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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
ESTUDOS JUDAICOS E AacuteRABES
TELMO JOSEacute AMARAL DE FIGUEIREDO
Um nome que faz toda diferenccedila anaacutelise literaacuteria de Gecircnesis 3223-33
VERSAtildeO CORRIGIDA
Satildeo Paulo
2016
TELMO JOSEacute AMARAL DE FIGUEIREDO
Um nome que faz toda diferenccedila anaacutelise literaacuteria de Gecircnesis 3223-33
VERSAtildeO CORRIGIDA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Judaicos e Aacuterabes do
Departamento de Letras Orientais da Faculdade de
Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da
Universidade de Satildeo Paulo como parte dos
requisitos para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Letras
Orientador Prof Dr Moacir Aparecido Amacircncio
Satildeo Paulo
2016
FIGUEIREDO Telmo Joseacute Amaral de Um nome que faz toda diferenccedila anaacutelise literaacuteria de
Gecircnesis 3223-33 Tese de Doutorado apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias
Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr ______________________________ Instituiccedilatildeo_________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Prof Dr ______________________________ Instituiccedilatildeo_________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Prof Dr ______________________________ Instituiccedilatildeo_________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Prof Dr ______________________________ Instituiccedilatildeo_________________________
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
Dedico este trabalho primeiramente agrave minha
querida matildee Maria Aparecida Amaral de Figueiredo
por sempre ter-me apoiado e desejado o bem Outra
pessoa fundamental para que eu tivesse obtido
sucesso em meus estudos foi a minha querida tia
Sumie Matai de Figueiredo que me acolheu em sua
proacutepria residecircncia Dedico esse estudo tambeacutem a
uma pessoa que muito me inspirou e incentivou a
intraprender esse caminho refiro-me ao Prof Dr
Carlos Daghlian (in memoriam) E finalmente ao
clero de minha Diocese de Jales (SP) e ao povo de
Deus daquela regiatildeo que sempre acreditou na forccedila
do Bem e do Amor
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Dr Moacir Aparecido Amacircncio meu querido orientador que sempre me
motivou vigiou pela minha perseveranccedila e dedicaccedilatildeo a esta tese
Aos meus bispos D Luiz Demeacutetrio Valentini (emeacuterito) e D Joseacute Reginaldo Andrietta
por terem confiado em mim e permitido afastar-me de minhas funccedilotildees na diocese de Jales (SP)
para poder consagrar-me a este estudo
Agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas pela oportunidade de realizaccedilatildeo
desse trabalho de pesquisa que foi fundamental para o meu amadurecimento como professor e
estudioso de literatura biacuteblica
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (Capes) que me
concedeu uma valiosa e necessaacuteria bolsa de estudos para que eu pudesse consagrar-me
totalmente aos estudos e pesquisas
Pouco a Leste do Jordatildeo
Registram os Evangelistas
Um Ginasta e um Anjo
Lutaram longa e violentamente ndash
Ateacute que a manhatilde tocou a montanha ndash
E Jacoacute cada vez mais forte
O Anjo pediu permissatildeo
Para o Desjejum ndash e voltar ndash
Assim natildeo disse o astuto Jacoacute
ldquoNatildeo o deixarei ir
A menos que me abenccediloerdquo ndash Estrangeiro
E este aquieceu ndash
A luz volteou os velos de prata
Aleacutem das colinas de ldquoPenielrdquo
E o aturdido Ginasta
Descobriu que derrotara a Deus
(DICKINSON Emily sd)
(Trad Carlos Daghlian)
RESUMO
FIGUEIREDO Telmo Joseacute Amaral de Um nome que faz toda diferenccedila anaacutelise literaacuteria de
Gecircnesis 3223-33 2016 190 f Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias
Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2016
Esta tese tem por objetivo analisar a periacutecope de Gecircnesis 3223-33 que constitui um dos
elementos estruturantes do conhecido ldquociclo de Jacoacuterdquo que integra a histoacuteria dos patriarcas de
Israel na Biacuteblia Hebraica Jacoacute eacute tomado como um dos principais ancestrais do povo judeu natildeo
obstante sua tradiccedilatildeo em alguns periacuteodos da histoacuteria ter ficado em plano inferior agravequela de
Moiseacutes por exemplo Em Jacoacute convergem as esperanccedilas de uma parte da naccedilatildeo que natildeo se vecirc
contemplada pela religiatildeo oficial que administra um culto a YHWH distante da realidade vivida
pelas famiacutelias tribais que habitam no interior em pequenos vilarejos e no campo O nome dado
a Jacoacute em meio a uma luta eacute significativo e revelador Afinal ele natildeo eacute nem de longe a figura
perfeita ideal que as tradiccedilotildees religiosas dominantes exigiam para algueacutem ser considerado um
ldquoverdadeiro israelitardquo temente ao Senhor Sua lideranccedila e dignidade chegam mesmo a ser
questionadas pelo profetismo Natildeo obstante tudo isso eacute sua pessoa que encarnaraacute atraveacutes de
um nome recebido do proacuteprio ser divino os destinos de Israel Personagem e indiviacuteduo se
mesclam propositalmente no epocircnimo ldquoIsraelrdquo a fim de revelar a verdadeira vocaccedilatildeo daquele
povo
Palavras-chave Jacoacute Israel Mudanccedila de nome Onomaacutestica biacuteblica
ABSTRACT
FIGUEIREDO Telmo Joseacute Amaral de A name that makes all the difference literary
analysis of Genesis 32 23-33 2016 190 f Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015
This thesis aims to analyze the pericope of Genesis 3223-33 which constitutes one of the
structuring elements of the well-known Jacob cycle that integrates the history of the patriarchs
of Israel in the Hebrew Bible Jacob is taken as one of the chief ancestors of the Jewish people
in spite of his tradition at some periods in history to have remained lower than that of Moses
for example In Jacob converge the hopes of a part of the nation that is not seen contemplated
by the official religion that administers a cult to YHWH far from the reality lived by the tribal
families that inhabit in the countryside in small villages and in the field The name given to
Jacob in the midst of a struggle is significant and revealing After all he is by no means the
perfect ideal figure that prevailing religious traditions demanded for someone to be considered
a true Israelite who feared the Lord His leadership and dignity even come to be questioned
by prophetism Notwithstanding all this it is his person who incarnates through a name
received from his own divine being the destinies of Israel Character and individual deliberately
merge into the eponymous Israel in order to reveal the true vocation of that people
Keywords Jacob Israel Name change Biblical Onomastics
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AEC Antes da Era Comum = aC
BH Biacuteblia Hebraica
BJ Biacuteblia de Jerusaleacutem (cf bibliografia)
c Coluna
Cf cf Confira conferir
EC Era Comum = dC
Ed
gr
Editor Editado por
grego
heb Hebraico
n Nota de rodapeacute
Org Organizado por Organizador Organizaccedilatildeo
p Paacutegina
p ex Por exemplo
seacutec Seacuteculo
Trad trad
t
Traduccedilatildeo ou tradutor
Tomo
v Versiacuteculo (da Biacuteblia) ou Volume (nas citaccedilotildees bibliograacuteficas)
vv Versiacuteculos (da Biacuteblia)
LISTA DE ABREVIATURAS DOS LIVROS BIacuteBLICOS1
Ab Abdias
Ag Ageu
Am Amoacutes
Ap Apocalipse
At Atos dos Apoacutestolos
Br Baruc
Cl Colossenses
1Cor 1ordf Coriacutentios
2Cor 2ordf Coriacutentios
1Cr 1ordm Crocircnicas
2Cr 2ordm Crocircnicas
Ct Cacircntico dos Cacircnticos
Dn Daniel
Dt Deuteronocircmio
Ecl Eclesiastes = Qoheacutelet
Eclo Eclesiaacutestico
Ef Efeacutesios
Esd Esdras
Est Ester
Ex Ecircxodo
Ez Ezequiel
Fl Filipenses
Fm Filecircmon
Gl Gaacutelatas
Gn Gecircnesis
Hab Habacuc
Hb Hebreus
Is Isaiacuteas
Jd Judas
Jl Joel
Jn Jonas
Joacute Joacute
Jo Evangelho segundo Joatildeo
1Jo 1ordf Joatildeo
2Jo 2ordf Joatildeo
3Jo 3ordf Joatildeo
Jr Jeremias
Js Josueacute
Jt Judite
Jz Juiacutezes
Lc Lucas
Lm Lamentaccedilotildees
1 As abreviaccedilotildees seguem o sistema proposto pela Biacuteblia de Jerusaleacutem (cf bibliografia) que eacute um dos mais
empregados em estudos biacuteblicos A disposiccedilatildeo segue a ordem alfabeacutetica para facilitar a busca
Lv Leviacutetico
Mc Evangelho segundo Marcos
1Mc 1ordm Macabeus
2Mc 2ordm Macabeus
Ml Malaquias
Mq Miqueias
Mt Evangelho segundo Mateus
Na Naum
Ne Neemias
Nm Nuacutemeros
Os Oseias
1Pd 1ordf Pedro
2Pd 2ordf Pedro
Pr Proveacuterbios
Rm Romanos
1Rs 1ordm Reis
2Rs 2ordm Reis
Rt Rute
Sb Sabedoria
Sf Sofonias
Sl Salmos
1Sm 1ordm Samuel
2Sm 2ordm Samuel
Tb Tobias
Tg Tiago
1Tm 1ordf Timoacuteteo
2Tm 2ordf Timoacuteteo
1Ts 1ordf Tessalonicenses
2Ts 2ordf Tessalonicenses
Tt Tito
Zc Zacarias
TRANSLITERACcedilAtildeO DOS CARACTERES HEBRAICOS2
Letras
(consoantes)
Nome
Transliteraccedilatildeo
a acutealef acute
b becirct (sem daguesh)3 b
B becirct (com daguesh) B
g guimel (sem daguesh) g
G guimel (com daguesh) G
d dalet (sem daguesh) d
D dalet (com daguesh) D
h hecirc h
w waw w
z zayin z
x Het H
j daggeret dagger
y yod y
k $ (forma final) kaf (sem daguesh) k
K kaf (com daguesh) K
l lamed l
m ~ (forma final) mem m
n (forma final) nun n
s samekh s
[ `ayin `
p pecirc (sem daguesh) p
P (forma final) pecirc (com daguesh) P
2 O esquema de transliteraccedilatildeo e banco de dados foi desenvolvido por Matthew Anstey para uso em BibleWorks
Este banco de dados baseou-se na base de dados eletrocircnica CCAT Michigan-Claremont-Westminster Ela foi usada
livremente com a permissatildeo da Sociedade Biacuteblica Alematilde O BibleWorks eacute um programa (software) para exegese
biacuteblica e pesquisas neste campo Eacute um produto da BibleWorks LLC de Norfolk (VA) nos Estados Unidos da
Ameacuterica 3 Os massoretas empregavam um ponto ou pequeno sinal dentro de letra denominado daguesh para indicar a)
que a consoante em questatildeo pode ser geminada (duplicada) neste caso o daguesh eacute forte b) no caso das letras
ambiacuteguas do grupo t p k d g b aquela com o ponto eacute a oclusiva (chamado de daguesh lene) a que carece de
ponto eacute a fricativa c) que um h final natildeo deve ser considerado como vogal mas como consoante com significado
morfoloacutegico (esse tipo de hecirc final eacute denominado de mappicircq (cf LAMBDIN 2003 p 28-29)
C (forma final) tsadecirc c
q qof q
r resh r
f sin S
v shin š
t taw (sem daguesh) t
T taw (com daguesh) T
Letras
(vogais e semivogais)
Nome
Transliteraccedilatildeo
a shewaacute (audiacutevel) uuml
a shewaacute (mudo)
a pataH a
x pataH furtivo4 ordf
agt Hadaggeref-pataH aacute
a qamets auml
h qamets com final vocaacutelico
(ou qamets hecirc) acirc
a segol e
h segol com final vocaacutelico
(ou segol hecirc) egrave
y lt segol formando ditongo
(segol yod) Ecirc
a Hadaggeref-segol eacute
ae tserecirc euml
y E tserecirc yod (ditongo) ecirc
h E tserecirc com final vocaacutelico
(tserecirc hecirc) Euml
ai hiriq breve i
ai hiriq longa igrave
yai hiriq yod (ou hiriq Male =
completo) icirc
a qamets Hadaggeruf5 o
a Hadaggeref-qamets oacute
4 A transliteraccedilatildeo ocorre acima da linha diferenciando da vogal pataH 5 Pode haver uma confusatildeo quando se lecirc um texto hebraico natildeo transliterado porque ambas vogais qamets e
qamets Hadaggeruf satildeo morfologicamente iguais A regra geral indica que se lecirc ldquoordquo portanto qamets Hadaggeruf em uma
siacutelaba fechada e natildeo acentuada Uma siacutelaba fechada normalmente termina em shewaacute p ex yrImv (lecirc-se šomricirc)
Em algumas partes onde pode haver confusatildeo usa-se o meacuteteg um traccedilo vertical curto colocado debaixo de uma
consoante e agrave esquerda do sinal vocaacutelico se houver Quando haacute o meacuteteg entatildeo se lecirc com ldquoardquo
ao Holem ouml
hao Holem hecirc ograve
wO Holem waw ocirc
au qibbuts breve u
au qibbuts longo ugrave
W shureq ucirc
Outros
Letras
(consoantes)
Nome
Transliteraccedilatildeo
X (sem pontuaccedilatildeo ndash caso raro
p ex Gn 3018)
sin shin J
| meacuteteg6 Acento indicando siacutelaba
tocircnica acute
6 Cf a nota anterior
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 01
1 A QUE SERVE O NOME ndash ONOMAacuteSTICA E LITERATURA 06
1 O NOME PROacutePRIO 06
11 O que eacute o nome proacuteprio 10
12 A que serve o nome proacuteprio 13
13 Noccedilotildees semacircnticas baacutesicas sobre o nome proacuteprio 15
2 DIFERENTES ABORDAGENS DO NOME PROacutePRIO 18
21 Semioacutetica 18
22 Psicanaacutelise 24
3 O NOME PROacutePRIO NA LITERATURA 25
31 Nomes que revelam a qualidade dos personagens 26
32 Nomes que indicam o local da accedilatildeo 26
33 Nomes sugestivos do tempo da accedilatildeo 26
34 Nomes que exercem um papel na estrutura da obra 26
35 Nomes que ressaltam as associaccedilotildees sinesteacutesicas 29
4 UMA ANAacuteLISE ANTROPOLOacuteGICA DO NOME PROacutePRIO 40
41 As funccedilotildees dos nomes de pessoas 41
42 Nome proacuteprio como um coacutedigo social 45
43 Poder e simbologia dos nomes proacuteprios 46
2 NOMES PROacutePRIOS NO ORIENTE MEacuteDIO ANTIGO E NA BIacuteBLIA HEBRAICA 51
1 O NOME PROacutePRIO EM CIVILIZACcedilOtildeES CONTEMPORAcircNEAS A ISRAEL 51
11 Mesopotacircmia 51
12 Egito 60
13 Greacutecia e Roma 63
2 ONOMAacuteSTICA BIacuteBLICA 65
21 O nome proacuteprio na cultura hebraica 65
22 Circunstacircncias que determinam a nomeaccedilatildeo das pessoas 70
221 Circunstacircncias particulares do nascimento 70
222 Circunstacircncias externas contemporacircneas ao nascimento e simbolismo 71
223 Influecircncia da aparecircncia fiacutesica da crianccedila 72
224 Nomes de animais 72
225 Nomes de plantas 73
226 Nomes teofoacutericos 73
227 Outros fatores determinantes na escolha do nome 79
23 A mudanccedila de nome na Biacuteblia Hebraica 80
231 Alteraccedilotildees de nomes impostas por um senhor 80
232 Alteraccedilotildees de nomes impostas por uma intervenccedilatildeo divina 81
233 Alteraccedilatildeo de nome realizada pela proacutepria pessoa 82
3 ETIOLOGIAS BIacuteBLICAS 83
3 GEcircNESIS 3223-33 VISITANDO O TEXTO E A SUA INTERTEXTUALIDADE 87
1 O TEXTO EM SI 87
2 ALGUMAS NOTAS DE CRIacuteTICA TEXTUAL 88
3 CONTEXTOS DA PERIacuteCOPE 91
4 A FORMACcedilAtildeO DO PENTATEUCO E O CICLO DA HISTOacuteRIA DE JACOacute 101
5 DELIMITACcedilAtildeO E ESTRUTURA 124
4 MUDAR DE NOME PARA QUEcirc 132
1 PARALELISMOS INTERNOS Agrave BIacuteBLIA 132
2 ASPECTOS INTERNOS Agrave PERIacuteCOPE 138
3 COMO FOI INTERPRETADA A MUDANCcedilA DE NOME DE JACOacute 142
4 O QUE SIGNIFICA ISRAEL 150
CONCLUSAtildeO 189
BIBLIOGRAFIA 196
1
INTRODUCcedilAtildeO
A Biacuteblia Hebraica (doravante BH) eacute literatura enquanto possuidora dos traccedilos
caracteriacutesticos de toda obra literaacuteria pois ela eacute ldquoo resultado de uma criaccedilatildeo por parte
de seu autor e na intenccedilatildeo deste estaacute destinada a durar eacute desinteressada quer dizer
de eficaacutecia natildeo praacutetica (embora possa haver uma de outro tipo educaccedilatildeo e satisfaccedilatildeo
do sentido esteacutetico difusatildeo de ideias e experiecircncias etc) eacute de natureza esteacutetica quer
dizer um de seus objetivos fundamentais eacute proporcionar ao destinataacuterio prazeres de
tipo espiritualrdquo (TOSAUS ABADIacuteA 2000 p 18-19 grifos nossos)
Entre noacutes aqui no Brasil ainda satildeo poucos os estudiosos que se dedicam a esse
tipo de abordagem da BH como verdadeira literatura Inclusive satildeo pouquiacutessimas as
faculdades de letras que possuem departamentos especiacuteficos para esse tipo de
literatura ou que permitem e possuem mestres capacitados para tal tarefa Como
reconhece ALTER (1998 p 12)
A ausecircncia geral deste discurso criacutetico sobre a Biacuteblia Hebraica eacute mais desconcertante ainda quando nos lembramos de que as obras-primas da Antiguidade grega e latina usufruiacuteam nas deacutecadas recentes de uma anaacutelise criacutetica abundante e perspicaz de modo que aprendemos a perceber sutilezas da forma liacuterica tanto em Teoacutecrito quanto em Marvell complexidade e estrateacutegia narrativa tanto em Homero ou Virgiacutelio quanto em Flaubert
O motivo para tal eacute que ldquoa Biacuteblia foi considerada durante muitos seacuteculos tanto
por cristatildeos quanto por judeus a fonte unitaacuteria e primaacuteria da verdade de revelaccedilatildeo
divinardquo (ALTER 1998 p 16) Contudo a Biacuteblia natildeo perde em nada com esse tipo de
anaacutelise criacutetica antes ldquo[] a visatildeo religiosa da Biacuteblia ganha profundidade e sutileza
exatamente pelo fato de ser transmitida atraveacutes dos meios mais sofisticados da prosa
ficcionalrdquo (ALTER 1998 p 22)
Ao servir-me da anaacutelise narrativa para estudar Gn 3223-33 que trata da
mudanccedila de nome de um dos principais patriarcas de Israel como resultado de um
inusitado encontro noturno que Jacoacute vivencia pretendo aplicar esse discurso criacutetico
2
Este personagem denominado Israel ndash seu novo nome ndash eacute o antecessor epocircnimo que
fornece motivos de identificaccedilatildeo para o seu proacuteprio povo
Pois bem o ldquomodo de narrar natildeo eacute indiferente ao sentido que se produz e ao
seu efeitordquo (SKA SONNET WEacuteNIN 1999 p 7) Aliaacutes a anaacutelise narrativa leva em
consideraccedilatildeo a distinccedilatildeo que se deve fazer entre histoacuteria narrada de uma parte e a
narraccedilatildeo de outra Aqui por narraccedilatildeo entende-se a narraccedilatildeo concreta que eacute feita dessa
histoacuteria O narrador a ldquovozrdquo do texto tem aqui um papel fundamental Portanto a
narrativa eacute o ldquoveiacuteculo de uma comunicaccedilatildeo entre um emissor (o narrador) e um
receptor (o leitor) e um dos objetivos principais da leitura eacute estudar a lsquoestrateacutegia
narrativarsquo isto eacute as modalidades concretas de que o narrador faz uso na narrativa para
se comunicar com o destinataacuterio e apresentar-lhe seu mundo de valores e suas
convicccedilotildeesrdquo (SKA SONNET WEacuteNIN 1999 p 7)
Este estudo se dedicaraacute justamente a essa tarefa ou seja levantar
concretamente na narrativa de Gecircnesis 3223-33 os elementos que foram utilizados na
construccedilatildeo literaacuteria desse texto em vista de identificar sua intenccedilatildeo uacuteltima e suas
consequecircncias para a interpretaccedilatildeo do mesmo A anaacutelise de textos do Gecircnesis sob o
ponto de vista da narratologia permitiraacute trabalhar os elementos histoacutericos e culturais
especiacuteficos que resultaratildeo desse levantamento Seraacute muito uacutetil nesse ponto o
confronto com a histoacuteria e literatura de Israel e dos povos vizinhos bem como com os
aspectos culturais da eacutepoca Dever-se-aacute estabelecer entatildeo um diaacutelogo multidisciplinar
a fim de permitir a descoberta daquilo que eacute especiacutefico no pensamento hebraico e
constitui a elaboraccedilatildeo proacutepria de sua identidade cultural expressa no texto em anaacutelise
Para concretizarmos o objetivo de ldquolevantar o veacuteurdquo que recobre um nome tatildeo
fundamental na literatura cultura e histoacuteria biacuteblica como eacute ldquoYiSraumlacuteeumllrdquo procederemos
da seguinte forma
No primeiro capiacutetulo nos dedicaremos a identificar e esclarecer o que se
entende por nome proacuteprio qual eacute a sua finalidade nas liacutenguas e culturas Passearemos
brevemente pela semioacutetica e psicanaacutelise que nos podem ajudar um pouco na
elucidaccedilatildeo dessa funccedilatildeo presente em todas as culturas e etnias Em seguida seraacute o
momento de nos focarmos mais no uso que a literatura faz de nomes proacuteprios pessoais
Poderemos constatar a incriacutevel variedade de tarefas a eles atribuiacutedas revelando a
3
qualidade das personagens indicando o local onde transcorre a accedilatildeo sugerindo o
tempo da accedilatildeo exercendo um papel na estrutura da obra literaacuteria e por uacuteltimo
servindo para associaccedilotildees sinesteacutesicas que produzem um efeito especial na obra
Fechando o capiacutetulo nos dedicaremos agrave anaacutelise antropoloacutegica do nome proacuteprio
interrogando-nos sobre as funccedilotildees dos nomes de pessoas o nome proacuteprio como um
coacutedigo social e a simbologia dos nomes proacuteprios
O segundo capiacutetulo seraacute consagrado a estudar como os nomes proacuteprios satildeo
utilizados no Oriente Meacutedio Antigo e na proacutepria BH Comeccedilaremos abordando as
civilizaccedilotildees contemporacircneas a Israel ou seja a Mesopotacircmia o Egito a Greacutecia e Roma
Em seguida entraremos no universo da cultura biacuteblica tratando de como as
circunstacircncias determinam a nomeaccedilatildeo das pessoas na cultura hebraica e analisando
cada uma delas Um item seraacute dedicado agrave questatildeo da mudanccedila de nomes na BH uma
vez que este eacute o tema central deste nosso estudo Concluindo o capiacutetulo exploraremos
algo sobre as etiologias biacuteblicas ou seja as glosas que satildeo incluiacutedas nos textos a fim de
fornecer uma explicaccedilatildeo para um determinado nome de pessoa ou local
Com o terceiro capiacutetulo iniciamos a abordagem propriamente dita de nossa
periacutecope (Gn 3223-33) Primeiramente nos deparando com o texto hebraico completo
da mesma seguido por algumas notas e observaccedilotildees de criacutetica textual que procura
identificar possiacuteveis problemas presentes nos manuscritos biacuteblicos que serviram como
base para o estabelecimento do texto hebraico que possuiacutemos atualmente em nossas
matildeos Apoacutes essa anaacutelise mais teacutecnica partimos para contextualizar a nossa periacutecope
o que eacute fundamental quando se trata de um texto literaacuterio inserido em meio a uma
obra completa e nesta inserido em um determinado bloco literaacuterio que neste caso eacute
o denominado ciclo de Jacoacute Pensei que se fizesse necessaacuterio abordar nem que fosse
de modo resumido o processo de formaccedilatildeo do PentateucoToraacute e no interior deste a
evoluccedilatildeo do ciclo de Jacoacute Afinal a formaccedilatildeo do Pentateuco determinou o modo como
as unidades literaacuterias foram dispostas em seu interior e a articulaccedilatildeo delas entre si
Finalmente o capiacutetulo chega ao seu final com a delimitaccedilatildeo da periacutecope agora o nosso
olhar comeccedila a tornar-se cada vez mais focado em Gn 3223-33 e um estudo sobre a
sua estrutura
4
O quarto e uacuteltimo capiacutetulo de nosso estudo eacute totalmente consagrado ao
fenocircmeno da mudanccedila de nome de Jacoacute para Israel Para isso parte-se de paralelismos
com os quais a nossa periacutecope se defronta na BH Em seguida faz-se uma anaacutelise mais
detalhada de cada elemento que compotildee a periacutecope para na sequecircncia abordarmos
como se deu a interpretaccedilatildeo da mudanccedila de nome de Jacoacute na literatura biacuteblica rabiacutenica
e por parte dos pesquisadores modernos Entatildeo chegamos por fim agrave anaacutelise que
concentra o nuacutecleo deste nosso estudo o significado de ldquoIsraelrdquo
Gostaria de chamar a atenccedilatildeo para algumas particularidades metodoloacutegicas que
adotei na composiccedilatildeo deste estudo
Primeiramente a traduccedilatildeo dos textos biacuteblicos citados eacute tomada da Biacuteblia de
Jerusaleacutem a natildeo ser quando indicado diversamente Os textos mais diretamente
relacionados agrave periacutecope que eacute o objeto central da pesquisa foram sempre traduzidos
por mim mesmo Enquanto que para os demais textos servi-me da mencionada versatildeo
biacuteblica em portuguecircs ou de alguma outra mais literal a qual vem tambeacutem indicada
Por uma questatildeo de uniformizaccedilatildeo e praticidade adotei os nomes proacuteprios de
pessoas localidades e povoaccedilotildees empregados pela mesma Biacuteblia de Jerusaleacutem
Obviamente esses nomes diferem algumas vezes em muito do termo original
hebraico Por esse motivo quando o nome mencionado requer uma proximidade com
o original hebraico o mesmo eacute mencionado em parecircntesis
As citaccedilotildees diretas do hebraico satildeo feitas em duas formas usando os caracteres
aramaicos quadrados como estamos habituados a encontrar nas ediccedilotildees da BH e nas
obras afins ou entatildeo a transliteraccedilatildeo do texto hebraico seguindo um dos sistemas mais
aceitos e utilizados internacionalmente que estaacute explicado no item ldquoTransliteraccedilatildeo dos
Caracteres Hebraicosrdquo que se encontra antes desta introduccedilatildeo Devido a uma questatildeo
de acessibilidade a um maior puacuteblico preferi empregar mais o texto hebraico
transliterado
Na bibliografia preferi seguir o meacutetodo de citar o nome dos autores o mais
completo possiacutevel Afinal eacute uma forma de tornar mais conhecidos e acessiacuteveis os
estudiosos neste campo de pesquisa Sem falar que diferentemente da Europa e dos
Estados Unidos da Ameacuterica em nosso paiacutes as pessoas satildeo tratadas mais comumente
pelo nome e natildeo pelo(s) sobrenome(s)
5
Antes de concluir esta breve introduccedilatildeo penso ser oportuno fazer recurso a um
providencial poema que em muito auxilia-nos a antecipar o fruto essencial deste
nosso estudo
Refiro-me a um poema de Nelly Sachs escritora judia radicada na Sueacutecia
nascida em Berlim na Alemanha aos 10 de dezembro de 1891 e falecida em Estocolmo
Sueacutecia aos 12 de maio de 1970 ldquoAs suas experiecircncias resultantes da ascensatildeo do
nazismo na Segunda Guerra Mundial na Europa transformam-na em porta-voz
pungente para a tristeza e anseios de seus companheiros judeusrdquo (NELLY SACHS
2016) Aleacutem eacute claro de tecirc-la forccedilado a emigrar para a Sueacutecia onde foi acolhida e
constituiu uma forte amizade com a afamada escritora Selma Lagerloumlf Recebeu o
Nobel de Literatura de 1966 juntamente com Shmuel Yosef Agnon
JACOB Nelly Sachs1 Oacute ISRAEL fruto primeiro na luta auroral onde todo o parto estaacute escrito com sangue no crepuacutesculo Oh a faca afiada do grito do galo cravada no coraccedilatildeo da humanidade Oh a ferida entre noite e dia que eacute a nossa morada Preacute-lutador na carne pueacuterpera dos astros no luto da ronda nocturna donde chora um canto de paacutessaro Oacute Israel que finalmente pariste pra a bem-aventuranccedila ndash graccedila gotejante de orvalho matutino sobre a tua cabeccedila ndash Mais bem-aventurado pra noacutes vendidos pra o esquecimento gemendo nos bancos de gelo da morte e ressurreiccedilatildeo e pelo anjo pesado sobre noacutes torcidos pra Deus como tu
1 Da obra SACHS Nelly Poemas de Nelly Sachs Trad Paulo Quintela Lisboa Portugaacutelia Editora 1967
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CAPIacuteTULO 1
A QUE SERVE O NOME ndash ONOMAacuteSTICA E LITERATURA
1 O nome proacuteprio
Quando Shakespeare afirmou que ldquouma rosa com qualquer outro nome
cheiraria como o docerdquo (Romeu e Julieta IIii43) natildeo estava expressando certamente
uma ideia que tivesse qualquer fundamento no mundo biacuteblico ndash ou mesmo em
qualquer outro lugar do Oriente Meacutedio Antigo (cf BOHMBACH 2000 p 944)
No mundo antigo geralmente um nome natildeo eacute uma mera colocaccedilatildeo
convencional de sons pela qual uma pessoa lugar ou coisa possa ser identificado mais
apropriadamente um nome expressa ldquouma das propriedades distintivas ou recorda
o estado de acircnimo dos pais por ocasiatildeo do nascimento da crianccedila ou acontecimentos
poliacuteticos importantes na eacutepoca do nascimento ou como nome pessoal teofoacuterico faz
uma afirmaccedilatildeo sobre Deusrdquo (VAN DER WOUDE 1985a c 1176)
Por isso conhecer o nome capacita para a comunicaccedilatildeo pois se sabendo o
nome de algueacutem ou de um deus podia-se invocaacute-lo chamar a sua atenccedilatildeo fazecirc-lo vir
ateacute o enunciador do seu nome enfim ldquocitaacute-lordquo Nesse sentido conhecer o nome de
algueacutem significa ateacute certo ponto um poder sobre a pessoa conhecida Isto aparece
definido de modo magistral por Martin Buber
O nome ldquoverdadeirordquo de uma pessoa [] eacute a essecircncia da pessoa destilada por assim dizer de sua realidade desse modo ela se encontra por assim dizer novamente presente nesse nome E mais importante ela aiacute se encontra presente sob tal forma que qualquer um conhecendo o nome verdadeiro e sabendo pronunciaacute-lo da maneira prescrita possa apoderar-se desta pessoa A pessoa por si mesma eacute inacessiacutevel ela opotildee uma resistecircncia No nome ela torna-se acessiacutevel o enunciador dispotildee dela (BUBER 1957 p 58-59)
Antes de adentrar propriamente no estudo do texto da Biacuteblia Hebraica (Gn
3223-33) objeto principal desta tese seraacute conveniente aprofundar um pouco mais o
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significado e funccedilatildeo que o nome proacuteprio desempenha na obra literaacuteria tanto biacuteblica
como extrabiacuteblica
Essa anaacutelise se faz ainda mais oportuna quando se leva em conta que a teoria
mais em voga defende que o nome proacuteprio seja um simples iacutendice ou seja uma espeacutecie
de etiqueta que designaria algo sem significar2 Em semioacutetica eacute o mesmo que admitir
que o nome proacuteprio natildeo seria um signo O nome proacuteprio se refere a seu referente sem
atribuir qualquer informaccedilatildeo adicional conotativa ou de sentido sobre ele
As principais teorias da filosofia da linguagem fundamentadas sobre a loacutegica
acerca do nome proacuteprio gravitam ao redor da questatildeo se nomes proacuteprios satildeo mera
referecircncia ou se possuem alguma identidade com o seus referentes A grosso modo
pode-se agrupar essas teorias em 3
a) Teoria de John Stuart Mill (1806-1873) este filoacutesofo britacircnico distingue entre
sentido conotativo e denotativo e argumenta que os nomes proacuteprios natildeo incluem
nenhum outro conteuacutedo semacircntico a uma proposiccedilatildeo que indica o referente do nome
e satildeo puramente denotativos O processo atraveacutes do qual algo se torna um nome
proacuteprio eacute a gradual perda da conotaccedilatildeo para a pura denotaccedilatildeo Como eacute o caso do
processo que transformou as proposiccedilotildees descritivas ldquolong islandrdquo (ilha longa) no
nome proacuteprio Long Island uma ilha da costa do estado de Nova York
b) Teoria baseada no sentido de nomes Gottlob Frege matemaacutetico loacutegico e filoacutesofo
alematildeo (1848-1925) argumenta que se deve distinguir entre o sentido (Sinn) e a
referecircncia do nome Ele tambeacutem defende que nomes diferentes para a mesma entidade
podem identificar o mesmo referente sem serem formalmente sinocircnimos Eacute citado o
2 Entre os principais defensores dessa posiccedilatildeo temos 1ordm) MILL John Stuart A System of Logic Ratiocinative and Inductive Being a Connected View of the Principles of Evidence and the Methods of Scientific Investigation London John W Parker 1843 2 v Disponiacutevel em lthttpsbooksgooglecombrbooksid=y4MEAAAAQAAJamppg=PR9amphl=pt-BRampsource=gbs_selected_pagesampcad=2v=onepageampqampf=falsegt Acesso em 30 jul 2015 (especialmente no vol 1 Book I Of Names and Propositions) 2ordm) BROslashNDAL Viggo Essais de linguistique geacuteneacuterale Copenhague Ejnar Munksgaard 1943 3ordm) PEIRCE Charles Sanders The Collected Papers of Charles Sanders Peirce Volumes 1-6 edited by Charles Hartshorne and Paul Weiss volumes 7-8 edited by A W Burks Cambridge (MA) Belknap Press of Harvard University Press 1931-1935 Disponiacutevel em lthttpwwwtextlogdepeirce_principleshtmlgt Acesso em 30 jul 2015 4ordm) RUSSEL Bertrand Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description Proceedings of the Aristotelian Society London Edinburgh Williams and Norgate n 11 p 108ndash28 1911 IDEM The Philosophy of Logical Atomism In MARSH R (Ed) Logic and Knowledge New York Capricorn 1956 p 177ndash281 3 Cf CUMMING 2013 e PROPER NAME (PHILOSOPHY) 2015 Para uma visatildeo mais exaustiva e detalhada consultar LANGENDONCK 2007 p 20-38
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seguinte exemplo embora a estrela da manhatilde e a estrela da tarde sejam o mesmo objeto
astronocircmico a proposiccedilatildeo ldquoa estrela da manhatilde eacute a estrela da noiterdquo natildeo eacute uma
tautologia mas fornece informaccedilotildees reais para algueacutem que natildeo sabia disso Assim
para Frege os dois nomes para o objeto devem ter um sentido diferente
c) Teoria descritiva dos nomes proacuteprios essa teoria eacute a visatildeo de que o significado de
um determinado uso de um nome proacuteprio eacute um conjunto de propriedades que pode
ser expresso como uma descriccedilatildeo que escolhe um objeto que satisfaccedila a descriccedilatildeo
Quem adotou esse ponto de vista foi Bertrand Russell (matemaacutetico loacutegico e filoacutesofo
do Reino Unido 1872-1970) o qual alega que o nome se refere a uma descriccedilatildeo e essa
descriccedilatildeo como uma definiccedilatildeo escolhe o portador do nome A descriccedilatildeo entatildeo
funciona como uma abreviaccedilatildeo ou uma forma truncada da descriccedilatildeo John Searle
filoacutesofo da linguagem norte-americano elaborou a teoria de Russell sugerindo que o
nome proacuteprio se refere a um conjunto de proposiccedilotildees que em combinaccedilatildeo escolhe um
referencial uacutenico Isso foi feito para lidar com a objeccedilatildeo por alguns criacuteticos da teoria de
Russell de que uma teoria descritiva do significado faria o referente de um nome
depender do conhecimento de que a pessoa ao dizer o nome tem sobre o referente
Em 1973 Tyler Burge outro filoacutesofo norte-americano propocircs uma teoria descritiva
metalinguiacutestica de nomes proacuteprios que sustenta que os nomes tecircm o significado que
corresponde agrave descriccedilatildeo das entidades individuais a quem o nome eacute aplicado
d) Teoria causal dos nomes a teoria histoacuterico-causal teve origem com a obra Naming
and Necessity (Boston Basil Blackwell 1980) de Saul Kripke Ela eacute edificada sobre a
obra dentre outros de Keith Donnellan que combina a visatildeo referencial com a ideia
que o referente do nome eacute fixado por um ato batismal apoacutes o que o nome se torna um
designador riacutegido do referente Kripke natildeo enfatiza tanto a causalidade mas sim a
relaccedilatildeo histoacuterica entre o evento de nomeaccedilatildeo e a comunidade de falantes dentro da
qual o nome circula mas apesar disso essa teoria eacute muitas vezes chamada de ldquouma
teoria causal da nomeaccedilatildeordquo A teoria de nomeaccedilatildeo pragmaacutetica de Charles Sanders
Peirce (1839-1914) agraves vezes eacute considerada uma precursora da teoria de nomeaccedilatildeo
histoacuterico-causal Ele descreveu os nomes proacuteprios nos seguintes termos
Um nome proacuteprio quando se encontra com ele pela primeira vez eacute existencialmente conectado com alguma percepccedilatildeo ou outro conhecimento individual equivalente do indiviacuteduo que ele nomeia Ele eacute entatildeo e soacute entatildeo
9
um Index [Iacutendice] genuiacuteno A proacutexima vez que se encontra com ele considera-se como um Iacutecone desse Iacutendice A familiaridade habitual com ele tendo sido adquirida torna-se um siacutembolo cuja Interpretante representa-o como um iacutecone de um iacutendice do indiviacuteduo chamado (PROPER NAME [PHILOSOPHY] 2015 p 35)
Aqui ele observa que o evento de batismo tem lugar para cada pessoa quando
um nome proacuteprio eacute o primeiro relacionado com um referente (por exemplo apontando
e dizendo ldquoeste eacute Joatildeordquo estabelecendo uma relaccedilatildeo indicial entre o nome e a pessoa)
que eacute doravante considerado ser um convencional (ldquosimboacutelicordquo em termos peirceanos)
em relaccedilatildeo ao referente
e) Teorias de referecircncia direta rejeitando as bases das teorias descritiva e histoacuterico-
causal as teorias da referecircncia direta sustentam que nomes juntamente com
demonstrativos satildeo uma classe de palavras que se referem diretamente ao seu
referente Como exemplo pode-se citar Ludwig Wittgenstein que em seu Tractatus
Logico-Philosophicus (1921) defende uma posiccedilatildeo de referecircncia direta argumentando
que nomes se referem diretamente a um particular e que este referente eacute seu uacutenico
significado A visatildeo mais tardia de Wittgenstein foi comparada com aquela do proacuteprio
Kripke que reconhece nomes proacuteprios como decorrentes de uma convenccedilatildeo social e
princiacutepios pragmaacuteticos de compreensatildeo dos outros enunciados A teoria da referecircncia
direta eacute similar agravequela de Mill enquanto propotildee que o uacutenico significado de um nome
proacuteprio eacute o seu referente O filoacutesofo e loacutegico norte-americano David Kaplan (1979 p
81-98) faz uma distinccedilatildeo entre termos fregeanos e natildeo-fregeanos isto eacute referentes agrave
teoria de Gottlob Frege Os primeiros que possuem sentido e referecircncia e os uacuteltimos
natildeo-fregeanos que incluem nomes proacuteprios e tecircm somente referecircncia
f) Filosofia continental4 fora da tradiccedilatildeo da filosofia analiacutetica poucos filoacutesofos
chamados continentais abordaram o nome proacuteprio como uma questatildeo filosoacutefica Em
4 Filosofia continental eacute uma expressatildeo criada originalmente pelos filoacutesofos analiacuteticos angloacutefonos principalmente estadunidenses e britacircnicos para descrever vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas procedentes da Europa continental principalmente da Alemanha e da Franccedila A expressatildeo compreende de maneira bastante vaga a fenomenologia de Edmund Husserl ou Maurice Merleau-Ponty a ontologia fundamental de Martin Heidegger a psicanaacutelise de Sigmund Freud ou Jacques Lacan o existencialismo de Jean-Paul Sartre diversas correntes do marxismo o estruturalismo em ciecircncias humanas inspirado por Claude Leacutevi-Strauss ou Michel Foucault a semiologia de Algirdas Julien Greimas ou Roland Barthes a hermenecircutica de Hans-Georg Gadamer ou Paul Ricoeur a desconstruccedilatildeo de Jacques Derrida a teoria criacutetica da Escola de Frankfurt O termo eacute utilizado sobretudo para descrever uma atividade filosoacutefica por contraste com a filosofia analiacutetica Eacute mais popular nas ciecircncias sociais esteacutetica estudos culturais e filosofia do cinema do que nas ditas ciecircncias duras (FILOSOFIA CONTINENTAL 2014)
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De la grammatologie (1967) Jacques Derrida refuta especificamente a ideia que nomes
proacuteprios situam-se fora da construccedilatildeo social da linguagem como uma relaccedilatildeo binaacuteria
entre referente e signo Ao contraacuterio ele argumenta que os nomes proacuteprios como
todas as palavras estatildeo envolvidos em um contexto de diferenccedilas sociais espaciais e
temporais que os tornam significativos Ele tambeacutem observa que haacute elementos
subjetivos de significado em nomes proacuteprios uma vez que eles conectam o portador
de um nome com o signo da sua proacutepria identidade
Vamos a partir de agora tornar mais claro o aspecto do nome proacuteprio que iraacute
nos interessar em nossa pesquisa
11 O que eacute o nome proacuteprio
Eacute praticamente consensual que a primeira funccedilatildeo do nome proacuteprio eacute de
identificaccedilatildeo Seria como se diz em inglecircs um identity marker o representante mais
importante de uma pessoa Desse modo uma pessoa e seu nome satildeo uma soacute realidade
(cf NEUMANN 2011 p 324)
O termo ldquonome proacutepriordquo chegou-nos atraveacutes dos gregos Eles empregavam a
expressatildeo onoma kurion que foi traduzida em latim por nomen proprium e significava
ldquonome autecircnticordquo ou um nome mais autecircntico que outros Diferenciava-se onoma
kurion de proshgoria ou ldquodenominaccedilatildeordquo que era um termo utilizado para descrever
um ldquonome geneacutericordquo ou ldquocomumrdquo (cf GARDINER 2010 p 36)
O vocaacutebulo grego kurion era assimilado a nomes empregados de maneira
individual ou seja que qualificam seres individuais
Eacute importante constatar que o termo ldquonomerdquo eacute mais antigo que ldquopalavrardquo
Segundo o filoacutelogo GARDINER ldquoeacute inconcebiacutevel que em alguma sociedade
mesmo primitiva tenha faltado a palavra lsquonomersquo O termo pertence aos estaacutegios preacute-
gramaticais do pensamentordquo (2010 p 40)
Isso porque na antiguidade os povos natildeo se interessavam por palavras em si
mesmas elas eram usadas apenas como instrumento para se falar das coisas do mundo
ao seu redor Quando se menciona um ldquonomerdquo supotildee-se que exista alguma coisa agrave
qual corresponda o som ldquoaquilo que era a fons e origo do nome sua razatildeo de serrdquo
(GARDINER 2010 p 41)
11
Ampliando e melhorando a interpretaccedilatildeo de Saussure GARDINER (2010 p
91) forneceraacute a seguinte definiccedilatildeo de nome proacuteprio
Um nome proacuteprio eacute uma palavra ou um grupo de palavras reconhecidas como indicando ou tendendo a indicar o objeto ou os objetos ao(s) qual(is) ele faz referecircncia em virtude unicamente de sua sonoridade distintiva sem levar em consideraccedilatildeo qualquer sentido que possa possuir esse som seja aquele desde a origem ou adquirido por este atraveacutes de associaccedilotildees com o dito ou
ditos objetos
Pode-se questionar se o nome proacuteprio comporta em si mesmo algum tipo de
conteuacutedo racional ou seja se ele diz alguma coisa da pessoa por ele nomeada Em
nossa atual sociedade ocidental ldquoo nome proacuteprio eacute na maior parte do tempo uma
palavra escolhida arbitrariamente para designar algueacutem Eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo
social praacuteticardquo (RENAUD 2007 p 13) Isso poreacutem natildeo corresponde absolutamente agrave
realidade do mundo antigo especialmente no Oriente como se veraacute adiante
Em geral a linguiacutestica contemporacircnea percebe no nome proacuteprio duas
caracterizaccedilotildees do signo Ele eacute ao mesmo tempo signo linguiacutestico possuidor de um
significante e de um significado mesmo que miacutenimo e signo como substituto pois ele
reenvia a um indiviacuteduo mas pode tambeacutem valer como siacutembolo ou seja como ato de
linguagem (LECOLLE PAVEAU REBOUL-TOUREacute 2009 p 11)
Na linguiacutestica ldquonome eacute uma categoria gramatical que agrupa as palavras que
designam seja uma espeacutecie ou representante de uma espeacutecie (nomes comuns) seja um
indiviacuteduo particular (nomes proacuteprios)rdquo (RUSSO 2002 p 15) No entanto o nome
proacuteprio natildeo apenas diferencia ou determina o sujeito pois ele ldquoaponta diretamente o
objeto no mundo exterior extralinguiacutestico Por isso ele eacute reconhecido na linguiacutestica
moderna como sendo o portador e exemplo maior da funccedilatildeo de referenciaccedilatildeo da
linguagemrdquo (MARTINS 1991 p 55) Ele possui a capacidade de remeter diretamente
a um objeto em especial um determinado corpo Como afirma MARTINS ldquoDado o
nome eis o objetordquo (IDEM) Mais do que isso poreacutem o nome significa o ser ao qual se
refere mais do que apenas enviar a ele
Um dos primeiros a sistematizar a questatildeo se os nomes satildeo meramente
formados em funccedilatildeo de uma convenccedilatildeo ou se eles satildeo constituiacutedos em funccedilatildeo de uma
natureza que por assim dizer orientaria o trabalho daquele que nomeia foi o filoacutesofo
12
grego Platatildeo (428427 ou 424423 ndash 348347 AEC) especialmente em sua obra Craacutetilo5
Eacute interessante observar que ldquono periacuteodo em que se legitimam as grandes narraccedilotildees
miacuteticas a palavra manifesta os proacuteprios elementos ela se identifica com o objetordquo
(PINHEIRO 2003 p 37-38) O nome eacute um ldquoinstrumentordquo segundo Platatildeo para
ldquoensinar e distinguir a essecircncia [das coisas] como a lanccediladeira para o tecidordquo
(PLATONE 2000 p 139 388 B-C)6 Portanto o nome eacute resultado de uma teacutecnica uma
arte uma produccedilatildeo
Em Platatildeo o nome seraacute tratado como o signo linguiacutestico de caraacuteter convencional capaz de representar uma determinada ousiacutea [essecircncia] Essa essecircncia natildeo pode ser compreendida apenas como um fenocircmeno empiacuterico e obviamente natildeo pode ser relativa a cada homem em particular [] A verdadeira funccedilatildeo dos nomes em Platatildeo seria a de nos remeter agrave sua proacutepria essecircncia agrave sua proacutepria natureza [] No diaacutelogo ela surge como modelo abstrato que o nomoteta [o artiacutefice dos nomes] apreende antes de iniciar a sua tarefa de artesatildeo de nomes (PINHEIRO 2003 p 45-46)
Aleacutem de utilizar a palavra ldquoinstrumentordquo para definir a funccedilatildeo do nome
Platatildeo lanccedila matildeo da hipoacutetese de nome como ldquoimagemrdquo (gr eikoacuten) O nome eacute uma
imagem (ideia) que corresponde a um objeto O nome deve estar afinado ao seu
modelo (ideia em grego eicircdos) No entanto o papel de quem atribui o nome se realiza
pelo diaacutelogo Platatildeo o denomina de legislador (gr nomoteta) atividade da qual nem
todos os homens satildeo capazes7 Isso porque ldquoa natureza da linguagem eacute ambiacutegua
cabendo ao filoacutesofo no papel do dialeacutetico ajuizar sobre o melhor significado a atribuir
a um nome dentro de um determinado contextordquo (MONTENEGRO 2007 p 376)
Nesse sentido o nomeador possui um papel ativo isto eacute adequar o nome agraves coisas
5 Eacute uma obra platocircnica de dataccedilatildeo incerta alguns estudiosos atribuem sua redaccedilatildeo tanto ao periacuteodo anterior agrave composiccedilatildeo de Repuacuteblica como posterior Repuacuteblica teve sua composiccedilatildeo iniciada nos anos oitenta e o ponto culminante da mesma teria sido nos anos setenta do IV seacuteculo AEC (cf RADICE 2000 p 1081) ldquoO diaacutelogo em Craacutetilo versa sobre a justeza dos nomes a partir do exame realizado por Soacutecrates das teses divergentes de Hermoacutegenes e Craacutetilo Segundo Hermoacutegenes os nomes satildeo resultantes de pura convenccedilatildeo podendo esta ser tanto individual quanto coletiva para Craacutetilo disciacutepulo de Heraacuteclito e mestre de Platatildeo anteriormente a Soacutecrates os nomes espelham a natureza das coisas e esta natildeo eacute senatildeo o constante fluxo Soacutecrates eacute chamado para tentar uma conciliaccedilatildeordquo (MONTENEGRO 2007 p 369) 6 Texto original grego Onoma ara didaskalikon ti evstin organon kai diakritikon th j ouvsiaj w[sper kerkij
ufasmatoj 7 ldquoPortanto Hermoacutegenes natildeo eacute proacuteprio de todo homem estabelecer o nome mas a um artesatildeo dos nomes E este eacute como parece o legislador que entre os homens eacute o mais raro dos artesatildeosrdquo (PLATONE 2000 p 139 388E-389A) Original grego Ouvk ara pantojAtilde w= lsquoErmogenejAtilde onoma qesqaiAtilde a vlla tinoj ovnomatourgou ou-toj drsquoevstinAtilde w`j eoikenAtilde o ` nomoqethjAtilde o]j dh tw n dhmiourgw n spaniwtatoj e vn a vnqrwpoij gignetai)
13
Esse papel eacute supervisionado pelo dialeacutetico8 com sua atividade de fazer perguntas e
dar respostas Pode-se encontrar aqui uma contraposiccedilatildeo com a BH onde Deus
aparece logo no iniacutecio ldquochamandordquo (verbo heb wayyiqraumlacute) ou seja dando nomes agraves
coisas que ele vai criando (cf Gn 15810) A palavra de Deus eacute formadora ou seja ela
cria aquilo que eacute nomeado (wayyoumlordm mer acuteeacuteloumlhicircm ndash Gn 13691114202426) A palavra
nesse sentido possui a essecircncia da coisa que eacute formada Algo semelhante se passa com
Adatildeo (heb aumldaumlm) em Gn 219 quando Deus lhe traz todos os seres vivos da terra para
serem nominados por ele No entanto haacute uma diferenccedila fundamental pois o homem
natildeo eacute criador ou seja ele nomeia os seres criados mas natildeo os faz vir agrave vida9
Interessante observar que Adatildeo natildeo vem nomeado explicitamente por Deus nem no
primeiro nem no segundo relato da Criaccedilatildeo (cf Gn 126-27 27) Contudo quando
Deus manifesta sua vontade de ldquofazerrdquo (heb na`aacuteSegrave ndash Gn 126) o homem no fundo
ele jaacute o ldquonomeourdquo chamando-o de Adatildeo que significa ldquohomemrdquo (heb acuteaumldaumlm) Adatildeo
em seu ato de nominar adequa os nomes agraves coisas que estatildeo diante dele ele parte da
natureza delas mas natildeo as forma (cria) Mesmo assim chama atenccedilatildeo a importacircncia e
diferenccedila do ser humano em relaccedilatildeo agraves demais obras da Criaccedilatildeo Enquanto estas
recebem nome do Criador tatildeo logo satildeo formadas o ser humano participa da Criaccedilatildeo
como colaborador de Deus ao tambeacutem poder nomear os demais seres vivos
12 A que serve o nome proacuteprio
Ao relacionarmos os nomes proacuteprios aos nomes comuns percebe-se que pode
haver usos anaacutelogos entre ambas categorias poreacutem haacute outros que satildeo especiacuteficos aos
nomes proacuteprios Vejamos
1 Estabelecimento de correspondecircncia entre um nome proacuteprio e um indiviacuteduo Este uso toma duas formas a) eu dou ao meu interlocutor o nome de um indiviacuteduo que ele tem sob seus olhos ou que eu descrevo por uma descriccedilatildeo definida ldquoesta eacute Parisrdquo ldquoeu vos apresento Alberto Dupontrdquo ldquoo pai
8 ldquoE a quem sabe interrogar e responder chama-o de outro modo que dialeacutetico [] obra do legislador ao que parece eacute fazer um nome sob a direccedilatildeo do dialeacutetico se os nomes devem ser adequadosrdquo (PLATONE 2000 p 140 390 C-D) No original grego Ton de evrwta n kai a vpokrinesqai e vpistamenon allo
ti su kalei j h dialektikon [] Nomoqetou de geAtilde wj eoikenAtilde onomaAtilde e vpistathn econtoj dialektikon andraAtilde ei v mellei kalw j ovnomata qhsesqai) 9 O texto hebraico eacute expliacutecito em afirmar que wayyigravecer yhwh(acuteaumldoumlnaumly) acuteeacuteloumlhicircm min-hauml|acuteaacutedaumlmacirc Kol-Hayyat
haSSaumldegrave wuumlacuteeumlt Kol-`ocircp haššaumlmaordmyim (ldquoHavendo pois o Senhor Deus formado da terra todo o animal do
campo e toda a ave dos ceacuteusrdquo Gn 219)
14
de Joseacute chama-se Juacuteliordquo b) eu indico ao meu interlocutor a coincidecircncia entre um indiviacuteduo e um nome jaacute conhecido dele ldquoEis Parisrdquo ldquoeacute Tiagordquo Esses dois usos satildeo bastante paralelos para os nomes proacuteprios e os nomes comuns a uacutenica diferenccedila reside na referecircncia uacutenica do nome proacuteprio 2 Uso referencial uacutenico ldquoTiago veiordquo Eacute o uso normal do nome proacuteprio 3 O Batismo ldquoEu te batizo Pedrordquo Haacute um uso bem particular do nome proacuteprio quando acontece de se dar um nome novo a uma categoria de objeto o batismo de indiviacuteduos ato social por excelecircncia eacute o uacutenico ato suscetiacutevel de dar nascimento a um antropocircnimo Trata-se de um contrato com base em um performativo ldquoeu te batizordquo ldquoeu te chamordquo ldquoeu te nomeiordquo E parece haver em todas as liacutenguas expressotildees do gecircnero Eacute a cerimocircnia do batismo (que noacutes tomamos no sentido geral de doaccedilatildeo do nome) que explica o caraacuteter arbitraacuterio com o qual nos aparecem os nomes proacuteprios eles satildeo arbitraacuterios enquanto colocados Ademais a teoria dita teoria causal dos nomes proacuteprios repousa sobre a existecircncia do batismo se os nomes proacuteprios devem ser transmitidos de pessoa a pessoa fixando cada vez nela a referecircncia eacute precisamente porque se esta cadeia se interrompe natildeo se pode mais saber a que se refere o nome proacuteprio 4 Uso vocativo ldquoPedro venha aquirdquo Trata-se de um ato de linguagem que G G Granger chama de ldquointerpelaccedilatildeordquo para G G Granger de fato eacute na interpelaccedilatildeo que se manifesta a especificidade semioloacutegica do nome proacuteprio (MOLINO 1982 p 17)
Essa questatildeo estaacute unida agrave da identidade Haacute de se superar que a identidade do
nome proacuteprio se reduza agrave relaccedilatildeo entre dois nomes ldquoa = brdquo como propunha Gottlob
Frege em sua claacutessica distinccedilatildeo entre Sinn e Bedeutung ou seja sentido e denotaccedilatildeo (cf
FREGE 1971 p 102-126) No entanto a virtude simboacutelica do nome proacuteprio natildeo pode
se esgotar nesta referecircncia a algo
O nome possui a funccedilatildeo de designador individual ou seja especificar algueacutem
destacar algueacutem em seu contexto ou classificaacute-lo segundo o modo de compreensatildeo de
Leacutevi-Strauss Esse etnoacutelogo identifica dois tipos extremos de nomes proacuteprios (a) o
nome como uma marca de identificaccedilatildeo que confirma pela aplicaccedilatildeo de uma regra a
pertenccedila do indiviacuteduo nomeado a uma classe preacute-ordenada (b) o nome como uma livre
criaccedilatildeo do indiviacuteduo que nomeia e que exprime por meio daquele que ele nomeia um
estado transitoacuterio de sua proacutepria subjetividade (LEacuteVI-STRAUSS 1962 p 240) No
entanto o pesquisador chega a uma conclusatildeo um tanto radical quando afirma que
ldquojamais se nomeia classifica-se o outro se o nome que se lhe daacute eacute em funccedilatildeo de
caracteriacutesticas que ele tem ou se classifica a si mesmo se acreditando estar dispensado
de seguir uma regra nomeia-se o outro lsquolivrementersquo isto eacute em funccedilatildeo das
caracteriacutesticas que se temrdquo (IDEM) Muitas vezes reconhece Leacutevi-Strauss ambos os
fatores interagem-se
15
Nesse aspecto o nome proacuteprio como um classificador como exprime Leacutevi-
Strauss encontra-se um aspecto questionaacutevel pois
A nomeaccedilatildeo obedece a princiacutepios de classificaccedilatildeo mas esses princiacutepios natildeo se correspondem e natildeo constituem um sistema eles se unem ao infinito E eacute aqui que se manifesta uma diferenccedila fundamental entre classificaccedilatildeo e nomeaccedilatildeo o indiviacuteduo natildeo eacute uma espeacutecie [] Uma espeacutecie eacute definida por uma classificaccedilatildeo hieraacuterquica uacutenica um indiviacuteduo eacute portador de uma infinidade virtual de classificaccedilotildees independentes no primeiro caso as classificaccedilotildees servem para classificar no segundo o indiviacuteduo dado como um ponto de partida eacute o suporte de classificaccedilotildees muacuteltiplas e independentes que servem apenas para enriquecer sua definiccedilatildeo social (MOLINO 1982 p 18)
No entanto diferentemente de Leacutevi-Strauss podemos ver tanto no tipo de
nomeaccedilatildeo como classificaccedilatildeo de algueacutem como naquele de nomeaccedilatildeo como
autoclassificaccedilatildeo natildeo o conteuacutedo classificatoacuterio mas a forma em si mesma O que
ocorre em ambos os casos eacute a manifestaccedilatildeo de um ato de linguagem da relaccedilatildeo locutor
(quem nomeia) e interlocutor (quem eacute nomeado) mesmo que este uacuteltimo o seja em
potencial uma vez que ainda natildeo tecircm consciecircncia O fato do interlocutor (o nomeador)
exprimir-se a si mesmo nesse ato eacute algo secundaacuterio ldquoo essencial eacute que sua proacutepria
presenccedila no ato de nomeaccedilatildeo faccedila dele uma interpelaccedilatildeo [] o nome proacuteprio eacute tal
porque ele pode funcionar em uma interpelaccedilatildeordquo (GRANGER 1982 p 28-29)
13 Noccedilotildees semacircnticas baacutesicas sobre o nome proacuteprio10
No caso do nome de pessoas portanto o nome proacuteprio possui uma funccedilatildeo de
interpelar o mesmo nem sempre se daacute no caso dos demais nomes proacuteprios E natildeo se
interpela algo vazio de conteuacutedo Portanto deve haver uma pressuposiccedilatildeo de sentido
no nome proacuteprio uma vez que ele conota aleacutem de denotar o indiviacuteduo ao qual se refere
Por esse motivo ou seja em razatildeo de sua natureza pragmaacutetica o nome
proacuteprio especialmente de pessoas natildeo pode ser substituiacutedo por uma descriccedilatildeo
definida do ser nomeado como acreditava por exemplo Russell Ele possui o que
certos linguistas chamam de ldquohalo de conotaccedilotildeesrdquo (GRANGER 1982 p 34) O proacuteprio
Granger explica melhor tal conceito
10 Para uma abordagem mais exaustiva e detalhada dessa questatildeo consultar LANGENDONCK 2007 p 84-118
16
Entendemos aqui por essa palavra dois efeitos eventualmente conjuntos De uma parte a conotaccedilatildeo ldquometasimboacutelicardquo que atribui a um signo propriedades que dependem seja do subsistema da liacutengua ao qual ele pertence seja do uso particular que se faz dele em certo discurso De outra parte a conotaccedilatildeo ldquoparassimboacutelicardquo que nasce do valor expressivo conferido aos aspectos natildeo estritamente pertinentes do signo Eacute certo que o jogo dessas conotaccedilotildees quase que liberadas de todo entrave confere ao nome proacuteprio um poder poeacutetico excepcional [] Eacute desta maneira que o nome proacuteprio embora se afaste pela sua funccedilatildeo essencialmente pragmaacutetica de toda referecircncia semacircntica pode ter um sentido (GRANGER 1982 p 34-35)
Para Granger o nome proacuteprio eacute agraves vezes ao mesmo tempo iacutendice e siacutembolo11
Por isso o nome proacuteprio pode veicular um sentido conotativo de forma icocircnica12
completando a triacuteade peirceana do signo em relaccedilatildeo ao objeto que ele substitui Pode-
se tomar como exemplo o apelido do pintor italiano Giorgio Barbarelli (Castelfranco
Itaacutelia) Ele era denominado de Giorgione um aumentativo que refletia a sua
corpulecircncia Caso substituiacutessemos esse apelativo pelo seu sobrenome Barbarelli que
designa a mesma pessoa a proposiccedilatildeo continuaria a ser verdadeira pois estariacuteamos
falando da mesma pessoa
A palavra ldquoGiorgionerdquo sem se reduzir absolutamente a uma descriccedilatildeo transpotildee na funccedilatildeo de nome proacuteprio um nome cujo interpretante13 eacute um signo icocircnico ndash isto eacute que se parece de algum modo ao seu objeto ndash destacado pelo aumentativo italiano Como um nome proacuteprio a palavra deve neutralizar essa carga icocircnica sobreposta como ele neutralizaria de mais a mais todo sentido que ele possa conotar (GRANGER 1982 p 36)
11 Siacutembolo eacute uma das classificaccedilotildees de Charles Sanders Peirce (as outras duas satildeo iacutecone e iacutendice) que organiza os signos conforme a relaccedilatildeo entre eles e o objeto que eles substituem O siacutembolo resulta da convenccedilatildeo A relaccedilatildeo entre o signo e o objeto que ele representa eacute arbitraacuteria legitimada por regras Ex a pomba branca eacute siacutembolo de paz um retacircngulo verde com um losango amarelo ciacuterculo azul e estrelas eacute um dos siacutembolos do Brasil mas em nenhum desses casos haacute relaccedilatildeo de semelhanccedila ou de associaccedilatildeo singular trata-se de regras leis convenccedilotildees Iacutendice resulta de uma singularizaccedilatildeo Um signo indicial eacute o resultado de uma relaccedilatildeo por associaccedilatildeo ou referecircncia A categoria indicial se evidencia pelo vestiacutegio pelos indiacutecios Ex rastros de pneus pegadas ou cheiro de fumaccedila natildeo se parecem com os objetos que eles substituem (pneus animais ou a fumaccedila) mas noacutes associamos uns aos outros respectivamente satildeo exemplos de signos indiciais (AS TRICOTOMIAS PEIRCEANAS ndash CLASSIFICACcedilAtildeO DOS SIGNOS 2012 p 2) 12 O iacutecone eacute o resultado da relaccedilatildeo de semelhanccedila ou analogia entre o signo e o objeto que ele substitui Ex um retrato ou uma caricatura satildeo semelhantes aos objetos que eles substituem eles satildeo signos icocircnicos (IDEM) 13 Interpretante na proacutepria definiccedilatildeo do criador desse conceito Charles Sanders Peirce eacute o ldquoefeito do signordquo isto eacute eacute a ldquoideiardquo que o signo provoca cria na mente do inteacuterprete O signo ldquoeacute aquilo que sob certo aspecto ou modo representa algo para algueacutem Dirige-se a algueacutem isto eacute cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signordquo (PEIRCE 2012 p 46)
17
O nome proacuteprio em si mesmo natildeo se refere que a indiviacuteduos em geral Natildeo se
pode explicar o conteuacutedo semacircntico de um nome como ldquoJoatildeordquo por exemplo Sabemos
que ldquoJoatildeordquo14 eacute o nome de uma pessoa do sexo masculino Nos primoacuterdios da
linguiacutestica o russo Roman Osipovich Jakobson (1896-1982) dizia que o nome proacuteprio
natildeo podia ser definido que pela devoluccedilatildeotransmissatildeo do coacutedigo ao coacutedigo ldquoJoatildeordquo
significa uma pessoa nomeada Joatildeo Com isso esse estudioso denuncia a circularidade
de tal definiccedilatildeo (cf JAKOBSON 1963 p 177) Mas haacute linguistas que discordam dessa
afirmaccedilatildeo dizendo ser ela enganosa Isso porque ldquoo coacutedigo que se esforccedilam de
descrever dicionaacuterios e gramaacuteticas natildeo remete a si mesmo para caracterizar um nome
de pessoa quando diz a palavra lsquobaleiarsquo que designa um lsquoanimalrsquordquo (GRANGER 1982
p 27) A funccedilatildeo semacircntica da palavra ldquoJoatildeordquo natildeo depende circularmente do coacutedigo
mas da enunciaccedilatildeo Fixadas as circunstacircncias da enunciaccedilatildeo a descriccedilatildeo torna-se
possiacutevel
A significaccedilatildeo do nome proacuteprio como se constata eacute complexa pois se podem
encontrar diversas camadas de significaccedilatildeo que correspondem ao seu funcionamento
distinto a) ora como uma marca pura isto eacute uma etiqueta que visa um objeto singular
b) ora como um ldquodesignador riacutegidordquo que manteacutem a invariacircncia da referecircncia ao
indiviacuteduo mesmo em meio agraves modificaccedilotildees espaciais temporais e pessoais c) ora
como um classificador que indica a classe a qual pertence o objeto individual
designado pelo nome como eacute o caso de ldquoJoatildeordquo um prenome de ser humano d) ora
como uma descriccedilatildeo definida que serve de representaccedilatildeo identificadora como eacute o caso
de explicar o sentido do nome proacuteprio a quem o ignora por exemplo ldquoJoatildeordquo foi um
dos disciacutepulos de Jesus Cristo (cf MOLINO 1982 p 16)
Assim sendo o nome proacuteprio ldquoinduz uma seacuteria indefinida de interpretaccedilotildees
mais ricas e mais carregadas de afetividade do que satildeo os interpretantes dos nomes
comuns como o indica a funccedilatildeo literaacuteria e poeacutetica dos nomes proacutepriosrdquo (IDEM)
14 Etimologicamente falando sabemos que este nome adentrou em nossa liacutengua portuguesa atraveacutes do latim (Ioannes) que por sua vez proveacutem do grego Ιωάννης (Ioaacutennes) Entretanto a sua etimologia primitiva encontra-se na liacutengua hebraica nxwy (Yocircḥānān) forma reduzida de nxwhy (Yəhocircḥānān) que
pode significar Deus [YHWH] eacute propiacutecio Deus mostrou favor Deus foi clemente ou Graccedila Divina
18
O nome proacuteprio de pessoas serve portanto para fins que ultrapassam o
meramente designativo referencial e denotativo Ele situa-se no campo conotativo mais
amplo
2 Diferentes abordagens do nome proacuteprio
Eacute importante perceber as diferentes nuanccedilas que o nome proacuteprio pode
adquirir de acordo com o tipo de abordagem que se faz dele Por isso um raacutepido e
despretensioso percurso por algumas das ciecircncias que se ocupam deste argumento
pode fornecer um quadro mais amplo do seu significado No item anterior jaacute vimos a
abordagem desse tema atraveacutes da Filosofia da Linguagem Ver-se-aacute agora a
21 Semioacutetica
Podemos a grosso modo entender a semioacutetica como a ldquoteoria geral dos modos
de produccedilatildeo funcionamento e recepccedilatildeo dos diferentes sistemas de signos que
permitem a comunicaccedilatildeo entre indiviacuteduos eou coletividades de indiviacuteduosrdquo
(GRANDE ENCICLOPEacuteDIA LAROUSSE CULTURAL 1998 p 5317) Assim sendo
ela aborda o nome proacuteprio como um signo simboacutelico que representa um sujeito e
ldquoenquanto siacutembolo eacute o proacuteprio sujeito como se a palavra fosse o ser encarnadordquo
(IDEM)
Enquanto significante o nome proacuteprio eacute organizador em seu conjunto dos
efeitos do significado Mais que um iacutendice ele eacute um ldquotexto que se oferece ao
deciframentordquo na concepccedilatildeo de Lacan (RUSSO 2002 p 20) Desse modo o nome
proacuteprio eacute ldquoresumido numa palavra-texto como um conjunto de significaccedilotildees do outrordquo
(RUSSO 2002 p 22) o qual impele o ser a estabelecer relaccedilotildees ao identificar-se
Um dos primeiros pensadores senatildeo o primeiro a designar as palavras como
ldquosinaissignosrdquo foi Agostinho (354-430 EC) O estudo do sinal (semioacutetica) e em
especial do sinal linguiacutestico ocupa um lugar privilegiado na filosofia de Agostinho
Para ele o tema do ensino eacute fundamental e sinal e linguagem satildeo partes constitutivas
desse processo de aprendizagem Agostinho observa a importacircncia dos sinais na vida
humana Afinal todos os seres se dividem em sinais e significaacuteveis Em De magistro ele
afirma que todos os sinais satildeo coisas ainda que nem todas as coisas sejam sinais No
19
entendimento de Agostinho os sinais satildeo ldquocoisas de certo tipo especial O que eles tecircm
de especial eacute que satildeo coisas que se usam para significar e o significar (ou representar)
tem como principal incumbecircncia ensinar aos demaisrdquo (BEUCHOT 1986 p 14)15
Em sua obra De magistro (concluiacuteda em 389 EC) ele afirma a Adeodato seu
interlocutor imaginaacuterio no diaacutelogo mas seu proacuteprio filho na vida real
Entendeste certo creio tambeacutem teres notado apesar de haver quem natildeo concorde que mesmo sem emitir som algum noacutes falamos enquanto intimamente pensamos as proacuteprias palavras em nossa mente assim com as palavras nada mais fazemos do que chamar a atenccedilatildeo entretanto a memoacuteria a que as palavras aderem em as agitando faz com que venham agrave mente as proacuteprias coisas das quais as palavras satildeo sinais (SANTO AGOSTINHO 1973 p 324) 16
Algo que nos interessa mais de perto nesta pesquisa eacute a distinccedilatildeo operada por
Agostinho entre nome (nomen) e palavra (verbum) Haacute certo distanciamento entre o nome
e a coisa significada por meio de uma palavra da qual o nome eacute simplesmente um
sinal Uma palavra eacute sinal de uma essecircncia ou de uma coisa mas nunca coincide com
o proacuteprio sinal17 Aqui encontramos algo que se opotildee agrave concepccedilatildeo biacuteblico-judaica
como se viu no item anterior (ldquoLinguiacutesticardquo) Citemos Agostinho para tornar essa tese
mais clara
Acho que a diferenccedila seja esta o que eacute significado com o nome eacute significado tambeacutem com a palavra como pois nome eacute palavra assim tambeacutem rio eacute palavra mas nem tudo o que eacute significado com a palavra eacute significado tambeacutem com o nome Tambeacutem aquele si (se) com que comeccedila o verso por ti
