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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
DEPARTAMENTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
MÁRCIO SANTOS SALES
VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO:
um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino Vieira
SALVADOR
2012
MÁRCIO SANTOS SALES
VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO:
um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino Vieira
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Estudo de Linguagens do
Departamento de Letras e Ciências
Humanas da Universidade do Estado da
Bahia - UNEB, Campus I, sob a linha de
pesquisa Leitura, Literatura e Identidade,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Edil Silva Costa.
SALVADOR
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Sales, Márcio Santos
Vozes do atlântico literário: um estudo comparativo entre Jorge Amado e José Luandino
Vieira / Márcio Santos Sales. - Salvador, 2012.
146f.
Orientadora: Profª. Pós-Drª. Edil Silva Costa.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas . Campus I. 2012.
Contém referências e anexo.
1. Amado, Jorge, 1912 – 2001 - Jubiabá. 2.Vieira, José Luandino, 1935 – A vida
verdadeira de Domingos Xavier. 3. Literatura comparada - Brasileira e angolana. 4.
Literatura comparada - Angolana e brasileira. I. Costa, Edil Silva. II. Universidade do
Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias.
CDD: 809.3
TERMO DE APROVAÇÃO
MÁRCIO SANTOS SALES
VOZES DO ATLÂNTICO LITERÁRIO: um estudo comparativo entre Jorge
Amado e José Luandino Vieira.
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Estudo de Linguagens, Universidade do Estado da Bahia – Uneb, pela seguinte banca
examinadora:
_______________________________________________
Professora Doutora Edil Silva Costa (Orientador)
Universidade do Estado da Bahia
__________________________________________________
Professor Doutor Carlos Augusto Magalhães (Avaliador Interno)
Universidade do Estado da Bahia
___________________________________________________
Professora Doutora Maria de Fátima Maia Ribeiro (Avaliador Externo)
Universidade Federal da Bahia
Salvador, 12 de Abril de 2012
Para os meus dois grandes amores,
Maria Ferreira Santos, minha mãe, e
Talita Carvalho Farias, minha mulher.
AGRADECIMENTOS
À Professora Edil Silva Costa, por me guiar até aqui com equilibrada orientação e
sempre com incentivo e confiança em minha capacidade.
À Professora Maria de Fátima Maia Ribeiro, por me apresentar sugestões, provocações
e possíveis caminhos, no momento do exame de qualificação.
Ao Professor Carlos Augusto Magalhães, pelo fraterno carinho com que me recebeu
como estagiário, na etapa do tirocínio docente, e pelas sugestões e indicações
importantes no exame de qualificação.
Aos meus professores do Mestrado, pela imensa contribuição para o meu crescimento
acadêmico e intelectual.
À minha mulher, Talita Carvalho Farias, pela revisão criteriosa do meu trabalho, por
todas as palavras de incentivo, carinho e confiança sempre depositada em mim e em
minha pesquisa e por todos os momentos de compreensão das minhas ausências nesses
dois anos.
Aos meus amigos e colegas de turma, pelas continuadas interlocuções e apreço e por
todos os momentos vivenciados nesses dois anos de convivência.
Ao meu amigo e colega de turma Antônio Carlos Sobrinho, eterno interlocutor, por
todas as provocações, sugestões e pelas indicações bibliográficas.
Aos meus professores de literatura da graduação, em especial, aos professores Pedro
Barbosa, Nelson Maca e Olímpia Ribeiro, por terem me apresentado uma literatura viva
e pulsante, que me conduziu até aqui.
À Universidade Católica do Salvador por me contemplar com uma bolsa de estudos sem
a qual seria impossível a conclusão do meu curso de Letras.
Aos funcionários da secretaria acadêmica do PPGEL, pela dedicação e presteza com
que atendem e dão viabilidade aos nossos assuntos.
À minha família, pelo apoio e confiança que sempre depositaram em mim e pela
compreensão nos momentos de ausência.
Ao meu mestre de Capoeira, Pedro Moraes Trindade (Mestre Moraes), pelo eterno
exemplo, incentivo e por sempre ter conduzido a minha vida ao caminho da retidão e da
probidade.
Ao Grupo de Capoeira Angola Pelourinho por ter me apontado caminhos...
Á Casa de Angola na Bahia por ter me acolhido com tanta generosidade e pelo respeito
á minha pesquisa.
RESUMO
Este trabalho apresenta uma análise comparada, à égide da linha de pesquisa Leitura,
Literatura e Identidade. Destarte, realiza-se um cotejo entre as obras Jubiabá, do
escritor baiano Jorge Amado, escrita em 1934, e A Vida Verdadeira de Domingos
Xavier, do angolano José Luandino Vieira, escrita em 1961, porém publicada apenas em
1974. O objetivo da presente pesquisa é analisar os diálogos percebidos entre essas duas
narrativas, com vistas a perscrutar semelhanças e diferenças entre elas. Por se tratar de
uma abordagem com teor comparatista, discute-se aqui literatura comparada,
ancorando-se ao pensamento de Tania Carvalhal, Silviano Santiago e de Sandra Nitrini.
Entende-se que as obras em estudo apresentam textos que narram a própria história dos
países nelas representados, ou seja, Angola e Brasil, figurando, Luanda e a Cidade da
Bahia –Salvador – como metonímias desses países e microcosmos de sociedades onde a
pobreza, a repressão e o abandono social constituem a tônica. As referidas produções
acabam por evidenciar pontes, formadas principalmente a partir das imagens dos
elementos da natureza – água, fogo, terra e ar –, que são analisados nesta investigação
segundo os escritos de Gaston Bachelard. Ao mesmo tempo em que se percebem
semelhanças entre ambas as narrativas, descortinam-se também diferenças entre elas –
como as distintas estratégias de desenvolvimento narrativo, adotadas por seus autores.
Dessa forma, perceber tais aproximações e interpretar esses discursos significa entender
mais – e melhor – as relações que cercam não só Angola e Brasil, mas a África e a
América do Sul, principalmente, no campo das trocas simbólicas.
Palavras-chave: Cidade. Imaginário. Comparatismo. Jorge Amado. José Luandino
Vieira.
ABSTRACT
This study presents a comparative analysis, the auspices of the research line Reading,
Literature and Identity. Thus, we make a comparison between the works Jubiaba, of the
Bahian writer Jorge Amado, written in 1934 and The Real Life of Domingos Xavier of
the Angolan José Luandino Vieira, written in 1961 but published only in 1974. The
objective of this research is to analyze the perceived dialogues between these two
narratives, in order to probe similarities and differences between them. Because it is a
level comparative approach, we discuss here the comparative literature, anchored to the
thought of Tania Carvalhal, Silviano Santiago and Sandra Nitrini. It is understood that
the works have studied texts that narrate the history of the countries represented in
them, namely, Angola and Brazil. In the narratives, Luanda and the City of Bahia
(Salvador) function as metonymies microcosm of these countries and societies where
poverty, repression and social abandonment are the tonic. These narratives turn out to
show bridges, formed mainly from the images of the elements of nature - water, fire,
earth and air, which is analyzed here according to the writings of Gaston Bachelard. At
the same time as they saw similarities between these two narratives unfolded were also
differences between them, as the different strategies of narrative development, adopted
by its authors. Thus, to perceive and interpret these approaches such discourse means
understanding more, and better relationships that surround not only Angola and Brazil,
but Africa and South America, mainly in the field of symbolic exchanges.
Keywords: City. Imaginary. Comparatism. Jorge Amado. José Vieira Luandino.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8
2 LITERATURA COMPARADA EM DEBATE ..................................................... 16
2.1 ENTRE FRANCESES E NORTE-AMERICANOS............................................... 24
2.1.1 O COMPARATISMO EM TERRAS BRASILEIRAS........................................ 29
2.2 JORGE AMADO E LUANDINO VIEIRA: SOB O PRISMA DO COMPARATIS-
MO........................................................................................................................... 34
2.2.1 LUANDINO VIEIRA.........................................................................................40
2.2.2 JORGE AMADO...............................................................................................45
2.3 TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS............................................................... 50
2.3.1 DUAS OBRAS DE SUBVERSÃO...................................................................... 54
3 A CIDADE DA BAHIA E A CIDADE DE LUANDA: PONTES IMAGÉTICAS
.................................................................................................................................... 63
3.1 A CIDADE AMADIANA DA BAHIA................................................................... 66
3.1.1 A CIDADE DE LUANDA (INO)....................................................................... 72
3.2 LUANDA E BAHIA: MULTIPLICIDADES......................................................... 78
3.2.1 CIDADES: FASCÍNIO E VIDA “REAL”........................................................... 89
4 DUAS HISTÓRIAS, QUATRO ELEMENTOS .................................................... 95
4.1 ENTRE ÁGUAS E TERRAS, VENTOS E FOGOS............................................ 101
4.2 AMADO E LUANDINO: A CONSTRUÇÃO MÍTICA DO HERÓI ................. 119
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 124
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 129
ANEXO – José Luandino Vieira e Jorge Amado: biobibliografias...................... 141
8
1 INTRODUÇÃO
Como resultado dos estudos realizados no decorrer do curso de Mestrado no
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS, à égide da
linha de pesquisa Leitura, Literatura e Identidade, apresenta-se, nesta dissertação, uma
análise de duas obras literárias em perspectiva comparada: uma delas, considerada pela
crítica como uma das mais importantes narrativas que compõem o sistema literário
angolano, a novela A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, do angolano José Luandino
Vieira, escrita em 1961, porém publicada apenas em 1974; a outra, o romance Jubiabá,
que, segundo os críticos, é a obra que inaugura a fase “revolucionária” do escritor
baiano Jorge Amado, escrita em 1934.
O objetivo da presente pesquisa é analisar os diálogos percebidos entre essas duas
narrativas, com atenção ao trato com os quatro elementos naturais – água, fogo, terra e
ar –, tentando perscrutar semelhanças e diferenças em tais abordagens.
Parte-se de uma análise comparada, para se identificar aproximações entre as
duas produções literárias acima citadas – distantes quase quatro décadas uma da outra e
produzidas em locais e em contextos diferenciados – observando e medindo as tensões
que seus textos desvelam, também no tocante às problemáticas sociais que envolvem as
duas cidades, que figuram como cenário: Luanda e Salvador. Ao mesmo tempo em que
se investigam as similaridades entre as duas narrativas, dedica-se também atenção para
descortinar as diferenças entre elas, como forma de atribuir maior entendimento do
narrado.
Quando se intentou trabalhar comparativamente com Jubiabá e A Vida
Verdadeira de Domingos Xavier, já era de se esperar que os desafios fossem inúmeros,
dada a complexidade das narrativas e a própria dificuldade de ancoragem teórica que o
campo da literatura comparada apresenta. Um grande desafio foi definir a forma como
se daria tal cotejo, face ao objetivo do trabalho. Optou-se então pela comparação a partir
de elementos comuns às tramas, porém pouco explorados em pesquisas onde essas
obras figuram como corpus – a exemplo dos elementos naturais, “água”, “terra”, “fogo”
e “ar” – tendo-se sempre o cuidado de não se enveredar por desgastadas searas, cujas
análises já não apresentam novidades e muito pouco contribuem para investigações
futuras.
9
Em definitivo, entende-se que essas duas obras apresentam textos que narram a
própria história dos países que representam, ou seja, Angola e Brasil. Nas narrativas, em
alguns momentos, Luanda e a Cidade da Bahia – Salvador – funcionam como
metonímias desses referidos países e microcosmos de sociedades onde a pobreza, a
repressão e o abandono social constituem a tônica.
O clima de repressão e autoritarismo impresso pelo regime colonial, bem como a
situação de miséria e abandono do povo angolano, obrigado, em algumas situações, por
força de sobrevivência, a relegar a um plano inferior suas línguas e suas culturas, para
adequar-se às do colonizador, uma vez que, na “[...] estrutura colonial, o bilingüismo é
necessário, pois munido apenas de sua Língua, o negro torna-se estrangeiro dentro de
sua própria terra”. (MUNANGA, 1998, p. 23) – questões como essas se fazem presentes
em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e retratam um momento na história da
sociedade angolana.
Soma-se a isso uma extrema violência perpetrada no plano cultural e uma
intensa arbitrariedade que impunha o cárcere a todos que ousassem levantar-se contra o
Império colonial português, perpetuando, assim, um controle sobre a população. A esse
respeito, muito bem observa Salvato Trigo, ao alertar sobre a existência de duas
instituições de grande importância para o regime colonial em África: a escola e a prisão.
Para o autor, a escola do colonizador em relação com o colonizado africano, contribuía
para promover “[...] apagamentos dos seus valores culturais e civilizacionais, pelo
banimento de sua língua, pela niilificação de sua história.” (TRIGO, 1986, p. 148-149).
Ainda segundo Trigo, a prisão era sustentáculo do regime, pois procurava, por meio da
tortura, amedrontar toda uma população local e colocar no cárcere todos os que, de
alguma forma, se levantasse contra o regime. (TRIGO, 1986, p. 150)
Por outro lado, a miséria que rodeia os habitantes dos morros na Cidade da
Bahia aliada à desassistência do poder público para com a infância, somada à
dificuldade que os homens e mulheres “pretos” passam para sobreviverem e verem
sobreviver a sua cultura naquela cidade, cercada pelo racismo, bem como por outros
preconceitos sociais, constituem-se na tônica que cerca a obra Jubiabá e refletem a
própria situação pela qual passava o Brasil da década de 1930.
Destarte, perceber essas aproximações e interpretar esses discursos significa
entender mais – e melhor – as relações que cercam não só Angola e Brasil, mas a África
e a América do Sul, principalmente, no campo das trocas simbólicas.
10
Observa-se que a obra literária em si possibilita uma pluralidade de olhares e
interpretações. E cada recepção vai fazendo girar a roda imaginária, que produz
significados distintos a cada leitura feita. Karlheinz Stierle (1996, p. 134) afirma que:
O significado da obra literária é apreensível não pela análise isolada da obra,
nem pela relação da obra com a realidade, mas tão só pela análise do
processo de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, pela
multiplicidade de seus aspectos.
É exatamente por essa multiplicidade de aspectos propostos por Stierle, que se percebe a
possibilidade de análise das obras em estudo, mesmo que elas pareçam relatar distintas
histórias e simbolizem diferentes conjunturas dentro de Angola e do Brasil. A visada
investigativa que se teve aqui mirou a interpretação dos múltiplos elementos presentes
nas duas narrativas, no sentido de lhes atribuir sentido. Um desses elementos é a cidade
e seus plurais significados. Seria quase impossível estudar Jorge Amado e Luandino
Vieira desconsiderando o importante papel que tem a “cidade” em suas narrativas,
principalmente, quando as obras em estudo são Jubiabá e A Vida Verdadeira de
Domingos Xavier, onde a urbe figura como personagem e é elemento-chave para o
entendimento das tramas. Talvez seja por isso que, no caso de Jorge Amado, a tradução
francesa de Jubiabá tenha saído com o título de Bahia de Tous Les Saints1, revelando a
cidade como um verdadeiro protagonista da trama.
Outro elemento importante nas histórias em questão refere-se ao trato com os
quatro elementos naturais já mencionados – “água”, “terra”, “fogo” e “ar”. Em ambas as
narrativas, esses elementos aparecem com função muito maior que a de simples
composição cenográfica. Eles anunciam, denunciam e sintetizam tensões entre os
personagens, apresentando a imersão dessas narrativas em diálogos outros, quase nunca
evidenciados por investigações que se dedicaram ao estudo dos referidos textos. Para
ajudar a pensar esses referidos elementos, trouxeram-se aqui as ideias de Gaston
Bachelard.
___________________________
1 Bahia de Todos os Santos.
11
Os estudos em perspectiva comparada podem revelar tensões existentes entre
sociedades distintas e que foram observadas por seus respectivos autores, os quais as
codificam de diferentes formas. De posse desse intento, o presente trabalho resolveu
partir de elementos pouco explorados até agora, para avaliar as questões que tencionam
a relação entre as duas narrativas em análise. Sendo assim, fez-se mister confrontar as
diversas interpretações possíveis de ambas, com o objetivo de explorar as inesgotáveis
possibilidades que a arte literária oferece de, quase sempre, voltar os espelhos
interpretativos em múltiplas direções, evidenciando relações que muitos poderiam
imaginar impossíveis.
A novela A Vida Verdadeira de Domingos Xavier revela o modus operandi do
sistema colonial em África, que vai desde a prisão arbitrária da qual foi vítima
Domingos Xavier – e, em verdade, também o próprio Luandino Vieira – à total falta de
comprometimento assistencial com a população nativa, condenando-a a uma vida nos
musseques2,
desprovidos de elementos básicos para a sobrevivência humana. O
“cárcere”, elemento importante para uma narrativa na qual a privação de liberdade se
confunde com a castração dos direitos da pessoa humana, faz refletir acerca da vida sob
a égide do referido sistema, onde impera a intransigência e a repressão. Luandino
codifica, por meio do cárcere, as privações por que passavam os angolanos, a violência
e a miséria de uma gente invadida, adulterada e fragmentada em suas identidades.
Domingos Xavier, protagonista da trama, um simples tratorista, é preso para revelar os
nomes dos envolvidos em um suposto movimento de libertação nacional, ou seja,
interessava a uma classe, representante do regime, identificar tal movimento, e isso é
feito a custa do sofrimento e da morte brutal de alguém.
Sobre a obra Jubiabá, pode-se afirmar que desvela os efeitos da desassistência
do Estado na vida do homem urbano. Antônio Balduíno, “produto do morro”, encerra
em si a resultante de uma vida de abandono e miséria, aliada a uma opressão/repressão
social. Nessa narrativa, Jorge Amado flagra e denuncia os determinismos sociais que
surgem em uma cidade cindida entre morros desassistidos – que acabam por gerar a
mão de obra proletária urbana –, e bairros “nobres” – de onde resultam os seus patrões.
A vida dos escritores Jorge Amado e Luandino Vieira não poderia deixar de
fornecer elementos que viessem a cimentar os profundos diálogos entre as obras em
__________________________
2 Bairros pobres de Luanda, similares às favelas brasileiras.
12
cena, uma vez que a trajetória desses dois artistas do verbo e da cultura, apesar de
trilhada em momentos políticos muito diferentes em seus respectivos países, reflete
episódios muito parecidos em suas vidas, o que talvez explique antes a linha ficcional
que a linha temática por eles adotada. Avaliar a biografia desses autores, com atenção
para suas trajetórias políticas, ajuda tanto a pensar a atuação política de um escritor,
enquanto intelectual, dentro de uma nação, como entender os códigos que criam, para
caracterizar tal atuação.
Jorge Amado sempre respirou uma atmosfera político-social, que o alicerçou na
construção de suas narrativas e na criação dos seus personagens. O seu envolvimento
com as religiões de matriz africana, sua vivência sob a égide de regimes autoritários –
como o cenário da década de 1930 –, sua convivência com perseguições e exílio foram
conjunturas que, mais tarde, inclusive, render-lhe-iam acesso ao Poder Legislativo como
deputado. Seu arguto olhar para o nordeste brasileiro aliado ao seu tino de excelente
cronista e observador social forneceu-lhe musculatura para criar personagens e
narrativas que ficaram marcados na mente dos seus leitores. A denúncia da
desassistência social, do racismo, e a flagrante sugestão da luta política por intermédio
da greve em plenos “anos 30” exibe a aposta do escritor na ideologia socialista como
modelo de desenvolvimento da sociedade. Amado, por meio da crônica social, desvela o
cotidiano e denuncia as mazelas que cercavam a vida das pessoas. Em Jubiabá, através
da história entre o protagonista Antônio Balduíno e a personagem Lindinalva, o autor
denuncia os efeitos do racismo na vida e no imaginário do negro no Brasil.
José Luandino Vieira, por sua vez, contém em sua biografia questões relevantes,
quando da análise dos seus textos ficcionais. A infância nos musseques, as sucessivas
perseguições políticas, a sua luta juto ao MPLA3, a sua prisão por oito anos no Campo
do Tarrafal, em Cabo Verde, deram-lhe, sem dúvida, sensibilidade para entender os
anseios da sua gente e possibilidade de transportar para a ficção “tipos” e “estórias” da
vida real,
bem como marcar uma resistência que se dá, em grande parte, pela linguagem, visto que
_______________________ 3
Movimento Popular de Libertação de Angola. Surgiu no fim dos anos 1950 da fusão de vários pequenos
grupos anticoloniais. Agrupou as principais figuras do nacionalismo angolano, entre estudantes no
exterior – sobretudo em Portugal – e lutadores contra o colonialismo – que fugiam do interior de
Angola. Dirigido por António Agostinho Neto, organizou uma luta armada contra a dominação colonial
de Angola por Portugal, e é hoje o partido político que governa Angola desde sua independência de
Portugal em 1975.
13
os seus textos trazem o Kimbundo – uma das onze línguas faladas em Angola – em
junção à Língua Portuguesa falada pelos angolanos, como forma de usar a própria
língua do colonizador, para fazer sobreviver as línguas autóctones. Suas narrativas são
recheadas de mistérios e sempre apresentam questões passíveis de serem analisadas com
cuidado, sob pena de serem percebidas como sendo demasiado simplistas.
Fazer política contrária à de Salazar na década de 1950 e 1960 era um grande
desafio, face ao histórico de terror que o referido ditador português empreendeu em suas
colônias nesse período. Para Luandino Vieira, mais que a necessidade de reagir, havia a
de se manter livre para agir.
Débora Leite David, em seu trabalho intitulado Dois Cárceres, uma Certeza: a
morte, analisa comparativamente as obras A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de
Luandino Vieira, e Memória do Cárcere, de Graciliano Ramos, dentro de uma
perspectiva sociopolítica. Apesar de consistente investigação, a autora atem-se apenas à
exploração de dois elementos presentes nas referidas obras – o autoritarismo e a
violência –, conseguindo medir somente a aproximação temática entre as histórias,
deixando, à parte, a “ponte” por onde transitariam as tensões entre elas, que talvez fosse
o significado dos cárceres em relação aos protagonistas das tramas.
Assim sendo, observa-se o quanto Jorge Amado e Luandino Vieira têm, em suas
biografias, traços comuns – perseguições políticas, luta contra regimes autoritários,
envolvimento com a cultura popular etc. – e como as suas obras evidenciam a imersão
deles em uma zona cultural que, sem dúvida, envolve Angola e Brasil, haja vista que
ambos os países guardam entre si relações que vão além do tráfico de seres humanos.
Dito isso – e para uma melhor compreensão dos debates aqui presentes –, esta
dissertação encontra-se estruturada em três seções assim denominadas: Literatura
Comparada em Debate; A Cidade da Bahia e a Cidade de Luanda: Pontes Imagéticas; e
Duas Histórias, Quatro Elementos.
O presente trabalho inicia-se com a discussão, ao longo do primeiro capítulo –
Literatura Comparada em Debate –, acerca das reflexões iniciais sobre a teoria da
literatura comparada, desvelando as dificuldades de trânsito por esse campo de estudo e
marcando a sua importância para os estudos literários. Mas, para facilitar o trabalho em
torno da teoria, dada a sua complexidade, esta investigação ateve-se aos nomes de maior
expressão dentro da história da literatura comparada, optando por transitar entre os dois
pólos, o francês e o norte-americano.
14
Apresentou-se, como representante da perspectiva francesa, Paul Van Tieghem,
pelo seuperfil normatizador, juntos aos estudos da literatura comparada, que o constituiu
como força principal a ser combatida por outras perspectivas; e para lançar luz aos
estudos comparados em perspectiva norte-americana, figura de René Wellek, por ter-se
constituído em uma das principais forças opositoras da postura clássica e por ser
responsável pela polarização dos estudos entre a “escola francesa” e a “escola norte-
americana”. Optou-se também, por trazer mais a fundo ao debate – dentre várias vozes
autorizadas – a voz da autora Tania Franco Carvalhal, não só pelo pioneirismo dos seus
ensaios destinados à academia brasileira, mas também pelo fato de se acreditar serem
os seus estudos e ideias mais próximos do escopo da presente investigação. Nesse
primeiro capítulo, ainda são apresentados os dois autores em estudo, Jorge Amado e
José Luandino Vieira, tentando explorar a trajetória política desses escritores dentro dos
seus respectivos países, expondo os seus projetos literários e revelando as suas trilhas
entrecruzadas.
Na esteira desses debates, vem o segundo capítulo – A Cidade da Bahia e a
Cidade de Luanda: Pontes Imagéticas –, que flagra os laços existentes no imaginário
dos escritores em cena, no que tange às cidades em questão. Tenta-se perceber as
diversas codificações que são por eles realizadas, usando a “cidade” como matéria-
prima para se criar imagens, que parecem transitar de uma obra a outra. Discute-se
também a noção de “cidade real” e “cidade imaginada”, à luz do pensamento de Sandra
Pesavento, na tentativa de se entender como os habitantes daquelas referidas urbes
“contaminam” e são “contaminados” por uma cidade inventivada e como isso afeta suas
práticas sociais.
Para o terceiro momento, apresenta-se o capítulo Duas Histórias, Quatro
Elementos, que discute as diversas relações existentes entre os personagens das
narrativas e os elementos naturais que compõem as cidades. Os debates giram em torno
dos elementos: “água” – representado pelo mar da Cidade da Bahia e pelo rio Kuanza
da cidade de Luanda; “fogo” – por vezes relacionado ao sol, por outras, às luzes; “terra”
– simbolizado pelo barro das ruas dos musseques luandenses e das paredes das casas de
pau-pique, do morro do Capa-Negro; e , por fim, “ar” – representado pela força do
vento que traz as chuvas e sopra entre as referidas capitais. É também nesse momento
que se aponta a presença de mitologias africanas e afro-brasileiras na obra de Jorge
Amado e se percebe o entrelace da ideologia cristã na construção ficcional de Luandino
Vieira.
15
Vale salientar que, no que concerne às mitologias africanas, optou-se por
enveredar pela seara da tradição Iorubá, pelo fato de ela apresentar maior relação com
os objetivos desta investigação. Também é oportuno esclarecer que, neste trabalho, não
se mergulhou profundamente no estudo das tradições africanas e afro-brasileiras nem
nos estudos atinentes ao Cristianismo, pela própria complexidade que essas temáticas
carregam em seu bojo e pelo próprio limite investigativo desta pesquisa. Porém, espera-
se que os mergulhos aqui dados sejam suficientes para provocar os debates necessários
ao desenvolvimento do tema. Contudo, reconhece-se que temáticas como as
supracitadas podem – e devem – ser trabalhadas em futuras investigações, que as
tenham como escopo específico a análise de tais questões.
16
2 LITERATURA COMPARADA EM DEBATE
Quem, em algum momento, trabalhou ou se interessou em trabalhar com
literatura comparada, certamente, esbarrou-se na intrincada história que cerca não só a
sua gênese como disciplina acadêmica, mas a sua própria existência como campo
teórico. A história da literatura comparada encontra-se envolta principalmente pelo
dilema em torno da delimitação do seu objeto de estudo, bem como pela ausência de um
método específico de análise.
Provavelmente, por conta disso, os teóricos dessa disciplina, cada um ao seu
modo, passaram a defender, para o referido campo de estudo, uma flexibilidade
metodológica, isto é, uma pluralidade de métodos. Esse “ecletismo metodológico”
levaria a visões heterogêneas sobre a literatura comparada, seus objetivos e métodos. E
tal heterogeneidade é perfeitamente perceptível, quando se analisa os textos dos
principais teóricos que escreveram sobre essa área de estudo – o que dificulta mais
ainda a sua compreensão, visto que uma pluralidade de ideias e visões acaba por levar o
pesquisador a uma espécie de flutuação teórica.
Tânia Franco Carvalhal (1998, p. 06) relata a dificuldade de ancoragem
metodológica que aparece, quando da leitura dos diversos textos que teorizam sobre a
disciplina em questão. Segundo a autora:
A dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura
comparada, seus objetivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre
o assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e de
orientações metodológicas. Muitos fogem a essas questões. Outros dão conta
das tendências tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Alguns
tendem a uma conceituação generalizadora. E há ainda os que preferem
restringir a determinados aspectos o alcance dos estudos literários
comparados.
A literatura comparada, seja enquanto disciplina acadêmica ou campo de estudo,
sempre suscitou debates, e tais discussões ocorreram, na maioria das vezes, por conta
das divergências de entendimento acerca de conceitos como “comparatismo”, “fontes” e
“influência”. Provavelmente, essa dificuldade de ancoragem teórica a respeito de alguns
conceitos atinentes à literatura comparada, explicitada pela autora no fragmento acima,
17
dê-se não só pela “divergência de noção” entre os autores, como ela afirma, mas pela
própria natureza do comparatismo, que, por si só, já sugere pluralidade de visão. Some-
se a isso, o fato de a literatura comparada, enquanto disciplina acadêmica, trazer como
emblema a noção de transversalidade, que a assegurou um caráter de amplitude,
possibilitando, assim, múltiplos olhares.
Conforme Sandra Nitrini (2010, p.19), “Uma das tarefas mais difíceis é delimitar
o campo da disciplina Literatura Comparada, pois seus conteúdos e objetivos mudam
constantemente, de acordo com o espaço e o tempo.” Não só pelo fato das constantes
mudanças em seus conteúdos, mas também pela sua pluralidade conceitual, a literatura
comparada tem o seu campo teórico afetado por uma enxurrada de abordagens, diluídas
em diversos manuais que antes confundem que orientam a pesquisadores e alunos
interessados em tal área de conhecimento. Em muitos momentos, surgem dificuldades
para dar síntese a essas múltiplas abordagens e identificá-las dentro de uma determinada
corrente de pensamento. E quem se aventura proceder à leitura dos textos que envergam
teorias sobre o comparatismo literário, com o intuito de buscar definições e objetivos
para esse ramo de estudos, quase sempre se esbarra em uma infinidade de conceitos,
nem sempre consoantes. Louis Paul Betz (2011, p. 63), comparatista suíço radicado na
França, por exemplo, afirmou que:
Investigar como as nações aprenderam umas com as outras, como elas se
elogiam e criticam, se aceitam e rejeitam, se imitam ou distorcem, se
entendem ou interpretam mal, como elas abrem o coração ou se fecham uma
às outras, mostrar que as individualidades, como períodos inteiros, não são
mais que elos de uma cadeia longa e multifilamentada que liga passado a
presente, nação a nação, homem a homem – estas, em termos gerais, são as
tarefas da história da literatura comparada.
Parece que Betz tenta definir as tarefas da literatura comparada partindo do
princípio da interligação entre as nações. Porém, possivelmente, há no pensamento do
autor uma forte tendência em acreditar nas ideias de “fontes” e “influências” – ou seja,
crer na ideia de um polo irradiador sempre pronto para passar adiante os valores da sua
sociedade – e que, muito provavelmente, as literaturas nacionais guardam entre si
relações de filiação e dívidas literárias. Apesar do tom cosmopolita do seu discurso,
Betz (2011, p. 62-63) finalmente deixará clara a sua visão sobre esses processos
18
literários internacionais, ao afirmar que “A França exerceu a influência mais antiga e
significativa sobre a vida literária dos povos e tem sido, de um modo geral, o manancial
das ideias que marcaram a história nos últimos 250 anos.” O cosmopolitismo presente
no discurso anteriormente destacado contrasta agora com o teor chauvinista do
comentário do autor – o que aponta um contágio pelas ideias por ele criticadas.
Para Tania Carvalhal (1998, p. 8), “O surgimento da literatura comparada está
vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX.” E essa
forma de pensar, cosmopolita, foi, mais tarde, contaminada por matizes nacionalistas,
muitas delas advindas do ideal romântico, levando muitos pesquisadores,
principalmente os alemães e franceses, à busca pelas fontes de alguns textos,
desenvolvendo a ideia de influência e dívida literária. René Wellek (2011, p. 125),
importante comparatista austríaco, radicado nos Estados Unidos, viria afirmar que:
A Literatura Comparada surgiu como uma reação contra o nacionalismo
limitado de muitos estudos do século XIX, como um protesto contra o
isolacionismo de muitos historiadores da literatura francesa, alemã, italiana,
inglesa etc. Foi frequentemente cultivada por homens que se posicionavam
nas fronteiras entre nações ou, pelo menos, nos pontos limites de uma nação
[...] Mas este desejo genuíno de servir como mediador e conciliador entre
nações foi frequentemente encoberto e distorcido pelo nacionalismo
fervoroso da situação e da época.
Quando se procede a uma revisão da história da literatura comparada, nota-se a
existência de uma intensa relação entre os estudos comparados e o chamado
“nacionalismo”. A ideia de superioridade nacional e cultural que sempre rondou as
nações europeias, aliada ao desenvolvimento da ideia de originalidade, de certo modo,
fomentou os trabalhos comparados na Europa, na perspectiva de aferir, inicialmente,
semelhanças e diferenças entre questões dentro das próprias nações europeias, haja vista
a existência de trabalhos lá realizados, com títulos como Taine e a Inglaterra ou Goethe
na França. Basta lembrar que o termo “literatura comparada” surge no século XIX, no
mesmo momento em que se consolidam as fronteiras nacionais e se ampliam os debates
em torno da cultura e identidade nacional por todo o continente europeu. Mais tarde, o
chamado “nacionalismo” abriria caminho para as ideias de fonte e influência que
dominariam os estudos comparados na Europa, dando um forte tom ufanista às
pesquisas e abandonando a vertente cosmopolita.
19
Apesar de Louis Paul Betz (2011, p. 62) afirmar que “Quem se dedicar à história
da Literatura Comparada deve antes de mais nada estar livre de preconceitos nacionais e
de qualquer chauvinismo” e que, “[...] efusões patrióticas, embora belas e justificadas,
devem ser evitadas”, quando se confrontam duas ou mais obras literárias, objetivando
perceber ligações, afinidades e diferenças entre elas, faz-se seguindo uma rede de
valores coletivos e individuais de natureza diversa. Portanto, dois comparatistas podem
apresentar múltiplas análises sobre um mesmo objeto. É possível que um inglês, ao
comparar uma obra de Machado de Assis a uma de James Joyce, divirja de um
comparatismo realizado por um francês sobre as mesmas obras. E é provável que um
brasileiro do Sul venha a realizar uma análise comparada diferente de um brasileiro do
Norte, mesmo à luz do mesmo corpus. Com isso, o que se deseja não é desacreditar na
possibilidade de uma análise isenta, mas apontar a dificuldade em sua realização, face
aos múltiplos elementos que circundam os analistas, como nacionalidade, desavenças
regionais, litígios históricos, diferenças político-religiosas etc.
Essa conclusão a que ora se chega e que parece soar meio óbvia, objetiva
apontar a razão da existência de conceitos múltiplos sobre literatura comparada, bem
como de olhares diversos no que toca à sua metodologia. Franceses, ingleses e alemães,
precursores dos estudos comparados na Europa, em alguns momentos parecem ter
permitido que velhas rivalidades contaminassem os seus olhares na direção dos estudos
literários em perspectiva comparada. E o resultado foi uma concepção de tal disciplina
como campo de saber dedicado à identificação das chamadas “relações literárias
internacionais”. Esta designação serviu, muitas vezes, na realidade, para constituir um
cânone não expresso no interior das literaturas da Europa Central e Ocidental,
estabelecendo uma distinção implícita entre “literaturas maiores” e “literaturas
menores” – sendo as primeiras, consideradas de maior força quantitativa e qualitativa,
funcionariam como verdadeiros modelos ou fontes para as segundas, que se limitariam,
assim, a um papel secundário, periférico, de integração de influências provenientes de
tais modelos.
Nessa perspectiva, o filósofo francês Gilles Deleuze (1977, p. 28-9), encarregou-
se de encontrar um novo significado para a expressão “literatura menor”, situando o
termo “menor” fora da sua acepção valorativa comum, que encerra certo valor
depreciativo. Para o autor, “‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as
condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande
(ou estabelecida)”. Na esteira de tal pensamento, a literatura dita “menor” o seria por
20
marcar certa lateralidade em relação à chamada “grande literatura”, ou seja, por marcar
um caminho distinto e autônomo em relação ao preestabelecido pelas literaturas
hegemônicas. Isso põe em cheque a ideia de fonte e, obviamente, exige uma mudança
paradigmática no olhar em torno das influências. Nessa perspectiva, Deleuze (1997, p.
28-9) ainda vai afirmar que:
Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande
literatura, deve escrever em sua língua, como um judeu tcheco escreve em
alemão, ou como um usbeque escreve em russo. Escrever como um cão que
faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E para isso, encontrar seu próprio
ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo,
seu próprio deserto.
Essa autonomia do autor em relação à chamada grande literatura, proposta por
Deleuze, faz-se importante para o próprio entendimento da realidade que o circunda. Ao
trazer, na citação acima, o termo “infelicidade”, Deleuze discute a necessidade de um
pensamento singular que leve o autor a encontrar a sua posição no mundo em relação a
outros escritores, encontrar o seu “caminho de exclusão” dentro da “grande literatura”.
Isso ao menos baralha as ideias de fonte e influência e torna esse debate mais profundo
do que se almeja imaginar.
