertencerem a uma comunidade (Corte IDH. Caso Pueblo Indígena de Sarayaku vs. República del Ecuador. Medidas provisórias. Resolução da Corte IDH de 6 de julho de 2004 e Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Kankuamo vs. República de Colombia. Medidas provisórias. Resolução da Corte IDH de 5 de julho de 2004). Nesse sentido, a Corte IDH é legítima para reconhecer como supostas vítimas os grupos acima mencionados, nos termos do art. 35.2 do seu Regulamento.

da admissibilidade

Desde o Regulamento da Corte IDH adotado em 1996, as vítimas, por meio de seus repre-sentantes legais ou familiares, passaram a ter permissão para manifestar-se perante a Corte, com a apresentação de seus próprios argumentos e provas. Essa legitimidade foi reconhecida, inicialmen-te, no caso El Amparo (reparações 1996), quando se entendeu que os representantes das vítimas eram, de fato, a verdadeira parte demandante perante a Corte. Assim, o locus standi in judicio das supostas vítimas (ou seus representantes legais) contribui para melhor instruir o processo, e sem o qual estará, este último, desprovido, em parte, do elemento do contraditório, essencial na busca da verdade e da justiça (TRINDADE, 2002).

Portanto, respeitados os requisitos de admissibilidade, como o esgotamento prévio dos re-

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cursos internos e a inexistência de litispendência internacional, as supostas vítimas são legitimadas a apresentar seus próprios argumentos e provas, por meio de um representante legal e interveniente comum, competindo à Corte IDH conhecer e julgar o presente caso (arts. 33 e 44 da CADH e arts. 25 e 40 do Regulamento da Corte IDH).

Competência

A República de Tucanos, país do continente Sul-Americano, além de participar do proces-so de negociação da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), também ratificou os tratados interamericanos de direitos humanos e a maioria dos tratados da Organização das Nações Unidas (ONU). A República é parte da CADH desde quatro de agosto de 1991, tendo reconhecido a competência contenciosa da Corte IDH, em julho de 1992.

Ao reconhecer a competência desta Honorável Corte, o Estado, consequentemente, re-conheceu a possibilidade de vir a ser julgado e considerado responsável pela ação ou omissão caracterizadora da violação dos direitos e garantias protegidos pela CADH, conforme preceitua o art. 1º deste tratado. Sendo assim, compete à Corte processar e julgar o presente caso, nos termos dos arts. 33 e 44 da CADH e arts. 25 e 40 de seu Regulamento.

Provas documentaisPara instruir esta demanda foram anexados a esse petitório os seguintes documentos: a)

títulos de propriedade: adquiridos pela população indígena quando tiveram seus direitos coletivos à terra reconhecidos através do Ato de Reconhecimento de Terras Indígenas de 1975 e em aten-dimento ao previsto no art. 26.2 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (doravante Declaração de 2007). E títulos de posse das terras, adquiridos pelos imigran-tes de Mirokai depois de decorrido o prazo de cinco anos do registro de entrada dos imigrantes no Estado perante a ANAE; b) ata da última reunião geral da população indígena de Aricapu, legiti-mando a representação da população junto ao Estado e aos demais países, cuja função é atribuída ao secretário da Assembleia Geral, devidamente eleito na reunião bianual, de acordo com o direito reconhecido pelo art. 33.2 da Declaração de 2007; c) ata de eleição do representante mirokaense San Yano, legitimando sua representação da população dos imigrantes de Mirokai na presente lide.

méritoA construção da Hidrelétrica de Cinco Voltas, na localidade pretendida pelo Estado, resulta

na violação de diversos direitos e garantias, devidamente reconhecidos pelo direito internacional contemporâneo. Essas violações podem ser observadas tanto em relação à população indígena Ari-kapu, quanto em relação à população de imigrantes de Mirokai, de acordo com a particularização abaixo.

Da proteção dos grupos vulneráveis: indígenas e refugiados ambientaisAs supostas vítimas do caso em análise – população indígena de Aricapu e imigrantes de

Mirokai – são consideradas grupos vulneráveis e, portanto, sujeitos coletivos de direito. Ambos

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possuem, em sua essência, a organização em grupo e a proteção de seus direitos de forma coletiva, tendo como característica marcante a identidade cultural, modos de vida próprios e tradições que são transmitidas ao longo das gerações.