15 Como afirma Agostinho em De magistro ldquoHaacute todavia creio certa maneira de ensinar pela recordaccedilatildeo maneira sem duacutevida valiosa como se demonstraraacute nesta nossa conversaccedilatildeo Mas se tu pensas que natildeo aprendemos quando recordamos ou que natildeo ensina aquele que recorda eu natildeo me oponho e desde jaacute declaro que o fim da palavra eacute duplo ou para ensinar ou para suscitar recordaccedilotildees nos outros ou em noacutes mesmosrdquo (SANTO AGOSTINHO 1973 p 323) Texto original latino ldquoAt ego puto esse quoddam genus docendi per commemorationem magnum sane quod in nostra hac sermocinatione res ipsa indicabit Sed si tu non arbitraris nos discere cum recordamur nec docere illum qui commemorat non resisto tibi et duas iam loquendi causas constituo aut ut doceamus aut ut commemoremus vel alios vel nosmetipsosrdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1195) 16 Texto no original latino ldquoRecte intellegis simul enim te credo animadvertere etiamsi quisquam contendat quamvis nullum edamus sonum tamen quia ipsa verba cogitamus nos intus apud animum loqui sic quoque locutione nihil aliud agere quam commonere cum memoria cui verba inhaerent ea revolvendo facit venire in mentem res ipsas quarum signa sunt verbardquo (AUGUSTINUS 2006 c 1195-1196) 17 ldquoNatildeo te parece que todos os sinais significam uma coisa distinta da que satildeo como quando pronunciamos este nome trissiacutelabo mdash animal mdash de modo algum significaremos aquilo que ele mesmo eacuterdquo (SANTO AGOSTINHO 1973 p 331) Original latino ldquoNum omnia signa tibi videntur aliud significare quam sunt sicut hoc trisyllabum cum dicimus Animal nullo modo idem significat quod est ipsumrdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1200)
20
proposto e aquele ex (de) do qual tratamos tatildeo longamente guiados pela razatildeo ateacute chegarmos agrave presente questatildeo satildeo palavras mas natildeo nomes e muitos outros exemplos semelhantes podemos encontrar Pois como todos os nomes satildeo palavras mas nem todas as palavras satildeo nomes julgo estar clara a diferenccedila entre palavra e nome isto eacute entre o sinal daquele sinal que natildeo significa nenhum outro sinal e o sinal daquele sinal que pode significar outros (SANTO AGOSTINHO 1973 p 331) 18
Portanto para Agostinho a palavra ldquonomerdquo (nomen) significa nomes tais
como Roma Rocircmulo virtude rio etc portanto ldquoo nome significa nomes ou se
significa a si mesmo eacute autopredicativo ou autorreferencial [] Aleacutem disso todo nome
eacute palavra e toda palavra eacute signo portanto haacute signos que se significam a si mesmosrdquo
(BEUCHOT 1986 p 19) Esse conceito fica mais claro nas proacuteprias palavras de
Agostinho
E natildeo eacute assim tambeacutem para o nome [nomen] Este pois significa os nomes de todos os gecircneros e nome mesmo eacute um nome de gecircnero neutro Ou se te perguntasse que parte da oraccedilatildeo eacute nome natildeo poderias responder-me acertadamente dizendo nome [] Portanto haacute sinais que entre as outras coisas que significam significam tambeacutem a si mesmos (SANTO AGOSTINHO 1973 p 332)19
Na praacutetica Agostinho acabaraacute pendendo durante o diaacutelogo De magistro para
uma compreensatildeo convencionalista da linguagem Ele admitiraacute que o significado das
coisas natildeo se encontra no nome que lhe damos pois ele eacute um palavra portanto signo
de alguma coisa Mas para conhecer-se algo eacute preciso haver a preacutevia experiecircncia
sensitiva ou mentalintuitiva dessa mesma coisa20 Finalizando para tornar ainda
mais claro o pensamento agostiniano podemos mencionar essa sua outra explanaccedilatildeo
18 Texto original latino ldquoHoc distare intellego quod ea quae significantur nomine etiam verbo significantur ut enim nomen est verbum ita et flumen verbum est quae autem verbo significantur non omnia significantur et nomine Nam et illud si quod in capite habet abs te propositus versus et hoc ex de quo iam diu agentes in haec duce ratione pervenimus verba sunt nec tamen nomina et talia multa inveniuntur Quamobrem cum omnia nomina verba sint non autem omnia verba nomina sint planum esse arbitror quid inter verbum distet et nomen id est inter signum signi eius quod nulla alia signa significat et signum signi eius quod rursus alia significatrdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1200) 19 Original latino ldquoQuid nomen nonne similiter habet Nam et omnium generum nomina significat et ipsum nomen generis neutri nomen est An si ex te quaererem quae pars orationis nomen posses mihi recte respondere nisi nomen [] Sunt ergo signa quae inter alia quae significant et se ipsa significent (AUGUSTINUS 2006 c 1201) 20 Veja-se o que Agostinho diz ldquoQuando as duas siacutelabas com que dizemos lsquocaputrsquo (cabeccedila) repercutiram pela primeira vez no meu ouvido sabia tatildeo pouco o que significavam como quando ouvi e li pela primeira vez lsquosaraballaersquo Poreacutem ouvindo muitas vezes dizer lsquocaputrsquo (cabeccedila) e notando e observando a palavra quando era pronunciada reparei facilmente que ela denotava aquela coisa que por tecirc-la visto a mim jaacute era conhecidiacutessima Mas antes de achar isto aquela palavra era para mim apenas um som e
21
Com as palavras natildeo aprendemos senatildeo palavras antes o som e o ruiacutedo das palavras porque se o que natildeo eacute sinal natildeo pode ser palavra natildeo sei tambeacutem como possa ser palavra aquilo que ouvi pronunciado como palavra enquanto natildeo lhe conhecer o significado Soacute depois de conhecer as coisas se consegue portanto o conhecimento completo das palavras ao contraacuterio ouvindo somente as palavras natildeo aprendemos nem sequer estas Com efeito natildeo tivemos conhecimento das palavras que aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que natildeo conhecemos senatildeo depois que lhes percebemos o significado o que se verifica natildeo mediante a audiccedilatildeo das vozes proferidas mas pelo conhecimento das coisas significadas Ao serem proferidas palavras eacute perfeitamente razoaacutevel que se diga que noacutes sabemos ou natildeo sabemos o que significam se o sabemos natildeo foram elas que no-lo ensinaram apenas o recordaram se natildeo o sabemos nem sequer o recordam mas talvez nos incitem a procuraacute-lo (SANTO AGOSTINHO 1973 p 350)21
Assim as palavras e por conseguinte os nomes natildeo tecircm o poder de nos ligar
agraves essecircncias ou agraves coisas mesmas elas satildeo somente lembradas apoacutes (a posteriori) o nosso
contato com as coisas que as palavras e nomes ldquosignificamrdquo22
Na semioacutetica moderna o nome proacuteprio eacute assumido por alguns como um
signo no sentido semioacutetico do termo ou seja ldquoalguma coisa que eacute reconhecida por
algueacutem como indicaccedilatildeo de algordquo (VOLLI 2012 p 31) Nesse sentido exemplos de
signos poderiam ser a fumaccedila para o fogo a bandeira branca para a rendiccedilatildeo e o
semaacuteforo que obriga a parar ou avanccedilar O signo eacute ldquoum niacutevel extremamente simples
quase abstrato do sentidordquo (VOLLI 2012 p 32) Por isso o signo eacute uma relaccedilatildeo que liga
um significante a um significado (IDEM)
aprendi que ela era um sinal quando encontrei aquilo de que era sinal o que aprendi natildeo pelo significado mas pela visatildeo direta do objeto Portanto mais atraveacutes do conhecimento da coisa se aprende o sinal do que se aprende a coisa depois de ter o sinalrdquo (SANTO AGOSTINHO 1973 p 349) Texto original latino ldquoEtenim cum primum istae duae syllabae cum dicimus laquocaputraquo aures meas impulerunt tam nescivi quid significarent quam cum primo audirem legeremue sarabaras Sed cum saepe diceretur laquocaputraquo notans atque animadvertens quando diceretur repperi vocabulum esse rei quae mihi iam erat videndo notissima Quod priusquam repperissem tantum mihi sonus erat hoc verbum signum vero esse didici quando cuius rei signum esset inveni quam quidem ut dixi non significatu sed aspectu didiceram Ita magis signum re cognita quam signo dato ipsa res disciturrdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1214) 21 Texto original latino ldquoVerbis igitur nisi verba non discimus immo sonitum strepitumque verborum nam si ea quae signa non sunt verba esse non possunt quamvis iam auditum verbum nescio tamen verbum esse donec quid significet sciam Rebus ergo cognitis verborum quoque cognitio perficitur verbis vero auditis nec verba discuntur non enim ea verba quae novimus discimus aut quae non novimus didicisse nos possumus confiteri nisi eorum significatione percepta quae non auditione vocum emissarum sed rerum significatarum cognitione contingit Verissima quippe ratio est et verissime dicitur cum verba proferuntur aut scire nos quid significent aut nescire si scimus commemorari potius quam discere si autem nescimus nec commemorari quidem sed fortasse ad quaerendum admonerirdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1215) 22 Agostinho define ldquosignificarrdquo como ldquoPois quando falamos fazemos sinais donde proveacutem a palavra lsquosignificarrsquo (fazer sinais mdash signa facere)rdquo (SANTO AGOSTINHO 1973 p 334) Texto original latino ldquoCum enim loquimur signa facimus de quo dictum est significarerdquo (AUGUSTINUS 2006 c 1198)
22
SIGNIFICANTE23
SIGNO = ________________
SIGNIFICADO24
Eacute importante delimitar o objeto de nosso estudo pois o nome proacuteprio possui
uma larga abrangecircncia As diversas categorias de nomes proacuteprios podem ser reunidas
entorno de trecircs polos25
a) dimensotildees da pessoa ndash ego (satildeo os antropocircnimos nomes de animais e
apelativos ou tiacutetulos) um prolongamento desta dimensatildeo seria o polo da
produccedilatildeo humana seja ela simboacutelica ou material como eacute o caso de nomes de
instituiccedilotildees nomes de produtos da atividade humana nomes de siacutembolos
matemaacuteticos e cientiacuteficos
b) dimensatildeo de espaccedilo ndash hic (nomes de lugares)
c) dimensatildeo do tempo ndash nunc (nomes de tempos) cf MOLINO 1982 p 6-7
Diante dessa heterogeneidade eacute praticamente impossiacutevel dar uma definiccedilatildeo
simples e coerente de nome proacuteprio Sendo uma categoria linguiacutestica eacute ilusoacuterio
segundo Molino ldquoprocurar definir de modo decisivo por criteacuterios natildeo ambiacuteguosrdquo
(IDEM) o nome proacuteprio Pode-se entatildeo chegar ao ponto de se afirmar que natildeo existem
nomes proacuteprios jaacute que natildeo haacute para eles uma definiccedilatildeo completa
Certamente natildeo porque a escolha natildeo eacute entre categorias definidas e a confusatildeo onde tudo eacute misturado com tudo O nome proacuteprio eacute uma categoria ldquoecircmicardquo uma categoria semiteoacuterica nascida da reflexatildeo mi-teoacuterica mi-praacutetica do locutor do gramaacutetico-pedagogo e do linguista sobre sua liacutengua com seus contornos e conteuacutedo indecisos ela existe no entanto E para explicaacute-lo o melhor instrumento eacute no momento aquele fornecido pela noccedilatildeo de protoacutetipo utilizado frequentemente pela psicologia cognitiva e aplicado algumas vezes agrave anaacutelise linguiacutestica Pode-se definir bem grosseiramente o protoacutetipo da seguinte maneira a cada palavra ou conceito estaacute associado um conjunto de
23 Significante seria a parte ldquofiacutesicardquo da palavra ou seja sua grafia e foneacutetica (SAUSSURE 2012 p 107) 24 Significado seria o ldquoconceitordquo transmitido pelo significante Portanto significante e significado satildeo duas faces da mesma folha (signo = palavra que possui sentido) (SAUSSURE 2012 p 107) 25 Esses polos seguem a diacutexis que eacute uma caracteriacutestica da linguagem humana que ldquoconsiste em fazer um enunciado referir-se a uma situaccedilatildeo definida real ou imaginaacuteria que pode ser a) quanto aos participantes do ato de enunciaccedilatildeo (1ordf pessoa ndash o que fala 2ordf pessoa ndash aquele a quem se dirige a fala 3ordf pessoa ndash todo assunto da comunicaccedilatildeo que natildeo sejam a 1ordf e 2ordf pessoas) b) quanto ao momento da enunciaccedilatildeo (diacutexis temporal) c) quanto ao lugar onde ocorre a accedilatildeo estado ou processo (diacutexis espacial)rdquo (DIacuteXIS 2009)
23
atributos que constitui o protoacutetipo do conceito e ao qual se compara todo objeto para julgar se ele se classifica ou natildeo sob esse conceito (MOLINO 1982 p 7)
Em nosso estudo claramente nos interessaraacute o nome proacuteprio em seu primeiro
polo isto eacute aquele da dimensatildeo da pessoa Afinal lidaremos com antropocircnimos e o uso
que deles faz a literatura aqui no caso a hebraica antiga Antes poreacutem conveacutem
observar que este uso natildeo eacute prerrogativa apenas da literatura hebraica Ele permeia e
tem um lugar especial na literatura universal
Por ser um signo um nome eacute um portador (significante) de significado isto eacute
ele tem sentido para algueacutem Ionescu (1994 p 306) afirma com razatildeo que um ldquoraacutepido
exame de algumas das obras mais relevantes da literatura universal prova
indubitavelmente o fato de que em um texto de ficccedilatildeo os nomes proacuteprios satildeo
altamente significativos e sempre cumprem uma finalidade poeacuteticardquo
Seguindo o quanto afirmado por Barthes
O Nome proacuteprio dispotildee de trecircs propriedades que o narrador reconhece agrave reminiscecircncia o poder de essencializaccedilatildeo (uma vez que ele designa apenas um uacutenico referente) o poder de citaccedilatildeo (uma vez que se pode chamar agrave escolha toda a essecircncia inserida no Nome ao proferi-lo) o poder de exploraccedilatildeo (uma vez que se ldquodesdobrardquo um Nome proacuteprio exatamente como se faz com uma lembranccedila) o Nome proacuteprio eacute de qualquer modo a forma linguiacutestica da reminiscecircncia [] o Nome proacuteprio se oferece a uma exploraccedilatildeo a um deciframento ele eacute ao mesmo tempo um ldquomeiordquo (no sentido bioloacutegico do termo) no qual eacute preciso mergulhar banhando-se indefinidamente em todos os devaneios que porta e um objeto precioso comprimido embalsamado que eacute necessaacuterio abrir como uma flor (BARTHES 1967 p 151)
Barthes discorda dos principais expoentes da Filosofia da Linguagem que vatildeo
de Peirce a Russell que viam no nome proacuteprio algo que designaria mas sem nada
significar Para Barthes o nome proacuteprio eacute um ldquosigno volumosordquo isto eacute cheio de
sentido que ldquonenhum uso chega a reduzir nivelar contrariamente ao nome comumrdquo
(IDEM) Ao analisar o uso que o escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) faz dos
nomes proacuteprios em seu monumental romance Agrave la recherche du temps perdu (Em busca
do tempo perdido) publicado de 1913 a 1926 Barthes percebe que ao lidar com os nomes
Proust estava gerindo as significaccedilotildees essenciais de sua obra E o romancista toma o
nome proacuteprio como um verdadeiro signo em suas duas dimensotildees como nota Barthes
24
[] de um lado ele pode ser lido sozinho ldquoem sirdquo como uma totalidade de significaccedilotildees numa palavra como uma essecircncia (uma ldquoentidade originalrdquo) diz Proust) ou se preferirmos uma ausecircncia pois o signo designa aquilo que natildeo estaacute laacute e de outro lado ele manteacutem com seus congecircneres relaccedilotildees metoniacutemicas estabelece a narrativa Swan e Guermantes natildeo satildeo somente duas estradas dois flancos satildeo tambeacutem dois foneticismos como Verdurin e Laumes (BARTHES 1967 P 156)
O nome portanto natildeo seria nada se natildeo fosse articulado com o seu referente
pois ldquoentre a coisa e a aparecircncia desenvolve-se o sonhordquo como constata Barthes (1967
p 156) Haacute uma motivaccedilatildeo para que aconteccedila a relaccedilatildeo entre significante e significado no
caso do nome proacuteprio na perspectiva proustiana identifica Barthes Seria ldquoum
copiando o outro e reproduzindo em sua forma material a essecircncia significada da coisa
(e natildeo a coisa mesma)rdquo (BARTHES 1967 p 157) Nesse sentido Proust sempre
segundo Barthes crecirc que a virtude dos nomes seja ensinar como ocorria em Craacutetilo de
Santo Agostinho conforme vimos acima A palavra literaacuteria portanto deveria ser lida
ldquonatildeo como o dicionaacuterio a explicita mas como o escritor a constroacuteirdquo (BARTHES 1967
p 158) O nome proacuteprio eacute uma caracteriacutestica linguiacutestica capaz de construir a essecircncia
dos objetos do romance Tomando de empreacutestimo um famoso axioma afirmariacuteamos
que ldquoPode-se dizer que o proacuteprio da narrativa natildeo eacute a accedilatildeo mas o personagem como
nome proacutepriordquo (BARTHES 1970 p 197) O nome penetrado pelos recursos
paradigmaacuteticos da obra ldquoobriga a uma leitura que ultrapassa a superfiacutecie do texto faz
confluir narraccedilatildeo personagem nome e liacutenguardquo (CRUZ 2006 p 65)
22 Psicanaacutelise
O nome proacuteprio individualiza identifica e personaliza o sujeito Assim o
ldquoconjunto de signos que forma o nome proacuteprio aleacutem de servir de marca formal
designativa do indiviacuteduo para os outros para a sociedade constitui-se como
referencial uacutenico para o sujeito ele o vive como sendo ele mesmordquo (MARTINS 1991
p 43) Para o sujeito o nome eacute mais que um signo ele eacute o seu elemento fundador uma
vez que ele coloca o sujeito no espaccedilo da interlocuccedilatildeo humana Ele permite ao
indiviacuteduo natildeo se perder na multidatildeo de corpos Ele eacute desse modo ldquoo articulador do
vivido com o mundo da linguagemrdquo (MARTINS 1991 p 46)
O nome proacuteprio passa a construir o cerne daquilo que o sujeito mais preza ou
seja o seu proacuteprio ldquoeurdquo Quem daacute o nome natildeo eacute quem o recebe e aquele que o recebe
25
natildeo o solicitou Isso porque o ser eacute nomeado a partir do desejo de outro ser A
identidade da pessoa seraacute definida ao longo de sua vida apesar do nome que ela porta
Eacute o sujeito que necessita apropriar-se das significaccedilotildees que lhe foram dadas fazendo
a sua proacutepria interpretaccedilatildeo
3 O nome proacuteprio na literatura
Aquilo que se viu nos itens anteriores torna-se ainda mais vaacutelido quando se
analisa as culturas mais antigas da humanidade Quando mais nos afastamos no
tempo mais as culturas ancestrais percebiam o ato de nomear algueacutem como tocar-lhe
na proacutepria personalidade O pesquisador V Larock se pergunta com razatildeo
Seraacute que estamos tatildeo longe agraves vezes de emprestar aos nomes como [faziam] os natildeo civilizados uma sorte de realidade objetiva um prestiacutegio e um poder que ultrapassam extraordinariamente sua significaccedilatildeo literal ou sua funccedilatildeo social Natildeo experimentamos ao pronunciar nosso proacuteprio nome em certas circunstacircncias um sentimento confuso que beira seja ao orgulho seja ao temor Noacutes natildeo cercamos ainda de cerimocircnias religiosas ou profanas o ato da primeira denominaccedilatildeo E os ritos maacutegicos praticados sobre o nome satildeo tatildeo raros dentre o povo Os poetas natildeo exploraram frequentemente esta sorte de misteriosa correspondecircncia que se estabelece entre a tonalidade de um nome e a fisionomia do personagem a quem esse nome pertence (LAROCK 1932 p 13)
O filoacutelogo e linguista italiano Bruno Migliorini (1896-1975) recorda uma
circunstacircncia interessante da vida do renomado escritor alematildeo Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832) Este ficou descontente com um epigrama que outro conhecido
escritor criacutetico literaacuterio filoacutesofo e teoacutelogo alematildeo Johann Gottfried von Herder (1744-
1803) escrevera sobre o seu sobrenome Entatildeo Goethe teria recordado a Herder que
um nome de famiacutelia ldquonatildeo eacute como um manto que lhe estaacute pendurado por cima e que se
pode arrancar e rasgar mas uma veste perfeitamente adaptada ou como a pele
crescida juntamente com ele e que natildeo se pode raspar e arranhar sem fazer mal
tambeacutem a elerdquo (MIGLIORINI 1927 p 6) Portanto Goethe concedia ao nome proacuteprio
uma conexatildeo direta agrave personalidade o que lhe confere um caraacuteter mais especial que
um simples nome comum Como afirma Barthes (1970 p 74) ldquoQuando semas
idecircnticos atravessam vaacuterias vezes o mesmo nome proacuteprio e parecem nele se fixar
26
nasce um personagemrdquo Portanto o nome proacuteprio ficcional eacute o ldquolugar de um processo
semacircntico fundamental para a gramaacutetica da narrativardquo (NICOLE 1983 p 236)
Devido a isso o nome proacuteprio na ficccedilatildeo ultrapassa a mera identificaccedilatildeo do
personagem e a continuidade desta referecircncia ao longo da narraccedilatildeo Haacute outras
propriedades excepcionais no interior do processo ficcional de identificaccedilatildeo
Seguindo o linguista e lexicoacutegrafo ucraniano radicado no Canadaacute Jaroslav
Bohdan Rudnyckyj (1910-1995) especialista em etimologia e onomaacutestica Dirce Cocircrtes
Riedel (sd p 77-78) identifica as seguintes funccedilotildees literaacuterias do nome proacuteprio
31 Nomes que revelam a qualidade dos personagens
a Como na obra de Nikolai Gogol (1809-1852) Taras Bulba um romance
histoacuterico cuja primeira versatildeo eacute de 1835 e o tiacutetulo revela o nome do
personagem principal Esse velho e poderoso cossaco ucraniano por ser
arredondado (gordo) possui uma aparecircncia de bulrsquoba que significa
ldquobatatardquo Assim sendo essa palavra na funccedilatildeo de nome proacuteprio ldquosubstitui
uma extensa descriccedilatildeo realista do personagem e serve de base para que a
nossa imaginaccedilatildeo reproduza a pintura do heroacutei fictiacuteciordquo
b Algo semelhante ocorre com o nome do personagem principal de Almas
Mortas do mesmo Nikolai Gogol publicada em 1842 O nome dele eacute Paacutevel
Ivaacutenovitch Tchiacutetchicov sendo que este uacuteltimo nome Tchiacutetchicov possui um
som que sugere alguma coisa instaacutevel De fato o personagem eacute um perpeacutetuo
viajante em busca da fortuna apoacutes ter sido demitido do serviccedilo puacuteblico por
desonestidade
32 Nomes que indicam o local da accedilatildeo
33 Nomes sugestivos do tempo da accedilatildeo
34 Nomes que exercem um papel na estrutura da obra
a Recurso mais comum na poesia moderna Haacute exemplos de ldquoadaptaccedilatildeo
musical do nome ao contexto liacuterico quando usado por razotildees musicais
condicionado pela organizaccedilatildeo de toda a frase e pelo ritmordquo O valor
estrutural dos nomes proacuteprios fica claro nas oposiccedilotildees que o escritor
dramaturgo e ensaiacutesta brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) realiza em
seu poema intitulado Cacircntico dos Cacircnticos para Flauta e Violatildeo ao mencionar
27
as amadas e a Amada Maria Antonieta dAlkmin com quem se casou em
1942 ano aliaacutes de composiccedilatildeo do referido poema Vejamos
Natildeo quero mais A inglesa Elena Natildeo quero mais A irmatilde da Nena Natildeo quero mais A bela Elena Anabela Ana Bolena Quero vocecirc Toma conta do ceacuteu Toma conta da terra Toma conta do mar Toma conta de mim Maria Antonieta dAlkmin (ANDRADE 1974 p 184)
b Algo semelhante encontra-se em Os Irmatildeos Karamaacutezov obra do escritor russo
Fioacutedor Dostoieacutevski (1821-1881) Neste romance escrito em 1879 os irmatildeos
satildeo todos ldquoenegrecidosrdquo devido suas taras O nome proacuteprio Karamaacutezov
estrutura o romance pois a primeira parte do nome kara significa negro Em
um conto do mesmo autor O senhor Prokhartchin escrito quando
Dostoieacutevski tinha apenas 25 anos de idade (1846) contata-se o mesmo
fenocircmeno A relaccedilatildeo do nome com o que ele significa eacute uma temaacutetica
essencial deste conto O tradutor ensaiacutesta e escritor ucraniano radicado no
Brasil Boris Solomonovitch Schnaiderman quando traduziu e analisou este
conto destacou a funccedilatildeo do uso do nome proacuteprio na obra de Dostoieacutevski
As suas constataccedilotildees podem ser ampliadas para vaacuterias outras obras
literaacuterias aleacutem daquelas deste autor russo
Este uso dos nomes proacuteprios significativos nem sempre tem a funccedilatildeo de colocar desde o iniacutecio maacutescara na personagem definindo-a Agraves vezes soacute depois da leitura eacute que se percebe a relaccedilatildeo entre o nome proacuteprio e o papel da personagem Eacute o caso por exemplo do nome Raskoacutelnikov que tem relaccedilatildeo com raskol heresia (o que lhe daacute certa semelhanccedila com Heregino) mas soacute depois da leitura de Crime e castigo e com um pouco de reflexatildeo eacute que se percebe realmente para o narrador o criminoso eacute um herege [] O jogo de palavras que deu origem ao nome relaciona-se com a exploraccedilatildeo das possibilidades de formaccedilatildeo de verbos a partir da palavra khartchi Assim no romance O Soacutesia imediatamente anterior ao conto aparece a forma iskhartchiacutelsia isto eacute no preteacuterito e tambeacutem no sentido de ter gasto o dinheiro com a comida natildeo obstante o preacute-verbo diferente O nome Prokhartchin eacute explorado no conto tanto na sua semacircntica que eacute claramente indicada como nas possiacuteveis variaccedilotildees alusivas (SCHNAIDERMAN 1982 p 118)
28
c Outro exemplo pode ser extraiacutedo da obra Buriti (em Corpo de Baile) do
escritor diplomata e meacutedico mineiro Joatildeo Guimaratildees Rosa (1908-1967)
trata-se do nome da personagem Mauriacutecia Esse nome conecta-se com a
denominaccedilatildeo cientiacutefica da planta que daacute nome agrave histoacuteria o buriti mauritia
viniacutefera corresponde em portuguecircs ao buritizeiro muriti muritim muruti
Portanto o nome Mauriacutecia participa das imagens que conduzem a narrativa
como um dos elementos estruturais do enredo ldquoQuando Maria da Gloacuteria
indaga de Lalinha porque natildeo tivera filhos eacute a imagem de Vovoacute Mauriacutecia
que lhe ocorre ao contemplar com amor o Buriti-Grande Neste e naquela
concentra-se a sensaccedilatildeo de estabilidaderdquo (RIEDEL sd p 83)
Lembrei de Vovoacute Mauriacutecia vocecirc sabe Ela eacute quem diz _ A gente deve ter muitos filhos quantos vierem e com amor de bem criar desistidos cuidados de se ralar sem sobrossos que Deus eacute estaacutevel (ROSA 2010 p 382)
ldquoSolidez que eacute reafirmada coincidindo quase sempre com a
contemplaccedilatildeo do Buriti sugestivo da tranquilidade estaacutevel dos
Geraisrdquo (RIEDEL sd p 84)
_ Vovoacute Mauriacutecia eacute dos Gerais Ela falava de sua gente O buritizal acolaacute impenha seu estado Tal iocirc Liodoro ndash iocirc Lidoro Mauriacutecio sendo Mauriacutecia sua matildee que no meio dos Gerais residia (ROSA 2010 p 342)
ldquoObserve-se a sintaxe claacutessica ndash denotadora ndash conotadora da
estabilidade da tradiccedilatildeo da famiacutelia mineirardquo (RIEDEL sd p 84 n
19) A presenccedila de Vovoacute Mauriacutecia eacute simboacutelica da ldquoessecircncia do que
permanecerdquo (RIEDEL sd p 84)
Maria Behuacute estava citando um ditado de Vovoacute Mauriacutecia essa falava coisas inesqueciacuteveis ldquoO sol natildeo eacute os raios dele ndash eacute o fogo da bola A gente eacute o coraccedilatildeo caladinhordquo (ROSA 2010 p 405)
A ideia de que as pessoas nunca estatildeo acabadas mas estatildeo sempre
sendo de que ldquoa vida natildeo tem passado Toda hora o barro se refazrdquo
[Cf Buriti em Corpo de Baile] ndash eacute um motivo retomado em toda a obra
de Guimaratildees Rosa Um motivo que vaacuterias vezes eacute configurado pelos
29
nomes proacuteprios Porque ldquojaneiro afofa o que dezembro endurecerdquo
[ROSA 2001 p 257]
d A amplidatildeo do ciclo da obra de Honoreacute de Balzac (1799-1850) denominada
A Comeacutedia Humana se imporaacute sob a forma de um retorno dos mesmos nomes
proacuteprios de volume em volume como bem observou Eugegravene Nicole (1983
p 236) Esse recurso de Balzac seraacute fundamental para dar uma unidade ao
conjunto de sua obra
35 Nomes que ressaltam as associaccedilotildees sinesteacutesicas26 Dirce Cocircrtes Riedel
fundamenta-se em Stephen Ullmann (1914-1976)27 para trazer agrave luz essa funccedilatildeo
literaacuteria do nome proacuteprio Ullmann observa que Marcel Proust desenvolve uma teoria
dos nomes proacuteprios em sua obra Em Busca do Tempo Perdido no volume um No caminho
de Swann (1913) terceiro capiacutetulo Nome de terras o nome
Proust vecirc neles um importante fator na discrepacircncia fundamental entre imaginaccedilatildeo e realidade apontando-os como desenhadores fantasistas que nos datildeo das pessoas e dos paiacuteses esboccedilos tatildeo pouco semelhantes que experimentamos muitas vezes certo estupor quando temos diante de noacutes em lugar do mundo imaginado o mundo visiacutevel
a Para Ullmann as cores tecircm um lugar proeminente na aura associativa de certos nomes proacuteprios A mais persistente dessas associaccedilotildees eacute a tonalidade do nome ldquoGuermantesrdquo que ocorre quase como um lsquoleitmotivrsquo simbolizando o entusiasmo juvenil do narrador pela famiacutelia aristocraacutetica Ele gosta de imaginar o nome ldquobaignant comme dans un coucher de soleil dans la lumiegravere
orangeacutee qui eacutemane de cette syllabe lsquoantesrsquordquo28 (RIEDEL sd p 78)
b Aleacutem das associaccedilotildees visuais como proposto acima podem ocorrer
aquelas sonoras Nesse sentido Ullmann exemplifica trazendo um
trecho da obra do escritor e poeta francecircs Louis Henri Jean Farigoule
conhecido como Jules Romains (1885-1972) Em seu romance Les amours
enfantines no uacuteltimo capiacutetulo intitulado ldquoRumeur de la rue Reacuteaumurrdquo
ele sente vibraccedilotildees no seu nome
26 Associaccedilatildeo de palavras ou expressotildees que combinam sensaccedilotildees distintas numa impressatildeo uacutenica cruzamento de sensaccedilotildees Por exemplo na expressatildeo ldquovoz doce e maciardquo a palavra ldquovozrdquo manifesta uma sensaccedilatildeo auditiva o vocaacutebulo ldquodocerdquo exprime uma sensaccedilatildeo gustativa e finalmente a palavra ldquomaciardquo revela uma sensaccedilatildeo taacutetil 27 Linguista huacutengaro que transcorreu a maior parte de sua vida na Inglaterra o qual em sua obra intitulada Style in the French novel (Cambridge [UK] University Press 1957) ressalta tais tipos de associaccedilotildees dos nomes proacuteprios 28 Traduccedilatildeo banhando-se como em um por do sol na luz alaranjada que emana desta siacutelaba ldquoantesrdquo
30
Son nom mecircme qui ressemble agrave um chant de roues et de murailles agrave une treacutepidation drsquoimmeubles agrave la vibration du beacuteton sous lrsquoasphalte au bourdonnement des convois souterrainshellip (ULLMANN 1967 p 183 n 2)
Jules Romains menciona o nome de uma rua de Paris rue Reacuteaumur
e afirma que ele se parece ao som de rodas e paredes e vaacuterias outras
formas de trepidaccedilatildeo vibraccedilatildeo e estrondos urbanos Esses motivos
hermeticamente fundidos com o tema de fluxo e refluxo do livro satildeo
incorporados na forma de som da rue Reacuteaumur
Esse tipo de associaccedilatildeo tambeacutem ocorre na obra do escritor e poliacutetico
francecircs Franccedilois-Reneacute de Chateaubriand (1768-1848) como observa
Jean Mourot Haacute na seleccedilatildeo de nomes proacuteprios dos personagens de
suas obras uma acurada preocupaccedilatildeo pela sonoridade Isso se
comprova pela frequecircncia da consoante liacutequida ldquolrdquo e da vogal final
ldquoardquo na maioria dos nomes das heroiacutenas como por exemplo Atala
Ceacuteluta Blanca Mila entre outras Em sua obra apologeacutetica Geacutenie du
Christianisme (1802) o proacuteprio Chateaubriand admite ldquoAcusar-nos-
atildeo de tentar surpreender o ouvido com sons suaves se lembrarmos
estes conventos de Aqua-Bella Bel-Monterdquo (CHATEAUBRIAND
1809 p 119)
c Outro exemplo de associaccedilatildeo sonora produzida pela onomaacutestica na
literatura encontramos no escritor Guimaratildees Rosa Augusto de
Campos observa em Grande Sertatildeo Veredas de Guimaratildees Rosa o tema-
timbre do personagem Diadorim que ldquonatildeo rotula ndash ou denota ndash
simplesmente o personagem a que estaacute aderido Eacute isomoacuterfico em relaccedilatildeo
agrave personalidade do personagemrdquo (CAMPOS 1959) Comenta a
fisiognomia29 semacircntica da Riobaldo ndash etimologia de invenccedilatildeo rio + baldo
(frustrado) ndash e a de Diadorim ndash ldquocaleidoscoacutepio em miniatura de
reverberaccedilotildees semacircnticas suscitadas por associaccedilatildeo formalrdquo (IDEM) a)
Dia + adora (ser) b) Diaacute (diabo) + dor (natildeo-ser) + im Em ldquodois planos
29 Eacute a arte de conhecer o caraacuteter do indiviacuteduo a partir de suas feiccedilotildees (FISIOGNOMONIA 2009)
31
de significado (lsquodeusrsquo ou o lsquodemorsquo sempre) se bifurca desde o nome
essa criatura que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo e
mais para muito amar sem gozo de amorrdquo Campos continua a
observar que ldquoO amor condenado que Riobaldo nutre por Diadorim
lanccedila-o frequentemente na indagaccedilatildeo da procedecircncia (demoniacuteaca) do
seu sentimentordquo (IDEM) Diaacute = o diabo e Diadorim ldquoProcesso de
metamorfose etimoloacutegicardquo (IDEM) que eacute enfatizado quando Riobaldo se
refere ao nome do alematildeo Vupes ldquoE como eacute mesmo que o senhor fraseia
Wusp Eacute Seu Emiacutelio Wuspes Wuacutespiss Vupses Pois esse Vupesrdquo
(IDEM) Diadorim ndash um nome perpetual laquoA accedilatildeo da presenccedila
onomaacutestica de Diadorim se faz sentir verberando pelas aacutereas
circunvizinhas ora sutilmente atraveacutes de uma incidecircncia maior de
fonemas em ndash d ndash ora de maneira mais expliacutecita pelo emprego da rima
em ndashim Satildeo pegadas sonoras que assinalam com um timbre
inconfundiacutevel a presenccedila do personagem como que a prolongar o seu
ldquoprazo de perfumerdquo
Diadorim tambeacutem disso natildeo disse (ROSA 1994 p 41) Desistir de Diadorim foi o que eu falei Digo desdigo (ROSA 1994 p 256)
Augusto de Campos nota ainda as rimas em ndashim que circulam ao
redor do nome Diadorim como no exemplo seguinte
Quem era assim para mim Diadorim (ROSA 1994 p 249) Dirce Cocircrtes Riedel constata tambeacutem que ldquoRiobaldo Diadorim
Norinhaacute Otaciacutelia Zeacute Bebelo Liodoro Mauriacutecia Lalinha Glorinha
Gualberto Maria Beuacute Soropita Doralda tecircm ressonacircncia
associativa concorrendo na organizaccedilatildeo do enredordquo (RIEDEL sd
p 83) da obra Buriti reunida em Corpo de Baile Observe-se a
frequecircncia de ldquorrdquo e ldquolrdquo
d Permanecendo ainda na obra de Guimaratildees Rosa pode-se tomar outro
exemplo a partir do uso da vogal ldquoirdquo a qual com a sua ressonacircncia
expressa carinho Haacute portanto uma carga afetiva na assonacircncia do ldquoirdquo
vejamos
32
A menina de laacute morava para traacutes da Serra do Mim E ela menininha por nome Maria Nhinhinha dita (ROSA Primeiras Estoacuterias) Iocirc Irvino iocirc Iacutesio iaacute-Dijina Lalinha Glorinha Mauriacutecia Alcina (Buriti)
Como bem nota Ana Maria Machado em sua tese doutoral orientada
por Roland Barthes na Eacutecole Pratique des Hautes Eacutetudes de Paris
[] o Nome natildeo tem apenas a funccedilatildeo de indicar um personagem ou de individualizaacute-lo nem mesmo de caracterizaacute-lo sumariamente de modo alegoacuterico O nome proacuteprio em Guimaratildees Rosa significa ao contraacuterio de todas as opiniotildees claacutessicas a respeito da natildeo-significaccedilatildeo do Nome Na obra rosiana esse significado pode ligar-se agrave funccedilatildeo do personagem na narrativa o Grivo eacute quem grifa Ivo Crocircnico eacute quem modifica a cronologia Osoacuterio eacute quem a montanha escolhe para destinataacuterio do recado e assim por diante Mas o mais importante eacute que essa significaccedilatildeo nunca eacute isolada e soacute se verifica realmente se o Nome eacute tambeacutem tomado no conjunto do texto como parte de um sistema em que um elemento soacute existe por oposiccedilatildeo aos outros (MACHADO 2013 p 113-114)30
O nome em Guimaratildees Rosa natildeo atua como um mero elemento de
identificaccedilatildeo eacute um ldquosigno motivado que apresenta uma relaccedilatildeo
direta entre o significante e o referenterdquo (CRUZ 2006 p 66) O nome
rosiano parece querer buscar a transcendecircncia da palavra ao criar um
recurso narrativo que ldquodestaca a aglutinaccedilatildeo sonora e espacial e cria
um tipo de linguagem em que a palavra-nome ganhando peso e
medida instaura a individuaccedilatildeo do sujeito nomeadordquo (IDEM) Se
por um lado Guimaratildees Rosa manifesta um claro interesse pelo teor
semacircntico do nome proacuteprio por outro lado ele ldquofaz prevalecer a
poeticidade da forma ndash destaca a configuraccedilatildeo focircnica e graacutefica
diferente de muitos dos nomes do escritor que satildeo orientados para
fazer eclodir um discurso lsquomimeacuteticorsquo que aflore significados de forma
veladardquo (IBID p 67) Assim sendo muitos dos nomes atraem pelos
seus componentes formais letra som e variaccedilatildeo lexical
Ullmann natildeo deixa de assinalar que ateacute os nomes proacuteprios as mais concretas
de todas as palavras estatildeo sujeitos ao contexto soacute este especificaraacute o que temos em
30 Essa obra eacute altamente recomendaacutevel para deslindar os antropocircnimos de Guimaratildees Rosa e perceber-se as vaacuterias funccedilotildees do nome de pessoas numa obra literaacuteria
33
mente quanto ao aspecto e caraacuteter do personagem ou do local (ULLMANN 1967 p
151) Eugegravene Nicole (1983 p 234) percebe que o uso dos nomes proacuteprios no texto
ficcional ldquonatildeo pode ser sem relaccedilatildeo com seu funcionamento na vida social que o
romancista representa ou na linguagem lsquonaturalrsquo que ele utilizardquo Isso se torna ainda
mais claro ao analisar-se por exemplo a obra da Guimaratildees Rosa como jaacute
mencionamos acima Em alguns de seus contos como eacute o caso de Desenredo e
Orientaccedilatildeo reunidos em sua obra Tutameacuteia um mesmo personagem recebe vaacuterios
nomes colocando em foco ldquosujeitos fadados a conviver com a sua multiplicidade
sujeitos que convivem numa atmosfera ambiacutegua e dupla Os vaacuterios nomes geram a
possibilidade da cesura no sentir e pensar desse sujeito muacuteltiplordquo (CRUZ 2006 p 66)
Nesses contos o nome possui a funccedilatildeo de signo que traduz esse sujeito muacuteltiplo e
duplo cindido em sua proacutepria contradiccedilatildeo Nessa diversidade do nome ldquoo sujeito
convive com a duplicidade e na confusatildeo interior busca a unidade na diversidade
Personagens atuam como narcisos dilacerados os reflexos do lsquoeursquo estatildeo representados
na biparticcedilatildeo do nomerdquo (IDEM)
No texto biacuteblico que passaremos a analisar a partir do terceiro capiacutetulo poderaacute
se verificar algo que se aproxima desse fenocircmeno rosiano guardadas evidentemente
as devidas proporccedilotildees e diferenccedilas de estilo e gecircnero O personagem Jacoacute assume uma
nova identidade quando tem seu nome mudado pelo ser com o qual se encontra e luta
agraves margens do rio Jaboc (cf Gn 3228-29) A duplicidade do personagem que desde o
seu nascimento apresenta caracteriacutesticas de trapaceiro (cf Gn 2525 2736) e obteacutem os
benefiacutecios da primogenitura por meio de diversos truques (cf Gn 2529-34 271-40) se
revela com o recebimento do novo nome (Gn 3229) Assim como ocorre com alguns
personagens de Guimaratildees Rosa Jacoacute separa-se de si mesmo e incorpora o papel de
um ldquooutrordquo ocultado na cisatildeo de vaacuterios nomes Mas as semelhanccedilas natildeo param por aiacute
Assim como haacute uma preocupaccedilatildeo em justificar o novo nome do personagem ndash Israel ndash
por parte do texto biacuteblico na obra de Guimaratildees Rosa observa-se tal requinte no jogo
etimoloacutegico Somente para ficarmos em um exemplo tomemos novamente o conto
Buriti onde iocirc Liodoro cujo nome completo eacute Liodoro Mauricio Faleiros desempenha
um papel central Sendo que ldquoEacute para ele que tudo converge eacute nele que tudo se articula
eacute dele que se irradiam os acontecimentos eacute seu peso de patriarca e proprietaacuterio que
34
domina o universo do contordquo (MACHADO 2013 p 114) O nome Liodoro proveacutem de
Heliodoro que a rigor designaria dom de Heacutelios daacutediva do sol Mas Guimaratildees Rosa
vai beber na fonte da etimologia popular para usar a significaccedilatildeo de ldquosol de ourordquo E
de fato eacute entorno de Liodoro que gravitam a famiacutelia e os agregados do Buriti Grande
Mas haacute mais pormenores nesse nome
Lio eacute tambeacutem o radical que indica ldquolisordquo Liodoro liso e duro Pois liso e duro com roliccedilo satildeo caracteriacutesticas insistentemente disseminadas pelo texto num dos vaacuterios desdobramentos desse Nome Lio eacute ainda feixe viacutenculo a articular entre si os diversos personagens e acontecimentos da trama Outra faixa de significados postos em accedilatildeo por esse significante eacute a de liana no contiacutenuo enleamento e enredamento em que se tecem os fios do enredo e do texto num emaranhado vegetal em torno agrave grande aacutervore que eacute iocirc Liodoro Aacutervore porque ele eacute Mauriacutecio como sua matildee a vovoacute Mauriacutecia dos Gerais figura quase miacutetica evocada pela famiacutelia [] Mas sobretudo Mauriacutecio como o Buriti palmeira cujo nome cientiacutefico eacute Mauritia vinifera Natural pois que sua mulher se chamasse iaiaacute Vininha autenticando a homologia com seu Nome que tambeacutem alude a Vecircnus e confirma que iocirc Liodoro vive sob o signo do amor (MACHADO 2013 p 114-115)
Para o linguista dinamarquecircs que se especializou em gramaacutetica inglesa Jens
Otto Harry Jespersen (1860-1943) mais conhecido por Otto Jespersen os nomes
proacuteprios conotam o maior nuacutemero de atributos sendo que a conotaccedilatildeo eacute inerente ao
nome algo com uma existecircncia independente de qualquer conhecimento humano O
linguista se interroga ldquoSe os nomes proacuteprios como de fato entendidos natildeo
conotassem muitos atributos natildeo saberiacuteamos compreender ou explicar o fenocircmeno
corriqueiro de um nome proacuteprio tornar-se um nome comumrdquo (JESPERSEN 1963 p
66) E ele se coloca ainda mais uma questatildeo
[] como uma sequecircncia de sons sem sentido nenhum de natildeo conotativa passa a conotativa sentido aceito por toda comunidade falante [] Uma qualidade eacute selecionada e passa a caracterizar outros seres e coisas possuiacutedas da mesma qualidade Eacute o mesmo processo encontrado nos nomes comuns como quando uma flor em forma de sino eacute chamada um sino natildeo obstante natildeo haver os outros aspectos de um sino real ou quando algum poliacutetico eacute chamado de velha raposa ou quando dizemos que peacuterola ou que joiardquo de uma mulher A transferecircncia no caso de nomes proacuteprios originais eacute devido agrave mesma causa como no caso de nomes comuns ou seja a sua conotatividade e a diferenccedila entre as duas classes eacute portanto para ser vista como apenas de grau (JESPERSEN 1963 p 67)
35
Portanto como jaacute vimos no primeiro item deste capiacutetulo para Jespersen natildeo eacute
possiacutevel considerar os nomes proacuteprios como natildeo conotativos por ser uma abstraccedilatildeo o
que designamos por um nome individual Cada indiviacuteduo muda constantemente
transforma-se a cada momento e o nome serve para fixar os elementos permanentes
das apariccedilotildees flutuantes ou reduzi-las a um denominador comum Concluindo
ldquoQuanto mais especificamente uma coisa eacute denotada mais provaacutevel eacute que o nome seja
escolhido arbitrariamente e mais se aproximaraacute de um nome proacuteprio ou em tal se
tornaraacuterdquo (JESPERSEN 1963 p 71) Tal constataccedilatildeo jaacute havia realizado Michel Breacuteal
quando afirma
Se se classificasse os nomes segundo a quantidade de ideias que eles suscitam os nomes proacuteprios deveriam estar no topo porque eles satildeo os mais significativos de todos sendo os mais individuais Um adjetivo como augustus tornando-se o nome de Otaacutevio adquiriu uma quantidade de ideias que lhe eram anteriormente estranhas De outro lado basta confrontar a palavra Ceacutesar entendida como o adversaacuterio de Pompeu e a palavra alematilde Kaiser que significa ldquoimperadorrdquo para ver que um nome proacuteprio perde em compreensatildeo ao tornar-se um nome comum De onde se pode concluir que do ponto de vista semacircntico os nomes proacuteprios satildeo substantivos por excelecircncia (BREacuteAL 1897 p 198)
Essa constataccedilatildeo de Jespersen eacute importante no uso que a literatura faz dos
nomes proacuteprios Um exemplo disso encontramos em Padre Antoacutenio Vieira o qual
lembra que os patriarcas antigos escolhiam para os filhos nomes que eram uma
profecia do seu futuro e do de descendentes O interesse nos nomes proacuteprios entre os
barrocos do seacuteculo XVII eacute grande porque se acreditava que o destino do indiviacuteduo
depende em parte da escolha de seu nome31 Caracteriacutestica esta muito proacutexima agrave
literatura hebraica claacutessica no uso que faz em algumas ocasiotildees do nome proacuteprio
como veremos em capiacutetulos sucessivos
Eacute oportuno destacar aqui que natildeo somente a identificaccedilatildeo de um personagem
atraveacutes de seu nome proacuteprio eacute importante na obra ficcional narrativa mas tambeacutem a
rejeiccedilatildeo da identificaccedilatildeo individual de algum personagem na obra A obra literaacuteria
classifica seus personagens atraveacutes da dicotomia que opotildee os portadores de nomes
agravequeles que deles satildeo desprovidos Aqueles que recebem um nome satildeo os
31 Segundo CANTEL 1959 apud RIEDEL sd p 81
36
personagens propriamente ditos Apesar de que em meados do seacuteculo passado um
movimento literaacuterio optou consciente e voluntariamente pela ausecircncia total de nomes
ou a abundacircncia de significantes que podiam se deformar ao longo da narrativa Esse
foi o caso do denominado Nouveau roman32 Em outras ocasiotildees a obra de ficccedilatildeo utiliza
os recursos do sistema apelativo tais como certos nomes comuns tiacutetulos certos
termos de relaccedilatildeo de parentesco etc a fim de designar o personagem no sistema geral
do texto Assim sendo ldquotal apelaccedilatildeo social chama a atenccedilatildeo pelo seu caraacuteter
sistemaacutetico e exclusivordquo (NICOLE 1983 P 240) Como exemplo pode-se citar o
prenome de Madame de Recircnal que eacute Louise na obra O vermelho e o negro de 1830 de
Henri-Marie Beyle mais conhecido como Stendhal (1783-1842) O prenome desse
personagem Louise nos eacute dado uma soacute vez num soliloacutequio de seu marido
(STENDHAL 1963 p 125) e natildeo aparece jamais em outro lugar do romance Eacute um
personagem sem ldquoautonomiardquo no sentido de que eacute sempre designada em sua relaccedilatildeo
de esposa Como bem observa Eugegravene Nicole (1983 p 240-241) ldquoinspirada no coacutedigo
social a forma habitual (Madame de Racircnal) se revelaraacute aqui como significante na
medida em que ela aparece como efeito do apagamento regular de seus apelativos
substitutosrdquo Essa funccedilatildeo classificatoacuteria que o nome possui em sentido geral eacute
tambeacutem uma funccedilatildeo de significaccedilatildeo pois ldquoSignificar para o nome proacuteprio quer dizer
inserir o portador nessas hierarquias e inscrevecirc-lo no lugar que lhe eacute de direitordquo
(GRIVEL 1973 p 130)
32 ldquoA expressatildeo Nouveau Roman (novo romance) refere-se a um movimento literaacuterio francecircs dos anos 1950 que diverge dos gecircneros literaacuterios claacutessicos Eacutemile Henriot cunhou o tiacutetulo num artigo do popular jornal francecircs Le Monde no dia 22 de maio de 1957 para descrever os experimentos estiliacutesticos de alguns escritores que criavam um estilo essencialmente novo a cada romance Alain Robbe-Grillet um influente teoacuterico assim como um representante do nouveau roman publicou uma seacuterie de ensaios sobre a natureza e o futuro do romance que foram posteriormente reunidos na obra Pour un nouveau roman Rejeitando muitas das caracteriacutesticas estabelecidas no romance ateacute entatildeo Robbe-Grillet julgou os romancistas predecessores como antiquados em razatildeo do foco que colocavam no enredo na accedilatildeo na narrativa nas ideias e nos personagens Em vez disso ele apresentou uma teoria do romance cujo foco recai sobre os objetos o nouveau roman ideal seria uma versatildeo e visatildeo individual das coisas subordinando trama e personagem aos detalhes do mundo ao inveacutes de arrolar o mundo a serviccedilo deles Assim de acordo com os autores do nouveau roman natildeo faria sentido escrever romances agrave maneira de Balzac com personagens bem definidos enredo com comeccedilo meio e fim Eles estariam em vez disso mais proacuteximos da literatura introspectiva de Stendhal ou Flaubert Natildeo admitiam a descriccedilatildeo dos personagens mdash que segundo eles seria influenciada por vieacutes ideoloacutegico mdash mas a exploraccedilatildeo dos fluxos de consciecircnciardquo (NOUVEAU ROMAN 2015)
37
Desse modo tanto a poeacutetica do nome proacuteprio ficcional isto eacute a motivaccedilatildeo que o
autor confere ao nome que ele ldquofabricardquo quanto a sua poieacutetica ou seja o processo do
fazer poeacutetico devem ser levados em conta pela onomaacutestica literaacuteria Eacute como constata
Roland Barthes (1967 p 152 ndash citaccedilatildeo livre) ldquoo romancista tem o dever de formar nomes
justosrdquo
A relaccedilatildeo do nome proacuteprio e do conteuacutedo textual pode se manifestar em geral
como uma relaccedilatildeo interna ou externa No primeiro caso ldquoo Nome parece exercer na
obra um papel tatildeo central que ele soacute pode ser contemporacircneo de sua concepccedilatildeo
original ou pelo menos de suas primeiras elaboraccedilotildeesrdquo (NICOLE 1983 p 243)
Concebe-se por relaccedilatildeo ldquoexternardquo quando o nome pode ser ldquoreduzido aos quadros do
esboccedilo precedenterdquo (IDEM) da obra literaacuteria
Concluindo este item sobre a relaccedilatildeo entre nome proacuteprio e literatura eacute oportuno
chamar em testemunho um texto claacutessico como Retoacuterica de Aristoacuteteles (384-322 AEC)
o qual assinala que um dos ldquotoacutepicosrdquo do uso de silogismos com funccedilatildeo retoacuterica a arte
da persuasatildeo se obteacutem atraveacutes do uso do ldquonomerdquo
Outro toacutepico obteacutem-se do nome Por exemplo como diz Soacutefocles Claramente levas o nome de ferro33 E tal como se costumava dizer-se dos nomes dos deuses e como Cocircnon chamava a Trasibulo ldquoo de ousada decisotildeesrdquo34 e Heroacutedico dizia a Trasiacutemaco ldquoeacutes sempre um combatente ousadordquo35 e a Polo ldquoeacutes sempre um potrordquo36 Tambeacutem de Draacutecon o legislador se afirmava que as suas leis natildeo eram de homem mas de dragatildeo (porque eram muito severas)37 Como tambeacutem Heacutecuba em Euriacutepedes diz a Afrodite
33 ldquoSidero significa ferro No texto haacute um jogo etimoloacutegico (que de resto remete para o toacutepico enunciado apoacute toucirc onoacutematos) entre o nome Σιδηρώ (nome proacuteprio) e σίδηρος (ferro ou arma de ferro) O verso eacute retirado da trageacutedia de Soacutefocles Tirordquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 150 p 227) 34 ldquoThrasyboulon Mais um exemplo de jogo de palavras muito apreciado pelos Atenienses Com efeito o nome Thrasyboulos eacute um composto de θρασύς (ousado) e βουλή (resoluccedilatildeo decisatildeo) Cocircnon eacute um general ateniense vencedor de Pisandro em Cnido (394 aC) e restaurador da democracia atenienserdquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 151 p 228) 35 ldquoThrasymachos mestre de retoacuterica que surge na Repuacuteblica de Platatildeo (livro I) como interlocutor de Soacutecrates eacute visto aqui sob o acircngulo etimoloacutegico θρασύς e μάχη (audaz ou ousado no combate) Quanto a Heroacutedico desconhecem-se testemunhos fidedignosrdquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 152 p 228) 36 ldquoComo se sabe Polo sofista disciacutepulo de Goacutergias significa lsquopotrorsquo ou lsquocavalorsquordquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 153 p 228) 37 ldquoDrakon significa lsquodragatildeorsquo ou lsquoserpentersquo Entre 624 aC e 621 aC parte das leis atenienses foram reduzidas a escrito Nelas se introduz pela primeira vez na Greacutecia a distinccedilatildeo fundamental entre homiciacutedio voluntaacuterio e involuntaacuterio Esta empresa foi atribuiacuteda a um certo Draacutecon de cuja existecircncia alguns historiadores duvidam Mais tarde Draacutecon ficaraacute famoso por ser extremamente severo donde o adjetivo lsquodraconianorsquo que ficou proverbial Cf Aristoacuteteles Poliacutetica II 12rdquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 154 p 228)
38
Eacute com razatildeo que a palavra ldquoinsensatezrdquo comeccedila o nome da deusa38 E como Quereacutemon Penteu epocircnimo de desgraccedila futura39 (ARISTOacuteTELES 2005 1400b)
Nessa mesma linha de uma leitura mais ou menos improvisada do nome
proacuteprio como acabamos de ver em Aristoacuteteles tem-se um exemplo mais recente em
Honoreacute de Balzac autor jaacute mencionado neste estudo que em sua obra Z Marcas ao
abrir sua novela escreve
Eu jamais vi algueacutem mesmo incluindo os homens notaacuteveis de nosso tempo cujo aspecto fosse mais impressionante que aquele deste homem o estudo de sua fisionomia inspirava primeiramente um sentimento repleto de melancolia e terminava por dar uma sensaccedilatildeo quase dolorosa Existia uma certa harmonia entre a pessoa e o nome Este Z que precedia Marcas que se via nos endereccedilos de suas cartas e que ele natildeo esquecia jamais em sua assinatura esta uacuteltima letra do alfabeto oferecia ao espiacuterito algo de fatal MARCAS Repeti-vos a voacutes mesmos esse nome composto de duas siacutelabas natildeo encontrais nele uma sinistra significaccedilatildeo Natildeo vos parece que o homem que o porta deva ser martirizado Embora estranho e selvagem esse nome tem no entanto o direito de ir agrave posteridade ele eacute bem composto ele se pronuncia facilmente ele possui essa brevidade desejaacutevel aos nomes ceacutelebres Natildeo eacute tatildeo suave que seja estranho Mas ele natildeo parece inacabado Eu natildeo me ocuparia em afirmar que os nomes natildeo tecircm nenhuma influecircncia sobre o destino Entre os fatos da vida e o nome dos homens haacute segredos e inexplicaacuteveis concordacircncias ou desacordos visiacuteveis que surpreendem frequentemente correlaccedilotildees distantes mas eficazes se revelam nele Nosso mundo estaacute cheio tudo nele se sustenta Talvez retornaremos algum dia agraves Ciecircncias Ocultas Voacutes natildeo vedes na construccedilatildeo do Z um olhar contrariado Seraacute que natildeo aparece nele o ziguezague aleatoacuterio e lunaacutetico de uma vida atormentada Que vento soprou sobre esta letra que em cada liacutengua em que ela eacute admitida comanda quanto muito cinquenta palavras Marcas se chamava Zeacutephirin Satildeo Zeacutephirin eacute muito venerado na Bretanha Marcas era Bretatildeo Examinai ainda esse nome Z Marcas Toda a vida do homem estaacute na combinaccedilatildeo fantaacutetica dessas sete letras Sete O mais significativo dos nuacutemeros cabaliacutesticos O homem morreu aos trinta e cinco anos e sua vida foi composta por sete candelabros Marcas Natildeo tendes a ideia de algo precioso que se quebra por uma queda com ou sem ruiacutedo (BALZAC 1853 p 6-8)40
38 ldquoTroades 990 O nome da deusa Afrodite responsaacutevel primeira pela destruiccedilatildeo de Troacuteia e pela desgraccedila de Heacutecuba comeccedila por άφροσύνη (insensatez loucura)rdquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 155 p 228) 39 ldquoΠενθεύς (nome proacuteprio) e πένθος (luto tristeza) Jogo de palavras de acordo com a natureza traacutegica do heroacutei Cf Euriacutepides Bacchae 508 Quanto a Querecircmon soacute sabemos que foi um poeta traacutegico do seacuteculo IV aCrdquo (ARISTOacuteTELES 2005 n 156 p 228) 40 A traduccedilatildeo acima eacute pessoal O texto no original francecircs eacute o que segue ldquoJe nrsquoai jamais vu personne en comprenant mecircme les hommes remarquables de ce temps dont lrsquoaspect fucirct plus saisissant que celui de cet homme lrsquoeacutetude de sa physionomie inspirait drsquoabord un sentiment plein de meacutelancolie et finissait par donner une sensation presque douloureuse Il existait une certaine harmonie entre la personne et le nom Ce Z qui preacuteceacutedait Marcas qui se voyait sur lrsquoadresse de ses lettres et qursquoil nrsquooubliait jamais dans sa signature cette derniegravere lettre de lrsquoalphabet offrait agrave lrsquoesprit je ne sais quoi de fatal
39
Como verifica Eugegravene Nicole (1983 p 244) sobre esta passagem ldquoo ato de
nomear vai associado a uma argumentaccedilatildeo que nada mais eacute que o proacuteprio assunto da
novela assunto que se encontra por assim dizer em poucas palavras na leitura a qual
se presta o nomerdquo Todo esse texto reivindica o uso do nome proacuteprio como signo da
motivaccedilatildeo da obra literaacuteria Eacute como uma ldquoinscriccedilatildeo fundadora de um relato o proacuteprio
anuacutencio de um destino notaacutevelrdquo (IDEM)
Por isso seguindo Franccedilois Rigolot (1982 p 139) podemos constatar que ldquoa
significaccedilatildeo do Nome poeacutetico seraacute entendida como um subterfuacutegio para apreender
indiretamente a ideologia do textordquo Esta eacute a intenccedilatildeo de nossa pesquisa
O nome proacuteprio que em si mesmo poderia permanecer ldquoopacordquo isto eacute sem
nenhuma significaccedilatildeo especial quando colocado em posiccedilatildeo de texto (cf RIGOLOT
1982 p 137) portanto quando se torna um nome poeacutetico adquire uma significaccedilatildeo pela
qual rebusca as suas motivaccedilotildees Nessa tarefa o nome proacuteprio atua em dois eixos
principais ldquoO eixo semasioloacutegico parte do signo para explicitar o seu sentido [semacircntica
sincrocircnica] enquanto o eixo onomasioloacutegico integra o sentido global do texto para
inventar um signo que justifica o melhor possiacutevel esse sentido [semacircntica diacrocircnica]rdquo
Nesse sentido podemos fazer nossas as palavras de Paul Guiraud (1972 p
406) ldquo[] as palavras engendram a faacutebula onde a realidade devia engendrar as
palavrasrdquo
MARCAS Reacutepeacutetez-vous agrave vous-mecircme ce nom composeacute de deux syllabes nrsquoy trouvez-vous pas une sinistre signifiance Ne vous semble-t-il pas que lrsquohomme qui le porte doive ecirctre martyriseacute Quoique eacutetrange et sauvage ce nom a pourtant le droit drsquoaller agrave la posteacuteriteacute il est bien composeacute il se prononce facilement il a cette briegraveveteacute voulue pour les noms ceacutelegravebres Nrsquoest-il pas aussi doux qursquoil est bizarre mais aussi ne vous paraicirct-il pas inacheveacute Je ne voudrais pas prendre sur moi drsquoaffirmer que les noms nrsquoexercent aucune influence sur la destineacutee Entre les faits de la vie et le nom des hommes il est de secregravetes et drsquoinexplicables concordances ou des deacutesaccords visibles qui surprennent souvent des correacutelations lointaines mais efficaces srsquoy sont reacuteveacuteleacutees Notre globe est plein tout srsquoy tient Peut-ecirctre reviendra-t-on quelque jour aux Sciences Occultes Ne voyez-vous pas dans la construction du Z une allure contrarieacutee Ne figure-t-elle pas le zigzag aleacuteatoire et fantasque drsquoune vie tourmenteacutee Quel vent a souffleacute sur cette lettre qui dans chaque langue ougrave elle est admise commande agrave peine agrave cinquante mots Marcas srsquoappelait Zeacutephirin Saint Zeacutephirin est tregraves veacuteneacutereacute en Bretagne Marcas eacutetait Breton Examinez encore ce nom Z Marcas Toute la vie de lrsquohomme est dans lrsquoassemblage fantastique de ces sept lettres Sept le plus significatif des nombres cabalistiques Lrsquohomme est mort agrave trente-cinq ans ainsi sa vie a eacuteteacute composeacutee de sept lustres Marcas Nrsquoavez-vous pas lrsquoideacutee de quelque chose de preacutecieux qui se brise par une chute avec ou sans bruitrdquo
40
4 Uma anaacutelise antropoloacutegica do nome proacuteprio
Do ponto de vista antropoloacutegico os nomes proacuteprios satildeo mais que um termo
que permite a identificaccedilatildeo Eles constituem ldquoo proacuteprio sistema de parentesco na
medida em que formam o lsquoEgorsquo nuclear de cada um dos elementosrdquo Segundo Claude
Leacutevi-Strauss ldquoos nomes proacuteprios fazem parte integrante de sistemas tratados por noacutes
como coacutedigos meios de fixar significaccedilotildees transpondo-as para termos de outras
significaccedilotildeesrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1970 p 200) Portanto os nomes proacuteprios se oferecem
a um deciframento a uma exploraccedilatildeo
O nome como se poderaacute verificar posteriormente possui em vaacuterias
civilizaccedilotildees um caraacuteter sagrado no entanto ele estaacute fortemente ligado ao aspecto
profano ou melhor dizendo ao aspecto social Eacute o que afirma Francisco Martins
inspirado no pensamento do antropoacutelogo Marcel Mauss
O mito religioso da identidade da alma e do nome encontra sua explicaccedilatildeo na organizaccedilatildeo social Ao mesmo tempo que o nome se inscreve em um sistema mitoloacutegico ele daacute precisatildeo a uma determinada posiccedilatildeo social [] Assim toda a legenda da alma viria da necessidade de nomear os membros de precisar suas posiccedilotildees entre os vivos e os mortos (MARTINS 1991 P 154)
A preocupaccedilatildeo do estudo antroponiacutemico por parte da antropologia num
primeiro momento deteve-se mais diante da grande tarefa de classificar ou seja
distinguir categorias de nomes de pessoa Para tal costumava-se operar tal
classificaccedilatildeo em vista de trecircs funccedilotildees
[] seja em funccedilatildeo de sua origem linguiacutestica ou dialetal (esforccedila-se desde entatildeo em identificar camadas e aacutereas antroponiacutemicas) seja em funccedilatildeo de suas propriedades semacircnticas (classificam-se os nomes por registros conforme as afinidades reconhecidas prenomes de inspiraccedilatildeo religiosa ou profana apelidos que denotam particularidades fiacutesicas profissionais etc) seja em funccedilatildeo de sua formaccedilatildeo ou de sua composiccedilatildeo (procurar-se seguir em detalhe as etapas de fixaccedilatildeo dos nomes) (BROMBERGER 1982 p 103)
No entanto para muitos a missatildeo da antropologia quando se aplica ao estudo
dos nomes proacuteprios de pessoas seria bem outra Ou seja
[] identificar no seio de uma sociedade as regras de atribuiccedilatildeo dos nomes os princiacutepios segundo os quais se classificam se nomeiam indiviacuteduos singulares e diferentes (pelo seu sexo pela sua pertenccedila a uma famiacutelia a um
41
clatilde a uma geraccedilatildeo a uma localidade) as leis que regem o sistema de apelaccedilotildees [] enfim as propriedades ndash sintagmaacuteticas ndash que diferenciam nos enunciados os nomes de pessoas das outras classes nominais e as normas ndash sociais ndash que prescrevem-no ou interditam o emprego no discurso (IBID p 104)
Portanto a nova proposta da antropologia eacute abordar os nomes proacuteprios de
pessoas natildeo como meros indicadores de indiviacuteduos mas analisaacute-los em seu contexto
isto eacute as funccedilotildees que eles exercem nas sociedades em que satildeo empregados
O ato de nomear algueacutem natildeo eacute puramente voluntaacuterio ou casual mas fruto de
longas tradiccedilotildees de determinada populaccedilatildeo Um exemplo disto pode-se encontrar
num estudo que analisou a regiatildeo francesa da Provence durante o seacuteculo XVIII Em
grande parte das sociedades meridionais da Franccedila mas tambeacutem em outras o filho
mais velho herdava o prenome do seu avocirc paterno o mais novo herdava o nome de
seu avocirc materno No caso das filhas a escolha eacute simetricamente inversa ou seja a filha
mais velha recebia o prenome de sua avoacute materna a mais nova era nomeada segundo
o prenome de sua avoacute paterna (cf IDEM)
41 As funccedilotildees dos nomes de pessoas
A pesquisa antropoloacutegica de populaccedilotildees interioranas francesas da Idade Meacutedia
e do iniacutecio da Idade Moderna bem como de povos mais primitivos do norte da Aacutefrica
por exemplo colocou em questatildeo a funccedilatildeo decircitica que se quis ver no ato de nomear
pessoas Designar e identificar um indiviacuteduo uacutenico natildeo corresponde agrave realidade dos
fatos quando se analisa o ato nominador
Em muitas sociedades natildeo se encontra uma grande variedade de nomes
proacuteprios que serviriam obviamente a uma melhor identificaccedilatildeo e individuaccedilatildeo das
pessoas evitando confusotildees nas relaccedilotildees cotidianas Ao contraacuterio o que se encontra eacute
ldquoa estreiteza do campo de apelaccedilotildees individuais antroponiacutemicos formados do nome
do pai ou de nome de ascendentes frequentemente similares no seio de uma mesma
linhagem ou ainda de uma mesma classe de idade em suma laacute onde as necessidades
de distinccedilatildeo satildeo no entanto mais evidentesrdquo (BROMBERGER 1982 p 105) Para
evitar-se confusotildees eacute que se recorre ao uso do sobrenome o qual exerceraacute um papel
42
como de ldquovaacutelvula de seguranccedilardquo garantindo a identificaccedilatildeo correta das pessoas por
meio do nome de famiacutelia uma vez que havia pouca variedade de prenomes
Complicando ainda mais o presumiacutevel papel de identificador ou designador
uacutenico de uma pessoa atribuiacutedo ao nome proacuteprio haacute o caso de muitas sociedades que
institucionalizam ou toleram que um mesmo indiviacuteduo receba um nome diferenciado
em certas etapas de sua vida Um exemplo pode ser encontrado em uma sociedade
que vive no Norte uma das regiotildees de Camarotildees na Aacutefrica Nessa comunidade todo
indiviacuteduo recebe no decorrer de sua vida dois nomes