Pensa-se ser mais que oportuno abrir aqui um parêntese, para se trazer questões
relacionadas ao debate em torno das ideias de fonte e influência, a fim de que seja
possível caminhar por trilhas bem mais definidas quanto a esses conceitos, uma vez que
eles ocuparam importantes lugares nos estudos de literatura comparada, tanto em sua
aceitação quanto em sua recusa; e, em dado momento, nortearam a direção dos estudos
comparatistas, principalmente na primeira metade do século XX, na França,
constituindo-se nos pilares das análises em perspectiva francesa. Só a partir dos anos de
1950, tal perspectiva seria alvo de acirradas críticas, oriundas da chamada “escola
americana”, dividindo os referidos estudos em duas orientações: francesa e norte-
americana. Vários autores, historicamente, trouxeram a lume reflexões sobre o conceito
de fonte e de influência, ora tentando defini-los, ora tentando avaliar os seus impactos
no processo de produção artística. Discutir tais conceitos significa apresentar visões
múltiplas dentro do debate, o que é fundamental para se medir a oscilação desses
conceitos através do tempo, bem como perceber as tendências contemporâneas.
21
Sabe-se, e quem ratifica é Claudio Guillén (2011, p. 172), que o que teria
contribuído para que a literatura comparada, em dado momento (século XIX), passasse
a centrar-se nas influências de uma nação sobre outra e de uma literatura sobre outra,
em grande parte, teria sido a crença romântica nas originalidades nacionais. Isso,
somado à falta de uma percepção relativa sobre o próprio “fazer artístico”, contribuiu
para que as investigações daquela disciplina centralizassem o seu olhar na busca de
fontes, pautando-se por uma visão limitada no que tange às influências. Talvez, por
isso, para dar conta do conceito de influência, Guillén (2011, p.170) revela que
“Qualquer teoria sobre esse assunto implica uma compreensão, consciente ou não, da
natureza do ato criativo em arte.” Em sintonia com o pensamento do autor, o debate em
torno “do ato criativo em arte” traz para a discussão elementos que colocam a influência
em lugar distinto daquele consagrado pelo senso comum, que a tem como sendo
símbolo de dependência e falta de originalidade – o que acaba por contribuir, no caso da
literatura, para a emergência de expressões como a de “dívida literária”.
Silviano Santiago (2000, p.17), ao avaliar o papel do escritor e do crítico latino-
americano na cena mundial, debate, sobre a questão das fontes e influências e anuncia,
logo de início, a necessidade de “[...] declarar a falência de um método que se enraizou
profundamente no sistema universitário: as pesquisas que conduzem ao estudo das
fontes ou das influências”. Santiago (2000, p.18) ainda revela que:
A fonte torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar,
contamina, brilha para os artistas dos países da América Latina, quando estes
dependem da sua luz para o seu trabalho de expressão. Ela ilumina os
movimentos das mãos, mas ao mesmo tempo torna os artistas súditos de seu
magnetismo superior. O discurso crítico que fala das influências estabelece a
estrela como único valor que conta. Encontrar a escada e contrair a dívida
que pode minimizar a distancia insuportável entre ele, mortal, e a imortal
estrela: tal seria papel do artista latino-americano, sua função na sociedade
ocidental.
A associação que o autor acaba por fazer da “fonte” com uma estrela marca o
olhar crítico acerca das obras criadas em sociedades colonialistas, que não cessam de
serem vistas enquanto faróis a orientar principalmente aos artistas de sociedades
colonizadas, de quem se esperaria apenas o papel de refletir a luz de tais faróis. Os
argumentos de Santiago (2000, p.17) dão conta de revelar que o citado método (baseado
22
no estudo das fontes e influências) não contribui para mostrar o artista como sendo
dotado de rica imaginação, mas “[...] apenas assinala a indigência de uma arte já pobre
por causa das condições econômicas em que pode sobreviver.” Santiago ainda vai além,
ao revelar que esses discursos dotariam a obra do artista de um teor parasitário, ou seja,
uma obra que se alimentaria de outra, sem lhe acrescer algo próprio, portanto de vida
limitada e precária. Isso poria em cheque, contudo, todo o potencial criativo que cerca o
artista. Santiago (2000, p.19) ainda afirma que estabelecer a falência do referido método
significaria o compromisso com sua substituição por outro modelo, em benefício de um
discurso crítico que “[...] por sua vez esquecerá e negligenciará a caça às fontes e
influências e estabelecerá como único valor crítico a diferença”.
Não se tem certeza se a proposta defendida por Silviano Santiago, da emergência
de um modelo baseado na diferença como valor único, condiz com a necessidade dos
estudos comparados em tempos atuais. Poderia somar-se a essa proposta o engendro de
um discurso crítico que se baseie na aproximação entre obras, com foco nas
similaridades. Com isso, por meio das inter-relações textuais, se flagraria a capacidade
criativa do artista, sem a necessidade de se enveredar pelo garimpo de fontes e
influências, posto que, pensando-se nas tendências contemporâneas em literatura
comparada, que contemplam o campo das relações intertextuais, através da noção
teórica da intertextualidade, pode-se desenvolver investigações, cuja visada mire na
direção das aproximações entre textos. Certamente, isso não eximiria a análise das
diferenças – conforme propõe Santiago –, somar-se- ia a ela e, provavelmente, desse
melhor resposta para o entendimento das relações entre obras, já que, conforme afirma
Tania Carvalhal (1996, p.13), “A intertextualidade, como propriedade descrita, passou a
significar um procedimento indispensável à investigação das relações entre textos,
tornou-se chave para a leitura e um modo de problematizá-la.”
Na esteira do pensamento de Cláudio Guillén (2011, p.174), e ainda com vistas
para o debate atinente ao ato criativo, o autor declara que “criação” seria um termo
particularmente adaptável à arte, desde que fosse excluído dele a suposição de que o
processo criativo representaria a passagem de uma entidade a outra, dentro da mesma
ordem de realidade, isto é, sem uma mudança básica e completa da espécie. Com isso,
Guillén defende o caráter transformador do ato de criar e coloca a ideia de criação
realizada pelo artista como sendo o movimento de uma espécie de realidade para outra,
já que o “fazedor” de arte torna possível a emergência de um objeto que é novo e sui
generis, capaz de reivindicar existência própria.
23
Pensando o exposto por Guillén sobre o processo criativo e continuando o
exercício de reflexão em torno do pensamento de Silviano Santiago no que toca às
“fontes” e “influências”, percebe-se que o importante para o artista, no âmbito das inter-
relações com textos, acaba por ser o processo de leitura e releitura que estabelece com
outras obras, transformando-as, ou, nos termos de Santiago (2000, p. 20), realizando
uma “[...] meditação silenciosa e traiçoeira [...]” sobre uma outra obra, principalmente
sobre aquelas consideradas “fontes”. Conforme Santiago (idem, ibidem), “O leitor,
transformado em autor, tenta surpreender o modelo original em suas limitações, suas
fraquezas, em suas lacunas, desarticula-o e o articula de acordo com suas intenções.”
Nota-se, com isso, que ambos os autores sustentam a ideia de originalidade como
símbolo de intercruzamentos, de correlações, de releituras entre obras, e apresentam tais
relações como marca de criatividade artística.
A ideia de originalidade, tão cara aos românticos, obteve nova interpretação,
com o pensamento de Paul Valéry, que, na primeira metade do século XX, trouxe a
noção de assimilação, baralhou o jogo das trocas e empréstimos e, nos termos de Sandra
Nitrini (2010, p.132), “renovou o próprio conceito de influência literária, revertendo
quase completamente o sistema de valores”. Com sua já consagrada frase: “O leão é
feito de carneiro assimilado.” (VALÉRY apud NITRINI, 2010, p.132). Valéry, no plano
do debate, reconfigura as discussões sobre “fontes” e “influências”, com a
ressignificação de conceitos – como assimilação e empréstimo –, dando uma nova
roupagem ao processo criativo. Para Sandra Nitrini (2010, p.132), foi a partir dos
estudos de Valéry que:
Os problemas de empréstimos, considerados, até então, por um grande
número de estudiosos, dependência de um autor em relação a outro, não
aparece mais como uma imitação, mas, ao contrário, como forma de
originalidade, isto é, como a intrusão do novo na criação.
Nota-se que o processo de desconstrução dos conceitos acaba por ser peça
fundamental para se caminhar no debate em torno da própria atividade comparatista,
visto que, a inobservância em torno de questões fundamentais – como o processo de
criação artística – oblitera pontos importantes na discussão, perpetuando uma visão
sobre o artista – principalmente aqueles das sociedades colonizadas – como sendo um
24
parasita que se vale de outros textos, por deficiência criativa. Contra essa forma de
pensamento sobre o artista e ainda debatendo sobre o escritor latino-americano, Silviano
Santiago (2000, p. 20) assegura que:
O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de
uma outra obra. As palavras do outro têm a particularidade de se
apresentarem como objetos que fascinam seu olhos, seus dedos, e a escritura
do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual com o
signo estrangeiro.
É com um olhar em torno desses debates – sobre o processo criativo, “fontes” e
“influências” , e sobre a postura do artista em relação à obra de outro –, que o cotejo
entre a obra de Jorge Amado e de José Luandino Vieira se faz interessante. Perceber
como essa experiência sensual com o signo do outro, conforme revelou Santiago,
explicita relações intertextuais e flagra o artista enquanto possuidor de uma
originalidade peculiar. Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier são textos
com importante potencial para revelar a existência de intercomunicações entre obras e
demonstrar as inúmeras formas de se analisar tal fenômeno.
Fecha-se aqui o parêntese, para se continuar no debate em torno da história da
literatura comparada, tentando entender o seu complexo universo e perceber o caráter
heterogêneo das discussões, principalmente aquelas que emanam do embate entre as
chamadas “escolas”. Duas delas, pela importância histórica para os rumos da disciplina,
irão ocupar aqui maior exercício de reflexão: a escola francesa e a escola americana.
2.1 ENTRE FRANCESES E NORTE-AMERICANOS
Apesar da flagrante dificuldade em cimentar pontos dentro da seara do
comparatismo literário, nada, entretanto, o impediu de avançar e se constituir em um
importante campo de estudos, tornando-se disciplina universitária e conquistando a
atenção e o interesse dos principais centros de saber europeus. O século XIX foi um
importante momento para as ciências naturais, de onde emana o método comparatista, e
25
foi nesse século que a ideia de comparar, para fundar leis gerais, dominou o continente
europeu. O crítico neozelandês Hutcheson Macaulay Posnett (2011, p. 23), em 1886,
afirma que “O método comparativo de adquirir ou comunicar conhecimento é, num
certo sentido, tão antigo quanto o pensamento, e, em outro, a glória peculiar do nosso
século XIX.” Vários estudos de anatomia e fisiologia comparados passam a surgir na
França nesse período, e, mais tarde, essa forma de se estudar comparativamente acaba
por contaminar as ciências humanas, atingindo a literatura.
De acordo com Louis Paul Betz (2011, p. 62), “A França pode ser considerada a
origem acadêmica e o centro da história da literatura comparada moderna.” Tal
afirmação certamente dá-se pelo fato de ter sido na França onde, primeiramente, a
literatura comparada iria se firmar como disciplina acadêmica – foi exatamente em
Lyon, em 1887, e, logo depois, na Sorbonne, em 1910. Não só por isso, mas também
pelo fato de os franceses terem demonstrado grande inclinação para a normatização dos
estudos literários comparados, haja vista o grande número de manuais sobre literatura
comparada que foram responsáveis pela divulgação da perspectiva francesa em vários
países. Conforme a professora Tania Carvalhal, (1998, p. 8-9) uma questão foi
fundamental para que a literatura comparada se firmasse na França:
Embora empregada amplamente na Europa para estudos de ciências e
lingüística, é na França que mais rapidamente a expressão “literatura
comparada” irá se firmar. Ali o emprego do termo “literatura” para designar
um conjunto de obras era aceito sem discussão desde o seu aparecimento,
com essa acepção, no Dictionnaire philosophique de Voltaire, enquanto na
Inglaterra e na Alemanha a palavra “literatura” custou mais a ganhar esse
conceito.
Nota-se que, para a autora, o desenvolvimento da literatura comparada na França
esteve relacionado ao amadurecimento de um conceito anterior, o de “literatura”. Parece
muito oportuno esse pensamento, uma vez que vários teóricos da literatura comparada
reconhecem a multiplicidade de entendimentos referentes a esse conceito. Também
pode ser verdade que boa parte desses autores, principalmente os franceses, tentaram
definir “literatura” e, portanto, nortear o debate, a partir do seu ponto de vista. Paul Van
Tieghem, por exemplo, afirmou ser “[...] digno do nome de literatura aquilo que oferece
um valor, e um valor literário, isto é, um mínimo de arte.” (VAN TIEGHEM, 2011, p.
26
102. Grifo do autor). Cumpre registrar-se que valor literário e valor artístico são
questões por demais subjetivas; que talvez tenha escapado a Van Tieghem a necessidade
de considerar as múltiplas visões relativas a essas ideias. O que poderia ser considerado
arte na visão do outro, para o referido autor poderia não sê-lo, e certamente a obra com
valor literário fosse aquela que ele assim a julgasse.
Nessa tentativa de analisar a literatura comparada em seu contexto histórico, faz-
se necessário entender que distintas ideias circularam pela Europa e América do Norte,
no tocante ao comparatismo literário. E algumas dessas ideias, por seus autores
encerrarem pensamentos, visões e métodos consoantes, acabaram por serem percebidas
e classificadas, em determinados momentos, como “escolas”. Porém, como já foi dito,
duas escolas exerceram mais influência no pensamento acerca da literatura comparada:
as chamadas “escola francesa” e “escola norte- americana”.
Seguindo o pensamento de Tania Carvalhal (1998, p.14), “A maioria dos
manuais adota a denominação ‘escola francesa’ para designar um grupo representativo
de estudos onde predominam as relações ‘causais’ entre obras ou entre autores,
mantendo uma estreita vinculação com a historiografia literária.” Apesar da pluralidade
de autores franceses e de estudos sobre literatura comparada, parece que temos em Paul
Van Tieghem um representante dessa escola, pois se trata de um dos primeiros
normatizadores a definir a literatura comparada como sendo o estudo das diversas
literaturas em suas relações recíprocas – inclusive, Tania Carvalhal (1998, p. 17) declara
que “A inclinação para a ordenação de dados e a fixação de noções norteadoras já
caracterizavam, por exemplo, a obra clássica de Paul Van Tieghem”.
Sandra Nitrini (2010, p. 22) apresenta o referido autor como “ponto de partida” e
salienta o teor ultrapassado das suas ideias. Porém, a autora reconhece ser importante a
revisão de tais ideias para o entendimento do estado atual da literatura comparada,
principalmente enquanto disciplina. É Van Tieghem quem vai diferenciar literatura
comparada de literatura geral, dando, à primeira, um caráter mais analítico e
responsável por estudos binários, enquanto que a segunda preocupar-se-ia com estudos
de várias literaturas e teria um caráter mais sintético. Van Tieghem, na perspectiva de
delimitar o estudo da literatura comparada, assegura que:
Como todas as partes que compõe o estudo completo de uma obra ou de um
escritor podem ser tratadas apenas com os recursos da história literária
nacional, exceto a pesquisa e a análise das influências sofridas e exercidas,
convém reservar esta para uma disciplina especial, que terá seus objetivos
27
bem definidos, seus especialistas, seus métodos. Ela prolongará em todos os
sentidos os resultados obtidos pela história literária de uma nação, reunindo-
os com os que, por seu lado, obtiveram os historiadores das outras literaturas,
e desta rede complexa de influência se constituirá um domínio à parte. Ela
não pretenderá de modo algum substituir as diversas histórias literárias
nacionais; há de completá-las e uni-las; [...] Esta disciplina existe; seu nome é
Literatura comparada. (TIEGHEM, 2011, p. 107, grifo do autor)
Com isso, o autor conceberia a literatura comparada como uma disciplina subsidiária da
historiografia literária e da literatura geral, tornando a atividade do comparatista
limitada à investigação de fatos comuns a duas literaturas. Essa forma historicista de
conceber a literatura comparada praticamente caracterizou o pensamento da escola
francesa, que via em tal disciplina, uma simples oportunidade de pesquisa e análise das
influências sofridas e exercidas pelos autores.
A chamada “escola americana” caracterizou-se por um rompimento com a
postura historicista dos estudiosos franceses em relação à literatura comparada. Os
comparatistas norte-americanos aceitaram os estudos comparados dentro das fronteiras
de uma única literatura, em contraste com a tendência clássica francesa; além de
privilegiarem a análise do texto literário em detrimento das relações entre autores e
obras, como adotavam os franceses. Isso pode explicar a necessidade de se centrar na
análise das narrativas, enquanto elemento fecundo, e deixar, em segundo plano,
questões referentes a contatos entre autores.
Apresentando maior ecletismo e amparada no New Criticism, movimento crítico
que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir dos anos 30, a escola americana tem em
René Wellek o seu expoente, visto que esse autor, pelo caráter polêmico das suas
reflexões, foi responsável pela separação entre as duas referidas orientações básicas no
estudo de literatura comparada: a francesa e a norte-americana. Apesar disso, Sandra
Nitrini (2010, p. 34) explicita que já havia um caloroso debate, nos Estados Unidos,
contra os estudos literários positivistas franceses. E que “Wellek não inventou uma nova
concepção; foi apenas um ilustre representante de muitas vozes que compartilhavam da
idéia que o factualismo positivista tinha chegado ao seu fim.” Isso faz remeter ao que
estabelece Carvalhal (1998, p. 15), quando afirma que “Sem ter um programa (ou
doutrina) estabelecido, os comparatistas norte-americanos têm em René Wellek seu
porta-voz mais expressivo.”
Durante muito tempo, a literatura comparada pareceu ser área exclusiva dos
estudiosos franceses, que tinham a sua doutrina predominante sobre outras abordagens.
28
Apesar das duras críticas ao modelo francês em décadas anteriores, foi no final da
década de 1950, precisamente em 1958, que a abordagem clássica francesa foi posta em
xeque, com um artigo publicado por Wellek, cujo título era A Crise da Literatura
Comparada. Nesse texto, ele expõe as fragilidades teórico-metodológicas da disciplina
e ataca o modelo francês, representado principalmente por Van Tieghem:
O sinal mais sério do estado precário de nossas pesquisas reside no fato de
que ainda não se foi capaz de estabelecer um objeto de estudo distinto e uma
metodologia específica. Eu acredito que os pronunciamentos de
Baldensperger, Van Tieghen, Carré e Guyard falharam nesta tarefa essencial.
Eles sobrecarregaram a literatura comparada com uma metodologia obsoleta
e lhe atribuíram o lado estéril do factualismo, do cientificismo e do
relativismo histórico do século XIX. (WELLEK, 2011, p. 120-121)
Com esse discurso, Wellek parece estar consciente de que uma disciplina como a
literatura comparada, para desenvolver o seu papel enquanto campo de estudo, deveria
ter, muito bem cimentados, aqueles que parecem ser os pilares da investigação
científica, ou seja, objeto e método. Dessa forma, parece que o cientificismo, duramente
criticado por ele, também contamina o seu discurso e exibe uma forma de pensamento
presente na segunda metade do século XX.
Wellek também questiona a distinção entre literatura geral e literatura
comparada, proposta por Van Tieghem, sob alegação de insustentabilidade:
[...] duvido que a tentativa de Van Tieghem de distinguir a literatura
“comparada” da literatura “geral” alcance sucesso. Para Van Tieghem, a
literatura “comparada” restringe-se ao estudo das inter-relações entre duas
literaturas, enquanto a literatura “geral” se preocupa com os movimentos e
estilos que abrangem várias literaturas. Esta distinção, sem dúvida, é
insustentável e impraticável. (WELLEK, 2011, p. 121, grifo do autor)
Wellek (2011, p. 121) ainda vai além na crítica à distinção entre a literatura geral
e a comparada, dando exemplos que reforçam o caráter impraticável de tal distinção:
Por que se poderia, por exemplo, considerar literatura “comparada” a
influência de Walter Scott na França, enquanto um estudo do romance
29
histórico durante o período romântico seria visto como literatura “geral”? Por
que deveríamos distinguir um estudo sobre a influência de Byron em Heine
de um estudo do byronismo na Alemanha? A tentativa de se restringir a
“literatura comparada” a um estudo do “comércio exterior” entre literaturas é
certamente infeliz. A literatura comparada seria, em seu objeto de estudo, um
conjunto incoerente de fragmentos não relacionados: uma rede de relações
constantemente interrompidas e separadas dos conjuntos significativos.
Ao discordar da forma como se concebe a literatura geral e a literatura
comparada, pelo campo da distinção, Wellek acaba por criticar a postura limitada dos
estudiosos franceses. E, para o autor, “As tentativas de estabelecer fronteiras especiais
entre a literatura comparada e a literatura geral devem desaparecer, porque a história
literária e as pesquisas literárias têm um único objeto de estudo: a literatura.”
(WELLEK, 2011, p. 122). Esses constantes questionamentos ajudaram a abalar a
perspectiva clássica francesa e marcaram, de forma bem definida, as duas trincheiras de
pensamento acerca da literatura comparada que iriam ecoar em várias partes do mundo.
2.1.1 O COMPARATISMO EM TERRAS BRASILEIRAS
O século XX foi fundamental para que a literatura comparada viesse a se
institucionalizar enquanto disciplina acadêmica, tendo a Europa e a América do Norte
como centro de pesquisa e ensino. Para Tania Carvalhal (1996, p. 12) a literatura
comparada difunde-se na América Latina nos anos de 1960 e 1970, tendo o Brasil como
local onde a institucionalização desses estudos encontrou maior consistência.
Na segunda metade do século XX, precisamente em 1980, observam-se
momentos decisivos para a institucionalização da literatura comparada no Brasil. Em
1986, por ocasião do I Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, foi
criada a Abralic – Associação Brasileira de Literatura Comparada – em Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, que segundo Tania Carvalhal (1996, p. 11), representou “O grande
desenvolvimento no Brasil dos estudos de literatura comparada”. A Abralic reúne,
nesse momento, estudiosos da literatura comparada no país e promove vários eventos,
na perspectiva de aferir o debate em torno de tal disciplina. Vale lembrar que, nessa
mesma época, notadamente em 1986, observa-se o lançamento de uma importante obra,
30
da autora supracitada, intitulada Literatura Comparada, (Série Princípios, Ática)
destinada a estudantes universitários. Tal lançamento amalgama um importante
momento no processo de institucionalização da literatura comparada em solo brasileiro,
iniciado entre as décadas de 1950 e 1960.
Para Sandra Nitrini, (2010, p. 184) “[...] a institucionalização da literatura
comparada no Brasil ocorreu justamente nos anos em que vozes contrárias à direção da
chamada ‘escola francesa’ começavam a se fazer ouvir [...]”. A autora refere-se
certamente ao ano de 1958, quando se dá em Chapel Hill – Estados Unidos – o II
Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada – momento em que
René Wellek profere duras críticas à linha tradicional francesa. A institucionalização da
literatura comparada enquanto disciplina do currículo dos cursos de Letras ocorre entre
os anos de 1950 e 1960, nas universidades dos estados da Guanabara e São Paulo. Vale
frisar que, em solo brasileiro, a literatura comparada encontra terreno em alguns
manuais, escritos principalmente por discípulos dos mestres franceses. Pode-se citar
Tasso da Silveira – discípulo das ideias de Van Tieghem –, então professor de literatura
comparada da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Guanabara, como o
responsável por divulgar, em plagas brasileiras, o pensamento do teórico francês. É
Tasso da Silveira que irá defender no Brasil, na década de 1950, o modelo clássico da
escola francesa, afirmando as ideias de “fontes” e “influências”. Em seu livro Literatura
Comparada, o escritor curitibano trata logo de definir o objetivo da literatura
comparada:
Ouvindo falar pela primeira vez de literatura comparada, suporão muitos,
porventura, que se alude ao cacoete de estabelecer paralelos genéricos e
vagos entre duas ou mais literaturas, entre dois ou mais autores de
nacionalidades diferentes, que tanto afeta os críticos primários. A coisa, no
entanto, é mais diversa. Em Literatura Comparada procedem-se a
comparações de caráter especial e com finalidade positiva. Com a finalidade,
extremamente fecunda para a história do espírito, de verificar a filiação de
uma obra ou de um autor a obras e autores estrangeiros, ou de um momento
literário, ou da literatura interna de um país a momentos literários ou a
literaturas de outros países. (SILVEIRA, 1964, p. 15)
A filiação à corrente francesa aparece logo na adoção, por Tasso da Silveira, do
termo “finalidade positiva”, que expressa uma ancoragem nos princípios positivistas
que dominaram a abordagem francesa, e por que não dizer, a abordagem europeia.
Silveira insistirá ainda na concepção de “filiação”, como se a investigação no terreno da
31
literatura comparada se desse pura e simplesmente com o objetivo de identificar
famílias literárias, e revela que, em relação ao comparatista, “Sua específica tarefa é
apenas uma: estabelecer filiações entre obras e autores de um país e obras e autores de
outro ou de outros países.” (SILVEIRA, 1964, p. 36)
Não fica por aí a demonstração das ideias mergulhadas na corrente francesa:
ainda se lerá, na “orelha” do manual de Silveira (1964, s/p.), o seguinte texto:
Mais do que fruto de um determinado meio físico, ou de um determinado
meio social, ou de um determinado momento histórico, – posta de parte a
consideração do espírito criador, da personalidade, da originalidade própria
do artista, que prevalecem sobre tudo mais, – um romance, um poema, um
drama, são o fruto, mediato ou imediato, da influência de realizações
congêneres alheias, coetâneas ou remotas.
O referido autor foi um dos primeiros professores da disciplina literatura
comparada no Brasil. Com isso, entende-se que a tendência clássica institucionaliza o
comparatismo no País. Como os seus mestres franceses, Silveira irá enveredar pelo
caminho da busca pelas “fontes” e “influências” e defenderá a filiação de uma obra por
outra. Defenderá também aquilo que foi, durante muito tempo, uma das principais
diferenças entre a corrente francesa e a norte-americana: o comparatismo entre obras de
autores de igual nacionalidade, vilipendiado pelos franceses e admitido pela corrente
norte-americana. Na continuidade do texto acima exposto, Silveira (1964, s/p.) dirá:
Quando o influxo se produz de um autor para outro, dentro do mesmo país, é
fácil à crítica literária determiná-lo. Quando, todavia, é entre autores de
países diversos que se estabelece o contato fecundo, surgem dificuldades de
monta. Foi mistér criar-se, para atender ao caso, uma disciplina nova. Esta
disciplina é a LITERATURA COMPARADA.
Fica claro que, na visão do autor, a disciplina foi criada para atender às
investidas internacionais de estudos literários comparados, e que os influxos, os quais
porventura se percebam entre autores de mesma nacionalidade, ficariam a cargo da
crítica literária.
32
Sendo assim, pelo prisma de Silveira, um cotejo entre uma obra de Jorge Amado
e uma de Luandino Vieira, por exemplo, ficaria no terreno da literatura comparada.
Porém, caso se objetivasse comparar entre si as obras Dona Flor e Seus Dois Maridos,
de Amado, e Dom Casmurro, de Machado de Assis, isso, pela “facilidade” da sua
realização, dever-se-ia fazê-lo no terreno da crítica literária. Essas ideias, originalmente
disseminadas por Van Tieghem, foram duramente criticadas por René Wellek, defensor
de um comparatismo também entre obras de igual nacionalidade.
É oportuno lembrar que a literatura comparada ingressa nas universidades
brasileiras em conjunto com a teoria literária. Segundo Carvalhal (1996, p. 12), essa
associação expressava um movimento natural dos anos 60 e fixou uma articulação
benéfica para ambas as disciplinas. Mas, conforme a autora:
É no contexto dos anos 80 para cá que se afirma e se estreita a convivência
entre teorias literárias e comparatismos, tendo esses acompanhado as
modificações das primeiras, incorporando, seletivamente, aquilo que
interessava a sua atuação particular, e fornecendo àquela o que desde sempre
caracterizou a literatura comparada: amplitude de visão e metodologia dos
confrontos. (CARVALHAL, 1996, p. 15)
Traz-se, aqui, tal questão para se avaliar, no Brasil, o papel da teoria literária no
processo de desconstrução de velhos paradigmas estabelecidos sobre o comparatismo –
boa parte deles por contágio das tendências clássicas francesas (como se observou com
o autor Tasso da Silveira). Em plagas brasileiras, foram fundamentais os conceitos
trazidos pelos estudiosos das teorias de produção textual, bem como aqueles oriundos
dos estudos de recepção literária, para levar o comparatismo a rever velhas questões,
principalmente as relacionadas às “fontes” e “influências”.
Uma dessas teorias, a da intertextualidade, que, segundo Carvalhal (1996, p. 13),
indicaria “a apropriação de um texto por outro”, ajudou a pensar as relações
interliterárias e deu direção distinta a esses estudos quando redimensionou conceitos,
como dependência e originalidade, abalando, por aqui, os postulados das correntes
clássicas. No que concerne a referida teoria, a autora assevera que:
33
A contribuição do conceito para os estudos de literatura comparada foi
decisiva, pois modificou as leituras dos modos de apropriação, das absorções
e das transformações textuais, alterando o entendimento da mobilidade
contínua dos elementos literários e revertendo a compreensão das tradicionais
noções de fontes e influências.
As ideias trazidas pelo campo da intertextualidade levaram a uma necessidade de
reanalise das ideias de fontes e influências, provocando mudanças na forma de
abordagem do texto literário. Nota-se, portanto que a articulação entre teorias literárias e
literatura comparada, não foi apenas circunstancial, mas representou uma reformulação,
inevitável e benéfica, para ambas as disciplinas.
Se por um lado temos no Brasil um legítimo representante da linha francesa; por
outro, temos um autor, cujas ideias, apesar da anterioridade, avizinharam-se mais
daquilo que preconizou os postulados da corrente norte-americana. Foi com João
Ribeiro, no início do século, precisamente em 1905, que se teve, no País, contato com
uma forma de pensamento muito avançada para o momento dos debates acerca da
literatura comparada. Ribeiro (1963, p. 133) surpreende com a recusa das ideias de
“fontes” e “influências”, aproximando-se da crítica histórica:
Refiro-me à literatura comparada: mas não a essa em que se cotejam e se
confrontam escritores de várias raças e estirpes. Pouco importam (à luz em
que estou agora) os influxos recíprocos entre os homens de gênio, o quanto
influiu Petrarca em Camões, Cervantes em Heine, Plauto em Molière. Refiro-
me, diversamente, a um aspecto essencial da crítica histórica que há mister
fundar e desenvolver.
Ao declarar o seu apreço pela “crítica”, João Ribeiro exibe uma inquietação que,
mais tarde, encontrará eco maior nas ideias de René Wellek do que nas considerações
de Van Tieghem, visto que os apelos de Wellek sempre convergiram para a crítica, a
ponto de ele afirmar que “Os pesquisadores da história literária que negam a
importância da crítica são eles mesmos críticos não conscientes [...]” (WELLEK, 2011.
p. 128-129). A atitude pouco interessada pelas ideias de “influência” de um autor em
outro, expressa nas palavras de João Ribeiro, vai de encontro à postura de Tasso da
Silveira e deixa clara a existência de polos de pensamentos distintos.
34
Por fim, essa revisão sobre os debates acerca da história da literatura comparada
aparece aqui para dar musculatura a uma análise comparada entre as obras de dois
expoentes da literatura, Jorge Amado e José Luandino Vieira, que, pela complexidade
das suas narrativas, tornam essa missão demasiado trabalhosa. Fez-se necessário o
entendimento de que, a respeito do comparatismo literário, nunca houve consenso no
tocante aos seus métodos e que o termo “literatura comparada” sempre suscitou
calorosas discussões ao longo da história. Ninguém melhor que os autores até aqui
citados para exibir o tom desses debates e dar a noção de que foi preciso romper com
ideias antiquadas sobre comparatismo e sobre literatura, para que se pudesse caminhar
nessas searas. As contribuições de René Wellek e de Paul Van Tieghem para os estudos
e discussões em torno do campo da literatura comparada situaram as tensões que se
fizeram presentes ao longo da história. Foi necessário lançar mão, ainda, dos escritos de
Tania Carvalhal, autora de aguda visão e poder de síntese, para a interpretação dos
textos que fundam as discussões, a fim de que fosse possível cimentar pontos dentro
desse panorama histórico e trazer um melhor entendimento sobre os autores e suas
ideias. A obra da referida autora é uma tentativa bem sucedida de apontar caminhos
para se trilhar na direção do entendimento sobre a trajetória dos estudos comparados.
Nessa perspectiva, uma revisão da história da literatura comparada torna-se
missão precípua deste trabalho no momento em que se percebe que o seu objeto de
estudo exige uma caminhada por estradas que se entrecruzam, e apresenta dois autores
de estilos díspares, porém com projetos estéticos que vibram em consonância. Jorge
Amado e Luandino Vieira podem, por meio dos seus projetos literários, constituir-se em
peças importantes para os estudos comparados quando se tomam as obras Jubiabá e A
Vida Verdadeira de Domingos Xavier e se percebe que ambas apresentam interligações,
traduzidas ora pelos movimentados diálogos entre os elementos naturais nelas presentes
ora pela inércia comunicativa das cidades ali representadas. Tudo isso pode ajudar a
movimentar ainda mais as discussões sobre comparatismo literário. Portanto, necessário
se faz, entender o teor desses debates históricos sobre a literatura comparada, para que
seja possível se alargar a percepção dos estudos comparados entre autores e obras.
2.2 JORGE AMADO E LUANDINO VIEIRA: SOB O PRISMA DO COMPARATIS-
MO
35
Do embate entre a tendência francesa e a norte-americana, ou seja, da
consideração das “fontes” e “influências” e da negação desses conceitos, enfatizando
mais o texto literário que as relações entre autores e obras, é que o comparatismo no
Brasil, dentro de múltiplas orientações, contribuiu para ajudar a pensar a própria
literatura brasileira como uma literatura resultante de uma pluralidade de vozes e a
questionar o próprio lugar dessa literatura, muitas vezes observada enquanto resultado
da confluência de matizes europeias. O cotejo entre uma obra brasileira e uma europeia,
durante muito tempo, reforçou a ideia, sempre questionada por Silviano Santiago, de
“centro” e “periferia” ou de texto “fonte” e texto “dependente”. Conforme Santiago
(1982, p. 21):
Faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e
influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a
compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um
movimento paradoxais, que por sua vez darão início a um processo tático e
desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam
a um solo histórico e cultural homogêneo.
De acordo com o pensamento de Santiago, e para além dele, cotejar duas obras
literárias pertencentes a sistemas literários considerados periféricos, pois habitam
nações colonizadas por Impérios coloniais europeus, talvez possa também produzir
importante questionamento, que levará a diferentes noções sobre a ideia de “fontes” e
“influências”, bem como possa baralhar, mais ainda, a visão de “centro” e “periferia”
literária, na perspectiva do engendro de um “ponto de vista periférico” para as relações
entre literaturas. Brasil e Angola, por exemplo, enquanto “periferias”, guardam entre si
relações literárias já percebidas e investigadas por pesquisadores brasileiros e
angolanos. Porém, quais as contribuições que esses dois países podem dar para o debate
em torno da cultura?
Silviano Santiago (2000, p. 16) acredita que não só o Brasil, mas também a
América Latina têm como maior contribuição para a cultura ocidental, a destruição
sistemática dos conceitos de “unidade” e “pureza”, pois “[...] A América Latina institui
seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma,
ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus
exportavam para o novo mundo.” Joseph Ki-zerbo (2006, p. 12), pensando muito além
36
do país Angola, mas pensando a África, declara que esta deve constituir sua presença no
mundo por meio da integração, “Porque os africanos não podem contentar-se com
elementos culturais que recebem do exterior.” Ki-Zerbo continua e salienta que as
trocas entre a África e o mundo devem dar-se em planos de igualdade, onde as trocas
culturais se deem em um mesmo nível de dignidade, pois, em relação à África, “[...] A
troca cultural é muito mais desigual do que a troca dos bens materiais [...]” (KI-
ZERBO, 2006, p. 12). Com isso, segundo o autor, a África teria “[...] poucas
possibilidades de se difundir, de participar da cultura mundial [...]” (KI-ZERBO, 2006,
p. 12); e um dos grandes problemas daquele continente seria “[...] a luta pela troca
cultural equitativa [...]” (KI-ZERBO, 2006, p. 12). Nesse sentido, as comparações entre
literaturas brasileiras e angolanas contribuem para o debate em torno das relações entre
as chamadas “periferias”, avaliando a literatura enquanto condição de inserção, em
esfera global, de outras formas de pensar o mundo, por prismas de integração e desvios
de normas.