Podem ser destacadas algumas particularidades desses grupos, no intuito de distingui-los em suas características, contudo, em sua essência eles são iguais. Com isso, a avaliação pontual do mérito dessa demanda poderá partir de uma interpretação extensiva, considerando os direitos a ambos os grupos vulneráveis, ainda que reconhecidas certas peculiaridades.

Os direitos dos integrantes da população indígena Aricapu como grupo vulnerá-vel e sujeito coletivo de direitos

O povo indígena Aricapu está amparado pelo instituto do indigenato, consagrado nos instrumentos internacionais. Ao considerar que os povos indígenas e suas comunidades têm uma relação ancestral com suas terras e que durante muitas gerações essas populações desenvolveram um conhecimento científico tradicional holístico sobre seus territórios, recursos naturais e o meio ambiente, a ONU, por meio da Agenda 21, reconheceu que as populações indígenas devem des-frutar da plenitude dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, sem impedimentos e dis-criminações. Esse reconhecimento foi reiterado no art. 1º, da Declaração de 2007, garantindo aos indígenas o direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, também reconhecidos pela Carta das Nações Unidas (doravante Carta da ONU), pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (doravante Declaração de 1948) e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH).

O diálogo intercultural antes teorizado, no caso específico da Declaração de 2007, mostrou-se uma realidade possível e perfeitamente ajustada com os princípios que hoje norteiam o Estado Moderno (SILVEIRA, 2010, p. 45). Tanto a Corte IDH quanto a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) têm considerado que os tratados de direitos humanos são instrumentos vivos, cuja interpretação tem que acompanhar a evolução dos tempos e condições de vida atuais. Tal interpretação evolutiva está em consonância com o art. 29 da CADH, assim como as estabelecidas pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (doravante Convenção de Viena). Ao analisar os alcances da CADH, o Tribunal considera útil e apropriado utilizar outros tratados internacionais distintos à Convenção, tais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Corte IDH. Caso Yakye Axa Vs. Paraguai. Sentença de 06 de fevereiro de 2006. Razões de Voto: Juiz A.A. Cançado Trindade. §§125-127).

A cultura dos membros das comunidades indígenas corresponde a uma forma de vida particular de ser, ver e atuar no mundo, e é constituída a partir de sua estreita relação com seus territórios tradicionais e os recursos que ali se encontram, não só por ser seu principal meio de sub-sistência, mas também porque constituem um elemento integrante de sua cosmovisão, religiosidade e identidade cultural (TRINDADE, 2006, §§135-136).

A vulnerabilidade dos povos indígenas é revelada por sua luta constante pela sobrevivência física e cultural, considerando os históricos massacres (Entre os casos de massacres julgados pela Corte, destaca-se: Corte IDH. Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia. Sentença de 1º de julho de 2006; Corte IDH. Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentença de 25 de novembro de

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2006) e violências sofridos: as discriminações ao seu modo de vida, cosmologias e línguas próprias, as pressões e interesses externos pela exploração de seu habitat tradicional, a ausência de serviços básicos de saúde e educação que considerem suas diversidades socioculturais e que atendam suas necessidades particulares, entre outros fatores. Como grupos vulneráveis, os Estados são responsá-veis por uma ação coordenada e sistemática, com a participação desses povos, com vistas a proteger seus direitos e garantir a sua integridade (art. 2º, da Convenção nº 169, da OIT).

Ressalta-se que a visão de integração desses povos à comunhão nacional e ao tratamento de tutela assistencialista como se fossem pessoas incapazes não deve prosperar. Logo, o entendimento que deve prevalecer é de que os Estados devem reconhecer esses povos como minorias cultural-mente diferenciadas, constituindo-se como grupos autônomos. Portanto, ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados devem ser levados em consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário (art.8º da Convenção nº 169).

Os direitos dos integrantes da população imigrante de Mirokai como grupo vul-nerável e sujeito coletivo de direitos

Os imigrantes de Mirokai, assim como os indígenas Aricapu, devem ser tratados com fundamento no princípio da igualdade e da não discriminação, nos termos do art. 1.1 da CADH. A garantia de tratamento igual é reconhecida, inclusive, pela Constituição de Tucanos, impossibilitan-do qualquer conflito normativo, até mesmo em âmbito nacional.