[] em seu nascimento primeiramente um nome que indica a sua ordem de nascimento depois trecircs ou quatro meses mais tarde um ldquosobrenomerdquo que lhe designa de uma maneira mais pessoal uma vez que ele eacute livremente escolhido e natildeo indica senatildeo uma posiccedilatildeo genealoacutegica [] Satildeo portanto nomes que indicam a ordem de nascimento que designam o indiviacuteduo como ser social Eles satildeo por assim dizer nuacutemeros Mas como nomes eles tambeacutem satildeo carregados de uma significaccedilatildeo que se refere a um sistema simboacutelico satildeo entatildeo mais que nuacutemeros ldquonomes-nuacutemerosrdquo (COLLARD 1973 p 45)
E mesmo esse ldquosobrenomerdquo que eacute dado agrave crianccedila Guidar natildeo eacute tatildeo distintivo
assim pois se trata em geral do nome do pai Este por sua vez eacute tambeacutem um nome-
nuacutemero Desse modo a maior parte dos Guidar possui um nome composto de dois
nomes-nuacutemeros (cf IBID p 48) ldquoTomemos por exemplo o caso de um indiviacuteduo
nominado Tizi Dawaiacute Seu primeiro nome Tizi indica que ele eacute a primeira crianccedila
masculina de sua matildee seu pai Dawaiacute (segundo nome da crianccedila) era o seacutetimo filho da
suardquo (IDEM) Assim sendo os nomes das crianccedilas satildeo determinados segundo a ordem
de nascimento e ateacute a quarta crianccedila inclusive tambeacutem segundo o sexo Interessante
notar que do quinto ateacute o deacutecimo filho os meninos e meninas levam o mesmo nome
apenas acrescenta-se agraves vezes a marca feminina ke ou a caso de trate de uma crianccedila
do sexo feminino Para tornar esse sistema mais claro eacute reproduzida abaixo uma tabela
concebida por Collard (1973 p 46)
Ordem de nascimento
Nome das crianccedilas
MENINOS MENINAS
1ordm Tizi ou Keza
2ordm Zourmba ou Miste
43
3ordm Toumba ou Tongou
4ordm Vondou ou Naiacuteke
5ordm Madi
6ordm Todou
7ordm Dawaiacute
8ordm Damba
9ordm Tourmba
10ordm Baiacutema
Este exemplo demonstra o quanto eacute fraacutegil o sistema de nominaccedilatildeo destinado a
distinguir indiviacuteduos ou seja a assegurar a identificaccedilatildeo pessoal O que natildeo deixa de
ser paradoxal Afinal na concepccedilatildeo que vigorou durante muito tempo via-se o nome
proacuteprio justamente com esta funccedilatildeo
Nesse caso duas liccedilotildees se depreendem do exemplo
[] primeiramente as propriedades semacircnticas desses nomes individuais satildeo da mesma natureza que aquelas das outras categorias nominais eu posso definir ldquoTizirdquo decompondo-o em menores elementos de significaccedilatildeo (anaacutelise secircmica) crianccedila + masculino + filho mais velho de sua matildee (e natildeo necessariamente de seu pai) como eu posso definir pelos ldquosemasrdquo que eles incluem ldquocavalordquo ldquohomemrdquo ou ldquotartarugardquo [] Em segundo lugar observa-se que um tal sistema parece governado por duas funccedilotildees antagocircnicas uma funccedilatildeo de classificaccedilatildeo que assinala o mesmo nome a todos aqueles que compartilham da mesma ordem de nascimento uma funccedilatildeo de identificaccedilatildeo tornada possiacutevel ndash mas natildeo sempre certa ndash pela combinaccedilatildeo de um pequeno nuacutemero de unidades que pertencem a uma seacuterie fechada Aqui identificamos uma caracteriacutestica comum a maior parte dos sistemas antroponiacutemicos melhor eles classificam menos eles identificam [] Na verdade a fraqueza distintiva de um sistema de nomes proacuteprios natildeo eacute senatildeo o reverso de sua riqueza classificatoacuteria (BROMBERGER 1982 p 106)
No entanto natildeo se pode concluir que o nome proacuteprio possua entatildeo uma
funccedilatildeo meramente classificatoacuteria seguindo algumas regras sociais estritas e
compartilhadas pela maioria das pessoas Isso foi constatado em alguns lugares mas
natildeo em todos O proacuteprio Leacutevi-Strauss reconhece isso quando afirma que de um lado
ldquoos nomes proacuteprios parecem formar a franja de um sistema geral de classificaccedilatildeo []
Quando eles entram em cena a cortina se eleva no uacuteltimo ato da representaccedilatildeo loacutegicardquo
(1962 p 285) De outro lado nenhum modelo mecacircnico permite explicar sua
distribuiccedilatildeo em um grupo social a denominaccedilatildeo aparece entatildeo como ldquouma livre
criaccedilatildeo daquele que nomeia um estado transitoacuterio de sua proacutepria subjetividaderdquo
(IBID p 240) ou mesmo de outras pessoas
44
No entanto a oposiccedilatildeo entre esses dois processos ndash classificatoacuterio e decisatildeo livre
e subjetiva ndash eacute mais aparente que real Mesmo quando parece natildeo haver nenhuma
regra que defina o ato nominador podem-se encontrar prenomes que funcionam como
marca distintiva de idade de geraccedilatildeo de sexo de irmandade e assim por diante Natildeo
haacute uma regra convencional mas um uso que segue certos princiacutepios Um exemplo
disso pode-se ver nos prenomes que permitem reconhecer claramente diferentes
geraccedilotildees Assim ao escolher de chamar os filhos como41 Sebastiatildeo Estefacircnia Karine
Kaacutetia confirmo sua pertenccedila a uma geraccedilatildeo mais jovem do que aquela de seus pais
frequentemente chamados de Daniel Geraldo Martinha Claudine enquanto seus
avoacutes poderiam ser denominados como Pedro Paulo Henriqueta e seus bisavocircs
poderiam ser chamados de Augusto Rogeacuterio Maria (cf BROMBERGER 1982 p 110)
Poderia ocorrer tambeacutem que pais que se consideram mais tradicionalistas se
recusassem a colocar em seus filhos nomes mais modernos ndash como Isabelly Theo ndash e
optassem por nominar seus filhos com nomes mais antigos que consideram mais
tradicionais como Maria Aparecida Joseacute Antocircnio por exemplo
Portanto haacute dois processos envolvidos no ato de nominaccedilatildeo com significados
diferentes de um lado os pais podem se submeter agraves normas ou tendecircncias da
sociedade de outro eles podem se ldquoesconderrdquo suas experiecircncias pessoais ideologias
ou preconceitos nos nomes que colocam em seus filhos eles atribuem um poder a esse
nome um destino Tanto quanto um classificador o nome funciona aqui como um
siacutembolo fazendo eco a um conjunto de crenccedilas e de convicccedilotildees Bromberger (1982 p
111) enxerga nisso o fato de que ldquonatildeo eacute tanto a individuaccedilatildeo que prevalece sobre a
classificaccedilatildeo eacute o siacutembolo que supera o signordquo e complementa ldquoum nome transmitido
segundo regras pode ser ao mesmo tempo um signo e um siacutembolo confirmando uma
posiccedilatildeo num sistema e fazendo eco a um conjunto de crenccedilasrdquo (IBID p 111 n 8)
Sendo que nas sociedades tradicionais e mais antigas ldquoo nome individual eacute
frequentemente pela sua forma como pelo seu conteuacutedo uma mensagem em honra
41 Obviamente este eacute um exemplo no interior da cultura francesa de onde proveacutem o autor citado No caso brasileiro poderiacuteamos encontrar filhos com nomes tais como Bruno Juliana Sophia Isabella Lucas Vitor etc seus pais poderiam ter nomes como Joseacute Ana Paulo Sandra Luiz Maacutercia seus avoacutes poderiam ter nomes como Benedita Joseacute Maria Aparecida Joatildeo Vera Antocircnio enquanto que seus bisavoacutes poderiam chamar-se Thereza Benedicto Antocircnia Pedro Victoacuteria e assim por diante (cf TUFOLO sd)
45
de potecircncias numinosas que traduz uma intenccedilatildeo aquela de assegurar a vida contra a
morteldquo (IBID p 111)
Do ponto de vista antropoloacutegico portanto o nome proacuteprio pode assumir um
duplo status
[] aquele de marcaccedilatildeo classificatoacuteria atribuindo ao indiviacuteduo denominado uma ou mais posiccedilotildees determinadas na estrutura social aquele siacutembolo participante de uma visatildeo de mundo sistema organizado de representaccedilotildees e de crenccedilas Essas duas funccedilotildees ndash igualmente ou diversamente reunidos sob um mesmo nome de pessoa cuja importacircncia respectiva varia natildeo somente de uma sociedade a outra mas tambeacutem de um tipo de denominaccedilatildeo a outro no interior de um mesmo sistema antroponiacutemico ndash merecem cada uma uma anaacutelise complementar (BROMBERGER 1982 p 111)
Ambas as funccedilotildees podem ser encontradas na tradiccedilatildeo hebraica que passaremos
a analisar a partir do proacuteximo capiacutetulo
42 Nome proacuteprio como um coacutedigo social
O fato de dar nome proacuteprio a algueacutem eacute antes de tudo um ato de socializaccedilatildeo
tal ato em geral se faz acompanhar por uma cerimocircnia ou um conjunto de rituais os
quais variam de acordo com as sociedades e culturas Ter um nome pessoal eacute possuir
uma existecircncia social Isso fica bem claro somente para citar um exemplo no caso da
cultura dos Ianomacircmis na Amazocircnia brasileira ldquoEacute entre um e trecircs anos que as crianccedilas
recebem um nome elas entram entatildeo plenamente na culturardquo (LIZOT 1973 p 64)
Se olharmos para a cultura europeia ocidental ateacute um pouco mais de meados do seacuteculo
passado eacute a declaraccedilatildeo do nome de famiacutelia (sobrenome) que consagra a existecircncia
social o prenome ou nome de batismo confirma a filiaccedilatildeo espiritual e a inserccedilatildeo na
comunidade cristatilde (cf BROMBERGER 1982 p 112)
O nome singulariza a existecircncia em relaccedilatildeo agraves outras entidades Isso se constata
inclusive quando se concede a um animal ou objeto um nome de pessoa O que destaca
a relaccedilatildeo especial que o ser humano dador do nome possui com aquele ser seja ele
animado ou natildeo Inversamente quando natildeo se reconhece as pessoas por estarem de
passagem serem marginais desclassificados em geral o nome de famiacutelia eacute
desconhecido e agraves vezes consta apenas o apelido ou um prenome Portanto ldquoconhecer
a completa identidade do outro eacute inclui-lo ndash diretamente ou indiretamente ndash no campo
46
das relaccedilotildees sociais o anocircnimo o erroneamente nomeado eacute o desconhecido ou ao
menos o natildeo reconhecido A sociedade para aonde as referecircncias que constituem os
nomes proacuteprios se apagamrdquo (BROMBERGER 1982 p 113) O conhecimento da aacuterea
de nomes proacuteprios sobrepotildee-se a das relaccedilotildees sociais traccedilando um limite entre ldquonoacutesrdquo
e ldquoos outrosrdquo
Mais comumente o sistema de nomeaccedilatildeo classifica os indiviacuteduos de acordo
com a sua filiaccedilatildeoorigem indicando sua famiacutelia ou localidade a qual pertence ou
entatildeo pelo seu status social Portanto o nome proacuteprio pode em algumas sociedades
indicar
a) Origem o apelido kunya no sistema aacuterabe por exemplo
b) Distinccedilatildeo de classes e ocupaccedilotildees seja na proacutepria significaccedilatildeo do nome
(antigo mundo celta por exemplo) seja atraveacutes de marcas formais
especiacuteficas de uma categoria de indiviacuteduos a partiacutecula seria um exemplo
seja atraveacutes do nuacutemero e natureza dos nomes usados em Roma o escravo
recebia apenas o prenome natildeo tinha sobrenome enquanto os patriacutecios
acrescentavam ao seu prenome vaacuterios sobrenomes Outro exemplo deste
uacuteltimo caso verifica-se no Japatildeo onde ateacute 1870 somente a famiacutelia real os
nobres e certos privilegiados levavam o nome do clatilde e de famiacutelia apoacutes seu
prenome as demais pessoas portavam geralmente um nome de profissatildeo
Ainda hoje algumas pessoas mais proeminentes na sociedade satildeo
reconhecidas pelo seu nome de famiacutelia ldquoOlhe Eacute um Rotschildrdquo (cf
BROMBERGER 1982 p 115)
Desse modo o nome proacuteprio pode servir como um meio para entre outras
coisas associar pessoas aos diferentes campos da vida social parentesco situaccedilatildeo
social simbologia e assim por diante
43 Poder e simbologia dos nomes proacuteprios
Ao contraacuterio daqueles que veem no nome apenas um indicador uma espeacutecie e
index como jaacute foi amplamente tratado neste estudo a etnografia dos antropocircnimos nos
fornece interessante material de estudo a respeito da simbologia poder e eficaacutecia do
nome em diversas culturas ao longo da histoacuteria
47
Tomemos um exemplo
Eu chamo minha filha de Margarida assim fazendo eu pretendo seja consagrar uma tradiccedilatildeo familiar (sua avoacute levava esse nome) seja colocar minha filha sob a proteccedilatildeo de uma santa venerada seja mais simplesmente submeter-me a uma moda que aliaacutes pode ter por origem uma devoccedilatildeo seja comparar minha filha a uma flor seja ainda evocar uma ou mais Margarida das quais eu guardei boas recordaccedilotildees seja enfim lembrar o nome que me parece o mais harmonioso cujas qualidades riacutetmicas e acuacutesticas combinam melhor com aquelas de meu nome de famiacutelia A escolha de ldquoMargaridardquo pode responder a uma ou vaacuterias dessas intenccedilotildees (BROMBERGER 1982 p 118)
A questatildeo eacute sempre buscar descobrir as intenccedilotildees que se encontram por detraacutes
da accedilatildeo de nomear um indiviacuteduo Bromberger (IDEM) identifica trecircs fatores que
permitem ldquomedirrdquo a importacircncia simboacutelica do nome proacuteprio ldquoas condiccedilotildees aplicaacuteveis
agrave sua utilizaccedilatildeo funccedilotildees propiciatoacuterias atribuiacutedas a ele o aparentamento expliacutecito que
eacute estabelecido entre o denominado e o personagem epocircnimo miacutetico ou lendaacuteriordquo
No que tange ao primeiro fator ndash condiccedilotildees de uso do nome proacuteprio ndash observa-
se em coletividades ainda hoje existentes caracteriacutesticas que perduram haacute muitos
seacuteculos na sociedade humana Como exemplo tomemos o caso do pensamento de
certos indiacutegenas da Amazocircnia brasileira como satildeo os Ianomacircmis O nome para eles
apesar de natildeo ser um segredo natildeo vem mencionado de qualquer modo e a qualquer
tempo Por exemplo normalmente no grupo que reside junto as pessoas somente
conhecem o nome daqueles de sua proacutepria geraccedilatildeo ou de geraccedilotildees inferiores quase
nunca sabe o nome de indiviacuteduos mais idosos daquele mesmo grupo Nomear
algueacutem em puacuteblico em voz alta eacute considerado uma grande ofensa O nomeado reage
pois do contraacuterio sua passividade seria interpretada como uma omissatildeo uma falta de
honra A maneira de reagir seraacute mencionar tambeacutem em alta voz o nome daquele que
o interpelou publicamente demonstrando que natildeo o teme Tanto os indiviacuteduos mais
jovens especialmente os homens quanto os mais anciatildeos natildeo gostam que seus nomes
venham ditos em puacuteblico Isso eacute motivo de natildeo pouca confusatildeo e discussatildeo Da mesma
forma mencionar o nome de algueacutem jaacute falecido eacute um insulto que os filhos e irmatildeos da
pessoa morta vingaratildeo em uma luta com clava Ateacute mesmo em voz baixa no caso de
ausecircncia da pessoa interessada natildeo se nomeia ningueacutem De qualquer modo haacute
indiviacuteduos cujos nomes jamais satildeo mencionados o pai e a matildee bem como daqueles
48
que podem vir a ser os sogros de algueacutem (cf LIZOT 1973 p 66) Qual eacute o motivo para
esse tipo de atitude diante do nome proacuteprio entre os Ianomacircmis Para eles nomear
algueacutem eacute agir sobre aquele que se designa pelo nome O pensamento indiacutegena estaacute
convencido que o ldquonome pessoal faz parte integralmente da personalidade como o
corpo e mais ainda que os bens materiaisrdquo (IBID p 67) No caso de um defunto
assim como os seus pertences satildeo queimados ele como pessoa deve desaparecer por
isso o seu nome natildeo deve ser mencionado por ningueacutem Se a pessoa natildeo existe mais
seu nome tambeacutem deve ser abolido Haacute um caraacuteter sagrado do nome de pessoa que eacute
respeitado Lizot observa-o muito bem quando exprime que ldquonomear o objeto temido
envolve necessariamente a manifestaccedilatildeo dele como nomear o objeto desejado o
ameaccedila de extinccedilatildeordquo (1973 p 70)
Nesse sentido apesar de viverem em eacutepocas diferentes terras diferentes
hemisfeacuterios diferentes os indiacutegenas amazonenses natildeo deixam de assemelhar-se um
pouco no uso do nome aos povos que constituiacuteam o ambiente no qual surgiu a
literatura hebraica No sentido que o nome possui um significado e um valor que
ultrapassam aquele que se nota normalmente nas sociedades atuais
Em relaccedilatildeo ao segundo fator acima mencionado ndash funccedilotildees propiciatoacuterias
atribuiacutedas ao nome ndash natildeo o podemos perceber na cultura ocidental contemporacircnea
em que os fatores religiosos tecircm influenciado cada vez menos na atribuiccedilatildeo de um
nome Ocorre tambeacutem uma dificuldade em se reconhecer no nome das pessoas um
simbolismo que vaacute aleacutem da pura e simples funccedilatildeo denotativa No entanto isso era
muito comum nas sociedades orientais antigas como a de Israel e mesmo hoje em
algumas culturas que natildeo foram influenciadas pela modernidade como eacute o caso da
Aacutefrica Em uma delas por exemplo os Mossi que habitam Burkina Faso na Aacutefrica
Ocidental os nomes dos indiviacuteduos ldquoreferem-se de fato a uma experiecircncia preacutevia ao
nascimento que foi reconhecida imediatamente ou mediatamente pela proacutepria matildee
ou apoacutes consultar um vidente como uma injunccedilatildeo de poderes transcendentaisrdquo
(BROMBERGER 1982 p 119) A fragilidade da vida a precariedade meacutedico-sanitaacuteria
e outros inuacutemeros fatores que atentam contra a vida de um receacutem-nascido fazem o
povo Mossi apelar agrave divindade e reconhecer como fruto de sua accedilatildeo a sua vinda ao
mundo satildeo e salvo Algo natildeo muito diferente passava-se com o povo do Oriente
49
Meacutedio Antigo no seio do qual desenvolve-se toda a literatura hebraica No entanto os
Mossi natildeo nomeiam seus filhos com nomes teofoacutericos mas empregam nomes comuns
que exprimem o sentimento da matildee por exemplo naquele momento de dor e
apreensatildeo que lhe fez revolver agrave divindade sua suacuteplica de proteccedilatildeo e auxiacutelio Desse
modo algueacutem podia vir a chamar-se ldquofolhas de feijatildeordquo (becircngdo) a fim de recordar que
as primeiras dores da gravidez foram sentidas justamente quando a matildee se
encontrava num campo de feijotildees ou entatildeo enquanto preparava um prato de feijotildees
ou uma sopa com eles Portanto a intenccedilatildeo natildeo eacute suplicar por proteccedilatildeo ou atrair as
qualidades da divindade para o filho receacutem-nascido mas ldquodesviar as forccedilas hostisrdquo
(IBID p 120) agravequela crianccedila
O terceiro fator ndash o poder dos nomes a identificaccedilatildeo entre o nominado e
personagem epocircnimo que lhe inspira o nome ndash supotildee que o simbolismo desses nomes
sejam transparentes e convencionais para os usuaacuterios e que a escolha deste nome
consagre a intenccedilatildeo de associar as qualidades do epocircnimo agravequelas do denominado
Isso eacute bem evidente segundo nos mostra Bromberger (1982 p 120) em muitas
sociedades onde o nome proacuteprio evoca o mito fundador da mesma Nesse caso usam-
se nomes teofoacutericos como ocorre no antigo mundo semita ndash Yohannan (Joatildeo ndash ldquoDeus
manifestou sua graccedilardquo) ndash e ainda em nossos dias atuais no mundo muccedilulmano ndash
Abdallacirch (ldquoo servidor de Deusrdquo) bem como as denominaccedilotildees totecircmicas as quais
consagram o parentesco do indiviacuteduo agraves espeacutecies epocircnimas fundadoras Nesse caso
ldquoos nomes proacuteprios assumem a plenitude de seu sentido prefigurando o destino
daqueles que os portam identificado agravequele dos protagonistas do drama miacuteticordquo
(IDEM) Assim sendo os registros de onde se retiram preferencialmente para formar
ou escolher nomes individuais satildeo bons reveladores das tendecircncias da simbologia
cultural
Concluindo este toacutepico antropoloacutegico do sistema onomaacutestico percebe-se que o
mesmo constitui um material muito rico para a anaacutelise das sociedades humanas pois
possui uma dupla grelha de leitura de um lado sendo um sistema de classificaccedilatildeo a
onomaacutestica antroponiacutemica permite identificar os princiacutepios sejam eles expliacutecitos ou
natildeo segundo os quais uma sociedade agrupa e distingue os indiviacuteduos de outro
sendo um sistema de siacutembolos revela os valores e questotildees se sobrepotildeem sobre a
50
identidade individual e coletiva (cf BROMBERGER 1982 p 122) Para ilustrar o que
foi dito Bromberger (IDEM) cita uma histoacuteria contada por Montaigne
Henrique duque de Normandia filho de Henrique segundo rei da Inglaterra deu um banquete na Franccedila a reuniatildeo da nobreza foi tatildeo grande neste lugar que para passatempo foi dividida em faixas pela semelhanccedila de nomes na primeira tropa quem eram os Guilhermes encontraram-se cento e dez cavaleiros sentados agrave mesa com esse nome sem contar os simples nobres e servidores
Portanto nomear eacute muito mais que simplesmente identificar
51
CAPIacuteTULO 2
NOMES PROacutePRIOS NO ORIENTE MEacuteDIO ANTIGO E NA BIacuteBLIA HEBRAICA
1 O nome proacuteprio em civilizaccedilotildees contemporacircneas a Israel
A BH surge em Israel mas o seu background cultural eacute muito mais vasto Ela
deve e muito agraves demais culturais circundantes e seus respectivos povos Como bem
constatou o exegeta belga Jean-Louis Ska
Israel de fato jamais conquistou um grande impeacuterio nunca foi uma grande potecircncia seja militar poliacutetica econocircmica ou cultural Natildeo haacute grandes riquezas naturais na terra santa e as dimensotildees reduzidas do paiacutes impedem de produzir grandes quantidades de gratildeos vinho ou oacuteleo A Feniacutecia foi uma potecircncia comercial muito mais importante e mais conhecida Nem mesmo do ponto de vista artiacutestico Israel conseguiu conceber grandes obras de arte no mundo da literatura da escultura da pintura ou da arquitetura Natildeo haacute nesse campo alguma comparaccedilatildeo com o Egito a Mesopotacircmia ou a Greacutecia por exemplo No entanto Israel marcou a histoacuteria do nosso mundo e teve uma influecircncia desproporcional agrave sua potecircncia poliacutetica ou agraves dimensotildees de seu territoacuterio O elemento de sua civilizaccedilatildeo que tem ainda hoje uma influecircncia sem precedentes eacute a sua Lei a Toraacute em hebraico Acrescentamos imediatamente que a palavra hebraica Toraacute significa natildeo somente ldquoLeirdquo isto eacute normas diretrizes legislaccedilatildeo mas tambeacutem instruccedilatildeo ensinamento doutrina Eacute ldquosabedoriardquo e ldquointeligecircnciardquo como diz Dt 46 Natildeo estamos portanto no mundo do poder e nem mesmo no mundo do ter Estamos no mundo do saber Israel nos transmitiu um saber um modo de conhecer o mundo e de compreender qual eacute o significado da existecircncia humana individual e coletiva Deste ponto de vista pode competir com a Greacutecia (SKA 2015 p 133-134)
A partir dessa constataccedilatildeo fica mais claro que a cultura expressa pela BH tem
a sua particularidade e importacircncia mas dialoga obviamente com todas as demais
culturas do mundo com as quais teve relaccedilotildees Nesse sentido antes de adentrarmos
na maneira como os antropocircnimos satildeo concebidos usados e sofrem alteraccedilotildees no seio
da cultura hebraica eacute oportuno verificarmos como isso se dava em outros povos
circunvizinhos
11 Mesopotacircmia
52
A iacutentima conexatildeo entre o ato de nomear e a existecircncia de algo pode ser
deduzida a partir de seu papel em muitos textos de criaccedilatildeo do Oriente Meacutedio Antigo
onde a criaccedilatildeo de tudo dependia dos deuses nomearem essas coisas que tinham sido
criadas O objeto natildeo existia em si mesmo ele natildeo adquiria consistecircncia a natildeo ser apoacutes
sua nomeaccedilatildeo A proacutepria palavra ldquoobjetordquo na Babilocircnia era expressa por mimma
sunsu ldquotudo aquilo que leva um nomerdquo (POZNANSKI 1978 p 117)
Um eacutepico babilocircnico da criaccedilatildeo descreve o periacuteodo de preacute-criaccedilatildeo como um
tempo no qual
[] no alto o ceacuteu ainda natildeo havia sido nomeado e embaixo a terra firme natildeo tinha sido mencionada por um nome [] Quando os deuses ainda natildeo haviam aparecido nem tinham sido chamados com um nome nem fixado algum destino os deuses foram procriados dentro deles (ENUMA ELISH tablete 11-2 7-8)
No mundo de Acaacutedia haacute uma coincidecircncia entre nascimento e colocaccedilatildeo do
nome O mesmo ocorre com os sumeacuterios ldquoNumusda semente que os deuses criaram
que Ningal protegeu em seu seio que conheceu um nascimento suave na montanha a
quem An e Enlil deram um bom nome que Ninlil embalou amorosamenterdquo
(FALKENSTEIN VON SODEN 1953 p 112 n 23 l 51042 apud POZNANSKI 1978
p 114-115) Constata-se nesse texto que a crianccedila recebeu seu nome desde o
nascimento antes mesmo de ser tomada nos braccedilos
O nome proacuteprio era tatildeo fundamental na cultura mesopotacircmica cuneiforme
que sua escritura constituiacutea um setor particular do saber dos escribas possuindo um
sistema proacuteprio de notaccedilotildees graacuteficas Os nomes proacuteprios recorrem a um ldquoleacutexico e uma
sintaxe intencionalmente arcaicos ou desviantes que natildeo coincidem frequentemente
com aqueles que utilizam textos de prosa ou de versordquo (DURAND 1998 p 31) Eacute
importante sublinhar que muitas liacutenguas do Oriente Meacutedio Antigo somente
sobreviveram e vieram agrave luz nos tempos modernos graccedilas a um corpus onomaacutestico
preservado em materiais escritos monumentos e construccedilotildees A morfologia e o leacutexico
dessas liacutenguas satildeo descritos unicamente a partir da anaacutelise desses nomes
42 A obra desses autores intitula-se Sumerische und akkadische Hymnen und Gebete Zuumlrich Artemis Verlag Recorreu-se agrave citaccedilatildeo indireta pelo fato da referida obra encontrar-se esgotada e de difiacutecil acesso
53
Uma das fontes para um levantamento da onomaacutestica mesopotacircmica eacute sem
duacutevida os selos ldquouma marca sobre uma mateacuteria plaacutestica de imagens eou caracteres
gravados em um material duro chamado lsquomatrizrsquo ou tambeacutem lsquoselorsquo e era usado como
sinal de autoridade e de propriedade pessoalrdquo (CHARPIN 1998 p 43) O primeiro
selo a trazer um nome proacuteprio data do final da eacutepoca conhecida como Protodinaacutestica
II ou seja por volta de 2500 AEC portanto cerca de sete seacuteculos apoacutes o surgimento
da escrita (cf CHARPIN 1998 p 46) Uma triacuteplice informaccedilatildeo costumava ser a
maneira usada para se definir um indiviacuteduo na legenda de um selo ldquoprimeiramente
pelo seu nome depois pelo nome de seu pairdquo (na Babilocircnia antiga o ldquonome de famiacuteliardquo
era incomum) finalmente ldquocomo servidor de um rei ou de uma divindaderdquo (cf
CHARPIN 1998 p 48) O nome do proprietaacuterio do selo vinha em destaque mais do
que os iacutecones que poderiam constar dele Portanto a civilizaccedilatildeo babilocircnica concedeu
agrave escritura uma posiccedilatildeo privilegiada
Ao contraacuterio de nossos nomes e sobrenomes atuais o nome proacuteprio naquela
cultura era dotado de uma significaccedilatildeo aparente Esses nomes seguem uma tipologia
bastante diversificada mas natildeo muito complexa ldquoela vai de uma frase curta
(fragmento de oraccedilatildeo ou enunciaccedilatildeo de um fato) passando por diversos tipos de
qualificativos apelidos ou outros ateacute os diminutivosrdquo (DURAND 1998 p 32) Eacute muito
frequente no princiacutepio do segundo milecircnio antes da era comum (AEC) que o nome
proacuteprio natildeo descreva o indiviacuteduo em si mesmo mas o situe em relaccedilatildeo a seus deuses
ou seu rei de modo expliacutecito (nomeando-os) ou natildeo
No caso de indiviacuteduos que portavam nomes que faziam menccedilatildeo a um
determinado deus uma questatildeo que imediatamente nos vem em mente eacute o que um
nome teofoacuterico significava para a pessoa que o levava e por que foi escolhido
Geralmente eram nomes que elogiavam uma determinada divindade ou suplicavam
algo agrave mesma Esses nomes exprimiriam de fato o sentimento religioso daqueles que
lhes deram aos seus filhos ou o de seus portadores Ou seriam simplesmente formas
padronizadas natildeo faacuteceis de certificar Esses nomes soavam bem piedosos como
ldquoNaram-Enlil (lsquoAmado-de-Enlilrsquo) Ili-zili (lsquoMeu-Deus-eacute-Minha-Proteccedilatildeorsquo) Giba-
DINGIR (lsquoConfia-em-Deusrsquo) Iti-DINGIRDINGIR (lsquoDaacute-aos-deusesrsquo) e DINGIR-zeluli
54
(lsquoO-Deus-eacute-Minha-Sombrarsquo) (SEYMOUR 1983 p 116) Natildeo eacute faacutecil chegar a conclusotildees
seguras a respeito dessa questatildeo
Uma possiacutevel fonte de conhecimentos sobre a relaccedilatildeo de nomes pessoais agrave feacute individual tem sido sugerida por estudos da claacuteusula de servo presentes em muitas inscriccedilotildees de vedaccedilatildeo de cilindro Tais inscriccedilotildees muitas vezes datildeo o nome do(a) proprietaacuterio(a) o nome do pai dele ou dela bem como uma afirmaccedilatildeo declarando que o proprietaacuterio eacute o escravo (ardu) de um deus particular No caso dos selos das nadītu-sacerdotisas de Sippar parece haver um elevado grau de correlaccedilatildeo entre o deus na claacuteusula de servo e a filiaccedilatildeo cultual especiacutefica do proprietaacuterio Entre os nadītus haacute discordacircncia ocasional entre a claacuteusula de servo e o elemento divino que ocorre no nome do proprietaacuterio Isso no entanto quase nunca eacute comprovado em inscriccedilotildees de selos do puacuteblico em geral Significativamente as divindades populares em nomes pessoais satildeo diferentes das divindades populares na claacuteusula de servo Considerando que os nomes pessoais Shamash ou Sīn tendem a predominar (refletindo o fato que Sippar era um centro de culto desses deuses) na claacuteusula de servo tais deuses menores como Amurru ou Nabium satildeo muito mais comuns Dada a tendecircncia de deuses pessoais intercessores serem mais baixos na hierarquia divina do que os grandes deuses entre os quais intercediam tem sido sugerido que essas divindades da claacuteusula servo satildeo os elusivos deuses pessoais dos antigos mesopotacircmicos [] Os nomes nadītu podem mostrar um elevado grau de correlaccedilatildeo com um deus em particular devido a relaccedilatildeo claustral incomum das sacerdotisas com seus deuses Uma vez que estas mulheres aparentemente tinham uma relaccedilatildeo familiar muito proacutexima com o deus que serviam o sentido especialmente forte de pertenccedila ao deus pode ter inspirado os nomes atipicamente orientados para o culto que elas muitas vezes levavam e explicar a sua disponibilidade para abandonar um nome por outro (SEYMOUR 1983 p 117-118)
No entanto a anaacutelise de nomes da antiga Sippar babilocircnica revela tambeacutem
que nem sempre havia uma correlaccedilatildeo entre o nome teofoacuterico e uma feacute ou relaccedilatildeo
especial entre o seu portador e o deus nomeado Um dos criteacuterios para a escolha desses
nomes era simplesmente o fato de natildeo ter sido escolhido por uma outra pessoa
Portanto se de um lado nomes babilocircnios teofoacutericos poderiam sugerir a solicitaccedilatildeo de
uma forccedila protetora e beneacutefica de outro poderia natildeo ter uma preocupaccedilatildeo especiacutefica
de envolver um determinado deus com a vida do receacutem-nascido ou do adulto que
portasse aquele nome
Ocorre tambeacutem que o nome proacuteprio situe o indiviacuteduo em seu ambiente
humano (na maioria dos casos sua famiacutelia compreendida de modo mais ou menos
amplo) como se vecirc nos seguintes exemplos
55
Iddin-Addu ldquoO Deus-Addu fez um presenterdquo (sem duacutevida em referecircncia agrave
crianccedila que acaba de nascer) referecircncia expliacutecita
Šarkassum-Macirctum ldquoO Paiacutes lhe foi dadordquo (em referecircncia ao rei) referecircncia
impliacutecita
Ahu-šunu ldquoEacute irmatildeo delesrdquo (cf DURAND 1998 p 32)
Verifica-se portanto haver um costume do nome proacuteprio expressar uma
vontade paterna ou uma constataccedilatildeo feita pelos genitores no momento do nascimento
de seu filho Ele manifesta que a crianccedila foi dada por este ou aquele deus ou descreve
uma accedilatildeo divina particular ou diz que a crianccedila veio ajuntar-se aos outros irmatildeos ou
que nasceu num determinado momento e circunstacircncias A dificuldade reside no fato
de natildeo se possuir na quase totalidade dos casos indicaccedilotildees do contexto que motivou
a escolha deste ou daquele nome a certo indiviacuteduo Uma das raras exceccedilotildees eacute um texto
de Mari (Siacuteria seacutec XVIII AEC) que nos explica as razotildees da outorga de um nome
proacuteprio
Uma historieta mostra de fato uma princesa tendo um sonho a propoacutesito de uma menina nascida no hareacutem portanto pode ser filha do proacuteprio rei Nesse sonho se lhe indicava como nomear a menina Tratava-se de dar-lhe um nome proacuteprio relacionado com o mundo da estepe aonde vatildeo rebanhos e nocircmades um mundo perigoso difiacutecil de controlar e no qual o rebanho dos sedentaacuterios agrave procura de pastagens pode correr grandes perigos Eacute desejaacutevel nos eacute dito que a menina se chame Taggid-Nawucircm ldquoA Estepe fez uma declaraccedilatildeordquo (subentendido ldquode submissatildeordquo) Conhece-se bem esse tipo de onomaacutestica O nome proacuteprio da menina desconcertante para um moderno entra de fato numa seacuterie do gecircnero ldquoA Estepe voltourdquo ldquoA Estepe diminuiurdquo etc Satildeo nomes comemorativos muito difundidos sobretudo na onomaacutestica feminina (DURAND 1998 p 33)
Assim fazendo a menina perpetuaria por meio de seu nome a lembranccedila de
um fato ocorrido concomitantemente ao seu nascimento ou seja a submissatildeo dos
nocircmades agrave autoridade real de Mari
No entanto um atento exame da onomaacutestica mesopotacircmica revela que muitos
antropocircnimos natildeo fazem referecircncia ao momento do nascimento mas a outro evento
Desse modo o nome original recebido quando a crianccedila nasceu teve de ceder lugar a
outro num determinado momento Somente natildeo se sabe se o nome original
permanecia sendo usado por exemplo no ambiente domeacutestico e familiar ou natildeo O
que criaria uma dualidade entre vida privada e puacuteblica Exemplos encontrados na
56
Mesopotacircmia indicam ser isso praacutetica comum para funcionaacuterios no palaacutecio real bem
como nos templos religiosos Eacute difiacutecil acreditar que trecircs porteiros encarregados da
vigilacircncia do hareacutem do palaacutecio de Mari se chamassem respectivamente
ldquoQue a ordem reinerdquo
ldquoObedeccedila agraves ordens do reirdquo
ldquoFaccedila mais atenccedilatildeo a elas [as mulheres] que aos deusesrdquo (DURAND 1998
p 34)
Os porteiros de um templo mesopotacircmico tambeacutem possuiacuteam nomes proacuteprios
adaptados agraves suas funccedilotildees fazer frente ao Mal e atuar como intermediaacuterios entre deus
e seus fieacuteis Vejamos
ldquoApodera-te do Malrdquo
ldquoColeta o Malrdquo
ldquoRecolhe as Palavrasrdquo
ldquoAceita as Palavrasrdquo (DURAND 1998 p 34)
Ateacute nomes exaltando as qualidades reais eram encontrados na regiatildeo entre os
funcionaacuterios dos palaacutecios como siacutembolo da total devoccedilatildeo ao seu monarca
Obviamente somente os reis vivos eram homenageados nesses tipos de nomes Por
exemplo
ldquoA realeza lhe eacute dadardquo
ldquoEle eacute bom para seu paiacutesrdquo
ldquoEle vale mais que seu exeacutercitordquo
ldquoEle capturou seus rebeldesrdquo (DURAND 1998 p 34)
Exemplos dessa praacutetica de se mudar nomes de oficiais do governo satildeo comuns
como no caso de nomes acaacutedios da eacutepoca de Sargatildeo43 e da terceira dinastia de Ur (da
uacuteltima metade do seacutec XXIV a quarta e uacuteltima parte do seacutec XXI AEC) tais como
ldquoLUGAL-balimdash (lsquoO-Rei-eacute-Temidorsquo) Ili-sharru (lsquoO-Rei-eacute-Meu-Deusrsquo) e LUGAL-dari
(lsquoO-Rei-eacute-Eternorsquo)rdquo (SEYMOUR 1983 p 116)
Entretanto natildeo somente funcionaacuterios se submetiam agrave mudanccedila de nome
devido a um cargo ou funccedilatildeo mas os proacuteprios reis Segundo as tradiccedilotildees da eacutepoca um
43 Em acaacutedio Sargatildeo eacute Šarru-kin ŠARRUKIIN LUGALGIN ldquoo verdadeiro reirdquo ou ldquoo rei eacute legiacutetimordquo Mais abaixo tornar-se-aacute a falar desse monarca pois ele tambeacutem passou por uma mudanccedila de nome
57
soberano deveria ser o filho primogecircnito do rei anterior Por isso o rei possuiacutea uma
onomaacutestica especial no sentido de natildeo haver outro homocircnimo enquanto fosse vivo O
novo nome real incorporava o nome do pai ou avocirc como do rei Hammu-rapi (`Ammu
nome do avocirc paterno Raumlpi curador) em portuguecircs usualmente transcrito como
Hamurabi (cerca de 1810mdash1750 AEC) da Babilocircnia No caso do rei por circunstacircncias
poliacuteticas ou de sauacutede natildeo ser o primogecircnito o novo nome o revelava explicita ou
implicitamente Eacute o caso de Assurbanipal (ldquoAššur eacute aquele que fez o Herdeirordquo) o qual
viveu por volta de 690mdash627 AEC imperador assiacuterio filho de Esarhaddon Aqui
ldquoherdeirordquo designa por excelecircncia o primogecircnito A histoacuteria nos confirma que
ldquoAssurbanipal natildeo era um primogecircnito e natildeo deveria ter subido ao trono Eacute por isso
que ele havia tambeacutem recebido uma educaccedilatildeo de cleacuterigo Ele teve portanto que
mudar de nome quando uma decisatildeo poliacutetica lhe conferiu o tiacutetulo de herdeirordquo
(DURAND 1998 p 36)
Interessante observar que o nome do rei natildeo era pronunciado por seus suacuteditos
ou conhecidos Costumava-se usar ldquoSenhorrdquo ao se dirigir ao soberano O rei por sua
vez poderia denominar e utilizar o nome proacuteprio de seus servos Eacute bom recordar do
que foi dito anteriormente ldquopara um mesopotacircmio lsquonomearrsquo algueacutem era de um modo
ou de outro ter poder sobre elerdquo (DURAND 1998 p 37)
Aleacutem do mais os mesopotacircmios acreditavam que a ldquoalmardquo era um espiacuterito
semimortal cuja existecircncia primaacuteria era terrestre Assim o nome era peculiarmente
ligado ao destino de um homem durante a vida Refletindo uma forte corrente de
evidente determinismo em tradiccedilotildees do Oriente Meacutedio Antigo a escolha de um ldquobom
nomerdquo - isto eacute um que iria suscitar forccedilas beneacuteficas por conta do nome do portador -
tornou-se um objetivo desejado no ato de nomear em toda a regiatildeo (cf SEYMOUR
1983 p 111) Assim sendo nesse mundo antigo o destino de um ser humano fosse
ele bom ou ruim era intimamente ligado ao seu nome Por exemplo quando um rei
era bem sucedido numa batalha suas inscriccedilotildees comemorativas frequentemente
atribuiacuteam a vitoacuteria aos deuses chamando seu nome para o grande feito Da mesma
forma o poder e a legitimidade de um governante eram estabelecidos pela pronuacutencia
de seu nome pelos deuses
58
Quando Na e Enlil chamaram Lipit-Ishtar Lipit-Ishtar o pastor saacutebio Cujo nome foi pronunciado por NUNAMMIR Para o principado da terra a fim de Estabelecer justiccedila (KRAMER 1963 p 336)44
Por outro lado a aniquilaccedilatildeo de um nome e posteridade representava a
desgraccedila final Tanto na Babilocircnia como no Egito e em Israel a perda do nome era
ameaccedila ao completo ostracismo Como exemplo pode-se citar o seguinte texto da BH
(Is 1422)
י על הוקמת ין ונכד נאם־יהו ר ונ ם ושא ל ש י לבב כרת ם יהוה צבאות וה ם נא 45יה
Constata-se na cultura mesopotacircmica a mudanccedila de nomes ou a sua
multiplicidade durante a vida da pessoa Geralmente essa mudanccedila ocorria como
consequecircncia de alguma importante alteraccedilatildeo no status da pessoa seja diante da
sociedade como dos deuses Em termos antropoloacutegicos tais mudanccedilas de nome
poderiam ser encaradas como um reflexo linguiacutestico de um rito de passagem Com
isso se distinguia a antiga pessoa da nova ou acentuava-se a nova vida na qual ela
estava sendo introduzida Exemplos podem ser encontrados tanto
a) Na vida real a princesa de Mari em seu casamento com o filho do rei Ur-
Nammu da terceira dinastia de Ur ldquomudou seu nome para lsquoEla-Ama-Urrsquo
Outras mudanccedilas de nomes femininos podem ser vistas entre as
sacerdotisas-nadītu de Sippar da Babilocircnia Antiga Julgando pela alta
porcentagem de nomes nadītu que se referem agraves divindades em cujo serviccedilo
essas mulheres estavam empregadas os registros nadītus frequentemente
levam nomes apropriados agrave sua nova funccedilatildeo na vidardquo (SEYMOUR 1983
p 114)
44 Traduccedilatildeo pessoal do texto em inglecircs When An and Enlil had called Lipit-Ishtar Lipit-Ishtar the wise shepherd Whorsquos name had been pronounced by NUNAMMIR To the princeship of the land in order to establish justicehellip 45 Traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem ldquoLevantar-me-ei contra eles oraacuteculo de Iahweh dos Exeacutercitos e extirparei da Babilocircnia o seu nome e o seu resto a sua descendecircncia e a sua posteridade oraacuteculo de Iahwehrdquo
59
b) Na mitologia babilocircnica na epopeia de Atrahasis encontra-se um episoacutedio
no qual a deusa Mami (ou Ninhursag) eacute exaltada e recebe um novo nome
na sequecircncia da criaccedilatildeo bem sucedida dos primeiros seres humanos
ldquoEles correram juntos e beijaram seus peacutes [dizendo] lsquoAnteriormente noacutes costumaacutevamos chama-la de Mami Agora que seu nome seja Bēlēt-Kālā-Ilī (Amante-de-Todos-os-Deuses)rdquo (SEYMOUR IDEM)
Razotildees poliacuteticas tambeacutem poderiam provocar mudanccedila de nomes Pode-se
tomar como exemplo o legendaacuterio Sargatildeo da Acaacutedia o qual governou durante a
penuacuteltima quarta parte do terceiro milecircnio AEC Uma vez que ele eacute conhecido por ter
usurpado o trono de Kish ldquosua mudanccedila de nome parece ser motivada por um desejo
de legitimar seu novo status deixando para traacutes suas origens mais humildes com o seu
original e infelizmente desconhecido nomerdquo (SEYMOUR 1983 p 115) Alguns reis
assiacuterios parecem confirmar esse haacutebito Sabe-se que Tiglath-Pileser III (em acaacutedio
Tukultī-Apil-Ešarra) rei assiacuterio que reinou de 745-727 AEC tomou o trono da Babilocircnia
em 728 AEC Nessa ocasiatildeo ele assumiu um novo nome Pul ou Pulu pelo qual era
conhecido naquela cidade Do mesmo modo pode-se mencionar outro exemplo
[] quando Assurbanipal assumiu o trono da Babilocircnia em 648 AEC foi sob o nome de Kandalanu Talvez ao contraacuterio da sucessatildeo normal dos herdeiros de uma dinastia estabelecida a imposiccedilatildeo de uma dinastia estrangeira no trono babilocircnico pode ter representado uma quebra de continuidade poliacutetica significativa o suficiente exigindo que o novo rei adotasse um nome especial para lidar com seu novo papel e assuntos (SEYMOUR 1983 p 115)
Outro tipo de mudanccedila de nome por vezes teve lugar quando o portador do
nome encontrou-se em situaccedilotildees extremamente terriacuteveis Como jaacute foi mencionado
acima nas culturas do mundo antigo havia a percepccedilatildeo de uma ligaccedilatildeo entre o nome
da pessoa e o seu destino Por isso algumas vezes isso levou a mudar o nome de
algueacutem a fim de eliminar enfermidades ou infortuacutenios No contexto mesopotacircmico
alguns tipos de nomes acaacutedios sugerem indiretamente que uma praacutetica como essa
pode ter ocorrido pois sugerem nomes tomados durante algum infortuacutenio
Ati-matum (ldquoAteacute-Quandordquo)
Māt-ili (ldquoQuando-Meu-Deusrdquo)
60
mina-Arni (ldquoQual-eacute-Meu-Pecadordquo)
Hammu-rapi (ldquoHammu-eacute-o-Curadorrdquo)
Ilum-asūm (ldquoDeus-eacute-um-Meacutedicordquo)
Shamash-shullimanni (Shamash-Faz-me-Saudaacutevelrdquo) (SEYMOUR 1983 p
116)
Concluindo pode-se observar que ldquose os mesopotacircmicos foram mudando
nomes desse modo a eficaacutecia da praacutetica dependia principalmente da proacutepria alteraccedilatildeo
e por conseguinte pode apenas raramente se alguma vez ser refletida no novo nome
escolhidordquo (SEYMOUR 1983 p 116)
12 Egito
Os egiacutepcios possuiacuteam uma crenccedila no poder maacutegico do nome proacuteprio Era
como se o seu conteuacutedo comportasse a alma da pessoa tornando-se um elemento vivo
na constituiccedilatildeo da mesma46
Destruindo o nome era como se a proacutepria pessoa fosse aniquilada (cf
MARTINS 1991 p 48) Da mesma forma conhecer o nome equivaleria a conhecer e
tomar posse do indiviacuteduo daiacute a preocupaccedilatildeo de esconder o verdadeiro nome Por isso
a colocaccedilatildeo do nome tornou-se misteriosa no Egito ao contraacuterio dos demais povos
cujo nome da pessoa era declarado em geral no ato de seu nascimento Assim sendo
se um ldquonome eacute conhecido ele deve ser conhecido no tuacutemulo eacute ele que daacute a vida e a
46 Tal crenccedila natildeo eacute de todo alheia ao judaiacutesmo Inspirada pelo caraacuteter misterioso da Criaccedilatildeo fruto segundo o Gecircnesis do ato comunicativo divino que ldquodizrdquo ndash profere uma palavra ndash e as coisas se fazem ou seja satildeo criadas surgiu na Idade Meacutedia uma obra de caraacuteter miacutestico-especulativo denominada Secircfer Yetsiraacute (ldquoLivro da Criaccedilatildeordquo) Nessa obra o mais antigo texto especulativo em hebraico que chegou ateacute noacutes e cuja data de redaccedilatildeo eacute incerta indo do seacuteculo III ao VI EC desenvolve-se uma crenccedila no poder criativo das letras do Nome de Deus e das letras da Toraacute em geral O mundo teria sido criado atraveacutes da somatoacuteria das vinte e duas letras do alfabeto hebraico e dos dez nuacutemeros primordiais e elementares (Sefirot) com suas infinitas combinaccedilotildees e interpolaccedilotildees Concede-se desse modo um poder maacutegico agraves palavras agraves letras e a certos nuacutemeros A partir de uma exegese maacutegica de Secircfer Yetsiraacute desenvolveu-se no judaiacutesmo a ideia do golem (palavra que aparece uma soacute vez na BH Sl 13916) que no Talmude exprime algo sem forma e imperfeito No Talmude tratado Sanhedrin 65b 21-23 afirma-se ldquoSe os justos quisessem eles poderiam [vivendo uma vida de absoluta pureza] ser criadores porque estaacute escrito [] Rabbah criou um homem e enviou-o a R Zera R Zera falou com ele mas natildeo obteve resposta Logo a seguir disse-lhe Tu eacutes criatura dos magos Retorna ao teu poacuterdquo Assim sendo a crenccedila no poder da palavra e das letras conduziu a miacutestica judaica medieval a admitir a possibilidade de se criar um ser humano Esse seria feito de modo artificial em virtude de um ato maacutegico (SCHOLEM 1995 p 83 SCHOLEM 2007 p 735-737)
61
repeticcedilatildeo dos nomes do morto na boca dos viventes permite sua sobrevivecircnciardquo
(Papiro IV Chester Beatty apud POZNANSKI 1978 p 116)
Portanto entre os egiacutepcios mais que um siacutembolo o nome era compreendido
como uma coisa viva o proacuteprio sujeito que o porta
Assim como na cultura mesopotacircmica no Egito os deuses criam com a forccedila
de sua palavra evocando os nomes das coisas gesto que as fazem aparecer
ldquoConforme o seu nome eacute pronunciado assim a coisa vem a ser Porquanto o nome eacute
uma realidade a coisa mesmardquo (PIANKOFF 1964 p 4) Textos dos Sarcoacutefagos relatam
que Shu o filho do deus criador egiacutepcio recebeu autoridade intelectual para ir ao redor
do ciacuterculo de ser total e dar nome a todas as coisas ldquoVem entatildeo vamos criar os nomes
deste anel [totalidade] de acordo com o que saiu de seu coraccedilatildeordquo (CLARK 2004 p 70)
Se o ato de nomear cria algo ele tambeacutem distingue esse algo pois o nome eacute
esta caracteriacutestica que reflete individualidade
O criador real era a Palavra ndash a primitiva fala que proveio de Deus e da qual todas as coisas obtiveram seus nomes De vez que o nome eacute tambeacutem a natureza de uma coisa do ponto de vista do homem antigo a nomeaccedilatildeo de uma criaccedilatildeo muacuteltipla significa a demarcaccedilatildeo de caracteriacutesticas individuais (CLARK 2004 p 57)
Os egiacutepcios possuiacuteam uma preocupaccedilatildeo quase obsessiva com a existecircncia
perpeacutetua do nome de uma pessoa Por isso apagar o nome de uma pessoa era
efetivamente destruir a ela mesma Uma comprovaccedilatildeo histoacuterica para isso podemos
recolher no ato de Tutmoacutesis III (seacutec XV AEC) contra o nome e a memoacuteria de sua matildee
e corregente Hatchepsut
Apoacutes a sua morte Tutmoacutesis desfigurou seus monumentos removeu seu nome das inscriccedilotildees reais apagou seus retratos e novamente fez tudo que estava em seu poder para destruir seu nome e remover sua memoacuteria da lembranccedila histoacuterica dos egiacutepcios As graves implicaccedilotildees religiosas das accedilotildees de Tutmoacutesis podem ser na totalidade compreendidas somente quando se leva em conta que um ser sem nome natildeo poderia ser introduzido entre os deuses e como nenhuma coisa criada existe sem um nome a pessoa que natildeo tinha um nome estava em pior posiccedilatildeo diante dos poderes divinos que o mais fraacutegil objeto (PORTER 1990 p 4)
A importacircncia no nome proacuteprio no Egito pode ser medida pelo fato de ele
intervir na gecircnese da escritura hierogliacutefica Essa escritura aparece por volta de 3150
AEC pouco antes do nascimento do estado faraocircnico que se deu ao redor de 3000
62
AEC marcado pela unificaccedilatildeo do Alto e Baixo Egito e o estabelecimento de Mecircnfis
como capital Durante o periacuteodo denominado preacute-dinaacutestico desenvolveu-se uma
cultura da imagem em diferentes etapas De Naqada I (4000 a 3600 AEC) a Naqada II
(3600 a 3150 AEC) realiza-se uma evoluccedilatildeo
Durante o periacuteodo de Naqada II inicia-se uma temaacutetica iconograacutefica veiculando aquilo que parece incontestavelmente uma ideologia monaacuterquica na qual o monarca natildeo eacute ainda o faraoacute mas um potentado que impotildee sua dominaccedilatildeo sobre reinos ou tribos restritas a uma parte do Egito [] Um dos elementos desta temaacutetica merece uma particular atenccedilatildeo Trata-se da representaccedilatildeo de uma fachada de edifiacutecio encimado por um falcatildeo o que eacute bem conhecido pelo nome de ldquoserekhrdquo na eacutepoca faraocircnica como siacutembolo do rei reinando Ao final do periacuteodo preacute-dinaacutestico esse motivo jaacute era utilizado como marca de posse do monarca sobre os objetos ou lugares onde foi afixado Mas haacute mais Eacute no interior desse motivo no espaccedilo vazio da fachada que aparecem os mais antigos exemplos conhecidos da escritura no Vale do Nilo [] trata-se de nomes proacuteprios dos reis constituindo o que os egiptoacutelogos chamam de ldquoa dinastia 0rdquo isto eacute soberanos reinando apenas sobre uma porccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio antes da unificaccedilatildeo e da primeira dinastia Particularmente significativo eacute o nome de Narmer o qual eacute seja o predecessor imediato de Meneacutes o fundador do estado faraocircnico seja o proacuteprio Meneacutes [] quase que ao mesmo tempo em que a escritura eacute utilizada para atualizar aquele que ocupava a funccedilatildeo monaacuterquica escrevendo-se seu nome proacuteprio no interior do siacutembolo desta funccedilatildeo ela eacute tambeacutem para as cidades estrangeiras condenadas a serem eternamente derrotadas pelo rei escrevendo seus nomes proacuteprios no interior do recinto com ameias siacutembolo dessas cidades (VERNUS 1998 p 22-23)
Ao que parece um dos maiores estiacutemulos para a invenccedilatildeo da escritura foi a
necessidade de fixar de modo visiacutevel os nomes nomes proacuteprios ou geograacuteficos Uma
vez que os pictogramas natildeo ofereciam recursos adequados para uma codificaccedilatildeo
satisfatoacuteria dos nomes proacuteprios
Como eacute de amplo conhecimento a civilizaccedilatildeo faraocircnica elaborou um conjunto
de crenccedilas relativas agrave sobrevivecircncia apoacutes a morte Para que a sobrevivecircncia fosse
possiacutevel convinha manter a integridade da personalidade tanto fiacutesica como social A
manutenccedilatildeo da personalidade fiacutesica era satisfeita por meio da mumificaccedilatildeo Enquanto
aquela da personalidade social abrangia o proacuteprio nome da pessoa
Daiacute a inscriccedilatildeo do nome na tumba e sobre o mobiliaacuterio funeral para aqueles que possuem os meios Esta inscriccedilatildeo do nome geralmente multiplicada tanto quanto possiacutevel visa natildeo somente agrave perpetuaccedilatildeo num material soacutelido como a pedra e a madeira mas tambeacutem a assegurar a identidade de seu proprietaacuterio [] Cada egiacutepcio desejava portanto que ldquoseu nome fosse pronunciado na boca das pessoasrdquo segundo uma expressatildeo consagrada Era entatildeo necessaacuterio descrever e narrar suas accedilotildees porque ldquoo nome (fama) de um
63
bravo estaacute naquilo que ele fezrdquo [] Mas para que um nome passasse de boca em boca era necessaacuterio primeiramente que ele estivesse inscrito sobre um monumento funeraacuterio visiacutevel senatildeo ostentatoacuterio e apropriado para dar de seu proprietaacuterio uma boa impressatildeo o monumento funeraacuterio era a expressatildeo da personalidade (VERNUS 1998 p 24-25)
Um fato chama a atenccedilatildeo pois se relaciona com o escopo desta pesquisa sobre
a mudanccedila de nome e sua significaccedilatildeo Haacute um famoso caso de mudanccedila de nome por
motivos religiosos no Egito Eacute aquele relativo ao faraoacute Amenhotep IV que governou
na metade do Impeacuterio Novo cerca de 1350 AEC O seu nome que jaacute era teofoacuterico
significava ldquoAmon estaacute em pazrdquo ou ldquoAmon estaacute satisfeitordquo Esse faraoacute mudou-o para
Akhenatoacuten que significa ldquoO Espiacuterito atuante de Atonrdquo Essa atitude do faraoacute indicava
a intenccedilatildeo de realizar uma reforma religiosa excluindo outras divindades egiacutepcias a
fim de promover Aton como o uacutenico deus Para tanto monumentos dedicados a outras
divindades como Amon foram deformados ou destruiacutedos Akhenatoacuten tentou
estabelecer-se como o uacutenico representante entre deus e o povo somente ele conhecia
Aton retirando poder da casta sacerdotal egiacutepcia (cf HORSLEY 1987 p 5) Uma
consequecircncia dessa alteraccedilatildeo de nome promovida pelo entatildeo faraoacute Amenhotep IV
pode ser percebida em seu sucessor e filho Tutankhamon (significa ldquoa imagem viva
de Amonrdquo) Eacute de se observar que ldquoTutankhamon natildeo era o seu nome original
anteriormente ele tinha sido Tutankhaton e a mudanccedila da manifestaccedilatildeo de apreccedilo a
Aton para Amon foi certamente programaacutetica para indicar o descarte das reformas
religiosas de um faraoacute anterior as quais tinham sido tatildeo desagradaacuteveisrdquo (HORSLEY
1987 p 5)
13 Greacutecia e Roma
Na Greacutecia claacutessica os primeiros testemunhos sobre a colocaccedilatildeo do nome nos
vecircm do seacutec V AEC por exemplo com Aristoacutefanes que escreve
ldquoConvidado um dia ao banquete que ocorre no deacutecimo dia apoacutes o nascimento de um bebecircrdquo e ele acrescenta na mesma peccedila ldquoMas natildeo acabo de fazer um sacrifiacutecio ao deacutecimo dia e de lhe dar um nome como a meu filho nesse mesmo instanterdquo Conhece-se o nome desta cerimocircnia que ele cita em Lysistrata Anfidromia isto significa ldquocorrida ao redorrdquo O receacutem-nascido era levado de casa em casa enquanto as mulheres se purificavam e preparavam a festa (POZNANSKI 1978 p 120)
64
Portanto era costume entre os gregos nominar algueacutem somente no nono ou
deacutecimo dia apoacutes o nascimento Talvez isso se justifique devido ao fato de ocorrerem
muitas mortes de bebecircs antes do seacutetimo dia de nascimento Mas isso natildeo deve ter sido
uma regra geral o uso pode ter se expandido tambeacutem como um modo de permitir o
restabelecimento da matildee apoacutes o parto e que todos os preparativos da festa estivessem
concluiacutedos
A preocupaccedilatildeo de natildeo outorgar um nome agrave crianccedila antes do nono dia jaacute que
as mortes de neonatos eram frequentes indica a preocupaccedilatildeo dos gregos em natildeo
desperdiccedilar um nome sinal de seu caraacuteter sagrado Somente natildeo sabemos com
seguranccedila se eles atribuiacuteam um aspecto maacutegico ao nome proacuteprio como o faziam os
egiacutepcios
Na Roma Antiga a crianccedila recebia seu nome no decorrer de uma importante
cerimocircnia com sacrifiacutecios a Juno divindade do parto e da primeira infacircncia Isso se
dava no chamado dies lustricus (dia da purificaccedilatildeo) nono dia para o menino oitavo
para uma menina (cf POZNANSKI 1978 p 121) Para salvaguardar o praenomen
(prenome) verdadeiro este costumava ser revelado agrave crianccedila somente quando recebia
a toga viril (toga virillis) uma veste branca sem adornos nem tintura Esse gesto que
marcava a passagem da infacircncia para a adolescecircncia se dava por volta dos 15 ou 16
anos de idade Ateacute atingir essa idade mais madura a crianccedila conhecia apenas o seu
falso prenome Portanto a finalidade essencial do nome natildeo era de identificar uma
vez que ele permanecia oculto por um bom tempo
O nome na cultura romana desempenha um papel religioso como proteccedilatildeo
Para amparar a matildee e garantir a continuidade e seguranccedila da prole costumava-se natildeo
atribuir um prenome agraves mulheres Natildeo eacute por menos que entre os romanos surgiu a
locuccedilatildeo Nomen est omen (no plural nomina sunt omina) a qual pode ser traduzida das
seguintes formas ldquoo nome eacute um auguacuteriopressaacutegiordquo ou ldquoum nome um destinordquo A
origem desse proveacuterbio pode ser encontrada na obra Persa (trad Os Persas) do
dramaturgo romano Plautus (cerca de 250-184 AEC)47
47 Cf Nomen est omen In WIKIPEDIA ndash DIE FREIE ENZYKLOPAumlDIE Disponiacutevel em lthttpdewikipediaorgwikiNomen_est_omengt Acesso em 24 jun 2014
65
2 Onomaacutestica biacuteblica
Jaacute vimos que na Antiguidade os nomes pessoais natildeo satildeo meras etiquetas pelas
quais os indiviacuteduos satildeo distinguidos Eles transmitem significado e informaccedilatildeo sobre
povos em variados niacuteveis Por meio deles pode-se conhecer muito da vida cotidiana
das comunidades antigas bem como atitudes psicoloacutegicas e religiosas de certos
grupos humanos Aleacutem disso ldquoobservando as mudanccedilas e preferecircncias em tipos de
nome ao longo do tempo alteraccedilotildees lentas de atitudes podem ser vistas o que pode
indicar a mudanccedila das estruturas sociais e poliacuteticasrdquo (SEYMOUR 1983 p 108)
Constata-se que o impulso humano para conceder nomes a cada aspecto da
existecircncia levou a uma identificaccedilatildeo peculiar da coisa que estaacute sendo nomeada e o
proacuteprio nome abstrato Com isso ldquomuitos povos antigos viram em nomes uma ilusoacuteria
ordem ou estrutura desconhecida do mundo natural que eles estavam descrevendo
a identificaccedilatildeo do nome e objeto resultou em uma confusatildeo caracteristicamente
religiosa de causalidade de modo que os nomes muitas vezes tomaram uma medida
maior da realidade do que as coisas que originalmente representavamrdquo (SEYMOUR
1983 p 109)
A linguiacutestica divide-se em considerar o nome proacuteprio apenas em seu sentido
referencial ou denotativo sem possuir uma conotaccedilatildeo ou ideia ou vecirc-lo como possuidor
tambeacutem de um significado
21 O nome proacuteprio na cultura hebraica
Em hebraico vecirc-se uma perspectiva bem diferente Por exemplo ldquoo
significado da raiz de uma palavra hebraica qualquer eacute quase aparente
independentemente de seu grau de flexatildeo Por esse motivo a maioria dos nomes
proacuteprios israelitas era claramente inteligiacutevel e expressava mais que a simples
referecircnciardquo (METTINGER 2008 p 35)
A fonte mais importante para os nomes proacuteprios hebraicos estaacute na Biacuteblia bem
como nas inscriccedilotildees cananeias (oacutestracos e selos) nos papiros de Elefantina e tabletes
de argila babilocircnicos do periacuteodo persa (cf STAMM 2007 p 764)
A importacircncia dos nomes proacuteprios fica evidente na tradiccedilatildeo hebraica claacutessica
quando se constata que o primeiro ato de Adatildeo foi dar nomes a todos os animais e
66
aves que Deus criara (cf Gn 219-20) Imediatamente no capiacutetulo seguinte Adatildeo
nomeia a primeira mulher (Gn 320) e uma razatildeo eacute dada para que isso ocorra
Na tradiccedilatildeo judaica mais recente expressa pelo Talmude podemos
comprovar que a importacircncia e valorizaccedilatildeo do nome proacuteprio continuam intactas
ldquoComo noacutes sabemos que o nome de uma pessoa afeta sua vidardquo pergunta o Talmude (Ber 7b 13) A resposta de R Eleazar indica que Deus eacute responsaacutevel pela criaccedilatildeo dos nomes e isso determina o destino da pessoa Tomando isso como um princiacutepio baacutesico os saacutebios do Talmude fornecem dezenas de explicaccedilotildees para os nomes de indiviacuteduos lugares e ateacute mesmo animais enumerados na Biacuteblia A codificaccedilatildeo legal judaica relativa agrave grafia dos nomes em documentos de matrimocircnio e divoacutercio e em notas de venda eacute muito exigente Isso decorre das discussotildees talmuacutedicas onde se afirma que o erro ortograacutefico de um nome invalida um documento e a transaccedilatildeo envolvida (NAMES 2002 p 566-567)
A proacutepria palavra ldquonomerdquo em hebraico nos fornece uma indicaccedilatildeo da
importacircncia desta temaacutetica na cultura semiacutetica O substantivo birradical šēm pertence
ao semiacutetico comum e em sua etimologia nos deparamos com o aacuterabe wsm ldquomarcarrdquo
podendo indicar que o significado originaacuterio de šēm fosse ldquomarcardquo O vocaacutebulo šēm
[] referido a pessoas e coisas se encontra sobretudo nos livros histoacutericos enquanto que do nome de Deus ou de YHWH se fala principalmente em Lv (10 vezes) Dt (23 vezes) na obra histoacuterica deuteronomista (cf 1Rs 26 vezes) em Is (mais de 30 vezes) Jr (mais de 40 vezes) Ez (14 vezes) na maioria dos profetas menores (Am 7 vezes Ml 10 vezes) em 2Cr (27 vezes) e especialmente no Salteacuterio (umas 100 vezes) no total em 37 do conjunto dos casos (VAN DER WOUDE 1985a c 1174)
O proacuteprio tiacutetulo hebraico para o segundo livro da Toraacute (Ecircxodo) eacute šuumlmocirct
(nomes)
De longe o livro de Gecircnesis eacute aquele juntamente com Salmos que mais
concentra as ocorrecircncias do vocaacutebulo šēm seja no singular como no plural em toda a
BH Vejamos
Gn 113 vezes aparece šēm sendo 103 vezes no singular e 10 no plural
Sl 109 vezes contecircm šēm sendo 106 vezes no singular e 3 no plural
Portanto das 864 vezes que šēm aparece na BH seja no singular quanto no
plural 1307 satildeo no livro do Gecircnesis (cf VAN DER WOUDE 1985a c
1175-1176)
67
Em Israel o nome natildeo revela automaticamente a ldquonaturezardquo de seu portador
ou a sua ldquoalmardquo (cf VAN DER WOUDE 1985a c 1175-1176)48 Eacute verdade que uma
das caracteriacutesticas dos nomes hebraicos eacute serem frases ou proposiccedilotildees inteligiacuteveis
Mesmo que isso ldquoseja verdadeiro para muitos nomes natildeo o eacute para todos restava uma
proporccedilatildeo que natildeo era facilmente inteligiacutevel ou natildeo eram absolutamente inteligiacuteveisrdquo
(BARR 1970 p 17) Tambeacutem natildeo se lhe atribui uma forccedila maacutegica como no Egito Ao
menos a BH natildeo conteacutem provas diretas da existecircncia de uma magia particular no
nome (cf NEUMANN 2011 p 324) Na tradiccedilatildeo judaica natildeo haacute nomes divinos
secretos porque o uso maacutegico do nome de Deus eacute proibido e todos os crentes podem
invocar diretamente a YHWH na oraccedilatildeo E natildeo somente uma classe determinada
como poderiam ser os sacerdotes
O nome na cultura semiacutetica conteacutem um elemento dianoeacutetico ou seja o
significado do nome segundo seu sentido e outro dinacircmico isto eacute o significado do
nome por sua forccedila e eficaacutecia Contudo eacute bom advertir que o significado a eficaacutecia e
o ldquopoderrdquo de um nome natildeo se fundamentam em seu caraacuteter maacutegico como tal mas na
importacircncia na eficaacutecia e no ldquopoderrdquo do portador desse nome Se este tem um grande
poder seu nome tem consequentemente a eficaacutecia correspondente e pode ser
utilizado para finalidades boas ou maacutes
Nesse sentido mencionado acima eacute digno de nota aquilo que se constata tanto
num versiacuteculo do texto que seraacute objeto de melhor estudo nos proacuteximos capiacutetulos (Gn
3230) quanto em Jz 1318 Toda vez que um ser humano no caso Jacoacute e Manoaacute pede
a um ser pertencente agrave esfera divina (em Gn acute icircš ndash 3224 em Jz malacuteak yhwh ndash 1317)
qual eacute o seu nome (šēm) a solicitaccedilatildeo eacute negada com uma reacuteplica por que perguntas pelo
meu nome (Gn 3230 e Jz 1318) Conclui-se que ldquoa recusa evidentemente faz pensar
que com o nome seria transmitida uma informaccedilatildeo decisiva sobre quem o portardquo
(REITERER 2009 c 477)
A tradiccedilatildeo hebraica vecirc no nome proacuteprio uma capacidade de comunicaccedilatildeo uma
vez que conhecendo o nome de algueacutem ou de um deus pode-se chamaacute-lo fazecirc-lo vir
ateacute quem o menciona Nesse sentido o conhecimento do nome significa ateacute certo
48 Cf BARR 1970 p 11-29
68
ponto um poder sobre a pessoa nominada Deve-se levar em consideraccedilatildeo tambeacutem
que
Uma vez que o nome eacute expoente da personalidade o portador deve cuidar de seu bom nome ou seja de sua boa reputaccedilatildeo Adquire-se um nome no sentido de prestiacutegio quando se acrescenta a proacutepria gloacuteria atraveacutes de grandes accedilotildees e riquezas entre elas a abundacircncia de filhos O nome de uma pessoa sobrevive mesmo depois de sua morte sobretudo atraveacutes de seus descendentes (Gn 4816) Poreacutem o nome do que eacute sentenciado (Ez 2310) do que natildeo tem filhos (cf 2Sm 1818) ou do que perde suas propriedades (cf Nm 274) eacute apagado da terra Nestes casos e neste sentido dinacircmico o nome pode ser um conceito substitutivo da pessoa (VAN DER WOUDE 1985a c 1177)
Houve uma evoluccedilatildeo interessante nas tradiccedilotildees judaicas de nomeaccedilatildeo ldquoo
nome que era anteriormente dado desde o nascimento tende a ser em seguida
ligado agrave circuncisatildeo o oitavo dia apoacutes o nascimento na eacutepoca talmuacutedica a menina
recebia seu nome no primeiro saacutebado que se seguia ao partordquo (POZNANSKI 1978 p
119) Qual foi a justificativa para tal mudanccedila Somente Deus pode contentar-se de
existir sem necessidade de nome ldquoEu sou aquele que sourdquo (Ex 314) Aliaacutes como Carl
Heinz Ratschow49 jaacute demonstrou haacute muito tempo a traduccedilatildeo do verbo que eacute usado
para o nome divino (haya) comumente traduzido por ldquoserrdquo seria mais correto traduzir