No que concerne aos sistemas literários brasileiro e angolano, as comparações
entre os seus autores e suas obras literárias são abundantes1. Os pesquisadores
brasileiros parecem querer confirmar algo junto à literatura angolana, já que o
comparatismo é historicamente tomado de empréstimo das ciências naturais, nas quais
comparar serviria como um meio para confirmar hipóteses. Assim, comparando duas
obras de diferentes sistemas literários, brasileiro e angolano, ter-se-ia talvez a condição
de confirmar semelhanças maiores entre brasileiros e angolanos, que as manifestações
da diáspora ainda não deram conta de relatar, ou, ainda, perceber diferenças entre eles,
principalmente, nas formas como cada sistema reagiu e reage aos influxos da ex-
metrópole, Portugal.
Tomando-se o escritor José Luandino Vieira, um dos mais destacados prosadores
angolanos, como exemplo, observar-se-á uma série de estudos das suas obras em
perspectiva comparada, objetivando mostrar as relações que existem entre seus textos e
os textos do escritor brasileiro João Guimarães Rosa. José Luandino Vieira (Luandino
Vieira, como é mais conhecido) já declarou, em várias entrevistas, ter sido leitor voraz
das obras de Guimarães, e é notório que a sua performance se aproxima, e muito, do
desenrolar narrativo rosiano. Isso talvez tenha aguçado alguns pesquisadores a investi-
__________________
1 Sobre essa questão, consultar as obras de Ana Lidia da Silva Afonso (2007), Maria Alzira de Souza
Santos (2010), Débora Leite David (2006).
37
gar tal aspecto nas obras desses escritores, com o objetivo de apontar semelhanças entre
eles ou indicar possíveis “influências” do escritor brasileiro sobre o escritor angolano. A
professora Tania Macêdo (2002, p.10), registra essa questão quando aponta as lacunas
existentes nas investigações de cunho comparatista que envolvem Guimarães Rosa e
Luandino Vieira. A autora afirma haver, em tais estudos, a presença de uma
supervalorização das semelhanças em detrimento das diferenças entre os autores, ao
sugerir que “A tônica dos estudos comparativos, no que se refere à aproximação entre
os textos de Luandino e Guimarães, recai, não raro, no salientar a semelhança entre eles,
elidindo sintomaticamente as diferenças.” Acredita-se que a investigação em torno das
diferenças entre ambos se faz tão importante quanto a pesquisa em torno das
semelhanças entre os textos dos referidos autores, uma vez que, dada a proximidade
entre as nações pelo próprio laço da língua portuguesa, perceber onde acabam as
semelhanças seria de grande valia, para melhor se entender as questões que cercam a
literatura enquanto escritura social.
No que concerne a Jorge Amado, autor de destaque no Brasil e no mundo, em
relação aos estudos comparados, observa-se uma forte tendência em comparar as suas
obras com obras de autores cubanos2 – talvez pelo fato de, como afirma Ana Margarita
Barandela García (2007, p. 9), serem:
[...] inúmeras as semelhanças culturais entre Cuba e Bahia, nas características
da composição étnica e cultural em que o aporte de várias raças vindas das
mesmas regiões geográficas criaram uma mistura cultural que apresenta
pontos em comum na música, na dança, na culinária e principalmente no
referente à religião dos afro-decendentes.
Existe uma pluralidade de trabalhos em perspectiva comparada envolvendo
Jorge Amado e escritores cubanos, que caminham na direção da observância das
similaridades entre os autores e suas obras – certamente pelos motivos expostos acima
por Ana García e também pela necessidade de se apontar temáticas semelhantes entre as
narrativas desses escritores, a fim de reputá-las como sendo textos “próximos”. Aqui,
apenas dois desses trabalhos são citados como forma de revelar tal fato.
__________________
2 Além dos trabalhos já mencionados, ver também Sandra Mara Mendes da Silva Bassani (2009).
38
O primeiro deles é o trabalho de Ana Margarita Barandela García, A Presença
Yorubá nas Literaturas Cubana e Brasileira: o sagrado no realismo maravilhoso de
Jorge Amado e Manuel Cofiño, onde a autora analisa as idênticas relações desses
autores com o sagrado, percebidas através da análise das obras O Sumiço da Santa, de
Jorge Amado, e Cuando La Sangre se Parece al Fuego, do cubano Manuel Cofiño.
Percebe-se, na citada pesquisa, uma abordagem das referidas narrativas enquanto obras
que se aproximam por meio das suas temáticas e que exploram o mesmo elemento, ou
seja, o trato com o sagrado. Com isso, tem-se pouco espaço para perceber as duas obras
como narrativas distintas, mas comunicantes, e, a partir disso, estabelecer um cotejo
muito mais rico entre elas.
O segundo estudo é o de Eduardo José Tollendal, Arte Revolucionária, Forma
Revolucionária: a literatura política de Jorge Amado e Alejo Carpentier, onde o autor
trabalha comparativamente com as obras Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim, de
Jorge Amado, e Écue-Yamba-Ó e La Consagración de La Primavera, do cubano Alejo
Carpentier. O referido trabalho procura aproximar essas narrativas a partir das questões
políticas que elas discutem. Nele, em nenhum momento, há espaço para se interpretar as
comunicações e as divergências entre os elementos percebidos, o que talvez trouxesse
maior profundidade à pesquisa. Defende-se que comparar obras literárias signifique
mais do que a investigação em torno das similaridades temáticas entre elas, mas que
represente a análise das intercomunicações entre elementos, abrindo espaço para se
lançar luz nas diferenças, revelando o seu caráter “aproximador”.
Perceber as relações que existem, por exemplo, entre Guimarães e Luandino ou
entre Amado e Carpentier – tomados os fatores que evidenciam tais relações, como as
proximidades entre seus temas –, torna-se fator de certa complexidade. Porém,
relacionar as obras desses escritores aos textos de outros autores, com características
não tão próximas, talvez envergue maior desafio e venha dar uma dimensão
diferenciada aos estudos comparados, possibilitando uma reelaboração em torno das
ideias de “fontes” e “influências”.
Mais importante que falar de influência entre autores é avaliar o papel que eles
têm na vida de outros, os ensinamentos e pistas que parecem deixar, como se tivessem a
missão de proteção mútua, a fim de evitar o aparecimento de um elo fraco de uma
suposta “corrente”. Acerca disso, vale lembrar uma entrevista de Luandino ao Jornal de
Letras de Lisboa, em 1982, onde o autor revela:
39
Eu estava preso, estava na primeira esquadra, quando me chegou às mãos
Sagarana. Foi uma revelação. Eu sentia que era necessário aproveitar
literariamente o instrumento falado dos personagens que eram os que eu
conhecia, que refletiam, quando em mim, os verdadeiros personagens a pôr
na literatura angolana. Guimarães Rosa ensinou-me que um escritor tem a
liberdade de criar [...].
A partir dessa declaração de Luandino, percebe-se que o papel de um escritor no
trato com outro extrapola a simples e efêmera transmissão de textos para serem
imitados. Trata-se de um trabalho, cuja matéria-prima é totalmente bruta e subjetiva,
necessitando de total lapidação e abstração do “receptor”, para pôr em consonância,
poéticas distintas, que se encontram com o objetivo de produção artística. Se se quiser ir
além, pode-se também acreditar que as declarações do escritor angolano repousam na
tentativa de vinculação da sua experiência literária a uma literatura muito mais
consolidada – como é o caso da literatura brasileira –, no intento de dar maior
legitimidade aos seus textos. Porém, questões como essas merecem especial atenção,
visto que devem ser analisadas cuidadosamente e se constituem em material para
investigações outras.
Com base no exposto e para que se possa caminhar com um pouco mais de
segurança, realizando um estudo comparativo entre as obras de Jorge Amado e José
Luandino Vieira, passa-se, a partir de agora, à reflexão acerca da biografia desses dois
escritores, de importância dentro e fora de seus países, no que concerne principalmente
à literatura, à luta política e ao resgate cultural. A análise biográfica desses autores
importa, e muito, para um estudo em perspectiva comparada, uma vez que o estudo das
diversas relações que envolvem tais escritores fornece possibilidades de interpretações
outras sobre suas produções – até por que, conforme afirma Sandra Nitrini (2010, p.
32):
O trabalho comparatista não se deve limitar a relacionar textos, uma vez que
a vida do autor constitui um fator importante na gênese da obra. A revelação
e difusão de idéias e sentimentos podem, às vezes, partir de um fato histórico
ou social.
40
Comparar os textos faz-se tão importante quanto comparar trajetórias de seus
autores, não só pelo que afirma Nitrini e nem pelo que preconizavam as tendências
clássicas da literatura comparada – que davam especial atenção para esse aspecto –, mas
porque tais trajetórias podem sugerir ou, até mesmo, indicar caminhos possíveis de
serem trilhados pelo investigador, a fim de levá-lo a resultados mais contundentes.
Dessa forma, o artista literário como produtor de linguagem o faz também a partir de
representações da realidade, acabando por exibir ao expectador possibilidades de
imaginação das suas referências estéticas, que podem ser fruto de intensa relação com a
realidade circundante. Portanto, ao se pretender estudar dois autores em perspectiva
comparada, a importância que se dá aos estudos de natureza biográfica não é outra
senão o desejo de melhor entender os diálogos para além das semelhanças textuais que
as obras envergam.
É importante notar que modernamente se atribui muita importância à biografia
de um autor nos momentos de investigação de sua obra. E igual valor se dá aos seus
escritos quando da elaboração de material biográfico. Isso ocorre provavelmente pela
observância de que detalhes da vida de um escritor podem ser de fundamental
importância para se perceber e entender elementos obscuros nos seus textos. Também
pode ser verdadeira a ideia da análise dos textos, para melhor se compreender um autor,
já que seus escritos podem revelar ou até mascarar a sua vida.
Torna-se muito importante, porém, que se revele a infiltração presente nessas
duas matérias analíticas, ou seja, a vida e o texto. Parece que uma fecunda o outro,
fundamentalmente no intuito de se produzir literatura; o autor constrói e é construído
pelo seu próprio texto.
2.2.1 JOSÉ LUANDINO VIEIRA
José Vieira Mateus da Graça (Luandino Vieira) nasceu em Portugal –
notadamente em Lagoa do Furadouro, próximo à Vila Nova de Ourém –, em 04 de maio
de 1935, e partiu, ainda criança, com seus pais para Angola – país que ele adotaria e que
também o adotara. (LABAN, 1980, p. 88) Passou a residir em Luanda, símbolo da sua
paixão, e buscou marcar uma maior identidade com essa cidade, na qual residiu durante
boa parte da sua vida, fazendo com que seu nome adotado, “Luandino”, fosse
representativo do “ser de/e amar Luanda”. Toda a sua infância foi marcada pelas
experiências nos musseques dessa cidade, onde pôde conviver com crianças angolanas,
41
aprendendo valores e tradições africanas e reservando na memória questões que
resultariam, mais tarde, em suas “estórias” – tão importantes no processo de luta contra
o regime colonial. E foi o próprio Luandino quem, numa entrevista ao Jornal da Tarde1,
em janeiro de 1987, relatou estes detalhes da sua infância:
Minha infância explica muita coisa. Eu tive uma infância de menino pobre
nas favelas de Luanda, chamadas musseques, com todos os meninos da
minha idade, branco, preto, mestiço, português, angolano. Isso deu o caldo
cultural que me fez uma criança irrequieta, com um determinado tônus
cultural diferente do dos filhos da burguesia colonial.
Fez os seus estudos primários e o Liceu em Luanda, tornando-se gerente
comercial de uma organização, para garantir o seu sustento. (LABAN, 1980, p. 51).
Luandino tem um histórico de luta contra o colonialismo que o deixou preso por onze
anos. Não obstante várias fontes afirmarem o escritor como membro do MPLA, ele
próprio já afirmara não ter sido, o que se leva a entender que, naquela conjuntura de
agitação política, não só o MPLA, mas também outros movimentos como a UNITA –
União Nacional para Independência Total de Angola – e a FNLA (Frente Nacional de
Libertação de Angola) eram mais que movimentos políticos, eram ideologias. E
qualquer um que, de alguma forma, trabalhasse pela libertação de Angola já seria parte
de um desses movimento, embora não fosse a ele filiado. Vale salientar que isso trazia
consequências muito graves para os que, apesar de não serem afiliados, flertavam com
as propostas e ideias de tais movimentos. Luandino mesmo declara ter sido preso,
acusado de atividades anticolonialista, e que a PIDE2, a polícia política do Império
colonial português, acreditava ser ele um membro do MPLA:
Nós fazíamos uma militância de esclarecimento, uma militância política, um
bocado ativa em determinados meios a que tínhamos acesso, portanto os
meios intelectuais, defendendo os objetivos imediatos e a longo prazo do
MPLA. Difundíamos a literatura do MPLA, defendíamos os pontos de vista
___________________________
1 Entrevista a Leo Gilson Ribeiro. “A África de Luandino Vieira”. Jornal da Tarde. Caderno de
Programas e Leitura, p. 5, 03 jan 1987 2 Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) – foi uma polícia existente em Portugal entre 1945 e
1969. Criada pelo Decreto-Lei n.º 35 046 de 22 de outubro de 1945, tinha a competência da instrução
42
do MPLA e, portanto quando a polícia pegou por um fio e conseguiu apanhar
por uma ponta dessa pequena rede eu fui preso em Lisboa quando estava para
me ausentar para o estrangeiro. Fomos acusados de ser membros do MPLA,
eu e mais dois poetas, o António Jacinto e o António Cardoso. [...] não, eu
não era. Para ser membro do MPLA teria que fazer o meu pedido formal de
ingresso, seguir os trâmites que os estatutos determinam, nem sei bem se pelo
facto de eu ter nascido em Portugal poderia ser membro, não sei, nunca me
preocupei com esse aspecto. (DAVID, 2006, p. 120-121)
Essas declarações de Luandino servem para que se perceba o nível de
consciência e organização do MPLA – que possuía estatutos, normas rígidas de ingresso
e limites para absorção dos não nascidos em solo angolano –, estabelecendo-se, assim,
como um movimento de cunho nacionalista extremo. Se o MPLA era mais que um
movimento, era uma ideologia plantada e ventilada nas cabeças com tino
revolucionário, seria preciso, para quem almejasse exterminar o movimento, muito mais
que a destruição física dos seus membros, mas varrer também das mentes férteis para
ideologias de caráter subversivo o ideal revolucionário. Talvez, isso venha explicar o
modus operandis da repressão, que, neste intento, retira de circulação alguns dos seus
propagadores, impedindo contato desses com qualquer outro indivíduo ainda não
“contaminado”.
Pode-se inferir que a infância de Luandino pelos bairros pobres de Angola lhe
forneceu elementos importantes para o seu fazer literário. A ativação da memória, com
o intuito de trazer à tona elementos do “antigamente”, foi fundamental para dar
legitimidade aos seus textos, pois lhe possibilitou o mapeamento perfeito da cidade de
Luanda, presente na obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961) e em Luuanda
(1964), para citar apenas duas; o detalhamento singular dos tipos angolanos, presentes
em Nós, os do Makuluso (1975) e João Vêncio: os seus amores (1979); e por que não
dizer a sua visão acerca dos problemas da separação entre habitantes brancos e negros,
pobres e ricos, que acometem uma Luanda em processo de urbanização, presente em A
Cidade e a Infância (1960). Nesse livro, Luandino apela à sua memória desde a infân-
____________________________
preparatória dos processos respeitantes aos crimes de estrangeiros relacionados com a sua entrada ou
com o regime legal da sua permanência em território nacional. Era temida, pela utilização da tortura, e
foi responsável por alguns crimes sangrentos. A partir de 1961, início das chamadas “guerras de in
dependência” na África, a PIDE, até então ausente dos territórios africanos, assumiu a função de serviço
de informações, constituindo, enquadrando e dirigindo milícias próprias e colaborando com as for-
ças militares portuguesas.
43
cia, passando pela adolescência e pela fase adulta em Luanda, desnudando uma cidade
distinta, lembrando das brincadeiras junto aos amigos, do primeiro amor ainda
adolescente e das lutas pela sobrevivência à idade adulta.
Autor de várias estórias, a peculiaridade desse escritor está justamente no trato
com a linguagem. Ao mesmo tempo em que narra, Luandino vai envolvendo o leitor
com a fala dos seus personagens – geralmente pessoas simples, que habitam não só os
musseques mas também as suas memórias do “antigamente na vida”, o que dá às suas
narrativas um toque sutil de extrema subversão, haja vista o intento de atribuir voz aos
excluídos, dentro de um sistema colonial. O escritor foi preso diversas vezes pela PIDE
e sempre acusado de atividades subversivas ou, como o próprio autor sempre afirma,
“tentativa de separação de Angola da mãe pátria”. Detido pela PIDE, a primeira vez em
1959 e depois em 1961, o autor volta a ser preso, o que resulta em sua condenação a
quatorze anos de prisão e a medidas de seguranças – oito desses – cumpridos na Prisão
do Tarrafal, em Cabo Verde, para onde foi transferido em 1964, tendo sido libertado em
1972, em regime de residência vigiada. Luandino foi um dos acusados do chamado
“processo dos 50”4. (LABAN, 1980, p. 115)
Em 1972, já residindo em Lisboa, o escritor dá inicio à publicação da sua obra –
boa parte dela escrita na cadeia. O autor angolano parecia entender, naquele momento,
que mesmo privado da liberdade física, ainda assim, poderia continuar a sua luta contra
o colonialismo português – e o fez através da literatura, operando com os códigos da
memória e da linguagem, como sustentáculos para tentar minar a resistência colonial e
resgatar um patrimônio linguístico-cultural brutalmente fragmentado pela Língua
Portuguesa e pelas inúmeras políticas de assimilação cultural. A simples referência a
valores culturais angolanos era condenada pelo país colonizador, visto que dentro da
política assimilacionista, a colonização tinha, entre outros objetivos, de impor a cultura
do colonizador – demograficamente minoritário, mas política e sociologicamente
majoritário em relação à população colonizada. Naquela ocasião de intensa repressão e
luta, Luandino Vieira, com suas narrativas, parecia reconhecer o poder e a importância
de narrar. E é justamente sobre isso, sobre o poder de narrar, que fala Jane Tutikian,
quando afirma:
__________________________
3 Foi designado “Processo dos 50” um conjunto de três processos políticos que se iniciaram a 29 de mar-
o de 1959, com as prisões de vários nacionalistas angolanos, terminando em 24 de agosto do mesmo
ano, com a última prisão. Deve-se, o nome, ao fato de Joaquim de Andrade ter enviado para o seu irmão
que vivia no exterior, Mário Pinto de Andrade, um folheto denunciando a prisão de 50 nacionalistas.
44
O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas é fundamental na relação império versus cultura. As narrativas de emancipação
acabam tornando-se elementos de forte mobilização de povos (vejam-se as
literaturas angolanas e moçambicanas principalmente, do pré-indepêndencia)
e em forte forma de resistência. Até porque a literatura é fonte de cultura e
cultura é fonte de identidade. (TUTIKIAN, 2008, p. 58, grifo do autor)
Esse poder que tem o engendro de narrativas, do qual nos fala Tutikian, remete a
uma problemática que modernamente se enfrenta, ou seja, o da necessidade de
reescritura de narrativas construídas sob a ótica dos conquistadores e daqueles que, ao
longo da história, detiveram de alguma forma o poder. Desta forma, a narrativa
enquanto reescrita tem o poder de reconstruir e ligar experiências, constituindo-se como
elemento essencial à atividade humana. O crítico alemão Walter Benjamin (1985c,
p.18), em seu texto “O Narrador” fala da arte de narrar como forma de intercambiar
experiências. Reconhece-se nas palavras de Benjamin a necessidade de se encarar a arte
de narrar como sendo algo transformador, fundamental, portanto, para o
desenvolvimento de novas práticas sociais, e responsável pelas trocas de experiências.
Luandino regressa a Angola em 1975 – momento em que esse país tornava-se
independente de Portugal, portanto, com alguma segurança para o retorno do autor –, e
vai desenvolver atividades diretivas no MPLA, além de atividades no plano da cultura,
como a direção da Radiotelevisão Popular de Angola. (LARANJEIRA, 1979, p. 12)
Por suas obras, Luandino Vieira foi indicado a vários prêmios, como: o Grande
Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (Prêmio Camilo Castelo
Branco – 1965) – o qual fez com que a PIDE levasse a cabo uma ação de
desmantelamento da referida organização, prendendo Manoel da Fonseca, o então
presidente; o Prêmio Sociedade Cultural de Angola, em 1961; o Prêmio da Casa dos
Estudantes do Império, Lisboa,1963 – pela obra A Cidade e a Infância; o Mota Veiga,
em 1964 – pela publicação de Luuanda; dentre outros. No entanto, um dos mais
polêmicos prêmios ocorreu em 2006, quando lhe foi atribuído o Prêmio Camões,
considerado o maior galardão literário para a língua portuguesa. Contudo, Luandino o
recusou, alegando “motivos íntimos e pessoais”, segundo um comunicado de imprensa.
(LARANJEIRA,1979, p. 18) Entrevistas posteriores com o escritor esclareceram que
ele não aceitara o prêmio por se considerar um escritor morto – visto que, há muito
tempo, não havia publicado nem uma obra – e, como tal, achava que não deveria ser
premiado, mas alguém que continuasse a produzir. Mesmo assim, publicou, no mesmo
45
ano, um livro intitulado O Livro dos Rios – 1º vol. da trilogia De Rios Velhos e
Guerrilheiros.
2.2.2 JORGE AMADO
Filho de João Amado de Faria e de D. Eulália Leal, Jorge Amado de Faria,
nasceu em 10 de agosto de 1912, em Ferradas, Itabuna, Bahia. Ainda muito pequeno,
fugindo de uma epidemia de varíola, seus pais deixam o local, mudando-se todos para
uma fazenda em Ilhéus e, mais tarde, em 1917, para outra fazenda, em Itajuípe. Em
1918, já alfabetizado por sua mãe, Amado retorna à Ilhéus e passa a frequentar a escola
de D. Guilhermina – professora que, ao que todos dizem, não hesitava usar a palmatória
e impor outros castigos físicos aos seus alunos. Em 1922, Amado parte para Salvador,
para estudar no Colégio Antônio Vieira, de padres Jesuítas, em regime de internato. A
bela redação que apresentou ao seu professor, o Padre Luiz Gonzaga Cabral, com o
título de O Mar, rende-lhe elogios e faz com que o religioso passe a lhe emprestar livros
de autores portugueses e de outras partes do mundo. (ALMEIDA, 1979, p. 71)
É muito conhecida a história da fuga de Amado do colégio. Conta-se que seu pai
foi levá-lo até lá após as férias. Despedem-se, e Amado, em vez de entrar no colégio,
foge. Viaja, por dois meses, até chegar à casa de seu avô paterno, José Amado, em
Itaporanga, Sergipe. A pedido de seu pai, seu tio Álvaro o leva de volta para a fazenda
em Itajuípe. Nesse período, Jorge Amado já demonstra o seu tino de escritor e cria um
jornal chamado A Luneta, que é distribuído entre parentes e vizinhos. Matriculado no
Ginásio Ipiranga, novamente como interno, conhece Adonias Filho e dirige o jornal do
grêmio da escola, A Pátria. Pouco tempo depois, Amado funda A Folha, que faz
oposição ao primeiro. No ano de 1927, passa para o regime de externato e vai morar
num casarão no Pelourinho. (ALMEIDA, 1979, p. 75)
Amado emprega-se como repórter policial no Diário da Bahia e, pouco depois,
vai para o jornal O Imparcial. Uma poesia de sua autoria, Poema ou prosa, é publicada
na revista A Luva. Faz-se importante sublinhar aqui que o poeta Jorge Amado é muito
pouco explorado pelas investigações literárias, dando-se maior destaque ao romancista.
Portanto, cumpre que se ressalte que Amado foi autor de diversas poesias, muitas delas
publicadas em periódicos de sua época. Podemos concluir, quando da análise da
biografia desse autor, que a sua vida foi marcada por encontros importantes com
grandes figuras do universo literário brasileiro, como o escritor Dias da Costa e o
46
intelectual, e também escritor, Edson Carneiro, com os quais lançou, em 1929, uma
obra literária chamada Lenita – completamente sucumbida do discurso historiográfico-
literário sobre esse autor. Mais tarde, reúnem-se em torno do experimentado jornalista e
poeta Pinheiro da Veiga, integrante da Academia dos Rebeldes – grupo literário do qual,
também faziam parte Clóvis Amorim, Guilherme Dias Gomes, João Cordeiro, Alves
Ribeiro, Edison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, Emanuel Assemany, Sosígenes
Costa e Walter da Silveira. (ALMEIDA, 1979, p. 85)A academia pregava, no dizer de
Jorge Amado, "uma arte moderna sem ser modernista". Os trabalhos de seus integrantes
são publicados nas revistas Meridiano e O Momento, ambas fundadas por eles e com
certa circulação naquele momento.
No ano de 1930, Amado transfere-se ao Rio de Janeiro para estudar e lá
conhece Vinícius de Moraes, Otávio de Faria e outros nomes importantes da literatura
nacional. Foi aprovado, entre os primeiros colocados, na Faculdade de Direito da
Universidade do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, vê publicado, pela Editora Schmidt,
seu primeiro romance, O País do Carnaval, com prefácio de Augusto Frederico
Schmidt e tiragem de mil exemplares. O livro recebe elogios dos críticos e torna-se um
sucesso de público. (ALMEIDA,1979, p. 110)
É também relevante trazer aqui o memorável encontro de Amado com os
escritores José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz,
que juntos publicaram a obra intitulada Brandão Entre o Mar e o Amor, lançada em
1941, pela Livraria Martins Editora. Vale salientar que a atmosfera respirada por
Amado da infância até a fase adulta contribuiu para construir o amálgama que fixaria a
aura das suas narrativas, bem como dos seus inesquecíveis personagens, dando cor e
vida aos seus textos. Porém, a infância do escritor – ou o escritor infanto-juvenil Jorge
Amado – é pouco relatada pela crítica especializada. Modernamente, tem-se notado
inúmeros projetos de pesquisas com a intenção de estudar essa referida fase da vida do
escritor ilheense – o que mostra a necessidade de tornar público esse momento, para
melhor se entender a trajetória do autor de Jubiabá. Toda a sua produção que antecede a
obra considerada “livro de estreia”, O País do Carnaval, é pouco explorada, fazendo
com que se analise tal escritor promovendo certo recalque a uma parte significativa da
sua história, que, sem dúvida, ajudaria a explicar melhor o seu perfil revolucionário.
A pesar das constantes tentativas de se esconder ou, vez por outra, esvaziar das
malhas da historiografia a importância da figura de Jorge Amado como autor engajado
na luta contra as injustiças sociais, sua participação no processo de contestação dos
47
modelos vigentes na sua sociedade sempre foi relevante, conforme rememora Alfredo
Wagner de Almeida (1979, p. 27), ao afirmar que:
[...] Jorge Amado como componente da Academia dos Rebeldes, em 1928,
atuava nas polêmicas que cindiam as instituições de produção e difusão do
campo intelectual da época. Esse grupo literário a que ele se filiava era
detentor de uma outra concepção de modernismo e opondo-se a agremiações
vigentes. Colocava-se em contraposição não só a grupos locais como a ala
das letras e das artes, mas também a instituições de dimensão nacional como
a Academia Brasileira de Letras.
Mostrar um Jorge Amado de antes do seu livro de estreia significa falar de um
projeto literário que não começa com a obra O País do Carnaval, mas com o primeiro
jornal cunhado pelo autor ainda nos seus períodos escolares, que, sem dúvida, já reflete,
senão o perfil do projeto de escritor, a “veia” crítica do jovem Amado. É necessário
perceber que as realizações do autor em jornais de “circulação limitada à família” e aos
vizinhos, como A Luneta, em 1922, não são consideradas como gozando da
denominação de “estreia”. Também não o são as suas realizações em jornais escolares,
visto que participava ativamente da vida literária estudantil. Como já se indiciou aqui,
quando se analisa a trajetória literária de Jorge Amado, pouca atenção é dada ao período
que antecede o seu primeiro livro publicado, assim como a maioria dos trabalhos não
leva em conta o envolvimento do escritor com a própria crítica literária. O Jorge Amado
crítico literário é sempre vilipendiado por alguns trabalhos, bem como a sua
participação ativa como escritor em outros veículos de comunicação (jornais e revistas).
Todas essas contribuições, vez por outra, não são levadas em conta para a análise do
autor. Alfredo Wagner de Almeida (1979, p. 27) ainda relata que:
As matérias e reportagens diversas realizadas pelo autor, devido às atividades
que desempenhava em periódicos diários e informativos como Diário da
Bahia (1927) e O Jornal (1929), ou em revistas especializadas em temas
literários como Meridiano (1928), O Momento e A Semana (1928), não são
definidas também como usufruindo da nomeação de “livro de estréia” [...]
Considerar O País do Carnaval como o livro de estreia de Amado significaria
predeterminar o seu perfil literário e partir de um ponto que não significaria o início,
48
mas talvez o meio da sua trajetória literária. Necessário se faz, porém, perceber um
Jorge Amado, cuja intenção com a palavra, desde cedo, sempre foi a comunicação e a
contestação do observado. A sua maturidade como escritor reflete esse cunho
contestador e apresenta um projeto bibliográfico – pautado no romance – que faz de O
País do Carnaval agora, sim, o seu livro de estreia. Jorge Amado participou ativamente
do Movimento Modernista, porém sempre crítico do projeto estético que cercava esse
movimento, aliás, como bem lembrou Itazil Benício dos Santos (1993, p. 67):
O Movimento Modernista, chegado à Bahia em 1928, encontrou
receptividade no espírito aberto e rebelde de Jorge Amado, aos dezesseis
anos de idade, identificado com os seus princípios, embora dissentisse em
alguns aspectos. “Faltava ao Modernismo”, diz Jorge, “por exemplo, um
conhecimento do povo que nós tínhamos, e que os escritores modernistas não
tinham absolutamente.”
É bastante óbvio que Amado, na citação acima, estivesse se referindo ao perfil
elitista que teve o Movimento Modernista de 1922, em São Paulo, o qual, apesar de
artístico, não tinha caráter popular, visto que fora apoiado pelas elites economicamente
representativas daquele estado e tinha, como lideranças, homens oriundos da classe
média alta paulista, como bem expõe Santos:
“O Modernismo”, diz Jorge Amado, “é um movimento de classe que nasceu
na órbita dos grandes proprietários de café. Formalmente, o Modernismo é
uma transposição para o Brasil dos movimentos que surgiram na Europa,
após a Primeira Guerra – Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo... Esses
movimentos influenciaram jovens paulistas da grande burguesia: Oswald de
Andrade, filho de um grande fazendeiro, muito rico, Antônio de Alcântara
Machado; e aqueles que não eram ricos, como é o caso de Mário de Andrade,
protegido por uma dama riquíssima de São Paulo, Dona Olívia Penteado... O
Modernismo foi patrocinado pelos homens ricos de São Paulo, como Paulo
Prado, autor de Retrato do Brasil”. (SANTOS, I., 1993, p. 66)
Por seu perfil contestador, pela dimensão crítica das suas obras e pelo seu
envolvimento e filiação ao Partido Comunista, Amado é, durante muito tempo, bastante
perseguido dentro do Brasil. Suas obras traziam um perfil de texto-denúncia e tocavam
em questões que, na conturbada década de 30, era quase proibido apontar. Falar da
situação de miséria que viviam as pessoas, mergulhadas em cortiços fétidos e sobrados
49
imundos, desassistidas pelo poder público, ou expor a realidade dos trabalhadores do
cacau, bem como denunciar as condições de trabalho dos operários do cais do porto, o
racismo e a diferença entre negros e brancos na Cidade da Bahia, renderiam ao autor
algumas prisões, exílios e perseguições eternas, dentro e fora do seu país.
O autor sofre sua primeira prisão em 1936, por motivos políticos: acusado de
participar do levante ocorrido em novembro do ano anterior, em Natal — chamado de
“Intentona Comunista” —, é detido no Rio. No ano seguinte, 1937, Amado viaja pela
América Latina e depois vai aos Estados Unidos. Enquanto está fora, sai, no Brasil, o
seu livro Capitães da Areia, bastante polêmico, ao expor abertamente a realidade da
infância brasileira. Mas, quando chega à Belém, vindo do exterior, Amado é avisado
pelo escritor paraense Dalcídio Jurandir do golpe de Vargas. Foge para Manaus, mas lá
é preso. Mais tarde, seus livros considerados subversivos são queimados em plena
Salvador, por determinação da Sexta Região Militar. Segundo as atas militares, foram
queimados 1.694 exemplares de O País do Carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Mar Morto
e Capitães da Areia. (ALMEIDA, 1979, p. 128)
Em 1946, Jorge Amado é eleito, aos 34 anos, deputado federal pelo Partido
Comunista Brasileiro, para compor a Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de
redemocratizar o país ao fim da ditadura de Vargas. Dois anos depois, o seu mandato é
cassado, em razão do cancelamento do seu registro junto ao Partido Comunista, e
Amado se exila na França, onde conhece vários artistas e intelectuais europeus. Em
fevereiro de 1948, sua casa no Rio é invadida por agentes federais, que apreendem
livros, fotos e documentos.
Apesar das críticas e perseguições, Jorge Amado recebeu em vida vários
prêmios e indicações importantes por sua obra, a exemplo do Prêmio Juca Pato - 1970,
da União Brasileira de Escritores, como "Intelectual do Ano" e, no ano seguinte, divide
com Ferreira de Castro o Prêmio Gulbenkian de Ficção, entregue na Academia do
Mundo Latino, em Paris. Vale salientar também que a União Brasileira de Escritores,
presidida por Peregrino Jr., apresenta, em Estocolmo, a candidatura formal de Jorge
Amado ao Prêmio Nobel de Literatura, em 1967. Embora o escritor recuse tal indicação,
a UBE insiste em apresentar novamente a sua candidatura ao Nobel, em 1968. O
escritor concorda e, em 1994, vê sua obra ser reconhecida com o Prêmio Camões, ao
que muitos dizem, o Nobel da língua portuguesa.
Mas, em maio de 1999, o autor é hospitalizado para fazer exames de rotina e
tratar de um mal-estar digestivo – era o início de algumas complicações de saúde, que o
50
acometeriam nos próximos anos, tornando-o, cada vez mais, recluso. Amado
comemora, em agosto de 2000, com poucos amigos e a família, seus 88 anos. Vive
deprimido por se encontrar quase sem enxergar, sob dieta rigorosa, privando-se do que
muito gostava: de escrever, de ler um bom livro e de um bom prato. No dia 21 de junho
de 2001, Jorge Amado é internado com uma crise de hiperglicemia e tem uma fibrilação
cardíaca. Após alguns dias, retorna a sua casa, porém, em 06 de agosto, volta a se sentir
mal e falece na cidade do Salvador, às 19h30min. A seu pedido, seu corpo foi cremado,
e suas cinzas foram espalhadas em torno de uma mangueira em sua residência, no Rio
Vermelho.