Os imigrantes pertencem à categoria de ‘minorias vulneráveis’, uma vez que tiveram sua migração forçada em decorrência de desastres ambientais ocorridos em seu país de origem, no continente asiático. Desta forma, os imigrantes são sujeitos de direito, sendo-lhes garantido o di-reito de habitar qualquer lugar livremente, ter uma pátria, residir com sua família, ter preservadas e respeitadas a sua cultura, língua, religião e etnia.

Por se constituírem grupos vulneráveis, e ainda em decorrência de perseguições e discrimi-nações que frequentemente sofrem, devem ser inseridos em políticas públicas e ações afirmativas governamentais. Logo, o Estado deve se esforçar para garantir os direitos de cidadania e a dignida-de dessas pessoas, sobretudo, evitando novo deslocamento ou possível reassentamento, quando já estão social e culturalmente estabelecidos no território Tucano.

A “migração forçada” caracteriza-se pela necessidade que se impõe a indivíduos ou a gru-pos inteiros de deixar o local ou país de origem por causas alheias à sua vontade. Há diversas ocor-rências que justificam o deslocamento forçado, massivo e pontual. Todavia, numa época de mu-danças no clima, causadas pela ação humana desordenada no meio ambiente, esse aspecto torna-se cada vez mais relevante (cf. ACNUR, 2005).

Como ocorreu no presente caso, as migrações e deslocamentos forçados decorrentes de desas-tres naturais favorecem o crescente número dos chamados ‘refugiados ambientais’, como ocorrido com as sucessivas ondas do evento tsunami que devastaram a costa de Mirokai em 1970. Ainda que inexisten-te garantia pétrea da não devolução (non-refoulement), como no caso dos refugiados que sofrem persegui-ções e não podem contar com a proteção de seu Estado de origem, há uma necessidade cada vez mais urgente pelo direito de assistência humanitária para essa categoria emergente de migrantes forçados.

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Essas migrações e deslocamentos resultam no desenraizamento de seres humanos, acar-retando traumas, como sofrimento pelo abandono do lar (às vezes separação e desagregação fa-miliar), perda da profissão e de bens, perda do idioma materno e raízes culturais, choque cultural e sentimento permanente de injustiça. Geralmente, os imigrantes se encontram em uma situação de vulnerabilidade como sujeitos de direitos humanos, em uma condição individual de ausência ou diferença de poder no que diz respeito aos não-imigrantes (nacionais ou residentes).

Os prejuízos culturais, como lesões étnicas, xenofobia e racismo, dificultam a integração dos imigrantes à sociedade e levam à impunidade das violações de direitos humanos (Corte IDH. Opinião Consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003). Sendo assim, torna-se imperiosa a cooperação internacional e a solidariedade nas situações em que se encontram os refugiados ambientais em decorrência das catástrofes naturais que destroem milhares de fontes de trabalho e habitação. Trata-se de uma proteção humanitária apropriada para os migrantes forçados, garantin-do-lhes o acesso aos sistemas de saúde, educação, alimentação, moradia e o direito ao trabalho no país receptor. (As Convenções nº 97 e 143 da OIT e a Declaração da OIT de 1998 reconhecem aos trabalhadores migrantes a igualdade de oportunidade e tratamento, não apenas no acesso ao emprego, mas também nos direitos culturais e nas liberdades individuais e coletivas). A concessão de meios para garantir o amparo aos migrantes deve ser considerada como ato humanitário de natureza pacífica e de garantia aos direitos humanos.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ao enfatizar pe-rante esta Corte a situação de vulnerabilidade dos imigrantes, referiu-se ao nexo existente entre migração e asilo, e reiterou que a natureza e complexidade dos deslocamentos contemporâneos dificultam estabelecer uma linha clara de distinção entre refugiados e imigrantes. Sem embargo, o DIDH tem evoluído para responder as novas necessidades de proteção. E é perfeitamente possível que estejamos testemunhando os primórdios de formação de um direito humano à assistência hu-manitária (Corte IDH. Opinião Consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003).

Não se pode olvidar que a população imigrante de Mirokai é uma minoria “duplamente vulnerável”, considerando que se trata de comunidade tradicional ribeirinha, que mesmo com as dificuldades e traumas que um deslocamento forçado gera, conseguiu se adaptar na região da con-fluência dos Rios Betara e Corvina, onde vive da exploração dos recursos naturais, pesca e produ-ção de pequenos objetos que vendem nos mercados locais.