por algo que eacute simultaneamente ldquoserrdquo e ldquovir-a-serrdquo Assim a expressatildeo acuteehyegrave acuteaacutešer
acuteehyegrave de Ex 314 poderia ser vertida em ldquoVirei-a-ser o que fareirdquo (REHFELD 1988 p
93) Isso porque segundo Rehfeld a cultura do homem biacuteblico era antiontoloacutegica
ainda segundo ele ldquoA realidade natildeo se afigurava como lsquoserrsquo mas como lsquodever-serrsquo
natildeo como lsquoessecircnciarsquo mas como lsquoexigecircnciarsquordquo (REHFELD 1988 p 91-92) Por essa razatildeo
o nome divino natildeo poderia ter ldquoum sentido estaacutetico e imutaacutevel denominaraacute o aspecto
dinacircmico da Fonte de toda transformaccedilatildeo no mundo do acontecer de cada momentordquo
(IBID p 93) Esses aspectos que Rehfeld aplica ao nome de Deus se pode aplicar
tambeacutem em alguns casos aos nomes proacuteprios pessoais como se abordaraacute mais
adiante nesta pesquisa
O ser humano deve ter um nome que significa mais do que ele designa
49 Eine Untersuchung des Wortes ldquohayaacuterdquo als Beitrag zur Wirklichkeitserfassung des Alten Testaments Beiheft zur Zeitschrift fuumlr alttestamentliche Wissenschaft Berlin Alfred Toplemann n 70 1941 apud REHFELD 1988 p 92 nota 52
69
Assim a ligaccedilatildeo onomaacutestica entre o homem e seu Deus eacute a ilustraccedilatildeo da alianccedila religiosa a partir do modelo daquela de Abratildeo vendo mudar seu nome em Abraatildeo [Gn 175] Por esta nova nomeaccedilatildeo se estabelece a ligaccedilatildeo e se opera uma transformaccedilatildeo profunda na mentalidade religiosa a crianccedila natildeo eacute mais nomeada desde o nascimento porque sua existecircncia real natildeo teraacute iniacutecio a natildeo ser com o estabelecimento e a celebraccedilatildeo da Alianccedila Apoacutes a Diaacutespora atribui-se agrave crianccedila um nome provisoacuterio seguindo os costumes locais mas seu nome verdadeiro permanece aquele que ela receberaacute no momento de sua entrada na Alianccedila (POZNANSKI 1978 p 120)
Quem nomeia a crianccedila na BH satildeo seus pais Entretanto essa eacute uma
atividade predominantemente individual Vejamos
Das 46 vezes em que o nominador eacute especificado ao menos 25 envolve matildees (p ex Gn 4125 1937-38 306-24 1Sm 120 2Sm 1224 1Cr 49) Dezoito envolve o pai (p ex Gn 5329 1615 3518 4151-52 Ex 183-4 1Cr 723 Os 14-9) Umas poucas envolvem uma relaccedilatildeo que natildeo a dos genitores como quando Homem nomeia Mulher (Gn 223) Adatildeo nomeia Eva (Gn 320) e as amigas de Noemi nomeiam a crianccedila de Rute como Obed (Rt 417) Que a maioria dos nominadores seja mulheres eacute atribuiacutevel ao menos em parte agrave intimidade da relaccedilatildeo entre matildees e filhos nos primeiros anos destes Esse foco sobre as mulheres natildeo se estende entretanto aos destinataacuterios dos nomes nas 46 nomeaccedilotildees mencionadas acima somente sete mulheres satildeo nomeadas duas dessas menccedilotildees envolvem a ldquoPrimeira Mulherrdquo (Gn 223 320) A nomeaccedilatildeo de crianccedilas do sexo feminino por seus genitores eacute registrada em apenas cinco exemplos no AT e somente uma vez eacute que uma matildee nomeia uma filha (Gn 3021) (BOHMBACH 2000 p 946)
Tanto em hebraico quanto no semiacutetico antigo podem ser individuadas duas
formas de nomes proacuteprios nomes proposicionais e nomes epiteacuteticos ou de designaccedilatildeo
(cf STAMM 2007 p 764) Os primeiros podem ser classificados como sentenccedilas
verbais ou nominais Haacute um grupo separado constituiacutedo por numerosos nomes curtos
Os nomes de proposiccedilatildeo satildeo originalmente pronunciados pelo pai ou matildee durante o
nascimento do filho (cf Rubem isto eacute reacute ucircbeumln ldquoVede um filhordquo Gn 2932) ou contecircm
suacuteplicas desejos e manifestaccedilotildees de confianccedila colocadas na boca do portador do nome
(cf acute eacutelicirc` eacutezer ldquomeu Deus eacute meu auxiacuteliordquo Gn 152) Em nomes de designaccedilatildeo o receacutem-
nascido recebe um nome correspondente ao dia de seu nascimento (cf bdquoaggay ldquoo
nascido em dia de Festardquo Ag 11) ou agrave sua posiccedilatildeo na famiacutelia como primogecircnito etc
Um dado curioso e singular eacute o fato de em Israel diferentemente do que ocorre
em sua vizinhanccedila naquela eacutepoca ldquonatildeo haacute nomes de pessoas que designem a seu
portador como filho ou filha de YHWHrdquo (VAN DER WOUDE 1985a c 1180) No
70
entanto somente para ficar em alguns exemplos no ambiente extraisraelita
encontramos Ben-`aumlnaumlt ldquofilho de Anatrdquo como designaccedilatildeo do hurrita Samgar (Jz 331
56) e Ben-haumldad ldquofilho de Adadrdquo como denominaccedilatildeo de trecircs reis de Aram (1Rs
151820 201ss 2Rs 13324-25)
O nome pode ser
um programa (ex Gn 175)50
ou ocasiatildeo para etimologias etioloacutegicas (ex Gn 2526 Ex 211) e
jogos de palavras (ex 1Sm 2525)
22 Circunstacircncias que determinam a nomeaccedilatildeo das pessoas
Vaacuterios fatores podem determinar a colocaccedilatildeo do nome numa crianccedila no
interior da cultura hebraica antiga (todo o conteuacutedo da seccedilatildeo abaixo foi extraiacutedo com
algumas poucas variaccedilotildees e acreacutescimos de DE VAUX 1958 p 75-77)
221 Circunstacircncias particulares do nascimento
I Circunstacircncia que concerne agrave matildee
1 Eva chama seu primeiro filho de Caim porque ela ldquoadquiriurdquo (qaumlnaumlh)51 um
homem Gn 41
2 O mesmo ocorre com os filhos de Jacoacute Gn 2931-3024
50 O papel de Abratildeo eacute alargado pela promessa divina que lhe havia sido feita em Gn 122 ldquoFarei de ti uma grande naccedilatildeo e te abenccediloarei tornarei grande o teu nome e tu seraacutes uma becircnccedilatildeordquo (trad pessoal) Como a vida e missatildeo de Abratildeo sofreram alteraccedilatildeo seu nome tambeacutem eacute mudado No entanto mais que alterado seu nome eacute ampliado com o acreacutescimo de uma siacutelaba ldquoO novo nome eacute uma variante dialetal de Abratildeo seguindo o padratildeo aramaico de expandir verbos fracos pela inserccedilatildeo de h de modo que a raiz r-w-m torna-se r-h-m assim como o hebraico r-w-ts torna-se r-h-dagger em aramaico e o hebraico b-w-sh torna-
se b-h- daggerh em aramaicordquo (SARNA 1989 p 360 nota 4 [Chapter 17]) Essa pode ser a explicaccedilatildeo para o
fato de ldquoas consoantes ABRHM [sejam] interpretadas como uma abreviaccedilatildeo para ABiR (poderoso) e Hamon (multidatildeo) + goyiM (naccedilotildees)rdquo (Op cit p 124) 51 A esta interpretaccedilatildeo do nome ldquoCaimrdquo oferecida por DE VAUX deve-se no entanto acrescentar outra mais plausiacutevel que nos eacute oferecida por Cassuto Segundo esse estudioso o significado primaacuterio para Qayin (qyn em aacuterabe) seria moldar dar forma modelar algo e o substantivo aacuterabe qaynun denota natildeo soacute ldquoum ferreiro um trabalhador em bronze e ferrordquo mas em geral algum ldquoartiacuteficerdquo que faz artigos dando forma agrave mateacuteria-prima Ainda segundo ele ldquoA palavra aramaica citada eacute reconheciacutevel precisamente por sua forma como um substantivo denominativo e em qualquer caso conota tambeacutem um refinador que trabalha em prata e ouro Em hebraico biacuteblico Qayin significa uma lsquoarmarsquo que foi dada forma pelo artesatildeo (2Sm 2116) A conclusatildeo a ser tirada de tudo isso eacute que o nome do primeiro filho de Adatildeo significa uma criatura [literalmente lsquoum ser formadorsquo]rdquo (CASSUTO 2005 p 197-198) A partir dessas explicaccedilotildees pode-se traduzir a parte final de Gn 41 do seguinte modo Eu criei um homem assim como o Senhor
71
Raquel que morreraacute no parto chama seu filho de Ben-Oni ldquofilho da
minha dorrdquo52 mas
Jacoacute muda este nome de mau pressaacutegio para Biniamin (ldquofilho da
direitardquo)53 Gn 3518
II Circunstacircncia que concerne ao pai eacute mais raro54
Moiseacutes chama seu filho Guershom porque ele o teve sendo guecircr (= residente
em terra estrangeira) Ex 222
III Circunstacircncia que concerne agrave proacutepria crianccedila
1 Jacoacute (heb ya`aacuteqoumlb) eacute chamado de ldquocalcanharrdquo55 porque no seio de sua
matildee ele segurou o calcanhar de seu irmatildeo gecircmeo (Gn 2526) o qual ele
suplantou `qaumlb (Gn 2736 Os 124)
2 Perez nasceu abrindo uma ldquobrechardquo pecircrets (Gn 3829)
222 Circunstacircncias externas contemporacircneas ao nascimento e simbolismo
1 A mulher de Fineias (heb PicircnHaumls) sabendo sobre a tomada da arca da
alianccedila pelos filisteus deu agrave luz um filho ao qual chamou Icabod (heb acuteicirc-
kaumlbocircd) que significa ldquoonde estaacute a gloacuteriardquo ou ldquosem gloacuteriardquo 1Sm 421
2 Os nomes simboacutelicos que Oseias e Isaiacuteas datildeo a seus filhos Os 1469 Is 73
83 tomando somente um exemplo a filha de Oseias Lo-RuHamaacute (ldquosem
52 Outra possibilidade de interpretaccedilatildeo para esse nome seria ldquofilho do meu vigorrdquo um eufemismo para ldquofilho de minha debilidaderdquo isto eacute ldquoseu nascimento drenou minhas forccedilasrdquo Nesse caso acuteocircn eacute tomado
no sentido de ldquovigorrdquo como encontrado em Gn 493 Dt 2117 Is 402629 Os 124 Sl 7851 10536 Joacute 4016 ldquoCuriosamente Onocirc eacute um nome de lugar no territoacuterio de Benjamim Esd 233 Ne 62 737 1135 1 Cr 812rdquo (SARNA 1989 p 368 nota 14 [Chapter 35]) 53 Aqui ldquodireitardquo eacute siacutembolo de destreza poder proteccedilatildeo Outro significado possiacutevel seria ldquofilho do sulrdquo isto eacute ldquoaquele que nasceu no sulrdquo Uma terceira possibilidade tomando yamin por yamim (dias) seria interpretar Benjamin como ldquofilho de minha velhicerdquo em Is 4420 ele eacute chamado de ldquouma crianccedila de sua velhicerdquo (cf SARNA 1989 p 243) 54 Pode-se encontrar exemplos mesmo na cultura sumeacuteria como eacute o caso de AAMUDAḪ (ldquoO-Pai-Correu-Para-O-Povordquo) certamente para anunciar o nascimento de seu filho (cf KRAMER 1963 p113) 55 ldquoPela etimologia popular o nome eacute derivado do hebraico ` akev lsquocalcanharrsquo Na realidade o hebraico
ya` akov deriva de uma raiz semiacutetica ` -k-v proteger Eacute abreviada de uma forma mais completa com um
nome divino ou epiacuteteto como seu sujeito Ya` akov-acute El Que El protejarsquo eacute um nome que tem aparecido
vaacuterias vezes em textos cuneiformes sobre uma vasta aacuterea O nome Jacoacute eacute assim na origem um apelo por proteccedilatildeo divina do receacutem-nascido ndash mais adequado para algueacutem que iria viver toda a sua vida agrave sombra do perigordquo (SARNA 1989 p 180)
72
piedaderdquo)56 recebe esse nome a fim de significar a falta de piedade que
Deus tem para com todo o reino do norte (Israel) daquele momento em
diante
3 Substituindo o nome de um parente falecido devido ao fato comum das
mortes prematuras de crianccedilas bem como de natimortos na Antiguidade
Oriental era comum encontrar nomes que eram concedidos a uma outra
crianccedila ldquosubstituindordquo aquele que havia sido dado agrave falecida No Egito em
Ugarit na Babilocircnia e em Israel isso ocorria No entanto haacute uma diferenccedila
importante enquanto que na Babilocircnia por exemplo essa categoria de
nomes se referia a um substituto para o defunto em hebraico a tendecircncia
em periacuteodos anteriores era falar do parente como ldquovivendo de novordquo No
periacuteodo poacutes-exiacutelio (seacutec VI AEC em diante) com possiacutevel influecircncia
babilocircnica encontram-se em hebraico nomes como estes ldquoAmdashiqsup1m (ldquoMeu-
Irmatildeo-Ressurgiurdquo) Jsup1shobplusmnam (ldquoO-Tio-Voltourdquo) Jsup1shibdegab (ldquoEle [YHWH]-
Trouxe-De-Volta-o-Pairdquo) Meshallcentmjsup1(mdashu) (ldquoYHWH-Deu-um-Substitutordquo)rdquo
(SEYMOUR 1983 p 113)
223 Influecircncia da aparecircncia fiacutesica da crianccedila satildeo raros Exemplos
Naor (heb naumlHocircr) o soprador roncador ndash Gn 1122
Careaacute (heb qaumlreumlordfH) o careca ndash 2Rs 2523
Paseaacute (heb paumlseumlordfH) o coxo ndash Ne 751
224 Nomes de animais
Satildeo frequentes especialmente no periacuteodo antigo Geralmente colocava-se o
nome do primeiro animal que se via no momento do nascimento da crianccedila como
ocorre ateacute hoje entre os beduiacutenos Exemplos
Raquel (heb raumlHeumll) ovelha ndash Tb 71
Deacutebora (heb Duumlboumlracirc) abelha ndash Gn 358
Jonas (heb yocircnacirc) pomba ndash Jn 11
Aiaacute (heb acuteayyacirc) abutre ndash Gn 3624
56 Uma interpretaccedilatildeo mais difundida atualmente concede a este nome o significado de ldquonatildeo amadardquo
do hebraico loumlacute ruHaumlmacirc Deus repotildee a condenaccedilatildeo embutida nesse nome atraveacutes de sua mudanccedila em
ruHaumlmacirc ldquoamadardquo (Os 23 cf 225) ndash cf MERCIER 2013 p 822
73
Sefufan (heb šuumlpucircpaumln) viacutebora ndash 1Cr 85
Caleb (heb Kaumlleumlb) catildeo ndash Nm 136
Naaacutes (heb naumlHaumlš) serpente ndash 2Sm 1725
Eglaacute (heb `eglacirc) novilha ndash 2Sm 35
Akbor (heb `akBocircr) rato ndash Gn 3639 etc
225 Nomes de plantas
Em pessoas esses nomes satildeo muito raros E o princiacutepio de colocaccedilatildeo desse tipo
de nome eacute semelhante ao anterior relativo ao de animais Exemplos
Elom (heb acuteecircloumln) carvalho ndash Gn 2634
Zetan (heb zecirctaumln) oliva ndash 1Cr 710
Coz (heb qocircc) espinho ndash 1Cr 48
Tamar (heb Taumlmaumlr) tamareira ndash Gn 3824
226 Nomes teofoacutericos57
Constituem a categoria mais importante dos nomes proacuteprios Alguns satildeo
formados com Baal que pode ser agraves vezes um epiacuteteto de YHWH porque baacuteal
significa ldquomestresenhorrdquo mas que eacute frequentemente o nome do deus cananeu A
proporccedilatildeo desses nomes eacute especialmente grande nos oacutestracos de Samaria que datam
de uma eacutepoca na qual a religiatildeo do Reino do Norte foi fortemente influenciada por
outras culturas Eles desaparecem apoacutes o periacuteodo monaacuterquico Sob a influecircncia do
javismo58 alguns desses nomes foram modificados nos textos sendo Baal substituiacutedo
57 O significado da palavra grega θεόφορος (teofoacuterico) eacute ldquotrazendo ou levando um deusrdquo (LIDELL SCOTT 1940) Portanto nomes teofoacutericos satildeo nomes derivados de um deus 58 ldquoCrenccedila monoteiacutesta dos judeus [sic] O termo natildeo aparece como tal (yahadut) na Biacuteblia Ele eacute atestado pela primeira vez no Segundo Livro dos Macabeus [81] e em Ester Rabba (711) Ele foi criado claramente pelos judeus helenistas (estes empregavam a forma grega dessa palavra ioudaismos) Ele exprime uma dimensatildeo ao mesmo tempo religiosa e nacional [] O judaiacutesmo foi frequentemente descrito como um lsquomodo de vidarsquo integral ou como uma lsquoculturarsquo Eacute uma santificaccedilatildeo de todos os aspectos da vida [] Nenhum detalhe da vida eacute deixado de lado por ele O judaiacutesmo remonta sua existecircncia a Abraatildeo que a tradiccedilatildeo judaica considera como o primeiro homem que chegou por proacutepria conta agrave ideia de monoteiacutesmo [] Durante os trecircs mil e oitocentos anos que decorreram desde o nascimento de Abraatildeo os dois elementos fundadores da histoacuteria judaica e do povo judeu satildeo a saiacuteda do Egito e o dom da Toraacute no Sinai A tradiccedilatildeo considera de fato o Sinai como o lugar no qual o povo judeus recebeu as leis que o devem reger [] O judaiacutesmo foi a primeira religiatildeo puramente monoteiacutesta [] O judaiacutesmo foi tambeacutem a ldquomatildeerdquo de duas outras religiotildees universais o cristianismo e o islamismordquo (JUDAIumlSME 1993 p 587)
74
por El ou YHWH ou ainda eles satildeo desfigurados pela leitura Ishbaal foi mudado em
Ishboshet Yerubaal em Yerubboshet Meribbaal em Mephiboshet
Os elementos teofoacutericos de ocorrecircncia mais frequente satildeo lae (acuteeumll) que ocorre
em cerca de 135 nomes da BH e o Tetragrama este uacuteltimo sempre usado em forma
abreviada a saber Ahygt (yuumlhocirc) e Ay (yocirc) no comeccedilo Why (yāhucirc) e hy (yāh) no final da
palavra Os nomes proacuteprios teofoacutericos compostos com o Tetragrama sempre
abreviado satildeo mais de 150 na BH Uma estatiacutestica comprova essa afirmaccedilatildeo isto eacute a
predominacircncia de nomes teofoacutericos javistas (com o Tetragrama)59 Segundo um
caacutelculo ldquode 466 indiviacuteduos portando nomes teofoacutericos (excluindo destes aqueles com
elementos acuteeumll e acuteeumllicirc que satildeo ambiacuteguos) do periacuteodo patriarcal ateacute a queda de Jerusaleacutem
413 (89 por cento) portavam nomes javistas e 53 (11 por cento) portavam nomes
claramente ou plausivelmente pagatildeosrdquo (TIGAY 1987 p 160) Inscriccedilotildees do oitavo
seacuteculo AEC ateacute a queda de Judaacute (587 AEC) tanto hebraicas como estrangeiras
referentes a Israel comprovam que dos 738 nomes de indiviacuteduos que nelas aparecem
351 quase a metade leva nomes com YHWH como seu elemento teofoacuterico outros 48
levam nomes com o elemento teofoacuterico acuteeumll (ldquoDeus deus a divindade Elrdquo) ou acuteeumllicirc (ldquomeu
deusrdquo) Dos nomes restantes a maioria natildeo menciona divindades Pode-se concluir a
partir disso a forccedila do javismo no coraccedilatildeo da sociedade israelita especialmente de
Judaacute (cf TIGAY 1987 p 161-178) E isso se comparado a informaccedilotildees disponiacuteveis da
onomaacutestica em povos vizinhos a Israel torna-se ainda mais evidente Tomemos como
exemplo a onomaacutestica amonita (Amon ocupava a Transjordacircnia nos tempos do antigo
Israel) cuja principal divindade era Milcom Essa divindade estaacute presente em apenas
nove nomes dos encontrados em inscriccedilotildees daquela eacutepoca Sendo que acuteeumll ocorre cento
e cinquenta vezes o qual era no mais das vezes um termo geneacuterico para deus (cf
HESS 2007 p 304) Outro estudo sobre a onomaacutestica amonita obteve como resultado
a incidecircncia dos seguintes nomes acute l ndash 48 vezes acute nrt ndash 1 vez b` l ndash 1 vez Hm ndash 1 vez
nny ndash 1 vez šmš ndash 1vez (cf HESS 2007 p 304) Os nomes pessoais amonitas compostos
de outras divindades superam em nuacutemero portanto aqueles com Milcom O mesmo
se observa quando satildeo examinadas coleccedilotildees de nomes pessoais edomitas moabitas e
59 Para uma anaacutelise mais completa dessa ocorrecircncia consultar JASTROW 1894 p 101-127
75
filisteias Pode-se concluir que ldquoo uso predominante e quase exclusivo do nome divino
YHWH na onomaacutestica do Israel Antigo sugere que essa divindade exerceu um papel
em Israel distinto de como as naccedilotildees circunvizinhas consideravam suas divindades
principais nos nomes pessoaisrdquo (HESS 2007 p 306)
O primeiro nome pessoal que foi definitivamente construiacutedo com o
Tetragrama eacute yuumlhocircšugraveordf` (Josueacute ndash Ex 179)
O nome da matildee de Moiseacutes yocirckebed (Joquebede - Ex 620) eacute mais antigo mas
eacute extremamente questionaacutevel se ele de fato conteacutem o nome divino biacuteblico quanto agrave
yuumlhucircdacirc (Judaacute ndash Gn 2935) eacute certo que natildeo conteacutem o nome divino (cf STAMM 2007
765)
Do periacuteodo dos Juiacutezes cinco nomes pessoais pertencentes a este grupo yocircacuteaumlš
(Joaacutes ndash Jz 611) yocirctaumlm (Jotatildeo ndash Jz 95) micirckaumlyhucirc (Micaiacuteas[u] - 1Rs 228) yocircnaumltaumln (Jocircnatas
ndash Jz 1830) e yocircacuteeumll (Joel ndash 1Sm 82) devem ser mencionados
Durante o periacuteodo monaacuterquico nomes desse grupo tornaram-se frequentes e
dominantes e ateacute mantiveram sua predominacircncia duradoura ndash juntamente com
aqueles contendo o teofoacuterico acuteeumll ndash depois acuteeumll eacute comum em nomes pessoais ateacute o iniacutecio
do periacuteodo monaacuterquico durante o qual ele cai em quase completo desuso
reaparecendo novamente e se tornando mais frequente a partir do seacutetimo seacuteculo e
permanecendo comum depois do Exiacutelio (cf STAMM 2007 p 766)
Uma curiosidade pode ser encontrada no nome do profeta Elias (1Rs 171
acuteēliyyaumlhucirc) o qual combina os nomes divinos El e YHWH na afirmaccedilatildeo ldquoDeus (ou ldquomeu
Deusrdquo ndash ElElicirc) eacute Yah[weh]rdquo
Eacute interessante constatar como o faz Johann Jakob Stamm que
O predicado dos nomes proposicionais verbais (teofoacutericos) eacute geralmente no tempo perfeito ou imperfeito Em contraste com o acaacutedio o uso do modo
imperativo eacute raro Nomes tardios tais como laeyfi[ ] (Asiel ldquoFaccedila-o oacute Deusrdquo)
e laeyzIx ] (Haziel ldquoOlha oacute Deusrdquo) podem ser considerados como pertencentes
ao primeiro e bEWargt (Ruacuteben ldquoVeja um filhordquo) como pertencente ao uacuteltimo
Nos nomes no tempo perfeito o tipo ldquopredicado-sujeitordquo (p exlaengttn gt Natanael) eacute segundo a sintaxe hebraica em geral mais frequente que o
inverso ou seja ldquosujeito-predicadordquo (p ex tnla Elnatatilde) O significado
desses nomes eacute expresso pelo uso do tempo passado eles significam accedilatildeo de graccedilas por um ato de caridade concedido pela divindade (p ex ldquoDeus deurdquo) Em nomes formados com o tempo imperfeito o tipo ldquosujeito-predicadordquo eacute
76
dificilmente representado Esse tipo aparece somente nos periacuteodos
monaacuterquico tardio e no poacutes-exiacutelico (~yqIszligyAhy gt Joaquim) De outro lado o tipo
ldquopredicado-sujeitordquo eacute muito mais frequente (hyngtAky gt Iehoniaacute) Alguns dos
nomes proacuteprios mais antigos satildeo deste tipo uns aparecem como formas
abreviadas natildeo contendo a palavra lae da forma completa Exemplos destes
satildeo qxcyI (Isaac) bqo[]y (Jacoacute) laerfyI (Israel) sEAy (Joseacute) e laemxrygt (Jerameel)
Estes tipos ocorrem mais frequentemente nos periacuteodos de Moiseacutes e dos Juiacutezes Ele se torna escasso durante o periacuteodo daviacutedico quase desaparecendo mas recuperando espaccedilo pouco antes dos periacuteodos exiacutelico e poacutes-exiacutelico (STAMM 2007 p 764-765)
Quais eram os motivos que levavam os pais israelitas a incluiacuterem alusotildees a
Deus nos nomes que davam a seus filhos Podemos identificar as seguintes razotildees
principais60
1ordf Desejo dos pais em exprimir seu agradecimento a Deus por dar-lhes aquele filho
receacutem-nascido Para tanto costuma-se tomar a raiz -t-n (n ndash t ndash n dar) A partir
daiacute surgem nomes como nuumltanacuteeumll (Natanael Deus tem dado ou Daacutediva de Deus Nm
18) yuumlhocircnaumltaumln (Jocircnatas YHWH deu ou Dado por YHWH 1Sm 146 ndash forma
abreviada yocircnaumltaumln 1Sm 132) nuumltanyaumlhucirc (Netanias YHWH deu ou Daacutediva de
YHWH Jr 3614) e acuteelnaumltaumln (Elnatan El [Deus] deu ou Daacutediva de El [Deus] 2Rs 248)
Ideia anaacuteloga encontra-se no ato de Lia ao nomear o seu quarto filho yuumlhucircdacirc (Judaacute
AgradeccediloLouvo a YHWH Gn 2935) Esse nome funde w-h-y (as primeiras trecircs letras
do Tetragrama) com um derivado de hdy (ldquoagradecerrdquo) do qual a primeira letra
torna-se um vav e funde-se com o vav do Tetragrama
2ordf Nomes que expressam o fato de Deus ter dado aquele filho por sua graccedila ou
exprimindo o desejo de que ele possa favorecer essa crianccedila no futuro Emprega-
se a raiz -n-x (graccedila favor ou conceder uma graccedila) Essas ideias estatildeo na base de
nomes teofoacutericos tais como acuteelHaumlnaumln (Elanan El (Deus) eacute gracioso 2Sm 2119)
Haacutenanacuteeumll (Hananel El (Deus) eacute gracioso Jr 3138) Haacutenanyaumlhucirc (Hananias YHWH eacute
gracioso Jr 3612 ndash forma abreviada Haacutenanyacirc Jr 281) yuumlhocircHaumlnaumln (Joanan YHWH
agracioumostrou favor Esd 106 ndash forma abreviada yocircHaumlnaumln Jr 4016)
3ordf Para denotar que ldquoo Senhor eacute Deusrdquo ou ldquoo Senhor eacute meu Deusrdquo haacute o costume de
combinar os dois nomes hebraicos da divindade (El e YHWH) Como exemplo
60 Cf HABER 2001 p 57-59
77
temos acuteeumlliyyaumlhucirc (Elias O Senhor (El) eacute Deus (YHWH) 1Rs 171 ndash forma abreviada
acuteeumlliyyacirc 2Rs 13) yocircacuteeumll (Joel YHWH eacute Deus (El) Jl 11) e acuteeacutelicircacuteeumll (Eliel Meu Deus (El)
eacute Deus (El) 1Cr 619)
4ordf Indicam as esperanccedilas dos genitores quanto ao futuro de seus filhos O verbo ~wq
(na forma hifil ~yqiy erguer levantar pocircr-se de peacute) transmite a ideia ldquo(Que) Deus
eleveestabeleccedila (esse filho)rdquo como eacute o caso em yuumlhocircyaumlqicircm (Jeoaquim YHWH
levantaconfirmaestabelece 2Rs 2334 ndash forma abreviada yocircyaumlqicircm Ne 1210) O
verbo wk (na forma hifil ykiy pocircr estabelecer sustentar dispor assentar instituir)
transmite a ideia ldquo(Que) o Senhor fortaleccedilaestabeleccedila (esse filho)rdquo Encontramos
essa noccedilatildeo em nomes como yuumlhocircyaumlkicircn (Joaquim YHWH exaltalevantaestabelece
2Rs 246 ndash forma abreviada yocircyaumlkicircn Ez 12) O nome yuumlHezqeumlacutel (Ezequiel Ez 13)
denota o desejo la-qzxy (ldquoQue Deus fortaleccedila-[o]rdquo) O nome do profeta Jeremias
(heb yirmuumlyaumlhucirc Jr 11 ndash forma abreviada yirmuumlyacirc Jr 271) denota algo
semelhante ldquoQue o Senhor (YHWH) erga[-o]rdquo
5ordf Denotam a paternidade a proteccedilatildeo e salvaccedilatildeo de Deus Emprega-se nesse caso o
substantivo com sufixo pronominal yba (ldquomeu Pairdquo) Por exemplo acuteaacutebicircacuteeumll (Aviel
Meu pai eacute Deus (El) ou Deus (El) eacute pai 1Sm 91) acuteaacutebiyyaumlhucirc (Abias YHWH eacute pai ou
YHWH eacute meu pai 2Cr 1320 ndash forma abreviada acuteaacutebiyyacirc 1Sm 82) e yocircacuteaumlb (Joab
YHWH eacute pai 1Sm 266) Outros nomes usam a raiz [vy (ajudar salvar) que significa
ldquoDeus eacute o Salvadorrdquo ou expressa um desejo ldquo(Que) Deus ou o Senhor ajude ou
salverdquo A esse grupo de nomes teofoacutericos pertencem entre outros acuteeacutelicircšauml` (Eliseu
Deus (El) eacute salvaccedilatildeo ou Meu Deus (El) eacute salvaccedilatildeo 1Rs 1916) yuumlša`yaumlhucirc (Isaiacuteas YHWH
eacute salvaccedilatildeo Is 11 ndash forma abreviada yuumlša`yacirc Esd 87) Pode ocorrer da primeira
letra da raiz (yod) tornar-se um vav como nos seguintes casos yuumlhocircšugraveordf` (Josueacute
YHWH eacute salvaccedilatildeo Ex 179) e hocircšeumlordf` (Oseias Nm 138)
6ordf Expressando a esperanccedila de que Deus fizesse seu povo retornar do exiacutelio
babilocircnico para a sua terra Usa-se o verbo na forma hifil byvy da raiz bwv (ldquotrazer
de volta repatriarrdquo) A esse grupo pertence o nome acuteelyaumlšicircb (Eliasibe Deus (El)
traraacute de volta Esd 106)
78
7ordf Diz-nos algo sobre a proacutepria divindade seus atributos Pertencem a essa
categoria nomes tais como
yuumlhocircraumlm (Jeoratildeo YHWH eacute altoexaltado 1Rs 2251 ndash o nome incorpora o adjetivo
~r ldquoaltordquo) forma abreviada yocircraumlm (2Sm 810)
Guumldalyacirc (Gedalias YHWH eacute grande Jr 405 ndash assume o adjetivo lwdg ldquogranderdquo)
Gabricircacuteeumll (Gabriel Dn 816) pode significar ldquoDeus eacute a minha fortalezardquo
assumindo a raiz rbg (forccedila poder valentia)
Daumlniyyeumlacutel (Daniel 1Cr 31) refere-se a Deus como sendo ldquoo Juizrdquo ou ldquofazendo
justiccedilardquo (incorporando a raiz yd julgar sentenciar juiz) podendo ser
interpretado como ldquoDeus (El) eacute a minha justiccedilardquo
ruumlpaumlacuteeumll (Rafael 1Cr 267) fundi o aleph de la e de apr (curar cura) conotando
que ldquoDeus (El) curardquo ou ldquoDeus curaraacuterdquo talvez alguma doenccedila da crianccedila
8ordf Expressatildeo de agradecimento a Deus por sua ajuda no sentido de obter esse filho
ou por outros favores recebidos dele A raiz rz[ (ajudar socorrer proteger) eacute
empregada nesses casos Ela pode conotar tambeacutem uma esperanccedila de que no
futuro Deus venha ajudarproteger essa crianccedila Alguns exemplos de nomes com
esse sentido acuteel`aumlzaumlr (Eleazar Deus (El) ajudousocorreu ou Deus (El)
ajudaraacutesocorreraacute Ex 623) acuteeacutelicirc`ezer (Eliezer mesmo sentido do anterior Gn 152)
`aacutezaryaumlhucirc (Azarias 1Rs 42 ndash forma abreviada `aacutezaryacirc 2Rs 1421) `azricircacuteeumll (Azriel
mesmo significado do anterior Jr 3626 ndash forma abreviada `aacutezaracuteeumll Esd 1041)
9ordf Manifestando gloacuteria e louvor a Deus Essa motivaccedilatildeo comparece em um dos
poucos exemplos de nomes teofoacutericos dados a filhas Um deles pode ser yocirckebed
(Joquebede Ex 620) em que as trecircs consoantes finais dbk talvez derivem de dwbk
(ldquogloacuteriardquo) formando um nome com o significado de ldquoGloacuteria ao Senhor (YHWH)rdquo
Outro nome seria `aacutetalyacirc (Atalia 2Rs 111) cujo significado pode ser hyl-t[
(ldquoTempo para o Senhorrdquo) mas haacute tambeacutem outras possibilidades tais como ldquoO
Senhor (YHWH) eacute exaltadordquo61 ou ldquoO Senhor (YHWH) eacute soberanordquo62
61 Cf AUNEAU 2013 p 193 62 Cf SOLVANG 2006 p 340
79
227 Outros fatores determinantes na escolha do nome
a) Nomes de parentes
Especialmente em tempos mais recentes a partir sobretudo do seacutec I AEC o
mais importante era que a crianccedila recebesse o nome do pai do avocirc ou de algum outro
parente Esse costume predominava no iniacutecio da era comum (EC) como se pode
perceber pelo espanto das amigas de Isabel quando esta escolhe o nome de ldquoJoatildeordquo para
o seu filho elas afirmam ldquoNatildeo haacute ningueacutem de tua parentela que seja chamado por
este nomerdquo (Lc 159-61) Outra evidecircncia nos vem tambeacutem no primeiro seacuteculo da EC
no registro dos descendentes de Hillel63 importante saacutebio e mestre judeu bem como
codificador da Mishnaacute
Em sua famiacutelia durante vaacuterios seacuteculos o neto geralmente porta o mesmo nome do avocirc a genealogia segue a ordem em todos os casos de pai para filho Hillel Simatildeo Gamaliel Simatildeo Gamaliel Simatildeo Judaacute Gamaliel Judaacute Gamaliel Judaacute Hillel Gamaliel Judaacute Gamaliel Podemos encontrar provavelmente o mesmo haacutebito um pouco mais cedo no nome de Jesus o filho de Sirac que era ldquoneto de Jesus do mesmo nome que elerdquo [Eclesiaacutestico ou Siraacutecida primeiro proacutelogo] (GRAY 1896 p 3)
A pessoa continua viva em seu nome em primeiro lugar por passar seu nome
adiante aos descendentes (cf Gn 4816 Nm 274 Eclo 4019 tambeacutem Dt 255-6 Rt 45)
63 Hillel o Anciatildeo viveu no iniacutecio do 1ordm seacuteculo EC e foi um antepassado do movimento rabiacutenico Hillel
natildeo foi chamado pela designaccedilatildeo posterior rabi mas foi intitulado ldquoanciatildeordquo (zaqen ןז como eram seus ( ק
contemporacircneos Shammai e Gamaliel Seacuteculos mais tarde muitas lendas rabiacutenicas circularam sobre Hillel como um exemplo moral e um pai fundador do movimento rabiacutenico O prestiacutegio de Hillel era tal que quando o Patriarcado Judaico foi fundado a dinastia Gamaliel traccedilou sua linhagem ateacute ele Mais tarde aquela ldquogenealogiardquo foi estendida ateacute o rei Davi O Talmude Yerushalmi imaginou Hillel como um dos primeiros Patriarcas (y Pesah 61) e como o autor de certas regras hermenecircuticas usadas posteriormente pelos rabinos No Talmude Babilocircnico (b Shabb 31a) outro ciclo de histoacuterias eacute contado agrave maneira de anedota greco-romana que apresenta Hillel como um criador da doutrina das duas Toraacutes uma escrita e outra oral Esses mesmos contos atribuem a Hillel uma versatildeo da Regra de Ouro (ldquoo que eacute odioso a vocecirc natildeo faccedila ao seu colegardquo) [] Em vaacuterias dessas narrativas Hillel eacute apresentado como o protagonista sempre amaacutevel da histoacuteria enquanto seu colega Shammai eacute o antagonista grosseiro A abundacircncia de narrativas didaacuteticas fantasiosas sobre Hillel faz suspeitar da atribuiccedilatildeo de inovaccedilotildees legais a ele Alega-se que Hillel decretou a prozbul (perozbol um dispositivo legal heleniacutestico pelo qual os tribunais rabiacutenicos poderiam contornar o perdatildeo biblicamente ordenado de empreacutestimos no ano
sabaacutetico Mishnah Eduyyot (caps 1 4 5) enumera dezenas de desentendimentos entre Hillel e Shammai
e entre as escolas ou casas desses saacutebios Em algumas dessas divergecircncias a casa de Shammai eacute apresentada como mais branda em outros a casa de Hillel [] Permanece extraordinariamente difiacutecil recuperar as tradiccedilotildees originais por traacutes desses textos posterioresrdquo (VISOTZKY 2007 p 826)
80
mas tambeacutem mediante um lugar na memoacuteria permanente do mundo posterior (cf 2Sm
1818 Sl 7217 Pr 107 Eclo 399-11 4111-13 447-14)
b) Nomes de pessoas famosas
Esse costume parece ter se tornado predominante somente do periacuteodo grego
em diante (seacutec IV AEC) Conferia-se agrave crianccedila um nome de algueacutem famoso em alguns
casos judeus em outros estrangeiros Em relaccedilatildeo a nomes judaicos famosos o texto
de Eclesiaacutestico (Siraacutecida) capiacutetulo 44 em diante especialmente 441-2 pode ter exercido
uma forte influecircncia e motivaccedilatildeo nesse sentido Outro costume intimamente
relacionado a este foi o de nominar crianccedilas segundo o nome de pessoas que haviam
feito algum favor aos seus pais (cf GRAY 1896 p 7)
23 A mudanccedila de nome na Biacuteblia Hebraica
Na BH a mudanccedila de nome eacute um fato muito especial e marca uma afirmaccedilatildeo
de poder daquele que faz mudar o nome de algueacutem Isso porque ldquoDevido um nome
ser tatildeo inextricavelmente ligado ao que eacute nomeado se ocorre uma mudanccedila nas
condiccedilotildees de uma pessoa ou lugar o nome deve ser alterado de modo a refletir a
situaccedilatildeo nova e diferenterdquo (BOHMBACH 2000 p 945)
Nesse sentido esta argumentaccedilatildeo de Jacques Derrida apesar de natildeo referir-se
agrave BH nem agraves tradiccedilotildees semiacuteticas serve como uma paraacutefrase explicativa para a
mudanccedila de nome
Como se fosse preciso ao mesmo tempo salvar o nome e tudo salvar exceto o nome salvo o nome como se fosse preciso perder o nome para salvar aquilo que porta o nome ou aquilo na direccedilatildeo do qual se dirige por meio do nome Mas perder o nome natildeo eacute incriminaacute-lo destruiacute-lo ou feri-lo Pelo contraacuterio eacute simplesmente respeitaacute-lo como nome Isso quer dizer pronunciaacute-lo o que equivale a atravessaacute-lo na direccedilatildeo do outro que ele nomeia e que o porta (DERRIDA 1995 p 41)
Mas alterar o nome de algueacutem pode ldquotambeacutem indicar uma espeacutecie de adoccedilatildeo
na famiacutelia que eacute equivalente a conferir-lhes uma grande honrardquo (EISSFELDT 1968 p
70) Tal ldquoadoccedilatildeordquo poderia trazer consigo a ideia de responsabilidade bem como
heranccedila
231 Alteraccedilotildees de nomes impostas por um senhor
81
Exemplos
o Faraoacute daacute a Joseacute o nome de caumlpnat Pa`neumlordfH que em egiacutepcio significa ldquoDeus
disse ele estaacute vivordquo ou ldquoCriador da vidardquo (Gn 4145)
pela vontade dos chefes dos eunucos Daniel (heb Daumlniyyeumlacutel ndash Deus eacute meu
juiz) Ananias (heb Haacutenanyacirc ndash YHWH eacute misericordioso clemente) Misael
(heb micircšaumlacuteeumll ndash Quem eacute como Deus) e Azarias (heb aacutezaryacirc ndash YHWH ajudou
socorreu) se tornam respectivamente Baltassar (heb Beumlldaggeruumlšaacuteccar [nome
acaacutedio] ndash Proteja a vida do rei ou Proteja sua vida) Sidrac (heb šadrak [nome
acaacutedio] ndash DomiacutenioOrdem de Aku [uma divindade lunar mesopotacircmica])
Misac (heb mecircšak [nome acaacutedio] ndash Quem eacute como Aku) e Abede-Nego (heb
`aacutebeumld nuumlgocirc [nome acaacutedio] ndash Servo de Nabu [divindade pessoal de
Nabucodonosor) ndash Dn 16-7 (cf DECLAISSEacute-WALFORD 2009 p 208)
Quando o Faraoacute institui Eliaquim (heb acuteelyaumlqicircm ndash Deus estabeleceu ou Deus
se levantou) rei de Judaacute ele lhe impocircs o nome de JeoiaquimJoaquim (heb
yuumlhocircyaumlqicircm ndash YHWH confirma estabelece ou YHWH ergue) 2Rs 2334
da mesma forma Nabucodonosor muda para Zedequias (heb cidqiyyaumlhucirc
ndash YHWH eacute a minha justiccedila ou YHWH eacute justo) o nome de Matanias (heb
maTTanyacirc ndash Daacutediva de YHWH) que ele estabeleceu sobre o trono 2Rs 2417
Tanto no exemplo anterior quanto neste a mudanccedila de nome tem a ver
com a passagem de governos independentes a governos vassalos da
Babilocircnia
232 Alteraccedilotildees de nomes impostas por uma intervenccedilatildeo divina
Abratildeo (heb acuteabraumlm ndash Pai elevadoexaltado) e Sarai (heb Saumlray ndash Princesa ou
Minha princesa ndash forma mais primitiva de Sara) cujos nomes satildeo mudados
em Abraatildeo (heb acuteabraumlhaumlm ndash Pai de uma multidatildeopovo) e Sara (heb Saumlracirc -
Princesa) Gn 17515 os quais satildeo outras formas dialetais dos mesmos
nomes mas de acordo com as ideias sobre o valor do nome que foram
expostas acima essas mudanccedilas marcam uma mudanccedila no destino cf Gn
176 e 16
82
Jacoacute (heb ya`aacuteqoumlb ndash O que segurapega o calcanhar ou Suplantador Gn 2526)
que recebe o nome de Israel (cujo significado seraacute objeto de tratativa
posterior) em uma luta com um ser desconhecido Gn 3229 cf 3510 Essa
nomeaccedilatildeo eacute singular por causa de uma seacuterie de perguntas e respostas que
a acompanha (cf Gn 3227-31)
Pasur (heb pašHucircr) cujo significado eacute controverso mais recentemente foi
tomado como sendo de origem egiacutepcia ldquoo filho de Horusrdquo Foi alterado a
mando de YHWH para maumlgocircr missaumlbicircb que eacute traduzido por ldquoTerror-Por-
Todos-Os-Ladosrdquo (Jr 203)
Haacute uma menccedilatildeo agrave mudanccedila do nome do proacuteprio Israel quando chegar o
cliacutemax da histoacuteria YHWH chamaraacute Israel por um novo nome ignomiacutenia e
miseacuteria seratildeo lanccediladas fora com o nome antigo Vejamos Is 622
נו ב ק י יהוה י ר פ ש אש ם חד רא לך ש ך וק ים כבוד ך וכל־מלכ דק ם צ 64וראו גוי
233 Alteraccedilatildeo de nome realizada pela proacutepria pessoa
Quando Naomi retorna a Beleacutem apoacutes ter perdido o seu marido e seus filhos
enquanto estava na terra estrangeira de Moab ela pede para natildeo mais ser chamada de
Naomi (heb no`oacutemicirc) que significa ldquoAgradaacutevelrdquo ao contraacuterio ela deseja ser conhecida
por Mara (heb maumlraumlacute) ldquoAmargardquo (heb Rt 120)
Essa mudanccedila de nome daacute agrave pessoa uma nova identidade uma vez que o
nome proacuteprio passava a representar um traccedilo marcante de sua identidade Aliaacutes a
mudanccedila de nome ou o novo nome ldquomarca uma transformaccedilatildeo na vida do iniciado
ele eacute lsquorecriadorsquo por assim dizer e torna-se um novo homemrdquo (PORTER 1990 p 7)
O Talmude declara que entre as ldquoquatro coisas que anulam a desgraccedila do
homemrdquo encontra-se a mudanccedila de nome (Tratado do Talmude Babilocircnico Roš
Haššana 16b)
Na Idade Meacutedia essa tradiccedilatildeo desenvolveu o costume de mudar ou melhor
dar um nome adicional ao nome de uma pessoa que estava gravemente enferma ou
64 Traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem ldquoEntatildeo as naccedilotildees veratildeo tua justiccedila e todos os reis tua gloacuteria Receberaacutes nome novo que a boca de Iahweh designaraacuterdquo
83
sofrera algum outro infortuacutenio na crenccedila de que o Anjo da Morte seria confundido em
consequecircncia do novo nome
Geralmente esse novo adjungido era escolhido abrindo a Biacuteblia ao acaso e
selecionando algum nome que laacute aparecesse exceto se fosse de maacute reputaccedilatildeo (NAME
1972 c 802)
Genericamente falando o texto biacuteblico natildeo oferece razotildees expliacutecitas a respeito
de porque as pessoas ou lugares satildeo chamados como elas satildeo Em menos de uma
centena de casos nos satildeo dadas informaccedilotildees sobre os nomes ou de pessoas ou lugares
em que circunstacircncias ocorreram a nomeaccedilatildeo e qual era seu significado
Apesar do tamanho modesto deste grupo ainda pode-se concluir que do
ponto de vista biacuteblico um nome natildeo eacute meramente um roacutetulo aleatoacuterio e arbitraacuterio de
identificaccedilatildeo mas sim que haacute um significado por traacutes de um nome que se daacute e
algumas vezes o autor ajusta-o ao texto como uma parte integrante da textura literaacuteria
(cf GARSIEL 1991 p 14)
3 Etiologias biacuteblicas
Na BH haacute etiologias etimoloacutegicas na colocaccedilatildeo de nomes isso devido ao fato
de o nome ser derivado de um acontecimento que ocorreu na eacutepoca do nascimento de
uma pessoa ou da fundaccedilatildeo de uma cidade ou de um santuaacuterio ou tambeacutem de uma
frase pronunciada na ocasiatildeo ou de qualquer outro acontecimento Na realidade o
nome eacute quase sempre o primaacuterio o relato vinculado a ele ou a explicaccedilatildeo o derivado
Outro fator que determina a busca de sentido ao nomear uma pessoa ou lugar
na BH eacute o ldquofato de que os nomes hebraicos fizessem sentido e que esse sentido fosse
deliberado e solene eacute uma das razotildees baacutesicas para que os israelitas desenvolvessem
um forte sentido etimoloacutegico que se expressa em muitos lugares do Antigo
Testamento onde algo eacute dito sobre o nomerdquo (BARR 1970 p 15)
Reproduzo aqui uma siacutentese dessas etiologias etimoloacutegicas que se encontram
na BH
Encontram-se testemunhos de etiologias do nome sobretudo em Gn (mais de 40 vezes) ademais em Ex e Nm (12 vezes) Js (2 vezes) Jz (5 vezes) 1Sm (5 vezes) 2Sm (3 vezes) 1Rs (1 vez mas problemaacutetico 913) 2Rs (1 vez
84
igualmente problemaacutetico 147) 1Cr (5 vezes) 2 Cr (1 vez) Rt (1 vez) e Est (1 vez) Entre as muacuteltiplas formulaccedilotildees de etiologias etimoloacutegicas na imposiccedilatildeo do nome podem-se distinguir duas formas principais 1) ldquoele o chamou assim e assim dizendo (pensando)rdquo ao que segue a etiologia etimoloacutegica (cf Ex 222) Esta forma conservou-se completa somente em casos isolados porque alguns elementos se podem suprimir cf as formulaccedilotildees de Gn 320 529 2622 3149 etc 2) apoacutes o relato de um acontecimento segue como conclusatildeo a imposiccedilatildeo do
nome ldquopor isso (`al-kēn) se chama (aquela cidade) assim e assimrdquo (Ex 1523
acrescentando agraves vezes ldquoateacute o dia de hojerdquo (Js 726) Esta formulaccedilatildeo costuma ampliar-se indicando outra vez o motivo etimoloacutegico (Gn 119) Enquanto a forma 1 eacute caracteriacutestica das etiologias de nomes de pessoas a forma 2 refere-se com poucas exceccedilotildees (Gn 2530 2934-35 305-6) somente a determinadas cidades A imposiccedilatildeo do nome com etiologia etimoloacutegica tem seu acircmbito vital na tradiccedilatildeo das sagas Por isso as etiologias de nomes de pessoas se encontram sobretudo em Gn onde diferentemente de todos os outros livros do AT se datildeo explicaccedilotildees do nome de todas as pessoas mais importantes As etiologias de nomes de lugares se referem a lendas cultuais (Gn 2214 Moriaacute Gn 2810ss Betel Gn 3231 Penuel etc) ou a cidades que tiveram alguma importacircncia na histoacuteria das tribos de Israel antes ou depois da conquista da terra (Ex 1523 Mara 177 Massa e Meriba Js 726 Acor etc) (VAN DER WOUDE 1985a c 1185-1186)
Pode-se encontrar um modelo similar na nomeaccedilatildeo de pessoas ldquo Em vaacuterios
textos biacuteblicos uma explicaccedilatildeo eacute anexada agrave presente nomeaccedilatildeo por palavras de
conjunccedilatildeo que criam uma proposiccedilatildeo causal ou relativardquo (GARSIEL 1991 p 16) Veja-
se o exemplo abaixo extraiacutedo de Gn 2932
bEWargt Amv arqTiw Be dlTew hale rhTw
yyIngt[B hwhygt har-yKi hrma yKi
`yviyai ynIbhaylt hT[ yKi
Traduccedilatildeo
E Leacutea engravidou e deu agrave luz um filho e ela chamou seu nome Ruben
pois ela disse Por certo o Senhor olhou minha afliccedilatildeo
pois agora meu esposo me amaraacute
Como bem observa Moshe Garsiel neste exemplo ldquoduas proposiccedilotildees causais
estatildeo unidas agrave proposiccedilatildeo principal pela partiacutecula conjuntiva kicirc (pois porque) A
ligaccedilatildeo entre o nome Ruben e as razotildees dadas satildeo fundamentadas na similaridade
sonorardquo (GARSIEL 1991 p 16) Na primeira proposiccedilatildeo subordinada as palavras
raumlacuteaumlh Buuml`onyicirc (olhou minha afliccedilatildeo) conteacutem quatro consoantes (r acute b n) encontradas
85
tambeacutem em Ruben (racute wbn) a palavra yacute hbny (me amaraacute) na proposiccedilatildeo seguinte
conteacutem trecircs dessas consoantes (acute b n) O efeito sonoro eacute reforccedilado pelo som das
consoantes b n as quais tambeacutem constituem a palavra hebraica para ldquofilhordquo Este eacute um
excelente exemplo de como a sonoridade pode ajudar a colocar uma adequada ecircnfase
sobre o tema principal isto eacute o nascimento do primogecircnito da famiacutelia
Outro exemplo devido suas expressotildees que se aproximam muito do texto que
seraacute objeto de anaacutelise mais detalhada nos proacuteximos capiacutetulos (Gn 3223-33) merece ser
trazido aqui Como observa novamente Moshe Garsiel algumas vezes as palavras
conjuntivas satildeo omitidas O narrador provavelmente supotildee que a ligaccedilatildeo entre o
nome e sua explicaccedilatildeo seja bastante clara sem a regular foacutermula causal ou inferencial
este eacute o caso na nomeaccedilatildeo de outro filho de Jacoacute (Gn 308)
~yhioacutela ylersquoWTpn lxeordfr rmaToaringw
yTilko+y-~G ytiTHORNxoa]-~[i yTilTsup2pnI
`yli(Tpn Amagravev aricircqTiw
Traduccedilatildeo
E Raquel disse Por lutas (nptwly) de Deus
lutei (nptlty) com minha irmatilde e eu prevaleci
e ela chamou seu nome Neftali (nptly)
Neste caso ldquoa equaccedilatildeo sonora entre o nome e os componentes na declaraccedilatildeo
da matildee constituem a ligaccedilatildeo entre nome e explicaccedilatildeo sem a necessidade de palavras
conjuntivasrdquo (GARSIEL 1991 p 17) Aleacutem disso o contexto mais amplo que lida com
os nomes dos outros filhos de Jacoacute e as razotildees para eles nos orienta a procurar uma
explicaccedilatildeo neste caso tambeacutem Por isso eacute prudente observar que
Deve-se fazer uma clara distinccedilatildeo entre etimologia linguiacutestica e as explicaccedilotildees de nomes feitas pelos textos biacuteblicos Enquanto um etimologista traccedilaria a origem dos nomes biacuteblicos agrave luz de paralelos em outras culturas e analisaacute-los-ia de acordo com as regras da formaccedilatildeo linguiacutestica dinacircmica os escritores biacuteblicos na maioria dos casos fornecem explicaccedilotildees que satildeo baseadas na suposiccedilatildeo de que o nome eacute uacutenico e que foi dado de acordo com uma ocasiatildeo especiacutefica [] A liberdade tomada pelos autores biacuteblicos nessas explicaccedilotildees tem sido chamada por alguns estudiosos de ldquoetimologia popularrdquo Tal definiccedilatildeo natildeo eacute correta as explicaccedilotildees funcionam como um artifiacutecio literaacuterio e satildeo projetadas para enriquecer a unidade literaacuteria O que noacutes vemos aqui natildeo eacute absolutamente uma popular e superficial interpretaccedilatildeo com base em uma falta de conhecimento mas sim um desvio deliberado das regras e normas
86
linguiacutesticas do tempo aplicado como uma teacutecnica por narradores sutis a fim de fazer uma observaccedilatildeo (GARSIEL 1991 p 17-18)
A BH aliaacutes realiza jogos de palavras frequentemente ao fornecer explicaccedilotildees
etimoloacutegicas de nomes proacuteprios Somente a tiacutetulo de exemplificaccedilatildeo ndash uma vez que
esse assunto mereceraacute uma abordagem posterior mais aprofundada em nosso estudo
ndash podemos citar
acuteaumldaumlm (Adatildeo) - acuteaacutedaumlmacirc (terra) em Gn 27
bdquoawwacirc (ldquoEvardquo) como ldquomatildee de todos os viventesrdquo (Haumly) em Gn 320
qayin (Caim) - qaumlnicircticirc (verbo conseguir adquirir) Gn 41
noumlordfH (Noeacute) - yuumlnaHaacutemeumlnucirc (verbo confortaraacute consolaraacute) Gn 529
fazendo alusatildeo a nomes jaacute existentes que podem conservar como tais o
valor de palavras-tema temos Paumlnicircm (Gn 3221 Paumlnaumlyw ndash sua face sua
fronte diante dele) e Puumlnucircacuteeumll (Gn 3231-32 que significa a face de Deus [El] ou
perante Deus [El])
expressotildees ambivalentes jogando com a expressatildeo ldquoelevaccedilatildeo da cabeccedilardquo
no sentido de restabelecimento no cargo e o nome Faraoacute par`ograve acuteet-roumlacutešeordmkauml
(Faraoacute levantaraacute a tua cabeccedila Gn 4013)
no sentido de execuccedilatildeo capital encontramos mais adiante (yiSSaumlacute) par`ograve
acuteet-rouml| šuumlkauml (Faraoacute [tiraraacute] a tua cabeccedila Gn 4019 cf Gn 402022)
Nomes proacuteprios de deuses inimigos e lugares satildeo deformados como se
constata em ldquonomes de deuses Boumlordmšet lsquoignomiacuteniarsquo em lugar de Baumlordm al cf Jr 324 1113
Os 910 nomes pessoais acuteicircš-Boumlordmšet em 2Sm 314-15 em vez de Isbaal 1Cr 833 Muumlpigraveboumlordmšet
em 2Sm 218 em vez de Meribaal 1Cr 834 940 possivelmente haacute tambeacutem uma
vocalizaccedilatildeo tendenciosa (por meio de Boumlordmšet) nos nomes divinos `ašToumlordmret (Astarte) e
Moumlordmlek (Meleque como epiacuteteto de Baal)rdquo (VAN DER WOUDE 1985a c 1186)
87
CAPIacuteTULO 3
GEcircNESIS 3223-33 VISITANDO O TEXTO E A SUA INTERTEXTUALIDADE
1 O texto em si
Primeiramente reproduzo abaixo o texto tal como se encontra na Biacuteblia
Hebraica em versatildeo criacutetica (ELLIGER RUDOLPH 1967-1977) tambeacutem conhecido
como texto massoreacutetico65
wytecircxopvi yTeaumlv-tawgt lsquowyvn yTeUcircv-ta xQuacuteYIw aWhordf hlygtLaringB Ÿ~qYaringw 3223 `qBo)y rbiuml[]m taeTHORN rboecirc[]Yw) wyd_lygt rfszlig[ dxicirca-tawgt
`Al-rva]-ta rbEszlig[]Yw) lxN+h-ta ~rETHORNbi[]Y)w ~xeecircQYIw 3224
`rxV(h tAliuml[] d[THORN AMecirc[i lsquovyai qbeicircaYEw AD=bl bqoszlig[]y rtEiumlWYIw 3225
bqoecirc[]y ryltaring-K lsquo[qTersquow Ak=rEygt-kB [GszligYIw Alecirc lsquolkoy alUuml yKiauml argtYcopyw 3226 `AM[i Aqszligbahe(B
yKiTHORN ^ecircx]Lev(a] alaring lsquormaYOrsquow rxV_h hlTHORN[ yKiicirc ynIxeecircLv rmaYOaeligw 3227
`ynIT)krBe-~ai
`bqo)[]y rmaYOagravew ^mlt+V-hm wylTHORNae rmaYOethw 3228
tyrIocircf-yKi( lae_rfyI-~ai yKiTHORN ecircmvi lsquodA[ rmEiumlayE lsquobqo[]y alUuml rmaYOcopyw 3229 `lk(WTw ~yviTHORNna]-~[iwgt ~yhisup2la-~[i
65 Texto massoreacutetico eacute o nome que se costuma dar ao texto criacutetico da Biacuteblia Hebraica que foi objeto do trabalho dos massoretas Essa palavra deriva do vocaacutebulo māsocircrah que significa ldquocaacutelculordquo ou ldquoenumeraccedilatildeordquo dos versiacuteculos e das particularidades do texto hebraico da Biacuteblia A atividade desses estudiosos se deu por volta de 400 EC ldquopertencem a diversas escolas os massoretas do leste (Babilocircnia) com muitas academias especialmente as de Neardea Sura e Pumbedita e os massoretas do oeste (Palestina) representados nos seacuteculos IX-XI por duas famiacutelias caraiacutetas os Ben Aser e os Ben Neftali o texto de Ben Aser acabou por dominar Os massoretas fixaram a recitaccedilatildeo do texto da Biacuteblia hebraica por uma seacuterie de anotaccedilotildees marginais e sinais diacriacuteticosrdquo (LIPIŃSKI 2013 p 864) Em sentido lato o trabalho dos massoretas consistiu principalmente em incluir no texto hebraico grafemas que indicam a vocalizaccedilatildeo do texto e a acentuaccedilatildeo da qual depende a entonaccedilatildeo musical Essa vocalizaccedilatildeo era tanto supralinear caracteriacutestica dos estudiosos babilocircnicos como infralinear caracteriacutestica daqueles da Palestina As ediccedilotildees criacuteticas da Biacuteblia Hebraica que temos hoje praticamente satildeo baseadas nos manuscritos de Ben Aser no coacutedigo de Alepo (930 EC) e naquele de Leningrado B 19a concluiacutedo em 1008 EC
88
laaumlvTi hZltszlig hMlicirc rmaYOumlw ^mecircv aNaring-hdyGI)h lsquormaYOrsquow bqoordf[]y laaumlvYIw 3230 `~v( Atszligao rltbicircygtw ymi_vli
~ynIaringP lsquo~yhila ytiyaiUcircr-yKi( lae_ynIP ~AqszligMh ~veicirc bqoplusmn[]y aroacuteqYIw 3231 `yvi(pn lceTHORNNTiw ~ynIeumlP-la
`AkrEygt-l[ [leTHORNco aWhiumlwgt lae_WnP-ta rbszlig[ rvltiumla]K vmVecirch Alaring-xr(zgtYI)w 3232
Karing-l[ lsquorva] hvordfNh dyGIaring-ta laeoslashrfyI-ynE)b WlrsquokayO-al) KeDagger-l[ 3233
`hv(Nh dygIszligB bqoecirc[]y ryltaring-kB lsquo[gn yKiUcirc hZlt+h ~AYaeligh d[THORN rEecircYh
2 Algumas notas de criacutetica textual
Logo no primeiro versiacuteculo (23) o aparato criacutetico da BH observa uma variaccedilatildeo
rara para a expressatildeo aWh hlygtLB (naquela noite) O demonstrativo desempenha um
papel adjetival do substantivo ldquonoiterdquo que eacute determinado (possui artigo) desse modo
esperar-se-ia que tambeacutem o pronome demonstrativo fosse precedido do artigo (h)
como eacute comum na liacutengua hebraica (cf GESENIUS KAUTZSCH 1910 p 408 sect 126u)
o que natildeo acontece nesse caso como tambeacutem em Gn 1933 3016 e 1Sm 1910 Aliaacutes eacute
de se observar o contraste entre a expressatildeo correta aWhszligh-hlygtL)B em Gn 3222 (portanto
no versiacuteculo anterior) e o nosso Uma possiacutevel explicaccedilatildeo (cf JOUumlON MURAOKA
2006 p 483 sect 138h) seria a queda do artigo como consequecircncia de uma haplografia
Outra possibilidade eacute o fato de o artigo por vezes ser omitido com demonstrativos
uma vez que jaacute estatildeo em certa medida determinados pelo seu significado (cf
GESENIUS KAUTZSCH 1910 p 409 sect 126y) Fato semelhante ao que se daacute neste
versiacuteculo de Gecircnesis encontramos na inscriccedilatildeo presente na famosa estela moabita de
Meshaacute (850-830 AEC) na qual se lecirc na terceira linha a expressatildeo הבמת זאת este lugar
alto (cf SPURRELL 2005 p 192) Ainda neste versiacuteculo 23 o Pentateuco Samaritano
lecirc um artigo definido antes do substantivo qBoy (Jaboc) mas natildeo eacute algo que venha a
alterar o sentido da frase
No versiacuteculo 24 o Pentateuco Samaritano e algumas versotildees leem lK (tudo
aquilo) antes de Al-rva] ao final do versiacuteculo a qual parece tratar-se de uma adiccedilatildeo
posterior com o objetivo de precisar o sentido (MARTIN-ACHARD 1971 p 44) De
fato grande parte das traduccedilotildees modernas assume essa inserccedilatildeo
89
Em Gn 3225 haacute um verbo digno de nota pois somente aparece aqui e no
versiacuteculo seguinte em toda a BH qbeaYEw (lutou raiz qba conjugaccedilatildeo nifal com vav
consecutivo terceira pessoa masculina do singular) Talvez ele possa ser conectado ao
verbo qbx que na conjugaccedilatildeo qal e piel significa ldquoabraccedilarrdquo (cf Gn 334) podendo ser
uma variaccedilatildeo dialetal do mesmo (cf SPURRELL 2005 p 284) A escolha desse verbo
deve-se provavelmente ao desejo de criar-se uma assonacircncia com a palavra qBoy nome
proacuteprio do riacho que aparece na periacutecope Haacute a proposta de ver este verbo em nifal
como relacionado ao sentido de ldquolutarrdquo na construccedilatildeo frasal com ~[i denominativo do
substantivo qba (poacute poeira) porque na luta a poeira eacute levantada (GESENIUS 1979 p
9) O raro uso denominativo do nifal estaacute provavelmente relacionado agraves suas funccedilotildees
de ingressoestado e causadora reflexiva (cf WALTKE OrsquoCONNOR 1990 p 390
235)
No versiacuteculo 26 apresentam-se dois fenocircmenos que encontramos na liacutengua
hebraica claacutessica O primeiro eacute logo no iniacutecio do versiacuteculo onde temos a sequecircncia Al
lkoy aOl (ele natildeo conseguia dominaacute-lo prevalecer sobre ele) Para alguns verbos aqui no
caso lky (dominar vencer ser superior ser capaz) um pronome pode ficar como um objeto
preposicional (cf WALTKE OrsquoCONNOR 1990 p 166 1021e) Um segundo
fenocircmeno diz respeito agraves ldquorelaccedilotildees de tempo existentes entre duas diferentes accedilotildees ou
eventos [que] satildeo frequentemente expressas sem o auxiacutelio de uma conjunccedilatildeo mas
simplesmente por justaposiccedilatildeordquo (GESENIUS W KAUTZSCH E 1910 p 501 sect 164a)
Eacute o que ocorre na seguinte sequecircncia lsquo[qTersquow Ak=rEygt-kB [GszligYIw (tocou a articulaccedilatildeo de sua coxa
e se deslocou) Neste caso deu-se a justaposiccedilatildeo dos dois imperfeitos com vav
consecutivo [gn (3ordf pessoa do masculino singular qal imperfeito) + [qy (3ordf pessoa
feminino singular qal imperfeito)
No versiacuteculo seguinte (27) encontramos uma sentenccedila de exceccedilatildeo apoacutes uma
negaccedilatildeo nesse caso eacute comum empregar-se ~ai yKi (mas em vez) Vejamos
ynITkrBe-~ai yKi ^x]Leva] al (eu natildeo te deixarei ir a menos que tu me abenccediloes) Aqui se daacute
uma transiccedilatildeo do sentido de ldquomas serdquo para ldquose natildeordquo (cf GESENIUS W
KAUTZSCH E 1910 p 500 sect 163c JOUumlON MURAOKA 2006 p 603 sect 173b) Esse
mesmo caso pode ser encontrado em Lv 226 2Rs 424 Is 5510 656 Am 37 e Rt 318
90
Em Gn 3229 a expressatildeo ~ai yKi assume um sentido mais adversativo que de
exceccedilatildeo a construccedilatildeo se daacute apoacutes uma oraccedilatildeo negativa assumindo um niacutetido contraste
ldquoE disse Jacoacute natildeo seraacute mais o teu nome mas Israelrdquo (cf JOUumlON MURAOKA 2006 p
603 sect 172c) Neste versiacuteculo comparece um verbo rariacutessimo que eacute encontrado somente
aqui e em Oseacuteias 1245 trata-se do verbo hrf o qual surge sob a forma tyrIf 2ordf pessoa
masculina singular do qal perfeito Sendo que em Os 124 surge na forma hrf (3ordf pessoa
masculina singular do qal perfeito) e em Os 125 sob a forma rfYUumlw (3ordf pessoas masculina
singular do qal imperfeito) Sendo um verbo raro o seu significado natildeo eacute tatildeo evidente
Haacute uma tendecircncia de assumir o significado de lutar buscar arduamente por algo
empenhar-se esforccedilar-se ao maacuteximo e contender (apoiam essa interpretaccedilatildeo CLINES 2011
v 8 p 190 e KOEHLER BAUMGARTNER 2001 v 2 p 1354) Mais adiante
retomaremos essa questatildeo do nome de Israel por agora fiquemos apenas com essas
informaccedilotildees
No versiacuteculo seguinte (30) encontramos a expressatildeo ידה־נא מך הג ש a qual
deveria ser lida como faz a versatildeo grega (Septuaginta) a Siriacuteaca e a Vulgata isto eacute
ldquodize-me por favor o teu nomerdquo Mas natildeo significa que no texto hebraico
encontramos o objeto indireto ly (me) o mesmo pode-se encontrar em outros lugares
na BH como em Joacute 38418 Uma outra particularidade encontrada neste versiacuteculo eacute o
fato da forma Yiqtol ( אל ש ת - da raiz lav = [qal] perguntar pedir emprestado) que em
geral na BH funciona como futuro ser usada para expressar uma accedilatildeo que de fato eacute
mais assumida para continuar ateacute o momento da pergunta significando uma accedilatildeo
durativa como ocorre tambeacutem em Gn 447 e 2Rs 2014 (JOUumlON MURAOKA 2006 p
339 sect 113d)
Em seguida no versiacuteculo 31 pode-se interpretar a expressatildeo נצל י ות ש נפ (minha
vida foi salva) como sendo inspirada em Ex 3320 Jz 1322 Dt 433 Eacute de se notar nesta
mesma expressatildeo uma particularidade do uso do imperfeito consecutivo נצ לות neste
caso ele tem uma conexatildeo meramente externa com um perfeito imediatamente
precedente Ocorre que na realidade esse imperfeito consecutivo representa um leve
contraste ao perfeito (aqui no caso ירא ית ) e ainda minha vida foi salva (cf GESENIUS
W KAUTZSCH E 1910 p 327 sect 111e) Neste versiacuteculo encontra-se uma variaccedilatildeo
91
de leitura do vocaacutebulo יאל נ no Pentateuco Samaritano na traduccedilatildeo de Siacutemaco na פ
versatildeo siriacuteaca e na Vulgata lecirc-se נואל Essa leitura eacute encontrada no versiacuteculo 32 Nesse פ
caso o yod poderia ser uma antiga vogal de ligaccedilatildeo Interessante observar que Fanuel eacute
o nome de um anjo na tradiccedilatildeo samaritana israelita (TSEDAKA SULLIVAN 2013 p
78) Provavelmente estamos diante do mesmo local pois a confusatildeo entre u e i aqui
vestiacutegio de um antigo genitivo eacute raro em hebraico (cf MARTIN-ACHARD 1971 p
44-45) A versatildeo grega da BH a Septuaginta66 natildeo lecirc Puumlnicircacuteeumll como um nome proacuteprio
pois no grego aparece o substantivo neutro Εἶδος (aparecircncia) o que lhe permite realizar
uma aproximaccedilatildeo etimoloacutegica com a palavra seguinte o verbo ldquoverrdquo (εἶδον ndash 1ordf pessoa
do indicativo aoristo ativo de ὁράω) E essa escolha do tradutor foi intencional pois
em um texto paralelo Gn 3310 ele emprega o termo ldquofacerdquo (πρόσωπον) e natildeo
aparecircncia
No versiacuteculo 32 natildeo haacute nada de especial a ser observado Jaacute no versiacuteculo
seguinte o 33 que encerra a periacutecope temos a expressatildeo יד הירך על־כף אשר הנשה את־ג
(o nervo do quadril que estaacute sobre a juntura da coxa) Nesse caso seria o nervus ischiadicus
(em portuguecircs nervo ciaacutetico ou isquiaacutetico) ou seja o nervo ou tendatildeo que passa atraveacutes
da coxa e da perna ateacute o tornozelo (cf GESENIUS 1840 p 921) Essa interdiccedilatildeo
mencionada aqui natildeo ocorre no entanto em nenhuma parte da BH Ela eacute encontrada
no Talmude especificamente no Tratado Ḥullin capiacutetulo 7167
3 Contextos da periacutecope
66 O versiacuteculo 31 completo em grego da Septuaginta eacute καὶ ἐκάλεσεν Ιακωβ τὸ ὄνομα τοῦ τόπου ἐκείνου Εἶδος θεοῦ εἶδον γὰρ θεὸν πρόσωπον πρὸς πρόσωπον καὶ ἐσώθη μου ἡ ψυχή A traduccedilatildeo pode ser ldquoE Jacoacute deu ao lugar o nome de Forma-visiacutevel-de-Deus lsquoPorque eu vi Deus face a face e minha vida foi salvarsquordquo (LA BIBLE DrsquoALEXANDRIE LA GENEgraveSE 1986 244 traduccedilatildeo nossa) 67 Este tratado integra a quinta ordem da Mishnaacute os Kodashim (coisas sagradas) Ele aborda as leis de abate dos animais e consumo de carne isto eacute animais usados na alimentaccedilatildeo diaacuteria em oposiccedilatildeo aos
animais dos sacrifiacutecios do Templo de Jerusaleacutem No Tratado Ḥullin capiacutetulo 71 encontramos ldquoA lei do nervotendatildeo do quadril eacute obrigatoacuteria tanto na Terra [de Israel] como fora da Terra tanto durante a eacutepoca do Templo como depois da eacutepoca do Templo tanto para os animais natildeo consagrados como para animais de ofertoacuterio aleacutem disso aplica-se a gado e animais selvagens para a coxa direita ou para a esquerda Mas ela natildeo se aplica agraves aves uma vez que elas natildeo tecircm o oco [da coxa] Ela se aplica tambeacutem a um fetordquo (DANBY 1933 p 523 ndash traduccedilatildeo nossa) O restante do capiacutetulo 7 desse tratado continua abordando esse tema
92
Eacute praticamente de domiacutenio comum que a Toraacute ou Pentateuco possui uma
estruturaccedilatildeo formal realizada pelo seu(s) redator(es) final(is) em base ao lema Toumlldocirct
(comumente lido toledocirct) Essa foacutermula traccedila uma sequecircncia das origens da naccedilatildeo de
Israel partindo da criaccedilatildeo ateacute a emergecircncia de Israel sob a lideranccedila de Moiseacutes e Aaratildeo
em sua jornada pelo deserto em direccedilatildeo agrave terra de Israel
Primeiramente foram identificados onze ocorrecircncias da foacutermula toledocirct em
Gecircnesis68 e posteriormente uma deacutecima segunda em Nuacutemero 31 ldquoEis a descendecircncia
[literalmente geraccedilotildees de] de Aaratildeo e d Moiseacutes quando YHWH falou a Moiseacutes no monte
Sinairdquo69 Essa estrutura em toledocirct claramente interrompe dois modelos estruturais
subjacentes ou seja a denominada periacutecope do Sinai (Ex 191ndashNm 1010) e o modelo
da foacutermula de itineraacuterio identificado por CROSS (1997) em Ex 11ndashNm 3613 Tal
modelo aponta para uma redaccedilatildeo sacerdotal da narrativa de Gecircnesis ndash Nuacutemeros que
tambeacutem incorpora o Deuteronocircmio em seu modelo estrutural O resultado eacute uma
estrutura literaacuteria formal em doze partes para o Pentateuco como segue70
Estrutura Literaacuteria Sincrocircnica do Pentateuco
Histoacuteria da Criaccedilatildeo Formaccedilatildeo do Povo de Israel
I Criaccedilatildeo do Ceacuteu e da Terra Gn 11ndash23
II Origem Humana Gn 24ndash426
III Desenvolvimento Humano ndash Problemas Gn 51ndash68
IV Noeacute e o Diluacutevio Gn 69ndash929
V Propagaccedilatildeo dos Humanos sobre a Terra Gn 101ndash119
VI Histoacuteria dos Semitas Gn 1110ndash26
VII Histoacuteria de Abraatildeo (Isaac) Gn 1127ndash2511
VIII Histoacuteria de Ismael Gn 2512ndash18
IX Histoacuteria de Jacoacute (Isaac) Gn 2519ndash3529
68 Esse trabalho foi realizado por Frank Moore Cross em sua obra Canaanite myth and Hebrew epic Essays in the history of the religion of Israel Cambridge (MA) Harvard University Press 1973 p 293-325 Na bibliografia cito a nona reimpressatildeo de 1997 69 Observado por Matthew A Thomas em sua obra These are the generations Identity covenant and the ldquotoledothrdquo formula London New York T amp T Clark 2011 (The Library of Hebrew BibleOld Testament Studies 551) 70 Aqui sigo totalmente SWEENEY (2016 p 238)
93
X Histoacuteria de Esauacute Gn 361ndash371
XI Histoacuteria das Doze Tribos de Israel Gn 372ndashNm 234
XII Histoacuteria de Israel sob a Orientaccedilatildeo dos Levitas Nm 31ndashDt 3412
Como pode-se perceber em nono lugar do esquema temos a histoacuteria de Isaac
assim chamada porque o foco eacute sobre os filhos de Isaac Esauacute e Jacoacute (Gn 2519ndash3529)
Em siacutentese essa narrativa narra como o segundo filho de Isaac Jacoacute sobrepujou seu
irmatildeo mais velho casou-se com suas esposas e concubinas Lia Raquel Zilpa e Bila e
libertou-se do controle de seu tio e sogro Labatildeo para se tornar o antepassado de todo
Israel e herdeiro da alianccedila prometida por YHWH a seus antepassados Abraatildeo e Isaac
A estrutura formal das narrativas sobre Jacoacute possuem um caraacuteter episoacutedico
Vejamos71
a) Gn 2519 o iniacutecio eacute marcado pela expressatildeo estruturante toledocirct
(geraccedilotildeesdescendecircncia) que serve para introduzir o relato sobre os
descendentes de Isaac
b) Gn 2520-26 relata o casamento de Isaac com Rebeca e o nascimento de seus
filhos Essa segunda unidade da estrutura conteacutem duas subunidades Gn
2521-26a (nascimentos dos filhos e conflito entre eles) e Gn 2526b (a idade
de Isaac por ocasiatildeo do nascimento de seus filhos)
c) Gn 2527-34 essa unidade ocupa-se em mostrar as diferenccedilas entre os irmatildeos
Esauacute e Jacoacute As subunidades satildeo Gn 2527-28 (destaca quais satildeo essas
diferenccedilas sendo Esauacute caracterizado como um caccedilador e amado por seu pai
e Jacoacute como algueacutem mais de casa amado pela matildee) e Gn 2529-34 (ao
continuar mostrando as diferenccedilas entre os irmatildeos a narrativa revela que
Esauacute voluntariamente renuncia agrave sua primogenitura para matar sua fome)
d) Gn 261-33 eacute uma unidade que se ocupa em relatar as viagens de Isaac e
Rebeca no sudoeste de Judaacute e na Filisteia As subunidades satildeo Gn 261-16
(em Gerara Isaac se vecirc abenccediloado por YHWH com as terras prometidas a
Abraatildeo e o rei filisteu Abimelec concede proteccedilatildeo a Isaac e Rebeca apoacutes