2.3 TRAJETÓRIAS ENTRECRUZADAS
Se a falta de uma ação retrocessiva por parte da crítica acomete o escritor Jorge
Amado, do mesmo mal sofre José Luandino Vieira. Parte da crítica, especializada ou
não, coloca a sua obra como sendo parte de um projeto literário que começa não a partir
da publicação do seu primeiro livro A Cidade e a Infância, publicado em 1957, mas
muito à frente, quando do lançamento do livro Luuanda, em 1963, como definiu a
professora Rita Chaves, ao afirmar que “Livro chave na história do escritor, também por
razões extra-literária, Luuanda marca o início de um processo de escrita que seria
radicalizado nos textos seguintes.” (CHAVES, 2005, p. 22, grifo meu)
Em definitivo, os textos produzidos pelo autor e que antecedem aos seus livros
publicados quase não são mencionados, ou seja, uma vida literária gestada desde a
infância, quando da produção dos seus primeiros jornais, poesias e contos, é extraviada
do discurso histórico-biográfico sobre esse escritor, fazendo-o ser concebido como
resultado único de um projeto literário que se forja no calor da guerra de libertação
nacional e, não, como um escritor, cuja forja se dá ainda na infância, com a convivência
nos musseques de Luanda, e com a sua percepção, mais tarde, na adolescência, de fazer
parte de uma nação sob domínio colonial. Para alguns trabalhos, esses mencionados
textos praticamente inexistem:
Se em seus primeiros textos (A Cidade e a Infância, A Vida Verdadeira de
Domingos Xavier, Luuanda e até mesmo Velhas Estórias) a estrutura ainda
segue o ritmo tradicional da linearidade, embora sempre quebrados pelos
51
flashbacks, o mesmo não ocorre nos textos posteriores [...]. (CHAVES,
2007, p. 78, grifo meu)
A reflexão que ora se realiza serve não só para revelar as lacunas existentes na
crítica literária acerca dos dois autores, como também para apontar mais um traço de
semelhança em suas biografias, ou seja, a invisibilidade de um período de suas vidas de
fundamental importância para o reconhecimento e entendimento a respeito da formação
literário-subversiva de um “homem de letras”. Quando se analisa a biografia desses dois
escritores, percebe-se outro fio indutor que os liga e os identifica, e tal fio é justamente
o da subversão sob o manto do comunismo. Jorge Amado e Luandino Vieira carregam
em suas vidas um histórico de lutas contra a repressão praticada pelos regimes de
exceção. A política de Getúlio Vargas no Brasil da década de 30 e a de António de
Oliveira Salazar em Angola, nos anos 60, deram o tom da reação desses escritores-
intelectuais e teriam contribuído para formar uma resistência política sob o manto do
“estético”. Em uma carta, enviada, da cadeia, a seu amigo, o intelectual Carlos
Everdosa, Luandino Vieira revela a consciência do seu papel enquanto escritor, na luta
pela libertação de Angola do regime colonial:
Faltam poucas horas para embarcar no “Cuanza” rumo a Cabo Verde – ou
assim dizem. Li a tua carta e aproveito estes curtos momentos para te enviar
algumas linhas, talvez as últimas que recebas de mim antes do regresso geral
à nossa terra, às nossas coisas, ao nosso povo. É muito difícil nesta altura
dizer qualquer coisa; mas podes afirmar aos amigos e companheiros que
procurarei sempre ser digno da confiança que têm em mim; que, nas minhas
possibilidades e dentro do meu particular campo de ação – o estético – ...
tudo farei para que a felicidade, a paz e o progresso sejam usufruído por
todos. (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)
Encontram-se ainda, na continuidade da carta, elementos que colocam Luandino
no lugar de um escritor cônscio da rede existente entre as nações – tal rede, inclusive,
teria a missão precípua de fornecer o combustível que iria possibilitar aos “irmãos
escritores” a permanência na luta contra a opressão:
O meu livro, o livro da Linda afinal, chegar-te-á talvez com mais trabalhos
selecionados para a 2º edição. Se a conseguirem aí em edição de bolso era
52
optimo para ir a concurso da Sociedade Portuguesa de Escritores. Depois
enviem ao Jorge Amado (Brasil) para ver se conseguem uma edição lá. Não
é pelo livro, claro, é pelo que ele pode representar como “arma” para a nossa
libertação. (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)
A referida relação com Jorge Amado, além de evidenciar a consciência de
Luandino de que, em outros lugares, escritores outros, por meio da edição dos seus
livros, lhe fariam eco, também aponta a certeza do caráter militante da literatura pelo
mundo, como disse Vima Lia Martin (2000, p. 120), sobre a carta supracitada:
[...] Vale ainda ressaltar a referência de Luandino Vieira a Jorge Amado,
escritor brasileiro que apresentava posições políticas progressistas e que
certamente apoiava a luta de libertação angolana. A importância atribuída a
uma edição brasileira do livro naquele momento reforça o caráter militante
assumido pela literatura, que se torna efetivamente uma arma de combate
contra a repressão colonial.
Dentre todos os laços que tentam unir Jorge Amado e Luandino Vieira, uma
questão parece de grande importância: o fato de os dois escritores terem sido exímios
leitores. Mais importante ainda que esse dado é analisar o que liam os autores em
estudo, quais obras compunham o cânon estudado por eles, de onde vinham essas obras
e por que as liam. Para começar a responder a essas indagações, cumpre saber que
ambos os escritores foram “pupilos”, ou seja, tiveram “mestres” que os iniciaram no
universo das letras. No caso de Jorge Amado, a história de vida desse autor dá conta de
relatar que o seu iniciador foi o padre Cabral, seu professor no Colégio Antônio Vieira –
que teria ficado impressionado com uma redação feita por ele, cujo tema era o mar, e
teria, a partir de então, estabelecido uma espécie de “tutela literária” sobre o escritor,
apresentando-lhe vários autores, dentre os quais figuram Jonathan Swift e Daniel Defoe.
No que se refere a José Luandino Vieira, a sua biografia bem como os seus
relatos orientam para a observância da existência de igual tutela literária, dessa vez
advinda de outro, também escritor, António Jacinto – amigo mais velho que, na infância
do autor, teria disponibilizado a sua biblioteca para que tanto Luandino quanto outros
garotos de mesma idade a frequentassem. Também cumpre relatar que, segundo
Luandino, António Jacinto, a princípio, deixava-o ler o que quisesse, porém, em dado
momento, começaram as indicações e até determinações de leituras – foi nesse ínterim
53
que Luandino acabou encontrando a obra de Jorge Amado, por intermédio de António
Jacinto:
O António Jacinto pôs-nos a sua biblioteca à disposição e nós lemos muito
[...] Lembro-me que li o Gorki em caderninho, publicado em fascículos.
Tinha, sobretudo os naturalistas, tinha os russos, os populistas, os naturalistas
russos, quase todos, tinha também os franceses, Zola, Balzac, dos
portugueses, Camilo Castelo Branco estava tudo, Eça de Queiroz... Então nós
fomos lendo aquilo tudo. Recordo-me que António Jacinto disse: “agora
basta vocês vão ler é este autor” e me entregou um livro que se chamava “as
vinhas da ira” de John Steinbeck. Nós lemos Steinbeck e depois lemos Jorge
Amado, Raquel de Queiroz, Lins do Rego e também Steinbeck, Hemingway
[...]. (LABAN, 1980, p. 110, grifo meu)
O debate que se inicia no começo deste capítulo leva a reflexão em torno das
ideias concernentes à “influência”. Luandino, em várias entrevistas que deu, afirmou-se
influenciado pelas leituras que fez ao longo dos seus estudos e contatos com obras
literárias. “De início essa literatura influenciou-me. Os escritores do nordeste, sobretudo
Jorge Amado, influenciaram-me.” (LABAN, 1980, p. 93). O escritor afirma influências
portuguesas – Eça de Queiroz – e brasileiras – os chamados “sertanistas do nordeste”.
Vale salientar que, malgrado a afirmação do autor, o que se entende aqui como
influências é totalmente diferente da visão tradicional e antiga formulada no interior das
teorias clássicas francesas, as quais preconizavam a existência de textos fontes que
dariam possibilidade de existência a outros textos, por meio da imitação. Acredita-se
aqui que ser influenciado implica tão somente entrar na atmosfera ficcional de diálogo
estético, ou seja, conectar-se à corrente artístico-comunicativa que cada obra de arte cria
ao redor do artista. Isso remonta ao debate em torno da questão da própria ideia de
comparatismo, iniciado, na década de 1930, nos Estados Unidos, por René Wellek
(2011. p. 123), para quem “[...] Obras de arte, no entanto, não são simples somatórios de
fontes e influência; são conjuntos em que a matéria-prima vinda de outro lugar deixa de
ser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura.”
Realmente, o pensamento de Wellek pode ter fundamento, visto que a
contribuição recebida por um autor, vinda de outrem, poderá se transformar em outra
matéria diferente da original. Mas, é necessário o cuidado no entendimento do que
afirma Wellek, pois o uso do termo “assimilação” só terá fundamento aqui, se entendido
como o entendeu, por exemplo, Paul Valéry (apud Nitrini, 2010, p.132) – para quem
“assimilação” seria uma “[...] fonte de originalidade, isto é, como a intrusão do novo na
54
criação.” – ou, ainda, como entendera Silviano Santiago (2000, p. 20), a assimilação
como forma de “[...] surpreender o modelo original em suas limitações, suas fraquezas,
em suas lacunas”. O fato de um escritor ter lido outro por si só não diz muita coisa,
quando da análise comparada entre autores e textos. Assim, o fato de Luandino Vieira
ter lido Jorge Amado, só por essa constatação, não se chegaria a entender em que plano
eles se aproximam ou se repelem. Melhor seria provavelmente tentar entender quais
referências estéticas, resultantes das leituras, ficaram em Luandino e que talvez o
tenham auxiliado na produção de uma obra com vocação para a denúncia e a defesa dos
menos favorecidos; ou, até mesmo, tentar perceber os pontos de distinção entre a
narrativa de Luandino e a de Jorge Amado que apontem as divergências na forma de ver
e sentir questões sociais semelhantes.
2.3.1 DUAS OBRAS DE SUBVERSÃO
Sabe-se, e quem bem informa é a escritora Inocência Mata, que “As literaturas
africanas, metonímias do percurso histórico dos países, parecem hoje coincidir no
percurso da sua existência funcionando como textos-memória da História dos países.”
(MATA, 2006. p. 17, grifo do autor). Isso leva a crer que mergulhar na ficção angolana
é, ao mesmo tempo, submergir na história da própria nação angolana, ou seja, é encarar
as narrativas como sendo testemunhos de um processo histórico, que, muitas vezes,
escapa à percepção de outras fontes historiográficas. À luz disso, intenta-se evidenciar a
importância que tinha, e tem, um escritor dentro de uma sociedade, principalmente
naquelas embebidas em regimes autoritários, lastreados pela violência institucional e
pela castração de direitos. Fica muito evidente, nas obras dos escritores em questão, a
manifestação da resistência e da denúncia de eventos, praticados pelos regimes de
exceção contra a população. Essas obras trazem em seu bojo a marca da subversão
política e da resistência popular, orquestrada por escritores que, acima dessa condição,
são, a bem da verdade, responsáveis pela abertura de frestas por onde a liberdade
sempre anseia transitar.
Talvez, a obra de Luandino que mais evidencia o seu caráter subversivo seja A
Vida Verdadeira de Domingos Xavier, onde ele narra a vida de Domingos Xavier –
tratorista, morador do musseque, que trabalha na construção de uma barragem do rio
55
“Kuanza”, em Cambambe. É preso, acusado de conspirar contra o regime colonial, e
torturado até a morte, para revelar os nomes dos envolvidos na conspiração. Com essa
obra, percebemos o clima de “texto-denúncia” que o autor intenta passar, como forma
de levar talvez o povo angolano a agir em determinado sentido. Domingos Xavier morre
sem revelar à polícia política os segredos da sua gente. Apesar das torturas, “[...]se
portou como homem, não falou os assuntos do seu povo, não se vendeu.” (VIEIRA,
1977, p. 162), e provavelmente essa seria a mensagem que Luandino queria passar a
todo o povo angolano, uma mensagem de “resistência” e fé, na luta contra o regime
colonial. Mais do que um herói, Domingos Xavier é uma metonímia do sofrimento e
batalha da nação angolana. É, por assim dizer, a representação simbólica da força e do
desejo de liberdade angolanos, pois, não obstante a violência da polícia, Domingos
resiste, sem revelar os seus, pagando, com a vida, o desejo de ver o seu povo liberto da
opressão imposta pelo regime colonial.
Jubiabá, por sua vez, é a obra de Jorge Amado que talvez mais desvele a visão
aguda do escritor para os problemas sociais. A obra narra a saga de Antônio Balduíno, o
Baldo, pelas ruas da Cidade da Bahia, sua infância, passando pela adolescência até se
tornar adulto. O autor opta por colocar na narrativa uma ordem de apresentação dos
fatos que contraria a sequência natural do desenvolvimento humano, ou seja, Antônio
Balduíno inicia a narrativa já na idade adulta, passando à infância sofrida logo no
capítulo seguinte. Com isso, é possível crer que Amado intenta apresentar Baldo como
produto de toda uma realidade de miséria, abandono e maus-tratos, vivenciados no
morro do Capa-Negro. Como a sua tia, a velha Luiza, enlouquece e é internada em um
hospício, Baldo é levado à cidade, para viver na casa do Conselheiro Pereira, onde
conhece a bela Lindinalva, filha do conselheiro. Desde então, a imagem de Lindinalva
passa a permear a mente de Baldo, daquele momento até a idade adulta.
Da casa do conselheiro, Balduíno foge e vai morar nas ruas, vivendo de esmolas
junto a um grupo de moleques da sua idade. Quem analisa as obras amadianas não deve
perder de vista um fator preponderante na vida literária desse escritor: a sua profunda
veia política, lastreada pelos dogmas do comunismo. A obra Jubiabá é, grosso modo,
quase uma “ode” ao comunismo, pois toda a narrativa gira em torno de questões
defendidas e apontadas pelos comunistas da década de 1930. Questões como a causa da
pobreza, que estaria ligada a desassistência estatal; as condições de trabalho da classe
operária; ou, ainda, o próprio debate em torno da relação entre o homem e o meio,
56
muito em voga nos idos dos anos 30. Nessa perspectiva, Carlos Magalhães (2011, p.
139) relata que:
Na verdade, é nos anos 1930 que o pensamento político transformador e de
rupturas mais se robustece, o que permite afirmar-se ser essa a década em que
a ideia da revolução do proletariado amadurece e ganha vulto e se identifica
com as ideias socialistas/comunistas.
Faz-se indispensável destacar que, em Jubiabá, a própria questão da greve
como meio de luta do operariado está bastante evidenciada, fechando o ciclo em torno
da propagação da ideologia do Partido Comunista, ao qual Amado era filiado.
José Luandino Vieira e Jorge Amado representam vozes importantes no tecido
literário de seus países. A narrativa amadiana aproxima-se de temáticas vivenciadas pela
população baiana, seus espaços, sua cultura e, principalmente, sua fé religiosa. Prova
disso são os lugares em que geralmente se desenvolvem as tramas urbanas do autor: o
centro da cidade – as ruas e becos do Pelourinho, bem como as subidas e descidas das
ladeiras da montanha e Taboão – na verdade, metonímias do espaço urbano baiano.
Esses espaços, conhecidos ou imaginados pelo grande público, parecem
transportar o leitor para dentro da obra, provocando intensa ligação com as narrativas,
derrubando barreiras entre o lido e o experimentado. Outro fator de expressivo relevo
nas obras amadianas é a questão linguística. Jorge Amado sempre trouxe para as suas
obras o falar das ruas, a máxima expressão do falar popularesco e coloquial, bem como
o falar litúrgico das religiões de matriz africana ou do próprio Catolicismo. Pode-se
depreender que a inclusão do falar popular nas tramas amadianas constitui uma
importante forma de subversão, visto que, o falar popular, em muitos momentos, exibe
uma vertente não prestigiada da língua e sua presença na narrativa estabelece uma
tensão entre as variantes linguísticas4, principalmente, com a variante considerada de
prestígio – possibilitando “espaço” e “vez” ao falar das camadas desprestigiadas,
revelando uma forma de expressão que muitos desejariam abafadas.
Já Luandino Vieira faz dos musseques o seu assunto principal – da gente que
vive nos bairros pobres de Luanda, bairros que ele muito bem conhece, por ter sido,
___________________________
4 Sobre esse assunto, ver Bagno (1999).
57
durante toda a infância, morador dessas comunidades – e parece escutar a alma de cada
espaço que compõe esses locais. Para o escritor, contar “estórias”5 é, ao mesmo tempo,
contar a “história” do povo angolano, é dar voz aos despossuídos, é fazê-los perceber a
riqueza das suas culturas e das suas línguas.
A inclusão do Kimbundo nas narrativas luandinas, mais que marcar a tentativa
de subversão linguística, como já foi afirmado anteriormente, expressa uma forma de
manter viva uma língua genuinamente angolana, de elaborar a sua resistência e
preservação por meio da língua do colonizador. Também se pode afirmar que tudo isso
representa um modo de conservar a existência da cultura de Angola, pois, assim como
se afirma que adquirir uma nova língua significa adquirir uma nova cultura, o
desaparecimento de uma língua significaria a perda de um imenso patrimônio cultural
presente na memória de um povo – é o caso da língua portuguesa, a do colonizador,
que, ao se impor à língua do colonizado, tanto em Angola quanto no Brasil, também
impôs um imenso apagamento cultural.
A forma de resgate, pelo colonizado, das suas culturas – vilipendiada pelo
colonizador – está justamente no apelo à memória, sempre representada nas narrativas,
tanto de Amado quanto de Luandino, pela presença do “mais velho”. Em Jubiabá, o
símbolo dessa memória encontra-se, direta ou indiretamente, representado pelo “velho
macumbeiro” Jubiabá. Suas metáforas, suas curas, rezas e conselhos traduzem bem o
saber advindo da cultura oral e, de igual forma, desvelam a profunda relação entre o
homem e sua corrente ancestral:
Jubiabá trazia sempre um ramo de folhas que o vento balançava, e
resmungava palavras em nagô [...] Em certos dias até Jubiabá aparecia, e
também contava velhos casos, passados há muitos anos, e misturava tudo
com palavras em nagô, dava conselhos e dizia conceitos. (AMADO, 2000, p.
13-14)
O “feiticeiro” Jubiabá, herdeiro da tradição cultural africana, é a representação
do antigo, da cultura e do saber popular, que traz a toda comunidade o equilíbrio e a
garantia de preservação cultural por meio da memória. Na narrativa, sua posição no
___________________________
5 O autor prefere o uso desse termo a outros, como narrativa, contos etc.
58
morro do Capa- Negro é a de um “generalista”, pois está apto a resolver problemas
diversos, bem como aconselhar e transmitir saberes. Sobre isso, Amadou Hampâté
Bá (1982, s/p.) afirma que:
O conhecimento africano é imenso, variado. Concerne a todos os aspectos da
vida. O "sábio" não é jamais um "especialista". É um generalista. O mesmo
ancião, por exemplo, terá conhecimentos tanto em farmacopéia, em "ciência
das terras" - propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de
terra - e em "ciência das águas", como em astronomia, em cosmogonia, em
psicologia etc. Podemos falar, portanto, de uma "ciência da vida": a vida
sendo concebida como uma unidade onde tudo está interligado,
interdependente e interagindo.
Já em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luandino também lança mão da
presença do “mais velho”, encerrado no personagem vavô Petelo – um velho
marinheiro, que, apesar da tímida participação na trama, é quem desencadeia toda a
história. O velho Petelo é o responsável em levar mensagens acerca de qualquer fato
estranho na comunidade envolvendo os seus membros e a PIDE – a polícia política do
Império. Tais mensagens são passadas para Xico Kafundanga – uma espécie de contato
entre os articuladores do movimento. Logo, o velho é como um elo que liga a
comunidade ao movimento anti-colonial, sendo corresponsável pela força e articulação
de tal movimento, sem, com isso, despertar a atenção da repressão:
[...] – O Menino, você vê ainda. Quando brincas naquele cajueiro do Posto,
se você vê tem preso, vem me avisar, logo-logo.
E, quando isso sucedia, miúdo Zito deixava os outros meninos com
brincadeira no meio e corria na cubata onde vavô, sempre sentado debaixo da
mandioqueira ou na porta, sorria no sol.
Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá
iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava o mano Xico, um dos
afilhados do velho marinheiro. (VIEIRA, 1977, p. 12)
Essa importância do “mais velho”, nas tramas luandinas, aparece diluída,
disfarçada em simples personagens, que, de uma forma ou de outra, carregam o peso e
dão o tom da narrativa. O Velho Petelo é símbolo de um saber, cuja transmissão é oral –
sendo por isso, forte –, e o velho, na tradição angolana, traz à tona, via oralidade, toda a
59
história de que os mais novos necessitam para ir adiante à luta pela liberdade. Sobre
isso, continua Hampâté Bá (1972, s/p.):
A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão rigorosa que se pode,
com diversas confirmações, reconstituir os grandes acontecimentos dos
séculos passados nos mínimos detalhes, especialmente a vida dos grandes
impérios ou dos grandes homens que ilustraram a história africana [...].
Jorge Amado e José Luandino Vieira simbolizam, por meio das suas obras –
aparentemente diferentes – as bases de uma resistência que se dá, muitas vezes, no
plano da subjetividade, razão pela qual se torna complexa a tentativa de análise
comparatista dos textos, ignorando-se a existência de elementos subjacentes. Os dois
autores demonstram possuir, em seus imaginários, referências estéticas, capazes de
traduzir, em linhas, as tensões peculiares à atmosfera que respiram. Suas narrativas
representam a tentativa de desenvolvimento, no plano social, de uma cultura
revolucionária dentro de sociedades distintas, mas que encerram em si necessidades que
as tornam iguais. Os autores conseguem codificar, em seus textos, elementos que
representam a chave para o despertar crítico dos indivíduos vitimados pelos regimes de
exceção, os quais possuem, como única linguagem, a tortura e a repressão desmedida.
As obras dos referidos escritores abrem um importante espaço para o debate
acerca da ideia do que seria a identidade cultural, oportunizando, assim, as
investigações em torno da concepção de “herança” ou “influência” literária e
possibilitando um exercício de reflexão sobre a noção de “local” e “universal” na
literatura. Acredita-se que a história de Domingos Xavier poderia ser passada em
qualquer lugar do mundo (e a qualquer tempo) onde imperasse a lei da repressão e do
cerceamento de direito, pois, como afirmou Garcia Canclini (1999, p. 148) “A
identidade surge, na atual concepção das ciências sociais, não como uma essência
intemporal que se manifesta, mas como uma construção imaginária que se narra”. O
próprio Luandino reconhece a importância de se pensar sobre a identidade cultural nas
suas obras, quando afirma:
Posso está errado, posso está errando mesmo, mas continuo a pensar nisso,
(na identidade cultural) é uma coisa, quase diariamente eu me confronto
60
comigo próprio: é se realmente todo o meu viver diário me está cada vez
mais metendo, no mundo sócio-cultural, sócio-econômico-cultural que é
Angola. Portanto se cada vez mais estou sendo mais angolano, porque é a
única maneira de atingir o universal. Sobretudo eu penso que como escritor,
só com o abarcar o mais total possível desta ambição, de abarcar a realidade
total, é que depois, em termos culturalmente particulares, isso pode ser dado
para o mundo, de uma maneira que seja uma mensagem universal. (LABAN,
1980, p. 22)
É possível notar que, desde as origens, a necessidade de estudos comparados
envolvendo literaturas de sistemas literários distintos se deu pelo fato da observância da
intrínseca relação entre nação, política e literatura. A prática do comparatismo literário é
antiga, e quase sempre, se pautou pela tentativa de análise do “outro” – ou seja, perceber
a literatura do diferente seria o mesmo que passar a entender esse “diferente”, esse
“outro”. É chegada talvez a uma percepção da imbricada relação entre o comparatismo e
a geopolítica, visto que a atitude de comparar uma literatura com a outra quase sempre
teve uma ideia voltada para a observação da diferença do estrangeiro6. Dada a intensa
prática de conquista que sempre acometeu o homem europeu, o conhecimento do outro,
via literatura, significa o reconhecimento da lógica que governa o imaginário alheio, as
suas potencialidades e fraquezas. Segundo Brunetière (apud NITRINI, 2010, p. 21), um
dos primeiros defensores da literatura comparada:
[...] a história da literatura comparada estimulará em cada um de nós, francês,
ou inglês, ou alemão, a compreensão da maior parte das características
nacionais de nossos grandes escritores. Nós nos constituímos somente nos
opondo entre nós; nós nos definimos somente nos comparando entre nós; e
não chegamos a nos conhecer a nós mesmos quando conhecemos somente a
nós mesmos.
A necessidade de conhecimento de si, na relação com o outro, parece naquela
conjuntura, fator decisivo para o europeu. Para ele, conhecer a si próprio requer
conhecer o “diferente”, ou seja, perceber o “outro” que habita além das fronteiras e que
possui outra identidade, outra cultura. Assim, a literatura comparada torna-se importante
aliada nos estudos acerca da identidade cultural na Europa, como bem afirma Nitrini
(2010, p. 21):
___________________________
6 Ver Said (2000).
61
[...] Convém lembrar que o termo “literatura comparada” surgiu justamente
no período de formação das nações, quando novas fronteiras estavam sendo
erigidas e a ampla questão da cultura e identidade nacional estava sendo
discutida em toda a Europa. Portanto, desde suas origens, a literatura
comparada acha-se em íntima conexão com a política.
Quando se trata de dois autores de nacionalidades diferentes, mas falantes de
uma mesma língua, torna-se evidente o questionamento acerca do imaginário que ambos
possuem e que os faz produzir uma literatura curiosa, se comparada. À primeira vista,
não há nada em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier que possa lembrar Jubiabá,
assim como, em primeira mão, a obra Nós, os do Makuluso e Tenda dos Milagres são
completamente diferentes, ou, ainda, João Vêncio: os seus amores nada tem a ver com
Capitães da Areia. Os seus espaços são diferenciados, seus personagens apresentam
estruturas psicológicas diferenciadas, os focos narrativos se enunciam de formas
particulares, o desenrolar narrativo não é igual nessas tramas. Mas, o que existe nessas
obras que as relacionaria, ou seja, qual o fio indutor que as ligaria? Só o fato de serem
escritas em língua portuguesa? Crê-se que não. O próprio Luandino supõe que há algo
mais entre angolanos e brasileiros, que se expressa por meio das narrativas:
[...] traziam livros dos escritores brasileiros, do nordeste sobretudo, que
tiveram grande papel na formação quer literária, quer política. Tudo isso
tinha uma proximidade muito grande, não sei porquê. Porque nossa realidade
era diferente, mas havia, há qualquer coisa, talvez fosse o uso da língua, da
linguagem. (DAVID, 2006, p. 131)
Acredita-se só ser possível chegar a respostas para as dúvidas expostas acima,
pelo que diz o próprio Luandino, quanto às aproximações das realidades, caso conceba-
se a obra literária como um todo universal e a entenda como sendo um todo
comunicativo. O escritor, enquanto artista, quando escreve, o faz com o intuito de
comunicar, de dialogar artisticamente com qualquer outro ser sensível à sua arte. E isso
leva a crer que é essa dimensão artístico-comunicativa da literatura que a faz criar
62
imagens a partir da realidade de cada país. E tal realidade forma pontes com outras
margens, alimentando um intenso trânsito de imagens. É isso que é percebido entre
Brasil e Angola, entre Luanda e Bahia.
63
3. A CIDADE DA BAHIA E A CIDADE DE LUANDA: PONTES IMAGÉTICAS
Quando se analisa a história das cidades de Salvador e de Luanda, depara-se
com questões e fatos históricos semelhantes, concernentes à fundação e ao
desenvolvimento dessas cidades – as quais foram fundadas por portugueses – Tomé de
Souza e Paulo Dias de Novais, respectivamente –, que lhes trouxeram a marca da
arquitetura portuguesa, como edificações de igrejas e fortificações.
A Vila de São Paulo de Luanda – tempos depois, Luanda –, tem a sua fundação
registrada em 25 de janeiro de 1576. (BENDER, 1980, p. 56). Foi a primeira cidade de
base europeia fundada na costa ocidental da África subsaariana. De posse de uma carta-
donatário, dada pelo Rei D. Sebastião, Paulo Dias de Novais, comandando uma armada
de sete barcos com 100 famílias de colonos e 400 soldados, partiu para a ilha de Luanda
a 20 de fevereiro de 1575.
Segundo alguns historiadores, o século XVII poderia ser chamado de “século do
Brasil”, dada a relação direta e prioritária Luanda-Bahia. O abastecimento de escravos
aos fazendeiros brasileiros era a causa principal dessa relação. É oportuno salientar que,
até finais do século XVII, Luanda era um pequeno burgo, constituído pela parte alta – a
"cidade alta" –, onde se baseavam o poder, o clero e a burguesia. Paralelamente,
desenvolvia-se a zona baixa, com ponto de partida no atual bairro dos Coqueiros, onde
vivia uma população de degredados e comerciantes, voltados essencialmente para o
tráfico escravagista. Entende-se por oportuno trazer tais informações acerca das partes
altas e baixas da capital angolana, pois além de marcar certa semelhança topográfica
com a Cidade da Bahia, essa dicotomia terá grande relevância, no decorrer da análise da
narrativa luandina, no que toca à cidade de Luanda.
Concernente à estrutura urbana, vários pesquisadores já afirmaram ser o
abastecimento de água a grande “causa da cidade”, desde o início da história de Luanda
– o primeiro grande projeto aparece apenas em 1645, com os holandeses, e tinha em
vista criar um canal do rio Kuanza até a cidade. É importante abrir-se aqui um parêntese
para revelar que a obra de Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,
relata a história de um tratorista, Domingos Xavier, que trabalha justamente na
construção da barragem do rio Kuanza. E várias passagens da narrativa luandina
descrevem a ação do rio frente à possibilidade de barragens das suas águas:
64
Lá em baixo o Kuanza rugia, zangado, pra lá da saída do túnel de derivação,
as águas se suicidavam, subindo desesperadas muitos metros no ar e
deixando-se depois abater lá em baixo nas pedras, nos muros de defesa que
os tratores construíram [...] As águas falavam suas fúrias, agora impotentes,
recordando os rápidos pra lá dos muros, secos no sol, criando musgos nas
poças de água parada, finalmente quietas [...]. (VIEIRA, 1977, p. 71)
Percebe-se no fragmento da narrativa luandina, a presença de imbricamentos
histórico-ficcionais, comuns no texto desse autor, o que alude para inserção da narrativa
no que Inocência Mata chama de “escrita-testemunho”. Não só por conta disso, mas
também pelo que assegura Carlos Magalhães (2011, p. 35), para quem:
[...] o discurso historiográfico se enriquece a partir do diálogo com outras
abordagens, a literária, por exemplo, manifestação artística cujo mundo
simbólico e de representações tem ajudado a compor, a partir da visão da
intertextualidade, os princípios da “nova história”.
Ter o texto literário como uma forma de perceber a história significa dar uma dimensão
distinta a esses dois campos – o literário e o histórico: possibilita enxergar a narrativa
literária como representação do “real”, relacionando-a à própria noção de história
enquanto narrativa, ou, conforme Sandra Pesavento (1999, p. 62) “[...] adotar uma
postura que veja, na literatura, uma forma de pensar a história”.
Já a “cidade-fortaleza de São Salvador” – mais tarde, Salvador – foi fundada em
29 de março de 1549, conforme informa a historiografia oficial. (CARNEIRO, 1980, p.
46). Esse título de “cidade-fortaleza” tem ligação direta com as funções assumidas pela
referida cidade entre os séculos XVI e XVII. A edificação de fortificações na Cidade da
Bahia relaciona-se com a necessidade de defesa territorial contra as possíveis invasões,
conforme atesta Carlos Magalhães (2012, p. 32), para quem “A urbe-fortaleza
compreende sobretudo a cidade da Bahia como centro de onde emana a preocupação
com a defesa do território; estende-se do período que vai da fundação, no século XVI,
até o final do século XVII [...]”.
Relata-se que, por volta de 1536, chegou à região o primeiro donatário –
Francisco Pereira Coutinho –, também de posse de carta-donatário, concedida pelo Rei
65
Dom João III. O referido donatário fundou o Arraial do Pereira, nas imediações onde
hoje está a Ladeira da Barra. Esse arraial, doze anos depois, na época da fundação da
cidade, foi chamado de Vila Velha. Em 29 de março de 1549, chegam Tomé de Sousa e
comitiva em seis embarcações – três naus, duas caravelas e um bergantim –, com ordens
do Rei de Portugal de fundar uma cidade-fortaleza chamada do São Salvador. Nasciam
assim a cidade de Salvador e o Primeiro Governador Geral. Todos os donatários das
chamadas “capitanias hereditárias” seriam submetidos à autoridade do governador-geral
do Brasil, Tomé de Sousa. (CARNEIRO, 1980, p. 48-49).
Tanto Tomé de Sousa quanto Paulo Dias de Novais trouxeram em suas
expedições algumas centenas de pessoas, para iniciarem o povoamento das cidades e
constituirem o prisma demográfico que daria o tom daquelas localidades. Com Tomé de
Souza, chegaram padres jesuítas, médicos, farmacólogos, militares, degredados,
fidalgos e homens comuns. Acompanhando Paulo Dias de Novais, chegaram padres
jesuítas, mercadores, fidalgos, degredados, funcionários e militares.
As duas cidades em questão sofreram invasões holandesas. Luanda, em 25 de
agosto de 1641, tendo como principal consequência a interrupção do tráfico de
indivíduos escravizados para o Brasil. A retomada da referida urbe ao domínio
português deu-se, sob o comando de Salvador Correa de Sá, em 15 de agosto de 1648,
dia de Nossa Senhora da Assunção, passando a cidade a designar-se São Paulo da
Assunção. A história revela que tal atitude de Correa de Sá – de mudança do nome da
urbe – teria se dado pela semelhança inoportuna do nome anterior “São Paulo de
Loanda” com o nome “Holanda”.
Em Salvador, invasão holandesa deu-se em 09 de maio de 1624. A esquadra, sob
o comando de Jacob Willekens, aportou no Farol da Barra. Após alvejarem os canhões
da Ponta do Padrão, os 3.400 homens que a compunham renderam o governador-geral.
A permanência dos holandeses em terras baianas, no entanto, foi curta. Em 27 de março
de 1625, a Espanha enviou, como reforço, uma poderosa armada de cinquenta e dois
navios, sob o comando de D. Fadrique de Toledo Osório, marquês de Villanueva de
Valduesa, e do general da armada da Costa de Portugal, D. Manuel de Meneses. Foram
mais de 40 dias de batalha e, em 1º de maio, houve a primeira rendição. Outras
tentativas de invasão holandesa foram registradas na Bahia, mas nenhuma delas foi bem
sucedida. A Bahia ficou como o centro da luta pela expulsão dos holandeses, que
chegaram a ocupar Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte.
66
Esse breve resumo da história das duas cidades em cena, com foco em questões
muito peculiares, ocorre para se analisar as similaridades que podem ser percebidas,
quando da observância atenta das suas diversas representações no âmbito literário.
Luanda e Salvador, representadas nas obras A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e
Jubiabá, respectivamente, trazem as marcas do olhar dos seus autores, José Luandino
Vieira e Jorge Amado, verdadeiros cronistas citadinos, e revelam momentos
importantes na história dessas urbes, compreendidos ao longo das referidas narrativas e
de outros textos. Similaridades e contradições perceptíveis entre as cidades, suas
histórias e suas representações literárias, aqui serão de importante valia, visto que
balizarão as investidas, no sentido de descortinar as pontes formadas a partir das
imagens existentes entre as citadas narrativas por meio do urbano, pois, de acordo com
o que afirma Carlos Magalhães (2012, p. 40), “O texto artístico se apresenta como
instrumento por cujo intermédio são elaboradas representações das imagens
contraditórias da vida nas cidades [...]”.
É oportuno lembrar que o “velho navegador de Cabotagem” – Jorge Amado –
em Jubiabá, realiza um verdadeiro passeio pela “costa cultural” da Bahia, descortinando
detalhes que vão desde os tipos humanos presentes no interior do estado até a mais
esmiuçada análise dos becos e vielas que compõem a cidade do Salvador. Na obra em
estudo, o autor, a bordo de sua embarcação – o texto literário –, vai revelando detalhes
da estrutura topográfica e humana que forma a Cidade da Bahia, seus morros e seus
habitantes, suas luzes e suas ruas, seus mares e seus encantos. Em A Vida Verdadeira de
Domingos Xavier, Luandino, para realizar uma navegação pela cidade de Luanda,
coloca à sua testa o personagem velho Petelo – na verdade, Pedro Antunes, ex-segundo
marinheiro da “canhoeira” –, que é quem vai, em companhia do miúdo Zito, realizar a
viagem entre a cidade alta e a cidade baixa e, com isso, deixar evidenciar, em seus
trajetos, detalhes que vão dar ao leitor uma ideia da cidade de Luanda, dos seus
descaminhos e diferenças.
3.1 A CIDADE AMADIANA DA BAHIA
No que toca à literatura brasileira, ninguém representou mais a Cidade da Bahia
– Salvador – que Jorge Amado. Até pode-se afirmar, com alguma segurança, que a
imagem da Bahia tida pelo Brasil e o mundo é, em parte, amadiana. Existe uma Bahia
67
que se pode chamar de “real”, ou seja, de existência concreta, com os seus graves
problemas de ordens diversas, principalmente socioeconômicas – que, vez por outra,
recusa o rótulo de “terra da felicidade”, exibindo a sua real condição, com um povo
infeliz, heterogêneo, racial e culturalmente e mantenedores de antigos preconceitos. E
há uma Bahia de invenção literária, a “Bahia de Jorge Amado”, de pessoas e espaços
inventivados, com homens e mulheres, negros e brancos, que coexistem e que se inter-
relacionam, muitas vezes, em planos de igualdade – sobretudo no plano cultural –,
gerando uma ideia de democracia, agradável a leitores de diversas regiões do globo.
Acerca dessa relação entre cidade “real” e cidade “imaginária”, Carlos
Magalhães (2012, p. 19) estabelece dois pilares de representação nos romances urbanos
de Jorge Amado da primeira fase: “cidade real” e “cidade ideal”. Segundo Magalhães
(2012, p. 19-20), na “cidade real” “[...] pinta-se o mundo das mazelas sociais em que se
recortam os espaços da hierarquização reificante, produto da modernidade e
modernização capitalistas – a Bahia segregada dos deserdados e dos habitantes dos
desvãos [...]”; ao passo que na “cidade ideal”:
[...] há as recriações [...] da utopia socialista, produto do sonho de
transformação e mudança da sociedade capitalista, bem como as dos espaços
urbanos caros ao imaginário popular, às representações identitárias da
memória afetiva da cidade, do povo e do escritor intelectual.