A população tradicional mirokaense, desde seu estabelecimento na República de Tucanos, mantém relações amistosas e cooperativas com a população Aricapu, o que demonstra a impor-tância desta relação intercultural para a manutenção da área florestal e consequentemente para a conservação da biodiversidade (Nesse sentido, aplica-se a CDB como forma extensiva de proteção dos direitos desses povos tradicionais). Ressalta-se que as comunidades tradicionais possuem tam-bém amparo nas Convenções da United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (UNESCO), em especial a Convenção de 1972, a Convenção de 2003 e a Convenção de 2005 (Ver: Corte IDH. Caso Yakye Axa vs. Paraguai. Sentença de 06 de fevereiro de 2006. Voto fundamen-tado do Juiz A.A.Cançado Trindade ).

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Por fim, é possível mencionar a existência de uma ameaça iminente de danos materiais e imateriais, morais e espirituais à população tradicional composta pelos imigrantes de Mirokai. Logo, além do direito a um projeto de vida, esses povos também possuem o direito a um projeto de pós-vida, o que revela uma nova categoria de dano, compreendendo o princípio da humanidade em uma dimensão temporal, incluindo os vivos em relação aos seus antepassados e os, ainda não nascidos, as futuras gerações (Cf. Corte IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Sentença de 15 de junho de 2005. Voto fundamentado do Juiz A.A. Cançado Trindade.§72).

ConclusõesNestas considerações, buscaram-se preencher os requisitos de admissibilidade do Memorial de

Alegações, Argumentos e Provas, destacando os aspectos formais da peça, quais sejam: qualificação das vítimas, admissibilidade, competência da Corte IDH e provas documentais. Ao introduzir os argumen-tos concernentes ao mérito do memorial optou-se por reforçar o caráter coletivo das vítimas – povos indígenas e refugiados ambientais – enquanto grupos vulneráveis e sujeitos coletivos de direitos.

Diante do exposto, considera-se relevante destacar a proteção e tratamento diferenciados que os sujeitos coletivos de direitos têm no âmbito internacional, tanto nas garantias e direitos fundamentais previstos nos instrumentos jurídicos internacionais, quanto na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

As fundamentações pontuais quanto às específicas violações de direitos humanos constam na Parte II e III do presente Memorial, sendo a última composta também dos pedidos finais da peça petitória. A continuação deste trabalho se dará nas próximas edições da Revista Hiléia, edições 17 e 18, respectivamente.

ReferênciasACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. IMDH. Instituto Migrações e Direitos Hu-manos. FANTAZZINI, Orlando. Políticas Públicas para Migrações Internacionais: Migrantes e Refugiados. Brasília, dez. 2005.

COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Casos contenciosos: Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia. Sentença de 1º de julho de 2006. Caso de La Comunidad Moiwana vs. Suriname. Sentença de 15 de junho de 2005. Caso Yakye Axa Vs. Paraguai. Sentença de 06 de fevereiro de 2006. Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentença de 25 de novembro de 2006. Medidas provisórias: Caso Pueblo Indígena Kankuamo vs. República de Colombia. Medidas provisórias. Resolução da Corte IDH de 5 de julho de 2004. Corte IDH. Caso Pueblo Indígena de Sarayaku vs. República del Ecuador. Medidas provisórias. Resolução da Corte IDH de 6 de julho de 2004. Opiniões consultivas: Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes In-documentados. Opinião Consultiva: OC-18/03, de 17 de setembro de 2003. Solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/>. Acesso em: 20 dez. 2010.

SILVEIRA, Edson Damas da. Meio ambiente, terras indígenas e defesa nacional: direitos fundamentais em tensão nas fronteiras da Amazônia Brasileira. Curitiba: Juruá, 2010.

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TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

Artigo recebido em: dezembro/2011.Artigo aprovado para publicação em: dezembro/2011.

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2. Todos os artigos serão submetidos à aprovação de pareceristas de notória experiência acadêmica, que apresentarão parecer circunstanciado.

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Normas completas disponíveis em www.pos.uea.edu.br/direitoambiental.

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Esta edição foi produzida pela Editora Universitária da Universidade do Estado do Amazonas. Possui tamanho 16x23 cm, miolo em off-set

90 g/m. Composta em Garamond 10. Impressa na Gráfica Marca Brasil, para o selo UEA Edições em dezembro de 2012.

Tiragem 300 exemplares.