reconhecer que ela era esposa de Isaac) Gn 2617-22 (onde se daacute a disputa
de Isaac com os filisteus em razatildeo de um poccedilo que este cavou) e Gn 2623-33
71 Novamente aqui sigo a proposta de SWEENEY (2016 p 239-241) com algumas observaccedilotildees pessoais
94
(nesta uacuteltima subunidade haacute o deslocamento de Isaac e Rebeca para
Bersabeia onde YHWH jura abenccediloar Isaac por causa de Abraatildeo e Isaac
reconcilia-se com Abimelec
e) Gn 2634ndash3515 eacute a uacuteltima e mais longa unidade do ciclo de Jacoacute Ela
apresenta o relato de como Jacoacute obteacutem a becircnccedilatildeo e promessa de YHWH e se
torna o antepassado de Israel ao gerar doze filhos que por sua vez se
tornaratildeo os antepassados das tribos de Israel A narrativa inclui quatro
subunidades principais que por sua vez satildeo complexas e incluem muitos
elementos proacuteprios
(1) Gn 2634-35 que retrata a afliccedilatildeo de Isaac e Rebeca por causa do
casamento de seu primogecircnito Esauacute com mulheres heteias Esta
breve subunidade eacute crucial para a narrativa na medida em que
aponta para a inaptidatildeo de Esauacute para a alianccedila devido ao seu
casamento com mulheres estrangeiras Tambeacutem serve como
instigaccedilatildeo para a jornada de Jacoacute para Haratilde onde ele buscaraacute suas
esposas da famiacutelia da matildee para que ele possa ter filhos adequados
para servir como herdeiros da alianccedila
(2) Gn 271-45 mostra o esforccedilo de Jacoacute em assegurar para si a becircnccedilatildeo do
pai ao inveacutes desta dirigir-se como era a tradiccedilatildeo para o filho mais
velho A narrativa eacute importante pois deixa bem evidente as
preferecircncias dos pais Isaac por Esauacute e Rebeca por Jacoacute O que eacute fator
evidentemente de tensatildeo no interior dessa famiacutelia E oferece uma
explicaccedilatildeo para a inimizade entre os dois irmatildeos Esauacute e Jacoacute
justificando a necessidade que Jacoacute teve de fugir para Haratilde tanto
para encontrar esposas adequadas como para salvar suas vidas
Encontramos cinco unidades menores nesse bloco narrativo
Gn 271-4 Isaac instrui Esauacute para caccedilar e trazer-lhe uma
refeiccedilatildeo para que possa abenccediloaacute-lo uma vez que se sente
muito velho e cansado
95
Gn 275-13 Rebeca instrui Jacoacute a enganar seu marido Isaac
para que seu filho mais jovem possa obter a becircnccedilatildeo da
primogenitura no lugar de Esauacute
Gn 2714-29 Jacoacute executa o plano de sua matildee para obter a
becircnccedilatildeo
Gn 2730-40 Esauacute descobre o engano perpetrado por Jacoacute e
obteacutem de Isaac uma becircnccedilatildeo substituta que o capacitaraacute a se
libertar de Jacoacute
Gn 2741-45 com isso a inimizade entre os irmatildeos fica
evidente e Rebeca instrui Jacoacute a fugir para Haratilde para escapar
da ira de Esauacute e encontrar esposas adequadas de sua famiacutelia
(3) Gn 2746ndash3154 essa terceira subunidade narra a viagem de Jacoacute a
Padatilde-Aram a fim de encontrar uma esposa da famiacutelia de sua matildee na
casa de seu tio Labatildeo Encontramos cinco episoacutedios no interior desta
subunidade
Gn 2746 mostra o desgosto de Rebeca com as esposas heteias
de Esauacute
Gn 281-5 narra Isaac enviando Jacoacute a Padatilde-Aram para
encontrar uma esposa
Gn 286-9 Isaac casa-se com Maelet filha de Ismael filho de
Abraatildeo na tentativa de agradar seus pais
Gn 2810-22 importante episoacutedio que descreve a visatildeo que
Jacoacute teve de YHWH em sonho na qual este renova a promessa
feita aos seus ancestrais de conceder-lhe a terra de Israel
descendentes e fidelidade Isso serve de justificativa para o
lugar ser chamado de Betel casa de El (Deus) em hebraico
Becirct-acuteeumll
Gn 291ndash3154 descreve a permanecircncia de Jacoacute em Haratilde
incluindo seus casamentos e o nascimento de seus filhos No
interior desse bloco narrativo encontramos seis elementos
distintos
96
1 Gn 291 relata a chegada de Jacoacute em Haratilde
2 Gn 292-14a conta o encontro de Jacoacute com sua futura
amada e esposa Raquel e seu pai Labatildeo
3 Gn 2914b-30 Jacoacute eacute trapaceado por Labatildeo e casa-se com
Lia devendo trabalhar mais para o tio ateacute casar-se com
Raquel
4 Gn 2931-3024 relata o nascimento dos filhos de Jacoacute
da parte de suas esposas e concubinas Sendo que Lia
lhe daacute como filhos Ruacuteben Simeatildeo e Levi Datilde e Neftali
satildeo gerados por Bala serva de Raquel a pedido desta
uacuteltima uma vez que ela natildeo conseguia engravidar-se
Lia a primeira esposa de Jacoacute vendo que natildeo lhe
concedia mais filhos fez com que este tivesse filhos com
sua serva Zelfa gerando Gad e Aser Lia tornou a
engravidar-se e deu a Jacoacute por filhos Issacar Zabulon e
Dina uma filha Finalmente Raquel conseguiu
engravidar-se e deu agrave luz Joseacute
5 Gn 3025-43 narra a negociaccedilatildeo que se estabelece entre
Jacoacute e Labatildeo acerca dos ganhos do Patriarca
6 Gn 311-54 Jacoacute parte de Haratilde com suas mulheres
filhos e pertences Haacute uma perseguiccedilatildeo e conflito com
Labatildeo e sua famiacutelia que se resolve por meio de um
tratado entre ambos
(4) Gn 321ndash3529 eacute a quarta subunidade da unidade derradeira do ciclo
de Jacoacute Esse bloco narra o retorno de Jacoacute agrave terra de Israel incluindo
a mudanccedila de nome para Israel (periacutecope que mereceraacute mais
detidamente nossa atenccedilatildeo) a sua reconciliaccedilatildeo com Esauacute a morte de
sua amada esposa Raquel o nascimento de Benjamim a outorga que
YHWH faz a Jacoacute da alianccedila concluiacuteda com os seus antepassados e a
morte e sepultamento de Isaac Esta subunidade eacute composta por oito
episoacutedios narrativos que satildeo
97
Gn 321-22 Jacoacute prepara o encontro com Esauacute seu irmatildeo em
Maanaim
Gn 3223-33 Jacoacute luta com ldquoum homemrdquo e recebe um novo
nome Israel
Gn 331-17 reconciliaccedilatildeo de Jacoacute com Esauacute em Sucot
Gn 3318ndash3431 Jacoacute chega a Siqueacutem e ali permanece neste
local ocorre o estupro de sua filha Dina e seus irmatildeos Simeatildeo
e Levi a vingam
Gn 351-15 YHWH nomeia Jacoacute como Patriarca de Israel em
Betel e Jacoacute santifica o lugar Novamente eacute narrada a mudanccedila
de nome de Jacoacute para Israel
Gn 3516-20 Raquel vem agrave oacutebito durante o parto de Benjamim
entre Betel e Eacutefrata
Gn 3521-26 Ruacuteben comete incesto ao manter relaccedilotildees iacutentimas
com Bala uma das concubinas de seu pai
Gn 3527-29 relata a morte e sepultamento de Isaac por Jacoacute e
Esauacute em Cariat-ArbeHebron mesmo local do sepultamento
de Abraatildeo e Sara
Sem duacutevida o ciclo de Jacoacute forma uma unidade literaacuteria dentro da estrutura em
toledocirct da ToraacutePentateuco Nesse sentido Jacoacute aparece na narrativa como o terceiro
na sequecircncia dos antepassados de Israel e ele alcanccedila o direito de primogenitura a
becircnccedilatildeo de seu pai e a alianccedila prometida por YHWH a seus antepassados superando
seu irmatildeo mais velho Esauacute para garantir o futuro de seu povo A narrativa faz questatildeo
de frisar as diferenccedilas entre os dois irmatildeos enquanto Esauacute mostra pouca consideraccedilatildeo
por seu direito de primogenitura e se casa com mulheres que satildeo consideradas pela
tradiccedilatildeo judaica como inadequadas ou marginalizadas na trajetoacuteria da alianccedila da
naccedilatildeo de Israel Jacoacute viaja a Padatilde-Aram para encontrar uma noiva adequada no seio
da famiacutelia de sua matildee e acaba tomando duas esposas que satildeo filhas do irmatildeo de sua
matildee Labatildeo e suas servas Os doze filhos nascidos como resultado destes casamentos
iratildeo se tornar os antepassados das doze tribos de Israel
98
Os inteacuterpretes haacute muito reconhecem que Jacoacute eacute o antepassado epocircnimo de Israel na verdade ele eacute duas vezes renomeado Israel em Gecircnesis 3232-33 e 359-12 Mas o contexto literaacuterio mais amplo da forma final do Pentateuco que eacute amplamente entendida como uma narrativa judia baseada em sua redaccedilatildeo Sacerdotal (P) final geralmente obscurece o fato de que a identificaccedilatildeo de Jacoacute como o antepassado de Israel pressupotildee o ponto de vista do reino do norte de Israel com seu Templo em Betel em vez de Israel como entendido a partir da compreensatildeo judaica de todo Israel e do Templo de Jerusaleacutem (SWEENEY 2016 p 244)
Complementando o que foi exposto acima eacute importante constatar que Gn 3223-
33 insere-se no grande ciclo de Jacoacute e Esauacute (Gn 2519ndash371)72 A nossa personagem
como veremos melhor adiante eacute transformada de liacuteder local de um grupo particular ndash
ao redor do qual se formou uma tradiccedilatildeo ndash em um dos grandes patriarcas do povo de
Israel depositaacuterio das promessas feitas a Abraatildeo Contraacuterio a este primeiro patriarca
cuja vida estava enraizada mais ao sul do paiacutes tendo Hebron como lugar de referecircncia
cultual Jacoacute movimenta-se pela regiatildeo norte de um lado a outro do rio Jordatildeo e ateacute a
Mesopotacircmia A maior parte dos santuaacuterios do Reino de Israel tambeacutem denominado
Reino do Norte eacute ligada a ele Joseacute cujo ciclo sucederaacute agravequele de Jacoacute implanta-se no
Egito
O seu ciclo insere-se entre aquele de Abraatildeo (Gn 121ndash2518) e aquele de Joseacute
(Gn 372ndash5026) Servindo portanto como um proacutelogo agrave histoacuteria de Moiseacutes em Ecircxodo
O capiacutetulo 36 integra um pequeno ciclo de Isaac Jacoacute eacute um heroacutei construiacutedo sem a
preocupaccedilatildeo de justificar a sua moralidade nos conflitos mais diversos que perpassam
toda a narrativa
Conflito entre Jacoacute e seu irmatildeo Esauacute (Gn 25 27 32-33)
que conduz a uma reconciliaccedilatildeo passando pelo conflito entre Jacoacute e Labatildeo
o Arameu (Gn 29-31)
em meio ao qual brota o conflito entre Raquel e Lia (Gn 2931ndash3024)
72 Muitos preferem concluir esse ciclo no uacuteltimo versiacuteculo do capiacutetulo 36 mas Gn 371 eacute claramente um texto de conclusatildeo de um bloco maior A partir daqui JacoacuteIsrael somente retomaraacute com certo protagonismo em Gn 49 onde ele abenccediloa seus filhos e vive seus momentos finais De Gn 372 em diante o protagonista eacute Joseacute filho caccedilula de JacoacuteIsrael
99
O objetivo final de nossa personagem Jacoacute eacute assegurar a sobrevivecircncia e em
seguida a autonomia de seu clatilde Em um primeiro momento ldquosuas aventuras satildeo
transmitidas como memoacuteria local de um grupo que se vecirc ligado a um ancestral que
descobre o deus El e sua promessardquo (LANOIR 2015 p 4)
Pode-se identificar trecircs grandes partes e um epiacutelogo neste ciclo de Jacoacute presente
no primeiro livro da Toraacute vejamos73
1ordf Jacoacute e Esauacute ndash 1ordm Ato (Gn 2519ndash2822) desde o nascimento de ambos um
conflito que se inicia no ventre materno (2519-26) e se prolonga para a vida dos dois
irmatildeos passando pela venda do direito agrave primogenitura de Esauacute a Jacoacute (2527-34) pelo
roubo da becircnccedilatildeo do pai Issac (271-40) ateacute a sua partida para a casa do tio Labatildeo
motivada seja pelo desejo de vinganccedila de seu irmatildeo Esauacute (2741-45) seja pelo desejo
de Rebeca sua matildee de dar-lhe como esposa algueacutem que natildeo fosse de Canaatilde (2634-35
2746 281-9) Concluindo-se como um encontro divino em Betel durante um sonho
(2810-22)
2ordf Jacoacute e Labatildeo (Gn 291ndash321) este ato eacute marcado por dois grandes momentos
o primeiro a ascensatildeo de Jacoacute que inclui sua chegada a Haratilde (291-14) passando pelos
seus dois casamentos (2915-30) pelo nascimento de seus filhos (2931ndash3024) e o seu
enriquecimento (3025-43) O segundo momento desse ato seria a luta de Jacoacute pela
independecircncia de seu clatilde Iniciando-se com as deliberaccedilotildees de Jacoacute e a sua partida
(311-21) as altercaccedilotildees com Labatildeo que persegue os fugitivos do clatilde de Jacoacute (3122-42)
com a conclusatildeo do conflito e um pacto entre os contentores (3143ndash321)
3ordf Reencontro de Jacoacute com Esauacute ndash 2ordm Ato (Gn 322ndash3317) ocorre o desfecho do
conflito com Esauacute que se daacute em trecircs momentos o anuacutencio e preparaccedilatildeo de um
confronto com seu irmatildeo (322-22) o reencontro com Deus em PenielPenuel (combate
noturno) apoacutes o qual Jacoacute eacute abenccediloado e recebe outro nome Israel (3223-33) e
finalmente o reencontro com seu irmatildeo Esauacute e a reconciliaccedilatildeo (331-17)
73 Aqui apoio-me em PURY (2009 p 219-220)
100
Epiacutelogo (Gn 3318ndash371) de Siqueacutem a Betel um itineraacuterio para reconhecer a
origem do povo de Israel e seu Deus Dois santuaacuterios que conservam as tradiccedilotildees
patriarcais satildeo visitados (3318-20 Siqueacutem) e um altar eacute erguido em cada um deles
sendo que em Betel (351-15) uma estela eacute tambeacutem erigida A histoacuteria dos filhos de
Jacoacute (341-31 3516-26) a morte e o sepultamento de Isaac em Mambreacute (3527-29)
preparam a sequecircncia narrativa de Gecircnesis com o ciclo de Joseacute (372ndash5026) Antes
poreacutem haacute a narraccedilatildeo da instalaccedilatildeo de Esauacute em Edom74 e a enumeraccedilatildeo de seus
descendentes (361-43)
O texto da saga ou lenda75 de Jacoacute ocupa-se das origens de Israel podendo
constituir-se em uma das mais antigas E desde o iniacutecio ateacute o final essa saga eacute uma
histoacuteria de luta por becircnccedilatildeo76 Afinal Jacoacute teve de fugir da casa de seu pai devido ao
fato de ter enganado seu irmatildeo e lhe furtado a primogenitura e a becircnccedilatildeo
A caminho de Betel Deus apareceu-lhe e o asseverou de sua proteccedilatildeo e do cumprimento de sua promessa de becircnccedilatildeo77 Eacute verdade que ele conseguiu vaacuterios benefiacutecios na casa de Labatildeo mas quando Labatildeo na despedida deu uma verdadeira becircnccedilatildeo esta valia somente para a famiacutelia natildeo para Jacoacute (Gn 321) No iminente encontro com Esauacute Jacoacute estava correndo o risco de perder todos os benefiacutecios antes conquistados o assalto ocorreu exatamente quando ele em caacutelculo perspicaz mandou todas as suas posses e sua famiacutelia agrave sua frente para o outro lado do Jaboc78 Curiosamente seu adversaacuterio estava aparentemente interessado no nome dele ndash o nome com o qual estava
74 Em Gn 2525 nos eacute apresentado o suposto motivo para o nome de Esauacute que segundo o texto teria recebido tal nome por ser ldquoavermelhadoruivordquo e ldquopeludordquo como se fosse um animal Na realidade a explicaccedilatildeo para suas caracteriacutesticas fiacutesicas faz referecircncia a dois outros nomes que lhe satildeo relacionados
Edom e Seir ldquoAvermelhadoruivordquo eacute em hebraico acuteadmocircnicirc utilizado em 1Sm 1612 e 1742 para Davi
relaciona-se a ldquoEdomrdquo (Gn 2529 3618) regiatildeo a leste de rio Jordatildeo ao sul do territoacuterio de Judaacute caracterizada pelas suas montanhas avermelhadas ldquoPeludordquo (hebraico Seuml`aumlr = peloSeuml`icircr = nome da
regiatildeo montanhosa de Seir tambeacutem em Edom) refere-se agrave regiatildeo de Seir onde Esauacute se instalaraacute com o seu clatilde (Gn 3314-16) Vecirc-se como ldquoEsauacute desde o princiacutepio da narrativa eacute assimilado a um grupo que natildeo tem nada a ver com as regiotildees do Reino do Norte [Israel]rdquo (LANOIR 2015 p 9) 75 Lenda eacute compreendida aqui no sentido que lhe deu GUNKEL (1997 p vii-viii) ldquoa lenda natildeo eacute uma mentira Em vez disso eacute um gecircnero especiacutefico de literatura Lenda - a palavra eacute empregada aqui em nenhum outro sentido senatildeo o geralmente reconhecido - eacute um relato popular longamente transmitido narrativa poeacutetica que trata de pessoas ou eventos passadosrdquo 76 Essa expressatildeo foi empregada inicialmente por WESTERMANN (1964 p 89) e um pouco mais recentemente por DIETRICH (2001 p 205) 77 ldquoA meu ver na composiccedilatildeo original de Jacoacute o discurso divino em Gn 28 estava limitado ao v 15 Se a lenda de santuaacuterio que eacute a base tiver falado de Deus entatildeo ela narrou provavelmente apenas como ele apareceu no topo da escada celestial (as primeiras palavras do v 13) A promessa abrangente no v 1314 foi acrescentada finalmente quando ndash muito tarde na histoacuteria da redaccedilatildeo ndash a histoacuteria de Abraatildeo foi anteposta agrave histoacuteria de Jacoacuterdquo (DIETRICH 2001 p 205 n 28) 78 Essa aliaacutes eacute uma fina ironia presente no texto de Gn 3223-33
101
vinculado o oacutedio devido ao furto da becircnccedilatildeo79 Jacoacute revela-o e assim assume seu passado pouco positivo Nessa situaccedilatildeo ele recebe um novo nome ndash e a becircnccedilatildeo haacute tanto tempo ansiada (DIETRICH 2001 p 205)
4 A formaccedilatildeo do Pentateuco e o ciclo da histoacuteria de Jacoacute
Quando se interroga pela histoacuteria da formaccedilatildeo do texto do ciclo de Jacoacute
deparamo-nos com a complexa discussatildeo acerca das fontes que compuseram a Toraacute
Em linhas gerais e de modo resumido80 pode-se dizer que houve quatro fases da
pesquisa ateacute o presente momento
Inicialmente levando-se em conta os numerosos textos legislativos presentes na
Toraacute (ex Ex 242 Dt 11 445) atribuiacutedos a Moiseacutes as tradiccedilotildees judaicas e cristatildes
fizeram dele o autor desses cinco primeiro livros da BH81 Mesmo que essa ideia natildeo
tenha sido explicitamente contestada a natildeo ser no seacuteculo XVIII de nossa era natildeo
significa que sempre foi aceita e indiscutida por todos Como imaginar por exemplo
o proacuteprio Moiseacutes narrando a sua morte (Dt 34) Rabinos viram nesse texto conclusivo
da Toraacute um acreacutescimo posterior por parte de Josueacute o sucessor de Moiseacutes82 Na Idade
Meacutedia os estudiosos judeus Issac ben Jesus e Ibn Esdras elaboraram listas que
continham os ldquopost-mosaicardquo ou seja textos que deveriam ter sido escritos em
momentos mais tardios da histoacuteria de Israel83 Mas esses autores natildeo ousaram colocar
em duacutevida a tradiccedilatildeo recebida Esse passo seraacute dado por meio do Tratactus theologico-
politicus do filoacutesofo judeu Baruch de Spinoza (era de origem sefardita portuguesa
79 ldquoJaacute durante o parto Jacoacute teria atacado o irmatildeo gecircmeo mais velho Esauacute ao seguraacute-lo pelo lsquocalcanharrsquo E apoacutes a becircnccedilatildeo Esauacute exclama lsquoSeraacute que natildeo eacute com razatildeo que ele se chama Jacoacute Duas (Gn 2525s) (עקב)vezes me enganou (עקב)rsquo (Gn 2736 a mesma palavra rara para lsquoenganarrsquo eacute usada no mesmo contexto por Oseias em Os 124)rdquo (DIETRICH 2001 p 205-206 n 30)
80 Para uma visatildeo mais detalhada da histoacuteria da composiccedilatildeo do Pentateuco e suas vaacuterias teorias ateacute o presente momento pode-se consultar SKA 2016 p 13-87 ROumlMER 2009 p 140-157 NIHAN ROumlMER 2009 p 158-184 ZENGER 2008a p 117-186 ZENGER 2008b p 187-203 81 Cf PHILON DrsquoALEXANDRIE De vita Mosis I sect 84 (1967) Mc 1226 2Cor 315 entre outros 82 ldquoMoiseacutes escreveu seu proacuteprio livro e a porccedilatildeo de Balaatildeo e Joacute Josueacute escreveu o livro que leva seu nome e [uacuteltimos] oito versos do Pentateucordquo Em inglecircs ldquoMoses wrote his own book and the portion of Balaam and Job Joshua wrote the book which bears his name and [the last] eight verses of the Pentateuchrdquo (Talmude Babilocircnico Baba Bathra 14b EPSTEIN 2009) Os uacuteltimos versiacuteculos do Pentateuco satildeo justamente a narrativa da morte de Moiseacutes 83 Por exemplo Gn 3631 o qual pressupotildee a eacutepoca monaacuterquica Nm 221 que designa a Transjordacircnia como paiacutes aleacutem do Jordatildeo o que estaacute em contradiccedilatildeo com um Moiseacutes que escreve na Transjordacircnia (cf ROumlMER 2009 p 141)
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Bento de Espinosa) em 1670 Ele observa que o ldquoPentateuco forma com os livros
histoacutericos (Josueacute e Reis) uma unidade orgacircnica e que ele natildeo pode consequentemente
ter sido regido antes do final do reino de Judaacute (relatado em 2 Reis) Aos seus olhos o
verdadeiro autor do Pentateuco eacute Esdras o qual busca dar uma identidade ao povo
judeu agrave eacutepoca persardquo (ROumlMER 2009 p 141)
Por volta da metade do seacuteculo XVIII a pesquisa biacuteblica conheceraacute a primeira
tentativa de identificar fontes no interior do Pentateuco surgindo entatildeo uma teoria
sobre elas Os pioneiros foram de um lado o pastor e orientalista alematildeo Henning
Bernhard Witter e de outro o francecircs Jean Astruc meacutedico de Luiacutes XV Aleacutem da
constataccedilatildeo de vaacuterias rupturas dublecircs contradiccedilotildees e repeticcedilotildees no interior do texto
do Pentateuco84 tal como o temos na atualidade aquilo que mais chamou a atenccedilatildeo foi
a variaccedilatildeo contiacutenua nos textos entre o emprego do nome proacuteprio YHWH ou do termo
mais geneacuterico Elohicircm para designar o Deus de Israel Assim sendo em 1753 Jean
Astruc publicou as ldquoConjectures sur les meacutemoires originaux dont il paroit que Moyse
srsquoest servi pour composer le Livre de la Genegraveserdquo (traduccedilatildeo livre Conjecturas sobre os
documentos originais que Moiseacutes parece ter se servido para compor o Livro de Gecircnesis) Esse
pesquisador francecircs tinha uma finalidade apologeacutetica ou seja defender a autoria de
Moiseacutes para todo o Pentateuco Para tanto ele postulava que Moiseacutes teria tido agrave
disposiccedilatildeo dois documentos principais o ldquodocumento Ardquo o qual utilizava o nome
divino Elohicircm do qual o iniacutecio se situava em Gn 1 e o ldquodocumento Brdquo caracterizado
pelo emprego de YHWH que teria seu iniacutecio em Gn 24 Com isso tem iniacutecio a famosa
teoria ldquodocumentaacuteriardquo que marcaraacute por deacutecadas a exegese histoacuterico-criacutetica moderna
A autoria uacutenica de Moiseacutes evidentemente foi logo abandonada mas aproveitou-se a
inspiraccedilatildeo original de Astruc Essa teoria imagina existir na base do Pentateuco vaacuterias
84 ldquoSegundo Gn 715 Noeacute fez entrar na arca um par de animais de cada espeacutecie ao contraacuterio Gn 72 fala de sete pares para os animais puros Segundo Gn 426 a humanidade invoca o Deus de Israel sob o nome de lsquoYHWHrsquo desde as origens enquanto que em Ex 312-15 esse nome natildeo eacute revelado a Israel a natildeo ser no momento da vocaccedilatildeo de Moiseacutes O comportamento do faraoacute diante das pragas do Egito e explicado de duas maneiras diferentes segundo Ex 73 por exemplo eacute YHWH que torna inflexiacutevel o coraccedilatildeo do rei do Egito enquanto outros textos insistem sobre o fato que o proacuteprio faraoacute endureceu seu proacuteprio coraccedilatildeo (Ex 811 etc) Constata-se igualmente a presenccedila de vaacuterios dublecircs O Pentateuco comporta dois relatos da criaccedilatildeo (Gn 11 ndash 23 Gn 24 ndash 324) dois relatos que reportam a conclusatildeo da alianccedila entre Deus e Abraatildeo (Gn 15 e 17) dois relatos da expulsatildeo de Agar (Gn 16 e 219ss) dois relatos de vocaccedilatildeo de Moiseacutes (Ex 3 e 6) duas versotildees do Decaacutelogo (Ex 20 e Dt 5) etcrdquo (ROumlMER 2009 p 141)
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tramas narrativas independentes uma das outras e regidas em eacutepocas diferentes
relatando cada uma a mesma intriga mas com nuanccedilas ideoloacutegicas diferentes Esses
documentos teriam sido reunidos uns aos outros por redatores sucessivos
Esse sistema explicativo da composiccedilatildeo da ToraacutePentateuco prevaleceraacute
ateacute os anos 1970 com destaque para Julius Wellhausen (1844-1918) o idealizador da
teoria documentaacuteria De acordo com esse estudioso alematildeo o Pentateuco eacute o resultado
de quatro documentos o documento Javista (ldquoJrdquo uma vez que esse documento daacute
preferecircncia ao nome divino YHWH ou seja ldquoJahwerdquo em alematildeo) o documento eloiacutesta
(ldquoErdquo originaacuterio do nome divino ldquoElohicircmrdquo) o Deuteronocircmio (ldquoDrdquo) e o documento
sacerdotal (ldquoPrdquo segundo o termo alematildeo ldquoPriesterschriftrdquo) Wellhausen eacute muito
prudente em relaccedilatildeo agrave dataccedilatildeo desses documentos paralelos que compuseram o
Pentateuco Para ele ldquoJrdquo e ldquoErdquo satildeo siglas que agrupam vaacuterios documentos Como uma
distinccedilatildeo desses dois documentos eacute muito difiacutecil ele prefere reagrupaacute-los sob a sigla
ldquoJErdquo (de ldquoJehowistrdquo em alematildeo) Ele propunha que esses escritos datassem da eacutepoca
monaacuterquica (VIII seacuteculo AEC) jaacute o ldquoDrdquo seria do final do periacuteodo monaacuterquico da eacutepoca
do rei Josias (por volta de 620 AEC)85 e o ldquoPrdquo seria situado no iniacutecio do periacuteodo poacutes-
exiacutelio (por volta de 500 AEC) Na visatildeo de Wellhausen ldquoJErdquo e ldquoPrdquo satildeo tambeacutem
encontrados no livro de Josueacute cujos relatos da conquista da terra prometida
constituem o culminar da promessa da terra no Pentateuco O ciclo de Jacoacute do qual o
texto em anaacutelise em nosso estudo faz parte integrava a histoacuteria Patriarcal (Abraatildeo
Isaac Jacoacute e Joseacute) Essa histoacuteria fazia parte do documento JE na visatildeo de Wellhausen86
Isso acabou levando estudiosos a falarem de um Hexateuco um conjunto de livros de
Gn a Js Esses documentos refletiriam na visatildeo de Wellhausen natildeo apenas um
instrumento de anaacutelise literaacuteria do Pentateuco mas uma siacutentese da evoluccedilatildeo religiosa
do Israel antigo Ele fundamenta sua pesquisa em cinco instituiccedilotildees o lugar do culto
os sacrifiacutecios as festas o clero o diacutezimo (cf ROumlMER 2009 144) Os documentos (JE
85 ldquoWellhausen aceita a identificaccedilatildeo proposta por de Wette em 1805 do Dt primitivo com o livro mencionado em 2Rs 22ndash23rdquo (ROumlMER 2009 p 144) 86 Nessa visatildeo eacute importante frisar que a tradiccedilatildeo oral era tida como a fonte de onde teriam se originado esse documento (JE) Assim sendo mesmo que o Javista e Eloiacutesta tivessem sua origem no periacuteodo monaacuterquico sempre segundo essa teoria documentaacuteria as origens do ciclo de Jacoacute por exemplo deveriam ser buscadas antes mais proacuteximo agraves origens de Israel No entanto isso natildeo era demonstrado nem comprovado mas admitido de modo um tanto ldquonaturalrdquo
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D P) revelaratildeo um esquema de evoluccedilatildeo pluralidade centralizaccedilatildeo ritualizaccedilatildeo
Desse modo parte-se da pluralidade de locais de culto na eacutepoca monaacuterquica para uma
centralizaccedilatildeo em Jerusaleacutem no periacuteodo de Josias O Templo de Jerusaleacutem eacute instituiacutedo
como o uacutenico lugar legiacutetimo de culto ao deus de Israel (cf 2Rs 22ndash23 e Dt 12)87 A fonte
ldquoPrdquo jaacute supotildee essa centralizaccedilatildeo e a retroprojeta para o periacuteodo das origens Assim
sendo para Wellhausen a Lei natildeo estaria nas origens nem do Israel antigo nem do
Pentateuco mas ela torna-se um fundamento do judaiacutesmo a partir da eacutepoca poacutes-
exiacutelica
Na deacutecada de 1970 a 1980 viu-se surgir uma verdadeira rebeliatildeo contraacuteria agrave
teoria documentaacuteria O aparecimento de trecircs obras principais coroam uma sequecircncia
de vaacuterios estudos criacuteticos que vinha desde os anos 1960 provocando repensamentos
da teoria documentaacuteria Satildeo elas a) John Van Seters Abraham in history and tradition
(1975)88 b) Hans Heinrich Schmid Der sogenannte Jahwist Beobachtungen und Fragen
zur Pentateuchforschung (1976)89 c) Rolf Rendtorff Das uumlberlieferungsgeschichtliche
Problem des Pentateuch (1976)90 A obra de Van Seters coloca definitivamente em causa
a tal ldquoeacutepoca patricarcalrdquo ao situar doravante as tradiccedilotildees sobre Abraatildeo e sua colocaccedilatildeo
por escrito agrave eacutepoca do exiacutelio babilocircnio Anteriormente jaacute se havia constatado que o
ldquoDeus dos paisrdquo de Gecircnesis bem como os motivos das promessas patriarcais natildeo
deveriam ser situados em um periacuteodo nocircmade dos ancestrais de Israel mas ldquodeviam
ser explicados sobre o plano literaacuterio como teacutecnicas composicionais com as quais os
redatores reforccedilam a ligaccedilatildeo entre as diferentes figuras patriarcais (Abraatildeo Isaac
Jacoacute)rdquo (ROumlMER 2009 p 150) A obra de Schmid explora a presenccedila da linguagem
Deuteronomista na fonte ldquoJrdquo admitindo inclusive que todo este documento eacute
proacuteximo ao Deuteronocircmio Outros pesquisadores jaacute haviam constatado que certos
temas como aquele da teologia da alianccedila entre YHWH e Israel natildeo satildeo de origem
87 Em Ex 25ndash40 eacute relatado por exemplo a construccedilatildeo de um tabernaacuteculo em pleno deserto como sendo a conclusatildeo da criaccedilatildeo do mundo O escopo humano eacute adorar o Deus que tudo criou por isso o tabernaacuteculo culmina o periacuteodo da criaccedilatildeo do mundo e do ser humano 88 Publicado em sua primeira ediccedilatildeo em New Haven pela Yale University Press 89 Publicado em Zuumlrich pela Theologischer Verlag O tiacutetulo pode ser traduzido livremente como O assim chamado Javista observaccedilotildees e questotildees sobre a pesquisa do Pentateuco 90 Publicado em BerlinNew York pela Walter de Gruyter sendo o nuacutemero 147 da renomada coleccedilatildeo ldquoBeihefte zur Zeitschrift fuumlr die alttestamentliche Wissenschaftrdquo (BZAW)
105
Javista mas estaacute mais proacuteximo agrave teologia Deuteronomista A terceira obra aquela de
Rendtorff foi decisiva no processo de reviravolta nas pesquisas sobre o Pentateuco
Ele insistiraacute na importacircncia do estudioso debruccedilar-se sobre o texto tal como o
recebemos Isso porque sob a aparecircncia de consenso a teoria documentaacuteria apresenta
incoerecircncias e fraquezas como por exemplo ao se buscar estabelecer o iniacutecio e final
de cada documento (J E D P) na distinccedilatildeo do que seria material textual de ldquoJrdquo e ldquoErdquo
e assim por diante Para ele o Pentateuco em sua forma atual seria composto de
ldquounidades maioresrdquo que satildeo caracterizadas por uma grande coerecircncia interna e por
uma independecircncia quase que total em relaccedilatildeo agraves demais Essas unidades seriam as
seguintes a histoacuteria das origens (Gn 1ndash11) os Patriarcas (Gn 12ndash50) a saiacuteda do Egito
(Ex 1ndash15) o Sinai (Ex 19ndash24 32ndash34) a permanecircncia no deserto (Ex 16ndash18 Nm 11ndash20) a
conquista da terra (Nm + Js) Para Rendtorff satildeo as ldquopromessas (terra descendecircncia
acompanhamento becircnccedilatildeo) que se constituem numa sorte de lsquoargamassarsquo redacional
por meio da qual os trecircs patriarcas foram inscritos e situados em uma relaccedilatildeo
genealoacutegicardquo (ROumlMER 2009 p 153) Tanto Rendtorff como seu aluno Erhard Blum
concordaratildeo que o processo redacional que uniu as tradiccedilotildees patriarcais ao restante do
Pentateuco foi obra de um redator do tipo deuteronomista Em resumo o Eloiacutesta saiu
de cena o Javista da eacutepoca de Salomatildeo segundo a teoria wellhausiana estaacute morto ou
transformou-se em um antigo historiador da eacutepoca persa a escola deuteronomista
torna-se nessa fase da histoacuteria da pesquisa o pivocirc ao redor do qual se articula todo o
novo sistema o debate concentra-se no eixo Moiseacutes ndash ecircxodo ndash conquista com algum
olhar eventual sobre Abraatildeo como figura emblemaacutetica da preacute-histoacuteria (cf PURY 2001
p 216)
Completando a visatildeo de conjunto sobre a histoacuteria da pesquisa sobre a formaccedilatildeo
do PentateucoToraacute nos anos 1990 em diante pode-se encontrar trecircs grandes
tendecircncias da pesquisa sobre a formaccedilatildeo da Toraacute91 A primeira busca preservar a teoria
documentaacuteria mas com vaacuterias modificaccedilotildees Haacute aqueles que ainda defendem a
existecircncia de um documento Javista da eacutepoca salomocircnica (por exemplo Werner H
91 Sintetizo aqui a resumida apresentaccedilatildeo de ROumlMER 2009 p 154-156
106
Schmidt92) Outros encontram dificuldade em ainda reconhecer um Javista no interior
da Toraacute e preferem a soluccedilatildeo de um Jeovista (J+E) eacute o caso de Horst Seebass93 Alguns
permanecem ligados ao Javista da eacutepoca monaacuterquica mas reconhecem que vaacuterios
textos que uma vez foram atribuiacutedos ao J pertencem a eacutepocas mais tardias da redaccedilatildeo
do Pentateuco Esse eacute o caso de Erich Zenger e Peter Weimar94 os quais defendem a
existecircncia de redaccedilotildees jeovistas entre 722 e 587 AEC e deuteronomistas a partir de 587
AEC (iniacutecio do exiacutelio da Babilocircnia) Ainda segundo Zenger as redaccedilotildees jeovistas em
GnndashNm teriam formado uma grande Jerusalemitisches Geschichtswerk (ldquohistoriografia
hierosolimitanardquo) preacute-exiacutelica a qual mais tarde na eacutepoca do exiacutelio sofreu uma revisatildeo
deuteronomista
A segunda grande tendecircncia dessa quarta fase da histoacuteria da pesquisa
concentra-se em identificar duas fontes com dataccedilatildeo mais tardia O Pentateuco ou
melhor dizendo o Tetrateuco (Gn Ex Lv Nm) seria fruto da fusatildeo de dois
documentos o Javista (J) e o Sacerdotal (P) que seriam da eacutepoca exiacutelica Os maiores
defensores dessa teoria satildeo Otto Kaiser95 Martin Rose96 e Christoph Levin97 Para este
uacuteltimo o J eacute um redator e um teoacutelogo da diaacutespora valoriza a religiatildeo popular e integra
em seu trabalho fontes mais antigas Levin identifica uma polecircmica entre P e J que eacute
um escrito independente da eacutepoca persa conhecedor de J o qual eacute contraacuterio agrave ideologia
deuteronomista do santuaacuterio uacutenico A intenccedilatildeo de P eacute substituir J Apesar que a
redaccedilatildeo final do Pentateuco preservou os dois documentos da maneira mais completa
92 Elementare Erwaumlgungen zur Quellenscheidung im Pentateuch In EMERTON J A (Ed) Congress Volume Leuven 1989 Leiden New York Koumlln Brill p 22-45 (Vetus Testamentum Supplements [VTS] 43) 93 Pentateuch In THEOLOGISCHE REALENZYKLOPAumlDIE Berlin New York De Gruyter 1996 v 26 p 185-209 Que restet-il du Yahwiste et de lrsquoElohiste In PURY Albert de ROumlMER Thomas (Ed) Le Pentateuque em question Les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible agrave la lumiegravere des recherches recentes 3e eacuted rev et am Genegraveve Labor et Fides 2002 p 199-214 (Le Monde de la Bible 19) 94 ZENGER Erich Die Buumlcher der Torades Pentateuch In _________ et al Einleitung in das Alte Testament 7 Aufl Stuttgart Berlin Koumlln Kohlhammer 2008 p 60-135 95 The Pentateuch and the Deuteronomistic History In MAYES A D H (Ed) Text in Context Essays by Members of the Society for Old Testament Studies Oxford Oxford University Press 2000 p 289-322 96 Deuteronomist und Jahwist Untersuchungen zu den Beruumlhrungspunkten beider Literaturwerke Zuumlrich Theologischer Verlag 1981 97 Der Jahwist Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1993 (Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments [FRLANT] 157)
107
possiacutevel fazendo seguir um relato P em paralelo ao J ou vice-versa Levin reconhece
poreacutem que mais da metade dos textos do Pentateuco satildeo acreacutescimos tardios agrave J ou P
ou seja adiccedilotildees feitas apoacutes a fusatildeo de J e P
Uma terceira tendecircncia nessa quarta fase da pesquisa eacute a teoria elaborada por
Erhard Blum98 e retomada com algumas modificaccedilotildees por Rainer Albertz99 Joseph
Blenkinsopp100 Franz Cruumlsemann101 e outros estudiosos Eles concebem o Pentateuco
como o resultado do diaacutelogo conflituoso entre duas escolas a D e a P O periacuteodo de
composiccedilatildeo eacute tardio ou seja poacutes-exiacutelico Na concepccedilatildeo de Blum haacute uma composiccedilatildeo
deuteronomista (sigla em alematildeo KD) que compreende desde o ciclo de Abraatildeo ateacute 2Rs
25 uma vez que essa composiccedilatildeo eacute tida como o preluacutedio da histoacuteria deuteronomista
Ainda segundo este autor Dt 3410 marca uma ruptura que fornece ao conjunto de Gn-
Dt uma autonomia ou seja uma supremacia em relaccedilatildeo aos livros seguintes uma vez
que se trata da ldquoToraacute de Moiseacutesrdquo A KD destina-se aos judeus da diaacutespora que ocorreu
apoacutes o exiacutelio da Babilocircnia Ela deseja recordar atraveacutes das histoacuterias de Abraatildeo e Ecircxodo
os dois pilares sobre os quais assenta-se a relaccedilatildeo de YHWH e Israel para concluir que
esses pilares restam firmes mesmo com a trageacutedia do exiacutelio Eacute claro que a KD tinha agrave
sua disposiccedilatildeo materiais narrativos e legislativos mais antigos da eacutepoca preacute-exiacutelica Jaacute
a composiccedilatildeo sacerdotal (em sigla alematilde KP) interveacutem de fato como um editor um
redator na obra deuteronomista A KP fez uso de documentos independentes
previamente escritos102 O foco da KP eacute claramente sobre o culto as instituiccedilotildees os
quais satildeo apresentados como dom de YHWH permitindo que Israel faccedila a experiecircncia
98 Studien zur Komposition des Pentateuch Berlin New York De Gruyter 1990 (Beihefte zur Zeitschrift fuumlr die alttestamentliche Wissenschaft [BZAW] 189) Outro escrito no qual ele aborda essa questatildeo eacute The Literary Connection Between the Books of Genesis and Exodus and the End of the Book of Joshua In DOZEMAN Thomas B SCHMID Konrad (Ed) Farewell to the Yahwist The Composition of the Pentateuch in Recent European Interpretation Atlanta (GA) Society of Biblical Literature 2006 p 89-106 (Society of Biblical Literature Symposium Series 34) 99 Religionsgeschichte Israels in alttestamentlicher Zeit 2 Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1992 (Grundisse zum Alten Testament [GAT] 82) 100 The Pentateuch An Introduction to the First Five Books of the Bible New York Doubleday 1992 (The Anchor Bible Reference Library) 101 Le Pentateuque une Tora Proleacutegomegravenes agrave lrsquointerpreacutetation de sa forme finale In PURY Albert de ROumlMER Thomas (Ed) Le Pentateuque em question Les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible agrave la lumiegravere des recherches recentes 3e eacuted rev et am Genegraveve Labor et Fides 2002 p 339-360 (Le Monde de la Bible 19) 102 Como por exemplo a versatildeo sacerdotal do diluacutevio em Gn 6ndash8 Ex 62-8 a versatildeo do ciclo das pragas no Egito em Ex 7ss o relato da travessia do mar em Ex 14 etc
108
da restauraccedilatildeo da proximidade divina como se deu apoacutes o diluacutevio Aleacutem dessas duas
composiccedilotildees maiores D e P Blum admite a existecircncia de adiccedilotildees redacionais que satildeo
proacuteximas seja da KD como da KP Outro estudioso que acredita na existecircncia de
apenas duas fontes dois verdadeiros documentos para o Pentateuco eacute Jean-Louis Ska
Segundo ele uma fonte somente pode ser caracterizada como tal se apresentar um
conceito fundamental e um estilo homogecircneo que une toda a obra103 mesmo que esta
apresente acreacutescimos mais tardios como eacute comum na literatura claacutessica de Israel Natildeo
basta apresentar textos com alguma semelhanccedila entre si para se falar de ldquofonterdquo Nesse
sentido ele somente reconhece duas fontes no Pentateuco o Deuteronocircmio que
constitui um livro a parte e a sacerdotal O Dt natildeo necessita de grandes justificativas
para ser considerado uma fonte independente autocircnoma e coerente Segundo Ska
ldquosomente o Documento Sacerdotal cria um verdadeiro enredo que une as partes
principais do Pentateuco em particular as tradiccedilotildees sobre as origens do universo
sobre os patriarcas e sobre o ecircxodordquo (SKA 2016 p 31) Haacute uma progressatildeo na
revelaccedilatildeo de Deus segundo o sacerdotal inicialmente ele eacute o criador do universo
Elohim (Gn 1ndash11) depois ele eacute o Deus dos patriarcas El Shaddai (Gn 171) e finalmente
ele eacute YHWH o Deus do ecircxodo (Ex 63) Ao unir as tradiccedilotildees sobre os antepassados de
Israel com as tradiccedilotildees sobre o ecircxodo num uacutenico enredo o sacerdotal daacute uma loacutegica a
esses dois blocos na opiniatildeo de Ska afinal ldquoDeus faz Israel sair do Egito e o conduz
ateacute a sua terra porque eacute fiel agrave promessa feita com juramento aos patriarcas (Ex 62-8
cf em particular Ex 648 e o lsquopor issorsquo do v 6 [lākēn em hebraico])rdquo (SKA 2016 p 32)
Portanto o Javista e o Eloiacutesta na opiniatildeo de Ska natildeo existiriam Pode-se encontrar
fragmentos ou estratos redacionais que possam agrupar textos anteriormente
atribuiacutedos a essas supostas fontes Ska tende a admitir que o Documento Sacerdotal
foi composto no comeccedilo do retorno do exiacutelio com a finalidade de ldquoconvencer os
exilados a voltarem para a terra prometidardquo (SKA 2016 p 42)104 Isso seria difiacutecil caso
o sacerdotal natildeo apresentasse essa terra que foi prometida a Israel Por isso Ska tende
103 Nas palavras do proacuteprio autor ldquoUma fonte eacute uma obra literaacuteria de ampla extensatildeo unificada e homogecircnea com seu estilo reconheciacutevel e uma ideia-base que confere ao conjunto unidade e coesatildeordquo (SKA 2016 p 32) 104 Nessa tese Ska se reconhece devedor do trabalho de ELLIGER Karl Sinn und Ursprung der priesterlichen Geschichtserzaumlhlung Zeitschrift fuumlr Theologie und Kirche Tuumlbingen Mohr Siebeck v 49 n 2 p 121-143 1952
109
a ver o final do Documento Sacerdotal nos capiacutetulos 13ndash14 e mesmo 201-13 do livro
de Nuacutemeros Ali eacute explicado o motivo pelo qual o povo tem de ficar quarenta anos no
deserto por ter-se recusado a entrar na terra prometida Desse modo natildeo se nega o
acesso agrave terra mas coloca-se o cumprimento da promessa em uma eacutepoca posterior
Concluindo essa trajetoacuteria da pesquisa sobre a formaccedilatildeo do Pentateuco chega-
se agrave quinta fase que eacute a atual Nesse momento coexistem grosso modo trecircs grandes
problemas que se encontram no centro das discussotildees cientiacuteficas ldquoo perfil e a coerecircncia
dos textos preacute-sacerdotais (lsquojavistasrsquo ou lsquodeuteronomistasrsquo) a diacronia interna dos
textos sacerdotais dito de outro modo o problema da gecircnese e da formaccedilatildeo do
material agrupado sob a sigla lsquoPrsquo e o papel das redaccedilotildees poacutes-sacerdotais na
composiccedilatildeo do Pentateucordquo (NIHAN ROumlMER 2009 p 158)105 Em meio a uma
pluralidade enorme de teorias e estudos os quais natildeo podem ser inteiramente
harmonizados pode-se dizer que atualmente caminha-se na direccedilatildeo de alguns
consensos entre eles pode-se destacar
a) Eacute cada vez mais realccedilada a importacircncia do trabalho dos uacuteltimos redatores e
editores da ToraacutePentateuco O que natildeo leva a negligenciar a reconstruccedilatildeo
desde as origens dos documentos tradicionais utilizados pelos editores da
Toraacute
b) Reconhece-se aos poucos que os escribas responsaacuteveis pela composiccedilatildeo da
Toraacute natildeo foram simples compiladores de fontes antigas mas eram animados
por um projeto teoloacutegico bem preciso Resta no entanto compreender
melhor quais eram os principais programas ideoloacutegicos dos editores da Toraacute
na segunda metade da eacutepoca persa
c) A Toraacute em sua forma final ldquonatildeo eacute obra de um ou dois redatores isolados
mas constitui antes de mais nada uma literatura de acordo entre as
principais correntes religiosas e poliacuteticas da eacutepoca bem como um magistral
105 Para uma exposiccedilatildeo mais detalhada a respeito das propostas de soluccedilatildeo para esses trecircs principais problemas da pesquisa sobre a formaccedilatildeo do Pentateuco consultar NIHAN ROumlMER 2009 p 158-184
110
esforccedilo de siacutentese entre as diferentes tradiccedilotildees sobre o Israel antigo coletadas
no Templo de Jerusaleacutemrdquo (NIHAN ROumlMER 2009 p 181)
d) Natildeo estaacute claro no entanto a identidade dos meios envolvidos nessa siacutentese
Algumas evidecircncias textuais fazem os estudiosos concordarem que poderia
haver trecircs categorias de escribas envolvidas escribas sacerdotais uma vez que
haacute evidecircncias de acesso agrave biblioteca do Segundo Templo escribas de
obediecircncia mais laical os quais poderiam ser herdeiros da escola
deuteronomista escribas samaritanos apesar de essa hipoacutetese necessitar ser
mais investigada eacute revelador que uma passagem tardia do Deuteronocircmio
(Dt 274-8) contenha uma instruccedilatildeo para a construccedilatildeo de um santuaacuterio sobre
o monte Garizim regiatildeo samaritana106 E mais impressionante ainda eacute o fato
de a arqueologia certificar que na verdade houve um santuaacuterio sobre esse
monte desde metade do seacuteculo V AEC o que corresponde agrave eacutepoca em que
as principais tradiccedilotildees da Toraacute comeccedilam a ser reunidas
e) Cai por terra cada vez mais a tese proposta por Peter Frei107 e aceita durante
um bom tempo por um grande nuacutemero de especialistas da ldquoautorizaccedilatildeo
imperialrdquo Segundo essa tese a administraccedilatildeo persa Aquemecircnida (cerca de
550-330 AEC tambeacutem conhecida como Primeiro Impeacuterio Persa fundado por
Ciro o Grande) teria encomendado a ediccedilatildeo da Toraacute agraves principais instacircncias
106 De fato haacute uma divergecircncia de leituras entre o texto massoreacutetico e aquele samaritano no versiacuteculo 4 do capiacutetulo 27 de Deuteronocircmio Enquanto o texto massoreacutetico lecirc ל רעיב ה ב (em monte Ebal) o Pentateuco Samaritano lecirc ב ים ז ר ג ר ה (em monte Garizim) cf ELLIGER K RUDOLPH W (1967-1977) p 332 Interessante observar que nos versiacuteculos 12 e 13 deste mesmo capiacutetulo retorna a menccedilatildeo ao monte Garizim ao inveacutes de Ebal Em Dt 1129 insiste-se que a becircnccedilatildeo seraacute colocada sobre o monte Garizim e a maldiccedilatildeo sobre o monte Ebal Muitos autores consideram a leitura samaritana como a mais antiga sendo que a inserccedilatildeo de Ebal poderia refletir a polecircmica entre os judeus e os samaritanos apoacutes o exiacutelio babilocircnico 107 Presente especialmente no artigo Zentralgewalt und Lokalautonomie im Achaumlmenidenreich In FREI Peter KOCH Klaus Reichsidee und Reichsorganisation im Perserreich 2 Aufl Freiburg Goumlttingen Universitaumltsverlag Vandenhoeck amp Ruprecht 1996 p 5-131 (Orbis biblicus et orientalis 55) A primeira ediccedilatildeo dessa obra eacute de 1984 Na verdade segundo Konrad Schmid ldquoeacute importante reconhecer que a teoria foi independentemente formulada por Erhard Blum em meados da deacutecada de 1980 embora ele tenha publicado seus resultados apenas em 1990 No entanto nem Frei nem Blum inventaram esta teoria que jaacute havia sido proposta por Eduard Meyer [1896] Hans Heinrich Schaeder Martin Noth Edda Bresciani Ulrich Kellermann Wilhelm In der Smitten e outrosrdquo (SCHMID 2007 p 24)
111
religiosas e poliacuteticas de Judaacute em Jerusaleacutem108 A proacutepria existecircncia dessa
praacutetica de ldquoautorizaccedilatildeo imperialrdquo eacute posta em duacutevida uma vez que apenas
se conseguiu descobrir ateacute o momento documentos breves e estritamente
legislativos em povos daquela regiatildeo
f) Reforccedila-se atualmente a tese de que a ediccedilatildeo da Toraacute seja mais um
desenvolvimento interno agrave comunidade de Jerusaleacutem No entanto ainda
permanecem em aberto vaacuterias questotildees Sem duacutevida ldquoum projeto tatildeo
importante reflete provavelmente as ambiccedilotildees de Jerusaleacutem apoacutes a missatildeo
de Neemias em 445 AEC a qual possivelmente procurou reabilitar a cidade
como centro econocircmico e administrativo da proviacutencia da Judeiardquo (NIHAN
ROumlMER 2009 p 182) Eacute uma revitalizaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo traacutegico do exiacutelio
babilocircnio Nessa busca por redefinir e fundamentar a identidade de Israel
pode ter-se dado contemporaneamente a preocupaccedilatildeo em reivindicar uma
autonomia em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Persa uma vez que ele natildeo domina mais
o Egito e seu poder e influecircncia se enfraquecem na regiatildeo no final do V
seacuteculo e iniacutecio do IV AEC
Voltemos agora ao ciclo de Jacoacute (Gn 25ndash36)109 agrave luz desses debates e teorias que
foram se sucedendo ao longo das uacuteltimas deacutecadas Um nuacutemero cada vez maior de
autores redescobre atraacutes da redaccedilatildeo do Pentateuco a existecircncia de vaacuterias coleccedilotildees
inicialmente independentes A partir daiacute pode-se extrair as seguintes conclusotildees110
108 As principais teorias e estudos a esse respeito podem ser encontrados em duas obras principais WATTS James W (Ed) Persia and Torah The Theory of Imperial Authorization of the Pentateuch Atlanta (GA) Society of Biblical Literature 2001 (Symposium 17) KNOPPERS Gary N LEVINSON Bernard M (Ed) The Pentateuch as Torah New Models for Understanding Its Promulgation and Acceptance Winona Lake (IN) Eisenbrauns 2007 109 Creio ser uacutetil nesse ponto fazer uma distinccedilatildeo entre ldquociclo de Jacoacuterdquo e ldquohistoacuterias de Jacoacuterdquo pois ambas expressotildees satildeo empregadas no estudo literaacuterio Sigo aqui Germano Galvagno (2009 p 10 n 2) ldquoPor lsquociclo de Jacoacutersquo entendemos o arco narrativo que vai do nascimento de Jacoacute e Esauacute ateacute o retorno do patriarca na terra de Canaatilde Gn 2519 ndash 3529 (ao qual pode-se ainda conectar 371) [] Por lsquohistoacuterias de Jacoacutersquo ao inveacutes entendemos o amplo arco narrativo que se estende do nascimento agrave morte e sepultura do patriarca agrave morte de Joseacute (Gn 2519 ndash 5026) um arco narrativo que compreende aleacutem do supracitado ciclo tambeacutem a histoacuteria de Joseacute e as vicissitudes ligadas agrave transferecircncia de Jacoacute e do seu clatilde agrave terra do Egitordquo 110 Aqui nesse ponto sou devedor de MANYANYA 2009 p 43-44
112
a) o ciclo de Jacoacute eacute provavelmente uma dessas coleccedilotildees muito antigas cuja
primeira versatildeo pode remontar agrave eacutepoca preacute-exiacutelica
b) aleacutem do Dt o escrito ou documento sacerdotal foi o uacutenico a ter sobrevivido
ao colapso do modelo documentaacuterio claacutessico (Julius Wellhausen) por isso os autores
tendem em geral a distinguir na histoacuteria de Jacoacute os textos de origem sacerdotal e
textos de outros meios De fato ldquoos textos sacerdotais do ciclo de Jacoacute quando eles satildeo
unidos entre si podem constituir um texto coerente e independente dos textos natildeo
sacerdotaisrdquo (MANYANYA 2009 p 44)
c) Quanto agrave natureza do material natildeo sacerdotal do ciclo de Jacoacute (Gn 25ndash36)
aquilo que na teoria documental da formaccedilatildeo do Pentateuco era identificado com o
ldquoJeovistardquo (J + E) pode ser visto hoje como vaacuterias coleccedilotildees inicialmente independentes
entre si antes de virem a ser unidas por um redator e editor posteriores Assim o ciclo
de Jacoacute seria um dos testemunhos mais provaacuteveis de uma unidade literaacuteria autocircnoma
em suas origens
Com relaccedilatildeo agrave dataccedilatildeo do ciclo de Jacoacute ateacute o presente momento natildeo temos um
consenso mas apenas uma convergecircncia no sentido de que o relato autocircnomo antes
de ser unido agrave histoacuteria Patriarcal teria sido produzido no Reino do Norte isto eacute Israel
por autores preacute-sacerdotais antes da anexaccedilatildeo realizada pela Assiacuteria por volta de 722-
720 AEC111
Na terceira fase da pesquisa sobre a formaccedilatildeo do Pentateuco (anos 1970-1980)
na qual se daacute a contestaccedilatildeo da teoria documentaacuteria o ciclo de Jacoacute natildeo mereceu uma
atenccedilatildeo muito grande Destacam-se os estudos empreendidos por Eckart Otto112 o
111 Erhard Blum defende que teria sido por volta do reinado de Jeroboatildeo II (cerca de 783-743) antes de Oseacuteias um processo de composiccedilatildeo em duas etapas possivelmente sob a esfera de influecircncia do santuaacuterio de Betel (cf BLUM 2012 p 210) Vaacuterios estudiosos com algumas diferenccedilas natildeo fundamentais concordam com ele entre os quais CARR 1996 p 288-289 ROumlMER 2001 p 189-190 MACCHI 2001 p 148-152 Embora alguns enfatizaram que a anaacutelise criacutetica literaacuteria natildeo permite a reconstruccedilatildeo precisa da fase literaacuteria anterior que estava por traacutes da composiccedilatildeo do seacuteculo VIII AEC CARR 1996 p 256-271 298-300 ALBERTZ 2003 p 251-252 SCHMID 2010 p 97-117 112 Em seu artigo intitulado Jakob in Bethel Ein Beitrag zur Geschichte der Jakobuumlberlieferung Zeitschrift fuumlr die alttestamentliche Wissenschaft Berlin New York Walter de Gruyter v 88 p 165-190 1976 E em sua obra Jakob in Sichem Uumlberlieferungsgeschichtliche archaumlologische und territorialgeschichtliche Studien zur Entstehungsgeschichte Israels Stuttgart Kohlhammer 1979 (Beitraumlge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament [BWANT] 110)
113
qual foi o uacutenico a continuar vendo nesse ciclo de Jacoacute um fragmento isolado de um
passado distante Para outros como Bernd Joslashrg Diebner113 a finalidade do ciclo de
Jacoacute seria simplesmente convidar os judeus que ficaram no paiacutes durante o exiacutelio
babilocircnio a buscar suas esposas junto aos seus parentes da diaacutespora os uacutenicos
representantes do ldquoverdadeiro Israelrdquo Em sua tese doutoral Thomas Roumlmer114 desfere
um ataque violento agrave questatildeo da antiguidade da tradiccedilatildeo do ciclo de Jacoacute Ele
demonstra que os ldquoPaisrdquo evocados frequentemente pelo Deuteronocircmio natildeo eram os
antigos patriarcas mas exclusivamente a geraccedilatildeo daqueles que haviam vivenciado a
saiacuteda do Egito a permanecircncia no deserto e a entrada na terra A conclusatildeo oacutebvia eacute que
as personagens de Gn 12ndash50 foram ldquoconvidadasrdquo ao Pentateuco no periacuteodo poacutes-exiacutelico
e que eram produto da eacutepoca persa de Israel Nessa linha tambeacutem vatildeo Martin Rose115
e John Van Seters116 os quais veratildeo o antigo Javista como um historiador poacutes-
deuteronomista do seacuteculo V AEC Uma postura um tanto diferente havia assumido
Rolf Rendtorff117 e em seguida seu aluno Erhard Blum118 Os quais natildeo negam a
possibilidade de antiguidade das tradiccedilotildees da histoacuteria das origens da histoacuteria
Patriarcal da histoacuteria de Moiseacutes do Sinai e outras mas insistem que o projeto
conceitual e literaacuterio que une essas histoacuterias eacute de dataccedilatildeo mais recente possivelmente
deuteronomista ou sacerdotal Blum chega a postular uma origem relativamente
antiga para o ciclo de Jacoacute119 Segundo ele todo o processo de criaccedilatildeo do ciclo de Jacoacute
113 Essa tese eacute exposta em dois artigos em coautoria com H Schult Die Ehen der Erzvaumlter Dielheimer Blaumltter zum Alten Testament Dielheim Selbstverlag v 8 p 2-10 1975 O segundo artigo eacute Alter und geschichtlicher Hintergund von Gn 24 Dielheimer Blaumltter zum Alten Testament Dielheim Selbstverlag v 10 p 10-17 1975 114 Israels Vaumlter Untersuchungen zur Vaumlterthematik im Deuteronomium und in der deuteronomistischen Tradition Freiburg Goumlttingen Universitaumltsverlag 1990 115 Deuteronomist und Jahwist Untersuchungen zu den Beruumlhrungspunkten beider Literaturwerke Zuumlrich Theologischer Verlag 1981 116 Prologue to History The Yahwist as Historian in Genesis Louisville (KY) Westminster John Knox Press 1992 117 Das uumlberlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch Berlin New York Walter de Gruyter 1976 118 Die Komposition der Vaumltergeschichte Neukirchen-Vluyn Neukirchener Verlag 1984 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament [WMANT] 57) 119 Esse autor vecirc no ciclo de Jacoacute trecircs etapas redacionais Jakoberzaumlhlung (narrativa de Jacoacute) da eacutepoca da monarquia daviacutedico-salomocircnica incluindo Gn 2521-34 27 28 292-30 3025-43 3117-3244-53 mas sem o relato de PenielFanuel nem o segundo encontro de Jacoacute com Esauacute Sob o reinado de Jeroboatildeo I essa histoacuteria de Jacoacute teria sofrido uma reinterpretaccedilatildeo importante especialmente atingindo a narrativa da teofania de Betel (enfim com a promessa) e introduzindo um segundo encontro com Esauacute e o combate noturno em PenielFanuel Essa seria entatildeo a segunda etapa redacional denominada por Blum como Kompositionsschicht (camada de composiccedilatildeo) A terceira etapa seria aquela chamada de
114
se estenderia da era daviacutedica o reinado de Jeroboatildeo II e o final do reino do norte
Outro influente autor vai nessa linha trata-se de David M Carr (1996 p 256-271) o
qual tambeacutem vecirc uma existecircncia autocircnoma para o ciclo de Jacoacute antes dele ser unido agraves
demais tradiccedilotildees patriarcais Carr postula que esse ciclo de Jacoacute foi unido ao de Joseacute
antes de ser enriquecido de diferentes fragmentos de origem judaica para formar uma
obra literaacuteria que ele qualifica como ldquoproto-Gecircnesisrdquo120 e isso teria se dado apoacutes a
queda do Reino do Norte Esse material teria sido revisado por teoacutelogos pretensamente
proacuteximos do Deuteronomista antes do exiacutelio babilocircnio Ainda segundo Carr o proto-
Gecircnesis teria sido compilado com a fonte sacerdotal por volta do V seacuteculo AEC para
constituir uma obra integral proacutexima do Gecircnesis canocircnico atual
No entanto essa excessiva divisatildeo do ciclo em textos isolados minuacutesculos
pertencentes a diferentes eacutepocas histoacutericas natildeo deixa de ser problemaacutetica ldquoComo natildeo
ver que uma histoacuteria de fraude como Gn 27 seja inconcebiacutevel sem uma sequecircncia ou
histoacuterias de encontros como Gn 28 ou Gn 32 sejam incompreensiacuteveis sem um contexto
narrativordquo (PURY 2001 p 218)121
Na opiniatildeo desse mesmo autor (Albert de Pury) a histoacuteria de Jacoacute apresenta
uma loacutegica muito forte e incontornaacutevel a cada etapa do crescimento literaacuterio de seu
ciclo
Esta loacutegica pretende que um heroacutei excluiacutedo encontre acolhimento em um clatilde estrangeiro e consiga graccedilas aos seus talentos sua perseveranccedila e sua astuacutecia natildeo somente desposar as filhas do xeique e obter numerosos filhos mas ainda enriquecer-se e depois finalmente compelir o clatilde-matildee a reconhecer a famiacutelia novamente constituiacuteda como um clatilde autocircnomo Tudo aquilo que conteacutem o ciclo de Jacoacute os conflitos as tensotildees as resoluccedilotildees de tensotildees os encontros divinos a partida o ou os retornos tudo se explica por esta loacutegica onipresente Tudo isso natildeo tem necessidade de ser da mesma proveniecircncia ou
Jakobgeschichte (histoacuteria de Jacoacute) que teria integrado uma primeira versatildeo da histoacuteria de Joseacute realizando uma ligaccedilatildeo com a histoacuteria de Moiseacutes (cf PURY 2001 p 218 n 14) 120 Nas proacuteprias palavras de Carr a expressatildeo ldquoproto-Gecircnesisrdquo que ele emprega ldquodesigna o estaacutegio mais antigo no qual a histoacuteria primitiva e o material relativo a todas as trecircs figuras ancestrais foi unido em uma uacutenica narrativa De fato alguns indicadores neste material do proto-Gecircnesis sugeriria que poderiacuteamos estar lidando aqui com um lsquoproto-Pentateucorsquordquo (CARR 1996 p 177) 121 Cf tambeacutem PURY 2002 p 263-270 e The Jacob story and the beginning of the formation of the Pentateuch In DOZEMAN Thomas B SCHMID Konrad (Ed) Farewell to the Yahwist The Composition of the Pentateuch in Recent European Interpretation Atlanta (GA) Society of Biblical Literature 2006 p 59-72 (Society of Biblical Literature Symposium Series 34)
115
da mesma eacutepoca mas tudo natildeo eacute concebido ou natildeo ocorre que a partir do destino de Jacoacute assim delineado (PURY 2001 p 219)
O ponto de partida desse autor eacute a suposiccedilatildeo de que a histoacuteria de Jacoacute deve ser
lida como uma saga de fundaccedilatildeo autocircnoma dos filhos de Jacoacute ou os filhos de Israel
Como uma lenda das origens da sociedade tribal israelita que reflete a famiacutelia clatilde e
tribos do Israel preacute-monaacuterquico Ela representa as relaccedilotildees de Israel com seus ldquoirmatildeosrdquo
vizinhos ou seja EsauacuteEdom e LabatildeoHaratilde bem como reivindicaccedilotildees territoriais de
Israel lugares de culto (Betel Siqueacutem e Peniel) e centros urbanos (Masfa Maanaim
Sucot) Esse autor ndash de Pury ndash sugeriu uma espeacutecie de estratigrafia textual para datar
a histoacuteria Ele examinou a profecia de Oseacuteias 12 (cf PURY 2001 p 227-235) e propocircs
que o profeta estava ciente da histoacuteria de Jacoacute em Gecircnesis 25ndash35 e portanto a histoacuteria
pelo menos em sua forma oral antecedeu a profecia que foi composta por escrito no
final do seacuteculo VIII AEC Ele ainda sugeriu que a histoacuteria de Jacoacute influenciou a
formaccedilatildeo da figura de Moiseacutes em Ecircxodo 2ndash4 e que o autor sacerdotal (PG)122 conhecia
a histoacuteria de Jacoacute e usou-a para formar a sua proacutepria composiccedilatildeo do iniacutecio da histoacuteria
de Israel Com base nessas evidecircncias de Pury datou a histoacuteria natildeo-sacerdotal de Jacoacute
em Gecircnesis 25ndash35 como sendo do seacuteculo VIII AEC ou um pouco mais recente antes da
anexaccedilatildeo pela Assiacuteria do Reino do Norte em 720 AEC Ele ainda lanccedilou a hipoacutetese que
a histoacuteria de Jacoacute representa a maior lenda de origem do norte israelita cujas raiacutezes
podem remontar tatildeo cedo quanto o periacuteodo preacute-monaacuterquico
De Pury identifica que o autor sacerdotal parece ter escrito por volta de 530 a
500 AEC no iniacutecio da dominaccedilatildeo persa e possivelmente no contexto da reconstruccedilatildeo
do Templo de Jerusaleacutem (520-515 AEC) De fato haacute uma certa convergecircncia em
identificar os textos sacerdotais no interior do ciclo de Jacoacute como sendo as seguintes
passagens123 Gn 257-1719-2026d 2634-35 2746 281-9 356a11-1315 () 3118a
359-1022d-29 36940-43 Portanto a nossa periacutecope (Gn 3223-33) natildeo seria de autoria
sacerdotal apesar de ldquodialogarrdquo com a mesma na composiccedilatildeo final da obra do
122 Esse ldquoGrdquo em sobrescrito agrave abreviaccedilatildeo para o documento sacerdotal (P) significa ldquoprimitivordquo (do alematildeo Grundschrift) essencialmente narrativo sem a incorporaccedilatildeo da parte legislativa legal 123 Cf PURY 2001 p 222-223 LOHFINK 1996 p 14 A sequecircncia dos textos eacute uma proposta de Albert de Pury
116
Pentateuco Segundo de Pury (2001 p 225) o autor sacerdotal conhece obviamente
as duas cenas do encontro divino com Jacoacute (Gn 2810-22 ndash com a promessa e Gn 3223-
33 ndash com o dom do nome de Israel)124 Ainda segundo esse autor o escrito sacerdotal
natildeo funde esses dois episoacutedios em um soacute como aparece atualmente em Gn 359-15 mas
deveria haver na redaccedilatildeo sacerdotal primitiva (PG) duas cenas Gn 356a11-15
(apariccedilatildeo divina com a promessa de descendecircncia que corresponde agrave antiga tradiccedilatildeo
de Gn 2810-22) e Gn 359-10 (apariccedilatildeo divina quando Jacoacute retorna de Padatilde-Aram com
a mudanccedila do nome de Jacoacute em Israel o que corresponderia a Gn 3223-33)
A suposiccedilatildeo de que a maior parte da histoacuteria de Jacoacute preacute-sacerdotal foi
composta no reino do norte Israel antes da conquista Assiacuteria pode ser considerada a
mais amplamente aceita na investigaccedilatildeo biacuteblica recente Alguns estudiosos localizam
essa redaccedilatildeo mais no periacuteodo exiacutelico e poacutes-exiacutelico como eacute o caso de Bert Dicou125 e
Harald Martin Wahl126 Mario Liverani127 abordou a histoacuteria do ciclo patriarcal em sua
forma final como uma uacutenica unidade e sugeriu que seus principais contornos situam-
se no periacuteodo poacutes-exiacutelico embora ele faccedila derivar a maior parte de suas informaccedilotildees
das tradiccedilotildees originaacuterias da terra de Israel (reino do norte) Entre os elementos poacutes-
exiacutelicos nessas histoacuterias Liverani destaca as relaccedilotildees dos patriarcas com os vizinhos
de Israel (em particular os edomitas arameus e aacuterabes) a terra que estaacute vazia de reinos
locais a proibiccedilatildeo do casamento com os cananeus locais e o casamento com primos
que viviam na Alta Mesopotacircmia que deve ser lida agrave luz da situaccedilatildeo poacutes-exiacutelica da
relaccedilatildeo entre os retornados e os remanescentes na terra
124 Mais que isso segundo este estudioso o ldquoautor sacerdotal por volta de 520 [AEC] conhece o ciclo de Jacoacute praticamente em sua configuraccedilatildeo atual Certamente isso natildeo significa que P conhecesse a histoacuteria de Jacoacute jaacute unida agravequela de Abraatildeo ou servindo jaacute de proacutelogo agrave histoacuteria de Moiseacutes [] mas natildeo haacute duacutevida que na sua arquitetura interna senatildeo em todos os seus detalhes a histoacuteria de Jacoacute tinha jaacute a forma que noacutes conhecemos em Gn 25 ndash35rdquo (PURY 2001 p 225-226) 125 Edom Israelrsquos Brother and Antagonist The Role of Edom in Biblical Prophecy and Story Sheffield Sheffield Academic Press 1994 126 Die Jakobserzaumlhlungen Studien zu ihrer muumlndlichen Uumlberlieferung Vorschriftung und Historizitaumlt Berlin New York Walter de Gruyter 1997 127 Israelrsquos History and the History of Israel London Oakville Equinox Publishing 2005
117
Em estudos mais recentes contudo tecircm surgido alguns problemas em relaccedilatildeo
a essas propostas de contextualizaccedilatildeo do ciclo de Jacoacute Basicamente podemos destacar
dois em especial128
a) Falta uma explicaccedilatildeo razoaacutevel a respeito da aacutecida inimizade que vaacuterios
autores identificam entre JacoacuteIsrael e EsauacuteEdom e para o temor de Israel
em relaccedilatildeo ao poder de EsauacuteEdom Isso se assumirmos que a histoacuteria de
Jacoacute tenha sido escrita no Reino de Israel (do Norte)129 Eacute de se observar que
durante o periacuteodo monaacuterquico o Reino de Israel era muito mais forte que
aquele de Edom e este em nenhum momento poderia ter sido uma ameaccedila
a Israel Mesmo porque os dois reinos localizavam-se em regiotildees