Pode-se perceber que o autor chama de “cidade ideal” justamente a cidade
imaginada, idealizada no plano imagético, que se contrapõe ao cotidiano da “cidade
real”. Na direção desses debates a respeito da construção imagística da Bahia por Jorge
Amado e de suas implicações no plano da realidade, Derneval Andrade Ferreira (2007,
p. 69) afirma que:
[...] Os lugares e temas que se inserem na narrativa, com força expressiva e
com poder de estruturação, são imagens criadas pelo escritor reservando uma
Bahia particular com privilégios de realização da felicidade, espaço de
beleza, com uma descrição exótica única no mundo. É através da terra do
encanto, encontros e desencontros que Jorge Amado se consagra como
escritor, apresentando uma Bahia cujas representações diluem problemas e
dificuldades. Esse ícone imaginário, muitas vezes, sobrepõe-se a outras
“bahias” que também revelam significados importantes na construção do ser
baiano.
68
Com isso, percebe-se como os leitores são contaminados pela Bahia literária, a
ponto de, mesmo sem se reconhecerem nas narrativas, forçarem uma identificação com
o que a ficção criou. Assim sendo, homens e espaços se constroem – e são construídos –
a partir do ficcional, gerando uma ideia sobre o baiano muitas vezes discrepante, mas
que passa a identificar esse sujeito e a orientar as suas práticas sociais. Osmundo de
Araújo Pinho (1998, s/p.) afirmar que:
Dois conjuntos de textos são fundamentais para a fixação deste imaginário
sobre a Bahia e para a disponibilização objetiva de uma certa simbologia da
cultura baiana. Primeiro, o que chamo de "guias de baianidade". O segundo é
a obra de Jorge Amado.
De fato, os diversos romances amadianos de temática urbana também serviram não só
para cimentar imagens concernentes à gente da Bahia, mas para inventivar o próprio
espaço urbano baiano, provocando uma interpenetração constante do “real” pelo
“imaginado”.
Sabe-se ser discutível a concepção do que venha a ser o “real” e o “imaginado”,
pois, essas duas matérias costumam confundir o pesquisador, principalmente, quando da
análise de obras ficcionais referente à cidade. Ronaldo Costa Fernandes (2000, p. 30)
parece identificar, na prosa de ficção, essa espinhosa questão quando relata que “[...] a
cidade do romance é imaginária; algumas se parecem com cidades reais, outras são
inventadas[...]”. O autor segue identificando, no narrador do romance, a
responsabilidade deste por marcar a diferença entre a cidade real e a cidade inventada.
Ele afirma que o narrador da cidade inventada “idealiza um modelo” de cidade,
enquanto que o da cidade real “parte de uma realidade para estabelecer uma cidade que
é tão inventada quanto a outra”. Para o autor, a cidade real “[...] também pode soar falsa
se as relações dentro da obra não corresponderem aos dados da realidade.”
(FERNANDES, 2000, p. 30)
Faz-se aqui esse breve exercício de reflexão sobre o “real” e o “inventado”,
principalmente para apontar, por meio do romance, a flagrante infiltração entre os
citados conceitos e também para apontar a cidade plasmada no romance como sendo
intermediada pela necessidade de se ajustar a um tema. No caso de Jorge Amado, a obra
Jubiabá tentará inventar a Cidade da Bahia, criando uma ideia difusa sobre a
69
“baianidade”, levando os baianos a transitar entre a ideia criada e suas verdadeiras
práticas em sociedade.
Essa invenção tanto da Bahia quanto do baiano acaba por amparar-se em “[...]
uma concepção disseminada por diversos agentes sociais e onipresente nas afirmações
do senso comum em Salvador [...]” (PINHO, 1998, s/p.). Tal concepção “[...] se
apresenta como uma rede de sentido indefinida e abrangente capaz de interpretar e
constituir de determinada forma a auto-representação dos baianos.” (PINHO, 1998,
s/p.).
A Salvador retratada no romance Jubiabá é uma cidade que começa a se
modernizar e a exibir os sinais típicos de uma cidade em desenvolvimento, como a
presença de iluminação pública, transportes, cotidianas concentrações e agitações no
centro da cidade, uma intensa atividade portuária com mão de obra assalariada e,
principalmente, a presença da “greve”. Não obstante esses fatos, Carlos Magalhães
(2012, p. 25) afirma:
[...] o conceito de modernização urbana em Amado assume aspecto de
originalidade. Tal processo, segundo o escritor, deveria trazer no próprio bojo
a preocupação com alcançar-se um estágio de qualidade ética e social, de que
o povo seria beneficiário e não a prevalência dos processos excludentes, a
que a cidade é arremessada, com a reificação dos espaços urbanos.
Fica evidente, porém, que o termo “modernização”, no que toca à representação da
cidade em narrativas amadianas, assume significações distintas das de cunho positivista,
conforme ainda atesta Magalhães (2012, p. 29) acerca de Jorge Amado, “[...] O escritor
não se inscreve em princípios positivistas de modernidade indiferentes à história, à
tradição e à cultura urbanas.” A defesa de uma modernidade que se baseia na cultura e
no valor simbólico dos espaços é percebida, portanto, na representação urbana do
escritor baiano. Rafael Lucas (2004, p. 200) inclusive afirma que, na obra de Jorge
Amado:
Reencontraremos na representação do espaço urbano baiano os três aspectos
característicos da espacialidade amadiana: a topografia mítico-simbólica, a
geografia socializada e o espaço seletivo. A Bahia figura, logo de primeira,
como a cidade das origens e das confluências.
70
O que Rafael Lucas chama de “topografia mítico-simbólica” talvez seja a
relação de Jorge Amado com os morros e ladeiras, com a cidade baixa e a cidade alta.
As ladeiras e morros, nas narrativas amadianas, representam quase sempre a decadência
e relacionam-se com a própria ideia de queda. Pode-se observar que o fim destinado às
prostitutas, nas tramas de Amado, é sempre a ladeira, notadamente a do Taboão – onde,
por exemplo, a personagem Lindinalva, em Jubiabá, foi morar em seus últimos dias de
vida, corroída pelas enfermidades. Cumpre que se realize aqui um breve salto no debate,
para que se possa revelar questões atinentes à personagem Lindinalva – importante
elemento da trama –, e entender melhor a questão do espaço na obra amadiana.
No que se refere à Lindinalva, descrita por Amado (2000, p. 44) como
“magríssima e sardenta, de cabelos vermelhos e boca pequena”, tal personagem tem,
inicialmente, na narrativa, a sua vida limitada à casa da família, na travessa Zumbi dos
Palmares. Adiante, em Jubiabá, o trânsito da jovem personagem pela urbe vai
descortinar a singularidade da criação urbana de Jorge Amado, que dá evidência a
espaços, estigmatizados pela própria condição de vida dos seus habitantes. Lindinalva,
após a morte dos seus pais e da sua separação de Gustavo, seu noivo, resolve aceitar o
convite da cafetina Lulu, indo morar na pensão Monte Carlo, para “fazer a vida”. De lá,
prostituta e alcoólatra, ela irá para a ladeira do Tabuão – espaço que demarca uma das
chamadas “zona do baixo meretrício” da cidade. Segundo Amado (2000, p. 269), tal
ladeira é o lugar “[...] onde vivem as mulheres mais baratas e mais gastas da cidade.” e
que “[...] Da ladeira do Tabuão as mulheres só saiam ou para o hospital ou para o
necrotério [...]” (AMADO, 2000, p. 264).
Não é nenhuma coincidência que o local considerado “o fim” para as prostitutas
seja uma ladeira, numa breve alusão à queda. E é Jorge Amado (2000, p. 264) quem diz
que “Lindinalva desceu várias ladeiras [...]”, certamente fazendo menção à sua trajetória
de menina alegre de família à prostituta da ladeira do Tabuão. É curioso perceber como
Amado vale-se da topografia da cidade para contar a história e o destino dos seus
personagens, marcando uma extrema relação entre o homem e a urbe. Parece ser nesse
contexto que Carlos Magalhães (2012, p. 19) afirma haver, nas obras amadianas, “[...] o
mapeamento dos espaços da dor que se entrecruzam com os espaços urbanos decadentes
[...]”. Em Jubiabá, a cidade, enquanto espaço de desenvolvimento da narrativa, aparece
representando mais que um simples locus onde se desenrola a trama. As ladeiras do
morro do Capa-Negro, bem como as do Taboão, revelam os altos e baixos vivenciados
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pelas pessoas naquela cidade, e suas ruas “enlameadas” apresentam a situação em que
se encontra boa parte daquela gente.
Saindo da personagem Lindinalva e retomando o debate anterior, nota-se que
Amado, em suas narrativas urbanas, soube muito bem criar os espaços destinados aos
seus múltiplos personagens populares. Em suas narrativas, os locais onde se desenrolam
as tramas são espaços por excelência populares, espaços do povo. A primeira cena de
Jubiabá, por exemplo, tem a rua como cenário. É na Praça da Sé ou “largo da Sé”,
como sugere o romance, que acontece a luta entre Antônio Balduíno e o alemão Ergin:
O largo da Sé pegara uma enchente naquela noite. Os homens se apertavam
nos bancos, suados, os olhos puxados para o tablado onde o negro Antônio
Balduíno lutava com Ergin, o alemão. A sombra da igreja centenária se
estendia sobre os homens. Raras lâmpadas iluminavam o tablado. Soldados,
estivadores, estudantes, operários, homens que vestiam apenas camisa e
calça, seguiam ansiosos a luta [...]. (AMADO, 2000, p. 03-04)
Se os seus personagens são figuras do povo, entende-se a preferência do autor
pela introdução, em suas narrativas, de espaços populares. Amado sonda os becos e
vielas, os velhos sobrados nas ladeiras, as praças, as feiras livres, os bares e
principalmente a rua. “Há o mapeamento da cidade da Bahia, tomada como espaço do
qual brota o sofrimento social, mas a cidade é também representada como locus de onde
provêm a poesia e o sentido de magia e de mistério” (MAGALHÃES, 2012, p. 18, grifo
do autor). Em Jubiabá, a cidade sugere querer, ela mesma, narrar os acontecimentos que
envolvem a gente humilde dos seus espaços. Quem rememora isso é Jacques Salah
(2000, p. 87) quando afirmar que:
A Cidade da Bahia – igualmente chamada Salvador, Salvador da Bahia, São
Salvador da Bahia ou Bahia de Todos os Santos – é constantemente
personificada e vive no seu povo mais humilde, na massa eminentemente
africana que fervilha em suas artérias e becos carregados de História, e
também na sua natureza, sua cultura e seus ritos. Realidade criadora, sua
influência sobre o romance é preponderante e irreversível.
De acordo com a referida citação, portanto, tais espaços carregam histórias, e é a cidade
quem anseia por relatá-las. Porém, para que se possam decodificar tais relatos, advindos
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da cidade, necessário se fará, enxergá-la como algo maior que um simples cenário onde
se desenrola a trama, é fundamental concebê-la como protagonista, para que se possa
escutar mais e entender melhor suas histórias, seus personagens e seus espaços.
Nessa perspectiva, e na esteira das discussões sobre os espaços na narrativa de
Jorge Amado, Rafael Lucas (2004, p. 202) chama, de “espaços seletivos”, os locais
típicos das tramas amadianas. Em Jubiabá, esses espaços se encontram muito bem
definidos, e tanto o personagem central como os secundários os habitam. Na trama, é
notório que a rua pertence aos menores abandonados, bêbados, vadios e prostitutas –
Antônio Balduíno, por sua vez, na condição de garoto de rua, é dono desse espaço, e
Amado (2000, p. 53) descreve bem essa relação entre o “possuidor” e a “coisa
possuída”:
Antônio Balduíno agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os
Santos e do pai-de-santo Jubiabá. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua
casa era a cidade toda, seu emprego era corrê-la. O filho do morro pobre é
hoje o dono da cidade.
Em Jubiabá, além desse domínio sobre os espaços colocados por Jorge Amado,
seus personagens habitam locais de convergência, onde importantes decisões são
tomadas e grandes encontros acontecem. Um desses espaços é o “bar”, espaço de
confluência e confraternização, que aparece como símbolo de democracia e acaba por
testemunhar importantes fases da vida dos personagens. O bar, de nome sugestivo,
“Lanterna dos Afogados” contribui para, como um farol, guiar o “negro” Antônio
Balduíno e recolocá-lo no rumo do seu correto itinerário sempre que algo o faz dele
desviar. É no referido bar que Baldo encontra os seus amigos, que afoga as suas
mágoas, cai na bebedeira, recebe informações e instruções, faz reflexões e prepara-se
para enfrentar questões outras em sua vida. Em última análise, novamente traz-se aqui a
voz de Rafael Lucas (2004, p. 203) como um catalisador, para revelar que “[...] De uma
maneira mais geral, o bar popular, com sua vitalidade e seus dramas sociais, opõe-se aos
lugares ‘burgueses’ paralisantes de conformismos e de hipocrisias, seguindo a
semantização antitética de Jorge Amado.”
3.1.1 A CIDADE DE LUANDA(INO)
73
A cidade de Luanda foi contada e cantada por vários autores. Porém, foi em José
Vieira Mateus da Graça que Luanda encontrou representação peculiar, a ponto de diluir-
se no autor e emprestar-lhe o nome. Isso fez com que José Mateus passasse a ser José
Luandino, evidenciando uma simbiose “homem e cidade” que iria além do nome, antes
encontraria, no plano do imaginário, talvez, um dos seus maiores engendradores,
transformando o “amador” em “coisa amada”. Luandino carrega no nome a marca de
uma cidade sofrida pelas agruras do colonialismo e parece, no plano social, sofrer as
mesmas dores da urbe, ou seja, a invasão, a adulteração, a privação de liberdade, o
exílio e a fragmentação cultural.
A Luanda retratada em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier é uma cidade
ainda dominada pelo regime colonial – apesar de já se notar na cidade, articulações com
o objetivo de libertação nacional – e com uma iminente modernização. Domingos
Xavier – protagonista da trama – é um operário tratorista que trabalha numa empresa de
construção de barragem cujo objetivo é represar as águas do poderoso Kuanza –
principal rio de Angola, muitas vezes tido como símbolo de unidade nacional. Com
isso, Luanda começa a dar os primeiros passos na tentativa de se modernizar. Não
obstante as visões que se têm, na narrativa, do centro da cidade, com seus “carros
bonitos”, suas ruas pavimentadas e seus prédios de luxo – elementos típicos de uma
modernização, nos moldes do pensamento positivista –, a trama denuncia a existência
de uma Luanda periférica, das “cubatas”, isto é, das casas de pau-a-pique, de ruas de
barro batido e de musseques, sem o básico do saneamento. Walter Benjamin (1974, p.
17) chamou a atenção para essa questão ao dizer que “[...] As periferias são o estado de
exceção da cidade, o terreno em que ininterruptamente se desencadeia a batalha que
decide entre a cidade e o campo.”
A obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier traz, como denúncia, a
existência de uma modernização que acontece apenas em uma parte da cidade – a parte
onde vivem os brancos, e não-negros, pertencentes aos grupos de maior poder
econômico. É, como coloca Benjamin (1974, p. 17), “[...] a luta corpo a corpo dos
postes de telégrafos contra as piteiras, dos alambrados contra as altas palmeiras, dos
vapores dos fétidos corredores contra a sombra unida das bananeiras” [...].
Luandino Vieira cria, em suas narrativas, personagens que refletirão a própria
condição dos espaços da cidade de Luanda. Enquanto, nas narrativas amadianas, Jorge
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Amado parece partir dos espaços para contar as histórias dos personagens; Luandino
parece seguir em marcha contrária, partindo dos personagens para contar as histórias
dos espaços angolanos. Na trama, vários são os personagens que exibem a real condição
espacial de Luanda, tais como: Xico Cafundanga, um office-boy que representa o
funcionário burocrático a expor o espaço das grandes corporações que começam a surgir
na capital de Angola; Silvestre, homem branco, engenheiro, símbolo da presença da
técnica e do processo de construção de grandes obras de engenharia civil na cidade; e o
alfaiate Mussunda, que representa a presença na cidade dos funcionários autônomos,
organizados em oficinas e ateliês que ficam nos subúrbios de Luanda.
Francisco João – Xico Cafundanga para os seus – representa a presença do negro
alfabetizado em língua portuguesa que começa a fazer parte do mercado de trabalho
formal na cidade de Luanda, e tal formalidade se traduz, em algumas passagens da
narrativa, em elementos simples, como a “habitual farda de caqui” que o personagem
usa, ou na seguinte descrição feita pelo narrador: “[...] nessa tarde, cinco horas, o
contínuo Francisco João, da secção de contabilidade, pediu licença ao chefe e saiu mais
cedo [...]” (VIEIRA, 1977, p. 18). Não obstante a condição de trabalhador formal, na
trama, pode-se observar que Xico Cafundanga tem uma relação com a cidade que infere
um reconhecimento de uma cidadania fragmentada, face à sua condição de homem
negro, pobre e colonizado, dentro de um sistema racista e preconceituoso. A atitude do
personagem frente a um fato que ocorre no interior de um ônibus, em Luanda, no qual
um operário é humilhado por encontrar-se sujo, evidencia o seu receio de interferir em
favor do referido operário, por saber que “[...] se ia falar, na discussão ia nascer com
certeza a pancada e daí a polícia e a prisão durante dias ou semanas. Porque justiça de
polícia é justiça de quem manda, ele e o operário iriam de certeza para a prisão”
(VIEIRA, 1977, p. 40).
Na narrativa, ao tomar um ônibus, “Xico” transita do centro – que exibe uma
cidade comercial, urbana e com traços de modernidade, ou seja, grandes companhias e
agências de correios, carros luxuosos e trabalhadores formais – para a periferia –
marcada por uma cidade de existência quase que rural, das cubatas de pescadores, onde
“[...] mulheres sopravam seus fogareiros de latas, assavam peixes ou cozinhavam panela
de feijão, velhos pescadores cachimbavam nas portas ou filosofavam em grupos [...]”
(VIEIRA, 1977, p. 40-41). Essa questão aparece na obra certamente para denunciar a
histórica diferença entre o centro e a periferia da cidade no processo de urbanização,
como sugeriu Benjamin nas citações anteriormente colocadas. Enquanto o centro tem a
75
presença de pavimentação asfáltica, a periferia é carente desse elemento, que, mais uma
vez, é símbolo da fronteira entre ricos e pobres, negros e brancos. Tal diferença sugere
ainda o aparecimento dos musseques, que são áreas desassistidas, onde vive a maior
parte da população negra e pobre de Luanda.
A cidade, na obra de Luandino, serve como importante termômetro para se
medir a temperatura sócio-racial de Luanda. Por meio do urbano, o autor vai dando
conta de apontar as diferenças entre os grupos, denunciando as suas distintas condições
de vida.
O personagem engenheiro Silvestre, não obstante definir-se como angolano e ser
amigo dos angolanos negros, é símbolo de uma parcela da população angolana branca e
escolarizada que certamente habita a parte considerada nobre da cidade: “[...] lá em
cima, no topo dos morros frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários
brancos, e mais longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os
empregados superiores da empresa.” (LUANDINO 1977, p. 19) – evidentemente, tal
personagem é um desses empregados superiores, uma vez que a sua presença na trama
revela a condição de vida da população branca e escolarizada de Luanda, bem como a
existência de espaços privilegiados na cidade, os quais contrastam com as imagens da
maioria dos espaços de Luanda, a exemplo do chamado “bairro operário”, onde, por
sinal, vive o personagem alfaiate Mussunda.
Enquanto o autor, na citação acima, descreve a beleza da residência onde
provavelmente vive o engenheiro Silvestre; por outro lado, também o faz em relação à
casa do alfaiate Mussunda, porém apontando as mazelas da sua moradia, como pode-se
ver em:
A casa era uma construção pequena, de pau-a-pique, pintada de cor-de-rosa,
rodapé preto, daquela tinta que não presta e suja quem que se encosta nela. A
sala central, que dava saída no quintal por onde Miguel tinha entrado, era a
oficina. Aí dois aprendizes alinhavam ou retiravam alinhavos,
desmanchavam bainhas, faziam pequenos trabalhos sem responsabilidade.
(LUANDINO 1977, p. 65)
Pode-se perceber, na precedente citação, que Mussunda simboliza a presença do
trabalhador autônomo, repassando, ainda, o seu conhecimento para outras pessoas. Esse
personagem remete ao viver antigo dos angolanos – organizados em corporações, com
aprendizes e mestres destinados à subsistência e aos ensinamentos dos ofícios aos mais
76
novos. Parece que Luandino pretendeu, a partir dos seus personagens, evidenciar uma
realidade que se traduz não só pelo urbano, mas também pelo próprio mundo do
trabalho.
Acredita-se que, nas obras Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,
tanto a cidade descrita por Jorge Amado quanto a descrita por Luandino desvelam uma
realidade que se plasma nas diversas relações entre os homens e seus múltiplos espaços,
colocando a urbe como sendo o local das infinitas possibilidades de interação e
interpretação social.
Na esteira dos debates em torno das interações entre “homem” e “cidade”, e para
melhor se entender as múltiplas relações existentes entre esses dois elementos
comunicativos em ambas as obras, abre-se, a partir de agora – tal como na subseção
anterior –, um breve parêntese, para se analisar a relação entre uma personagem
feminina da obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e a cidade de Luanda, no
sentido de visualizar a referida cidade sob a marca da personagem secundária Maria,
esposa da personagem Domingos Xavier.
A participação de Maria na trama começa a partir da prisão do seu marido. Com
um filho pequeno – o miúdo Sebastião –, Maria se vê agora obrigada a peregrinar pela
desconhecida cidade de Luanda, à procura do esposo. Com isso, com o seu caminhar
pela cidade, a personagem acaba por exibir uma Luanda particular, ou seja, uma urbe
que se desvela sob o olhar de uma personagem secundária, que, com a prisão do
protagonista, ganha espaço na trama. Com essa personagem, Luandino parece querer
indiciar a necessidade de uma mudança no comportamento da mulher angolana – muitas
vezes submissa, questão típica de sociedades patriarcais –, para que ela venha a
abandonar o lugar comum que sempre lhe foi estabelecido pelos homens e passe a
interagir com a cidade, agora na condição de sujeito – e é justamente a partir dessa
interação que Maria expõe uma cidade que transita entre as imagens sociais da pobreza
e da miséria e as imagens das paisagens naturais de Luanda.
Esse trânsito da personagem pela cidade inicia-se, num primeiro momento, após
a prisão de Domingos Xavier – como já foi dito. Maria, então, parte da região de
Cambambe para Luanda, notadamente para o musseque do “Sambizanga”, a fim de
encontrar uma velha amiga – sá Teté –, e, assim, conseguir apoio para procurar o seu
esposo. Chegando lá, ela é aconselhada por amigos a ir até a “Administração”, falar
com o secretário, na esperança de encontrar Domingos. É nesse instante, na caminhada
de Maria rumo à vila onde funciona o referido órgão, que se dão as primeiras interações
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da personagem com a cidade da qual ela se encontrava longe havia doze anos. Nesse
momento da narrativa, Luandino (1977, p. 30) revela uma outra cidade, uma Luanda
multicores:
Naquele dia Maria fez uma pequena trouxa e se dirigiu na vila, manhã muito
cedo, estrada abaixo. O sol ainda não nascera e o capim molhado do cacimbo
da noite estava bom nos pés. Ao longe as silhuetas azuis dos morros se
perdiam na fina camada de cacimbo que lhes envolvia. O Kuanza brilhava
suas águas preguiçosas, adormecidas naquele sítio largo, junto à jangada. A
vila se escondia entre as acácias floridas, bananeiras, milheirais, tudo na sua
volta era verde, fresco e novo e as águas do rio tinham também cor verde.
Muito diferente das descrições de Luanda feitas em outros momentos da trama,
Luandino agora revela uma cidade que parece demonstrar, em cores, a sua sensibilidade
para com a causa da peregrina personagem, colocando em destaque a cor “verde”,
possivelmente em alusão à esperança que Maria deve ter de encontrar o seu
companheiro. Na descrição do autor, Luanda é agora uma cidade na qual, não obstante o
asfalto, os carros, os prédios e as companhias, símbolo da modernidade positivista –
ainda se pode ver os “[...] januários voando baixo, em bandos, nas pequenas flores
amarelas do capim [...]” (VIEIRA,1977, p. 30). No entanto, por trás de toda essa beleza,
a caminhada de Maria pelos musseques da cidade desnuda também a dura realidade
enfrentada por seus habitantes e deixa transparecer a situação de miséria desse povo:
[...] Maria reparando como assim o musseque estava cheio, casa com casa,
muita gente vivendo na mesma cubata, meninos nus de grandes umbigos
chupando ranho, brincando na areia, ou sentados, fixando seus olhos grandes.
(VIEIRA, 1977, p. 54)
A peregrinação de Maria pela cidade parece um pretexto de Luandino para trazer
à tona uma realidade de Luanda que se plasma na diferença entre os seus espaços e,
consequentemente, na diferença entre os indivíduos que os habitam. Uma das
passagens da obra que evidencia essa questão é a interação entre Maria, não habitante
da cidade, mas do campo, e miúdo Joãozinho, morador da urbe:
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[...] Maria, naquela hora da tarde, desceu com o menino até perto daquelas
acácias, na estrada de alcatrão, para adiantar apanhar maximbombo. Aí o
menino esperto da cidade foi pondo conversas com Maria, falando como era
este maximbombo e ele mesmo quem ficou com as moedas para pagar, o que
ele mais gostava. (VIEIRA, 1977, p. 59, grifo meu)
Luandino, através dessa passagem, marca a diferença entre o intenso processo de
urbanização de Luanda em relação a outras áreas. A cidade-capital já dava sinais de
modernização, com a introdução de transportes coletivos com tarifas definidas, por
exemplo. Com o trânsito da personagem pelas ruas de uma Luanda desconhecida, o
autor consegue alinhavar as pontas soltas que explicam o excludente processo de
urbanização da cidade e possibilita a provocação de olhares múltiplos na direção dos
seus distintos espaços.
3.2 LUANDA E BAHIA: MULTIPLICIDADES
A cidade sempre foi – e continua a ser –, palco das mais variadas histórias. O
espaço urbano é já, há bastante tempo, o local preferido pelos autores para darem vida
às suas narrativas, talvez pelo fato de ser a cidade naturalmente um lugar de pouca
síntese e muito conflito. Assim sendo, o olhar arguto do autor mira a cidade como um
local com predisposição para envergar ricos acontecimentos, pela peculiar natureza do
espaço urbano, que congrega diferentes classes sociais e diferentes matizes étnicas.
Questões como a da própria urbanização desmedida, da exploração dos trabalhadores
pelas fábricas, da infância abandonada, do embate entre negros e brancos, e várias
outras temáticas figuraram no espaço urbano.
Com esse explorar constante, criaram-se sobre a urbe várias representações, ou
seja, uma pluralidade de imagens foi projetada por diferentes autores sobre esse
intrigante espaço, resultando em um universo infinito de múltiplas visões. Como afirma
Sandra Pesavento (1999, p. 09), a cidade é objeto “[...] de múltiplos discursos e olhares,
que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem, por
isso, serem uns mais verdadeiros ou mais importantes que os outros.” Tomando-se essa
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multiplicidade de olhares sugerida por Pesavento, tornam-se interessantes análises sobre
as representações citadinas, visto que com elas será possível não só desvelar as diversas
imagens projetadas acerca da cidade, mas também ajudar a pensar e perceber formas de
abstração de certas sociedades.
O abordar constante da urbe pela literatura acaba por criar um imaginário em
torno desse espaço, produzindo, vez por outra, uma ideia do urbano que infiltra a
realidade ou, nos termos de Audemaro Taranto Goulart (2006, p. 144), que “desrealiza”
a realidade. A cidade passa a ser, então, uma metáfora com sentidos flutuantes, ou seja,
passa a assumir o significado resultante de cada abstração realizada nessa direção. E é o
escritor o ator que, por entre as linhas traçadas em cada narrativa, metaforiza a realidade
e reconstrói, no plano subjetivo, uma cidade antes real, concreta, lançando-a nos
arquivos do imaginário popular. Isso produz, certamente, uma identificação com a
metáfora diferente da que se tem com a cidade concreta, conforme Taranto Goulart
(2009, p. 144) “[...] a literatura opera, pois, com uma linguagem que é um verdadeiro
mosaico de cenas [...]”.
Segundo Sandra Pesavento (1999, p. 10), o imaginário é um sistema de ideia e
imagem de representação coletiva que tem a capacidade de criação do real. Indo-se além
desse conceito, o imaginário é uma espécie de planilha constantemente alimentada por
múltiplos elementos, resultante quase sempre do olhar privilegiado que se lança sobre
algo. Logo, o olhar que o escritor lança sobre a cidade, para construir a sua narrativa,
encarrega-se de nutrir o imaginário coletivo concernente ao urbano e inventar a cidade
“real”, pois como afirma Pesavento (1999, p. 08), “[...] a representação do mundo é, ela
também, parte constituinte da realidade”.
Sendo verdadeira tal afirmação, então, ao lançar-se luz nas representações
literárias sobre a cidade, poder-se-á ter uma noção de uma vida citadina passada ou
presente ou, pelo menos, imaginá-la. Poder-se-á sentir o modus vivendi de uma
determinada sociedade, bem como, pensar a constituição do elemento humano e suas
relações sociais. Além que, poder-se-á perceber e entender sociedades que estão
próximas ou distantes, no tempo ou no espaço, e até comparar as diferentes formas de
codificação estética. Logo, partindo-se desse princípio, é que se tenta aqui escutar uma
“conversa” entre dois imaginários – o do baiano Jorge Amado e o do angolano
Luandino Vieira – acerca da cidade, e perceber nessas duas margens, se a mesma brisa
que sacode a mulemba em Luanda viaja, através do Atlântico, e balança os coqueiros da
80
Cidade da Bahia. Isto significa perceber se há relações nas formas como esses autores
representam o urbano.
Provavelmente o que aproxima esses dois autores, além de questões outras, é a
função que eles assumem, em seus países, de vanguarda de defesa dos desfavorecidos,
de crítico das mazelas sociais, ou, ainda, de trincheira sociopolítica – condições, por
sinal, em sintonia com o que disse Walter Benjamin (1985a, p. 188), segundo o qual
“[...] todo artista devia escolher – consciente ou não – a serviço de quem colocaria a sua
arte”. E, nas narrativas em estudo, tanto Amado quanto Luandino, promovem um tipo
de política que coloca a cultura como elemento de libertação e luta dos menos
favorecidos – cultura a qual, nos termos de Carlos Magalhães (2012, p. 17) “[...] é
olhada como a memória do povo, como universo simbólico para onde confluem as
diversas representações de sua vida [...]”. É fundamental, no entanto, entender que
Amado e Luandino, embora pareçam dialogar, em suas narrativas a partir de lugares
distintos, o fazem com códigos muito similares, que se interpenetram.
Nada parece mais caro, nas obras dos referidos autores, que o imaginário em
torno da cidade. Seja ela a Cidade da Bahia ou a cidade de Luanda, as ruas e avenidas,
becos e vielas, subidas e descidas marcam a estrutura topográfica que dá vida aos
romances e novelas desses autores. Em Jubiabá e em A Vida Verdadeira de Domingos
Xavier, a cidade, como personagem, fala a partir de suas construções e espaços sociais,
conforme assegura Magalhães (2012, p. 197) quando afirma que “[...] o texto literário
faz a leitura da escrita da cidade através dos traços e impressões deixados pela
arquitetura e pelo traçado urbano [...]”. Os diálogos percebidos entre a cidade e os
personagens das tramas se dão por meio de um intrínseco relacionamento que vai além
do verbal, mas invade o plano da imaginação e das trocas estéticas. É na cidade onde
poesia e reivindicação social, arquitetura e denúncia se misturam, para temperar obras
originalmente marcadas por apelos contra as injustiças que acometem os
desfavorecidos.
Amado e Luandino fazem da cidade o espaço ideal para desenrolar narrativas,
cuja temática aponta para a denúncia das mazelas sociais. Sendo assim, ambos os
escritores parecem ouvir a voz de Benjamin (1985b, p. 108) quando o referido autor
sugere:
81
Construir topograficamente a cidade, dez vezes, cem vezes, a partir de suas
passagens e portas, de seus cemitérios e de seus bordéis, de suas estações [...]
E as mais secretas figuras da cidade, as suas camadas mais profundamente
interiores: assassinatos e rebeliões, os nós sangrentos nos laços das ruas,
gemidos do amor e calores ardentes.
A construção topográfica da cidade, sugerida por Benjamin, é o que irá ocorrer
nas narrativas aqui estudadas, onde tanto Amado quanto Luandino irão delinear o
urbano, sondando os diversos espaços que o integram e revelando as tensões que os
caracterizam.
Para a professora Eneida Leal Cunha (2000, p. 128):
[...] a cidade é a verdadeira cena em que se encontram o autor moderno e seu
público, é o espaço que lhes é familiar e, ao mesmo tempo, inquietante; [...]
para a modernidade, a cidade assume importância e interesse extraordinários,
como o cenário onde convivem intimamente – e confrontam-se – os grupos
sociais, as diferenças de classe, de etnia, de gênero [...].
Nessa marcha, nas narrativas em estudo, a Cidade da Bahia e a cidade de Luanda são
palco das mais constantes demonstrações de injustiça e abandono social, perpetrados
pelo poder público, de quem se espera a função de assegurar a salvaguarda da
população, evitando o seu estado de abandono e miséria – ou, como assevera Carlos
Magalhães (2012, p. 38), São “Espaços das epidemias, da dor social, do arremesso ao
mundo da sarjeta e da indignidade [...]”. Tais espaços revelam a realidade vivenciada
pelos diversos grupos sociais e exibem as tensões presentes em uma mesma cidade,
dividida por vários critérios.
José Luandino Vieira, enquanto autor moderno, denuncia já nos seus primeiros
escritos – como no livro intitulado A Cidade e a Infância –, o clima de tensão entre
negros e brancos, bem como a exclusão e a marginalidade em Luanda. Na obra,
Luandino desvela, por meio de uma estética amparada no urbano, uma modernização
excludente que, desde muito cedo, coloca pobres e ricos, brancos e negros literalmente
em lados opostos no plano social e topográfico. O livro apresenta uma série de dez
contos onde a temática do urbano se faz presente. Merece atenção especial o conto A
fronteira de asfalto, no qual o autor engendra as primeiras provocações a respeito da
separação entre negros e brancos, que se dá pelas malhas topográficas – ou seja, a
82
própria cidade estabelece, por meio de fronteiras consuetudinárias, os limites de trânsito
e convivência entre os habitantes. Ricardo e Marina, personagens do conto, encontram-
se separados por uma fronteira não declarada, mas sentida por todos que reconhecem a
diferença entre o barro vermelho e o asfalto. O barro é a deixa para a população negra e
pobre dos bairros de Luanda, que enxerga, na cor avermelhada do barro batido, o seu
local de existência, e que sempre pode perceber no asfalto o início de um campo, cuja
travessia inspira cuidados. O “asfalto” é outro “mundo”, é o “mundo” dos brancos e
ricos, e Ricardo, na condição de garoto negro, reconhece tal diferença:
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia
passeio. Nem árvores e flores violetas. A terra era vermelha. Piteiras. Casas
de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areias eram sinuosas. Uma
tênue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava
ao fundo [...]. (VIEIRA, 2007, p. 40)
Com isso, Luandino Vieira entra de vez no debate em torno da separação entre
habitantes de uma mesma cidade e usa o urbano para expor o elemento que
estabeleceria o lugar de cada indivíduo na estratificada cidade de Luanda: a cor. Ricardo
é negro, portanto, a ele cabe a “terra vermelha”; Marina é branca, a ela compete o
“asfalto”. A terra vermelha e o asfalto são, respectivamente, metonímias da cidade alta,
pobre e desassistida, e da cidade baixa, dos carros de luxo, das casas grandes e limpas,
que separam os bairros negros de Luanda – os chamados musseques –, dos bairros dos
habitantes brancos. O conto é, ao mesmo tempo, um debate em torno das cores
avermelhada do barro e negra do asfalto, numa alusão metafórica aos embates inter-
raciais que também criam as suas próprias fronteiras e estabelecem, direta ou
indiretamente, o lugar de cada homem em um tácito mapa de navegação social.
Resenhar uma parte do mencionado livro serve como estratégia para se analisar
o que acontece na obra em estudo, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Nela, a
separação entre os habitantes também segue prismas raciais, visto que a maioria pobre
da cidade de Luanda é negra e mestiça; flagra-se ainda o triste contraste entre as duas
cidades – alta e baixa –, a dura realidade encarada pela população trabalhadora e a
população desempregada, sem falar na própria divergência estrutural que divide os dois
espaços. Luandino conduz o leitor a cada parte de Luanda, apresentando suas
especificidades e fazendo com que a cidade, direta ou indiretamente, conte a verdadeira
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história por trás de uma novela que aparentemente deseja mostrar apenas um caso de
injustiça e cerceamento de direito. O autor, em sua narrativa, deixa transparecer que a
estória de Domingos Xavier é apenas um pretexto para o desenvolvimento de histórias
que vão, por meio do urbano, apresentar seus verdadeiros personagens.