geograacuteficas remotas o que dificultaria relaccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e
culturais tais como aquelas refletidas na histoacuteria de Jacoacute Portanto datar os
episoacutedios de Esauacute e Jacoacute na eacutepoca da monarquia israelita do norte contrasta
com a realidade dos seacuteculos X ao VIII AEC
b) Tendo em conta a origem local dos habitantes de Israel e de Judaacute e as
contiacutenuas relaccedilotildees hostis com os arameus em mente ldquonenhuma explicaccedilatildeo
foi oferecida para os supostos viacutenculos familiares de proximidade entre a
famiacutelia Patriarcal e um grupo de arameus que viviam na Alta Mesopotacircmiardquo
(NArsquoAMAN 2014 p 98) ou para a busca de noivas arameias para Isaac e
Jacob nesta regiatildeo Historiadores e arqueoacutelogos concordam nos dias atuais
que os grupos populacionais da Era do Ferro I-IIA (dos seacuteculos XII ao IX
128 Aqui fundamento-me em NArsquoAMAN 2014 p 98 129 Vaacuterios estudiosos jaacute sugeriram que a identificaccedilatildeo de Esauacute e monte Seir com Edom eacute secundaacuteria e que originalmente Esauacute era uma figura independente natildeo relacionada a Edom Entre os que assim pensam temos MAAG V Jacob-Esau-Edom In Theologische Zeitschrift Basel Theologischen Fakultaumlt der Universitaumlt Basel v 13 p 418-429 1957 BARTLETT JR The land of Seir and the brotherhood of Edom In Journal of Theological Studies Oxford (UK) Oxford University Press v XX n 1 p 1-20 Apr 1969 BARTLETT JR Edom and the Edomites Sheffield Sheffield Academic Press 1989 (Journal for the study of the Old Testament mdash Supplement series [JSOTS 77) p 175-180 RAD Gerhard von El libro del Genesis Trad Santiago Romero Salamanca Siacutegueme 1977 (Biblioteca de Estudios Biblicos 18) NOTH Martin A history of the Pentateuchal traditions Trad Bernhard W Anderson Chico (CA) Scholars Press 1981 p 94-98 192-193 OTTO Eckart Jakob in Sichem Uumlberlieferungsgeschichtliche archaumlologische und territorialgeschichtliche Studien zur Entstehungsgeschichte Israels Stuttgart Berlin Koumlln Mainz Kohlhammer 1979 (Beitraumlge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament 110) p 24-40 DICOU Bert Edom Israels Brother and Antagonist The role of Edom in biblical prophecy and story Sheffield Sheffield Academic Press 1994 (Journal for the study of the Old Testament mdash Supplement series [JSOTS 169) p 137-154 SKA 2001 p 11-21
118
AEC aproximadamente) que se estabeleceram nas terras altas de Canaatilde e
mais tarde fundaram os reinos de Israel e Judaacute viviam anteriormente seja
na Terra de Canaatilde como proacuteximos agraves suas fronteiras Outra informaccedilatildeo
importante eacute que o arameus eram inimigos de Israel ao longo da histoacuteria do
Reino do Norte como aparece indicado nos relatos do livro de Reis na
inscriccedilatildeo de Tel Dan e na profecia de Amoacutes
Aleacutem desses dois aspectos histoacuterico-culturais deve-se levar em consideraccedilatildeo
que outros detalhes na histoacuteria de Jacoacute preacute-Sacerdotal refletem uma dataccedilatildeo exiacutelica ou
poacutes-exiacutelica Portanto natildeo se encaixam na suposiccedilatildeo largamente aceita de uma obra
israelita do norte composta antes da conquista assiacuteria de 720 AEC Nessa tentativa de
dataccedilatildeo (seacutec VIII AEC) os estudiosos sugeriram que todos esses elementos elencados
anteriormente natildeo eram originais agrave histoacuteria de Jacoacute Alguns desses dados considerados
secundaacuterios no entanto satildeo muito reveladores Vejamos130
a) A histoacuteria preacute-Sacerdotal de Jacoacute comeccedila e termina em regiotildees sem nenhuma
relaccedilatildeo com o Reino do Norte No princiacutepio da histoacuteria a famiacutelia de Jacoacute
reside em Bersabeia (heb Buumlacuteeumlr šaumlordmba`) bem distante da fronteira sul do Reino
do Norte (Gn 262333) O ciclo de Jacoacute termina com o sepultamento de
Raquel proacuteximo a EacutefrataBeleacutem (Gn 3519) novamente em territoacuterio de
Judaacute Para superar essas dificuldades Bersabeia foi omitida do ciclo original
de Jacoacute Beleacutem em Gn 3519 foi considerada uma glosa e o tuacutemulo de Raquel
foi identificado na fronteira norte de Benjamin proacuteximo agrave fronteira
meridional do Reino de Israel131
b) Uma vez que o conceito de Doze tribos (Gn 2931ndash3024 3516-18) eacute estranho
agrave realidade do Reino do Norte os defensores de uma redaccedilatildeo preacute-
dominaccedilatildeo assiacuteria para o ciclo de Jacoacute considerou essa unidade como sendo
de origem independente que foi secundariamente unida a esse contexto132
130 Aqui novamente sou devedor da siacutentese de NArsquoAMAN 2014 p 99 131 Apoiam essa teoria BLUM Erhard Die Komposition der Vaumltergeschichte Neukirchen-Vluyn Neukirchener Verlag 1984 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament [WMANT] 57) p 207-208 CARR 1996 p 260-261 132 Defendem essa proposta NOTH Martin A history of the Pentateuchal traditions Trad Bernhard W Anderson Chico (CA) Scholars Press 1981 p 99-100 BLUM Erhard Op cit p 110-111 169-171 VAN SETERS John Prologue to History The Yahwist as historian in Genesis Louisville (KY) Westminster John Knox Press 1992 p 278 CARR 1996 p 263
119
c) A localidade de Haratilde (em acaacutedio iumlarrānu) tornar-se-aacute proeminente apoacutes os
uacuteltimos anos do impeacuterio assiacuterio em particular sob o impeacuterio neobabilocircnico
Portanto do final do seacuteculo VIII ao VI AEC No entanto ela aparece em
destaque no ciclo de Jacoacute Haratilde eacute mencionada trecircs vezes para indicar a
localizaccedilatildeo da famiacutelia de Labatildeo (Gn 2743 2810 294) A localizaccedilatildeo da
famiacutelia atraveacutes do ldquoriordquo (ou seja o Eufrates) eacute explicitamente observada em
Gn 3121 A fim de superar tais incongruecircncias estudiosos sugeriram que
essas localidades ndash Haratilde e o Eufrates ndash satildeo fruto de inserccedilotildees tardias obra
de um compilador133
d) Outro elemento estranho ao periacuteodo da monarquia de Israel (Reino do
Norte) eacute a forma de ldquopromessasrdquo Uma tese aceita pela maior parte dos
especialistas admite que as promessas aos ancestrais de Israel surgiram
primeiramente em uma eacutepoca em que a existecircncia de Israel estava muito
ameaccedilada provavelmente no periacuteodo exiacutelico134 Ademais as promessas
feitas a Jacoacute estatildeo estreitamente ligadas agravequelas realizadas a Abraatildeo e
algumas promessas feitas a Abraatildeo foram cumpridas durante o ciclo de Jacoacute
Novamente alguns estudiosos procuram minimizar esse dado afirmando
que as promessas satildeo elementos secundaacuterios no ciclo original de Jacoacute135
e) Finalmente haacute o caso das ldquodivindadesrdquo ou ldquopoderes celestiaisrdquo136 de
Abraatildeo Nacor e Isaac mencionados no episoacutedio do encontro de Jacoacute e Labatildeo
proacuteximo a Masfa (Gn 314253) o que parece indicar que o autor estava
familiarizado com suas histoacuterias Em consequecircncia tambeacutem essas passagens
satildeo consideradas secundaacuterias em relaccedilatildeo ao ciclo original de Jacoacute
133 Tese de BLUM Erhard Op cit p 164-167 134 Quem primeiramente fez essa constataccedilatildeo foi Jacob Hotijzer em sua obra Die Verheissungen an die drei Erzvaumlter publicada em 1956 pela Brill de Leiden na Holanda 135 Eacute o caso de EMERTON John Adney The origin of the promises to the Patriarchs in the older sources of the book of Genesis In Vetus Testamentum Leiden Brill v 32 fasc 1 p 14-32 Jan 1982 BLUM Erhard Op cit p 152-164 297-301 VAN SETERS John Op cit p 298-300 ALBERTZ Rainer Israel in exile The history and literature of the sixth century BCE Trad David Green Atlanta (GE) Society of Biblical Literature 2003 (Studies in Biblical Literature) p 246-251 SCHMID 2010 p 97-101 136 A Biacuteblia de Jerusaleacutem traduz essa divindade como o ldquoParenterdquo de Isaac pode ser traduzido tambeacutem por ldquoo TemorTerror de Isaacrdquo
120
Apoacutes fornecer um amplo quadro de informaccedilotildees arqueoloacutegicas histoacutericas e
literaacuterias Nadav Narsquoaman (cf 2014 p 100-116) chega agraves seguintes conclusotildees a
respeito da dataccedilatildeo da composiccedilatildeo preacute-Sacerdotal das histoacuterias de Jacoacute
(1) A influecircncia das obras literaacuterias babilocircnicas na formaccedilatildeo dos dois episoacutedios centrais da histoacuteria de Jacoacute137 aponta para um periacuteodo no qual o Impeacuterio Babilocircnico governava a terra de Israel
(2) Versotildees mais recentes de vaacuterias obras literaacuterias do norte-israelitas e judaicas estavam disponiacuteveis ao autor
(3) Natildeo existiam reinos na vasta aacuterea entre Bersabeia e Masfa e todos os territoacuterios dos antigos reinos de Israel e Judaacute satildeo apresentados como uma entidade poliacutetica Esta realidade reflete o tempo apoacutes a anexaccedilatildeo babilocircnica de todos os reinos na regiatildeo no iniacutecio do seacuteculo VI AEC
(4) Haratilde o principal centro urbano da Alta Mesopotacircmia no final dos seacuteculos VIII-VI eacute apresentada como um local-chave no ciclo histoacuterico patriarcal
(5) Referecircncias expliacutecitas a Jerusaleacutem estatildeo faltando na descriccedilatildeo o que indica que a cidade foi colocada em ruiacutenas no momento da composiccedilatildeo ndash ou seja depois de 586 AEC
(6) A grave ameaccedila dos edomitas (Esauacute) sobre Israel (Jacoacute) indica que a histoacuteria de Jacoacute foi escrita depois da queda do Reino de Judaacute numa eacutepoca em que os edomitas comeccedilaram a se expandir para o norte e ameaccedilaram os habitantes do Negueb da Sefelaacute as terras altas de Hebron
(7) As promessas de prole e de terra e as becircnccedilatildeos refletem o periacuteodo exiacutelico quando a mera existecircncia dos que permaneceram na terra estava em perigo
(8) As esperanccedilas de retorno dos deportados assiacuterios e babilocircnios refletem o periacuteodo exiacutelico apoacutes as deportaccedilotildees de judeus para a Babilocircnia em 598 e 5876
Esta evidecircncia esclarece que a histoacuteria Patriarcal preacute-sacerdotal foi escrita pouco depois da destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e da anexaccedilatildeo babilocircnica de Judaacute e dos reinos da Transjordacircnia Uma data em meados do seacuteculo VI um pouco antes da ascensatildeo do impeacuterio persa se encaixa bem todas as evidecircncias disponiacuteveis (NArsquoAMAN 2014 p 116-117)
Enfim a autoria dessas histoacuterias patriarcais poderia ser identificada como tendo
as seguintes caracteriacutesticas138
a) Local de redaccedilatildeo na regiatildeo de Betel que desde o tempo de Josias foi incluiacuteda
no Reino de Judaacute fazendo fronteira com a proviacutencia assiacuteria e babilocircnica de
Samaria Isso eacute perceptiacutevel pelo fato dos relatos patriarcais manifestarem
uma familiaridade com os lugares do sul de Judaacute e regiotildees vizinhas ao sul e
com as tradiccedilotildees orais de Judaacute De outro lado percebe-se tambeacutem uma
137 Segundo o autor seriam as periacutecopes de Gn 2810-22 (o sonho em Betel) e Gn 3223-33 (a luta com o ser divino e a mudanccedila de nome) 138 Cf NArsquoAMAN 2014 p 117-119
121
familiaridade com os centros urbanos norte-israelitas e suas memoacuterias
culturais Por isso a sua obra conteacutem elementos das histoacuterias orais de ambas
as regiotildees (Judaacute e Israel) bem como de obras literaacuterias a elas pertencentes
Por isso ldquodescreveu em detalhes as lendas de fundaccedilatildeo dos dois principais
templos de Judaacute (Jerusaleacutem) e Israel (Betel) enfatizando a santidade de sua
proacutepria cidaderdquo (NArsquoAMAN 2014 p 118)
b) Finalidade dessa produccedilatildeo literaacuteria a histoacuteria Patriarcal portanto veio ao
encontro da necessidade de criar-se uma cultura comum entre as vaacuterias
tribos e povos que se encontravam naquela regiatildeo no periacuteodo exiacutelico e poacutes-
exiacutelico A base dessa cultura era ldquoo conceito da unidade autoacutectone do povo
de Israelrdquo o qual ldquotornou-se o conceito ideoloacutegico central para a elite e os
escribas das duas comunidades [Israel e Judaacute]rdquo (NArsquoAMAN 2014 p 118)
Essa criaccedilatildeo literaacuteria foi um passo decisivo nos esforccedilos para constituir uma
histoacuteria e uma identidade comuns para as duas comunidades que
permaneceram na terra Esse ciclo histoacuterico Patriarcal apresenta uma
inovaccedilatildeo ao conceber seja os trecircs ancestrais (Abratildeo Isaac e Jacoacute) do povo
como as Doze Tribos como uma corporificaccedilatildeo da origem segregada de
Israel
c) Formaccedilatildeo dessa literatura essa histoacuteria Patriarcal nela incluiacutedo o ciclo de
Jacoacute eacute uma narrativa baseada em tradiccedilotildees orais cujo ldquoescopo e detalhe natildeo
podem ser estabelecidos o que o autor aumentou consultando algumas
fontes escritas e adicionando vaacuterios elementos literaacuterios e ideoloacutegicos de sua
proacutepria imaginaccedilatildeo criativardquo (NArsquoAMAN 2014 p 119) Algumas dessas
tradiccedilotildees incluiacutedas nos relatos patriarcais eram provavelmente memoacuterias
culturais genuiacutenas de Israel e Judaacute mas traccedilar uma clara linha divisoacuteria entre
as tradiccedilotildees orais suas elaboraccedilotildees literaacuterias e as tradiccedilotildees inventadas do
narrador eacute impossiacutevel
d) Sitz im Leben da histoacuteria Patriarcal o ciclo de Jacoacute-Esauacute reflete a anguacutestia de
Judaacute como resultado da expansatildeo de Edom no sul por um lado e a
esperanccedila de reconciliaccedilatildeo e retorno ao status quo anterior por outro O fato
de Bersabeia aparecer como local-sede dos Patriarcas que anteriormente
122
marcava o limite sul de Judaacute com Edom e provavelmente foi destruiacuteda no
momento em que o ciclo de histoacuteria foi composto reflete a esperanccedila de
retorno agraves fronteiras existentes no glorioso periacuteodo monaacuterquico dos dois
reinos
e) Gecircnero literaacuterio seguindo uma proposta de ROumlMER (cf 2012 p 69-71) as
duas primeiras partes da BH (Toraacute e Nebiim) podem ser interpretadas como
ldquoliteratura de criserdquo como respostas diferentes agrave perda da independecircncia
poliacutetica e da monarquia apoacutes 587 AEC (queda de Jerusaleacutem capital do Reino
de Judaacute) Contudo a resposta que a histoacuteria Patriarcal fornece eacute diferente
daquela redigida pelos escribas da diaacutespora babilocircnica que enfatizam mais
a terra de Israel como ldquoTerra Vaziardquo e representam a comunidade dos
deportados constituiacuteda em sua maioria por pessoas da corte e integrantes
das camadas mais abastadas (cf ROumlMER 2012 p 71) como sendo o
ldquoverdadeirordquo Israel A perspectiva do nosso autor eacute diversa indo mais na
linha daquilo que encontramos no profeta Ezequiel (3324) ldquoos habitantes
daquelas ruiacutenas na terra de Israelrdquo A crise eacute vista por esse gecircnero de
literatura em uma triacuteplice perspectiva como ocasiatildeo para preparar algo de
novo em uma visatildeo mais utoacutepica oportunidade para retornar agraves origens
aos fundamentos da accedilatildeo divina e por uacuteltimo como momento para se
analisar o que aconteceu buscando compreender melhor as razotildees os
motivos dos problemas vividos139
f) Destinataacuterios a obra destinava-se a um puacuteblico composto pela elite e pela
comunidade mais ampla do ldquoNovo Israelrdquo ou seja os habitantes dos antigos
reinos de Israel e Judaacute O ciclo histoacuterico dos Patriarcas aiacute incluiacutedo aquele de
139 Cf ROumlMER 2012 p 70 Esse autor se inspira na teoria socioloacutegica de Armin Steil (Krisensemantik Wissenssoziologische Untersuchungen zu einem Topos moderner Zeiterfahrung Oplanden Leske amp Buderich 1993) que analisando as mudanccedilas socioeconocircmicas e ideoloacutegicas que conduziram agrave Revoluccedilatildeo Francesa constatou que a semacircntica da crise comportava a elaboraccedilatildeo de diferentes modelos ideoloacutegicos como reaccedilatildeo ao colapso do Antigo Regime Steil identifica trecircs atitudes caracterizadas por nomes da tradiccedilatildeo religiosa o profeta (escatoloacutegico-utoacutepico) que enxerga na crise a oportunidade para mudanccedilas para o ldquonovordquo o sacerdote (miacutetico-ciacuteclico) que vecirc na crise a ocasiatildeo para retornar agraves origens agraves instituiccedilotildees fundadas pela accedilatildeo divina e o mandarim (remoto explicativo) que visualiza na crise a necessidade de uma anaacutelise explicativa para a sua ocorrecircncia Segundo Roumlmer esse modelo pode ser aplicado na anaacutelise da literatura biacuteblica especialmente da Toraacute e Nebiim (profetas)
123
Jacoacute representou um importante passo para criar um sentido de unidade
entre os devotos de YHWH que permaneceram na terra
Obviamente esta teoria defendida por NArsquoMAN natildeo eacute aceita por todos os
pesquisadores bem como natildeo estaacute livre de questionamentos Uma vez que os textos
que compotildeem o ciclo de Jacoacute como eacute o nosso caso apresentarem provaacuteveis
diversidades de origem e finalidade Como jaacute vimos haacute uma justaposiccedilatildeo de materiais
sacerdotais e natildeo-sacerdotais no interior do ciclo de Jacoacute Sem falar que muitos autores
natildeo conseguem ver no territoacuterio de Israel durante o periacuteodo do exiacutelio babilocircnico
grupos que pudessem produzir um material como este que estamos analisando
Contudo natildeo podemos esquecer que grupos profeacuteticos seguiram presentes na suposta
ldquoTerra Vaziardquo do Israel do periacuteodo exiacutelico Eacute o caso de Ezequiel como jaacute foi
mencionado
Portanto tendemos a aceitar como muito provaacutevel a proposta de NArsquoAMAN
devido ao seu forte embasamento histoacuterico arqueoloacutegico e literaacuterio sendo capaz de
explicar muitas divergecircncias e dificuldades que o texto apresenta sem ter de recorrer
frequentemente a justificativas do tipo satildeo textos acrescentados tardios satildeo glosas
introduzidas por copistas satildeo textos secundaacuterios ao conjunto da histoacuteria do texto e
assim por diante
Nesse sentido o estudo de SWEENEY (2016 p 236-255) confronta aquele que
jaacute apresentamos de NArsquoMAN (2014) Uma vez que para NArsquoAMAN a redaccedilatildeo do ciclo
de Jacoacute se daacute durante e logo apoacutes o periacuteodo do exiacutelio babilocircnico voltado para os que
ficaram na terra de Israel e que necessitam ter forccedilas e esperanccedilas para poder voltar a
ser uma naccedilatildeo As frequentes e importantes referecircncias a localidades no antigo Reino
do Norte (Israel) que para SWEENEY seria uma indicaccedilatildeo de que a narrativa do ciclo
de Jacoacute eacute realizada a partir dessa perspectiva para NArsquoAMAN eacute somente uma forma
do autor unir tradiccedilotildees do norte e do sul para dar um caraacuteter unificado agraves origens do
povo para que esse somasse forccedilas na reconstruccedilatildeo no periacuteodo exiacutelico e poacutes-exiacutelico
Portanto o debate permanece em aberto uma vez que os mesmos textos e os mesmos
fatos histoacutericos podem motivar interpretaccedilotildees e dataccedilotildees bem diferentes para o
periacuteodo de redaccedilatildeo final do ciclo de Jacoacute
124
Para nosso escopo o mais importante no momento eacute compreendermos a
estruturaccedilatildeo do texto e analisarmos aquilo que ela potildee em evidecircncia
5 Delimitaccedilatildeo e estrutura
O nosso texto (Gn 3223-33) eacute cuidadosamente inserido no contexto do retorno
de Jacoacute para a terra de Israel e o seu reencontro com Esauacute seu irmatildeo Haacute uma
sequecircncia geograacutefica em princiacutepio muito loacutegica a amparar a narrativa140
a) Jacoacute separa-se de Labatildeo seu tio em Galaad (Gn 31)
b) depois Jacoacute passa por Maanaim (Gn 321-3)
c) atravessa o rio Jaboc141 proacuteximo de Fanuel (3223-33)
d) desce no sentido do rio alcanccedilando Sucot (Gn 3317) e
e) chega finalmente a Siqueacutem na regiatildeo montanhosa central da Palestina (Gn
3317-20)
O autor inclui durante esse itineraacuterio as diversas etapas do reencontro de Jacoacute
com Esauacute o irmatildeo que ele enganara para obter a becircnccedilatildeo da primogenitura
a) Jacoacute envia mensageiros ao encontro de seu irmatildeo os quis retornam com
notiacutecias nada boas (Gn 323-6)
b) na busca de evitar o pior Jacoacute divide suas posses em vaacuterios rebanhos e envia
a Esauacute generosos presentes (Gn 27-813-22)
c) quando verifica o avanccedilo de seu irmatildeo com os homens dele divide suas
mulheres e seu filhos para poupaacute-los de algo ruim (Gn 3223-25)
d) em seguida vai ao encontro de Esauacute passando adiante de todos (Gn 331-3)
e) Agora finalmente acontece a reconciliaccedilatildeo (Gn 334-16)
A uniatildeo dos elementos geograacuteficos com a narrativa acaba formando uma
estrutura quiaacutestica interessante onde a cena de abertura e de encerramento trazem
algo de manifestaccedilatildeo transcendente bem como a cena central
Vejamos142
140 Acompanho aqui DIETRICH 2001 p 202-203 141 Eacute consenso que este rio seja o atual Nahr ez-Zerkauml (Rio Azul) em aacuterabe cujo curso intermediaacuterio separa
Gebel `Aglun de el-Belkauml e que flui para o Jordatildeo cerca de 32 km ao norte do Mar Morto (cf SKINNER
1994 p 408) 142 Vaacuterios estudiosos apoiam a grosso modo esse esquema quiaacutestico entre eles WENHAM 1994 p 287 e DIETRICH 2001 p 203
125
A 321-3 Os anjos de Deus em Maanaim
B 323-813-22 Preparaccedilatildeo para encontrar Esauacute143
C 3223-33 Luta com ldquoum homemrdquo (anjo) em Fanuel
Brsquo 331-16 Reconciliaccedilatildeo com Esauacute
Arsquo 331718-20 Culto a El (Deus) em Siqueacutem
Os elementos transcendentais na abertura (Gn 322) em Maanaim satildeo os ldquoanjos
de Deusrdquo (malacuteaacutekecirc acuteeacuteloumlhicircm) e no encerramento (Gn 3320) em Siqueacutem eacute o fato de Jacoacute
erguer um altar que chamou ldquoEl Deus de Israelrdquo (acuteeumll acuteeacuteloumlhecirc yiSraumlacuteeumll) Recordando que
natildeo deve ser mero acaso que o nome ldquoIsraelrdquo reapareccedila pela primeira vez aqui apoacutes a
periacutecope do Jaboc (Gn 322933)
Eacute de se observar tambeacutem que toda essa composiccedilatildeo acima identificada em
forma quiaacutestica foi cuidadosamente rejuntada Citemos somente um exemplo
impressionante em Gn 3231 Jacoacute explica o nome Fanuel dizendo que ldquoviu a face de
Deusrdquo Antes na preparaccedilatildeo para encontrar o irmatildeo (Gn 3221) Jacoacute tinha expressado
a esperanccedila de ldquover a facerdquo (acuteeracuteegrave paumlnaumlyw) de Esauacute e de que este ldquolevantaraacute sua facerdquo
(yiSSaumlacute paumlnaumly) como um gesto de aceitaccedilatildeo e acolhimento Essa mesma expressatildeo
reaparece em Gn 3310 quando Jacoacute diz que ldquoviu a face [de Esauacute] como se visse a face
de Deusrdquo (raumlacuteicircordmticirc paumlnEcircordmkauml Kiracuteoumlt Puumlnecirc acuteeacuteloumlhicircm)
Portanto a nossa periacutecope (Gn 3223-33) encontra-se no centro da subunidade
do ciclo de Jacoacute que trata do retorno deste agrave terra onde nascera e fora educado bem
como o reencontro com seu irmatildeo rival
Outro aspecto a se observar e que natildeo deve se constituir em um acaso narrativo
satildeo as duas cenas que formam como que ldquodobradiccedilasrdquo para articular dois momentos
decisivos na vida de Jacoacute a personagem central Antes de Jacoacute encontrar-se com a
famiacutelia de sua matildee na pessoa de seu tio Labatildeo ele tem a experiecircncia de uma
manifestaccedilatildeo divina em formato de sonho quando estaacute em Betel (Gn 2810-22) A
segunda cena eacute justamente a nossa periacutecope (Gn 3223-33) que se passa em Fanuel agraves
143 A oraccedilatildeo de Jacoacute em Gn 329-12 trecho que extraiacutemos do esquema acima eacute claramente uma inserccedilatildeo posterior tendo relaccedilatildeo com Gn 313 que eacute tambeacutem um acreacutescimo tardio (cf DIETRICH 2001 p 203 n 23)
126
margens do Jaboc a qual antecede o importante e tenso reencontro de Jacoacute com seu
irmatildeo Esauacute E as semelhanccedilas natildeo param aqui Vejamos
a) Ambas as cenas parecem originar-se de lendas locais ou de santuaacuterio natildeo
tendo portanto uma ligaccedilatildeo nem com o material da tradiccedilatildeo de Jacoacute-Labatildeo
nem com aquele de Jacoacute-Esauacute
b) Ambas descrevem um encontro com Deus ou divindade
c) Nos dois casos esse encontro ocorre em noite cerrada de modo a
permanecer um veacuteu sobre o acontecimento
d) Em ambos os casos Jacoacute fica profundamente comovido pelo encontro
e) Nas duas cenas fica claro que Deus quer o bem de Jacoacute e isso em ocasiotildees
tensas e decisivas da vida da personagem em Betel quando eacute um foragido
solitaacuterio e sem meios em Fanuel quando ele estaacute a ponto de pisar o chatildeo de
sua terra natal novamente como homem rico e pai de famiacutelia mas em
profunda anguacutestia em relaccedilatildeo agrave reaccedilatildeo de seu irmatildeo
f) Ambas as vezes pesa sobre Jacoacute a sombra de Esauacute seu irmatildeo Contudo na
primeira vez (Betel) Deus concede-lhe consolo e encorajamento na segunda
vez (Fanuel) ele o lanccedila em perigo e tentaccedilatildeo Percebe-se uma mudanccedila
ldquoEnquanto parecia na primeira vez perdoar sua fuga para longe do irmatildeo
levando a becircnccedilatildeo fraudada na segunda vez ele o obriga a uma luta honesta
pela becircnccedilatildeo e a uma volta humilde para junto do irmatildeordquo (DIETRICH 2001
p 205)
A delimitaccedilatildeo de Gn 3223-33 em relaccedilatildeo ao seu contexto narrativo mais amplo
pode levar em conta inicialmente a sintonia das indicaccedilotildees temporais espaciais e
verbal entre os versiacuteculos 23 e 32144 ldquonaquela noiterdquo ldquoe nasceu-lhe o solrdquo ldquovau do
144 Eacute amplamente aceito entre os especialistas desde Hermann Gunkel (GUNKEL 1997 p 351) que o versiacuteculo 33 eacute um acreacutescimo para justificar um haacutebito alimentar dos judeus Uma indicaccedilatildeo disso seria
a expressatildeo buumlnecirc-yiSraumlacuteeumll ldquoos filhos de Israelrdquo a existecircncia do povo de Israel eacute pressuposta Sem falar
que a proibiccedilatildeo de comer Gicircd hannaumlšegrave (ldquoo nervo do quadrilrdquo = nervus ischiadicus) eacute uma combinaccedilatildeo que
ocorre somente aqui em toda a BH WESTERMANN (1985 p 520) tenta compreender esse versiacuteculo ldquoA razatildeo dada para a proibiccedilatildeo que natildeo ocorre em outras partes do Antigo Testamento eacute difiacutecil a proibiccedilatildeo diz respeito a uma parte do corpo de um animal enquanto que o fato que lhe deu origem dizia respeito a uma pessoa A explicaccedilatildeo mais provaacutevel eacute que esta parte do corpo estava sujeita a tabu porque era considerada como pertencente agrave aacuterea reprodutivardquo Uma explicaccedilatildeo do motivo dessa proibiccedilatildeo estar colocada em nossa periacutecope seria ldquodevido a uma forma particular de abordagem midraacuteshica que floresceu no periacuteodo rabiacutenico pela qual regulamentos extrapentateucais satildeo
127
Jabocrdquo ldquoFanuelrdquo O verbo predominante ldquopassarrdquo (`aumlbar + et) Portanto os versiacuteculos
23 e 32 devem ser considerados afirmaccedilotildees correspondentes que simultaneamente
amarram a abertura da periacutecope (cf o uso caracteriacutestico de wayyaumlordmqom - v 23) e o fim
que conteacutem uma oraccedilatildeo nominal com particiacutepio no v 32b
A sequecircncia com a periacutecope anterior eacute estabelecida pelo indicador temporal
ldquonaquela noiterdquo (v 22 e 23) Ballaordmylacirc hucircacute Haacute uma ausecircncia de artigo no v 23 mas isso
natildeo afeta o resultado Outro elemento comum eacute o verbo rb[ (passar atravessar) que se
encontra em ambos versiacuteculos Haacute tambeacutem uma correspondecircncia formal e funcional
entre as afirmaccedilotildees dos vv 22 e 32 (cf WEIMAR 1989a p 55 n 9) O mesmo natildeo
encontramos que conecte o final de nossa periacutecope com a seguinte (Gn 331-17) Uma
vez que a afirmaccedilatildeo do v 331a ldquoe Jacoacute levantou seus olhos e viurdquo (wayyiSSaumlacute ya`aacuteqoumlb
`ecircnaumlyw wayyaracute) remete formalmente e tematicamente ao versiacuteculo 22
Desse modo pode-se identificar em Gn 3223-32[33] uma unidade cecircnica mas
natildeo uma unidade independente de todo o contexto do ciclo de Jacoacute Ela se constitui
em uma sequecircncia narrativa fechada mas natildeo pode ser uma tradiccedilatildeo individual
independente do restante como alguns estudiosos pensaram (cf WEIMAR 1989a p
56) Eacute evidente a posiccedilatildeo singular que o episoacutedio da luta de Jacoacute possui no interior das
narrativas do encontro dele com seu irmatildeo Mas essa particularidade eacute intencional no
sentido de que natildeo se trata de uma periacutecope independente que foi posta de modo um
tanto externo ao contexto maior mas uma periacutecope com a intenccedilatildeo de agudizar
teologicamente o encontro dos dois irmatildeos Isso se tornaraacute mais claro nas anaacutelises
presentes no proacuteximo capiacutetulo
A unidade interna da periacutecope foi colocada em questatildeo por diversos fatores
entre eles contradiccedilotildees e duplicaccedilotildees
a) no v 23b Jacoacute passa sozinho pelo vau do Jaboc enquanto que nos vv 2425a
sua famiacutelia e seus bens satildeo atravessados por ele que fica para traacutes sozinho
b) Outro aspecto se percebe nos vv 26-27 que oferecem uma descriccedilatildeo
excitante da luta o tempo eacute curto principalmente para o adversaacuterio de Jacoacute
e a uacutenica coisa possiacutevel eacute forccedilaacute-lo a dar uma becircnccedilatildeo nos vv 28-30a no
midrashicamente derivados de uma passagem biacuteblica e como tendo sido em algum periacuteodo anexado ao texto biacuteblico
128
entanto o tempo eacute suficiente para um diaacutelogo bastante longo sobre um tema
supostamente abstrato como se chamam os dois que estatildeo lutando como
Jacoacute deve se chamar futuramente e como entender essa atribuiccedilatildeo do novo
nome
c) Haacute uma dupla solicitaccedilatildeo pelo nome uma da parte do ldquohomemrdquo que luta
com Jacoacute (v 28) outra da parte de Jacoacute que deseja saber o nome de seu
oponente (v 30)
d) A aurora eacute mencionada por trecircs vezes vv 25 27 e 32
e) No v 31 Jacoacute que ainda natildeo eacute chamado pelo novo nome daacute a entender que
ele acaba de passar por uma ameaccedila agrave sua vida mas no v 29 seu adversaacuterio
jaacute lhe havia asseverado que ele prevaleceria contra ele
Por isso muitos autores propotildeem vaacuterios estratos redacionais para justificar
essas e outras incongruecircncias da narrativa145 No entanto para o nosso escopo eacute
melhor tomarmos o texto como nos aparece em seu estado final na BH Aquilo que nos
interessaraacute eacute a finalidade do texto produzido Nesse sentido ateacute as redundacircncias
repeticcedilotildees e aparentes duplicidades podem servir para homogeneizar o texto a
clarificaacute-lo e ateacute mesmo a assegurar a transmissatildeo de sua mensagem146
O estilo ambiacuteguo que o redator imprime a essa periacutecope (Gn 3223-33) eacute
proposital a fim de deixar o leitor em estado de expectativa tal como se achava Jacoacute
previamente ao encontro com Esauacute Ateacute mesmo a dupla interrogaccedilatildeo sobre o nome (v
30) pertence agrave arte narrativa que ldquoque reuacutene dois interlocutores que alternadamente
questionam e satildeo questionadosrdquo (MARTIN-ACHARD 1971 p 48)
As aliteraccedilotildees e paronomaacutesias ajudam a criar uma unidade natildeo somente
temaacutetica mas estiliacutestica e esteacutetica Natildeo podemos jamais nos esquecer que os textos
biacuteblicos natildeo foram compostos para serem lidos individualmente a partir de um livro
mas para serem ouvidos em assembleias como era o costume na eacutepoca Como jaacute dizia
um dos pioneiros na anaacutelise dos textos da BH agrave luz da arte literaacuteria Luis Alonso-
145 No entanto natildeo vale a pena nos determos sobre as vaacuterias teorias que jaacute surgiram tentando traccedilar uma histoacuteria da redaccedilatildeo desta nossa periacutecope porque os resultados natildeo satildeo promissores nem determinantes Haacute dezenas de divisotildees e teorias que afirmam encontrar no texto duas trecircs e ateacute nove camadas redacionais Quem desejar uma visatildeo sinteacutetica dessas vaacuterias tentativas pode consultar ELLIGER 1951 p 6 especialmente a n 10 Aliaacutes esse artigo eacute ainda de 1951 () 146 Cf BARTHES 1971 p 30
129
Schoumlkel ao se referir agrave linguagem biacuteblica ldquoa linguagem eacute primariamente falada a
palavra eacute primariamente sonorardquo (1986 p 231) Por isso haacute sempre muito cuidado e
preocupaccedilatildeo com a sonoridade do texto
A narraccedilatildeo inicia-se com uma seacuterie de assonacircncias onde se misturam as
consoantes guturais bw e kq (vv 23-27) e a finalidade eacute unir o heroacutei da histoacuteria Jacoacute
com o lugar (Jaboc) e com o acontecimento que ali se produz ou seja a luta Para
expressar a luta o autor emprega um verbo muito raro somente utilizado aqui em
toda a BH mas que combina com a sequecircncia de assonacircncias qba (v 25 que significa
ldquorolar no poacuterdquo) Desse modo trecircs vocaacutebulos satildeo fundamentais nessa assonacircncia qba
qby e bq[y Vejamos esse fenocircmeno no proacuteprio texto para melhor compreendermos o
seu efeito Apresentamos jaacute transliterado para realccedilar o efeito sonoro o texto hebraico
estaacute no iniacutecio deste capiacutetulo
Aumentamos o tamanho das letras e das palavras que ajudam a formar as
assonacircncias e paronomaacutesias
3223 wayyaumlordmqom Ballaordmylacirc hucircacute wayyiqqaH acuteet-šTecirc naumlšaumlyw wuumlacuteet-šTecirc šipHoumltaumlyw wuumlacuteet-
acuteaHad `aumlSaumlr yuumllaumldaumlyw wayya`aacuteboumlr acuteeumlt ma`aacutebar yaBBoumlq
3224 wayyiqqaumlHeumlm wayya`aacutebigravereumlm acuteet-hannaumlordmHal wayya`aacutebeumlr acuteet-acuteaacutešer-locirc
3225 wayyiwwaumlteumlr ya`aacuteqoumlb luumlbaDDocirc wayyeumlacuteaumlbeumlq acuteicircš `immocirc `ad `aacutelocirct haššaumlordmHar
3226 wayyaordmracute Kicirc loumlacute yaumlkoumll locirc wayyiGGa` Buumlkap-yuumlreumlkocirc waTTeumlordmqa` Kap-yeordmrek ya`aacuteqoumlb
Buumlheuml|acuteaumlbqocirc `immocirc
3227 wayyoumlordm mer šalluumlHeumlordmnicirc Kicirc `aumllacirc haššaumlordmHar wayyoumlordm mer loumlacute acuteaacuteša|lleumlHaacutekauml Kicirc acuteim-BeumlrakTaumlordmnicirc
O v 31 mais ao final da periacutecope completa essa lista de paronomaacutesias
wayyiqraumlacute ya`aacuteqoumlb šeumlm hammaumlqocircm Puumlnicircacuteeumll Kicirc|-raumlacuteicircordmticirc acuteeacuteloumlhicircm Paumlnicircm acuteel-Paumlnicircm
waTTinnaumlceumll napšicirc
Natildeo podemos esquecer de um verbo que jaacute foi mencionado a pouco mas que
perpassa todo o capiacutetulo 32 do qual faz parte a nossa periacutecope Trata-se do verbo rb[
(atravessar) que ocorre nos versiacuteculos 11 17 22 23 24 32 conferir tambeacutem 33314
Somos levados a concordar com BLUM (2012 p 188-189) que obviamente ldquoo
autor tinha alguma ambiccedilatildeo de formar sua narrativa de uma forma mais complexa e
130
artiacutestica que desafia e ao mesmo tempo guia o leitor a revelar seus significados
ocultosrdquo e ele faz uso de uma expressatildeo cara a Erich Auerbach para denominar esse
tipo de teacutecnica die Hintergruumlndlichkeit147
Complementando essa visatildeo de conjunto da estrutura de nossa periacutecope natildeo
podemos negligenciar a anaacutelise realizada por BARTHES (1971 p 27-39) na qual ele
identifica ao menos trecircs sequecircncias narrativas nessa estrutura E nos trecircs casos ele
observa que a linha condutora eacute a passagem a mutaccedilatildeo a travessia do lugar da
linhagem parental do nome e do rito alimentar Vejamos as trecircs sequecircncias148
I) levantar-se reunir passar ----------------------------------------- v 23 23 23
II) reunir fazer passar ficar soacute --------------------------------------------- v 24 24 25
Lutar Impotecircncia Golpe (Ineficiecircncia) Negociaccedilatildeo (durativo) de A149 decisivo ------------------------------------------------------------------------------- v 25 26 26 27 _____________________ Pedido Rega- Aceita- de A teio ccedilatildeo ------------------------------ v 27 27 30
I) Solicitaccedilatildeo de nome Resposta Efeito de Deus a Jacoacute de Jacoacute Mutaccedilatildeo -------------------------------------------------- v 28 28 29
147 A qual podemos tentar traduzir como sutileza meticulosidade A obra aqui em questatildeo eacute Mimesis Dargestellte Wirklichkeit in der abendlaumlndischen Literatur Bern Francke 1946 (p 5-27) Auerbach faz uma famosa comparaccedilatildeo entre a Odisseia de Homero (Livro 19) com Gn 22 148 Cf BARTHES 1971 p 30-35 149 ldquoArdquo seria abreviaccedilatildeo de anjo
131
II) Solicitaccedilatildeo de nome Resposta (Efeito de Jacoacute a Deus indireta Decisatildeo) -------------------------------------------------- v 30 30 ( )
(31) Para BARTHES (1971 p 35) esta uacuteltima sequecircncia constitui a parte central de
toda a cena de Gn 3223-33 a qual consiste em um diaacutelogo no qual novos nomes satildeo
dados Com ele observa muito bem ldquoA mutaccedilatildeo diz respeito a nomes mas na
verdade eacute todo o episoacutedio que funciona como a criaccedilatildeo de uma marca muacuteltipla no corpo
de Jacoacute no status dos Irmatildeos no nome de Jacoacute em nome do lugar na dietardquo
(BARTHES 1971 p 35)
Essa estruturaccedilatildeo vislumbrada por BARTHES deixa claro que ldquotudo no registro
conduz agrave concessatildeo do nome lsquoIsraelrsquo a doaccedilatildeo do nome lsquoFanuelrsquo reflete o significado
de todo o encontro como foi compreendido por Jacoacute [v 31]rdquo (ROSS 1985 p 342) Toda
a cena eacute montada para evidenciar duas nomeaccedilotildees primeiramente Deus nomina Jacoacute
ldquoIsraelrdquo (v 29) em seguida Israel nomina o lugar ldquoFanuelrdquo (v 31) Tudo forma um
equilibrado conjunto narrativo ldquoa resposta direta de Jacoacute ao seu atacante [v 28]
conduz a ser nominado lsquoIsraelrsquo mas a resposta indireta do atacante [v 30] leva Jacoacute a
nominar o lugar lsquoFanuelrsquo pois ele compreendeu que era Deus que lutava (lsquoIsraelrsquo) com
ele face a face (lsquoFanuelrsquo)rdquo (ROSS 1985 p 342-343) Assim um nome eacute dado por Deus
a Jacoacute e outro nome eacute dado por Jacoacute em submissatildeo a Deus
Mutaccedilatildeo Penuel
132
CAPIacuteTULO 4
Mudar de nome para quecirc
1 Paralelismos internos agrave Biacuteblia
Olhando mais atentamente para Gn 3223-33 e mesmo para o ciclo de Jacoacute
como um todo logo percebemos que haacute semelhanccedilas com outros textos e personagens
o que pode nos ajudar a melhor compreender a nossa periacutecope
Uma primeira semelhanccedila observamos entre a histoacuteria da juventude de Moiseacutes
e a saga de Jacoacute150 Entre os elementos comuns percebe-se
a) Assim como Jacoacute Moiseacutes comete uma transgressatildeo e por isso deve fugir para
fora de sua terra natal (cf Ex 211-15 e Gn 271-45)
b) Como ocorreu com Jacoacute eacute proacuteximo a um poccedilo no deserto que Moiseacutes
encontra as jovens que lhe iratildeo conduzir ateacute seu pai (Ex 216-20 e Gn 291-
12)
c) O fugitivo seraacute acolhido na famiacutelia desse pai do qual ele natildeo tardaraacute a tornar-
se genro (Ex 221 e Gn 2913-30)
d) Um ou vaacuterios filhos nascem dessas uniotildees (Ex 222 e Gn 2931ndash3024)
e) Chega o momento do retorno agrave terra natal e esta decisatildeo seja em decorrecircncia
de um apelo direto de Deus (Ex 31-10 e Gn 31313) seja motivada por uma
vontade pessoal (Gn 3025-26) pelos ciuacutemes dos irmatildeos (Gn 311-2) ou pela
deliberaccedilatildeo entre o heroacutei e suas mulheres (Gn 314-10) ela representa uma
reviravolta na histoacuteria da personagem
f) Esse retorno de ambos Moiseacutes e Jacoacute seraacute repleto de obstaacuteculos No caso de
Jacoacute haveraacute a oposiccedilatildeo do sogro (Gn 3035-42 317-44) os iacutedolos domeacutesticos
furtados (Gn 3130-42) a ameaccedila de Esauacute (Gn 324-22 331-17) a agressatildeo
noturna por um adversaacuterio divino (Gn 3223-33) finalmente o conflito com
os moradores de Siqueacutem (Gn 34) Quanto a Moiseacutes haacute as cinco objeccedilotildees ao
150 Quem por primeiro apercebeu-se dessas semelhanccedilas foi HENDEL 1988
133
chamado de Deus (Ex 31113 411013) e novamente uma agressatildeo
noturna no curso da qual YHWH buscava fazecirc-lo morrer (Ex 424-26)
Distanciando-nos um pouco da juventude de Moiseacutes podemos notar uma outra
semelhanccedila interessante entre as duas personagens Jacoacute e Moiseacutes Referi-me ao fato
de somente ambos terem tido um contato face a face com Deus O que marca uma
relaccedilatildeo iacutentima inusual na BH na qual o ser humano jamais pode ter esse contato direto
com o ser divino Narrar esse contato eacute um modo dos autores realccedilarem a importacircncia
direta das personagens para a histoacuterica do povo de Israel Em Gn 3231 Jacoacute estaacute
surpreso de ter sobrevivido ao encontro que havia apenas tido porque raumlacuteicircordmticirc acuteeacuteloumlhicircm
Paumlnicircm el-Paumlnicircm Em Ecircxodo em duas ocasiotildees esse contato iacutentimo com Deus eacute realccedilado
pelo autor em relaccedilatildeo a Moiseacutes Primeiramente em Ex 1920 se diz claramente
ldquoYHWH desceu sobre a montanha do Sinai no cima da montanha IHWH chamou
Moiseacutes para o cimo da montanha e Moiseacutes subiurdquo O texto logo a seguir faz questatildeo
de deixar claro que este contato direto com YHWH eacute uma prerrogativa apenas de
Moiseacutes (Aaratildeo somente nesta ocasiatildeo subiraacute junto com Moiseacutes) ldquoYHWH disse a
Moiseacutes lsquoDesce e adverte o povo que natildeo ultrapasse os limites para vir ver YHWH
para muitos deles natildeo pereceremrsquordquo (Ex 1921) Essa advertecircncia eacute repetida ainda em
relaccedilatildeo aos sacerdotes em geral e novamente ao povo (Ex 1922-24) Em outra ocasiatildeo
Ex 2412-18 Moiseacutes eacute convocado novamente agrave montanha e laacute permanece quarenta dias
e quarenta noites diante da gloacuteria de YHWH que ldquopousou sobre o monte Sinairdquo
(wayyišKoumln Kuumlbocircd-yhwh(acuteaumldoumlnaumly) `al-har Ex 2416a) Em vaacuterias outras ocasiotildees Moiseacutes
subiraacute agrave montanha para falar com YHWH em uma delas o narrador deixa claro o
contato iacutentimo da personagem com a divindade ldquoQuando Moiseacutes desceu da
montanha do Sinai trazendo nas matildeos as duas taacutebuas do Testemunho sim quando
desceu da montanha natildeo sabia que a pele de seu rosto resplandecia porque havia
falado com elerdquo (Ex 3429)151 Para terminar um texto que natildeo eacute de Ecircxodo portanto
pertencente a outra tradiccedilatildeo e autoria reafirma de modo inequiacutevoco essa relaccedilatildeo
preferencial de Deus com Moiseacutes wuumllouml| -qaumlm naumlbicircacute `ocircd BuumlyiSraumlacuteeumll Kuumlmoumlšegrave acuteaacutešer yuumldauml`ocirc
151 O texto em hebraico eacute wayuumlhicirc Buumlreordmdet moumlšegrave meumlhar sicircnay ucircšuumlnecirc lugraveHoumlt hauml|`eumldugravet Buumlyad-moumlšegrave BuumlridTocirc min-
haumlhaumlr ucircmoumlšegrave louml|acute-yaumlda` Kicirc qaumlran `ocircr Paumlnaumlyw BuumldaBBuumlrocirc acuteiTTocirc (destaco em negrito a parte que deixa claro o
contato direto e o diaacutelogo com YHWH)
134
yhwh(acuteaumldoumlnaumly) Paumlnicircm acuteel-Paumlnicircm (ldquoE em Israel nunca mais surgiu um profeta como
Moiseacutes ndash a quem YHWH conhecida face a facerdquo grifo nosso Dt 3410) Nisso reside
uma outra semelhanccedila com Jacoacute Ele tambeacutem aleacutem de Moiseacutes esteve com Deus no
caso natildeo seria YHWH mas El face a face ldquoeu vi Deus face a face e a minha vida foi
salvardquo - Kicirc|-raumlacuteicircordmticirc acuteeacuteloumlhicircm Paumlnicircm acuteel-Paumlnicircm waTTinnaumlceumll napšicirc (Gn 3231) Portanto
estabelece-se uma igualdade de dignidade entre duas personagens bem diferentes na
histoacuteria de Israel
Para PURY (2002 p 235-236) eacute o ciclo de Jacoacute que influenciou aquele de Moiseacutes
uma vez que ele identifica por detraacutes desses dois relatos a oposiccedilatildeo entre os defensores
de um Israel mosaico um partido mais profeacutetico e os defensores do velho Israel
jacobiano Essa rivalidade acabou pendendo mais para o lado mosaico atraveacutes da
literatura deuteronocircmica e deuteronomista Sendo que o Deutero-Isaiacuteas e o autor
sacerdotal tentaratildeo uma tiacutemida reconciliaccedilatildeo entre as duas tradiccedilotildees
Retornando ao aspecto que interessa mais de perto ao nosso estudo haacute ao
menos duas diferenccedilas fundamentais entre as lendas de Moiseacutes e aquela de Jacoacute
a) O casamento de Moiseacutes com uma das filhas de Jetro natildeo tem uma funccedilatildeo
maior no contexto narrativo eacute um ponto cego por assim dizer pois natildeo eacute
determinante para a missatildeo que ele teraacute a seguir Tanto que apoacutes a idolatria
do bezerro de ouro no deserto durante a jornada para a terra prometida
Deus propotildee a Moiseacutes eliminar todo aquele povo infiel e fazecirc-lo Patriarca de
uma naccedilatildeo nova Sendo que Moiseacutes se indigna contra a proposta e a recusa
(cf Ex 3210) Enquanto que os matrimocircnios de Jacoacute com as filhas de Labatildeo
estatildeo no centro do dispositivo narrativo de sua lenda uma vez que Jacoacute
supostamente eacute destinado a tornar-se o pai das tribos de Israel A genealogia
conta para Jacoacute eacute a sua mediaccedilatildeo Sendo que para Moiseacutes a sua mediaccedilatildeo
para com Israel se daraacute pela palavra profeacutetica e sua vocaccedilatildeo
b) Outro motivo cego na histoacuteria de Moiseacutes eacute a agressatildeo noturna relatada em
Ex 424-26 uma vez que natildeo traz consequecircncias para a trama do heroacutei Por
sua vez o episoacutedio correspondente em Jacoacute (Gn 3223-33) desempenha um
papel absolutamente central
135
Aqui eacute o momento de nos determos mais nessa questatildeo de um ser divino agredir
um ser humano Vejamos os aspectos em comum encontrados nas cenas de Moiseacutes e
Jacoacute sendo agredidos pelo ser divino152
a) Nos dois casos eacute o agressor sobrenatural que toma a iniciativa (Gn 3225 Ex
424)
b) O enfrentamento ocorre agrave noite e trata-se explicitamente de uma luta de
vida ou morte Em Ex 424 eacute dito com toda clareza ldquoYHWH veio ao seu
encontro e procurava fazecirc-lo morrerrdquo Na cena de Jacoacute isso eacute bem impliacutecito
na observaccedilatildeo de Gn 3231 ldquoeu vi Deus face a face e a minha vida foi salvardquo
c) Natildeo obstante o poder superior de seu adversaacuterio o heroacutei sai vencedor ou
ao menos vivo do combate No entanto a sua sobrevivecircncia dependeu de
um estratagema ou astuacutecia Jacoacute encontra o ponto vulneraacutevel de seu
adversaacuterio (Gn 3226a) e a mulher de Moiseacutes circuncida o seu filho e passa o
prepuacutecio ldquonos peacutesrdquo de Moiseacutes aqui podendo entender-se no oacutergatildeo genital
do mesmo
d) A luta marca o parceiro humano do agressor divino com uma marca fiacutesica
Jacoacute passa a manquejar de uma coxa porque seu nervo foi deslocado (Gn 32
26b32) e em Ex 4 25 eacute o filho de Moiseacutes que se encontra circuncidado
e) O relato eacute concluiacutedo apresentando uma mudanccedila de status dos heroacuteis Jacoacute
tem o seu nome alterado para Israel (Gn 3229) e Moiseacutes recebe um novo
tiacutetulo ldquoesposo de sanguerdquo (Ex 42526)
Algo que chama ainda mais a nossa atenccedilatildeo eacute o lugar o momento no qual esse
combate ocorre no desenrolar das histoacuterias de Jacoacute e Moiseacutes A agressatildeo divina
acontece justamente na hora em que o heroacutei estaacute para concluir a sua missatildeo a sua
busca Jacoacute jaacute havia fugido casado enriquecido conseguido se separar de seu
possessivo e interesseiro sogro e estava prestes a enfrentar seu irmatildeo Moiseacutes apoacutes o
episoacutedio e chamado junto agrave sarccedila ardente no deserto no qual recebe sua missatildeo estaacute
prestes a enfrentar o Faraoacute Portanto tudo eacute colocado em causa tudo estaacute a ponto de
se perder caso tivesse havido sucesso no ataque divino Contudo felizmente tudo
acaba bem apoacutes o confronto noturno se daacute o reencontro com o irmatildeo rival (Esauacute no
152 Acompanho aqui a anaacutelise de PURY 1995 p 53
136
caso de Jacoacute e Aaratildeo no caso de Moiseacutes) Desse modo ldquoas animosidades intimamente
temidas datildeo lugar como que por magia a reencontros felizes e efusivosrdquo (PURY 1995
p 54)
A mentalidade religiosa predominante na eacutepoca seria incapaz de admitir que
YHWH pudesse ter agredido Jacoacute e Moiseacutes sem que os mesmos tivessem cometido
faltas graves que justificassem uma correccedilatildeopuniccedilatildeo A relaccedilatildeo de YHWH com seu
povo uma vez que ele era o deus nacional o deus protetor do povo era de
reciprocidade isto eacute se o povo se mantivesse fiel receberia becircnccedilatildeos na forma de
prosperidade e paz se o povo fosso infiel adorando outros deuses ou praticando atos
por ele proibidos entatildeo o castigo viria inescapavelmente Basta ler os livros profeacuteticos
o Deuteronocircmio a Obra Historiograacutefica Deuteronomista (Js Jz 1 e 2 Sm e 1 e 2Rs) para
se dar conta dessa maneira pela qual se pautava a vida religiosa especialmente nos
periacuteodo poacutes-exiacutelico (seacutec VI AEC em diante) Eacute sempre o pecado a falta que justifica e
atrai qualquer gesto mais contundente de Deus Entatildeo como justificar a atitude divina
nos casos de Jacoacute e Moiseacutes153 Afinal a agressatildeo se daacute segundo a narrativa sem
nenhum motivo alegado ou proposto de maneira expliacutecita ou impliacutecita Vaacuterios
estudiosos e comentaristas se puseram a trabalho para identificar que ambos
mereceram tal ato divino devido suas faltas passadas Moiseacutes por natildeo ter circuncidado
antes o seu filho e quem sabe por ter relutado tanto em aceitar o chamado e missatildeo
da parte de Deus Jacoacute devido agraves suas vaacuterias falcatruas realizadas seja no periacuteodo em
que vivia na casa de seus pais como depois na presenccedila de seu sogro Labatildeo154
Em Os 124 o combate eacute atribuiacutedo ao caraacuteter agressivo intreacutepido do Patriarca
ldquoem sua forccedila viril ele lutou com Elohicircmrdquo
Essa criacutetica profeacutetica a Jacoacute encontra eco em um texto tardio que foi incluiacutedo
posteriormente ao ciclo desta nossa personagem Trata-se de uma oraccedilatildeo em Gn 3210-
13 onde foi colocado na boca de Jacoacute ldquoeu sou indigno [qaumldaggeroumlnTicirc] de todos os favores e
de toda a bondade que tiveste para com teu servordquo (v 11) Esta eacute a primeira e uacuteltima
153 Natildeo podemos nos esquecer tambeacutem de outro texto biacuteblico complicado (Gn 22) onde Deus ordena a Abraatildeo que sacrifique o seu filho pequeno Isaac portanto inocente sem culpa que justificasse tamanha violecircncia 154 No caso de Jacoacute cito somente uma opiniatildeo das mais importantes (ELLIGER 1951) que vecirc nesse episoacutedio da luta uma forma de YHWH corrigir Jacoacute antes que este se beneficiasse das graccedilas divinas
137
vez que Jacoacute confessa a sua indignidade perante Deus Portanto estaria justificada a
agressatildeo sofrida Aliaacutes para o leitor moderno a linguagem usada para se falar sobre
Deus e para Deus frequentemente choca na BH Agraves vezes Israel pode retratar Deus
como algueacutem que diz ldquoEu formo a luz e crio as trevas asseguro o bem-estar e crio a desgraccedila
sim eu IHWH faccedilo tudo issordquo (Is 457 ndash BJ) ou ainda ldquoSou eu que mato e faccedilo viver sou eu
que firo e torno a curarrdquo (Dt 3239b ndash BJ) Pode-se acrescentar a esses textos alguns dos
salmos de lamentaccedilatildeo nos quais o salmista suplica a Deus para que interceda em seu
nome porque acredita-se Deus permitiu que coisas dolorosas acontecessem a ele sem
uma boa causa (p ex Sl 17 26 e o proacuteprio livro de Joacute) Outras passagens biacuteblicas satildeo
ainda mais diretas em seu discurso elas descrevem Deus como algueacutem que ataca Israel
sem motivo razoaacutevel (p ex Sl 89 Is 5212ndash5313) Isso tudo se compreende porque a
BH natildeo usa uma linguagem cuidadosa e sofisticada como aquela da filosofia ou da
teologia dogmaacutetica somente para ficarmos nesses dois exemplos ela simplesmente
reflete como as coisas se apresentam em um mundo que eacute supostamente governado
por YHWH Portanto segundo essa mentalidade nada pode ocorrer sob os ceacuteus (o
bem e o mal) que natildeo seja fruto das accedilotildees de YHWH Interessante constatar que ldquona
literatura judaica preacute-cristatilde e na literatura cristatilde a figura de Satanaacutes (o diabo) torna-se
responsaacutevel por lsquoeventos obscurosrsquo no mundo mas os escritores israelitas em sua
maioria natildeo sabem nada de tal figura e portanto dirigem-se a Deus (ver no entanto
1Cr 211 cf 1Sm 241)rdquo (HOLMGREN 1990 p 16)
Natildeo obstante essas tentativas piedosas ou criacuteticas permanece o fato de que natildeo
haacute absolutamente na narrativa justificativas que motivassem a agressatildeo
Devemos buscar em outro lugar a explicaccedilatildeo A questatildeo da identidade do ser
que lutou com Jacoacute assume um papel fundamental no relato de Gn 3223-33 Tanto que
o Patriarca busca conhecer o nome daquele adversaacuterio misterioso que acaba de lhe
conceder um novo nome ldquoDiga-me por favor o teu nomerdquo no entanto recebe como
resposta uma outra indagaccedilatildeo ldquoPor que perguntas pelo meu nomerdquo (v 30) Poreacutem a
posteriori o heroacutei parece reconhecer o seu agressor e saber seu nome quando diz ldquoeu
vi Deus face a facerdquo (Gn 3231) Em todo caso permanece o misteacuterio quem eacute o deus
agressor El ou Elohicircn ou ainda um elohicircm Essa incerteza somente se resolve em Gn
3320 quando Jacoacute-Israel ao chegar ao objetivo de sua viagem e tendo superado todos
138
os obstaacuteculos proclama em Siqueacutem ldquoEl eacute o Deus [elohicircm] de Israel [o Patriarca]rdquo Na
opiniatildeo de PURY (1995 p 60-61) isso reflete uma tradiccedilatildeo anterior agrave sacerdotal e
deuteronomista que viam somente em YHWH o deus uacutenico e verdadeiro de Israel
desconsiderando o fato de que a veneraccedilatildeo a El continuou entre os arameus e os
israelitas e judeus das regiotildees marginais (o interior mais rural e vilarejos) ateacute a eacutepoca
persa155 Eacute bom lembrarmos que antes de YHWH e da tradiccedilatildeo do ecircxodo o que
predominava em Israel e Judaacute tinha sido El e a tradiccedilatildeo de Jacoacute
Afinal a lenda de origem em que se constitui o ciclo de Jacoacute natildeo percebe Deus
como aquele ser hostil da retribuiccedilatildeo a puniccedilatildeo o castigo eacute a resposta aos que erram
Tanto que em todos os demais textos da BH fica clara a motivaccedilatildeo da puniccedilatildeo e a
identidade do autor divino Aqui o agressor natildeo eacute chamado pelo nome YHWH e natildeo
eacute um democircnio hostil voltaremos a este tema mais adiante mas eacute ldquoDeusrdquo no sentido
mais pleno do termo (cf PURY 1995 p 62) De propoacutesito o autor deixa Deus aparecer
nesta narrativa como um Deus absconditus (Deus escondido oculto) natildeo o
identificando com o deus nacional de Israel YHWH Aliaacutes essa dualidade entre o
Deus escondido de caraacuteter universal natildeo particular de um soacute povo e o Deus revelado
que eacute o Deus de Israel aparece natildeo somente aqui mas em uma passagem de autoria
sacerdotal como eacute o caso de Ex 63 ldquoApareci a Abraatildeo a Isaac e a Jacoacute como El Shaddai
mas meu nome YHWH [o Senhor] natildeo lhes fiz conhecerrdquo Portanto nas origens El e
natildeo YHWH era o Deus de Israel assim como se depreende de Gn 3320156
Portanto Jacoacute antes de se tornar Israel ele se origina da famiacutelia universal
Retomemos um pouco soacute a questatildeo da identidade do ser transcendental que
lutou com Jacoacute agraves margens do Jaboc
2 Aspectos internos agrave periacutecope
Primeiramente eacute bom desfazer qualquer impressatildeo de que Gn 3223-33 se trata
de uma narrativa fundamentada em uma lenda autocircnoma de alguma personagem que
enfrentou um ser demoniacuteaco ao atravessar um rio ou fronteira Aleacutem dos indiacutecios de
155 Quem demonstrou isso atraveacutes da anaacutelise do Sl 20 que remonta ao modelo aramaico no qual a oraccedilatildeo se dirigia a El e natildeo a YHWH foi KOTTSIEPER 1988 p 217-244 156 Haacute outros textos em que isso fica claro como Os 121b5a e Dt 328-9 onde YHWH parece ateacute mesmo subordinado a El uma vez que eacute ele que recebe seu povo Israel em partilha
139
unidade cecircnica que apresentamos no capiacutetulo anterior deve-se acrescentar o fato de
que essa periacutecope possui um iniacutecio extremamente brusco e um final que deixa aberta
a meta do movimento iniciado algo natildeo comum em narrativas autocircnomas em que o
desfecho eacute mais tranquilizador Sem seu contexto ela natildeo teria condiccedilotildees de funcionar
e isso fica claro porque se amputaacutessemos Gn 3223-33 natildeo teriacuteamos nenhuma
transiccedilatildeo de Gn 32 para 33 Isso porque a cena eacute necessaacuteria para servir de mediaccedilatildeo
entre as medidas de precauccedilatildeo de Jacoacute (Gn 32) e o encontro dos dois irmatildeos em Gn 33
Assim sendo aquilo que eacute proferido como esperanccedila em Gn 3221b (ldquoCom efeito dizia
ele [Jacoacute] para si mesmo lsquoEu o aplacarei com o presente que me antecede em seguida
me apresentarei a ele e talvez me conceda graccedilarsquordquo) mostra-se realizado em Gn 334
Para ser uma lenda individual que justificasse p ex o nome Fanuel ldquoa cena
conteacutem demasiados temas e objetivos narrativos luta e becircnccedilatildeo aparecem vinculados
com as etiologias do nome lsquoIsraelrsquo do local Fanuel e de um costume alimentar israelitardquo
(KOumlCKERT 2003 p 168)
O agressor eacute denominado de acuteicircš (sem artigo portanto um homem) que alguns
estudiosos insistem em ser um ser divino diferentemente de Deus ou um democircnio157
pode ser considerado como o proacuteprio Deus ou um mensageiro dele (malacuteak) Haacute vaacuterias
outras passagens biacuteblicas em que isso se daacute e a personagem misteriosa termina por ser
identificada com o proacuteprio Deus nesse sentido a cena de Gn 181-15 eacute claacutessica158 Sem
falar que o fato desse ldquohomemrdquo natildeo querer revelar seu nome natildeo eacute um indiacutecio de que
seria um ser maligno ou algo parecido Na proacutepria BH encontramos uma cena parecida
em que claramente um anjo de YHWH nega a revelaccedilatildeo de seu nome como
contrapergunta em relaccedilatildeo a uma solicitaccedilatildeo semelhante agravequela feita por Jacoacute Eacute o caso
do pai de Sansatildeo que recebe a visita de um ldquohomem de Deusrdquo (acuteicircš haumlacuteeacuteloumlhicircm Jz 138)
que eacute chamado pelo narrador de ldquoAnjo de Deusrdquo (malacuteak haumlacuteeacuteloumlhicircm Jz 139) mas que
se nega a revelar seu nome quando indagado por Manueacute pai de Sansatildeo ldquoManueacute disse
157 Esse eacute o caso de WESTERMANN (1985 p 516-517) DIETRICH (2001 p 200) soacute para ficarmos em dois exemplos Eles pensam que o agressor poderia se tratar de uma democircnio fluvial que assaltava os viajantes a fim de impedi-los de atravessar o rio O fato dele natildeo gostar do sol do dia seria um indiacutecio confirmativo dessa tese na opiniatildeo dos autores 158 Essa temaacutetica eacute extensamente e profundamente explorada por HAMORI 2008 e HAMORI 2010 p 161-183 A autora faz paralelos com outras culturas antigas vizinhas a Israel bem como com o cristianismo Ainda no interior desse tema a personagem que luta com Jacoacute eacute interessante consultar SCHWARTZ 1998 p 33-48 TASCHNER 1998 p 367-380 MILLER 1973 GRANOT 2012 p 125-127
140
entatildeo ao Anjo de YHWH lsquoQual eacute o teu nome para que assim que se cumprir a tua
palavra possamos prestar-te homenagemrsquo O Anjo de YHWH lhe respondeu lsquoPor que
perguntas meu nome Ele eacute maravilhosorsquordquo (Jz 1317-18 a pergunta em hebraico eacute
laumlordmmmacirc zzegrave Tišacuteal lišmicirc) Essa contrapergunta eacute idecircntica agravequela que o ldquohomemrdquo faz a
Jacoacute Sem falar que eacute muito complicado explicar o motivo que levaria Jacoacute a solicitar
uma becircnccedilatildeo justamente a um ser demoniacuteaco Alguns autores que adotaram essa
explicaccedilatildeo tentam justificar-se dizendo tratar-se de uma periacutecope constituiacuteda por
vaacuterias camadas redacionais e fontes No entanto isso natildeo passaria desapercebido pelo
redator final obviamente
Na interpretaccedilatildeo rabiacutenica diversas propostas surgiram a esse respeito
Maimocircnides p ex pensa que essa cena seja uma visatildeo natildeo um fato Uma visatildeo de
tipo profeacutetica mas ele natildeo explorou melhor essa sua intuiccedilatildeo deixando em aberto qual
seria a possiacutevel mensagem de tal visatildeo profeacutetica159
No Midrash Rabbah Rabi Huna vecirc nesse ldquohomemrdquo um pastor que chega agraves
margens do rio Jaboc com a mesma intenccedilatildeo de Jacoacute atravessaacute-lo com sua famiacutelia e
seus pertences Inclusive ele permite que Jacoacute atravesse a vau do rio antes dele
Contudo quando Jacoacute retorna para ver se natildeo havia esquecido algo haacute um confronto
uma luta com aquele homem
O homem apareceu sob a aparecircncia de um arquibandido com ovelhas e camelos semelhantes aos de Jacoacute Disse a Jacoacute Levas minhas coisas e eu transportarei as tuas Depois que o anjo tinha levado as coisas de Jacoacute num abrir e fechar de olhos Jacoacute comeccedilou a levar as coisas do outro Mas ele sempre achava mais coisas para levar embora continuasse a noite toda Pensou Jacoacute isto eacute simplesmente bruxaria Rabi Pinhas disse Ele entatildeo pegou um velo de latilde e o amarrou ao pescoccedilo do outro homem (como para estrangulaacute-lo) dizendo Vocecirc natildeo sabe que os feiticcedilos maacutegicos satildeo inuacuteteis agrave noite Rabi Huna disse O anjo finalmente pensou Vou deixar Jacoacute saber com que tipo de homem ele estaacute lutando Ele portanto colocou o dedo no chatildeo e a terra comeccedilou a produzir espuma de fogo Disse Jacoacute Vocecirc realmente espera me assustar dessa maneira Natildeo sou inteiramente feito de fogo como se diz A casa de Jacoacute seraacute um fogo (Abdias 18)160
159 Cf BLUMENTHAL 2010 p 120 160 MIDRASH RABBAH 1939 77 As traduccedilotildees que se seguem neste capiacutetulo das obras rabiacutenicas satildeo sempre baseadas nas traduccedilotildees inglesas disponiacuteveis
141
Percebe-se a presenccedila de um anjo mas a luta eacute com um outro ser humano Na
sequecircncia Rabi Hama ben Hanina diz ldquoO homem era o anjo guardiatildeo de Esauacuterdquo tido
como um anjo do mal Segundo o mesmo rabino Jacoacute o intimidou quando disse ldquoVisto
que eu vi o teu rosto como se vecirc o rosto de Deus e ficaste satisfeito comigo (Gn
3310)rdquo161 Nesse caso o confronto anjo de Esauacute versus Jacoacute jaacute seria uma antecipaccedilatildeo
do encontro com irmatildeo Sendo assim uma luta substituta talvez na compreensatildeo
desse rabino Mas os inteacuterpretes desse texto enxergam nessa interpretaccedilatildeo a
substituiccedilatildeo da figura de Esauacute por Roma Assim sendo o confronto de Jacoacute se daacute
contra o potente Impeacuterio Romano representado pelo ldquoanjo de Esauacuterdquo (cf HAYWARD
2005 p 14) Mais tarde esse ldquoanjo de Esauacuterdquo eacute identificado com Sammael que em
princiacutepio era o grande priacutencipe do ceacuteu (tinha 12 asas enquanto os serafins tinham
somente seis) poreacutem rebelou-se contra o Onipotente (cf LOS CAPIacuteTULOS DE RABBIacute
ELIEZER PIRQEcirc RABBIcirc acuteELIcirc`EZER 1984 132 p 120) O Targum Neofiti Gn 3225162
denomina esse anjo como sendo Sariel que eacute um anagrama de Israel Enquanto
Targum Pseudo-Jonathan Gn 3225 chama a este anjo de Miguel (SAacuteIZ 2004 p 212)
No entanto certos rabinos enxergavam nesse anjo um enviado de Deus para
realizar uma boa tarefa em relaccedilatildeo a Jacoacute ldquoQuando o Santo abenccediloado eacute Ele viu que
Jacoacute tinha medo de Esauacute ele enviou o anjo Miguel para lutar com ele Michael
apareceu a Jacob sob a aparecircncia de um pastor como afirma o textordquo163
Outro aspecto que vale ressaltar eacute que tanto o Targum Neofiti quanto o Pseudo-
Jonathan apresentam como justificativa para a renomeaccedilatildeo de Jacoacute em Israel o seguinte
fato ldquopretendestes superioridade com os anjos [de diante] do Senhor e com os homens
e pudestesrdquo (SAacuteIZ 2004 p 213) A expressatildeo ldquode dianterdquo encontra-se somente no
Targum Neofiti
Permanecendo ainda no Midrash haacute uma passagem em que se discute sobre
quem teria vencido ldquoRabi Berekiah disse Natildeo sabermos se venceu o anjo ou Jacoacute
161 MIDRASH RABBAH 1939 77 162 SAacuteIZ 2004 p 212 163 Tan Y Vayyishlah 7 apud KASHER 1959 p 151
142
daquilo que estaacute escrito Lutou um homem com ele quem se cobriu de poacute164 O homem
que estava com elerdquo (MIDRASH RABBAH 1939)
Enfim poderiacuteamos prosseguir mencionando outros exemplos de interpretaccedilatildeo
rabiacutenica a respeito da personagem que luta com Jacoacute mas a maioria vai nessa linha de
reconhecer no agressor seja um ser humano ou um anjo um enviado de Deus A
finalidade desse anjo segundo um certo consenso entre os rabinos seria dar a Jacoacute
coragem e fazecirc-lo pensar depois ldquoSe eu tiver sido capaz de vencer o anjo eu natildeo
preciso ter medo de ser capaz de vencer Esauacute se necessaacuteriordquo (KASHER 1959 p 150-
151)
Olhando o contexto de Gecircnesis podemos perceber que natildeo eacute o primeiro caso
de uma teofania com ldquoaparentes seres humanosrdquo aquilo que se convenciona
denominar de ldquoacuteicircš teofaniardquo165
3 Como foi interpretada a mudanccedila de nome de Jacoacute
Interessante logo de iniacutecio notar que o relato da mudanccedila de nome de Jacoacute natildeo
aparece tatildeo proeminente nas fontes rabiacutenicas claacutessicas como seria de se esperar Talvez
isso possa ser compreensiacutevel pelo fato desses escritos refletirem mais as preocupaccedilotildees
dos rabinos em situar Israel sua cultura e religiatildeo em uma eacutepoca de dominaccedilatildeo
romana no Ocidente e no Oriente juntamente com o domiacutenio da Peacutersia mais a leste
A Mishnaacute e a Toseftaacute dirigiratildeo sua preocupaccedilatildeo mais para a compreensatildeo e
consequecircncias do ferimento que Jacoacute sofreu no tendatildeo de sua coxa (cf Gn 322633) O
que eacute compreensiacutevel uma vez que essas obras reuacutenem tratados legais voltados para
dar suporte agrave praacutetica cotidiana do judeu religioso
Um fato no entanto chamou a atenccedilatildeo dos Saacutebios rabiacutenicos Jacoacute natildeo foi o uacutenico
na Biacuteblia a receber um novo nome mas por que depois que seu nome foi mudado para
Israel ele ainda era mencionado e tratado como Jacoacute
Eacute digno de nota que apoacutes a nossa periacutecope (Gn 3223-33) o nome ldquoJacoacuterdquo ainda
surge somente no livro de Gecircnesis 66 vezes Enquanto o novo nome ldquoIsraelrdquo
164 Aqui haacute um jogo de palavras assonantes wayyeumlacuteaumlbeumlq (lutou) e acutebaumlq (poacute) que foi jogada por terra (cf
FEDERICI 1978 p 640 n 8) 165 Cf HAMORI 2008 sendo que esse gecircnero eacute reconhecido apenas em duas passagens Gn
143
atribuiacutedo a ele surge 38 vezes em Gecircnesis Poreacutem nessas 38 vezes Israel nem sempre
eacute empregado como nome da personagem individual o Patriarca Jacoacute Vejamos
a) Israel como nome atribuiacutedo ao indiviacuteduo Jacoacute aparece 26 vezes166
b) Israel como sendo representaccedilatildeo de todo o povo da naccedilatildeo aparece 12 vezes
(seria coincidecircncia este nuacutemero O mesmo nuacutemero das Tribos de Israel)
c) destas 12 vezes em 3 vezes aparece isoladamente a palavra ldquoIsraelrdquo
representando o povo a naccedilatildeo167
d) como atributo ldquoIsraelrdquo aparece 9 vezes ldquofilhos de Israelrdquo (Buumlnecirc yiSraumlacuteeumll)168
ldquotribos de Israelrdquo (šibdaggerecirc yiSraumlacuteeumll)169 ldquoPedra de Israelrdquo (acuteeordmben yiSraumlacuteeumll - em
referecircncia a Deus)170
Interessante observar tambeacutem uma outra caracteriacutestica o uso em paralelo no
mesmo versiacuteculo de Jacoacute e Israel sendo que
a) ambos os nomes se referem ao mesmo indiviacuteduo Gn 3522 462 (Jacoacute
inclusive aparece duas vezes mencionado) 4731 482
b) haacute um paralelismo tambeacutem entre ldquofilhos de Jacoacuterdquo e Israel (Gn 492) sendo
ldquoIsraelrdquo o indiviacuteduo e a expressatildeo com o nome de Jacoacute representativa do
povo ocorre tambeacutem o inverso ldquofilhos de Israelrdquo (= povo) em paralelo com
Jacoacute indiviacuteduo (Gn 4658)
c) um terceiro paralelismo que aparece eacute entre dois tiacutetulos atribuiacutedos a Deus
usando os nomes Jacoacute e Israel o ldquoPoderoso de Jacoacuterdquo (acuteaacutebicircr ya`aacuteqoumlb)
ldquoPedra de Israelrdquo (acuteeordmben yiSraumlacuteeumll) em Gn 4924
Portanto haacute uma prevalecircncia das atestaccedilotildees do uso individual em relaccedilatildeo ao
uso coletivo do nome Israel no livro de Gecircnesis (ao todo 29 referecircncias somente ao
Patriarca) O mesmo natildeo acontece nos demais livros da BH onde o nome eacute tomado em
sentido representativo do povo sendo que a expressatildeo ldquofilhos de Israelrdquo torna-se
166 Gn 3510(2x)2122(2x) 37313 436811 4528 46122930 47272931 482810111421 492 502 167 Gn 347 4820 497 168 Gn 3631 425 4521 4658 5025 Interessante observar o uso da expressatildeo ldquofilhos de Jacoacuterdquo em Gn 492 (Buumlnecirc ya`aacuteqoumlb) tambeacutem com o mesmo sentido de ldquofilhos de Israelrdquo ou seja representando todo
povo Para aprofundar o estudo sobre o uso eponiacutemico dessas expressotildees pode-se recorrer ao exaustivo estudo de BLOCK 1984 p 301-326 169 Gn 491628 170 Gn 4924
144
muito comum Somente para os restringirmos ao PentateucoToraacute essa expressatildeo
aparece em Ecircxodo (123 vezes) Leviacutetico (54 vezes) Nuacutemeros (171 vezes) e
Deuteronocircmio (21 vezes) Sendo que somente em Ex 614 e 3213 encontramos Israel
como nome individual do Patriarca Em Lv natildeo aparece nenhuma menccedilatildeo individual
a qual somente surgiraacute novamente em Nm 120 e 265 como sendo o pai de Ruacuteben Em
Dt tambeacutem natildeo eacute empregado o nome proacuteprio individualmente Percorrendo toda a BH
encontramos atestaccedilotildees de Israel (cf ZOBEL 2004 c 50)
a) com denominaccedilotildees divinas do tipo ldquoDeus de Israelrdquo 241 vezes
b) na locuccedilatildeo ldquofilhos de Israelrdquo aparece 637 vezes
c) indicando o povo de YHWH 1006 vezes
d) denominando o Reino do Norte e sua populaccedilatildeo 564 vezes e finalmente
e) como o Patriarca individualmente considerado somente 49 vezes sendo
como jaacute foi observado 29 delas somente em Gecircnesis
Uma uacuteltima nota a esse respeito eacute a curiosidade de encontramos em um mesmo
versiacuteculo o seguinte fenocircmeno ldquoe Elohicircm [Deus] disse a Israel numa visatildeo noturna
lsquoJacoacute Jacoacutersquo E ele respondeu lsquoEis-me aquirsquordquo (Gn 462) Portanto em uacutenico versiacuteculo o
narrador denomina o Patriarca com o novo nome Israel enquanto Deus que o havia
renomeado antes continua a chamaacute-lo pelo nome antigo Jacoacute Essa ambivalecircncia do
nome JacoacuteIsrael faz com que a figura de Jacoacute deste episoacutedio de Gn 3223-33 em
diante comece a ser unida expressamente agravequela do povo como um todo Desse modo
ldquoo surgir de um novo dia apoacutes o combate noturno indica simbolicamente o surgir de
uma nova existecircncia para o Patriarca (cf v 32)rdquo (GIUNTOLI 2013 p 195)
Rabi Simeon ben Yohai se manifesta na Mekhilta de Rabbi Ishmael fazendo um
paralelo entre Abraatildeo e Sara com Jacoacute Para ele os nomes Abratildeo e Sarai haviam sido
removidos ou abandonados enquanto seus novos nomes de Abraatildeo e Sara foram
estabelecidos ou suportados No caso de Jacoacute entretanto citando Gecircnesis 3229 ldquoE ele
disse Seu nome natildeo seraacute mais chamado Jacoacuterdquo Rabi Simeon observa ldquoo primeiro nome
tolerado em seu caso enquanto o segundo foi adicionado a elerdquo (LAUTERBACH 2004
Tratado PisHa 16 linhas 79-81) Nenhum comentaacuterio ou explicaccedilatildeo adicional eacute
oferecido Essa afirmaccedilatildeo eacute ambiacutegua Qual eacute na realidade o ldquoprimeirordquo nome e em
quais circunstacircncias Falta ao comentaacuterio mais esclarecimentos Pode ser que Rabi
145
Simeon quisesse dizer que enquanto nos casos de Abraatildeo e Sara os primeiros nomes
Abratildeo e Sarai desapareceram completamente do uso no caso de Jacoacute o primeiro nome
continuou sendo usado e havia um outro ldquoIsraelrdquo adicionado a aquele Bereshit Rabbah
vai nessa linha Em um debate entre vaacuterios Saacutebios encontramos as seguintes
afirmaccedilotildees
Bar Kappara disse Quem quer que chame Abraatildeo de ldquoAbratildeordquo viola um comando positivo R Levi disse Um comando positivo e um negativo O teu nome natildeo seraacute mais chamado Abratildeo (Gn 175) - isso eacute um comando negativo Mas teu nome seraacute chamado Abraatildeo (ib) - que eacute um comando positivo Mas certamente os homens da Grande Assembleia chamaram-lhe Abratildeo pois estaacute escrito Tu eacutes o Senhor Deus quem escolheu Abratildeo (Ne 917) Laacute eacute diferente como significa que enquanto ele ainda era Abratildeo Tu o escolheste Entatildeo por analogia algueacutem que chama Sara de ldquoSarairdquo infringe um comando positivo Natildeo porque somente ele [Abraatildeo] foi encarregado de respeitaacute-la Novamente por analogia se algueacutem chama Israel de ldquoJacoacuterdquo algueacutem infringe um comando positivo [Natildeo pois] foi ensinado Natildeo se pretendia que o nome de Jacoacute deveria desaparecer mas que ldquoIsraelrdquo deveria ser seu nome principal e ldquoJacoacuterdquo um nome secundaacuterio R Zechariah interpretou em similar modo no nome de R Aha ldquoTeu nome eacute Jacoacute Mas Israel seraacute [tambeacutem] o teu nomerdquo (Gn 3510) Jacoacute seria o nome [raiz] principal Israel foi adicionado a ele PORQUE TU LUTASTE COM ELOHIM E COM HOMENS E PREVALECESTE (3229) tu lutaste com os seres celestiais e os conquistaste e com os mortais e os conquistaste Com seres celestiais alude ao anjo R Elama b Elanina disse Era o anjo guardiatildeo de Esauacute (MIDRASH RABBAH 1939 Bereshit Rabbah 783)
Portanto ao querer justificar o natildeo uso frequente do nome ldquoIsraelrdquo apoacutes a
mudanccedila ocorrida em Gn 3229 esses rabinos buscam conciliar a mudanccedila de nome
no caso de Jacoacute em contraste com a de Abraatildeo Natildeo eacute uma soluccedilatildeo final pois a questatildeo
fica em aberto sujeita a pelo menos uma dupla interpretaccedilatildeo Na primeira Israel
deveria ser visto como o nome fundamental e essencial de Jacoacute um nome como
daqueles grandes anjos Miguel Gabriel Rafael e Uriel sendo Jacoacute o seu nome
secundaacuterio suplementar Na segunda interpretaccedilatildeo podemos ver Jacoacute como um nome
que expressa a essecircncia do Patriarca e do povo sendo Israel um nome adicional
conferido pelo ser divino apoacutes a luta A maioria das opiniotildees rabiacutenicas parece inclinar-
se para a primeira interpretaccedilatildeo e apresenta-nos o Patriarca com um caraacuteter essencial
146
natildeo diferente daquele dos anjos mais elevados Aliaacutes um estudioso contemporacircneo
tambeacutem observou isso ao afirmar que ldquoassim lsquoIsraelrsquo natildeo substitui de fato o seu
nome mas torna-se um sinocircnimo para ele ndash uma praacutetica refletida no paralelismo da
poesia biacuteblica onde lsquoJacoacutersquo eacute sempre usado na primeira metade da linha e lsquoIsraelrsquo a
variaccedilatildeo poeacutetica na segunda metade (ALTER 1996 p 182)
Alguns rabinos alegam que isso seja algo normal como eacute o caso do dia do
Messias em que natildeo mais seraacute necessaacuterio mencionar o ecircxodo do Egito quando se recitar
o Shemaacute Tal opiniatildeo rabiacutenica fundamentava-se na profecia de Jeremias 37-8 ldquoPor isso
eis que dias viratildeo ndash oraacuteculo de YHWH ndash em que natildeo diratildeo mais lsquoVive YHWH que fez
subir os filhos de Israel do Egitorsquo mas lsquoVive YHWH que fez subir e retornar a raccedila da
casa de Israel da terra do Norte e de todas as terras para onde os tinha dispersado
para que habitem em seu territoacuteriorsquordquo Os Saacutebios insistiratildeo que esta profecia natildeo quer
dizer que o Egito seraacute ldquoextirpadordquo ou seja omitido da recitaccedilatildeo do Shemaacute a menccedilatildeo
ao ecircxodo seraacute adicionada agrave referecircncia aos reinos estrangeiros de tal forma que esta
uacuteltima se torna a raiz ou a essecircncia da oraccedilatildeo e o ecircxodo um acreacutescimo um anexo
Assim ldquoresoluccedilatildeo do debate reside na aceitaccedilatildeo de que assim como o Ecircxodo do Egito
seraacute mencionado nos uacuteltimos dias como uma lsquoadiccedilatildeorsquo acrescentada agrave menccedilatildeo do
uacuteltimo grande ato redentor assim o nome adicional do Patriarca (que jamais o eacute) ainda
seraacute faladordquo (HAYWARD 2005 p 14)
No entanto somos levados de volta a Bereshit Rabbah pois um dos Saacutebios que
tomam parte no debate volta a destacar o nome Jacoacute como o principal e essencial para
o Patriarca Em Bereshit Rabbah 771 se lecirc
E JACOacute FOI DEIXADO SOZINHO etc (Gn 3225) Estaacute escrito Natildeo haacute semelhante a Deus oacute Jeshurum (Dt 3326) R Berekiah interpretou-o em nome de R Judah b R Simon Natildeo haacute ningueacutem como Deus Mas quem eacute como Deus Jeshurun que significa o mais nobre e melhor dentre voacutes Vocecirc veraacute que o Santo abenccediloado seja Ele antecipou neste mundo atraveacutes da accedilatildeo do justo tudo o que Ele faraacute na outra vida Assim Deus ressuscitaraacute os mortos e Elias ressuscitaraacute os mortos Deus reteve a chuva e Elias reteve a chuva Deus abenccediloaraacute o pequeno [em quantidade] e Elias abenccediloou o pequeno [em quantidade] Deus ressuscita os mortos e Eliseu ressuscita os mortos Deus lembrou-se de mulheres sem filhos e Eliseu lembrou-se de mulheres sem filhos Deus abenccediloou o pequeno e Eliseu abenccediloou o pequeno Deus adoccedilou o amargo e Eliseu adoccedilou o amargo Deus adoccedilou o amargo por meio do
147
amargo e Eliseu adoccedilou o amargo por meio do amargo R Berekiah interpretou em nome de R Simon Natildeo haacute ningueacutem como Deus Mas quem eacute como Deus Jeshurun que significa Israel o Patriarca Assim como estaacute escrito de Deus E soacute o Senhor seraacute exaltado (Is 21117) Assim de Jacoacute tambeacutem E JACOacute FOI DEIXADO SOZINHO (MIDRASH RABBAH 1939)
O paralelo entre Dt 3326 onde surge o misterioso nome Jeshurun e a mudanccedila
de nome de Jacoacute natildeo se encontra em nenhuma outra parte do Midrash Rabbah E o texto
hebraico de Dt 3326a (acuteecircn Kaumlacuteeumll yuumlšurucircn) suporta ateacute trecircs possibilidades de traduccedilatildeo171
a) A primeira ldquoNatildeo haacute ningueacutem como Deus oacute Jeshurunrdquo exclamaccedilatildeo dirigida
a Israel a partir desse raro tiacutetulo172
b) Outra possibilidade ldquoNatildeo haacute ningueacutem como o Deus de Jeshurunrdquo Uma
afirmaccedilatildeo da importacircncia e poder incomparaacuteveis do Deus de Israel em
relaccedilatildeo aos deuses de outros povos Expressatildeo aliaacutes muito comum na BH
basta citar Ex 1511 Is 401825 465
c) Finalmente esse texto hebraico aceita outra traduccedilatildeo em forma de pergunta
e resposta ldquoHaacute algueacutem como Deus [Sim] Jeshurunrdquo Como pode-se
constatar pela leitura da passagem de Bereshit Rabbah citata acima eacute
justamente esta terceira possibilidade que eacute assumida pelo Saacutebio Simon
O tiacutetulo Jeshurun eacute compreendido agrave luz da palavra hebraica rvy que pode
significar ldquoeretordquo ldquoperfeitamente erguidordquo para sugerir que algueacutem que possa ser
ldquocomo Deusrdquo eacute a mais nobre e distinta pessoa em Israel Assim o nome Jeshurun que
equivale nessa interpretaccedilatildeo rabiacutenica a Israel eacute o maior tiacutetulo honoriacutefico a ser
concedido a uma pessoa Esse tiacutetulo Jeshurun ao que parece ldquoestaacute impregnado do
mundo que viraacute quando nada exceto todas as forccedilas opostas estaraacute no caminho da
soberania de Deusrdquo (HAYWARD 2005 p 254) Esse proecircmio que trata em Bereshit
Rabbah 771 da histoacuteria de Jacoacute destaca a nobreza do povo de Israel bem como o
privileacutegio concedido agraves melhores pessoas deste povo (no texto destacam-se os profetas
Elias e Eliseu) de serem capacitadas pelo Criador para realizar accedilotildees que ele mesmo eacute
capaz de fazer em circunstacircncias normais VON RAD (cf 1977 p 396) vai nessa mesma
171 Cf HAYWARD 2005 p 252-253 172 Retornaremos a esse tiacutetulo Jeshurun no proacuteximo item deste capiacutetulo
148
linha vendo nesse nome novo e honroso uma maneira de Deus reconhecer e admitir
Jacoacute diante de si mesmo
A expressatildeo ldquofoi deixado sozinhordquo que abre e fecha o texto midraacuteshico
expressando a condiccedilatildeo de Jacoacute antes da luta da qual ele emergiraacute como Israel eacute
interpretada pelos rabinos como sendo indicaccedilatildeo da singularidade da personagem
Jacoacute assim como Deus eacute ldquosozinhordquo do mesmo modo Israel eacute sozinho Israel eacute uma
naccedilatildeo singular segundo o Talmude pois eacute a uacutenica a seguir o ensinamento biacuteblico de
1Cr 1721 ldquoQual naccedilatildeo eacute como teu povo Israel uma naccedilatildeo uacutenica [acuteeHaumld]173 sobre a
terrardquo Desse modo a unidade de Deus e a singularidade de Israel satildeo vistas como
duas faces da mesma moeda Vejamos no tratado talmuacutedico Berachot 6a
R Nahman b Isaac disse a R Hiyya b Abin O que estaacute escrito no tefilin do Senhor do Universo E ele respondeu-lhe E quem eacute como o teu povo Israel uma naccedilatildeo uacutenica na terra [1Cr 1721] Entatildeo o Santo bendito seja canta os louvores de Israel Sim porque estaacute escrito Hoje tu fizeste o Senhor declarar E o Senhor te declarou hoje [Dt 261718] O Santo bendito seja disse a Israel Tu me fizeste uma entidade uacutenica174 no mundo e eu farei de ti uma entidade uacutenica no mundo ldquoTu me fizeste uma entidade uacutenica no mundordquo como se diz Ouccedila Israel o Senhor nosso Deus o Senhor eacute um [Dt 64] E eu farei de vocecirc uma entidade uacutenica no mundo como se diz E quem eacute como o teu povo Israel uma naccedilatildeo uacutenica na terra [1Cr 1721] R Aha b Raba disse para R Ashi Isso representa um caso e quanto aos outros casos Ele respondeu-lhe [Eles contecircm os seguintes versiacuteculos] Pois que grande naccedilatildeo haacute etc E que grande naccedilatildeo haacute etc Dt 478] Feliz eacutes tu oacute Israel ]Dt 3329] etc Ou Deus intentou [Dt 434] etc e te elevar acima de todas as naccedilotildees [Dt 2619] Se assim haveria muitos casos Por isso [vocecirc deve dizer] Pois que grande naccedilatildeo haacute e E que grande naccedilatildeo haacute que satildeo semelhantes satildeo um caso Feliz eacutes tu oacute Israel Quem eacute como o teu povo em um caso Ou Deus intentou em um caso E para te exaltar em um caso (EPISTEIN 2009)
A partir desses textos percebemos que na mentalidade desses rabinos a
concessatildeo do nome Israel tem a ver com a relaccedilatildeo entre Deus e o mundo que ele criou
e que o aparecimento de Israel o Patriarca como algueacutem que como Deus estaacute ldquosoacuterdquo
natildeo pode ser separado da proclamaccedilatildeo judaica da unidade e singularidade de Deus
173 Importante observar que essa expressatildeo eacute retomada no tratado Sukkat 55b do Talmude Babilocircnico bem como no Targum Pseudo-Jonathan de Nuacutemeros 296 174 JASTROW 2006 p 449 traduz a palavra Haacutedaggericircbaumlh como ldquoobjeto de amorrdquo assim a frase ficaria ldquoo
uacutenico objeto de seu amorrdquo
149
em um mundo agora hostil mas destinado a ser submetido agrave sua ldquoretidatildeordquo
literalmente ldquoverticalidaderdquo
Rashi nos oferece uma interessante justificativa para a mudanccedila do nome de
Jacoacute segundo ele
Natildeo seraacute mais dito que as becircnccedilatildeos vieram a ti com astuacutecia e engano senatildeo com autoridade e clareza E finalmente o Divino Abenccediloado seja Ele se revelaraacute a ti em Bet-El e mudaraacute teu nome e ali Ele te abenccediloaraacute e eu estarei ali e confirmarei a ti sobre elas [as becircnccedilatildeos] E eacute isto que estaacute escrito (Oseias 12) ldquoe dominou o anjo prevaleceu chorou e lhe suplicourdquo o anjo chorou e suplicou-lhe E o que suplicou-lhe [o anjo] ldquoEm Bet-El nos encontraraacute [Drsquous] e ali falaraacute conosco Espera por mim ateacute que fale conosco alirdquo Mas Jacob natildeo queria e contra a sua vontade [o anjo] admitiu-lhe sobre elas [as becircnccedilatildeos] E este eacute [o significado de] ldquoE abenccediloou-o alirdquo porque [o anjo] lhe estava suplicando que esperasse por ele e natildeo quis Natildeo temos um nome determinado mudam nossos nomes tudo conforme a ordem do serviccedilo ordenado ao qual noacutes somos enviados (BIacuteBLIA COM COMENTAacuteRIOS DE RASHI 1993 p 159-160)
Como a personagem Jacoacute eacute representada na BH como sendo uma pessoa
habituada a empregar artifiacutecios e artimanhas para obter o que deseja tais como a
usurpaccedilatildeo da primogenitura (cf Gn 271-29) o modo como ele enriqueceu-se (cf Gn
3032-43) a fuga agraves escondidas da propriedade do sogro (cf Gn 31) e finalmente o
envio de presentes ao seu irmatildeo rival Esauacute a fim de amolecer seu coraccedilatildeo e aplacar
um pouco a sua aversatildeo para com ele (cf Gn 3214b-22) Rashi destaca em seu
comentaacuterio que desta vez a becircnccedilatildeo de Jacoacute eacute legiacutetima eacute clara eacute merecida E como
Jacoacute a partir de agora eacute destinado a ser um dos patriarcas um dos Pais da naccedilatildeo
entatildeo o novo nome revela essa nova investidura essa nova missatildeo em sua vida O anjo
na visatildeo de Rashi assim como naquela da maioria dos Saacutebios eacute um mensageiro que
antecipa o encontro pessoal com Deus em Gn 351-15175 Aliaacutes essa becircnccedilatildeo na
narrativa de Gn 3223-33 eacute transmitida assumindo a ldquoforma de um novo nome
175 ldquoEm Bet-El nos encontraraacute [Drsquous] e ali falaraacute conosco Espera por mim ateacute que fale conosco alirdquo como consta do comentaacuterio de Rashi citado acima
150
conferido a Jacoacute em memoacuteria dessa luta de coroaccedilatildeo de sua vidardquo (SKINNER 1994 p
409)176
Comentaristas modernos veem em Gn 3228-29 uma pergunta retoacuterica que daacute
oportunidade para que ldquoJacoacuterdquo e ldquoIsraelrdquo sejam contrapostos trazendo assim agrave mente
a conotaccedilatildeo contrastante dos nomes Uma vez que os nomes proacuteprios na BH estatildeo
inextricavelmente entrelaccedilados com personalidade e destino como vimos no segundo
capiacutetulo deste estudo ldquoa mudanccedila aqui significa uma purgaccedilatildeo final dos traccedilos de
caraacuteter desagradaacutevel com que ya`aacuteqoumlb veio a ser associadordquo (SARNA 1989 p 227)
4 O que significa Israel
O nome laerfyI aparece na antiguidade em sete lugares
a) em um tablete em Ugarit do final do seacutec XIII AEC
b) um relevo topograacutefico foi encontrado em uma laje de granito cinza medindo
46 cm de altura e 395 cm de largura o qual deveria fazer parte do pedestal
de uma estaacutetua egiacutepcia A inscriccedilatildeo eacute em hieroacuteglifo A dataccedilatildeo proposta seria
para a eacutepoca da 19ordf Dinastia egiacutepcia possivelmente durante o reinado de
Ramseacutes II (1290-1224 AEC) (cf GOumlRG 2001) A placa de nuacutemero 21687 em
seu estado atual de preservaccedilatildeo conteacutem trecircs aneacuteis de nomes sobrepostos de
prisioneiros asiaacuteticos ocidentais Ela se encontra nos Museus Nacionais em
Berlim Alemanha
c) na estela do faraoacute Merneptaacute iniacutecio do seacutec XIII AEC
d) na inscriccedilatildeo de Salmanassar III cerca de 853 AEC
e) na inscriccedilatildeo da estela de MeshaMesa cerca de 840 AEC
f) na inscriccedilatildeo da estela de Tell Dan seacutec VIII AEC e
g) na proacutepria Biacuteblia Hebraica
Haacute no entanto alguns aspectos que dificultam concluir se as palavras referidas
a Israel o satildeo de fato No tablete ugariacutetico a soletraccedilatildeo parece ser larfy na estela de
Mesha a letra X pode ser lida tanto como S ou š uma vez que natildeo haacute marca fonoloacutegica
176 DANELL 1946 p 19 tambeacutem afirma que o ldquonome Israel eacute uma recordaccedilatildeo da batalha com o Deus do paiacutes quando ele conseguiu seu objetivordquo ou seja a becircnccedilatildeo e a heranccedila de seus antepassados Abraatildeo e Isaac
151
Das inscriccedilotildees que constam das estelas de Merneptaacute e Salmanassar III eacute impossiacutevel
chegar a uma inequiacutevoca decisatildeo uma vez que o caractere que denota a letra em
questatildeo sustenta ambas pronuacutencias (cf MARGALITH 1990 p 226)
Na placa em granito cinza nuacutemero 21687 possivelmente do seacutec XIII AEC trecircs
nomes podem ser discernidos i-S-q-l-n (Ascalon) k-y-n-` A -nw (Canaatilde) i-[]-š A-i-r (estaacute
preservado parcialmente) Na verdade a borda direita dos hieroacuteglifos que
representam esta uacuteltima palavra estaacute tatildeo desgastada que os restos soacute podem ser
detectados com dificuldade GOumlRG (2001 p 21-27) interpretou o traccedilo horizontal
superior como o bico de um abutre (X) portanto o ldquoacutealef rdquo egiacutepcio representado pelo
sinal A Na reconstruccedilatildeo dessa palavra VAN DER VEEN THEIS GOumlRG (2010 p 16-
17) defendem a possibilidade de ler-se este terceiro nome da placa 21687 como sendo
i-A-š A-i-r (eumlXegraveeumllsquo78506 ) GOumlRG (2001 p 21-27) sugeriu a leitura do marcador de vogal A
em egrave (š A) como r (resultando em šr) baseado em vaacuterios exemplos existentes em
outras inscriccedilotildees (cf VAN DER VEEN THEIS GOumlRG 2010 p 17-18) Aceitando-se
essa proposta o terceiro nome da placa egiacutepcia que se encontra em Berlim pode ser
lido como IA-Sr-i-r = IA-Sr-il ou YA-Sr-il um nome que sem duacutevida parece-se com o
nome biacuteblico ldquoIsraelrdquo (hebraico ySracutel) GOumlRG (2001) sugere que a inicial i + A pode ler-
se como i e ou ya portanto seja como a letra inicial em ldquoIsraelrdquo seja quando derivado
de yašar em Yašarel (nome original de Israel) Essa leitura eacute suportada em
SCHNEIDER 1992 p 364-365) Assim sendo VAN DER VEEN THEIS GOumlRG (2010
p 20) veem dois argumentos principais a favor da tese deles
Em primeiro lugar uma vez que existe evidecircncia linguiacutestica de que o nome original ldquoIsraelrdquo poderia ter sido escrito com š (por exemplo com
base no verbo yšr) o uso egiacutepcio de š (em vez de S como na Estela de
Israel de Merneptaacute) natildeo exclui a possibilidade que o nome fosse escrito originalmente com S no semiacutetico ocidental Em segundo lugar e mais
significativamente a proximidade geograacutefica de IA-Sr-ilYA-Sr-il a Ascalon e Canaatilde torna a identificaccedilatildeo com Israel provaacutevel Nenhum local conhecido (especialmente tatildeo perto dessas duas entidades geograacuteficas familiares) tem um nome tatildeo reminiscente do nome biacuteblico ldquoIsraelrdquo
152
O tablete cuneiforme de Ugarit conteacutem uma lista com os nomes dos guerreiros
dos carros de combate de seu exeacutercito por isso provavelmente trata-se de um nome
de pessoa (cf WAGNER 2012) y-š-r-acute i-l Poreacutem esse nome natildeo tem necessariamente
ligaccedilatildeo com o Israel da BH (cf DAVIES 1992 p 57-58)
A inscriccedilatildeo monoliacutetica de Salmanassar III foi encontrada em Kurkh na Turquia
(custodiada atualmente no Museu Britacircnico em Londres) e descreve a campanha do
rei assiacuterio em seu sexto ano do reinado (853 AEC) A inscriccedilatildeo relata a batalha contra
uma coalizaccedilatildeo de cidades-estados da regiatildeo setentrional da Siacuteria em Qarqar cidade
agraves margens do rio Orontes na Siacuteria Haacute uma lista de onze reis (apesar de referir-se a
doze) com os detalhes das tropas enviadas para enfrentar o rei assiacuterio na tentativa de
impedir seu avanccedilo e controle das vias de transporte daquela regiatildeo Entre esses reis
eacute mencionado Acab (governou de 874-853 AEC) ldquo2000 carros e 10000 homens agrave peacute de
Acab de Israelrdquo (WAGNER 2012) Eacute provaacutevel que ldquoIsraelrdquo deva ser entendido como
uma indicaccedilatildeo da aacuterea ldquoIsraelrdquo aqui portanto eacute uma dimensatildeo poliacutetica e territorial
que eacute o reino do norte no seacuteculo IX AEC
A estela de MeshaMesa em basalto negro medindo 1 metro e 10 centiacutemetros
de altura e 60 a 68 centiacutemetros de espessura oferece em 34 linhas que puderam ser
recuperadas um documento que eacute considerado o mais antigo em liacutengua moabita
Nessa estela a palavra ldquoIsraelrdquo aparece como sendo o domiacutenio da dinastia de Omri
Nas linhas 4-7 se lecirc ldquoOmri era o rei de Israel e ele oprimiu Moab por um longo tempo
porque Kemosh estava zangado com a sua terra E foi sucedido por seu filho E ele
disse vou afligir Moab Em meus dias ele disse [por isso] mas eu triunfei sobre ele e
sua casa E Israel pereceu para semprerdquo (WAGNER 2012 traduccedilatildeo nossa)
Claramente trata-se de uma referecircncia ao Reino do Norte Israel e natildeo a um indiviacuteduo
em especiacutefico
Em 1993-1994 durante escavaccedilotildees em Tel Dan (aacuterabe Tel el-Qadi monte do juiz)
no norte de Israel encontrou-se trecircs fragmentos de uma estela em basalto (atualmente
sob os cuidados do Museu de Israel em Jerusaleacutem) que foram reutilizados na
construccedilatildeo de um muro Devido a isso apesar de se encaixarem os trecircs fragmentos
apresentam lacunas no texto O iniacutecio e o final estatildeo faltando p ex e a versatildeo
reconstruiacuteda possui diferentes comprimentos de linha O texto eacute em aramaico antigo e
153
natildeo faz referecircncia a quem mandou redigi-lo haacute uma hipoacutetese de ter sido o rei siacuterio
Hazael de Damasco (cf WAGNER 2012) Trata-se de um relato sobre as vitoacuterias
obtidas contra o Reino do Norte Israel e a ldquocasa de Davirdquo referecircncia ao Reino do Sul
O texto comeccedila com a menccedilatildeo de um pacto entre Israel e Damasco o rei Joratildeo de Israel
(governou de 852-841 AEC) apoacutes a morte de Barhadad II (= Ben-Hadad 845-842 AEC)
rompeu esse acordo ao invadir territoacuterios arameus (cf 2Rs 871528) Hazael (842-805
AEC) provaacutevel usurpador do trono de Damasco conseguiu derrotar Israel e recuperar
os territoacuterios perdidos (cf 2Rs 828) No texto se diz que o monarca arameu matou
Joratildeo de Israel e Ocozias (Acazias) de Judaacute ldquo[Eu matei Jo]ratildeo filho de [Acab] rei de
Israel e eu matei [Acaz]ias filho de [Jeoratildeo re]i da Casa de Davirdquo (linhas 7b-9a
WAGNER 2012 traduccedilatildeo nossa) No entanto na BH em 2Rs 914-27 consta que foi Jeuacute
quem matou tanto Joratildeo (rei de Israel) quanto Ocozias (rei de Judaacute) O que nos
interessa aqui eacute constatar que o governante do Reino do Norte eacute identificado na
inscriccedilatildeo de Tal Dan com sendo ldquorei de Israelrdquo (linhas 3 8 e 12) Somente a tiacutetulo
ilustrativo registre-se aqui as vaacuterias divergecircncias a respeito da possiacutevel expressatildeo
ldquocasa de Davirdquo (detalhes do debate cf ESTELA DE TEL DAN 2016)
Dedicamo-nos agora agrave primeira menccedilatildeo extrabiacuteblica de uma entidade
denominada ldquoIsraelrdquo Paradoxalmente essa menccedilatildeo anuncia a destruiccedilatildeo de Israel
onde ela deveria aparecer Essa menccedilatildeo eacute feita pela estela do faraoacute Merneptaacute que pode
ser datada entre 1210 e 1205 AEC Essa estela atualmente exposta no Museu do Cairo
(Egito) eacute feita em granito medindo 318 metros de altura por 161 metro de largura e
31 centiacutemetros de espessura relata as vitoacuterias do governante do Egito por ocasiatildeo de
uma campanha militar no Levante177
Uma grande alegria eacute advinda ao Egito e o juacutebilo sobe para todas as cidades da terra bem-amada Elas falam das vitoacuterias alcanccediladas por Merneptaacute contra o Tjehenu178 Os chefes tombam dizendo Paz (š-l-m) Nem um soacute levanta a cabeccedila
entre os Nove Arcos179
177 Em PETRIE William M Flinders Six temples at Thebes London [sn] 1897 plate 14 haacute uma imagem de espelho das 28 linhas principais da inscriccedilatildeo nela registrada apud MERNEPTAH STELE 2016 A menccedilatildeo a Israel aparece na linha 27 da inscriccedilatildeo 178 Seriam os ldquolibianosrdquo povos ocidentais e meridionais contiacuteguos ao vale do rio Nilo (cf ROumlMER 2016 p 77 n 7) 179 Termo empregado para representar os inimigos tradicionais do Egito (cf ROumlMER 2016 p 78 n 8)
154
Vencida estaacute a terra dos Tjehenu O Hatti180 estaacute paciacutefico Canaatilde estaacute despojado de tudo o que tinha de mau Ascalon eacute conduzido Gazer estaacute preso Jenoam181 se torna como se nunca tivesse existido Israel estaacute destruiacutedo nem mesmo a sua semente existe A Siacuteria (Hourrou) tornou-se uma viuacuteva para o Egito Todas as terras estatildeo unidas elas estatildeo em paz (Cada um dos) que vagavam estatildeo agora ligados pelo rei do Alto e Baixo Egito Baenrecirc o filho de Recirc Merneptaacute dotado de vida como Recirc cada dia (ROumlMER 2016 p 77-78 grifo nosso)182
O nome de Israel eacute escrito como etnocircnimo ele eacute determinado por um homem e
uma mulher assim como por trecircs traccedilos verticais indicando o plural Algo
interessante eacute o fato da inscriccedilatildeo dizer sobre Israel que ldquonem mesmo a sua semente
existerdquo Essa expressatildeo eacute duacutebia podendo indicar que os campos de trigo (ldquosementerdquo)
que sustentam o povo jaacute natildeo existem mais destruiacutedos que foram pelo exeacutercito do
faraoacute ou entatildeo ldquopode igualmente evocar a praacutetica egiacutepcia de cortar o pecircnis dos
inimigos mortosrdquo (ROumlMER 2016 p 79) Se o escriba quisesse ele poderia ter
especificado melhor incluindo nos hieroacuteglifos gratildeos de trigo ou um falo como ele natildeo
o fez pode ser uma indicaccedilatildeo de ambos significados Provavelmente o Israel
mencionado na estela egiacutepcia seria uma coalizaccedilatildeo de clatildes ou de tribos A sua
localizaccedilatildeo segundo a mesma estela seria entre Ascalon Gazer que designariam as
extremidades sul e Jenoam (Janoam) que indicaria a extremidade norte assim ldquopode-
se imaginar esse Israel na regiatildeo montanhosa de Efraim isto eacute a regiatildeo em que Saul
vai fundar seu lsquoreinorsquordquo (ROumlMER 2016 p 79)
A etimologia da palavra ldquoIsraelrdquo ateacute o momento ainda eacute objeto de debates
controveacutersias e teorias as mais diversas Tentaremos apresentar aqui um quadro
resumido a fim de termos uma ideia panoracircmica
Comeccedilando pela proacutepria etimologia fornecida pelo texto hebraico lemos
ldquoporque lutaste com Deus e com homens e prevalecesterdquo (traduccedilatildeo da maior parte das
versotildees modernas) Neste caso o verbo raro Saumlricirctauml (qal perfeito segunda pessoa
180 Seriam os hititas na Anatoacutelia (cf ROumlMER 2016 p 78 n 9) 181 A identificaccedilatildeo desse local eacute incerta podendo ser uma regiatildeo na Palestina do Norte ou na Transjordacircnia (cf ROumlMER 2016 p 78 n 10) 182 Roumlmer reconhece-se devedor para a traduccedilatildeo no caso em francecircs do texto em hieroacuteglifos a LALOUETTE Claire LrsquoEmpire des Ramseacutes Paris Flammarion 2000 [1985] p 267
155
masculina singular) da raiz hrf assume o sentido de ldquolutarrdquo ldquolitigarrdquo ldquodisputarrdquo Esse
verbo ocorre novamente em Os 124 na forma qal (perfeito) da terceira pessoa
masculina singular (Saumlracirc) Enquanto a identificaccedilatildeo o verbo woyyaumlordmSar (Os 125) eacute
discutiacutevel podendo ser da mesma raiz hrf como tambeacutem da raiz rwf em um de seus
significados (cf CLINES 1993-2011 v VIII p 119 190) ambas com sentido de lutar
litigar combater
No entanto a primeira parte do nome laerfyI eacute objeto de vaacuterias interpretaccedilotildees
vejamos
a) hrf lutar No entanto o sentido primeiro para o nome natildeo seria ldquolutou com
Deus [El]rdquo ldquocombateu com Deus [El]rdquo mas ldquoQue El combatardquo uma vez que
nos nomes teofoacutericos a tendecircncia eacute o nome da divindade encontrar-se na
posiccedilatildeo de sujeito183 Essa raiz como jaacute dissemos eacute rara surge apena duas
vezes na BH (Gn 3229 e Os 1245[]) Em outras liacutenguas semiacuteticas somente
em Ebla aparece um nome com possibilidade de ter proximidade trata-se
de iš-ra-il com o possiacutevel sentido de ldquocombaterrdquo (cf ROumlMER 2016 p 76)184
Flaacutevio Josefo em Antiguidades Judaicas (1333) assume essa explicaccedilatildeo para a
raiz quando escreve sobre IsraelJacoacute τὸν ἀντιστάτην ἀγγέλῳ θεοῦ
(enfrentoulevantou-se [contra] o anjo de Deus)
b) hrf perseverar persistir portanto El persistepersevera (cf DRIVER 1899
p 530a) ROSS (1985 p 346) e CLINES (1993-2011 v VIII p 190) apontam
outro significado para esse verbo raro na BH que seria contender
competir argumentar rivalizar (inglecircs to contend) ROSS chega mesmo
a levantar a hipoacutetese de que as versotildees gregas e latinas tenham
confundido os verbos hrf (contender competir) e rrf (governar ser
forte dominar) Veja abaixo Essa raiz estaacute presente com muita
183 O primeiro a observar esse fenocircmeno foi NESTLE Eberhard Die israelitischen Eigennamen nach ihrer religionsgeschichtlichen Bedeutung ein Versuch Haarlem F Bohn 1876 apud MARGALITH 1990 p 234 n 52 184 Essa interpretaccedilatildeo fundamenta-se em GORG Manfred Israel in Hieroglyphen Biblische Notizen - Beitraumlge zur exegetischen Diskussion Muumlnchen Institut fuumlr Biblische Exegese Altes Testament Heft 106 p 21-27 2001 e VAN DER VEEN THEIS GOumlRG 2010 p 19 24 n 66
156
probabilidade no nome proacuteprio Saraiacuteas (Suumlraumlyacirc)185 que poderia ser
interpretado como ldquoGuerreiroPriacutencipe de YHWHrdquo ldquoYHWH
governaregerdquo e assim por diante
c) hrf brilhar resplandecer daiacute ler-se o nome como El resplendebilha Essa
leitura eacute amparada na possibilidade de uma equivalecircncia com a palavra
aacuterabe šariya (cf BAUER 1933 p 83) Em hebraico esse sentido eacute transmitido
com a raiz nGh Em acaacutedio encontramos um termo com uma raiz semelhante
mas natildeo igual caraumlru (iluminar acender)186
d) rrf governar reinar dominar impor-se como senhor ser forte (cf Nm
1613 Is 321) Redundando entatildeo em ldquoQue El governerdquo ldquoQue El reinerdquo A
BH atesta outros nomes proacuteprios com essa raiz como p ex Śeraumlyaumlh ou na
forma longa Śeraumlyaumlhucirc (YHWH reina) nome de um sacerdote em 2Rs 2518
(BJ Saraiacuteas) e de um funcionaacuterio do rei Sedecias em Jr 3626 Oseias 125a
(woyyaumlordmSar acuteel-malacuteaumlk wayyugravekaumll) que geralmente eacute traduzido como ldquoLutou
contra um anjo e o venceurdquo traz provavelmente esse verbo ROumlMER (2016)
e outros estudiosos veem aqui uma revisatildeo dogmaacutetica massoreacutetica ao
introduzir a palavra ldquoanjosrdquo ao inveacutes de Deus (YHWH ou El Elohicircm) Pois
ldquoos massoretas queriam evitar uma proximidade muito grande entre Jacoacute e
Deus e por consequecircncia inseriram a palavra malacuteaumlk (lsquoanjorsquo)
transformando assim o termo acuteeumll que na origem significava o deus El por
uma mudanccedila de vocalizaccedilatildeo em uma preposiccedilatildeo acuteel (lsquopara em direccedilatildeo arsquo)rdquo
(ROumlMER 2016 p 77) O texto de Os 125 poderia entatildeo ser refeito do
seguinte modo ldquoEl se impocircs e o levou (woyyaumlordmSar acuteeumll wayyugravekaumll)rdquo (ROumlMER
2016 p 77) O verbo vem do sentido denominativo ldquogovernarrdquo originado
de rf (ugariacutetico šr ndash cf SAUER 1966 p 240)187 ldquopriacutencipe governanterdquo Tal
185 Esse nome estaacute presente na BH em 2Sm 817 2Rs 251823 1Cr 4131435 614 (2x) Esd 22 71 Ne 102 1111 12112 Jr 3626 408 5159 (2x)61 5224 186 Cf FOWLER 1988 p 244 187 Em ugariacutetico essa raiz talvez poderia ser ainda šrr com o sentido de ldquosoltarrdquo ldquosoltar-serdquo ldquolivrarrdquo
cuja raiz corresponderia ao hebraico yš` com o significado de ldquolibertarrdquo ldquosalvarrdquo (cf FOWLER 1988 p
289)
157
raiz pode ter relaccedilatildeo tambeacutem com o substantivo emarita šarru188 que
significa governantes funcionaacuterios da administraccedilatildeo (cf TAWIL 2009 p
380) Nessa perspectiva de interpretaccedilatildeo a Septuaginta (LXX) lecirc ὅτι
ἐνίσχυσας μετὰ θεοῦ καὶ μετὰ ἀνθρώπων δυνατός (ldquoporque tu foste forte
com Deus e com os homens poderosordquo cf LA BIBLIE DrsquoALEXANDRIE
LA GENEgraveSE 1986 p 242-244) Essa traduccedilatildeo da versatildeo grega eacute resultado de
uma visatildeo mais ampla que possuem da personagem Jacoacute De alguma
maneira jaacute prefigurando a histoacuteria de seus descentes em sua libertaccedilatildeo da
servidatildeo no Egito e sua obtenccedilatildeo da Terra Prometida A Vulgata versatildeo
latina de Jerocircnimo tambeacutem segue essa interpretaccedilatildeo ldquoquoniam si contra
Deum fortis fuisti quanto magis contra homines praevalebisrdquo (trad nossa porque
se contra Deus foste forte quanto mais prevaleceste contra os homens) Interessante
observar que uma outra explicaccedilatildeo etimoloacutegica por parte da BH aproxima-
se dessa de Gn 3229 Estamos nos referindo a Jz 632 (wayyiqraumlacute-locirc bayyocircm-
hahucircacute yuumlruBBaordm al leumlacutemoumlr yaumlordmreb Bocirc haBBaordm al Kicirc naumltac e|t-mizBuumlHocirc traduccedilatildeo nossa
Chamou-lhe naquele dia Jerubaal dizendo ldquoQue Baal contenda contra ele
porque destruiu o seu altarrdquo) No entanto temos aqui a raiz verbal byr (cf
CLINES 1993-2011 v VII p 478 KOEHLER BAUMGARTNER 2001 v 2
p 1224) e natildeo a raiz bbr189
e) rfy curar (os enfermos) portanto ldquoEl [Deus] curardquo Nas liacutenguas semiacuteticas
incluindo o hebraico e o aramaico o termo natildeo eacute encontrado mas somente
em aacuterabe (raiz nasarawasara190 = reviver reanimar) e etiacuteope (saraya = curar)
188 Emarita eacute o nome que se daacute agrave liacutengua da Emar antiga atual Meskene Qadine (Siacuteria) onde foram encontrados cerca de 1200 fragmentos de textos legais clericais religiosos literaacuterios e lexicais A maioria desses textos encontrados foram escritos em acaacutedio poreacutem haacute vaacuterios redigidos na liacutengua local de Emar denominada ldquoemaritardquo Eles satildeo datados grosso modo do periacuteodo entre os seacuteculos XIX a XII AEC (Era do Bronze Tardio na Siacuteria) Geralmente essa liacutengua eacute classificada como semiacutetica noroeste (cf VITA 2015 p 377) 189 EISSFELDT (1968 p 76 n 2) afirma que a raiz por detraacutes do verbo yaumlordmreb seja bbr que significa ldquoser
granderdquo ldquoengrandecerrdquo Segundo ele o que torna semelhantes essas duas explicaccedilotildees etimoloacutegicas (Israel e Jerubaal) eacute o fato dos verbos que constituem esses dois nomes (segundo Eissfeldt hrf para
Israel e bbr para Jerubaal) originalmente terem um significado diferente daquele de lutar combater e
contender que acaba surgindo na explicaccedilatildeo do texto biacuteblico 190 Essa diferenccedila de raiacutezes Albright explica na passagem citada devido a uma contaminaccedilatildeo morfoloacutegica das raiacutezes de I-waw e I-nun que ocorria muito na antiguidade
158
com esse sentido (cf ALBRIGHT 1927 p 154-158) Mas eacute uma proposta que
natildeo eacute levada muito em consideraccedilatildeo como explicaccedilatildeo etimoloacutegica
f) rvy ser direito (de peacute) ser correto ser justo191 Em ugariacutetico a raiz yšr eacute
traduzida como ldquoretidatildeo legalidaderdquo (cf OLMO LETE SANMARTIacuteN 2004
p 989) Em acaacutedio com essa raiz encontramos o verbo ešeumlru com o sentido
de endireitar prosperar estar em um modo correto e o adjetivo išaru que
significa ldquojustordquo ldquodireitordquo ldquocorretordquo (cf TAWIL 2009 p 151-152) De onde
se pode traduzir o nome Israel como ldquoEl [Deus] eacute justordquo ldquoEl eacute corretordquo (cf
JACOB 1955 p 155) Essa raiz eacute reencontrada em textos da BH Dt 3215
33526 como Yuumlšurucircn (um nome poeacutetico para Israel)192 Em Mq 27 aparece
como um adjetivo yaumlšaumlr (retidatildeo) Isaias 442 Yuumlšurucircn novamente aparece
formando um paralelismo literaacuterio proacuteprio da poesia hebraica acuteal-Ticircraumlacute `abDicirc
ya|`aacuteqoumlb wicircšurucircn BaumlHaordmrTicirc bocirc (Natildeo temas Jacoacute meu servo e Jeshurun meu
escolhido) No caso de estar relacionado a Israel o Patriarca sendo um nome
paralelo entatildeo a raiz rvy seria muito clara na etimologia do nome patriarcal
Assim a mudanccedila de nome de Jacoacute para Israel expressaria uma mudanccedila de
caraacuteter do desvio agrave retidatildeo moral Essa interpretaccedilatildeo pode ser encontrada na
Yalkut Reubeni (Gn 3229)193 e no comentaacuterio ao Deuteronocircmio de Ramban
(210 e 712)194 Segundo esses rabinos o nome Israel significaria ldquoAquele que
eacute reto com Deusrdquo O fato de Israel ser escrito com S (sin) e natildeo š (shin) natildeo
significa que natildeo tenha alguma relaccedilatildeo com a raiz rvy Eacute de se observar que
a pontuaccedilatildeo da sibilante X somente foi finalizada pelos massoretas na Idade
191 Cf SACHSSE 1914 p 1-15 192 Apesar que FOWLER (1988 p 186 202) natildeo reconhece a existecircncia de nomes teofoacutericos em hebraico com essa raiz Segundo a autora a ideia da divindade como ldquojustardquo ldquoretardquo eacute transmitida em nomes
hebraicos pela raiz cDq 193 Apud SARNA 1989 p 405 O Yalqut Reubeni que significa ldquoColeccedilatildeo de Reubenrdquo eacute uma coleccedilatildeo do seacuteculo XVII EC de midrashim composta pelo rabino Reuben Hoschke Kohen (falecido em 1673) impresso primeiramente em Praga em 1660 A coleccedilatildeo inclui expansotildees de lendas rabiacutenicas adepto do misticismo cabaliacutestico 194 Ramban eacute o acrocircnimo do nome de Mōšeh bēn-Nāḥmān (1194-1270) normalmente conhecido como Nachmanides um rabino sefardita catalatildeo filoacutesofo meacutedico cabalista e comentarista biacuteblico Ele nasceu cresceu estudou e viveu a maior parte de sua vida em Girona Catalunha Espanha Nachmanides eacute tambeacutem considerado uma figura importante no restabelecimento da comunidade judaica em Jerusaleacutem apoacutes a sua dizimaccedilatildeo nas matildeos dos cruzados em 1099 (cf WIGODER 1993 p 797-799)
159
Meacutedia Portanto tanto sin com shin satildeo possiacuteveis em vaacuterias palavras
hebraicas Em ugariacutetico p ex natildeo haacute uma consoante que corresponda
consistentemente agrave hebraica sin ldquoregularmente o fonema sibilante š e
usualmente o fonema sibilante S aparecem na ortografia como šldquo (GORDON
1940 sect 3 11 12)195 E isso se repete em outras liacutenguas como o feniacutecio e no
acaacutedio 196 A partir da raiz rfyrvy GOumlRG (2001 p 26) sugere que o nome
ldquoIsraelrdquo possa ser derivado de um nome original canaanita Eshar-Il
Yashar-Il (ldquoPerfeito eacute Elrdquo) Ele constata que nomes similares com ou sem a
presenccedila do elemento divino e derivados dos verbos rfyrvy (ldquoser corretordquo)
satildeo atestados em onomaacutestica amorita do iniacutecio do segundo milecircnio AEC Ya-
sa-rum I-šar-li-im Ḫa-mu-yi-šar
g) rva ser feliz O nome da tribo de Asher (BJ Aser) e da deusa feniacutecia Asheraacute
(BJ Aseraacute) esposa do deus El parecem originar-se dessa raiz Em ugariacutetico
encontramos de fato a palavra išryT um substantivo feminino traduzido
como ldquofelicidade alegriardquo (cf OLMO LETE SANMARTIacuteN 2004 p 118)
Lembrando que em ugariacutetico noacutes natildeo temos somente um a mas trecircs com
variaccedilotildees foneacuteticas de a i e u Isso porque no Protossemiacutetico e nas liacutenguas
semiacuteticas conservadoras as siacutelabas virtualmente sempre comeccedilam com uma
consoante Desse modo o alfabeto consonantal era adequado No entanto
em algumas outras liacutenguas uma vogal sempre constitui a siacutelaba O alfabeto
ugariacutetico tambeacutem era usado para escrever liacutenguas nas quais a siacutelaba poderia
incluir vogais Por essa razatildeo letras vogais se faziam necessaacuterias Era natural
assumir a distribuiccedilatildeo vocaacutelica do acaacutedio cuneiforme pelo qual todas as
vogais satildeo classificadas ortograficamente como a i ou u A vogal e natildeo eacute
nitidamente distinguida de i Contudo esse procedimento natildeo combinava
com o alfabeto consonantal que era apropriado para a liacutengua semiacutetica de
Ugarit Entatildeo um arranjo foi efetuado foram utilizados trecircs sinais acutealef cujos
195 ldquoO š hebraico biacuteblico corresponde seja ao ugariacutetico š (proto-semiacutetico s) seja ao ugariacutetico t (proto-
semiacutetico q) Mas observe-se tambeacutem que o ugariacutetico š reflete o proto-semiacutetico s (hebraico biacuteblico š) e
o proto-semiacutetico S (hebraico biacuteblico S)rdquo (HUEHNERGARD 2012 p 26) 196 Para uma visatildeo mais ampla e detalhada a respeito das sibilantes sin e shin pode-se consultar MARCUS 1941 p 141-150
160
valores normais em textos ugariacuteticos eram acute a acute i e acute u enquanto que em
textos hurritas e acaacutedios eles poderiam representar simplesmente a i u (cf
GORDON 1998 p 18 44)
h) hrfmi governo (cf Is 956) Daiacute podendo ser traduzido o nome como ldquoEl
julgardquo COOTE (1972 p 138-140) argumenta que o segundo sentido da raiz
contendo rf como os radicais fortes eacute ldquocortarrdquo Esse estudioso pensa que tal
raiz (cortar) forneccedila uma adequada etimologia para Israel devido a
frequecircncia com que se constata um desenvolvimento semacircntico de ldquocortarrdquo
para decidir aconselhar ou julgar governar Como eacute o caso do acaacutedio
šarrum que liga-se indiretamente a raiacutezes tais como mašaumlru (primitivo
wašaumlru ndash cortar) ou šaššaru (primitivo šaršaru ndash ver) Em aacuterabe COOTE
(1972 p 139) encontra acuteašaumlra (conselho) e mušicircr (conselheiro) que tanto
podem ser provenientes de raiacutezes que significam ldquocortarrdquo como ldquobilharrdquo Em
hebraico o estudioso encontra hrfmi como sendo relacionado agraves raiacutezes com
rf forte significando ldquocortarrdquo Nesse caso este substantivo poderia ser um
derivado do verbo yrf ou rfy significando ldquoEl julgardquo no sentido de
ldquogovernar por meio de julgamento ou decretordquo (COOTE 1972 p 140-141)
i) Iser ldquosantordquo palavra egeia (FEIST 1929 p 319) Podendo interpretar-se o
nome Israel como ldquoDeus [El] eacute santordquo Essa tese tambeacutem natildeo foi defendida
por nenhum outro estudioso
j) har ver daiacute interpretar-se o nome como ldquoAquele que vecirc Deusrdquo ([ὁ] ὁρῶν
τὸν θεoacuteν) Fiacutelon de Alexandria (cerca 20 AEC a cerca 50 EC)197 foi o primeiro
a propor essa explicaccedilatildeo que alguns Padres da Igreja como se costuma
denominar os primeiros teoacutelogos e filoacutesofos do cristianismo acabaram
acompanhando no nome ldquoIsraelrdquo a junccedilatildeo de trecircs palavras hebraicas lae
(Deus) + har (ver) + vyai (homem)198 Essa interpretaccedilatildeo eacute fruto certamente
daquilo que se lecirc no v 31 quando Jacoacute admite ter ldquovisto Elohicircm face a facerdquo
197 Cf SACHSSE 1914 p 2-3 198 Pensam assim Novaciano (200-258 EC ndash Friacutegia) em sua obra De Trinitate 198-14 Joatildeo Crisoacutestomo (cerca de 347-407 EC) em sua obra Homilias sobre o Gecircnesis 5810 e Agostinho (354-430 EC) em sua obra De Civitate Dei 1639 apud SHERIDAN 2004 p 325-327
161
Certamente eacute possiacutevel que uma dessas raiacutezes semiacuteticas acima elencadas esteja
etimologicamente relacionada ao nome ldquoIsraelrdquo e que o nome signifique algo como
[El] ldquogovernajulgardquo ldquoreinardquo ldquoimpotildee-se como senhorrdquo ldquoEl eacute o senhorrdquo e assim por
diante Deve-se observar poreacutem que haacute um significado que o proacuteprio texto daacute ao
nome (Gn 3229) que costuma-se denominar de ldquoetimologia popularrdquo (cf abaixo)
Como oportunamente observou ROSS (1985 p 347-348)
A maioria dessas outras sugestotildees natildeo satildeo mais convincentes que aquela que a etimologia popular deu no texto de Gecircnesis O conceito da luta de Deus com algueacutem certamente natildeo eacute mais um problema do que a proacutepria passagem E a inversatildeo da ecircnfase (de ldquoDeus lutardquo para ldquolutar com Deusrdquo) na explicaccedilatildeo eacute por causa da natureza das etimologias populares que se satisfazem com um jogo de palavras sobre o som ou o sentido do nome para expressar seu significado
O nome no contexto serve para evocar a memoacuteria daquilo que se passou no
vau o rio Jaboc ou seja a luta Tem suas razotildees VON RAD (1977 p 396-397) quando
afirma que o nome ldquoeacute interpretado aqui de maneira muito livre contrariamente ao seu
sentido etimoloacutegico original (lsquoQue Deus reinersquo) como se Deus fosse natildeo o elemento
ativo mas o passivo da luta com Jacoacute (obviamente a nossa traduccedilatildeo lsquolutarrsquo natildeo eacute de
todo segura)rdquo Importa destacar na observaccedilatildeo de VON RAD a liberdade inerente ao
autor do texto quando fornece uma explicaccedilatildeo ao novo nome do Patriarca
Aliaacutes o livro de Gecircnesis eacute de longe a mais rica fonte de exemplos nos quais a
nomeaccedilatildeo de pessoas ou lugares vem acompanhada por uma explicaccedilatildeo etimoloacutegica
do novo nome conferido Se natildeo isso ao menos uma alusatildeo ao sentido etimoloacutegico do
nome eacute feita (cf KRAŠOVEC 2010 p 6-7) Eva (320 - Hawwacirc) Caim (41 - qayin) Set
(425 - šeumlt) Noeacute (529 - noumlordfH) Babel (119 - Baumlbel) Ismael (161115 - yišmauml`eumlacutel) El-Roiacute
(1613 - acuteaTTacirc acuteeumll roacuteacuteicirc) Laai-Roiacute (1614 - Buumlacuteeumlr laHay roumlacuteicirc) AbratildeoAbraatildeo (175 - acuteabraumlm
acuteabraumlhaumlm) SaraiSara (1715 ndash Saumlray Saumlracirc) Segor (1920-22 - cocirc`ar) Moab (1937 -
mocircacuteaumlb) Ben-Ami (1938 - Ben-`ammicirc) Isaac (213-6 - yicHaumlq) Bersabeia (2131 - Buumlacuteeumlr
šaumlba`) ldquoYHWH proveraacuterdquo (2214 - yhwh(acuteaumldoumlnaumly) yiracuteegrave) Esauacute (2525 - `eumlSaumlw) Jacoacute (2526
- ya`aacuteqoumlb) Edom (2530 - acuteeacutedocircm) Esec (2620 - `eumlSeq) Sitna (2621 - Sidaggernacirc) Reobot (2622
- ruumlHoumlbocirct) SebaBersabeia (2633 - šib`acirc Buumlacuteeumlr šeba`) Jacoacute (2736 - ya`aacuteqoumlb)
162
BetelLuza (2819 - Becirc|t-acuteeumll lucircz) Ruacuteben (2932 - ruumlacuteucircbeumln) Simeatildeo (2933 - šim`ocircn) Levi
(2934 - leumlwicirc) Judaacute (2935 - yuumlhucircdacirc) Datilde (306 - Daumln) Neftali (308 - napTaumllicirc) Gad (3011
- Gaumld) Aser (3013 - acuteaumlšeumlr) Isaacar (3018 - yiSSaumlJkaumlr) Zabulon (3020 - zuumlbulucircn) Joseacute
(3023-24 - yocircseumlp) Jegar-Saaduta (3147 - yuumlgar Saumlhaacuteducirctaumlacute) Galed (3148 - Gal`eumld) Masfa
(3149 - micPacirc) Maanaim (322 - ma|Haacutenaumlyim) Fanuel (3231 - Puumlnicircacuteeumll) Sucot (3317 -
suKKocirct) El-Betel (357 - acuteeumll Becirct-acuteeumll) Carvalho-dos-Prantos (358 - acuteallocircn Baumlkucirct)
BenocircniBenjamim (3518 - Ben-acuteocircnicirc binyaumlmicircn) Fareacutes (3829 - Paumlrec) Zara (3830 -
zaumlraH) Manasseacutes (4151 - muumlnaššegrave) Efraim (4152 - acuteepraumlyim) Abel-Mesraim (5011 -
acuteaumlbeumll micrayim)
Apoacutes analisar vaacuterios casos de etiologias que se fundamentavam em etimologias
que tinham pouco ou nada a ver com o nome em questatildeo KRAŠOVEC (2010 p 43)
chega agrave seguinte conclusatildeo
Todos os exemplos de explicaccedilatildeo etioloacutegica de etimologia de nomes proacuteprios na Biacuteblia Hebraica representam uma foacutermula literaacuteria baacutesica que aparece em variantes Qualquer anaacutelise da explicaccedilatildeo etioloacutegica da etimologia dos nomes proacuteprios biacuteblicos levanta questotildees sobre a origem e o crescimento do texto seu cenaacuterio histoacuterico e sua autoria O contexto imediato e o contexto mais amplo das narrativas indicam claramente que uma histoacuteria complexa de tradiccedilotildees populares e criaccedilotildees literaacuterias estaacute por traacutes do presente texto As explicaccedilotildees etioloacutegicas da etimologia dos nomes proacuteprios biacuteblicos satildeo fenocircmenos literaacuterios e estiliacutesticos A nomeaccedilatildeo de pessoas ou lugares e a explicaccedilatildeo para os nomes baseiam-se em consideraccedilotildees literaacuterias antes que linguiacutesticas
GOumlRG (1991 p 81) faz uma constataccedilatildeo muito pertinente a essa questatildeo
segundo ele
Os nomes pessoais hebraicos do Antigo Testamento satildeo pesquisadas geralmente segundo a sua etimologia e semacircntica raramente pela sua forma sintaacutetica [] Um problema especiacutefico eacute a posiccedilatildeo de um nome em um dado contexto [] A etimologia filoloacutegica e linguisticamente defensaacutevel em conjunto com a descriccedilatildeo gramatical sintaacutetica da formaccedilatildeo do nome da pessoa nesses casos eacute em uacuteltima anaacutelise irrelevante para o processamento de exibiccedilatildeo o que eacute significativo somente para a intenccedilatildeo e horizonte da unidade ou dos literatos Na
163
ciecircncia ainda se gosta neste contexto de utilizar o termo criacutetico ldquoetimologia popularrdquo
ULLMANN (1967 p 205-206) mesmo referindo-se a casos extrabiacuteblicos jaacute
observava que palavras se formam em muitos casos por motivaccedilatildeo morfoloacutegica
(entenda-se foneacutetica) processo que vulgarmente eacute chamado de ldquoetimologia popularrdquo
Esta designaccedilatildeo foi muitas vezes criticada e ldquopopularrdquo natildeo eacute de fato termo muito apropriado pois que muitos destes erros natildeo foram cometidos pelo ldquopovordquo mas por pessoas cultas ou semicultas os copistas medievais os humanistas do Renascimento e outros ldquoEtimologia associativardquo designaccedilatildeo sugerida pelo professor Orr199 seria mais apropriada [] A forccedila impulsora que estaacute por detraacutes da etimologia popular eacute o desejo de motivar na linguagem aquilo que eacute ou se tornou opaco Como recentemente declarou um linguista francecircs ldquoa etimologia popular eacute uma reaccedilatildeo contra a arbitrariedade do signo Quer-se a todo custo explicar aquilo de que a liacutengua eacute incapaz de fornecer a explicaccedilatildeordquo200 A motivaccedilatildeo que deste modo uma palavra recebe eacute mais psicoloacutegica do que histoacuterica baseia-se nas associaccedilotildees do som e do sentido e nada tecircm a ver com os fatos da etimologia cientiacutefica [] A etimologia popular pode mesmo entrar em jogo quando as duas palavras natildeo satildeo idecircnticas mas apenas semelhantes no som Em tais casos a forma de uma das palavras seraacute alterada para a tornar homocircnima da outra (ULLMANN 1967 p 206 211-212)
Apenas para ficarmos em um exemplo de como a preocupaccedilatildeo de explicar ldquoa
todo custo aquilo de que a liacutengua eacute incapazrdquo como afirma ULLMANN no texto acima
citado tomemos o caso de Hermann Gunkel (1862-1932) um dos maiores e mais
reconhecidos estudiosos da literatura veterotestamentaacuteria fundador do meacutetodo de
anaacutelise conhecido por Formgeschichte (Criacutetica da Forma ou Histoacuteria das Formas que
consiste no estudo aprofundado dos gecircneros literaacuterios da Biacuteblia) e um dos maiores
representantes da Religionsgeschichtliche Schule (Escola da Histoacuteria das Religiotildees termo
aplicado a um grupo de teoacutelogos protestantes alematildees associados agrave Universidade de
199 O autor faz menccedilatildeo aqui agrave seguinte obra ORR John Words and sounds in English and French Oxford Basil Blackwell 1953 (Modern Language Studies 177) 200 Citaccedilatildeo do artigo VENDRYES Joseph Sur la deacutenomination Observations de linguistique general tregraves fines et de grande porteacutee pour lrsquohistoire et lrsquousage de vocabulaires Bulletin de la Socieacuteteacute de Linguistique de Paris Paris Librairie C Klincksieck t 48 fasc 1 p 1-13 1952 A citaccedilatildeo mencionada acima estaacute na p 6
164
Goumlttingen na deacutecada de 1890) Os estudiosos deparam-se com a dificuldade de se
tomar o nome ldquoIsraelrdquo a partir da etimologia fornecida pelo texto na qual Deus (El) eacute
o objeto e natildeo o sujeito do nome como se esperava sempre em casos semelhantes tal
interpolaccedilatildeo eacute assumida como se o nome fosse um lema para recordar a apreensatildeo da
becircnccedilatildeo por parte de Jacoacute a qual seria uma promessa de vitoacuteria e sucesso (cf SKINNER
1994 p 409) Gunkel afirma que essa explicaccedilatildeo do significado do nome fornecida
pelo texto foi orgulhosamente empregada para mostrar a natureza invenciacutevel e
triunfante da naccedilatildeo Israel com a ajuda de Deus lutaria contra todo o mundo e
quando necessaacuterio lutaria contra o proacuteprio Deus Vejamos o texto original em alematildeo
ldquoEs ist ein groszligartiger and sicherlich uralter Gedanke Israels es sei im Stande nicht nur die
Welt mit Gottes Huumllfe sondern auch wo noumltig Gott selber zu bekaumlmpfen and zu
uumlberwindenrdquo201 Gunkel atualizou essa afirmaccedilatildeo na terceira e uacuteltima ediccedilatildeo de sua obra
Genesis em 1910 a qual serviu de base para a versatildeo inglesa atual Ali se lecirc ldquoIsrael
Antigo assim interpreta seu nome com orgulhosa arrogacircncia para significar lsquolutador
vitorioso contra Deus e as pessoasrsquo lsquoinvenciacutevelrsquo lsquovitoriosorsquo para quem a divindade
natildeo poderia compelir nenhum inimigo o controlariardquo (GUNKEL 1997 p 350)202
Portanto mais do que nos apegarmos agraves vaacuterias possibilidades etimoloacutegicas
propostas por saacutebios e especialistas ao longo dos uacuteltimos seacuteculos em uma perspectiva
literaacuteria eacute mais uacutetil e producente nos atermos ao texto e seu contexto Atualmente
costuma-se denominar a etimologia biacuteblica com os termos ldquoetimologia literaacuteriardquo uma
vez que a sua preocupaccedilatildeo natildeo eacute com o sentido cientiacutefico da palavra explicada mas
sua funccedilatildeo no contexto literaacuterio em que se encontra ou midrashei shemot (twmv yvrdm)
termo tomado de empreacutestimo da literatura dos Saacutebios judeus indicando
ldquointerpretaccedilotildees de natureza midraacuteshica (homileacutetica) aplicadas aos nomes de pessoas
ou de lugares com base na sonoridade ou potencial semacircnticordquo (GARSIEL 1991 p 19)
Em inglecircs esse tipo de interpretaccedilatildeo eacute denominada midrashic name derivation (MND)
201 Este texto foi extraiacutedo da primeira ediccedilatildeo da obra de Hermann Gunkel Genesis uumlbersetzt und erklaumlrt Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1901 p 328 Uma traduccedilatildeo mais livre poderia ser ldquoEacute uma grande e certamente antiga ideia de Israel que ele era capaz [no sentido de dar conta] natildeo soacute com todo o mundo com a ajuda de Deus mas tambeacutem se necessaacuterio de lutar contra o proacuteprio Deus e de superarrdquo 202 A parte final dessa traduccedilatildeo (ldquopara quem a divindaderdquo) encontra-se no original da seguinte forma ldquodenn wen selbst die Gottheit nicht bezwingen konnte den wird kein Feind bewaumlltigenrdquo (GUNKEL Hermann Genesis uumlbersetzt und erklaumlrt 3 Aufl Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1910)
165
A MND estaacute focada no passado onde vai buscar o sentido em eventos jaacute ocorridos
relacionados agravequela pessoa ou lugar ou no futuro sendo o nome algum tipo de
antecipaccedilatildeo de incidentes que ainda teratildeo lugar Para atingir tal escopo o autor lanccedila
matildeo de jogos de palavras trocadilhos assonacircncias uso de palavras cujas raiacutezes satildeo
semelhantes e assim por diante Tomemos um exemplo bem ilustrativo relacionado
ao nome de Jacoacute e Israel Neste exemplo um dos nomes Jacoacute natildeo eacute nem mesmo
mencionado mas o jogo eacute realizado com uma palavra que possui raiz e sonoridade
semelhante ao nome que se deseja referir Vejamos Amoacutes 412203
ה לכן ך כ ראל אעשה־ל ש י
אתi עקב אעשה־לך כי־ז
כון ראת־אלהיך ה ק ראל ל ש י
Portanto assim eu te farei oacute Israel
Porque (`qb) assim eu te farei
Prepara-te para encontrar com teu Deus oacute Israel (trad nossa)
Observa-se que o nome ldquoIsraelrdquo aparece aqui duas vezes enquanto ldquoJacoacuterdquo (y`qb
ndash bq[y) natildeo Mas eacute a Jacoacute que a derivaccedilatildeo midraacuteshica do nome se refere quando usa
`qb No texto essa palavra constitui uma variaccedilatildeo homileacutetica de y`qb que eacute tratado
como uma conjunccedilatildeo causativa (porque) A falta de clareza do fraseado em hebraico eacute
uma evidecircncia do desejo profeacutetico de incluir uma derivaccedilatildeo midraacuteshica do nome Natildeo
se teme em trazer alguma dificuldade agrave fluidez do texto tanto para se atingir um
objetivo Inclusive o duplo uso do verbo ldquofazerrdquo (`Sh - hf[) pode tambeacutem ser
intencional uma vez que na narrativa de Gecircnesis esse verbo fornece uma derivaccedilatildeo
midraacuteshica do nome do irmatildeo gecircmeo de Jacoacute Esauacute (`Sw - wf[) como exemplo cf Gn
27479141931 Dt 229 Ez 356
Retornemos agrave nossa periacutecope de Gn 3223-33 Na BH frequentemente quando
um nome eacute concedido a etimologia eacute explicada em verso Por isso natildeo nos surpreende
ler em Gn 3229b
Kicirc Saumlricirctauml `im acuteeacuteloumlhicircm
wuuml`im acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll
203 Este exemplo eacute tomado de GARSIEL 1991 p 133-134
166
Agrave primeira vista essas duas linhas parecem um pobre bicolon204 Como a
sintaxe agora estaacute a uacuteltima palavra eacute separada de todas as outras para isolar uma
sentenccedila longa combinada com uma palavra final No entanto eacute possiacutevel enxergar um
bicolon poeacutetico por detraacutes dessas linhas segundo COOTE (1972 p 137) De fato ele
observa que como as linhas se encontram atualmente a siacutelaba meacutetrica eacute 8 por 8 Mas
se fizermos uma substituiccedilatildeo por formas mais antigas e mudanccedilas apropriadas o
paralelismo continua
Kicirc Saumlricirctauml `im acuteeacuteloumlhicircm Kicirc Sricirct `m acutelhicircm205
`im acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll206 `m acutenšicircm waTucirckl
Existem pares em paralelo que revelam o sentido paralelo original presumiacutevel
de todo o bicolon Sry|yKl `m|`m e acutelhicircm|acutenšicircm Desconsiderando por um momento
o waw conversivo percebemos o paralelismo arcaico comum das formas qtl (perfeito)
e yqtol (imperfeito) SricircT |TucircKl A disposiccedilatildeo dos pares eacute quiaacutestica Proporcionando um
sentido para a raiz Sry que se encaixa na histoacuteria eacute paralela a ykl e desfruta do suporte
da tradiccedilatildeo Em base a isso COOTE (1972 p 137) propotildee ler a explicaccedilatildeo etimoloacutegica
hipoteticamente nos termos da evidecircncia poeacutetica
Porque tu lutaste com deuses
E com homens tu prevaleceste207
COOTE observa que ldquoo significado da raiz Sry em Gn 3229
naturalmente natildeo eacute necessariamente o mesmo que o significado original de Sricirc no
nome de Israelrdquo (1972 p 137) Deve-se notar que ykl (raiz de Tucirckaumll) pode ser paralela
ao sentido tradicional de Sry em Gecircnesis 32 Se na origem do nome Israel vermos uma
construccedilatildeo arcaica (cf nota de rodapeacute abaixo) em referecircncia a El antes e ademais de
204 Bicolon (plural bicolons) eacute um par de linhas adjacentes de poesia em que a segunda linha ecoa o significado da primeira 205 Para tornar mais claro o paralelismo nessa segunda coluna foram retiradas as vogais e preservadas somente as consoantes e matres lectionis 206 Nesta segunda linha segundo COOTE (1972 p 137 n 1) eacute melhor abandonar o primeiro waw antes que o segundo e o kicirc pode ser abandonado ou mantido Ele observa ainda que a sintaxe da segunda linha natildeo eacute estranha pois aparece ocasionalmente no ugariacutetico onde seguindo uma frase adverbial uma forma yqtl pode ser precedida por waw (cf GORDON 1998 sect 1334) 207 COOTE (1972 p 141) em base ao paralelismo de `m acutelhicircm e `m acutenšicircm sugere que a sentenccedila completa
da forma do nome ldquoIsraelrdquo fosse originalmente algo semelhante a yaSri-ilu-acuteiloumlhigravema-wa-acuteanašigravema ldquoEl
julga deuses e homensrdquo
167
seu uso referir-se a Jacoacute nessa histoacuteria entatildeo torna-se possiacutevel reconstruir o sentido
etimoloacutegico do nome em base ao contexto poeacutetico da explicaccedilatildeo
Neste ponto faz-se mister voltarmos nosso olhar para a figura de El
independentemente do judaiacutesmo El (heb acuteeumll) em ugariacutetico eacute acute il em acaacutedio ilu Era
uma apelaccedilatildeo comum para designar ldquodeusrdquo e tambeacutem um nome proacuteprio de uma
divindade encontrada na Mesopotacircmia desde o terceiro milecircnio AEC que
aparentemente pertencia ao panteatildeo semiacutetico Dentre as vaacuterias hipoacuteteses etimoloacutegicas