No que concerne à cidade de Luanda, o tempo da narrativa dá conta de informar
que os fatos nela se passam ainda sob a égide de um regime colonial – questão que leva
a crer em uma situação de separação entre colonizados e colonizadores, perpetrada pelo
confinamento da população negra, nativa, nos morros, e dos não negros, descendentes
dos colonizadores, no “asfalto”. Tudo isso é, antes de tudo, uma norma da
administração colonial, que sempre reserva o melhor para o colonizador em detrimento
do colonizado, criando assim uma consciência do lugar de cada um, em uma
estratificada cidade.
Nas narrativas de Luandino, a relação dos personagens com a cidade de Luanda
é muito forte e evidente. No romance Nós, os do Makuluso, por exemplo, já nas
primeiras páginas, o protagonista, que é quem narra os fatos, ainda garoto, expressa os
seus sentimentos sobre aquela cidade e, direta ou indiretamente, a desnuda e apresenta o
seu fascínio sobre ela:
Maninho sorri, todo ele se deixa encharcar de sol na ruela, olha-lhe e eu sei o
que ele está a dizer-lhe nesse riso: que, da nossa terra de Luanda, eu gosto só
os sítios poucos; que, da nossa terra de Luanda, chamo só Luanda à Rua dos
Mercadores, à Rua das Flores, à Calçada dos Enforcados, aos musseques do
antigamente... (VIEIRA, 2004, p. 11)
Assim, com uma estética comprometida com os mais pobres e desassistidos, Luandino
dá voz aos marginalizados e revisita os seus espaços, apresentando os musseques, os
becos, as ladeiras – espaços destinados à pobreza –, em contraste com os espaços
privilegiados de Luanda – os quais, na narrativa, o autor deixa de evidenciar, mas
sugere a sua diferença em relação aos demais.
Na obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, é o miúdo Zito – criança
negra, pobre e habitante do musseque – quem, quando em visita a outros locais na
cidade, tacitamente percebe a diferença entre estes e aquele onde vive. Em definitivo, a
existência de uma espécie de barreira, com limites muito bem conhecidos por todos, faz
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com que o musseque e a cidade pareçam zonas isoladas em uma mesma cidade, também
constituindo o asfalto como fronteira:
[...] Zito gostava ir. Além de ver tudo com seus olhos curiosos, os carros
bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas [...] Zito e vavô
Petelo cruzavam as ruas asfaltadas e desciam no meio do rio negro que
desagua na cidade branca. Calçada da Missão abaixo, com árvores velhas
chorando seiva nos passeios [...] No musseque, a essa hora, as mulheres, os
inválidos, os desempregados, os vadios, se arrastam nas mais diferentes
ocupações. (VIEIRA, 1977, p. 12, grifo meu)
Toda essa descrição ora observada pelo miúdo Zito, ora descrita pelo narrador,
traz à tona a questão dos apartheids sociais que estão presentes em Luanda no processo
estabelecido pelo Império colonial português; e acaba por atualizar uma realidade
contida nas grandes metrópoles, onde a separação dos grupos segue critérios conhecidos
por todos: a cor e a condição social. Luandino faz sentir a diferença entre uma realidade
e outra, entre o barulho e a movimentação presente na cidade baixa – com suas ruas
asfaltadas, seus carros e casas grandes – e o musseque – com seus barracos de teto de
zinco, suas ruas de terras vermelhas, seus vadios e trabalhadores acuados “pela rusga
geral dos cipaios e das tropas [...]” (VIEIRA, 1977, p. 12). Essa separação denunciada
na narrativa faz com que os indivíduos habitantes dos espaços menos privilegiados
criem, em seus imaginários, a ideia de inferioridade em relação aos outros indivíduos
dos espaços privilegiados, causando sensações de deslocamento quando um penetra o
espaço do outro. É o que acontece na narrativa com o personagem miúdo Zito, para citar
um exemplo, no momento de sua ida à cidade, à procura de Xico Kafundanga: por ter a
necessidade de entrar na companhia em que este trabalha, miúdo Zito é acometido por
certo medo, como quem está na iminência de adentrar em um espaço para si proibido:
[...] É uma casa muito grande e alta, com muitos vidros. As paredes parecem
é só vidro, por isso miúdo Zito sempre tem medo de entrar. Se sente preso
quando empurra a porta e se acha em tão grande sala, toda cheia de figuras
que não percebe. (VIEIRA, 1977, p. 13-14)
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O sentimento de deslocamento expresso no comportamento do citado
personagem atualiza modernamente um sentimento comum, vivenciado por habitantes
de zonas consideradas periféricas em relação aos chamados “bairros nobres”. O
sentimento que se percebe no comportamento de miúdo Zito é de que nada pertencente
à “cidade” estava para ele – como as paredes de vidro da companhia – mas, sim, as ruas
enlameadas do musseque, a poeira do barro vermelho, os barracos de pau-a-pique
cobertos de zinco. Para ele “[...] menino do musseque, roto e sujo, coçando pé descalço
no pé descalço [...]” (VIEIRA, 1977, p. 14) – a cidade de Luanda era território proibido,
o qual lhe é permitido, no máximo, admirar.
É curiosa a habilidade do autor para usar, na obra, de alguns elementos que
realçam a denúncia da separação entre os habitantes de Luanda. Luadino faz das
descidas e subidas das ladeiras da cidade elementos comunicantes da própria condição
de vida dos indivíduos. O “alto” e o “baixo” significam mais que simples elementos da
topografia de Luanda – eles querem revelar, acima de tudo, o valor de cada habitante
nessa urbe. Na trama, o “alto” e o “baixo” revelam valores inversos na própria acepção
terminológica – ou seja, quem está no alto são os pobres e, no baixo, os mais abastados.
Encontram-se explicações a esse respeito, observando o que Rafael Lucas (2004, p.
200-201) afirma sobre o espaço amadiano. Para o autor, é Jorge Amado quem provoca
uma subversão dessa ordem do “alto” e “baixo”:
[...] Desta realidade que releva da geografia social Jorge Amado extrai um
novo simbolismo que ele explora bastante nas suas evocações da Bahia. É
preciso subverter uma expectativa rígida segundo a qual a verticalidade
associada à hierarquia social remete a classes sociais baixas, a um povo de
baixa renda, a bairros miseráveis, à escória da sociedade. Segundo a mesma
lógica, o espaço ascensional corresponderia ao das classes abastadas: elevar-
se na sociedade. Ora, uma tal associação não é mais pertinente no espaço
baiano. Os lugares elevados da geografia urbana, em particular as ladeiras e
os morros significam sempre a decadência social. É a própria idéia de queda
que é parasitada pela da ascensão decadente. De agora em diante subir nesse
espaço urbano é decair [...].
Certamente, as ideias de “alto” e “baixo”, na narrativa de Luandino, parecem
seguir o mesmo código da narrativa amadiana, que associa a ideia de “alto” à própria
ideia de queda – ainda nos termos de Rafael Lucas. Porém, essa relação de inversão que
se estabelece entre as significações dos termos, em determinado momento, faz-se
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ausente na narrativa de Luandino e, diferentemente da amadiana, assume a sua
dimensão culturalmente consagrada – ou seja, do “alto” como símbolo de elevação
social. Tal fato pode ser verificado na descrição a seguir que Luandino faz da morada
destinada aos diversos trabalhadores da barragem:
O acampamento ficava longe, fora do estaleiro, metido numa baixa, à
esquerda da estrada, onde se alinhavam as cubatas iguais dos operários e
trabalhadores negros da barragem. Um regato de água escura e porca corria
pela sanzala, carregando consigo os detritos diários dos habitantes, e perdia-
se, em baixo, num tufo de capim verde. [...] Lá em cima, no topo dos morros
frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários brancos, e mais
longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os empregados
superiores da empresa [...]. (VIEIRA, 1977, p. 19, grifo meu)
Parece que o autor joga com as referências ligadas às ideias de “alto” e “baixo”, visto
que o uso dos elementos da geografia de Luanda força o leitor a imaginar os habitantes
dos diferentes lugares da cidade, pois ora estar “no alto” significa status, ora,
desprestígio; e estar “por baixo” também pode significar poder ou demérito.
Ana Rosa Neves Ramos muito bem traduz e fundamenta a ideia da estratificação
entre grupos, e o faz a partir da reflexão acerca da desigualdade e da exclusão –
voltando à questão dos altos e baixos. Para ela:
[...] A desigualdade implica um sistema hierárquico de integração social.
Quem está embaixo está dentro, e a sua presença é indispensável. Ao
contrário, a exclusão assenta num sistema igualmente hierárquico mas
dominado pelo princípio da exclusão: pertence-se pela forma como se é
excluído. Quem está embaixo está fora. Estes dois sistemas de hierarquização
social, assim formulados, são tipos ideais, pois que, na prática, os grupos
sociais inserem-se simultaneamente nos dois sistemas, em combinações
complexas [...]. (RAMOS, 2006, p. 58)
A radiografia da cidade de Luanda que se estabelece em A Vida Verdadeira de
Domingos Xavier, feita pelo prisma sócio-racial, pode ser transposta para a Cidade da
Bahia, de Jubiabá. Na obra, Amado, apesar da consciência de que tal cidade não vive
sob o domínio colonial – como Luanda –, empenha-se em mostrá-la dividida entre
pobres e ricos, reservando, a estes, os o requinte dos sobrados em ruas calmas e
tranquilas; e, aqueles, os morros, as vielas e as sarjetas da cidade baixa. Amado não
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evita pôr em discussão as divergências que os separam nem as diferenças em suas vidas,
desveladas a partir da descrição das residências do morro do Capa-Negro e da cidade
baixa:
No morro do Capa-Negro as casas eram pequenas, de barro batido, portas de
caixão, cobertas de zinco. Tinham duas divisões apenas: a sala de jantar e o
lugar onde dormiam. Mas o sobrado do comendador, não. Como era grande,
quantos quartos tinha, alguns até fechados, um quarto de hóspedes sempre
mobiliado esperando alguém que nunca vinha, salas enormes, cozinha bonita,
a latrina melhor que qualquer casa do morro! [...] Gansos passeavam no
jardim florido e mangueiras cresciam na alameda que ficava ao lado da casa.
(AMADO, 2000, p. 43)
Ideia semelhante à de Luandino acerca do local de cada indivíduo na estrutura
social e topográfica surge na narrativa amadiana, que, ao discutir a posição social dos
habitantes da cidade, define a sua posição na topografia. Em Jubiabá, Jorge Amado
sonda o imaginário da criança e também desnuda a conflituosa relação entre a infância e
a cidade. No capítulo que leva o nome de “Infância Remota”, Baldo – similar a miúdo
Zito –, olha de cima do morro para a cidade baixa e se encanta com as suas luzes, com
os rumores que sobem de lá para o morro, com o barulho que caracteriza a Cidade da
Bahia:
[...] Antônio Balduíno ficava com os olhos espichados em direção à cidade,
esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão da noite
invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor
estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os
negócios do dia e o crime da noite passada. (AMADO, 2000, p. 8)
Fica evidente o entendimento de Amado sobre a existência de duas cidades, de
dois espaços sociais distintos, que apresentam realidades igualmente distintas: o morro e
a cidade. O morro – como já foi descrito pelo autor – enverga os seus barracos de porta
de caixão, com suas ruas cheias de lamas e repletas de indivíduos marginalizados, sejam
eles negros, mestiços ou brancos despossuídos. A cidade reflete outra realidade, a dos
casarões e sobrados de assoalhos envernizados, com igrejas suntuosas, bordadas a ouro,
e casas de azulejos azuis. Seus proprietários são comerciantes portugueses, médicos,
engenheiros, políticos e outros homens de negócios. Portanto, não se precisa ir muito
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longe para identificar o futuro reservado aos habitantes desses diferentes espaços, e, o
próprio Amado revela, já nas primeiras páginas do romance, a vida e o destino que
aguarda a cada um desses partícipes dos referidos espaços:
A vida no morro do Capa-negro era difícil e dura. Aqueles homens todos
trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios ou
conduzindo malas de viajantes, outros em fábricas distantes e em ofícios
pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, mungunzá,
sarapatel, acarajé, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam roupa, negras
eram cozinheiras em casas ricas dos bairros chiques. Muitos dos garotos
trabalhavam também. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais.
Alguns iam para casas bonitas e eram crias de famílias de dinheiro.
(AMADO, 2000, p. 25)
Similar ao que acontece na obra A Vida Verdadeira de Domingo Xavier, onde
Luandino evidencia a discrepância entre os moradores da cidade alta e os da cidade
baixa, no trecho acima, Jorge Amado descortina as fronteiras que separam os homens
do morro dos da cidade, denunciando a flagrante discrepância existente entre eles por
meio da exposição dos seus ofícios. O autor evidencia ainda a existência de certa
tradição social que se encarrega de promover o sucesso dos brancos ricos e vitimar os
habitantes do morro, condenando-os a uma vida de perpétua humilhação e miséria:
[...] Já sabiam do seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde
ficariam curvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida
nas fábricas enormes. E não se revoltam porque desde há muitos anos
vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser
médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser
criados destes homens. Para isto é que existia o morro e os moradores do
morro. (AMADO, 2000, p. 25, grifo meu)
Bem ao estilo de texto-denúncia, com essa descrição, Amado expõe “as
vísceras” de uma sociedade marcada por certo determinismo social e, ao mesmo tempo,
atualiza uma questão que se debate contemporaneamente: a desassistência social, por
parte dos órgãos públicos, aos bairros das periferias brasileiras, que têm produzido a
mão-de-obra proletária para a cidade, enquanto que os bairros chamados “nobres” têm
se encarregado de gestar os patrões. A cada dia é mais patente o abismo que separa os
habitantes das periferias – flagrantemente negros – dos habitantes dos “centros” –
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geralmente brancos, os quais quase sempre ocupam as melhores posições na sociedade,
têm acesso à melhor educação, preenchem as vagas dos cursos mais privilegiados das
universidades públicas, bem como a maioria esmagadora dos cargos de chefia em
empresas públicas e particulares, perpetuando e consagrando, assim, uma cultura de
dominação.
Dessa forma, Amado se antecipa na discussão em torno da necessidade de ações
reparadoras – atualmente muito em voga na agenda de discussões dos movimentos
sociais – ao evidenciar a urgência de uma interferência que venha a baralhar as relações
sociais e quebrar um teorema estabelecido para perpetuar os estágios vivenciados pelo
morro e pela cidade. Essas evidências formuladas pelo escritor baiano denunciam não
só o estado de miséria em que vive a população habitante dos morros, como também
desvelam o destino que aguarda a essas pessoas, obrigadas a conviverem com a
indignidade como se digna fosse e forçadas a se marginalizarem pelas mãos do sistema
que as quer mortas. Por meio da obra Jubiabá, Jorge Amado atualiza um debate,
travado frequentemente pelas malhas do discurso sociológico, sobre a desassistência
perpetrada pelo Estado, que favorece áreas consideradas nobres em detrimento das
periferias, relegando a população dessas a um estado de abandono onde não há
alternativa, senão a marginalização e o crime. Volta-se aqui a citar Walter Benjamin
(1974, p. 17), para quem “As periferias são o estado de exceção da cidade.”
3.2.1 CIDADES: FASCÍNIO E VIDA “REAL”
Parece que tanto o miúdo Zito, em A Vida Verdadeira de Domingo Xavier,
quanto o pequeno Baldo, em Jubiabá, refletem o verdadeiro fascínio que a cidade causa
às crianças, principalmente quando marginalizadas, excluídas e tolhidas em seus direitos
fundamentais. Nas obras em estudo, as crianças, obrigadas pela própria conjuntura
sociopolítica a viverem em diferentes ambientes na cidade (morros e musseques),
exteriorizam um sentimento acerca desses locais que extrapola a curiosidade pura e
simples que lhes é peculiar, mas nutrem, em seu imaginário, uma atração por tudo que
caracteriza o espaço urbano, para elas desconhecido e em tudo diferente da sua
realidade de excluída. Sandra Pesavento (1999, p. 231) afirma a cidade como sendo um
local de constante desafio, “[...] uma personificação da modernidade, que atrai e seduz,
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mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar.” E pode ser por esse motivo que
Baldo e miúdo Zito, personagens de uma mesma história de exclusão e fascínio pela
cidade, apesar de demonstrarem certo encantamento pelos locais onde vivem – no caso,
o morro e o musseque, respectivamente –, anseiam por uma vida fora deles, uma vida na
“cidade”. É evidente que os morros e musseques são locais dentro da cidade, Porém, a
cidade percebida pelos referidos personagens nada mais é que aquele espaço –
geralmente com grandes movimentações, como os centros – o qual, a pesar de próximo,
é diferente do local onde eles vivem – ou, pelo menos, é assim percebido por eles,
apresenta muito mais vida, cores e luzes do que o morro, com suas ladeiras enlameadas
ou o musseque dos barracos de zinco. Amado (2000, p. 8) evidencia essa questão ao
relatar que:
Antônio Balduíno, que só fora à cidade umas poucas vezes, assim mesmo às
pressas, sempre arrastado pela tia, sentia àquela hora toda a vida da cidade.
[...] Ele ficava ouvindo os sons confusos, aquela onda de ruídos que subia
pelas ladeiras escorregadias do morro. [...] Ficava se imaginando homem
feito, vivendo na vida apressada dos homens, lutando a luta de cada dia.
Apesar de conhecer pouco a cidade, Baldo a imagina. Nos momentos em que
percebe o barulho que sobe, as luzes que se acendem, o cheiro e as cores da urbe, ele
forja, em sua memória, imagens de uma cidade que mais tarde lhe será apresentada sob
aspectos outros. Malgrado essa condição, Antônio Balduíno continua a buscar na
Cidade da Bahia a cidade sempre avistada por ele lá de cima, do morro – ou seja, aquela
por ele “imaginada”. Aqui há de se concordar com o que diz Sandra Pesavento (1999,
p. 15) quando afirma que “[...] Por vezes, essa configuração imagética da cidade pode
predominar, com os seus sentidos subjacentes, à cidade concreta habitada pelos homens
[...]”. Dessa relação entre a “cidade concreta” e a “cidade imaginada”, pode-se resultar
uma interferência desta sobre aquela, produzindo, assim “espaços e mapas mentais
como imagens do “real”, criando uma cidade, primeiro, no plano do imaginário, e
impondo à “cidade concreta” a tarefa de ajustar-se à tal imaginação.
O desejo de morar na cidade, de viver o seu clima, de respirar o seu cheiro não é
só vontade do personagem amadiano Antônio Balduíno. O miúdo Zito, personagem de
Luandino, também esboça o seu desejo de viver nesse espaço, percebido no seu espanto
e admiração diante do novo. Por conta disso, caminha pela cidade “[...] distraído com a
91
confusão, olhando meninos como ele, com caixa de ferramenta de marceneiro ou
pedreiro, ao lado dos sô mestres, ou caixas de engraxar sapato, os poucos de bata branca
e sacas de escola [...]” (VIEIRA, 1976, p. 12). Luandino (1976, p. 12) ainda revela o
interesse de miúdo Zito em ir à cidade, de passar na frente das lojas, de olhar os carros e
comungar das “[...] coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia nos meninos da
mesma idade, alguns mesmo meninos de escola que não aceitavam.” E o mesmo
fascínio que o miúdo Zito revela ter pela cidade de Luanda, também o demonstra o seu
avô, o personagem “velho Petelo”, que, ao fitar a cidade, faz reacender na memória uma
Luanda do antigamente. O mar da baía de Luanda traz ao velho antigas recordações de
uma cidade que já não mais pertence aos seus:
[...] Velho Petelo olhava com saudade a mancha nebulosa na ponta da Ilha –
a ponte do carvão, com certeza, já não via bem, mas jurava mesmo – onde
várias vezes atracara e carregara carvão para as caldeiras. E mais no meio, a
sombra branca da igreja de Nossa Senhora do Cabo. Sorriu abrindo as
gengivas ao sol, recordou suas velhas bebedeiras nas grandes festas de
Novembro. Agora já não tem festa assim, não, brancos não deixam.
(VIEIRA, 1977, p. 16)
Certamente, a saudade que invade o peito e a memória do velho marinheiro é de
uma cidade diferente da que se apresenta hoje, uma cidade do antigamente, onde a ele
ainda era dado o direito de entregar-se à bebedeira e frequentar as festas urbanas. E, ao
que parece, a cidade de hoje, cidade dos “brancos”, que o confinou aos musseques,
estabelecendo fronteiras, faz com que o velho marinheiro se sinta saudoso de um
momento que só existe agora na memória. Com suas lembranças acerca de uma cidade
do passado e sua visão sobre uma cidade do presente, o velho Petelo “une o que vê ao
que viu, [...] Conhece a fusão da imaginação com a memória [...]”. (BACHELARD,
1989, p. 19). Isso leva a crer que, como revela Bachelard (2000, p. 25), “[...] memória e
imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo.
Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com as imagens
[...]”. Essa abertura do museu do imaginário do velho Petelo permite imaginar uma
Luanda antiga, de negros marinheiros – e não só de sapateiros e engraxates – uma
cidade de festas, marcadas em calendários, e de uma baía de possibilidades. O velho
Petelo é uma importante metáfora, trazida por Luandino para representar o “antes” e o
92
“depois” de uma cidade: o antes, “marinheiro”, e o depois, “velho coxo”, confinado em
um musseque desassistido.
Em Jubiabá, o personagem Antônio Balduíno também guarda com a cidade uma
curiosa relação, visto que, da sua infância até a idade adulta, os estágios apresentados
por ele – ou seja, a infância pobre no morro, passando à vida nas ruas, tornando-se um
lutador, até chegar à condição de militante e agitador político – refletem os próprios
estágios vivenciados pela Cidade da Bahia, com os seus altos e baixos, seus
trabalhadores em condição de semiescravidão e a greve, que paralisaria, mais tarde, a
“cidade negra da Bahia”.
Jorge Amado, em seu terceiro romance, de nome Suor, “[...] o primeiro de uma
série que tem como cenário a cidade da Bahia [...]” (MAGALHÃES 2011, p. 200) –
personifica também a cidade e a faz interagir com os personagens. Na trama, a ladeira
do Pelourinho, na qual se nota o insalubre e diminuto cômodo de um sobrado, é um
teatro, onde se representam mendigos, prostitutas, desempregados, lavadeiras, operários
e muitos outros atores sociais a quem Amado dá voz e põe em cena, para que esta
também personagem – a cidade – possa lhes oferecer cor, luz e ação cênica, no
desenrolar da narrativa; “[...] trata-se de um texto que tem o espaço como um elemento
sobre o qual se tematiza”[...]. (MAGALHÃES, 2011, p. 200)
Mas, é com Jubiabá que Amado revela o seu potencial estético sobre o urbano,
pois, nessa obra, a cidade é peça importante que vai muito além do ornamento do locus
da trama, é protagonista e protagoniza a história de Antônio Balduíno. É a cidade que o
traz à cena. É ela quem, por meio das suas luzes, entorpece o ainda menino, Baldo, e o
leva até a cidade baixa, onde ele encontrará o seu destino. A cidade, em Jubiabá,
desempenha um considerável papel, que é o de catalisador estético. Ao mesmo tempo
em que Amado a descreve, ele a desenha, a inscreve na trama. A cidade é
simultaneamente prosa e poesia: fala e emudece, cala e faz falar as personagens da
narrativa. Para Magalhães (2011, p. 201) “No texto de Jorge Amado a cidade da Bahia
encanta, mas exibe também o sofrimento social. Trata-se de uma cidade de grandes
contrastes. É esplendor e miséria, beleza e feiura [...]”. Na obra, Amado usa de
elementos presentes nas edificações da cidade, para indiciar acontecimentos ou desvelar
estados de espírito dos personagens na trama – questão que se verifica na descrição que
ele faz, no terceiro capítulo da narrativa, de uma rua chamada “Zumbi do Palmares”,
onde o autor parece denunciar, por meio de uma descrição da referida rua, o preconceito
para com os negros, suas memórias e seus heróis. Ao desvelar o aspecto da rua, o
93
escritor descortina a intenção em associar o nome e a imagem de uma liderança
importante para um determinado grupo social a algo cujo aspecto é por de mais
negativo:
Velha rua de casas sujas e de sobrados de cor indefinida. Vinha numa reta,
sem desvios. Os passeios das casas é que eram desencontrados, uns altos,
outros baixos, alguns avançados para o centro da rua, outros medrosos de se
afastarem da porta. Rua mal calçada de pedras desarrumadas, plantada de
capim. [...] Parecia que a noite chegava mais cedo para a travessa Zumbi dos
Palmares que para o resto da cidade. (AMADO, 2000, p. 41)
A descrição elaborada pelo autor parece fazer sentir que a desassistência aos
negros e pobres da Cidade da Bahia vai além da privação do acesso aos elementos
básicos para assegurar a dignidade humana, mas leva a perceber que essa violência
invade o plano da memória coletiva, objetivando talvez a total nulidade do homem, bem
como o desestímulo para a busca da liberdade. Faz-se aqui tal análise acerca das duas
narrativas, evidenciando o trato dos autores com a questão da memória sobre o urbano,
para revelar que, analisar o romance de Jorge Amado, Jubiabá e a novela de José
Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, significa perceber que essas
duas obras possuem temáticas que em si se aproximam, principalmente no que toca à
violência institucionalizada e o apartheid entre brancos e negros dentro de uma mesma
cidade.
Questões como essas aparecem nas duas obras em questão, possibilitando a
identificação de diálogos entre elas. Porém, para além dessas relações que envolvem a
“cidade”, diálogos outros são percebidos entre ambas as histórias e podem apontar
ligações maiores entre os autores e tais narrativas. Necessário se faz que se retome aqui
– como constatação última –, uma questão já mencionada nesta pesquisa que alude para
uma noção de comparatismo bem distinta daquelas postuladas pelos modelos clássicos.
Cumpre dizer que já é consenso entre os estudiosos que fazer comparatismo literário é
mais que comparar textos, é mergulhar profundamente em questões outras que
envolvem as obras em estudo. Nos termos de Henry Remak (2011, p. 189):
A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país
específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e por outro,
diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por
94
exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história,
as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as
ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra
ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão
humana.
Para além desse entendimento de Remak, já se percebe contemporeneamente
que há, em muitos pesquisadores da área, o cuidado em relação ao comparatismo entre
literaturas, para que não ocorra o confronto único de textos, com o objetivo, muitas
vezes, de apontar apenas similaridades materiais – como traços de composição,
episódios ou tropos bem determinados e superficiais –, ignorando questões menos
materiais – talvez, mais complexas de se apontar. Quando se pretende cotejar duas ou
mais obras literárias, com o intuito de identificar diálogos entre elas – como aqui se
realiza –, torna-se necessário voltar a atenção para os múltiplos elementos presentes nas
narrativas, não se deixando envolver somente por aqueles que, de início, já sugerem
aproximações, pois isso certamente esvaziaria, da análise, o seu teor crítico.
95
4 DUAS HISTÓRIAS, QUATRO ELEMENTOS
A recusa que aqui se faz de um comparatismo literário baseado na ideia de
“fonte” e “influência” dá-se, além do já exposto até aqui, pela observância das
particularidades que envolvem o texto literário e pela compreensão de que o ato de
comparar é central ao processo crítico.
Comparar duas ou mais obras literárias, sem atentar para as subjetividades
contidas em seus textos, apenas voltando-se para entendimento do quanto influiu um
autor em outro, seria como tocar um violino por pizzicato, ou seja, sem a utilização de
um arco – o que limitaria muito a sua produção sonora. Mais interessante é, por meio do
comparatismo, buscar compreender a existência de diálogos entre as obras, para que
seja possível entendê-las como sendo partilhadoras de múltiplos elementos que se
comunicam entre si, possibilitando, assim, um maior exercício crítico.
No presente trabalho, procura-se identificar, justamente, relações entre as duas
obras em estudo, analisando os diálogos percebidos entre elas, no que concerne aos
“tetraelementos” naturais: água, terra, fogo e ar. Gaston Bachelard afirmou ser “[...]
possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro elementos, que
classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à
água ou à terra.” (BACHELARD, 1998, p. 03-04, grifo do autor). O que se intenta aqui
está longe da criação de uma “lei” – como sugere Bachelard –, mas caminha na direção
do estabelecimento de relações possíveis entre as múltiplas imagens dos elementos
naturais em dois textos literários. É oportuno tomar como base as ideias de Bachelard
sobre esse universo natural, para ajudar a pensar a relação desse com a produção de
imagens – já que, nesta pesquisa tentar-se-á perceber como os elementos da natureza
permutam experiências com o imaginário e como contribuem para cristalizar imagens.
Jorge Amado e Luandino Vieira fizeram uso, em suas narrativas, dos elementos
naturais, gerando um grupo de imagens de uma realidade que se assemelha e tende a
aproximar essas duas obras. Para Bachelard (2001a, p. 12), os quatro elementos “[...]
põem em ação grupo de imagens. Ajudam a assimilação íntima do real, disperso em
suas formas. Por eles se efetuam as grandes sínteses que dão características um pouco
regulares ao imaginário.” Esse grupo de imagens, proposto por Bachelard, é que irá
atrair a atenção nesta investigação, pois serão as imagens que apontarão como os dois
autores em questão utilizam os quatro elementos naturais como forma de representação
96
de uma realidade que os circunda. Apesar de se notar semelhanças entre as imagens
propostas por ambos os escritores, percebe-se também, em suas obras, diferenças no que
concerne ao uso dos elementos da natureza – o que aponta para o fato de que “[...] as
almas que sonham sob o signo do fogo, sob o signo da água, sob o signo do ar e sob o
signo da terra revelam-se muito diferentes entre si”. (BACHELARD, 1999, p. 132)
Para início da caminhada rumo à abordagem dos elementos naturais nas obras
em debate, toma-se o elemento “água” – “princípio dinâmico das transformações e das
mutações” (CHEVALIER & GHEERBRANDT 1996, p. 533) – como elemento
introdutório, na perspectiva de abrir caminhos a fim de se entender os demais elementos
e até suas combinações, pois Bachelard (1998, p. 97) argumenta que “Em especial, a
água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes
[...]”. Sendo assim, em primeira análise, atem-se ao elemento “água” como forma de
perceber sua manifestação simbólica, marcada pelo diálogo entre as duas narrativas, e se
marcar, em análise posterior, a direção da sua atuação junto aos demais elementos.
Pode-se observar que nas duas narrativas em estudo, Jubiabá e A Vida
Verdadeira de Domingos Xavier, percebem-se diálogos a partir do elemento “água” –
tanto das águas salgadas do mar, da Cidade da Bahia, quanto das águas doces do rio
Kuanza, de Luanda, ou, ainda, das pluviais que caem ora nos morros da Cidade da
Bahia ora nos musseques da cidade de Luanda. Nas narrativas, o Oceano Atlântico é
símbolo de um grande elo entre a urbe do estado baiano e a da capital de Angola. Nas
obras, o mar parece habitar as duas margens, e estabelecer relações entre ambas,
levando contínua comunicação entre a baía de Todos os Santos e a baía de Luanda,
atualizando a histórica rota da transculturalidade. Em sintonia com esse pensamento é
que Roland Walter (2009, p. 214) afirmará: “A transculturação da identidade negra
começa nesta corrente continuamente alimentada pelas correntezas salgadas da água
[...]”; e “[...] o mar como entrelugar simbólico da diáspora negra, separando os
africanos/afrodescendentes da África e ao mesmo tempo ligando a África ao Novo
Mundo”. (WALTER, 2009, p. 212)
Se se quiser caminhar na esteira das simbologias, pode-se imaginar que o
diálogo entre Jorge Amado e Luandino Vieira, por meio das obras em análise,
representa o próprio encontro do rio com o mar. Jorge Amado, por suas características
ligadas à defesa dos mais fracos e dos excluídos, por seu perfil democrático e amante
das liberdades, pode, em terreno simbólico, representar o poder das águas salgadas de
Iemanjá, ou seja, o mar. E o rio, de águas geralmente densas, porém calmas em alguns
97
momentos, pela força devastadora dos seus leitos milenares e até por seus frequentes
anseios de liberdade de curso, pode se encontrar representado, simbolicamente, na
figura de José Luandino Vieira. E é nesse encontro entre águas doces e salgadas que se
nota a emergência de profundos diálogos entre os referidos autores, fomentando a
cristalização de imagens, uma vez que a água, como disse Bachelard (1998, p. 97), “[...]
recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal.” É possível
perceber, ainda, que apesar de Bachelard julgar serem o açúcar e o sal matérias
contrárias, nas narrativas, as águas doces e salgadas convergem para um mesmo ponto
que é a representação da “maternidade”.
Nas referidas tramas, Amado e Luandino invocam um elemento com múltiplas
simbologias dentro do plano religioso – a água –, para protegerem os seus protagonistas
– Baldo e Domingos – dos impactos das suas mais significativas carências: a mãe e a
liberdade, respectivamente. Em Jubiabá, as águas salgadas do mar da Cidade da Bahia,
mitificadas na figura do orixá “Iemanjá” – que no Candomblé da Bahia é símbolo da
“grande mãe” – fazem com que o personagem Antônio Balduíno, que praticamente não
teve mãe, busque no mar a sua proteção e o seu refúgio, pois, em tal narrativa, Amado
(2000, p. 10) é claro ao dizer que “Da mãe Antônio Balduíno não sabia nada.” Essa
relação entre o homem e a natureza, expressa no sentimento de Balduíno pelo mar, pode
ser entendida como a busca de uma integração com a origem. Bachelard (1998, p. 119-
120) propõe que:
[...] se o sentimento pela natureza é tão duradouro em certas almas é porque,
em sua forma original, ele está na origem de todos os sentimentos. É o
sentimento filial. Todas as formas de amor recebem um componente do amor
por uma mãe.
Essa proposição de Bachelard, de “sentimento filial” remete à busca de Baldo pela
figura da mãe, desenhada em Jubiabá, na flagrante aproximação que Amado faz do
personagem central com o mar, criando, assim, a imagem de um sentimento filial do
garoto pela natureza. Bachelard (1998, p. 120) afirma, ainda, que:
Em suma, o amor filial é o primeiro princípio ativo da projeção das imagens,
é a força propulsora da imaginação, força inesgotável que se apossa de todas
98
as imagens para colocá-las na perspectiva humana mais segura: a perspectiva
materna.
E é justamente sob perspectiva materna que Amado, em Jubiabá, redesenha o
mar. Na obra, as águas salgadas do mar da Cidade da Bahia são projetadas na figura de
uma “grande mãe”. Conforme Marie Bonaparte (apud Bachelard,1998, p. 119-120), a
natureza é para o homem “[...] uma mãe imensamente ampliada, eterna e projetada no
infinito [...] O mar é para todos os homens um dos maiores, um dos mais constantes
símbolos maternos.” Amado codifica e projeta, através das águas do mar, a imagem de
uma “mãe natural”, que irá suprir a ausência de uma mãe biológica. Pelo que diz
Bachelard (1998, p. 120), “Sentimentalmente, a natureza é uma projeção da mãe [...]” –
assim sendo, o mar é para Baldo, a imagem de uma mãe que ele imagina e que, durante
toda a sua vida, lhe faltou.
Luandino usa esse mesmo código sobre as águas e também mitifica o rio
Kuanza, de águas doces – que conforme algumas religiões de matriz africana, são
indicativas do orixá Oxum1 – para proteger o personagem Domingos Xavier. A figura
de maternidade também se faz presente na narrativa de Luandino, pois, Oxum, símbolo
da fertilidade, vem realizar, por meio da simbologia das águas, um desejo do
nascimento de um herói, que, morrerá para nascer na mente e no coração dos angolanos.
O autor, habilidosamente, relaciona o nascimento do rio ao nascimento de Domingos,
evidenciando uma complexa simbiose entre homem e natureza quando diz: “[...] o rio
que lhe viu nascer, lá em cima, no planalto, ainda fio de água, ainda criança ruidosa, e
que ele conheceu depois largo e calmo, poderoso na direção do mar.” (VIEIRA, 1976,
p. 26) Essa relação elaborada pelo autor faz com que a imaginação seja “[...] devolvida à
sua função vital que é valorizar as trocas materiais entre o homem e as coisas.”
(BACHELARD, 1990, p. 51).
Nas duas narrativas em análise, o elemento “água” lastreia a presença do
feminino – Oxum e Iemanjá –, em uma breve alusão, talvez, ao feminino como símbolo
de criação. Bachelard (1998, p. 36) revela que “[...] tudo o que se reflete na água traz a
marca feminina.” – e tudo leva a crer que Amado e Luandino trouxeram, às suas nar-
___________________________
1 Oxum, nas religiões do tronco Ioruba, é uma Orixá que reina sobre a água doce dos rios, o amor, a inti-
midade, a beleza, a riqueza e a diplomacia.
99
rativas, as águas doces e salgadas, para também cristalizar, por meio dos orixás que as
habitam, a imagem da pureza, igualmente expressa na figura dos seus personagens
centrais, Baldo e Domingos Xavier. Nas tramas em estudos, os autores invadem
simbolicamente o plano do sagrado, para indiciar tal purificação. Balduíno guarda
estreitas relações com o mar da Cidade da Bahia, e Domingos, com o rio Kuanza, ou
seja, a água, enquanto símbolo da vida, da renovação e também da purificação, aparece
nas narrativas como o líquido amniótico da terra, “[...] uma entidade materna (ligada,
portanto, ao sentimento), com a responsabilidade de proteção e geração de uma nova
vida” tanto para Balduíno como para Domingos Xavier. (PINHEIRO 2009, p. 17)
Para além dos diálogos entre águas doces e salgadas, do rio e do mar, que são
símbolo de maternidade, percebe-se, nas obras em questão, o uso das águas pluviais. A
água da chuva, nas narrativas, traz a marca da denúncia social e expõe a situação de
vulnerabilidade à qual estão sujeitas as camadas mais humildes da sociedade. Bachelard
(1998, p. 7) revela que a água da chuva “[...] corre sempre, cai sempre, acaba sempre
em sua morte horizontal.” E, com base nesse princípio, as narrativas mostram que tanto
na cidade da Bahia quanto na cidade de Luanda, o ser humano terá o mesmo destino das
águas correntes (BACHELARD, 1998, p. 08). Nas duas obras, ambos os autores fazem
o leitor sentir o desespero que toma a população habitante dos morros de Luanda e da
Cidade da Bahia, quando da presença da chuva. Em Jubiabá, Amado tacitamente
traduz os efeitos desse fenômeno no morro do Capa-Negro:
Enquanto as luzes não acenderam o vento dominou a cidade, correu com os
moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do beco das Flores e do beco de
Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas e quebrou moringas.
Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal como há
muito não havia. Os fifós apagavam, não se ouvia vozes nas casas. O morro
se fechou nos casebres. (AMADO, 2000, p. 37, grifo meu)
Não é necessário dizer mais, para se perceber o desfecho que a presença da
chuva terá no morro. Amado deixa por conta do leitor imaginar o que uma “chuva
violenta” pode causar em um morro de casas com telhados de zinco e portas de caixão.
Luandino, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, traz a chuva, sobre os
musseques do morro, desnudando os seus efeitos trágicos para uma população já
demasiadamente sofrida:
100
Chuva, raios que brilhavam toda a tarde cinzenta, trovões estremecendo
vidros e os corações do povo lá em cima, metido em suas casas de barro e
canas, cobertas a zinco, assistindo o barro a se desfazer, a água caía a jorros
das chapas levantadas, as paredes ameaçavam cair em cima dos moradores
encolhidos de medo, molhados, nos cantos. (VIEIRA, 1977, p. 62, grifo meu)
As duas obras parecem se complementar em discurso. O uso do elemento
“chuva” serve não apenas para relatar igual situação de miséria e abandono social entre
duas sociedades, mas para o estabelecimento de certo código estético, o qual tanto
Amado quanto Luandino entendem ser produtor de imagens que, por si mesmas, já
desvelam o abandono e a desassistência social. Nas narrativas, depois da passagem das
chuvas, não há relato de acontecimentos que tenham atingido gravemente os moradores
dos bairros privilegiados. Em contrapartida, não obstante a morte ter-se feito presente
junto aos menos favorecidos, nenhum jornal noticiou. Luandino evidencia na obra, a
falta de interesse dos órgãos de imprensa local nos acontecimentos da gente pobre de
Luanda, e com isso, flagra a dura realidade presente em uma cidade dividida:
Na manhã seguinte, os jornais trouxeram grande descrição da chuvada e
fotografias mesmo dos estragos, mostrando ruas com buracos, árvores
arrancadas, automóveis inutilizados, areia pedindo tractores. Do menino
afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou na criança refugiada em
baixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído nos musseques
deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal
falou. Apenas o povo desses musseques soube e lamentou e chorou.
(VIEIRA, 1977, p. 63)
O descaso com a morte das pessoas do musseque, negros e pobres, dá o tom da
desassistência e evidencia que essas pessoas se encontram largadas à própria sorte. Essa
forma de invisibilidade da população negra e pobre de Luanda, tornada pública por
meio da novela de Luandino, atualiza uma realidade ainda flagrante em Angola.
Nas duas narrativas, a imagem da precipitação das chuvas ocorre ainda para
revelar dois momentos importantes nas tramas: em Jubiabá, ela vem testemunhar a
loucura da velha Luiza, tia de Antônio Balduíno – fato decisivo para o destino do
pequeno Baldo; e, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, ela cai como que para
anunciar à Maria, esposa de Domingos, a morte e o nascimento de uma “vida
verdadeira” para Domingos Xavier. O elemento “chuva” é colocado nas tramas como
101
índice dos acontecimentos relevantes, ou seja, como uma espécie de “apocalipse”, para
anunciar uma mudança no rumo das narrativas e sugerir uma espécie de “renovação”.
No caso de Antônio Balduíno, tal renovação acontece com a sua ida para a cidade,
acabando, mais tarde, por “dominá-la”. E, no que concerne a Domingos Xavier, a sua
morte marca o início de uma “vida verdadeira”, que nasce na memória e no coração dos
angolanos.
4.1 ENTRE ÁGUAS E TERRAS, VENTOS E FOGOS
O grande navegador de cabotagem Jorge Amado deixou vários índices da sua
excessiva ligação com o mar, que se fazem presentes em seus diversos textos. Em
Jubiabá, o escritor dedica dois capítulos para falar diretamente das águas do mar da
Bahia – os capítulos de nome “Cais” e “Saveiro”. Tal relação com o mar deve-se
certamente a questões várias, porém, o que interessa aqui para explicá-la é a vinculação
de Amado à religiosidade de matriz africana, no caso, o Candomblé da Bahia.
Sabe-se que foi Jorge Amado, então deputado federal, em 1946, o autor de um
projeto de lei que assegurava liberdade religiosa no Brasil. Antes dessa lei, as religiões
afro-brasileiras enfrentavam muitas dificuldades para realizar os seus cultos,
experimentando as batidas policiais que, desrespeitosamente, invadiam terreiros em
pleno culto e destruíam objetos sagrados, ateavam fogo nas casas e prendiam
sacerdotes. Itazil Benício dos Santos narra esses acontecimentos e registra a fala de
Amado, no tocante a essa discussão:
Jorge, com Édison Carneiro e Artur Ramos, começou a freqüentar os
candomblés e a participar desse lado da vida religiosa baiana. Acompanhou
de perto a “luta pela liberdade religiosa, tumultuada e violenta”, dela
participando. “A repressão era violenta”, diz Jorge, “a polícia invadia os
terreiros de candomblé, incendiava-os, destruía os objetos do culto, prendia
todos, pai e mãe- de- santo, era uma batalha terrível.” Jorge analisa, de modo
sumário, com profundidade, motivos, origens e alcance da perseguição
policial ao culto afro-brasileiro, dizendo: “Era uma forma de repressão contra
a matriz negra de nossa cultura, contra todas as expressões da cultura negra.”
(SANTOS, I., 1993, p. 82, grifo do autor)
102
Parece que a menção à repressão da “matriz negra” da cultura brasileira, feita
por Amado naquele momento, significava uma forma de extermínio cultural, isto é, uma
tentativa de silenciar uma expressão que aludia, por meio do cultural, ao passado
histórico da Bahia e do Brasil. Perseguir e exterminar as manifestações religiosas de
matriz africana, naquele instante, representava mais que um comportamento intolerante
ao religioso, antes, uma tentativa de negar a face afrodescendente do povo brasileiro.
Perceber essas relações de Amado com o Candomblé pode indicar importantes
caminhos, que levem a descortinar os elos entre o personagem Antônio Balduíno e o
mar. O autor baiano sempre foi a favor das liberdades principalmente da religiosa, e o
seu romance ora estudado, Jubiabá, traz o nome de um importante pai-de-santo da
Bahia, do qual Amado toma de empréstimo o nome para intitular a sua narrativa e um
dos seus personagens, numa espécie de fusão entre ficção e realidade. Na obra, o pai-de-
santo Jubiabá é símbolo da memória e resistência da cultura negra no Brasil, sobretudo
da cultura linguística, visto que ele “[...] trazia sempre um ramo de folhas que o vento
balançava, e resmungava palavras em nagô [...]” (AMADO, 2000, p.13, grifo meu).
Era de se esperar, portanto, que, com todo envolvimento de Amado com o
Candomblé – ao ponto de ocupar, inclusive, o posto de honra de Obá de Xangô2 no Ilê
Axé Opó Afonjá, tradicional casa de Candomblé da Bahia –, ele fosse capaz de transpor
para as suas narrativas questões ligadas ao sagrado da religiosidade afro-brasileira,
como as águas do mar. Porém, vale grifar que Jorge Amado sempre se declarou ateu e
materialista, logo, tentar perceber a presença do sagrado nos escritos de alguém que,
desse jeito, autodenomina-se, pode ser uma tarefa demasiado delicada. Mas, para além
dessas condições, de ateísmo e materialismo do autor, é inegável a presença da
simbologia sacra nas histórias amadianas. Ordep Serra (2000, p. 63-64) se antecipa a
essas divagações e afirma que:
Um ateu não é, por força, insensível ao sagrado. A sensibilidade religiosa
pode mesmo fazer-se aguda num materialista confesso. Pois a dimensão do
sagrado ultrapassa o campo da crença, não depende disso. [...] a constância
de motivos religiosos em sua obra [...] traduz a marca do sagrado que nela se
___________________________
2 Título honorífico do Candomblé, criado no Ilê Axé Opó Afonjá por Mãe Aninha, em 1936. Os títulos
honoríficos de doze Obás de Xangô, reis ou ministros da região de Oyo, eram concedidos aos amigos e
protetores do Terreiro.
103
acha impressa de diversas formas, um pouco por toda a parte. O sagrado se
diz de muitas maneiras... e várias notas de sua manifestação multiforme
ressoam nas páginas amadianas.
Pode se inferir que, na narrativa em análise, Amado aproxima Antônio Balduíno
do mar, como se quisesse aproximá-lo de Iemanjá, a “grande mãe”, para suprir a sua
falta dos cuidados e carinhos maternos. Mas, também o faz, possivelmente – como já se
mencionou nesta investigação –, dentro de uma proposta de purificação do personagem,
uma vez que Baldo, em momentos de infortúnio e desesperança, procura o mar, para
aliviar-se. Verifica-se essa questão na narrativa, dentre outras passagens, quando
Balduíno é derrotado na luta com o peruano Miguez e desloca-se para o cais, em busca
da paz do mar. Bachelard (1998, p. 32) acredita que “[...] a água serve para devolver um
pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima.” – e,
provavelmente, Antônio Balduíno busque o mar na perspectiva de que a “inocência” e a
“naturalidade”, sentimentos descritos por Bachelard, possam aliviar o peso da sua
conturbada vida. Nesses momentos, Jorge Amado deixa transparecer a íntima relação
entre o personagem e o mar, principalmente ao declarar que Baldo “[...] Desde menino
gostava de vir deitar aqui no areal do cais, a carapinha no travesseiro da areia, os pés
metidos dentro da água. A água é morna e gostosa a estas horas da noite.” (AMADO,
2000, p. 118)
O evidente empenho de Jorge Amado em mostrar essa intrínseca ligação entre o
personagem e o mar supõe-se ocorrer para apontar uma simbiose peculiar entre ambos,
pois parece haver entre o menino e o mar um mútuo encantamento. Amado ainda sugere
uma relação maternal entre o mar e Balduíno que se verifica também nas passagens em
que o autor expõe as relações do personagem com as suas “cabrochas” diante do mar,
numa atitude similar a quem apresenta uma namorada à mãe, para que essa reconheça a
sua condição de “homem feito” e não mais o conceba como um garoto:
[...] Antônio Balduíno gosta que o mar veja as suas amantes e saiba que ele,
apesar dos seus quinze anos, já é homem, já derruba uma cabrocha na areia,
que é macia como um colchão. Mas, sozinho ou acompanhado, ele olha
sempre o mar como um caminho de casa. Do mar, ele tem certeza, lhe virá
algum dia qualquer coisa que ele não sabe o que é, mas que espera.
(AMADO, 2000, p. 68)
104
Pode-se inferir a relação íntima entre o protagonista de Jubiabá e o mar também
pelo que salientou Bachelard (1998, p. 6) ao dizer: “[...] Reconhecerá na água, na
substância da água, um tipo de intimidade, intimidade bem diferente das que ‘as
profundezas’ do fogo ou da pedra sugerem.”
Quando se volta a atenção para o que afirma Amado na citação acima – o fato de
que Baldo sempre espera “qualquer coisa” que venha do mar –, tem-se a impressão de
que ele espera, provavelmente, por notícias de outras terras, de outros mundos, trazidas
pelas ondas para fazê-lo seguir na rota do Atlântico, em busca de aventuras outras. E
por que não dizer, notícias da África? Na condição de afrodescendente, não seria
estranho que Balduíno, intuitivamente, enxergasse no mar “um caminho de casa”. O
mar da Cidade da Bahia pode ser a rota de intercomunicação com outras margens,
principalmente, a margem do mar da Baía de Luanda, na África.
Com esse sentimento do personagem amadiano – do mar enquanto “caminho de
casa” –, Jorge Amado indicia a intercomunicação Brasil-África por meio das águas e
coloca de vez o mar como elo entre as duas margens culturalmente comunicantes – pois,
conforme percebeu Roland Walter (2009, p. 212), o mar é “[...] berço de indivíduos,
grupos e culturas afro-descendentes; [...] onde o silêncio e os rumores constituem uma
sinfonia transcultural [...] cujas ondas e correntes formam o círculo entre as
temporalidades discrepantes [...]”. Ao mirar o mar, Baldo sente uma espécie de “banzo”,
provável desejo de conexão com algo que habitaria a outra margem do Atlântico –
possivelmente, a margem africana –, num tácito desejo de ligação ancestral, uma vez
que, é no mar que “habitam aqueles que morreram, sobreviveram e seus descendentes
que nasceram e nascerão.” (WALTER, 2009, p. 212)
Em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luandino lança mão das águas
doces do rio Kuanza, para promover um encontro com o seu personagem central,
Domingos Xavier. E tal encontro se dá justamente em momento de total infortúnio de
Domingos, ou seja, no momento da sua prisão e estada no cárcere:
Na cela, o seu corpo magro e comprido, magoado, custava a caber [...] O
peito doía, era uma dor única. [...] sentia pancadas dolorosas nas mãos e nos
pés [...]. Pensamentos corriam como as águas do Kuanza amado; [...] o largo
Kuanza que lhe viu nascer, lá em cima, no planalto [...]. (VIEIRA, 1977, p.
26)
105
A narrativa se encarrega de mostrar que as águas do rio funcionam como uma
espécie de bálsamo para Domingos Xavier, pois, na tentativa de suportar as dores da
violência do cárcere, ele recorre aos seus pensamentos sobre o rio. O Kuanza é mais que
um simples rio para Domingos, suas águas são – assim como as águas do mar para
Balduíno –, uma “grande mãe”, pois lhe viu nascer, e o remete aos seus momentos de
infância e juventude, refletindo um pensamento de Bachelard, segundo o qual, “[...] A
nenhum substantivo, mais intensamente que à água, pode-se associar o adjetivo
primaveril” (BACHELARD, 1998, p. 34 Grifo do autor). Talvez seja por isso que
Domingos:
Fechava os olhos e o Kuanza corria ao luar, rugindo furioso ou manso e
quieto, grande mar sem ondas. Como o sono chegando e vencendo tudo,
tudo, até o cansaço e a vontade grande de ficar acordado, pensar. Mas o sono
era como o Kuanza, nada lhe resistia. Deitado, se deixou boiar no seu rio de
criança, do planalto, que lhe tinha visto nascer. (VIEIRA, 1977, p. 27)
O autor deixa pistas desse envolvimento maternal entre as águas e Domingos
Xavier por meio da adoção de termos que fazem alusão à relação entre mãe e filho –
termos como “criança”, “sono” e “nascer”. Esses termos vão conduzindo a narrativa de
tal forma, que pensar no rio é pensar o homem e pensar o homem acaba sendo pensar o
rio. Esse mutualismo entre “homem” e “água”, que se verifica na trama, pode aludir ao
que ocorre na natureza, onde homens e águas se encontram desde o momento da
geração e concepção da vida. Na esteira desse pensamento, pode-se afirmar que
enquanto o herói amadiano, Antônio Balduíno, desenvolve-se na sombra da “grande
mãe” Iemanjá, simbolizando, talvez, a busca do Brasil por uma maternidade que habite
as duas margens do Atlântico; o herói da narrativa luandina, Domingos Xavier, por
meio da sua relação com as águas fluviais, forja-se no ventre do orixá Oxum,
considerada a deusa da fertilidade, simbolizando, muito provavelmente, a necessidade
patente de uma renovação nacional – na obra, por sinal, a morte de Domingos pode
representar o início da gestação de uma nova Angola, agora livre, com uma liberdade
descrita no próprio curso do seu maior rio: o Kuanza.
Não se pode deixar de relatar que Luandino, na narrativa, ainda usa as águas
desse importante rio angolano para delinear a revolta presente no seio da sociedade
angolana, que, oprimida pelo regime colonial e confinada aos musseques, agora vê a sua
106
realidade, bem como a sua cidade, transformada pelos projetos do colonizador. O trajeto
ora realizado pelo rio Kuanza, muito diferente do seu trajeto anterior à colonização,
parece traduzir a dor e o sofrimento do povo de angola, tolhido em direitos
fundamentais e obrigado a abandonar os seus “trajetos culturais” – assim como o rio – e
a criar novos trajetos, para não incorrerem, homens e águas, no risco de
desaparecimento:
Lá em baixo o Kuanza rugia, zangado, adivinhando a boca de betão que esperava para lhe engolir, obrigando-lhe a furar o morro num caminho de
poucas centenas de metros, substituindo o leito milenário que tinha cavado,
por suas águas, na rocha dura ou nas areias quentes. [...] Para lá da saída do
túnel de derivação, as águas se suicidavam, subindo desesperadas muitos
metros no ar e deixando-se depois abater lá em baixo nas pedras, nos muros
de defesa que os tractores construíam [...] As águas falavam suas fúrias,
agora impotentes, recordando os rápidos para lá do muro, secos no sol,
criando musgos nas poças de água parada, finalmente quieta. (VIEIRA, 1977,
p. 71-72)
A simbologia expressa pelo autor ao destacar o leito milenar cavado pelo rio
certamente alude ao importante lastro cultural africano – representado principalmente,
pela questão linguística –, violentamente fragmentado pelo colonialismo europeu. Como
afirmou Ki-Zerbo (2006, p. 131) “[...] as relações entre a Europa e a África começaram
mal e transmitiram uma herança muito pesada, que não foi exorcizada.” Sendo assim, A
substituição de um leito milenar por um leito de “poucas centenas de metros”, da qual
relata Luandino, constitui-se em importante metáfora, se se quiser pensar na violência
cultural sofrida pelos angolanos, a partir da chegada do colonizador português, que
impôs a sua língua, seus hábitos e a sua católica visão de mundo a povos envolvidos
com referências outras. O suicídio das águas, anunciado pelo autor, dá o tom dos efeitos
do regime colonial em Angola e indicia uma forma de resistência à escravidão e à
colonização que leva à preferência da morte ao domínio e espoliação cultural. Essa
questão foi delineada por Mary Karasch (2000, p. 418), ao revelar ser frequente, entre
os escravos, o suicídio por afogamento, como forma entendida por eles de retornarem
vivos para a África.
As águas doces, para além das diversas simbologias que possuem, representam a
purificação. E Luandino, tal como Amado, parece fazer uso dessa simbologia, para
aludir a uma depuração do estado anímico do seu personagem Domingos Xavier, como
107
forma de fazê-lo suportar as dores e os dissabores perpetrados pela violência policial.
Enxerga-se, com isso, uma eliminação de fronteira entre o real e o imaginado, pois
Luandino, que também foi preso, ou seja, também vivenciou o “cárcere”, sem dúvida
reconhece a importância, quando em estado de privação de liberdade, dos elementos de
identidade, e o rio é também, para ele, assim como para Domingos, um símbolo de sua
cidade, de sua gente e do seu país. Isso pode ser verificado quando se analisa mais uma
vez o trecho da já citada carta enviada por Luandino ao seu amigo, o poeta Carlos
Everdosa, momentos antes de embarcar para a prisão do Tarrafal, em Cabo Verde. Nele,
o autor diz:
Faltam poucas horas para embarcar no “Cuanza” rumo a Cabo Verde – ou
assim dizem. Li a tua carta e aproveito estes curtos momentos para te enviar
algumas linhas, talvez as últimas que recebas de mim antes do regresso geral
à nossa terra, às nossas coisas, ao nosso povo. É muito difícil nesta altura
dizer qualquer coisa [...] (LABAN, 1980, p. 90, grifo meu)
As aspas colocadas no nome do rio deixam claro o valor que ele tem para o povo
angolano, e é essa importância que talvez tenha feito o autor enumerar, no fim do
trecho, elementos símbolos de identidade, ou seja, “terra”, “coisas” e “povo”. Numa
alusão metafórica, Luandino faz com que Domingos vivencie experiências de exílio e
cárcere e, assim, o criador transmite à criatura algo da sua real experimentação. A julgar
pelo que disse o autor, em uma entrevista, sobre a elaboração do romance A Vida
Verdadeira de Domingos Xavier, de tê-lo finalizado um dia antes de ser preso, entende-
se aí que a criatura também iria, por sua vez, transmitir ao criador suas experiências
advindas da vivência no cárcere. O “imaginado” iria agora inventar o “real” e
contaminar o criador da coisa criada, como parece querer dizer o escritor Ezio Manzine
(apud PESAVENTO, 1999, p. 8) quando afirmou que:
Nós sabemos hoje ser nossa invenção tudo que, a partir das estimulações
sensoriais, se transforma em modelos mentais e produz a idéia de realidade, e
aquilo que se apresenta a nós como realidade é, e tem sido sempre, uma
“realidade simulada”. Quer dizer, uma realidade construída em nosso espírito
a partir de estimulações exteriores e uma sedimentação cultural anterior.
108
Quando se encontrava preso na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, Luandino
experimentou várias sensações também vividas por Domingos Xavier. E, ao estilo do
seu personagem, conseguiu esboçar igual resistência aos dissabores do cárcere. Nesse
momento, parece que “criador” e “criatura” se uniram para compartilhar experiências e
retroalimentar a eterna relação entre a realidade e a ficção. A partir da magia que cerca a
palavra, sempre se enxergará na representação parte constituinte do real. Alargam-se as
fronteiras entre a representação do real e a realidade, numa contaminação frequente
entre essas duas esferas. A representação e a realidade se intercomunicam, e o resultado
é a mais pura experiência estética de “criar” e “ser criado”.
Se Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier dialogam a partir das
águas doces e salgadas, também o fazem por meio do elemento “terra”, que é
representado, nas narrativas, pelo “barro”.
Jorge Amado vê no “barro” o símbolo da desassistência aos pobres, não só por
ser esse o elemento de construção das casas desestruturadas do morro, mas por
significar, também, a ausência de pavimentação das ruas enlameadas do morro do Capa-
Negro. Segundo Eneida Leal Cunha (2000, p.125), pode-se buscar, no relato da vivência
inicial do morro, as chaves para uma leitura de Jubiabá. Com base nisso, observa-se, já
no segundo capítulo da referida trama, que Amado traz o elemento “barro”, para indicar
a condição vivida por Antônio Balduíno nas ruas do morro, levando ao entendimento
acerca do futuro que aguarda o jovem – como se pode ver em: “Antônio Balduíno vivia
metido num camisolão sempre sujo de barro, com o qual corria pelas ruas e becos
enlameados do morro, brincando com os outros meninos da mesma idade.” (AMADO,
2000, p. 7)
Gaston Bachelard (2001b, p. 8) assevera que “A terra, com efeito, ao contrário
dos outros três elementos, tem como primeira característica uma resistência.” E
“resistir” parece ser a missão primeira dos habitantes dos morros na narrativa de
Amado, onde o elemento “barro” aparece, para dar uma ideia das condições de vida dos
habitantes daquele lugar, que transitam por ruas e becos enlameados, revelando a
desassistência dos poderes públicos para com esses espaços. A narrativa amadiana
atualiza, assim, uma realidade dos morros e favelas brasileiras totalmente desassistidas e
carentes de estruturas básicas da vida em comunidade. Jorge Amado se antecipa a uma
situação que, ainda nos tempos de hoje, não se conseguiu superar, uma vez que nas
periferias e morros das cidades do Brasil, cada vez mais, o “barro” se constitui na
grande realidade das comunidades, seja nas ruas e ladeiras desprovidas de
109
pavimentação, seja nas encostas que, vez por outra, vêm a baixo, sepultando várias
pessoas em “valas comuns”.
Luandino Vieira, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, vai além nessa
questão e apresenta situações em que o “barro”, com a vinda das chuvas, torna-se
símbolo de morte:
Chuva, raios que brilhavam toda a tarde cinzenta, trovões estremecendo vidros e os
corações do povo lá em cima, metido em suas casas de barro e canas, cobertas a
zinco, assistindo o barro a se desfazer, a água caía a jorros das chapas levantadas, as
paredes ameaçavam cair em cima dos moradores encolhidos de medo, molhados,
nos cantos. A água vermelha das ruas invadia tudo e as faíscas brilhavam nas chapas
novas ou rasgavam mesmo grossos troncos das mulembas. (VIEIRA, 1977, p. 62)
O realismo das imagens desenvolvidas por Luandino chama a atenção para uma
problemática que faz parte do cotidiano das grandes cidades, em várias localidades do
mundo. Porém, é no Brasil, onde essa realidade ficcionalizada por Luandino se faz mais
presente e exibe o alto grau de desinteresse público para com os menos favorecidos.
Diferentemente do que se verifica na narrativa de Luandino, tal realidade não
chega a ser descrita por Amado, que se limita, em Jubiabá, a sugerir estragos
provocados pelas chuvas no morro do Capa-Negro. Luandino, por sua vez, coloca essas
questões em debate de forma mais explicita, salientando a omissão de todos,
principalmente, do poder público. No território brasileiro, em tempos atuais, fatos como
os estragos ocasionados pelas chuvas nas áreas mais pobres das cidades ganham
publicidades em vários meios de comunicação, levando o governo a adotar medidas
paliativas, que não resolvem efetivamente o problema, mas o posterga até a próxima
tragédia. Traz-se novamente o trecho da narrativa de Luandino, onde o autor chama a
atenção para a falta de interesse da imprensa local no que diz respeito aos fatos
catastróficos que acometem os moradores dos musseques de Luanda – fatos esses que,
não obstante a morte e os estragos provocados pela chuva, nenhum jornal comentou:
Na manhã seguinte, os jornais trouxeram grandes descrições da chuvada e
fotografias mesmo dos estragos, mostrando ruas com buracos, árvores
arrancadas, automóveis inutilizado, areia pedindo tractores. Do menino
afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou na criança refugiada
embaixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído no musseque
110
deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal
falou. Apenas o povo desses musseques soube e lamentou e chorou. Mas, nos
dias seguintes, amigos e conhecidos iam levantar essas casas, essas cubatas
outra vez, iam trazer materiais para reconstruir, iam fazer empréstimos para
enterrar os meninos mortos e continuariam teimosamente a viver. (VIEIRA,
1977, p. 63)
O clima de texto-denúncia se faz presente, mais uma vez, na narrativa. O autor
relata a falta de interesse da imprensa local para com o sofrimento e a dor desses outros
angolanos, que, malgrado a condição de pobreza, mereciam apoio tanto quanto os
moradores das áreas ditas “nobres”, sobre as quais os jornais relataram. Luandino exibe
aqui mais uma marca da separação entre habitantes de uma mesma cidade, agora
representada na desatenção dispensada às pessoas dos musseques em seus momentos de
maior dor que a das outras pessoas da cidade, as quais talvez tivessem maior
possibilidade de lidar com a catástrofe provocada pelas águas das chuvas.
Para uma última análise, vale aqui salientar que, nas narrativas em questão, no
que se refere às águas pluviais, é notória a sua articulação com o elemento “terra”. As
águas da chuva encontram-se quase sempre unidas ao “barro”, formando a lama
corrente, seja nos morros da Cidade da Bahia ou nos musseques de Luanda. Essa
mistura do elemento “terra” com o elemento “água” também forma o que Bachelard
(1998, p. 109) chama de “massa”. É justamente essa massa que se faz presente na
construção das moradias do morro do Capa-Negro, em Jubiabá, e nas residências dos
musseques, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Por conta disso, Luandino
(1977, p. 62) evidencia o drama do povo “[...] metido em suas casas de barro e canas,
cobertas a zinco, assistindo o barro a se desfazer [...]”; e Amado denuncia as ruas e
becos enlameados do morro, suas casas, construídas rudimentarmente, de massa de
barro e madeira. Bachelard (1998, p.109) afirma que “[...] A água, como se dizia nos
antigos livros de química, ‘tempera os outros elementos’. Destruindo a secura [...]”. Nas
narrativas, as águas da chuva caem sobre a terra seca, e tal juntura dá o tom da
desassistência social, exibindo o perfil de espaços e pessoas despossuídos de estrutura e
direitos, ou seja, espaços da “[...] dor social, do arremesso ao mundo da sarjeta e da
indignidade [...]” (MAGALHÃES, 2011, p. 38).
As relações e diálogos permutados entre as duas obras, com base nos elementos
naturais, aparecem, a cada passo dessas narrativas, marcados pelas similaridades nas
abordagens e pelas diferenças entre elas. Luandino Vieira e Jorge Amado trazem para os
111
seus escritos um pouco da magia que tais elementos dão ao texto. Os cenários – em
alguns momentos, personificados – interagem com os personagens, como se tivessem a
função de salvaguardá-los, e atribui nova função aos espaços na narrativa – conforme
relata Mayara Neres (2010, p. 27), “Tornar os espaços da narrativa (ou o espaço
entrelaçado) corporificados e, portanto, atribuir-lhes características mágicas é ampliar o
conceito tradicional de espaço narrativo [...]”. Em A Vida Verdadeira de Domingos
Xavier, o autor, a partir da prisão do protagonista, coloca a “lua” e o “céu” funcionando
como uma espécie de testemunhas das ações e, ao mesmo tempo, como o bálsamo que
aliviará as dores daquele herói tão importante para o povo angolano dando-lhe força e
condição para suportar os maus tratos do cárcere:
Deslizando como as águas do rio, estas imagens carregam os pensamentos de
Domingos Xavier, nascendo no cacimbo do cérebro cansado, dorido de botas
de cipaio, quando o luar estendeu em cima do corpo caído na cela o seu
lençol macio. A luz branca entrava no postigo defendido pela rede de aço, e o
tractorista, mal erguendo a cabeça, pôde ver o céu azul, sem nuvens, por trás
das pálpebras inchadas e cheias de areia. Era o céu azul e a lua da sua terra
que olhavam [...]. (VIEIRA, 1977, p. 25-26)
Traz-se aqui a referida passagem, para melhor compreender como os dois
autores operam a partir da fantasia, para atingirem o real. No caso de Luandino, o
escritor induz o leitor a pensar na veracidade do cárcere e a imaginar a dor provocada
pelos maus tratos vivenciados por Domingos, apelando para o fantástico e personifica
os elementos “lua” e “céu”, como se funcionassem como curandeiros das chagas do
protagonista. Dessa forma, o autor realiza um intenso diálogo mítico entre “realidade” e
“fantasia”, atribuindo vida aos elementos que, em si próprios, já encerram extrema
carga mitológica. A lua, que é personificada na mitologia grega em Selene – filha dos
titãs Hipérion e Téia, tendo como irmãos a deusa Eos e o deus Hélios – é símbolo de
coragem, justiça, mas também, de maternidade. (BRANDÃO, 2001, p. 53) Assim
sendo, a imagem, criada por Luandino, da lua estendendo o seu “lençol macio” em cima
de Domingos alude a um gesto maternal muito conhecido – da mãe que cobre o seu
filho durante o sono.
Conforme o já mencionado em parágrafos precedentes, Jorge Amado não hesita
em chamar para sua narrativa os elementos naturais. Nela, o escritor baiano cria uma
imagem, na qual estão presentes o “céu” e a “lua”, mas com o objetivo de descrever
112
uma espécie de delírio de Antônio Balduíno – que em momento de fuga da cidade de
Cachoeira, “[...] puxa a navalha, com a garganta seca de sede. [...] Vê no céu azul o
negro velho. Não é lua, não. É Jubiabá. Ele está repetindo, ele está repetindo...”
(AMADO, 2000, p. 173). Nesse trecho, Amado, para criar a noção de delírio –
possivelmente provocado pelo desgaste físico, pela sede e pelo psicológico abalado do
personagem –, apela aos elementos “céu” e “lua” criando uma imagem fantástica de
projeção da realidade – no caso, o pai-de-santo Jubiabá – na fantasia – o “céu” e a “lua”.
Como bem lembrou Tzvetan Todorov (1980, p. 16), “[...] O fantástico é a
vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a
um acontecimento aparentemente sobrenatural.” Segundo o autor, há uma diferença
entre a oposição “real-imaginário” e a oposição “real-ilusório”, tendo como base a
veracidade dos acontecimentos. Para Todorov, no primeiro grupo, não ocorre nada de
sobrenatural, pois o que se acredita ter visto não passa de um desvio da força da
imaginação – como um sonho, uma alucinação, uma loucura; no segundo grupo, os
acontecimentos têm lugar, mas podem ser explicados racionalmente – ou como
coincidência, ou fraude, ou ilusionismo. Provavelmente, uma série de elementos
convergiram para que Baldo enxergasse a imagem do pai de santo projetada na lua. O
cansaço ocasionado pela fuga, a sede, a estranheza do lugar, o ferimento, o abalo
psicológico, provocado pelo medo de ser encontrado, e o próprio afastamento do
“macumbeiro” que sempre o protegera, tudo isso pode ter contribuído para sua visão.
Baldo olha a lua e vê Jubiabá estampado nela. Existe toda uma simbologia por
trás dessa ideia de representação do pai de santo, visto que o velho feiticeiro funciona,
na trama, como uma espécie de tutor de Balduíno, sempre a lhe apontar caminhos.
Entrelaçar a imagem de Jubiabá à imagem da lua se justifica miticamente, pois alude a
importantes símbolos de coragem, proteção e justiça, que são próprios do elemento
“lua”. (BRANDÃO, 2001, p. 60)
Bem ao estilo do que acontece com a água e com a “terra”, o terceiro elemento
que entrelaça as duas narrativas é o “fogo”, o qual aparece codificado de diferentes
formas nas tramas. Em Jubiabá, tal elemento traduz-se por meio da “luz” – as luzes que
se acendem na Cidade da Bahia. E já nas primeiras páginas do segundo capítulo da saga
amadiana, o autor apresenta a atração que as luzes provocam em Baldo, a ponto de o
menino ficar “[...] em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade [...]”
(AMADO, 2000, p. 7). Nota-se, com isso, que a relação primeira entre o elemento
“fogo” e a criança (Antônio Balduíno) dá-se pelo prisma do encantamento. Para
113
Bachelard, “[...] a interdição social é nosso primeiro conhecimento geral sobre o fogo.
O que se conhece primeiramente do fogo é que não se deve tocá-lo.” (BACHELARD,
1999, p.17, grifo do autor).
Na esteira deste pensamento, sabe-se que o fogo provoca, na criança, uma
atração que sugere ao toque e que, ao fazê-lo, a criança percebe, pela dor da
queimadura, que tal elemento é algo a ser apenas contemplado, admirado de longe. É o
que também sugere Bachelard (1999, p.16), quando afirma haver “[...] portanto, na base
do conhecimento infantil do fogo, uma interferência do natural e do social, em que este
último é quase sempre dominante” – ou seja, o aspecto quente do fogo intervém
naturalmente na sua relação com a criança; ao passo que a advertência dos adultos em
relação ao fogo estabelece uma interferência de cunho social. Bachelard ainda segue
afirmando que “[...] talvez não se tenha reparado o bastante que o fogo é muito mais um
ser social que um ser natural.” (BACHELARD, 1999, p.15, grifo do autor)
Esse breve passeio pela noção bachelardiana da relação entre o elemento “fogo”
e a criança ocorre aqui, para ajudar a pensar a ligação do personagem Balduíno com as
luzes da Cidade da Bahia, visto que, na narrativa, as luzes causam na personagem um
efeito purificador, como o fogo, e, ao mesmo tempo, revelador.
Bachelard (1999, p.12) não entende ser o “fogo”:
[...] um calor violento, tumultuoso, irritante e antinatural, que queima em vez
de cozer os humores, assim como os alimentos; mas o fogo brando,
moderado, balsâmico; o qual, acompanhado de uma certa umidade,
semelhante à do sangue, penetra ao humores heterogêneos da mesma forma
que as substancias destinadas à nutrição [...]
E, é nessa perspectiva de entendimento do elemento “fogo” que se percebe, em
Jubiabá, uma purificação de Antônio Balduíno a cada acender das luzes, entrando numa
espécie de catarse que se repete diariamente e parece revelar-lhe um caminho:
[...] Bem sabia que perderia o jantar e que a surra o aguardaria na volta. Mas
não era isso que o impedia de ir ver de perto o barulho da cidade que se
recolhia do trabalho. O que ele não queria perder era o acender das luzes,
revelação que era para ele sempre nova e bela. (AMADO, 2000, p. 8)
114
Com esse fragmento, Jorge Amado indicia o que está por vir na vida do pequeno
Balduíno. A revelação que a ele se apresenta será, mais tarde, a de uma vida conturbada
naquela cidade-luz. A purificação provocada pelo acender das luzes parece querer
colocar o personagem em estado de profunda depuração, torná-lo “melhor”, para, quem
sabe, no futuro, ele venha a ser uma liderança daquele lugar:
Mas as luzes que se acendiam purificavam tudo. Antônio Balduíno se
envolvia na contemplação das fileiras de lâmpadas, mergulhava os olhos
vivos na claridade e sentia vontade de agradar os outros negrinhos do morro
do Capa-Negro. Se algum se aproximasse dele naquele instante ele o
acariciaria, sem dúvida, não o receberia com os beliscões costumeiros, não
diria os palavrões que cedo aprendera. Passaria, sem dúvida, a mão sobre a
carapinha do companheiro de brinquedos, recostaria o seu peito ao peito do
amigo [...]. (AMADO, 2000, p. 9)
Depreende-se, a partir desse trecho, que o “fogo” interfere no comportamento de
Baldo, toca sua sensibilidade, despertando-lhe um outro ser bem diferente do cotidiano
moleque travesso, brigador, que atira pedras nos outros garotos e que rola com eles
ladeira abaixo quando em luta corporal.
Amado habilidosamente faz um jogo com o elemento “luz” e aproveita o caráter
polissêmico desse termo, para desvelar, na obra, questões alusivas à construção da
resistência política. Historicamente, o termo “luz” sempre esteve ligado ao saber, ao
conhecimento, graças ao Iluminismo, que deu conta de propagar tal conceito, tornando
o saber fruto de uma iluminação. Nos termos de Kant (1784, p. 1), Iluminismo é “[...] a
saída do homem da sua menoridade [...] a menoridade é a incapacidade de se servir do
entendimento sem a orientação de outrem”, sendo assim, as luzes da Cidade da Bahia
que tanto seduzem o pequeno Baldo, o fazem possivelmente com o objetivo de
convocá-lo a uma fuga da “menoridade” kantiana, já que “[...] Há no homem uma
verdadeira vontade de intelectualidade [...]”.(BACHELARD 1999, p.18) E é
exatamente o que sugere a narrativa ao relatar a descoberta da greve por Balduíno e a
sua “libertação” da influência do pai de santo Jubiabá.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a Cidade da Bahia ao apresentar o fogo
das luzes a Balduíno, levando-o superar o seu mestre – Jubiabá – bem como a mudar a
sua história, reflete o que Bachelard chamou de “complexo de Prometeu” – sob o qual
propõe agrupar “[...] todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos
115
pais, mais que nossos pais, tanto quanto nossos mestres, mais que nossos mestres [...]”
(BACHELARD, 1999, p.18, grifo do autor) – inclusive, após descobrir o caminho da
luta contra os ricos, Baldo torna-se para o seu antigo mestre “[...] Oxolufã, Oxalá velho,
o maior dos santos.” (AMADO 2000, p. 316).
Vê-se que Amado vai fundo nas imagens e codifica, por meio do elemento “luz”,
algo que representa um dos pilares do pensamento comunista: a iluminação da classe
operária – não é à toa que Baldo irá obedecer ao chamado das “luzes” e conhecerá a
greve como luta política da classe operária.
Já em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, o elemento “fogo” é codificado
por meio do “sol”. Luandino encontra, nesse astro, o elemento capaz de transmitir
energia e vida para os personagens. Curiosamente, o “sol” é o elemento que permeia a
narrativa, sempre se antecipando a acontecimentos importantes. E é exatamente o “sol”
o grande “fogo” purificador, que, na narrativa, irá ativar a memória do personagem
“velho Petelo”, fazendo-o lembrar de um “antigamente” de liberdades, para, assim,
purificar o seu presente, marcado por repressão e ausência de liberdade. O autor coloca
o “sol” como símbolo do que era mais caro aos angolanos naquele momento, a
liberdade depuradora:
O sol subia no céu azul sem nuvens. Velho Petelo olhava com saudade a
mancha nebulosa na ponta da Ilha – a ponte do carvão, com certeza já não via
bem, mas jurava mesmo – onde tantas vezes atracara e carregara carvão para
as caldeiras. [...] Com quatro matonas e um roncador pescados, velho Petelo
enchendo de sol suas recordações [...]. (VIEIRA, 1977, p. 16)
Luandino ainda atribui ao “sol” um caráter libertador, visto que o seu
aparecimento libera as recordações do velho Petelo, trazendo imagens de um momento
de felicidade na vida do ancião; e, ao mesmo tempo, o autor confere ao referido astro a
condição de “curador”, pois, como um bálsamo, irá proteger, aliviar e livrar Domingos
Xavier das dores psicológicas do cárcere, promovendo imagens que o remetem à crença
no término do seu infortúnio:
E mais imagens, mais visões, com o luar a brincar dentro da cela. A longa
estrada; os imbondeiros floridos; a viagem, na carrinha, pela madrugada
depois da noite na Administração. Pés, mãos e pescoço amarrados numa só
corda e o cheiro bom da terra malhada pelo cacimbo da noite entrando no
nariz, dilatando o peito. O bater cego do cipaio a qualquer movimento. Mas o
sol da manhã a beijar-lhe as feições inchadas, a revelar-lhe, depois, a larga
porta chapeada se abrindo diante dos olhos, nessa manhã clara, com os
116
cipaios surrando e correndo atrás do povo que ele sentiu solidário no seu
silêncio, que ele ainda viu na frente dos olhos colados e inchados. [...].
(VIEIRA, 1977, p. 26)
Vê-se, portanto no fragmento acima, que, por meio das imagens e visões,
Domingos, vive momentaneamente sensações boas e ruins, que se alternam até a
chegada do “sol” pela manhã, o qual lhe servirá de bálsamo para as dores psicológicas,
ocasionadas pelos infortúnios do cárcere. Esse caráter medicinal do “sol” está presente
no pensamento de Bachelard (1999, p.12), para quem tal astro, que normalmente está
associado à ideia de luz e vitalidade, é, junto com o fogo, “o medicamento mais
insinuante”.
Dada a alusão do elemento "fogo" à liberdade, pela presença do sol,
referenciando a condição inalienável do ser humano de já nascer livre, faz-se importante
abrir aqui um parêntese para revelar que a conexão entre “sol” e “liberdade” parece tão
íntima de Luandino, que, em determinado momento da narrativa, tem-se dúvida acerca
de quem fala, ou seja, a voz do narrador parece invocar a voz do autor – também
ansioso por ver Angola livre do colonialismo – e interfere no pensamento do
personagem Xico João, no instante em que ele pensa na prisão de Domingos Xavier:
Na boca do velho Petelo e miúdo Zito, menino corredor de todos os
musseques, caçador de fisga e visgo, aquela cara não lhe conheciam lá em
cima. Mas o importante era dar encontro em Miguel, talvez ele sabia quem
era. Se não sabia, ia informar quem devia, da prisão do companheiro. E
assim, pensativo, perdia o poente bonito, nosso sol se afogando no sangue do
mar azul de todas as cores. (VIEIRA, 1977, p. 39. Grifo meu)
A presença da expressão “nosso sol” na presente citação deixa clara a
interferência de uma voz do narrador. Possivelmente a voz de um angolano, saudoso e
nacionalista. Não seria nenhuma surpresa se o autor, ao criar a narrativa, colocasse, para
narrá-la, um angolano apaixonado por seu país e por suas belezas naturais, por seu
“poente bonito” ou pelo seu “mar azul de todas as cores”. Luandino se assume um
apaixonado por Angola, não só pelas declarações que já deu sobre o seu amor por esse
país que o adotou e que ele, por sua vez, também o fizera; nem só pelo seu explícito
amor por Luanda, seu topônimo, mas, pelas incansáveis tentativas de mostrar, nas
117
narrativas de sua autoria, a referida cidade como uma terra que, malgrado as espoliações
coloniais e sofrimento do povo, nunca deixará de ser um lugar de beleza, magia e de
fecundas cores.
Se o elemento “fogo”, representado ora pelo “sol” ora pela “luz”, é símbolo de
liberdade e proteção, o elemento “ar”, o quarto elemento comunicante entre as
narrativas, é o elemento que antecede a chegada de vários eventos, ou seja, é uma
espécie de “sentinela avançada”, representada, nas obras, pela ação dos ventos.
Em Jubiabá, os ventos se antecipam às chuvas, como um prenúncio da chegada
das tempestades, que vêm purificar o morro com as suas águas, à espera do acender
catártico das luzes:
A tarde tinha sido sombria, cheia de nuvens negras. Com a noite veio um
vento grosso, pesado, que apertava os homens no pescoço e assoviava nos
becos. Enquanto as luzes não acenderam o vento dominou a cidade, correu
com os moleques pelas ladeiras, visitou as mulheres do beco das Flores e do
beco de Maria Paz, levantou nuvens de pó, invadiu casas e quebrou
moringas. Quando as luzes acenderam caiu uma chuva violenta, um temporal
como há muito não havia [...]. (AMADO, 2000, p. 37)
Vê-se que, enquanto as luzes não se acenderam, os ventos tomaram conta do morro e da
cidade, como que para anunciar a chegada de uma depuração, que seria causada pelo
fogo das luzes.
Na presente narrativa, além do caráter prenunciador, os ventos também querem
indiciar liberdade, haja vista serem eles que sopram as velas dos saveiros, fazendo os
marinheiros navegarem mar adentro, onde, “[...] Pela manhã sairiam rápidos, atirados
pelo vento, as velas soltas, cortando a água da Bahia.” (AMADO 2000, p. 117). Esses
mesmos ventos que ora atiram os barcos nas águas salgadas do mar da Cidade da Bahia,
sopram desse mar para a cidade de Luanda, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,
também se antecipando às chuvas:
A brisa marítima não soprou e meio-dia quase, nuvens muito brancas e
grossas começaram a subir do Sul empurradas por ligeiro vento que se
levantou ao princípio da tarde. E foi depois a grande chuvada que deixou um
rasto funesto no musseque de casas de zinco, pau-a-pique, madeira, latas
velhas, papelão até. (VIEIRA, 1977, p. 53)
118
Se, em Jubiabá, os ventos anunciam chuvas purificadoras, o mesmo ocorre em A
Vida Verdadeira de Domingos Xavier, pois, logo após o cair das chuvas, descrito na
passagem acima, há uma renovação da paisagem, com a emergência de um bucólico dia,
como se pode ver em: “[...] o dia era lindo. Algumas acácias, junto à estrada, exibiam
suas flores cor de fogo [...]” (VIEIRA, 1977, p. 53).
Percebe-se que na narrativa de Luandino caminha para apontar os ventos como
sendo prenúncio de chuvas. A sua presença é sempre ameaçadora e, vez por outra,
arrasadora, como as próprias tempestades:
[...] aquele vento sufocante que começou a soprar no princípio da tarde,
levando papéis e folhas pelo musseque acima, com o sol se escondendo nos
grossos novelos de nuvens brancas correndo para nordeste [...]. (VIEIRA,
1977, p. 58)
Na obra, o autor revela não só a forma como os ventos se antecipam à chegada
das chuvas, mas também como as prepara:
[...] lá em baixo, na Baía, os grandes barcos escuros parados, as águas
virando de azul bonito para cinzento. O vento tinha parado novamente, e o
calor já não era tão pesado. O sol desaparecera tapado na camada de nuvens
que agora voavam em cima de toda a cidade, negras e ameaçadoras.
(VIEIRA, 1977, p. 59)
Pode-se depreender, portanto, que os ventos aparecem, em ambas as tramas,
como símbolo de renovação e liberdade, marcado pelo poder renovador das chuvas.
Porém, na narrativa luandina os ventos possuem existência ambivalente, visto que a sua
presença pode ser positiva ou negativa: tanto pode trazer destruição para uns –
conforme já foi mostrado em passagens precedentes – quanto fazer a alegria dos outros
– como se pode ver em: “[...] Nem um vento pequenino que fazia, mulembas não
xaxualhavam, meninos de papagaios na mão esperavam só o vento da brincadeira.”
(VIEIRA,1977, p. 54). Nesse fragmento, o autor exprime o caráter lúdico do vento, que
faz a alegria das crianças, em contraste com o seu perfil devastador, de vanguarda das
tormentas, uma vez que, os “meninos de papagaios na mão” esperavam apenas que o
119
vento – cujo perfil relaciona-se com a leveza e a dinâmica (BACHELARD, 2001c, p.
165) – desse movimento aos seus papagaios.
Quatro elementos são trabalhados esteticamente pelos autores como forma de
desenvolvimento simbólico, que torna as narrativas recheadas de possibilidades
interpretativas, capaz de estabelecer com a realidade diálogos múltiplos. Jorge Amado e
José Luandino Vieira trabalham a partir de imagens e tentam encontrar, nas
possibilidades subjetivas da linguagem ficcional, códigos que transmitirão mensagens
possíveis de serem decodificadas por meio da sensibilidade. Percebe-se nos dois
autores, cada um a seu tempo, que eles escrevem talvez com o igual intento de defender
uma ideia de liberdade que se encontra totalmente sucumbida do seio social, mas que se
plasma nos elementos da natureza. Nas tramas em estudo, seus protagonistas, como
heróis, irão demonstrar a sua luta em busca dessa liberdade, sob a proteção da “mãe
natureza”.
Entende-se a literatura como portadora da função de levar a cada leitor,
mensagens, permitindo-lhe o contato direto com os códigos formulados por uma
infinidade de autores, em diversas partes. E ao leitor cabe romper a barreira do
imediatismo interpretativo, fazendo mover a “roda” das múltiplas significações. Só
assim será possível adentrar ao campo da pluralidade e perceber as possibilidades
presentes no texto literário.
4.2 AMADO E LUANDINO: A CONSTRUÇÃO MÍTICA DO HERÓI
Se as narrativas em estudo se aproximam no tocante ao trabalho com os
elementos naturais, chega-se aqui a um momento de divergência entre elas. Ambas as
obras trazem à baila questões míticas envolvendo os seus personagens centrais, Antônio
Balduíno e Domingos Xavier, que se tentará aqui expor algumas delas.
Pode-se notar, ao longo da narrativa amadiana, que Jorge Amado, na perspectiva
de construção de um herói – Balduíno –, o faz à imagem e semelhança do orixá Ogum3.
Essa constatação pode explicar a extrema relação do personagem com o Mar – a qual,
inclusive, já foi relatada no início deste capítulo –, visto que a tradicional mitologia ____________________________
3 Na mitologia Iorubá e no Candomblé da Bahia, é o orixá ferreiro, senhor dos metais.
120
Iorubá revela ser Ogum filho de Iemanjá. Além disso, sendo Ogum o orixá considerado,
nas religiões de matriz africana, principalmente o Candomblé da Bahia, como “o grande
ferreiro”, as próprias armas utilizadas por Balduíno para sua defesa – ou seja, punhais,
facas e navalhas –, revelam a ligação com esse orixá. Também merece atenção o
envolvimento do personagem com as mulheres da Cidade da Bahia. Na narrativa,
Antônio Balduíno ama a todas as mulheres, mas não se prende a nenhuma delas. Quer
ser livre, para viver novas histórias, para lutar outras lutas pelo mundo a fora, sem
compromissos:
[...] Mulata que aparecesse na sua frente era mulata amigada com ele. [...] Ele
as amava e não as via mais. Passavam pela sua vida como aquelas nuvens
que passavam pelo céu e que serviam para ele fazer as comparações com elas
[...]. (AMADO, 2000, p. 85)
Já Orlando Costa Santos (2000, p. 10) revela que:
Ogun é um solteirão convicto. Teve muitas mulheres, mas não vive com
nenhuma. Um dos mitos sobre ele diz que Ogum é filho de Iemanjá com
Odudua. Desde criança já era destemido, impetuoso, arrojado e viril, tendo se
tornado sempre mais e mais um brilhante guerreiro.
Se se tomar a descrição que é feita de Ogum por Orlando Costa e confrontá-la
com a descrição de Jorge Amado sobre Baldo – inclusive de que ele “Cedo chefiou os
demais garotos do morro, mesmo os bem mais velhos do que ele. Era imaginoso e tinha
coragem como nenhum. Sua mão era certeira na pontaria do badoque e seus olhos
faiscavam nas brigas [...]” (AMADO, 2000, p. 10-11) –, poder-se-á concluir, com mais
veemência, haver ligação entre ambos. As características atribuídas a Baldo não só o
aproximam das miticamente descritas para o orixá Ogum, como também podem revelar
a fonte de construção de tal personagem. Em Jubiabá, o perfil aguerrido de Antônio
Balduíno, sempre entrando em lutas para defender a si próprio ou a outrem, aparece por
toda a narrativa. Mas é justamente no capítulo de nome “Fuga”, que Amado imbrica a
imagem do homem à do orixá, descrevendo a fuga de Baldo da cidade de Cachoeira
pelas matas, tal como a mitologia Iorubá descreve a viagem de Ogum da terra rumo ao
“Orum”6:
_______________________
6 Orun é uma palavra da língua Ioruba que define o céu ou o mundo espiritual.
121
Abre caminho pelo mato. Corre entre as árvores que se fecham. Há bem três
horas que ele corre assim, como um cão perseguido pelos garotos malvados.
No silêncio do mato os grilos se fazem ouvir. Corre sem rumo, corre,
perdido, varando o mato, com os pés doídos evitando as estradas, se rasgando
nos espinhos. [...] E o mato sem fim se estende na sua frente. Não vê nada na
escuridão. Agora pára. Ouve ruídos de matos quebrados. [...] Fica atento, a
mão na navalha, única arma que lhe resta. [...] A navalha está aberta em sua
mão [...]. (AMADO, 2000, p. 168)
Tanto a fuga como o comportamento de Baldo no interior da mata remete à
figura de Ogum. A história mitológica desse orixá dá conta de informar que ele é o
responsável pela condução dos mortos rumo ao segundo plano – o plano dos ancestrais.
E o “grande desbravador” faz tal condução pelas florestas. Roland Walter (2009, p.217)
revela que “Além de ser um dos símbolos-chave da resistência à escravidão, a floresta é
um lugar de iniciação histórico-cultural [...]”. E, para Chamoiseau (1997, p. 105), “a
floresta é o lugar do renascimento”. Refletindo em torno de tal pensamento, e levando
em consideração o fato de ter, miticamente, Ogum, a missão de desbravar o caminho e
apresentar aos mortos o “Orum” – segundo a mitologia Iorubá, morada de Olorum, o
grande Deus – tal orixá seja considerado, pela tradição Iorubá, como sendo uma espécie
de “Prometeu” africano. (REIS, 1999, p. 77)
Se, por um lado, busca-se aproximar o personagem amadiano Antônio Balduíno
de um ícone da mitologia africana e representante do “sagrado” na cultura afro-
brasileira; por outro, entende-se a construção do personagem de Luandino, Domingos
Xavier, como sendo mais próximos dos princípios da cristandade. Desde a sua captura
até o cárcere, Domingos carrega a grande “cruz” da liberdade do povo angolano. Na
narrativa de Luandino, o protagonista morre mas não revela os assuntos da sua gente.
Todo o sofrimento por que ele passa, pode ser comparado ao sofrimento de Jesus –
personagem que, na tradição cristã, teria colocado a sua vida em favor da humanidade.
Com isso é possível inferir que Luandino vai buscar, no Catolicismo – muito presente
em Angola –, as bases para fundar um grande herói nacional.
Além disso, não parece nenhuma coincidência o fato de a esposa de Domingos
chamar-se “Maria” e peregrinar, durante dias, à sua procura, visto que a história do
Cristianismo dá conta de relatar que Maria, mãe de Jesus, também peregrinou até
concebê-lo e fazê-lo nascer na mente e no coração do povo. Por conta disso e para além,
Luandino, estratégica e curiosamente, constrói a trajetória da referida personagem
122
sempre pelo caminho das flores e, dentre outras flores citadas em sua narrativa, ancora-
se nas “acácias”, para adornar o caminho de Maria: “Na hora que Maria levantou o dia
era lindo. Algumas acácias, junto à estrada, exibiam suas flores cor de fogo
[...].”(VIEIRA, 1977, p. 53); e mais “[...] A vila se escondia entre as acácias floridas,
bananeiras, milheirais, tudo na sua volta era verde, fresco e novo e as águas do rio
tinham também cor verde. Mas Maria seguia indiferente pelo meio do caminho.”
(VIEIRA, 1977, p 30). Convém lembrar que a acácia é uma planta muito descrita em
algumas passagens bíblicas e, na historiografia cristã, acredita-se ter sido adornada por
acácias a coroa de espinhos colocada em Cristo.
Pode-se entender como sendo estratégica a postura desse autor de criar a
personagem Domingos Xavier amparada em bases cristãs, visto que, naquela
conjuntura, Angola era colônia de Portugal, e o Catolicismo imperava como religião
oficial; some-se a isso o fato de ser a maioria da população analfabeta em língua
portuguesa. Diante disso, fica evidente que a melhor saída seria o entendimento pela
imagem: associar a imagem de Domingos Xavier à imagem de Cristo talvez fosse a
melhor forma de usar a arma do colonialismo contra o próprio colonizador. Vale
observar, ainda, que assim como Cristo, Domingos sofre no cárcere, durante dois dias,
vindo a morrer no terceiro dia para ressuscitar no seio do povo angolano:
– Irmãos angolanos. Um irmão veio dizer mataram um nosso camarada. Se
chamava Domingos Xavier e era tractorista. Nunca fez mal a ninguém, só
queria o bem do seu povo e da sua terra. Fiz parar esta farra só para dizer
isto, não é para acabar, porque a nossa alegria é grande: nosso irmão se
portou como homem, não falou os assuntos do seu povo, não se vendeu. Não
vamos chorar mais a sua morte porque, Domingos António Xavier, você
começa hoje a sua vida de verdade no coração do povo angolano… (VIEIRA,
1976, p. 94)
Débora Leite David, em estudo já mencionado no presente trabalho, muito bem
observa essa questão da comparação de Domingos à imagem de Cristo. Porém, a autora
limita-se à observação, sem discutir tal correlação, apenas descrevendo o fato como
sendo “emblemático” – certamente por já perceber a necessidade de desdobramentos:
Domingos é retirado do interior da cela para ser submetido ao último
interrogatório que é descrito detalhadamente. Esse capítulo termina com a
123
morte do preso na madrugada de sábado, terceiro dia após a morte de
Domingos. Entendemos como emblemático o fato da morte do protagonista
ocorrer no terceiro dia a contar do início da narrativa, parecendo apontar para
a passagem bíblica sobre a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Domingos,
com a sua morte no terceiro dia de martírio e dor “começa a sua vida de
verdade no coração do povo angolano”. (DAVID, 2006, p. 57)
Diante do exposto, vê-se que tanto Amado quanto Luandino buscaram, na
tradição cultural, os mitos que fundariam a construção de seus protagonistas. Antônio
Balduíno e Domingos Xavier são frutos de referências que orientam – e continuam a
orientar – as práticas sociais de Brasil e Angola, as quais – como se procurou mostrar –
acabam por engendrar modelos advindos do campo mítico-religioso.
124
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os teóricos da literatura comparada, dentro dos seus históricos embates sobre a
natureza e a função desse campo de saber, bem como de seus calorosos debates sobre a
noção de “fontes” e “influências”, trouxeram à lume questões importantes de serem
observadas. Uma dessas questões gira em torno da própria forma como eram
comparadas as obras. Se, dentro da história, o comparatismo literário sempre se
preocupou em comparar duas ou mais obras, evidenciando os seus pontos comuns, ou
tentando nelas observar releituras de outros textos, ou ainda para se incorrer em juízos
de valor; em tempos atuais, vislumbra-se enveredar por searas outras no trato com essa
prática. Pode-se tomar por ponto de partida caminhos que aproximem as obras a partir
de elementos pouco objetivos, no sentido de explorar os “espaços vazios” das
narrativas, representados pelos interstícios entre uma e outra interpretação.
Feito isso e rompendo com a noção de filiação de uma obra literária a outros
textos considerados “fontes”, a literatura comparada quebra, em definitivo, a noção de
“dependência literária” e coloca a figura do escritor como alguém dotado de alguma
autonomia. Também é possível afirmar que o próprio desenvolvimento da ideia do que
é fazer literatura comparada – agora não mais uma simples prática de comparar textos,
mas observação que se tem do conjunto da narrativa – já revela um promissor caminho
para esse campo.
Quando se resolveu trabalhar com as duas obras em questão – Jubiabá e A Vida
Verdadeira de Domingos Xavier –, pretendeu-se, a bem da verdade, observar
aproximações entre ambas que fossem além das já desgastadas análises geralmente
apontadas. A opção por duas narrativas que contam histórias aparentemente distintas
deu-se por acreditar no poder comunicativo da literatura e na intrigante prática que é o
comparatismo literário. Aproximar tais obras significou laçar um olhar distinto sobre a
própria experiência de “criar”. Contudo, cumpre informar que não se buscou aqui
responder ao questionamento acerca de quais seriam os limites da obra literária no que
concerne ao comparatismo, mas, sim, esgarçar as sintéticas visões que há no tocante a
essa temática, colocando a obra literária como uma fecunda demonstração de
experiência estética.
Quando se identificou em Jorge Amado e Luandino Vieira, por meio das
narrativas em estudo, diálogos, notou-se que ambos exibem uma codificação de
125
linguagem que transcende o texto e invade o terreno da poesia, tornando as duas obras
suscetíveis à intercomunicações. No momento em que também se percebeu nesses
autores uma forma particular de abordagem da realidade, observou-se que as suas
referidas obras apresentavam diálogos que ora aproximavam as narrativas, ora as
separavam. A partir da percepção do olhar que Amado e Luandino lançaram sobre as
suas cidades – Salvador e Luanda, respectivamente –, que priorizava a personificação da
natureza e de seus elementos naturais, fazendo-os interagir com os seus protagonistas, é
que se entendeu as duas obras como sendo próximas.
A Cidade da Bahia e a cidade de Luanda ainda figuram como importante
emblema para se discutir a situação dos seus habitantes negros e pobres; além de
denunciarem os apartheids sociais existentes em seus espaços, que, nas duas narrativas,
opõem a cidade alta à cidade baixa. Apesar das similaridades, na abordagem dos
problemas sociais, entre Jubiabá e A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, a denúncia
das mazelas é feita de forma distinta: Amado, muito embora apresente uma visão aguda
na trama sobre os assuntos da esfera social, em alguns momentos da narrativa, não
expõe claramente esses temas, sugerindo-os apenas, deixando por conta do leitor
interpretações outras; já Luandino Vieira, pela própria situação por que passava a
sociedade angolana naquele momento, de violência institucional e repressão desmedida,
traz mais claramente estampada essas questões – fato que insere os seus textos na
categoria de texto-denúncia, desvelando as reais situações enfrentadas por uma
sociedade colonizada. Isso revela que, não obstante os profundos diálogos entre as
narrativas, ambas exibem também as suas divergências e apontam para mais uma faceta
do comparatismo, que é a de aproximar na diferença.
As citadas obras, que serviram de objeto para o presente estudo comparatista,
foram escolhidas também levando-se em consideração a trajetória dos seus autores. Por
mais que ainda não se tenha total segurança para se perceber qual a relação entre os
fatos vivenciados por um autor e o reflexo disso em sua obra, percebeu-se a intensa
presença de princípios comunistas permeando as narrativas. Amado e Luandino –
propagadores desses princípios – indiciaram, pela própria construção dos seus
protagonistas, uma crença nos pilares do Comunismo: Antônio Balduíno conhece a
greve e torna-se um ativista político; Domingos Xavier é símbolo da articulação dos
movimentos sociais, e sua morte emblematiza a luta do proletariado contra as estruturas
de dominação.
126
A comparação entre as narrativas deu o tom dos debates acerca das diferentes
noções de Comunismo que os autores demonstraram ter, desvelando, assim, a sua
distinta tradução, tanto nos termos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual
Amado era afiliado, quanto no entendimento do Movimento Popular de Libertação de
Angola (MPLA), que forneceu régua e compasso para forjar o pensamento comunista
de Luandino.
Essa diferença aparece plasmada na própria forma como cada um representou a
pobreza e apontou caminhos para solucioná-la. Amado centrou-se nos espaços, com o
intuito de contar a história dos seus personagens – provavelmente numa alusão às
teorias sociais, que preconizavam a influência do meio na formação do indivíduo –, e
colocou a greve como forma de se conseguir a liberdade. Já Luandino partiu dos
personagens, para contar as histórias dos espaços angolanos. Na obra desse autor, os
personagens carregam a carga dramática capaz de fazer imaginar os seus ambientes.
Talvez, por conta disso, alguns personagens de Luandino, não obstante suas condições
de pobreza, apresentam, em alguns momentos, maior dignidade que os amadianos.
Domingos Xavier, por exemplo, apesar da violência perpetrada pelos brancos, manteve-
se firme e “não revelou os assuntos da sua gente”.
A importância de um estudo comparado está justamente na possibilidade de se
entender as diversas trocas simbólicas que ocorrem entre as obras em comparação. Em
Jubiabá, Jorge Amado apresentou, dentre outros símbolos, as águas salgadas como
elemento catalizador da narrativa. Da mesma forma, o fez Luandino com as águas
doces, em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Ambos revelaram uma idêntica
ligação das águas com os protagonistas das obras, traduzida na relação de maternidade.
O uso do elemento “fogo” ora representado pelo sol da cidade de Luanda, ora pelas
luzes da Cidade da Bahia, convergiu para o seu entendimento como sendo fonte de
poder, seja o poder do conhecimento – iluminação – seja o poder purificador –
transformação. Tanto Amado quanto Luandino valeram-se de tal elemento, para indicar
momentos de transformação na trajetória dos seus protagonistas.
Ficou ainda evidente que o elemento “terra”, traduzido no barro e na lama
presentes nas referidas cidades, apareceu, para marcar a pobreza da população e a
desassistência estatal. Os autores usaram de igual elemento para, de forma diferente,
denunciarem as mazelas por que passavam os indivíduos de tais urbes. Já o elemento
“ar”, nas tramas simbolizado pelo vento, prenúncio das chuvas, apareceu como marca
de transformação e liberdade. Assim, a presença dos quatro elementos naturais mostrou
127
um nível de diálogo particular entre as obras em questão e abriu espaço para múltiplas
percepções de sentidos.
As duas narrativas se aproximam na condição de textos que auxiliam a
afirmação nacional e identitária. Poder-se-ia afirmar que, por essa razão, se constituam
como obras que poderiam funcionar como metonímias do próprio percurso das nações.
Elas denunciaram os problemas sociais, culturais e políticos pelos quais passaram
Angola e Brasil, em diferentes momentos históricos; ao mesmo tempo em que tentaram
resgatar e afirmar traços culturais importantes para a manutenção social. Urge que tais
análises sejam mais exploradas em novos trabalhos, para que se possa ter ampliada a
visão em torno desses dois países, que se comunicam principalmente no plano cultural.
A instituição dos heróis, Antônio Balduíno e Domingos Xavier em ambas as narrativas,
marcou a própria postura dos autores dentro dos seus países, haja vista a luta de Amado
pelo respeito às religiões de matriz africana na Bahia e a de Luandino, pela
independência, cultural, religiosa, política etc, junto à sociedade angolana.
Foi Jorge Amado quem, com Jubiabá, tencionou e pôs em debate questões que a
própria elite brasileira não desejava entabular, como as discussões acerca da condição
dos negros em relação aos brancos – as quais geravam determinismos sociais; da
situação dos trabalhadores em relação aos seus patrões; ou, ainda, acerca da infância
desassistida – fato que já se constituía na realidade das cidades de modernização
iminente. Acredita-se que com o personagem Antônio Balduíno Amado quisesse
discutir a figura do baiano como metonímia do brasileiro e evidenciar, de certa forma,
as contradições e adversidades por que passava esse povo. Porém, questões como essas
devem ainda ser alvo de investigações outras, que intentem demonstrar, mais a fundo, a
riqueza de tais debates.
Entretanto, Luandino – assim como Amado – também estabeleceu tensões
dentro de Angola com a obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Denunciou a
violência institucionalizada, debateu a desassistência social plasmada no critério de cor,
bem como revelou a importância da resistência e da unidade na luta contra o
colonizador. Possivelmente, com Domingos Xavier, Luandino tenha intentado
apresentar um modelo a ser seguido por todos que almejassem a liberdade e a
independência colonial.
O cotejo das obras supracitadas flagrou tanto a instituição de iguais projetos de
resistência, plasmados na luta, como permitiu enxergar o poder comunicativo da obra
literária, mostrando ser por meio da literatura que se lançam as bases para engendrar
128
modelos, os quais irão balizar processos intercomunicativos, derrubando, aqui e ali,
fronteiras e ampliando os limites da interpretação textual. Perceber aproximações ou
afastamentos entre obras literárias a partir dos seus diálogos significa perceber os
diversos influxos compartilhados entre autores, dentro da mais fecunda demonstração
de liberdade estética.
129
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141
ANEXO - José Luandino Vieira e Jorge Amado: biobibliografias
José Luandino Vieira
José Mateus da Graça Vieira, nascido em 04/05/1935, é um escritor angolano
nascido em Portugal. Em 1938, emigrou com os pais para Angola. Passou a juventude
em Luanda, onde concluiu os estudos secundários. A luta contra a dominação
portuguesa custou-lhe mais de uma década na prisão, onde escreveu boa parte de sua
obra, que divide-se entre contos, romances e poesias.
Contos:
A cidade e a infância, 1957;
142
Duas histórias de pequenos burgueses, 1961;
Luuanda, 1963;
Vidas novas, 1968;
Velhas histórias, 1974;
Duas histórias, 1974;
No antigamente, na vida, 1974;
Macandumba, 1978;
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & eu, 1981;
História da baciazinha de Quitaba, 1986;
Romances:
A vida verdadeira de Domingos Xavier, 1961;
João Vêncio. Os seus amores, 1979;
Nosso Musseque, 2003;
Nós, os do Makulusu, 1974;
Kapapa: pássaros e peixes, 1998;
À espera do luar, 1998;
O livro dos rios, 1º vol. da trilogia De rios velhos e guerrilheiros, 2006.
infanto-juvenis
A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens. Guerra para crianças,
2006.
Poesias:
143
Canção para Luanda, 1957;
Natal, 1960;
Buganvília, 1962;
Girassóis, 1962;
Estrada, 1963.
Jorge Amado
Filho de João Amado de Faria e de D. Eulália Leal, Jorge Amado de Faria
nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de
Itabuna - Bahia. É um dos representantes do ciclo do romance baiano. Escritor desde a
adolescência, Jorge Amado segue o estilo literário do romance moderno e seus
personagens geralmente são plantadores de cacau, pescadores, artesãos e gente que vive
próximo ao cais, em Salvador, capital da Bahia. Este romancista brasileiro é um dos
mais lidos no Brasil e no mundo, com livros traduzidos para diversos idiomas.
144
Romances:
O País do Carnaval, 1930;
Cacau, 1933;
Suor, 1934;
Jubiabá, 1935;
Mar morto, 1936;
Capitães da areia, 1937;
Terras do Sem-Fim, 1943;
São Jorge dos Ilhéus, 1944;
Bahia de Todos os Santos, guia, 1945 (Tradução francesa Bahia de tous les saints,
Paris: Gllimard,1979);
Seara vermelha, 1946;
Os subterrâneos da liberdade, 1954;
Gabriela, cravo e canela, 1958;
A morte e a morte de Quincas Berro d'Água, 1961;
Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, 196;
Os pastores da noite, 1964;
O Compadre de Ogum, 1964;
Dona Flor e Seus Dois Maridos, 1966;
Tenda dos milagres, 1969;
Teresa Batista cansada de guerra, 1972;
Tieta do Agreste, 1977;
Farda, fardão, camisola de dormir, 1979;
Tocaia grande, 1984;
O sumiço da santa, 1988;
A descoberta da América pelos turcos, 1994.
Contos:
145
Do recente milagre dos pássaros, 1979.
Biografias:
ABC de Castro Alves, 1941;
O cavaleiro da esperança, 1942.
Memórias:
Navegação de cabotagem, 1992;
O menino grapiúna, 1982.
Viagens:
O mundo da paz, 1951.
Teatro:
O amor do soldado, 1947.
Crônicas:
Hora da Guerra, 2008.
Infantil:
A bola e o goleiro, 1984;
O gato Malhado e a andorinha Sinhá, 1976.
146
Poesia:
A estrada do mar, 1938.
Fábulas:
O milagre dos pássaros, 1997.