para esse nome merece atenccedilatildeo a derivaccedilatildeo da raiz acutewyl que significa ldquoestar agrave frente
o primeiro ser forterdquo (POPE 1955 p 16-17) Nos textos de Ugarit (segunda metade do
segundo milecircnio AEC) o perfil de El eacute melhor revelado Ele se encontrava em segundo
ou terceiro lugar nas listas de deuses e sacrifiacutecios apoacutes ilib e il cpn (dois aspectos de El
que haviam de se tornado independentes) mas em textos mitoloacutegicos ele ocupava o
topo do panteatildeo e presidia como o rei soberano Outro aspecto interessante ldquotodas as
divindades exceto Baal e sua irmatilde Anat eram considerados seus filhos e a lsquofamiacutelia de
Elrsquo (bn il dr il)rdquo (KOumlCKERT 2004 c 881) Eacute aceita por muitos estudiosos atualmente
uma triacuteplice possibilidade a) a religiatildeo dos proto-israelitas eacute geralmente interpretada
como uma religiatildeo de El b) ou como que considerando os deuses clacircnicos como
manifestaccedilotildees pessoais especiacuteficas de El c) ou assume-se ter havido uma fase de
transiccedilatildeo na qual os deuses clacircnicos foram identificados com El antes de todos se
fundirem em YHWH (cf KOumlCKERT 2004 c 882) Interessa-nos observar como vem
apresentado esse deus
Na Histoacuteria Feniacutecia escrita no VI seacuteculo AEC por Sanchuniathon (e que estaacute em parte preservada graccedilas a Filo de Biblos por sua vez citado por Euseacutebio em sua Praeparatio evangelica) El aparece nas vestes de um deus guerreiro feroz capaz de impor-se em modo absoluto sobre todas as outras divindades208 A narrativa de Sanchuniathon de fato eacute atenta em ilustrar o processo teogocircnico seu escopo eacute avaliar qual seja a origem das vaacuterias divindades e quais sejam as suas relaccedilotildees reciacuteprocas e por isso destaca o papel de liacuteder assumido por El (FULCO 2002 p 178)
208 Uma seleccedilatildeo dos textos de Histoacuteria Feniacutecia que narra a vida de El na obra ele eacute chamado de Kronos com todas as suas principais faccedilanhas estaacute disponiacutevel em BAUMGARTEN 1981 p 181-183
168
Esse aspecto guerreiro estaacute presente natildeo somente em El mas em outras
divindades semitas incluindo Baal Elohicircm YHWH209 O elemento ldquolutarrdquo
ldquocombaterrdquo ldquocontenderrdquo eacute tido pelo texto de Gn 3229 como integrante da etimologia
do nome ldquoIsraelrdquo Seria entatildeo mera casualidade que o nome tal como explicado no
texto da BH natildeo refletisse essa realidade210
Importante notar que a liacutengua hebraica opera a criaccedilatildeo de novas palavras a
partir da combinaccedilatildeo das trecircs consoantes que geralmente formam suas raiacutezes Essa
operaccedilatildeo pode se realizar de duas maneiras principais (CLARK 1999 p XV-XVI)
a) As raiacutezes cognatas geralmente compartilham consoantes que se originam em um oacutergatildeo vocal comum Cada uma das trecircs consoantes de um cognato deve ter seu ldquoparceirordquo nas outras raiacutezes para fazer parte de uma famiacutelia cognata As raiacutezes cognatas compartilham um sentido geral p ex hbc (inchar crescer) xpv (adicionar aumentar acrescentar) aps (alimentar abastecer nutrir) b) Raiacutezes variantes Estas geralmente derivam de raiacutezes com uma consoante duplicada Quando uma das consoantes duplicadas eacute substituiacuteda por outra letra uma raiz relacionada eacute criada Essas raiacutezes ldquonovasrdquo satildeo chamadas Variantes Gradativas porque seu significado se assemelha ao significado da raiz original mas geralmente significa uma mudanccedila de intensidade ou foco
Tomando este uacuteltimo caso (raiacutezes variantes) haacute quem associe as raiacutezes rrX
(governar caprichosamente) hrX (exercer poder) rwX (regular controlar) percebendo
nelas uma mudanccedila de intensidade ou foco (CLARK 1999 p XVI) Nesse sentido
vaacuterias palavras propostas como possiacuteveis etimologias para ldquoIsraelrdquo apresentam
variaccedilotildees gradativas rXy (endireitar pocircr em ordem) rrX (concentrar forccedila gt sentido
cognato rrX = governar) hrX (afrouxar soltar desprender gt sentido cognato hrX =
governar) rwX (ver) ryX (cantar alto bradar proclamar cantando) Certamente o autor
de nossa periacutecope (Gn 3223-33) especialmente no v 29 tinha consciecircncia de estar
lindando com raiacutezes cognatas e variantes Mesmo a uacuteltima palavra do v 29 (waTTucirckaumll)
raiz lky (prevalecer) apresenta uma interessante variaccedilatildeo cognata com a raiz hlk (lutar
209 Um amplo estudo sobre essa temaacutetica estaacute disponiacutevel em MILLER Jr 1973 210 Cf o item 1 deste quarto capiacutetulo
169
esforccedilar-se empenhar-se rivalizar-se) (cf CLARK 1999 p 104) Seraacute que natildeo poderiacuteamos
ver aqui um paralelismo algo bem tiacutepico da poesia hebraica biacuteblica
Segundo ALTER (cf 1997 p 658) esse paralelismo natildeo eacute a mera repeticcedilatildeo de
duas ou mais palavras com significados semelhantes portanto natildeo se trata de
sinoniacutemia Para ele os poetas melhor que ningueacutem perceberam haacute muito tempo que
ldquonatildeo existem sinocircnimos verdadeirosrdquo mas o que ocorre na poesia na literatura eacute a
produccedilatildeo contiacutenua de significados Assim ele constata na poesia hebraica antiga que
ldquoo padratildeo dominante eacute um foco intensificaccedilatildeo ou especificaccedilatildeo de ideias imagens
accedilotildees temas de um verseto para o seguinterdquo (ALTER 1997 p 658) Desse modo natildeo
haacute repeticcedilatildeo que natildeo traga algo novo
Natildeo soacute as palavras hebraicas satildeo criadas atraveacutes de pequenas alteraccedilotildees em suas
raiacutezes mas alguns casos de jogo de palavras ou trocadilhos que encontramos em vaacuterios
textos biacuteblicos tambeacutem fazem uso de pequenas diferenciaccedilotildees nas consoantes e ateacute
mesmo vogais a fim de manter uma similaridade distinta com o nome proacuteprio com o
qual estaacute ldquojogandordquo Esse eacute o caso de Jeshurun que em Dt 3215 forma uma rima
interna
מן ש רון וי ש עט י ב וי
E Jeshurun (yšrwn) engordou-se (w-yšmn) e deu coiceshellip
Como se observa o nome (Jeshurun) e o trocadilho (wayyišman) diferem em
uma soacute consoante e suas vogais
Ainda com o nome proacuteprio Jeshurun encontramos outro exemplo em Mq 39
Aqui a imagem da pessoa que anda retamente (ou em uma estrada reta) eacute uma
interpretaccedilatildeo de natureza midraacuteshica para esse outro nome portado por Jacoacute Jeshurun
(yšwrwn - wrwvy) eacute aparentemente uma forma poeacutetica de um desenvolvimento sobre a
base comum ldquoIsraelrdquo Neste texto Jeshurun natildeo eacute mencionado mas subentendido na
penuacuteltima palavra (hayuumlšaumlracirc)
עו־נא מ את ש ב בית ראשי ז יעק
יני צ ראל בית וק ש י
ים פט המתעב ש מ
את שרה ו עקשו כל־הי י
Ouvi isto vos peccedilo chefes de Jacoacute
170
e governantes da casa de Israel (ySracutel)
que abominais a justiccedila
e pervertem tudo o que eacute reto (h-yšrh)
Ainda um uacuteltimo exemplo novamente envolvendo Jeshurun nome aplicado a
Israel como Patriarca e neste caso como nome de todo um povo As derivaccedilotildees
midraacuteshicas fazem uso tambeacutem de nomes que soam iguais e ocorrem juntos na mesma
unidade literaacuteria Vejamos Dt 334-5 (cf GARSIEL 1991 p 177-178)
וה־לנו תורה שה צ מ
לת מורשה ה ב ק יעק
י ה רון וי יש מלך ב
אסף ת ה ם ראשי ב טי יחד ע ב ראל ש ש י
Uma instruccedilatildeo comandou-nos Moiseacutes (mšh)
uma heranccedila (mwršh) da congregaccedilatildeo de Jacoacute
E havia um rei em Jeshurun (b-yšwrwn)
quando os chefes do povo foram reunidos juntos
Percebe-se sem muito esforccedilo que a palavra mocircraumlšacirc (hvrwm) soa aqui como um
jogo de palavras em relaccedilatildeo a Moiseacutes (moumlšegrave - hvm) e a Jeshurun (yšwrwn - wrwvy)
Mesmo a frase ldquoos chefes do povordquo (raumlordm šecirc `aumlm - ~[ yvar) contribui para focar sobre e
recorrecircncia das consoantes m š r (r v m)
Retomemos as explicaccedilotildees rabiacutenicas para a mudanccedila do nome de Jacoacute
Haviacuteamos jaacute citado no item anterior Bereshit Rabbah 783 mas na parte final deste
nuacutemero ainda haacute um texto que nos interessa e que natildeo foi totalmente incluiacutedo na
menccedilatildeo anterior
PORQUE TU LUTASTE COM ELOHIM E COM HOMENS E PREVALECESTE (3229) tu lutaste com os seres celestiais e os conquistaste e com os mortais e os conquistaste Com seres celestiais alude ao anjo R Elama b Elanina disse Era o anjo guardiatildeo de Esauacute Isso foi o que Jacoacute quis dizer quando disse a ele Visto que eu vi o teu rosto como se vecirc o rosto de Elohim (Gn 3310) assim como a face de Deus denota juiacutezo assim o teu rosto denota julgamento assim como com respeito agrave face de Deus [estaacute escrito] e ningueacutem apareceraacute diante de Minha face de matildeos vazias (Ex 225) ningueacutem pode aparecer diante do tua face de matildeos vazias ldquoCom os mortais e os
171
conquistourdquo ndash por isto Esauacute e seus chefes satildeo representados Uma outra interpretaccedilatildeo de PORQUE LUTASTE (SARITHA) COM DEUS tu cujas caracteriacutesticas estatildeo gravadas em alto (MIDRASH RABBAH 1939)
Aqui o novo nome de Jacoacute eacute interpretado em duas vertentes A primeira
tomando o sentido do verbo (Saumlricirctauml) como lutar primeiramente com Deus e depois
com homens A recordaccedilatildeo das palavras de Jacoacute no encontro com seu irmatildeo (Gn 3310)
de que ele vira a face de Esauacute como se visse a face de Deus eacute trazida como um apoio
da identificaccedilatildeo Mas haacute alguns acreacutescimos agrave fala de Jacoacute A menccedilatildeo agrave ldquoface de Deusrdquo
leva Rabi Elama dizer que se refere ao julgamento isso porque o tiacutetulo divino acuteeacuteloumlhicircm
(Deus) eacute tradicionalmente compreendido como significando o atributo de justiccedila do
Todo Poderoso O encontro de Jacoacute com o anjo eacute primeiramente retratado como uma
espeacutecie de accedilatildeo judicial com Esauacute na qual Jacoacute foi julgado como sendo a parte vitoriosa
(cf HAYWARD 2005 p 267) Mas haacute aqui nessa expressatildeo ldquoface de Deusrdquo uma
referecircncia a um mandamento biacuteblico de comparecer trecircs vezes no ano com oferendas
apropriadas diante de Deus (Ex 2314-17)211 Do mesmo modo Jacoacute enviou oferendas
a Esauacute (Gn 3213-21) enquanto este avanccedilava com suas tropas para encontraacute-lo Jacoacute
prevaleceu tambeacutem naquela ocasiatildeo A partir dessas consideraccedilotildees o Saacutebio
compreendeu que Jacoacute tornou-se Israel porque ele persistiu (raiz hebraica hrf) ou foi
firme (raiz hebraica rrf) com Deus A segunda vertente interpretativa para o novo
nome de Jacoacute toma o verbo hebraico presente no nome ldquoIsraelrdquo como derivado da raiz
rrf ldquoser um priacutenciperdquo ldquogovernarrdquo Desta raiz vem o substantivo rf ldquoum priacutenciperdquo
palavra usada pela BH para descrever seres angelicais como em Dn 1021 121 onde o
chefe dos anjos Miguel eacute chamado de ldquopriacutenciperdquo Na medida em que sua proacutepria
imagem eacute uma realidade celeste gravada no Trono da Gloacuteria Essa mesma
interpretaccedilatildeo eacute dada pelo Targum Onkelos Gn 3229 ldquoTeu nome jaacute natildeo seraacute mais Jacoacute
mas Israel porque um priacutencipe eacutes tu diante do Senhor e com homens tu tens
prevalecidordquo (THE TARGUMS OF ONKELOS 1862) Portanto Jacoacute apresenta para
o Targum um status principesco angelical No entanto para Bereshit Rabbah Jacoacute eacute
211 Essas trecircs festividades satildeo 1ordf) Festa dos Aacutezimos ou Paacutescoa (heb Pesach) 2ordf) Festa da Colheita ou Semanas 50 dias apoacutes o Pesach ndash Pestecostes (heb Shavuot) 3ordf) Festa da Colheira no outono ou CabanasTabernaacuteculos (heb Sukkot)
172
superior aos anjos pois ele suplantou o anjo de Esauacute adquiriu um novo nome e sua
imagem estaacute gravada no Trono de Deus Eacute o que fica claro nessa passagem de Bereshit
Rabbah 822
R Isaac comeccedilou Um altar de terra me faraacutes em todo lugar onde eu fizer Meu nome ser mencionado virei a ti e te abenccediloarei (Ex 2024) Se eu abenccediloo aquele que constroacutei um altar em Meu nome quanto mais devo eu parecer a Jacoacute cujas feiccedilotildees estatildeo gravadas em Meu Trono e abenccediloaacute-lo Assim se diz E DEUS APARECEU A JACOacute E O ABENCcedilOOU R Levi comeccedilou E um boi e um carneiro para ofertas de paz porque hoje o Senhor vos aparece (Lv 94) Se eu apareccedilo a quem ofereceu um carneiro em Meu nome e o abenccediloo quanto mais eu aparecerei a Jacoacute cujas feiccedilotildees estatildeo gravados no Meu trono e abenccediloaacute-lo (MIDRASH RABBAH 1939)
Desse modo ldquoa permanecircncia dessa semelhanccedila garantiria a contiacutenua presenccedila
de Deus e a becircnccedilatildeo para Israelrdquo (HAYWARD 2005 p 269) No Talmude no tratado
ullin 92a lemos
Sim ele lutou com um anjo e prevaleceu ele chorou e lhe fez suacuteplicas [Os 125] Natildeo sei quem prevaleceu sobre quem Mas quando ele diz Pois tu lutaste com Deus e com os homens e prevaleceu [Gn 3229] eu sei que Jacoacute se tornou mestre sobre o anjo Ele chorou e suplicou-lhe [Os 125] Natildeo sei quem chorou a quem Mas quando diz E ele disse Deixa-me ir [Gn 3227] eu sei que o anjo chorou a Jacoacute ldquoPois tu lutaste com Deus e com os homensrdquo Disse Rabbah Ele lhe deu a entender que dois priacutencipes estavam destinados a vir dele o Chefe da Diaacutespora na Babilocircnia e o Priacutencipe na Terra de Israel esta foi tambeacutem uma
indicaccedilatildeo para ele do exiacutelio (EPISTEIN 2009)
Esse tratado dedica-se mais a discutir sobre o sentido (cf ullin 91a-92a) da
lesatildeo sofrida por Jacoacute no tendatildeo de sua coxa e a dieta alimentar dela decorrente Poreacutem
nessa citaccedilatildeo acima pode-se perceber que o sentido do nome Israel eacute interpretado
ldquocomo indicando a superioridade judaica em relaccedilatildeo ao serviccedilo angelical de Deus e
como fundamentando na autoridade das Escrituras a posiccedilatildeo do Chefe da Diaacutespora e
do Priacutencipe da Terra de Israelrdquo (HAYWARD 2005 p 308) Pois nesses dois grandes
ofiacutecios institucionais o Talmude percebeu o verdadeiro significado de Israel como
173
aquele que alcanccedilou a superioridade ldquocom os homensrdquo Portanto o nome jaacute inclui uma
interpretaccedilatildeo daquilo que viraacute no periacuteodo do exiacutelio babilocircnico
Agora reunindo os elementos que viemos refletindo neste quarto item do
capiacutetulo no qual estamos podemos tentar reestruturar Gn 3223-33 ressaltando os
elementos que mais nos interessam A partir daiacute poderaacute ficar mais claro natildeo somente
o sentido do nome Israel como tambeacutem o sentido e escopo de toda a periacutecope
A fim de favorecer uma visatildeo de conjunto todo o esquema estaacute na paacutegina
seguinte212 Abaixo se encontram algumas observaccedilotildees sobre o mesmo
O esquema destaca a estrutura concecircntrica da periacutecope como jaacute analisamos no
capiacutetulo anterior deste estudo O centro portanto eacute formado pelo diaacutelogo o qual
sempre merece destaque no caso de textos narrativos No diaacutelogo distinguimos os
falantes do modo como satildeo identificados pelo proacuteprio texto hebraico ldquoHrdquo que
significa ldquoHomemrdquo (v 25b) ldquoJrdquo que significa Jacoacute o Patriarca No proacuteprio diaacutelogo haacute
uma estrutura quiaacutestica tambeacutem como se pode observar no esquema
O v 33 foi deixado de fora pois reconhecidamente eacute uma adiccedilatildeo posterior mais
tardia agrave periacutecope em questatildeo Mas mesmo assim ele integra-se ao conjunto como jaacute
foi demonstrado no capiacutetulo anterior
Interessante que a combinaccedilatildeo das unidades A (vv 23a-25a) e Arsquo (v 32) servem
para separar Jacoacute de sua famiacutelia e deixaacute-lo sozinho diante do ser que o confronta mas
o une agrave famiacutelia novamente ao final Esses dois blocos satildeo marcados pelo verbo
ldquoatravessarrdquo (rb[) Esse verbo ressalta os cuidados e a tensatildeo de Jacoacute na etapa preacutevia
ao encontro com seu irmatildeo Esauacute Em Gn 321721a o que ldquoatravessardquo o que ldquopassardquo eacute
apenas seus pertences e servos Jacoacute parece esconder-se vir atraacutes A sua proacutepria
passagem somente se completa apoacutes Gn 3232 e mais especificamente em Gn 333
quando Jacoacute finalmente ousa aparecer ao seu irmatildeo
212 Servi-me da estrutura concebida por FOKKELMAN 1997 p 66 mas com adaptaccedilotildees proacuteprias A traduccedilatildeo do texto da BH tambeacutem eacute nossa
174
Unidade Texto Versiacuteculo
A Ele levantou-se naquela noite wayyaumlordmqom Ballaordmylacirc hucircacute 23a
tomou suas duas mulheres wayyiqqaH acuteet-šTecirc naumlšaumlyw
suas duas servas wuumlacuteet-šTecirc šipHoumltaumlyw
e seus onze filhos wuumlacuteet-acuteaHad `aumlSaumlr yuumllaumldaumlyw
23b
e atravessou o vau do Jaboc wa|yya`aacuteboumlr acuteeumlt ma`aacutebar yaBBoumlq 23c
Ele tomou-os e os fez atravessar a torrente wayyiqqaumlHeumlm wayya| aacutebigravereumlm acuteet-hannaumlordmHal
24a
e fez atravessar o que era dele wa|yya`aacutebeumlr acuteet-acuteaacutešer-locirc 24b
Entatildeo ele ficou soacute wayyiwwaumlteumlr ya`aacuteqoumlb luumlbaDDocirc 25a
B E um homem lutava com ele ateacute elevar-se a aurora wayyeumlacuteaumlbeumlq acuteicircš `immocirc `ad `aacutelocirct haššaumlordmHar
25b
Vendo que natildeo podia contra ele wayyaordmracute Kicirc loumlacute yaumlkoumll locirc 26a
tocou na cavidade de sua coxa wayyiGGa` Buumlkap-yuumlreumlkocirc 26b
e a cavidade da coxa de Jacoacute deslocou-se em sua luta com ele waTTeumlordmqa` Kap-yeordmrek ya`aacuteqoumlb Buumlheuml|acuteaumlbqocirc `immocirc
26c
X a H Ele disse ldquoDeixa-me ir porque elevou-se a aurorardquo wayyoumlordm mer šalluumlHeumlordmnicirc Kicirc `aumllacirc haššaumlordmHar
27a
J Ele disse ldquoNatildeo te deixarei ir a menos que tu me abenccediloesrdquo wayyoumlordm mer loumlacute acuteaacuteša|lleumlHaacutekauml Kicirc acuteim-BeumlrakTaumlordmnicirc
27b
x H Ele disse-lhe ldquoQual eacute o teu nomerdquo wayyoumlordm mer acuteeumllaumlyw magrave-ššuumlmeordmkauml
28a
J Ele disse ldquoJacoacuterdquo wayyoumlordm mer ya`aacuteqoumlb 28b
H Ele disse ldquoTeu nome natildeo seraacute mais chamado Jacoacute mas Israel porque tu lutastecontendeste com DEUS e com HOMENS tu prevaleceste wayyoumlordm mer loumlacute ya`aacuteqoumlb yeumlacuteaumlmeumlr `ocircd šimkauml Kicirc acuteim-yiSraumlacuteeumll
Kicirc|-Saumlricircordmtauml `im-acuteeacuteloumlhicircm
wuuml`im-acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll
29a
29b 29c
arsquo J Entatildeo Jacoacute interrogou dizendo ldquoDiga-me por favor o teu nomerdquo
wayyišacuteal ya`aacuteqoumlb wayyoumlordm mer haGGicirc|dacirc-nnaumlacute šuumlmeordmkauml
30a
H Ele respondeu ldquoPor que isso Tu perguntas pelo meu nome laumlordmmmacirc zzegrave Tišacuteal lišmicirc
30b
E ele o abenccediloou ali wayuumlbaumlordmrek acuteoumltocirc šaumlm 30c
Brsquo Jacoacute chamou o nome do lugar Fanuel wayyiqraumlacute ya`aacuteqoumlb šeumlm hammaumlqocircm Puumlnicircacuteeumll
31a
porque eu vi a Deus face a face Kicirc|-raumlacuteicircordmticirc acuteeacuteloumlhicircm Paumlnicircm acuteel-Paumlnicircm
31b
e minha vida foi salva waTTinnaumlceumll napšicirc 31c
Arsquo O sol brilhava para ele quando atravessou Fanuel wayyi|zra|H-locirc haššeordmmeš Kaacuteaacutešer `aumlbar acuteet-Puumlnucircacuteeumll
32a
e ele coxeava de uma coxa wuumlhucircacute coumlleumlordf` `al-yuumlreumlkocirc 32b
175
Agrave dupla travessia mostrada no iniacutecio (Gn 322324) que natildeo deixa de ser o
uacuteltimo estratagema de Jacoacute para fugir da ira de seu irmatildeo e uma demonstraccedilatildeo de
inseguranccedila se contrapotildee uma dupla soluccedilatildeo ou passagem em Gn 3232 ao
amanhecer e uma travessa complementar em Gn 333 a fim de saudar seu irmatildeo mas
agora Jacoacute se coloca agrave frente de todos ao contraacuterio da sua atitude anterior ao encontro
como mencionamos acima
Jaacute destacamos anteriormente a assonacircncia formada no iniacutecio desta periacutecope
colocando o rio (Jaboc) e a personagem (Jacoacute) como pertencentes um ao outro Assim
como o riacho eacute para ser ldquoatravessadordquo Jacoacute eacute algueacutem em vias de fazer a maior
travessia de sua vida deixando para traacutes seu obscuro passado e abraccedilando seu irmatildeo
e sua nova missatildeo Na travessia do Jaboc se daraacute a travessiatransformaccedilatildeo de Jacoacute
Naquela noite ele muda adquiri um novo nome (Israel) e um novo aspecto a
claudicacircncia devido o embate com ldquoum homemrdquo
Antes de atravessar Jacoacute ainda se depara com sua antiga ldquofacerdquo seu antigo
ldquoserrdquo Natildeo por acaso a palavra Paumlnicircm significa face mas tambeacutem o interior da pessoa
ou a proacutepria pessoa Isso porque ldquodado que o ser de uma pessoa se expressa em seu
rosto e este a caracteriza em sentido amplo pode designar tambeacutem a toda a pessoardquo
(VAN DER WOUDE 1985b c 557) Em 2Sm 1711 encontramos um exemplo desse
sentido ldquoEu portanto aconselho que todo o Israel de Datilde a Bersabeia se reuacutena em
torno de ti tatildeo numeroso como os gratildeos de areia na praia do mar e tu marcharaacutes
pessoalmente (paumlnEcircordmkauml) ao combaterdquo (trad BJ) Portanto o ldquoface a facerdquo de Jacoacute agraves
margens do Jaboc natildeo foi somente com Deus conforme ele mesmo constata em Gn
3231b mas com toda a sua experiecircncia histoacuterica
Toda a accedilatildeo descrita pela nossa periacutecope eacute bem enquadrada temporalmente
como sendo uma uacutenica noite A oposiccedilatildeo noite (Ballaordmylacirc hucircacute - v 23a) e nascer do sol
(wayyi|zra|H-locirc haššeordmmeš - v 32a) delimita tudo a uma uacutenica noite Essa noite serve como
uma cobertura e ocultaccedilatildeo do oponente de Jacoacute como tambeacutem simboliza o lado
obscuro e pouco correto desse Patriarca
Neste tempo de uma uacutenica noite Jacoacute resta ldquosozinhordquo ldquoagrave parterdquo (luumlbaDDocirc v
25a) Interessante observar que essa expressatildeo ocorre poucas vezes no primeiro livro
da Toraacute Adatildeo encontra-se solitaacuterio por isso Deus lhe forja uma companheira (Gn
176
218) Contudo ldquoem sua solidatildeo titacircnica os patriarcas natildeo satildeo jamais ditos lsquosozinhosrsquordquo
(LOEWENTHAL 2003 p 27) Diferentemente a solidatildeo faz parte da vida de Jacoacute
Gn 3040 nos mostra ele soacute quando decide separar o proacuteprio rebanho
daquele de seu sogro e patratildeo que o enganou A solidatildeo faz parte dos
preparativos de sua partida sua autonomia
Gn 3217 mostra Jacoacute colocando ldquoagrave parterdquo os rebanhos que pretende
presentear a seu irmatildeo para natildeo tecirc-lo mais como inimigo
Gn 3225 nos mostra Jacoacute apoacutes fazer atravessar seus pertences e toda a sua
famiacutelia permanecendo soacute para a sua misteriosa batalha junto ao vau do
Jaboc
Gn 4238 mostra o medo de Jacoacute que seu filho Benjamim acompanhe seus
irmatildeos na viagem ao Egito uma vez que dos dois filhos de Raquel ele ficou
soacute sendo o uacutenico sobrevivente Jacoacute pensa que Joseacute o irmatildeo materno de
Benjamim tenha morrido
Gn 4332 fica agrave parte solitaacuterio agrave mesa ldquoporque os egiacutepcios natildeo podem tomar
suas refeiccedilotildees com os hebreus tecircm horror dissordquo
Gn 4420 destaca que Benjamim ficou soacute apoacutes a pressuposta morte de seu
irmatildeo materno Benjamim
Portanto a solidatildeo eacute uma das condiccedilotildees de vida desse Patriarca E no momento
mais crucial de sua existecircncia ele estaraacute novamente solitaacuterio A solidatildeo parece ser
parte integrante da paciente espera que marca a vida de Jacoacute Por quatorze anos ele
soube esperar pela mulher que amava e que estava diante de seus olhos todos os dias
E ainda eacute capaz de dizer ldquoJacoacute serviu entatildeo por Raquel durante sete anos que lhe
pareceram alguns dias de tal modo ele a amavardquo (Gn 2920) Como bem observa
LOEWENTHAL (2003 p 33) ldquoAbraatildeo parte Isaac obedece Jacoacute esperardquo
O v 25a irrompe de modo abrupto sem preacute-aviso A luta literalmente o ldquorolar
pelo poacute pela terrardquo (yeumlacuteaumlbeumlq) natildeo era o encontro esperado e preparado por Jacoacute Este
estava se aprontando para o encontro com seu irmatildeo Esauacute No entanto aquilo que
sucede ao Patriarca eacute a consequecircncia de suas accedilotildees e deve finalmente ser suportado
por ele sozinho Tais consequecircncias natildeo podem ser desviadas total ou parcialmente
para os pastores (que vatildeo entregar um presente a Esauacute ndash Gn 3214b-21) ou para as
177
esposas cujas vidas satildeo decisivamente influenciadas pelo ldquofator Jacoacuterdquo (pelo qual Lia eacute
ldquoodiadardquo e negligenciada por Jacoacute que prefere Raquel a qual por sua vez apresenta
dificuldades para dar filhos a seu marido e sente-se inferior e tem inveja da irmatilde ndash Gn
2931ndash3024) O v 25a descreve uma condiccedilatildeo indispensaacutevel para o confronto posterior
ou seja o fato de Jacoacute ter ficado sozinho mesmo que talvez natildeo seja uma opccedilatildeo dele
o que eliminaria o elemento surpresa que integra muitas narrativas biacuteblicas (cf
FOKKELMAN 2004 p 212) Isso natildeo significa que o seu adversaacuterio ldquoum homemrdquo
natildeo pudesse saber disso previamente
Entatildeo qual seria o motivo dos preparativos dos vv 23-24 Se Jacoacute natildeo tinha a
deliberada intenccedilatildeo de ficar sozinho por que entatildeo realiza as accedilotildees descritas nesses
versiacuteculos mencionados No entanto eacute bom ter presente que essa era a intenccedilatildeo do
narrador ou seja conduzir Jacoacute a ldquoficar soacuterdquo (wayyiwwaumlteumlr ya`aacuteqoumlb luumlbaDDocirc v 25a) Tal
intenccedilatildeo natildeo eacute incompatiacutevel com a intenccedilatildeo da personagem Jacoacute Em Gn 3223-24 Jacoacute
faz com que os membros reais de sua famiacutelia atravessem o Jaboc Mas no texto
imediatamente anterior satildeo os seus servos que devem atravessar a fim de que Jacoacute e
sua gente pudessem ficar a salvos (cf Gn 3214-22) Entatildeo por que a mudanccedila de
planos durante a noite Temos uma tentativa de resposta
Isso soacute pode significar que na inquietaccedilatildeo de sua mais longa noite Jacoacute acordou para o fato de que pendurar-se atraacutes significa esconder-se esquivando-se da responsabilidade Embora estejamos aleacutem dos limites da verificaccedilatildeo Eu prefiro a interpretaccedilatildeo de que ao atravessar Jacoacute quer fazer uma reparaccedilatildeo ele quer liderar o caminho e quer ir ao encontro do proacuteprio Esauacute Se ele se tornou consciente da extensatildeo de sua culpa jaacute natildeo pode ser discernido no texto mas isso parece improvaacutevel para mim pois nos vv 14-22 ele ainda natildeo tinha reconhecido a dupla face da minHacirc-reconciliaccedilatildeo Ao enviar seu
povo ele tambeacutem desiste de uma linha de defesa de modo que outros planos de combate se tornaram inuacuteteis (maHaacutenegrave-soluccedilatildeo) E ele faz do
Jaboc um seacuterio obstaacuteculo natildeo para Esauacute mas para si mesmo ele quer fugir A repeticcedilatildeo de `Br indica que eacute uma operaccedilatildeo pesada para Jacoacute
(FOKKELMAN 2004 p 212-213)
A cena da luta eacute bem definida e enquadrada por expressotildees semelhantes
wayyeumlacuteaumlbeumlq acuteicircš `immocirc (v 25b) e Buumlheumlacuteaumlbqocirc `immocirc (v 26c) Percebe-se como acontece
desde o iniacutecio de nossa periacutecope uma preocupaccedilatildeo com a assonacircncia paronomaacutesia e
178
combinaccedilatildeo de sons e sentidos das palavras empregadas fruto de uma acurada e
atenta composiccedilatildeo O verbo escolhido para expressar a luta (wayyeumlacuteaumlbeumlq - raiz qba)
que natildeo ocorre em nenhum outro lugar da Biacuteblia natildeo soacute continua a geminaccedilatildeo foneacutetica
com ya`aacuteboumlr (atravessou) e yaBBoumlq (Jaboc v 23) mas - permitindo a confluecircncia das duas
gutturais (aleph e ayin) - absorve os elementos do proacuteprio nome de Jacoacute A proposital
incoacutegnita sobre a identidade da personagem que luta com Jacoacute combina com as
intenccedilotildees do mesmo as quais se escondem em sua recusa de revelar seu nome
portanto de autorrevelar-se Com isso ele provoca Jacoacute a pensar e avaliar-se a si
mesmo O contexto onde tudo se desenrola eacute a escuridatildeo eacute a noite assim como foi em
sua visatildeo de Betel (Gn 2810-22 observe-se o iniacutecio da cena wayyaumlordmlen šaumlm Kicirc-baumlacute
haššeordmmeš ndash ali passou a noite pois o sol havia-se posto) Eacute sempre o medo a incerteza que
agarram Jacoacute Como observa FOKKELMAN (2004 p 213) nessa circunstacircncia externa
e interna Jacoacute ldquonatildeo enxerga a si mesmo ainda natildeo reconhece a sua nova identidade
que pode salvaacute-lo a renovada integridade que nasce no reconhecimento e confissatildeo
da proacutepria culpardquo
Na luta com o seu contendente Jacoacute eacute levado a perceber que tem uma forccedila que
vai muito aleacutem da compreensatildeo e resistecircncia humanas Os pronomes hebraicos no
versiacuteculo 26 satildeo menos especiacuteficos em sua referecircncia de modo que podemos nos
perguntar se o astuto Jacoacute natildeo eacute antes o agressor Algo bem plausiacutevel devido o grito
que seu oponente emite no versiacuteculo seguinte šalluumlHeumlordmnicirc (v 27 deixa-me ir solta-me
liberta-me) Inclusive o seu oponente apesar de ser divino natildeo o espanca mas apenas
ldquotoca na cavidade de sua coxardquo (yiGGa` Buumlkap-yuumlreumlkocirc v 26c) Tocar a coxa eacute ameaccedilar a
potecircncia do oponente alcanccedilar a fonte geradora de poder e o nome de Jacoacute natildeo
podemos nos esquecer significa ldquosuplantadorrdquo Na cena do encontro de Jacoacute com as
filhas de Labatildeo a forccedila sobre-humana dele jaacute se faz observar (cf Gn 291-14) Mesmo
estando coxo abaixo da cintura ele manteacutem preso o oponente em seus braccedilos Jacoacute natildeo
o deixa enquanto ele natildeo o abenccediloar Sim Isso revela bem quem eacute Jacoacute ele quer a
becircnccedilatildeo ldquoda mais miseraacutevel situaccedilatildeo ele quer emergir como um homem enriquecidordquo
(FOKKELMAN 2004 p 215) Foi assim quando foi explorado e enganado pelo seu
sogro Labatildeo eacute assim aqui em seu embate com a divindade Assim a becircnccedilatildeo que foi a
palavra-chave da primeira fase de seu ciclo quando usurpa o direito de primogenitura
179
e becircnccedilatildeo de seu irmatildeo (cf Gn 271-45) volta a ser fundamental nessa terceira fase de
sua vida Se quando teve de fugir do oacutedio de Esauacute ele recebeu a becircnccedilatildeo concedida a
Abraatildeo no pernoite em Betel (cf Gn 2812-15) agora em seu retorno ele deseja receber
a becircnccedilatildeo de seu oponente para poder enfrentar o momento mais tenso e crucial de sua
vida Se a personagem Jacoacute estava ou natildeo jaacute consciente em Gn 3227b quando solicita
a becircnccedilatildeo das enormes implicaccedilotildees futuras que esse gesto teria natildeo nos conveacutem
especular aqui basta saber que o narrador certamente o estaacute
Apoacutes reivindicar a becircnccedilatildeo Jacoacute recebe uma pergunta direta do oponente eumllaumlyw
magrave-ššuumlmeordmkauml (Qual eacute o teu nome ndash v 28a) Essa pergunta certamente faz Jacoacute recordar-
se do momento em que se apresentou diante de Isaac seu pai fazendo-se passar pelo
seu irmatildeo Esauacute Naquela ocasiatildeo Isaac lhe perguntou micirc acuteaTTacirc Buumlnicirc (Gn 2718b Quem
eacutes tu meu filho) E a resposta de Jacoacute foi acuteaumlnoumlkicirc `eumlSaumlw Buumlkoumlrekauml (Gn 2719a Sou Esauacute
teu primogecircnito) Agora diante de seu contendor ele se redime e admite quem ele
realmente eacute Quando Jacoacute diz o seu proacuteprio nome ele ldquose entregardquo nas matildeos de quem
lhe interroga eacute a sua ldquoconfissatildeordquo como mencionamos acima Como vimos no capiacutetulo
segundo deste nosso estudo o nome para os semitas natildeo eacute um acidente algo casual
mas o vetor do misteacuterio da pessoa eacute a sua verdade mais iacutentima aquilo que a pessoa eacute
Assim sendo ldquoo Jacoacute que diz o seu nome eacute um rendido estou em tua posse porque Tu
sabes de mim a coisa mais importante o meu segredo te pertencerdquo (MORFINO 2003
p 42) Entatildeo a suposta ldquovitoacuteriardquo de Jacoacute sobre o ser com o qual combate mistura-se a
uma espeacutecie de ldquoderrotardquo uma vez que seu adversaacuterio possui uma informaccedilatildeo que ele
natildeo obteve quando lhe potildee uma pergunta semelhante haGGicircdacirc-nnaumlacute šuumlmeordmkauml ndash ldquoDiga-
me por favor o teu nomerdquo v 30a) Ao reconhecer chamar-se Jacoacute implicitamente estaacute o
significado do nome conferido ao longo da primeira fase do ciclo dessa personagem
especialmente em Gn 2736ab wayyoumlacutemer haacutekicirc qaumlraumlacute šuumlmocirc ya`aacuteqoumlb wayya`quumlbeumlnicirc zegrave
pa`aacutemayim acuteet-Buumlkoumlraumlticirc laumlqaumlH wuumlhinnEuml `aTTacirc laumlqaH Birkaumlticirc213 (Ele [Esauacute] disse Natildeo eacute que214
seu nome seja Jacoacute Pois enganou-me215 duas vezes Ele tomou minha primogenitura e eis que
213 Este texto eacute todo composto agrave base de paronomaacutesia Recurso empregado como jaacute visto tambeacutem em Gn 3223-33 214 Esta minha traduccedilatildeo apoia-se em quanto eacute dito em JOUumlON MURAOKA 2006 sect 161j 215 Haacute um jogo de palavras com bqe[ (calcanhar) e o verbo bq[ (enganar suplantar trapacear) ambas
possuem raiacutezes idecircnticas Sem duacutevida ldquoessa ligaccedilatildeo com o calcanhar o salto eacute bem compreensiacutevel agrave luz
180
agora toma minha becircnccedilatildeo) Esta eacute a razatildeo quando se daacute a luta no vau do Jaboc e lhe vem
solicitado o nome de Jacoacute dizer finalmente a sua verdade ele eacute verdadeiramente
Ya`aacuteqoumlb aquele que desde o princiacutepio jogou em base ao engano agrave trapaccedila Revelando
seu nome Jacoacute entrega a sua proacutepria histoacuteria de fraude e carreirismo de suplantador
e enganador Somente a tiacutetulo informativo o sentido etimoloacutegico do nome Jacoacute eacute
identificado em dupla possibilidade A primeira que ganhou mais adeptos e foi mais
consagrada identifica a base do nome na raiz bq[ ldquovigiar protegerrdquo ldquopresente no sul-
araacutebico e tambeacutem em etioacutepico e traduz o nome Jacoacute com lsquoDeus protegeursquo ou lsquoque Deus
protejarsquordquo (ZOBEL 2003 c 882) Esta explicaccedilatildeo foi contestada e em seu lugar surgiu
outra que toma a mesma raiz bq[ mas com o significado de ldquoestar imediatamente
atraacutes estar proacuteximordquo em base a textos ugariacuteticos palavra estaacute presente tambeacutem em
amorreu e feniacutecio Assim sendo o nome Jacoacute deveria ser traduzido por ldquoele (= El) estaacute
proacuteximordquo (ZOBEL 2003 c 882)
Apoacutes ldquoentregarrdquo seu nomeidentidade sua histoacuteria seu passado Jacoacute recebe
um novo nomeidentidade wayyoumlordm mer loumlacute ya`aacuteqoumlb yeumlacuteaumlmeumlr `ocircd šimkauml Kicirc acuteim-yiSraumlacuteeumll Kicirc|-
Saumlricircordmtauml im-acuteeacuteloumlhicircm wuuml`im-acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll (v 29) Estruturalmente a concessatildeo do novo
nome Israel repara a simetria que tinha sido perturbada desde os episoacutedios de abertura
do ciclo de Jacoacute Lembremos que o irmatildeo mais velho jaacute tinha dois nomes cada um com
sua etiologia (Gn 2525 Esauacute 2530 Edom) Aliaacutes a aposiccedilatildeo redundante de Seir e Edom
em Gn 324 serve para recordar esse fato Enquanto Jacoacute apesar do detalhe da luta
intrauterina recebera apenas um nome Como jaacute abordamos acima haacute neste verso um
claro paralelismo algo normal na poesia hebraica De propoacutesito o autor joga tambeacutem
com a ambiguidade do verbo que emprega para justificar o novo nome concedido a
Jacoacute YiSraumlacuteeumll O verbo Saumlricirctauml pode apoiar-se em diversas raiacutezes possiacuteveis como jaacute vimos
antecipadamente Constatamos que nenhuma das sugestotildees propostas para explicar o
elemento verbal presente no novo nome logrou alcanccedilar aceitaccedilatildeo unacircnime entre os
estudiosos ou produziu uma completa satisfaccedilatildeo na maioria deles No entanto em se
tratando de literatura hebraica e com base em vaacuterios exemplos presentes na BH alguns
daquela luta que desde o iniacutecio marcou as relaccedilotildees entre os dois gecircmeos Desde o ventre materno os dois estavam em antagonismo Esauacute eacute o primeiro que olha para a vida mas haacute imediatamente Jacoacute que agarra seu irmatildeo pelo calcanhar para puxaacute-lo para traacutes e suplantaacute-lordquo (MORFINO 2003 p 43-44)
181
dos quais foram aqui mencionados em que a escolha de palavras expressotildees e nomes
estaacute vinculada ao contexto e ao objetivo do autor o estabelecimento do sentido do
nome YiSraumlacuteeumll e o motivo de sua escolha natildeo satildeo impossiacuteveis de se atingir
Primeiramente cabe constatar que em toda a periacutecope (Gn 3223-33) o
som das palavras joga um papel determinante como jaacute foi demonstrado
anteriormente A escolha de palavras inclusive algumas muito raras estava a serviccedilo
da produccedilatildeo de paronomaacutesias e assonacircncias Fato este que chamou a atenccedilatildeo de
MARKS (1995 p 39) ldquoO que eacute impressionante em tudo isso eacute a forma como os nomes
parecem reproduzir atraveacutes das mudanccedilas delicadamente animadas da linguagem os
mecanismos de projeccedilatildeo e autorreflexatildeo que observamos na narrativa da luta como se
o problema da geminaccedilatildeo [duplicaccedilatildeo e duplicidade de sentidos] tivesse estendido seu
domiacutenio agrave relaccedilatildeo de palavra e atordquo
Em segundo lugar eacute comum agrave liacutengua hebraica como vimos criar-se
palavras a partir de radicais semelhantes acentuando ou intensificando o sentido de
um determinado radical a partir de novos vocaacutebulos que dele surgem O elemento
verbal do nome YiSraumlacuteeumll pode propositalmente lidar com uma rica polissemia
Importante ressaltar que ldquoeste ato de lsquojogarrsquo com uma multiplicidade de derivaccedilotildees
natildeo eacute um erro do escritor nem uma incapacidade de decifrar do leitor eacute uma desejada
indicada superposiccedilatildeo de sentidos que enriquece incrivelmente o significadordquo
(MORFINO 2003 p 44)
Em terceiro e uacuteltimo lugar eacute importante sempre considerar que o contexto eacute
imprescindiacutevel para determinar o sentido dos textos e das palavras na BH Por isso
vale a pena destacar os quatro elementos que formam o contexto no qual estaacute situada
a cena em que Jacoacute recebe o seu novo nome fornecem a direccedilatildeo da interpretaccedilatildeo (cf
ROSS 1985 p 341)
1ordm) o cenaacuterio geograacutefico a luta ocorreu no limiar da terra da promessa Jacoacute estava
fora dessa terra desde a sua fuga de Esauacute do qual ele tomou a becircnccedilatildeo Portanto a
nossa cena eacute posicionada de modo intencional como um ldquorito de passagemrdquo que
conduziraacute agrave reconciliaccedilatildeo entre os dois irmatildeos gecircmeos
182
2ordm) O elemento unificador da histoacuteria eacute a nomeaccedilatildeo isto eacute a transformaccedilatildeo de
Jacoacute em Israel O novo nome natildeo eacute apenas adicionado a uma narrativa antiga ele eacute
explicado por ela
3ordm) Nomes de lugares no retorno de Jacoacute para a terra de seus pais as narrativas
estatildeo sempre relacionadas a determinados lugares Maanaim (Gn 321-2) Fanuel (Gn
3230) e Sucot (Gn 3317) cujos nomes vecircm explicados por Jacoacute
4ordm) A histoacuteria estaacute ligada a uma restriccedilatildeo dieteacutetica para os filhos de Israel Este
tabu foi um costume que cresceu com base em um evento mas natildeo fazia parte da Lei
O evento na tradiccedilatildeo criou-o e explicou-o
A nossa periacutecope natildeo deixa de ser uma resposta agrave suacuteplica constante em Gn
3210-13 mesmo que este texto seja mais tardio afinal Jacoacute implora a Deus que salve-
o da ira de seu irmatildeo haccicircleumlnicirc naumlacute miyyad acuteaumlHicirc miyyad `eumlSaumlw (Gn 3212a Livra-me da
matildeo de meu irmatildeo da matildeo de Esauacute) Segundo JACOB (cf 2007 p 223) a luta daraacute a
resposta que Jacoacute tanto busca
Natildeo podemos deixar de perceber nesta interpretaccedilatildeo final de nossa periacutecope a
interconexatildeo existente entre a nossa cena e as cenas anterior e posterior Isso ocorre
com o uso da palavra ldquofacerdquo (Paumlnicircm)
a) Gn 3221 acuteaacutekaPPuumlracirc paumlnaumlyw BamminHacirc hahoumlleket luumlpaumlnaumly wuumlacuteaHaacuterecirc-keumln acuteeracuteegrave
paumlnaumlyw acuteucirclay yiSSaumlacute paumlnaumly Eu aplacarei suas faces216 com a oferenda que segue
adiante de mim Depois verei suas faces e talvez ele erga minhas faces217
Aqui ainda se revela a ldquovelhardquo face de Jacoacute o esperto o astuto Ele crecirc poder
controlar suplantar seu irmatildeo com presentes oferendas Pensa evitar o face
a face o olho no olho com o irmatildeo
b) Gn 3231 wayyiqraumlacute ya`aacuteqoumlb šeumlm hammaumlqocircm Puumlnicircacuteeumll Kicirc|-raumlacuteicircticirc eacuteloumlhicircm Paumlnicircm el-
Paumlnicircm waTTinnaumlceumll napšicirc Jacoacute chamou o nome do lugar Fanuel [Face de El] porque
eu vi a Deus face a face e minha vida foi salva
A ldquonovardquo face de Jacoacute agora com o novo nome Israel se revela A sua ldquovida
foi salvardquo natildeo apenas por ter visto Deus face a face mas porque jaacute se sente
216 Literalmente essa expressatildeo significa ldquocobrir sua facerdquo Eacute como se Jacoacute quisesse dizer que taparia o rosto de oacutedio e rancor de Esauacute com seus presentes 217 Utilizo aqui a traduccedilatildeo de CHOURAQUI 1995 p 340 por ser mais literal e render melhor a presenccedila
do vocaacutebulo Paumlnicircm
183
atendido em sua suacuteplica (Gn 3212) Israel estaacute a salvo de Esauacute O ldquopassarrdquo
(rb[) em perigo sob tensatildeo e alto risco transforma-se em passar em aliacutevio
Natildeo eacute mais Jacoacute que atravessa mas Israel Deve-se notar poreacutem que
ldquoFanuelrdquo carrega conotaccedilotildees de um jogo de palavras exprimindo
anterioridade ou precedecircncia que aparecem na cena anterior (Gn 3241718 ndash
Paumlnicircm aparece em estado construto com sufixos pronominais significando
adiante de) Naquela cena Jacoacute apressa-se em passar tudo adiante de si mesmo
e de seu irmatildeo servos rebanhos mulheres e crianccedilas Aliaacutes em Gn 3219-21
aparece por quatro vezes a expressatildeo ldquodepois deatraacutes derdquo (heb acuteaHaacuterecirc) em
referecircncia a Esauacute Eacute claro que o leitor eacute convidado a ver aqui o problema que
originou tudo isso ou seja o duplo roubo de Jacoacute (primogenitura e becircnccedilatildeo)
por duas vezes ele revoga a prioridade existente Seu irmatildeo Esauacute mais lento
aquele que vem sempre ldquodepois derdquo Jacoacute reconhece isso quando interpreta
o nome de Jacoacute em base ao princiacutepio nomen ndash omen (nome ndash mau pressaacutegio)
em Gn 2736 Outro efeito dessa arte da linguagem realizada pelo autor eacute
que tais correspondecircncias funcionam como uma conexatildeo em uma fuga mais
longa na qual repeticcedilotildees e etimologias contrapotildeem as duplas baacutesicas de
irmatildeo e irmatildeo (Jacoacute e Esauacute) homem e Deus (Jacoacute e Elohicircm)218
218 Essa duplicidade homem Deus comeccedila a ser mostrada deste o iniacutecio do capiacutetulo 32 que precede a nossa periacutecope (Gn 321-3) ldquoE Labatildeo levantou-se cedo beijou seus filhos e suas filhas e os abenccediloou e Labatildeo partiu e voltou ao seu lugar Entatildeo Jacoacute seguiu o seu caminho e anjos de Deus encontraram-se com ele Ao vecirc-los disse Este eacute o acampamento de Deus E chamou agravequele lugar Maanaimrdquo (trad nossa) Aqui os anjos relembram a teofania e promessa divina em Betel (Gn 2810-20) assim como a partida de Labatildeo relembra o beijo e becircnccedilatildeo concedidos por Isaac natildeo aos seus dois filhos mas somente a Jacoacute (Gn 2727) Beijo e becircnccedilatildeo seratildeo lembrados apoacutes a luta quando um Jacoacute justificado recebe o beijo de Esauacute e convida-lhe para aceitar o seu presente que ele idiomaticamente chama ldquominha becircnccedilatildeordquo (Birkaumlticirc Gn 3311) Como bem observa MARKS (1995 p 36 n 25) ldquoEste relato ecoa por sua vez o relato
do beijo que Labatildeo corre para dar em Jacoacute quando ele chega em Padatilde-Aram (2913) Tendo lsquoabenccediloadorsquo seus filhos e suas filhas Labatildeo retorna a lsquoseu lugarrsquo O lugar para o qual Jacoacute volta os seus passos depois de ser omitido intencionalmente da becircnccedilatildeo de Labatildeo eacute aquele cuja identidade e nome ainda precisam ser disputados [lutados]rdquo O que aconteceraacute em nossa periacutecope (Gn 3223-33) A duplicidade continua em Gn 323 quando Jacoacute vecirc um acampamento de anjos mas o nomeia como sendo ldquodois camposrdquo pois Maanaim eacute um substantivo hebraico dual Provavelmente numa referecircncia tambeacutem dual e oposta acampamento de anjos e acampamento de Jacoacute Haacute uma duplicidade humanodivino na mudanccedila semacircntica da palavra malacuteaumlkicircm De ldquoanjosrdquo que Jacoacute vecirc (322) aos ldquomensageirosrdquo que ele envia ao seu
irmatildeo (324 malacuteaumlkicircm) Contudo esse dual pode ainda ter outra interpretaccedilatildeo ldquoNo entanto a divisatildeo
subsequente de Jacoacute de seus proacuteprios seguidores em dois acampamentos (maHaacutenocirct vv 811) manteacutem
ativa a outra possiacutevel interpretaccedilatildeo do dual - a de uma divisatildeo dentro do proacuteprio campo divino - lanccedilando sua sombra tipoloacutegica atraveacutes da apariccedilatildeo suacutebita mais tarde naquela noite do oponente espectralrdquo (MARKS 1995 p 37)
184
c) Gn 3310 wayyoumlacutemer ya`aacuteqoumlb acuteal-naumlacute acuteim-naumlacute maumlcaumlacuteticirc Heumln Buuml`ecircnEcirckauml wuumllaumlqaHTauml
minHaumlticirc miyyaumldicirc Kicirc `al-Keumln raumlacuteicircticirc paumlnEcirckauml Kiracuteoumlt Puumlnecirc acuteeacuteloumlhicircm waTTirceumlnicirc Jacoacute diz
ldquoNatildeo Se encontrei a graccedila a teus olhos toma minha oferenda de minha matildeo sim
porque vi tuas faces como se as faces de Elohicircms [Deus] fossem vistas aceita219
Eacute clara a conexatildeo com o texto do item anterior (Gn 3231) Ao ver a face de
Deus Jacoacute agora Israel vecirc sua vida transformada e o reencontro e
reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo possiacuteveis
Retomando o versiacuteculo-chave de nossa periacutecope (v 29)
Ele disse ldquoTeu nome natildeo seraacute mais chamado Jacoacute mas Israel porque tu lutastecontendeste com DEUS e com HOMENS tu prevaleceste
wayyoumlordm mer loumlacute ya`aacuteqoumlb yeumlacuteaumlmeumlr `ocircd šimkauml Kicirc acuteim-yiSraumlacuteeumll
Kicirc|-Saumlricirctauml `im-acuteeacuteloumlhicircm
wuuml`im-acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll
Recordamos a existecircncia de um claro paralelismo literaacuterio
Saumlricirctauml (raiz hrf ou rrf ou rwf ou rvyrfy)220 acuteeacuteloumlhicircm
acuteaacutenaumlšicircm waTTucirckaumll (raiz lky mas com
variaccedilatildeo cognata hlk = lutar
esforccedilar-se empenhar-se)
Mesmo que natildeo se chegue a um consenso sobre o sentido original do nome
ldquoIsraelrdquo do ponto de vista da pesquisa cientiacutefica o contexto fornecido pelo autor torna
evidente que o nome deve estar relacionado agrave ldquolutardquo ao ldquoempenhordquo ao ldquoesforccedilordquo agrave
ldquocontendardquo O proacuteprio fato de Oseias usar o mesmo vocaacutebulo raro Saumlracirc em 124 mas
retomaacute-lo no versiacuteculo 5 como woyyaumlSar lutou exerceu poder (claramente da raiz rwf
uma forma cognata de rrf = ter domiacutenio) reforccedila essa nossa afirmaccedilatildeo Esse mesmo
verbo aparece em Jz 922 (wayyaumlSar conjugaccedilatildeo Qal raiz rrf reinou governou) e Os 84
(na conjugaccedilatildeo Hifil heumlSicircrucirc) com o sentido de dominar estabelecer sobre
Acrescentemos o fato de a ldquolutardquo a ldquodisputa e contendardquo serem parte integrante
da vida de Jacoacute Ainda no ventre materno Jacoacute lutou com seu irmatildeo Uma vez que ele
219 Traduccedilatildeo segundo CHOURAQUI 1995 p 349 220 Consideradas variantes cognatas como vimos anteriormente
185
tinha nascido ele resolveu aquela contenda em sua aparente vantagem adquirindo a
Buumlkoumlracirc (primogenitura) e a Buumlraumlkacirc (becircnccedilatildeo) Apoacutes uma luta de vinte anos ele
consegue fugir de Labatildeo seu sogro sem ser tocado pela sua ira Por isso fica claro que
ele ldquoprevalecerdquo (waTTucirckaumll) contra os homens
Mas natildeo somente contra os homens Jacoacute tenta levar a melhor ou seja
prevalecer ser vitorioso O v 29b afirma que ele ldquolutoucontendeu com Deusrdquo A sua
luta com Deus eacute pela becircnccedilatildeo pelo reconhecimento pelo direito de ser o Patriarca
Ateacute agora a vida toda de Jacoacute tinha sido um arrastar as becircnccedilatildeos em todas as circunstacircncias para seu proacuteprio uso sendo o abenccediloado mas sob sua proacutepria forccedila e sobretudo com arbitrariamente e por meio de fraude E precisamente porque este destino (tornar-se o primeiro homem) lhe tinha sido dado por Deus antes mesmo de seu nascimento ele estava constantemente em revolta porque queria realizar este destino por sua proacutepria vontade e por meio de engano Ele era demasiado obstinado e orgulhoso demais para permitir que a becircnccedilatildeo lhe fosse dada Essa resistecircncia obstinada orgulhosa e sombria a Deus eacute o que ele agora exibe agraves margens do Jaboc - e ali tambeacutem eacute derrubado O nome ldquoDeus lutardquo pode entatildeo significar Deus luta com vocecirc porque ele eacute forccedilado por sua teimosia e orgulho E tambeacutem doravante Deus lutaraacute por vocecirc pois ele aprecia seu compromisso absolutamente sincero e indiviso (FOKKELMAN 2004 p 216-217)
Fica claro que para FOKKELMAN o sentido do nome Israel seria ldquoDeus lutardquo
Eacute tambeacutem possiacutevel devido ao contexto e agrave raiz verbal do nome proacuteprio Quem sabe
natildeo se deva entender o nome Israel como uma exclamaccedilatildeo lituacutergica proacutepria de uma
situaccedilatildeo de ldquoguerra santardquo significando algo como ldquoQue ele luterdquo isto eacute que ele se
manifeste como um guerreiro e combatente vitorioso (cf HELLER 1964 p 263-254)
Em todo caso prefiro natildeo restringir-me a uma uacutenica soluccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo
para o sentido do nome ldquoIsraelrdquo Como jaacute demonstrei haacute uma polissemia neste nome
proacuteprio bem ao gosto do autor Mas no contexto e devido todo o ciclo de Jacoacute fica
evidente que a interpretaccedilatildeo dada pelo texto eacute aquela que devemos levar em conta
Somente assim atingimos o sentido que o autor deseja dar agrave sua criaccedilatildeo literaacuteria
A inversatildeo de Jacoacute como sujeito e natildeo objeto em seu novo teofoacuterico nome
convida-nos segundo MARKS (1995 p 40) a ldquoa reconfigurar a identidade dos dois
contendoresrdquo Ele sugere que ldquoa volta reflexiva na foacutermula de nome apresenta uma
186
intimidade dinacircmica uma coexistecircncia do eu [self] e do outro o homem e Deus
fundamentados na resistecircncia muacutetuardquo (MARKS 1995 p 40) Jacoacute sempre viveu um
duplo conflito externo (com seu irmatildeo com Labatildeo com suas esposas etc) e interno
(com sua atitude fraudulenta contrastando com seu desejo de ser abenccediloado) Por isso
a sua luta sempre segundo MARKS (IDEM) seria contra his own phantastic projection
(sua proacutepria projeccedilatildeo fantaacutestica) a vulnerabilidade de seu ldquoeurdquo Assim fazendo Jacoacute
habilita-se a ser agente de sua proacutepria mudanccedila testemunhada pelo novo nome A sua
disputa histoacuterica e pessoal eacute trazida para a arena poeacutetica do texto literaacuterio E o sinal
disso eacute o proacuteprio ato de renomeaccedilatildeo Ao mesmo tempo o novo nome permite a
interpretaccedilatildeo de que a divindade luta com Jacoacute mas este consegue transformar esse
conflito a seu favor a segunda glosa etioloacutegica espelha isso ldquoJacoacute chamou o nome do
lugar Fanuel porque eu vi a Deus face a face e a minha vida foi salvardquo (trad nossa)
Em Gn 323031 o ser com o qual Jacoacute lutou contendeu eacute o proacuteprio Deus Ao
natildeo responder agrave pergunta de Jacoacute ndash haGGicirc|dacirc-nnaumlacute šuumlmekauml (Diga-me por favor o teu
nome) e ao Jacoacute reconhecer que tinha visto Deus ldquoface a facerdquo e sobrevivido a
identidade da personagem misteriosa se revela Aleacutem disso haacute uma interessante
curiosidade em nossa periacutecope que vem confirmar essa conclusatildeo A nossa periacutecope
(Gn 3223-33) eacute formada por 143 palavras sendo que poder-se-ia esperar haver 144
que eacute 12 multiplicado por 12 uma vez que se trata de um texto que fala de Israel E
Israel eacute representado sempre com suas 12 tribos Ora a palavra que falta para resultar
no nuacutemero aguardado somente poderia ser o nome divino (cf KESSLER 2004 p 169)
Esse nome natildeo eacute pronunciado esse nome natildeo eacute apenas ldquoDeusrdquo a menos que seja falado
pelo proacuteprio Israel No entanto ldquoeste Deus com seu nome ativo estaacute presente na
histoacuteria lsquoPor que vocecirc pede o meu nome [shem] E ele o abenccediloou laacute [sham]rsquo YHWH
abenccediloa com as palavras lsquoEu estou [ou estarei] contigorsquo (p ex Gn 313) e este eacute o nome
divino in actu (no proacuteprio ato cf Ex 312) Nisto reside o segredo de lsquoIsraelrsquo Apoacutes esse
encontro Jacoacute poderia somente ser Israel em essecircnciardquo (KESSLER 2004 p 169)
A nossa cena conclui-se com um movimento (v 32) Finalmente Jacoacute alcanccedila o
seu povo atravessando Fanuel Como jaacute foi frisado anteriormente a cena toda eacute bem
enquadrada pois os vv 23-24 satildeo marcados pelo movimento de atravessar e fazer
atravessar (rb[ eacute repetido vaacuterias vezes) que prepara este movimento final a travessia
187
propriamente dita Essa travessia de Israel eacute decisiva como o capiacutetulo 33 nos faraacute
perceber Como observa FOKKELMAN (2004 p 221) ldquohaacute algo mais importante e
portanto sua passagem eacute colocada em uma oraccedilatildeo subordinada (Kaacuteaacutešer) Desta
forma a ecircnfase estaacute em lsquoo sol brilhava sobre elersquordquo Afinal a noite ficou para traacutes o dia
glorioso surge e eacute o cenaacuterio para a travessia de nosso heroacutei Em Fanuel natildeo predomina
mais a noite como em Betel e Haratilde a qual eacute substituiacuteda pelo dia glorioso da ldquoFace de
Deusrdquo
Haacute um detalhe importante apesar de tudo o que foi dito acima wuumlhucircacute coumlleumlordf` `al-
yuumlreumlkocirc (ele [JacoacuteIsrael] coxeava de uma coxa) Segundo alguns comentaristas entre eles
JACOB (cf 2007 p 223-224) foi proposital esse ldquoenfraquecimentordquo de Jacoacute durante a
luta A visatildeo de um irmatildeo arrastando-se e curvando-se ateacute o chatildeo sete vezes (Gn 331-
3) faz com que Esauacute fique desarmado quando encontra-se finalmente com ele Esse
homem manco com uma multidatildeo de mulheres e crianccedilas aparentemente fraacutegil natildeo
era o Jacoacute que Esauacute estava preparado para enfrentar com seus quatrocentos guerreiros
(cf Gn 327) Portanto ldquoDeus salvou Jacoacute tornando-o mais fraco e assim derrota o
propoacutesito de Esauacute Ele se sente vencedor vendo um homem vencido diante dele Jacoacute
eacute derrotado em sua coxa aleijado no proacuteprio peacute no qual assentava-se a raiz de toda a
sua inimizade (Gn 2526) Este natildeo eacute lsquoJacoacute que agarra pelo calcanharrsquordquo (JACOB 2007
p 224) Assim sendo a salvaccedilatildeo de Jacoacute eacute a sua manqueira Inclusive em liacutengua
portuguesa pode-se fazer um irocircnico jogo de palavras apesar de manco Jacoacute natildeo daacute
mais mancadas Ou entatildeo aquele que soacute dava mancadas agora manca
Nesse sentido Jacoacute torna-se um homem correto justo reto em seu caminhar
(apesar de manco) apoacutes a luta no vau do Jaboc Como o nome Jeshurun (da provaacutevel
raiz rvy) um dublecirc do nome Israel quer significar Dessa forma o nome Israel natildeo
deixa de ser um tanto irocircnico em vista da personagem a qual nomeia Afinal ldquouma
poderosa metaacutefora fiacutesica eacute sugerida pela histoacuteria da luta Jacoacute cujo nome pode ser
interpretado como lsquoaquele que age tortuosamentersquo eacute dobrado permanentemente
aleijado por seu adversaacuterio sem nome a fim de ser endireitado antes de seu encontro
com Esauacuterdquo (ALTER 1997 p 181)
De nome proacuteprio pessoal Israel passa a ser denominaccedilatildeo de um povo uma
naccedilatildeo Uma monarquia eacute anunciada logo depois de Deus reiterar a mudanccedila de nome
188
em Gn 3510 Em Gn 3511-12 Deus retoma e recorda sua promessa anteriormente feita
a Abraatildeo e Sara quando seus nomes tambeacutem foram mudados (cf Gn 175-616 gt 122)
wayyoumlacutemer locirc acuteeacuteloumlhicircm acuteaacutenicirc acuteeumll šaDDay PuumlrEuml ucircruumlbEuml Gocircy ucircquumlhal Gocircyigravem yihyegrave mimmeordmKKauml
ucircmuumllaumlkicircm meumlHaacutelaumlcEcircordmkauml yeumlceumlordm ucirc wuumlacuteet-haumlacuteaumlordmrec acuteaacutešer naumltaordmTTicirc luumlacuteabraumlhaumlm ucircluumlyicHaumlq luumlkauml
acuteeTTuumlneordmnnacirc ucirc|luumlzar`aacutekauml acuteaHaacuterEcircordmkauml acuteeTTeumln acuteet-haumlacuteaumlordmrec (Deus lhe disse ldquoEu sou El Shaddai Secirc
fecundo e multiplica-te Uma naccedilatildeo uma assembleia de naccedilotildees nasceraacute de ti e reis sairatildeo de teus
rins Eu te dou a terra que dei a Abraatildeo e a Isaac darei esta terra a ti e agrave tua posteridade de pois
de ti ndash trad BJ) Eacute bom relembrar que esse texto natildeo pertence ao mesmo autor da nossa
periacutecope mas agrave tradiccedilatildeo sacerdotal
189
CONCLUSAtildeO
A figura da nossa personagem central JacoacuteIsrael de nenhum modo eacute faacutecil de
abordar pois eacute algueacutem destinado a contender sempre e com todos seu caminho eacute
fatigoso e repleto de tensotildees A proacutepria profecia de eleiccedilatildeo deixa claro que a culpa por
toda essa conflitualidade natildeo eacute (soacute) de Jacoacute mas da vontade de Deus em subverter
desde o ventre materno os direitos de primogenitura que eram tidos como legiacutetimos
naquela eacutepoca IHWH lhe disse [a Rebeca mulher de Isaac] ldquoHaacute duas naccedilotildees em teu seio
dois povos saiacutedos de ti se separaratildeo um povo dominaraacute um povo o mais velho serviraacute ao mais
novordquo (Gn 2523 ndash BJ) Interessante observar que a ldquolutardquo de Jacoacute com Esauacute teve iniacutecio
ainda no interior da proacutepria matildee (cf Gn 2522) o que a leva a consultar YHWH que
lhe profere a profecia acima mencionada A referecircncia na profecia eacute a Edom cujo
povo eacute considerado descendente de Esauacute (cf Gn 2530) Esse povo vizinho mostrou-se
repetidamente inimigo de Israel A BH narra que os edomitas foram subjugados por
Davi (2Sm 813-14) e natildeo se libertaram definitivamente a natildeo ser sob o reinado de Joratildeo
de Judaacute na metade do seacuteculo IX AEC (2Rs 820-22) Portanto fica claro que o chamado
divino natildeo eacute somente eletivo pode tambeacutem ser um chamado agrave luta e ao conflito A
histoacuteria de Moiseacutes vai nessa mesma direccedilatildeo pois ele eacute chamado e enviado para uma
missatildeo conflituosa de libertaccedilatildeo
Aliaacutes o direito dos primogecircnitos marca por duas vezes a trajetoacuteria de Jacoacute
Primeiramente quando este a usurpa de seu irmatildeo fazendo-se passar por ele (Gn 27)
Em segundo lugar quando eacute obrigado a desposar por primeiro Lia a filha mais velha
e natildeo Raquel a sua mulher preferida (Gn 2915-30) O conflito subjacente agrave
primogenitura natildeo eacute absolutamente marginal no seio da sociedade oriental antiga
Afinal a primogenitura ldquoeacute a pedra angular do inteiro sistema social e legal que
estabelece direitos e privileacutegios e impede conflitos intestinos Mas essa mesma praacutexis
de tutela da ordem social eacute tambeacutem um modo de destinar alguns a benefiacutecios e
vantagens e outros a inconvenientes e desvantagensrdquo (BRUEGGEMANN 2002 p
252) Portanto a accedilatildeo eletiva de Deus no ciclo de Jacoacute representa uma radical revoluccedilatildeo
no interior dessa estrutura tradicional de poder transmitida pela primogenitura
190
Desse modo Deus natildeo eacute alheio ou imparcial no conflito entre Esauacute e Jacoacute Jacoacute
e Labatildeo mas eacute o agente-motor de tal enfrentamento Ao lado das relaccedilotildees conflituosas
com essas duas personagens humanas o ciclo de Jacoacute evidencia tambeacutem os encontros
de Jacoacute com Deus por meio de teofanias (Gn 2810-22 em Betel [322-3 Maanaim]
3223-33 em Fanuel 351-15 em Betel) Natildeo eacute possiacutevel separar na narrativa da nossa
personagem aquilo que eacute humano daquilo que eacute divino Todos os seus encontros com
Deus se datildeo no contexto de seus conflitos e tensotildees a visatildeo da ldquoescadardquo em Betel (Gn
2810-22) tem lugar durante a fuga de Jacoacute do irmatildeo que deseja mataacute-lo O encontro
em Fanuel (Gn 3223-33) que deixaraacute Jacoacute coxo ocorre quando Jacoacute estaacute extremamente
angustiado diante do iminente encontro com Esauacute Mesmo o outro encontro em Betel
(Gn 351-15) eacute cercado por conflitos e mortes a filha de Jacoacute com Lia Dina sofre
violecircncia sexual por parte de Siqueacutem e eacute vingada pelos seus irmatildeos Simeatildeo e Levi (Gn
341-31) Apoacutes a teofania de Betel Raquel daacute agrave luz a Benjamim mas vem a falecer
devido as complicaccedilotildees no parto (Gn 3516-20) Por conseguinte o conflito humano e o
confronto com o divino integram a vida de Jacoacute por isso satildeo refletidos em seu novo
nome em Gn 3229 O nome ldquoIsraelrdquo integra a polimoacuterfica polivalente e prosaica vida
de Jacoacute agrave polissemia de seu novo nome
Afinal ldquoexperiecircncias extremas do ser humano e intervenccedilatildeo divina satildeo
correlatasrdquo (BRUEGGEMANN 2002 p 253)
Por isso Israel natildeo surgiraacute do
Sucesso afinal mesmo aparentando ter vencido a luta contra Deus ele torna-
se manco definitivamente aleijado atingido em sua potecircncia fiacutesica e moral
Astuacutecia pois durante a luta quem faz uso de um subterfuacutegio eacute o ldquohomemrdquo
com o qual estaacute se confrontando rolando pelo poacute Eacute ele que toca o nervo
ciaacutetico de Jacoacute deixando-o atrofiado provocando-lhe dor e manqueira
Terra afinal ele eacute um expatriado algueacutem que possui bens mulheres e filhos
mas natildeo ainda uma terra um verdadeiro lar Devido a isso Deus lhe renova
a promessa em Gn 3511-12 apoacutes seu confronto com ele
Mas Israel eacute fruto da agressatildeo de Deus pois ousou contender com ele e ainda
mais saber o seu nome ou seja conhecer o seu misteacuterio O seu encontro com Deus natildeo
produziu como se poderia imaginar reconciliaccedilatildeo perdatildeo restauraccedilatildeo Mas sim uma
191
invalidez uma deformaccedilatildeo Portanto o novo nome natildeo pode ser separado da nova
lesatildeo que a nossa personagem sofre Essa ambivalecircncia do encontro noturno de Jacoacute
com Deus reflete-se em seu nome pois ele penetrou o misteacuterio de Deus como nenhum
outro antes dele e prevaleceu sobreviveu O proacuteprio Israel povo do qual seraacute o pai
natildeo ousaraacute repetir a faccedilanha do Patriarca (cf Ex 1921-25 2018-20) Eacute como se o nome
Israel representasse a realizaccedilatildeo daquela promessa de Gn 2523 a coroaccedilatildeo de toda
uma existecircncia conflituosa e beligerante No entanto eacute uma vitoacuteria ldquoinvalidanterdquo
demonstrando que com Deus natildeo existem vitoacuterias faacuteceis como bem exprime
BRUEGGEMANN (2002 p 323)
Somente apoacutes esse confronto em Fanuel Jacoacute pocircde compreender melhor o seu
espanto em Gn 2816 acuteaumlkeumln yeumlš yhwh(acuteaumldoumlnaumly) Bammaumlqocircm hazzegrave wuumlacuteaumlnoumlkicirc loumlacute yaumldaumlordm Ticirc
(Na verdade IHWH estaacute neste lugar e eu natildeo o sabia - BJ) logo apoacutes despertar de seu sonho
em Betel Afinal a presenccedila divina na BH eacute tanto causa de exultaccedilatildeo e alegria quanto
de temor e tremor Eacute a esse ldquolugarrdquo onde Jacoacute encontra-se com Deus que faz referecircncia
Gn 3230c wayuumlbaumlrek acuteoumltocirc šaumlm (E ele o abenccediloou ali) O seu novo nome exprime bem o
paradoxo de um poder fraco convertido em fraqueza potente
Falando em becircnccedilatildeo eacute importante retomar esse que eacute o tema dominante em todo
o ciclo de Jacoacute a busca pela becircnccedilatildeo Em nossa periacutecope a becircnccedilatildeo adquire um sentido
especial Finalmente Deus abenccediloa Jacoacute ou melhor Israel A becircnccedilatildeo sempre
determinou as narrativas sobre essa nossa personagem Foi a preocupaccedilatildeo em obter a
becircnccedilatildeo de Isaac que fez Rebeca inventar aquela artimanha para que Jacoacute enganasse
seu pai (Gn 271-40) Essa becircnccedilatildeo dada por meio de engano faz com que Jacoacute tenha de
fugir (Gn 2741-45) A riqueza de Jacoacute em filhos filhas e gado eacute consequecircncia da
becircnccedilatildeo E foi igualmente a becircnccedilatildeo que se transferiu de Jacoacute para o patrimocircnio de Labatildeo
que motivou este uacuteltimo a querer reter Jacoacute a qualquer custo junto de si (Gn 302730)
Assim sendo Jacoacute eacute abenccediloado e sua becircnccedilatildeo produz efeitos tanto para si mesmo
quanto para os outros ao seu redor Apesar que em nenhum momento Jacoacute deixa de
ser o astuto e oportunista basta que nos recordemos da estrateacutegia que usa para
aumentar o seu rebanho em Gn 30 25-43 No entanto ateacute este ponto da narrativa falta
uma becircnccedilatildeo expliacutecita direta de Deus a Jacoacute
192
Ao obter essa becircnccedilatildeo direta de Deus somente em Fanuel ficam evidenciadas a
retidatildeo e justeza de tal gesto Pois essa ldquobecircnccedilatildeo divina exclui qualquer duacutevida sobre
a legitimidade da becircnccedilatildeo que Jacoacute conseguiu enganosamente de seu pairdquo (KLEIN
2007 p 135) e por meio de uma ldquonegociatardquo com seu irmatildeo por um prato de lentilhas
(Gn 2529-34) Contudo essa becircnccedilatildeo natildeo eacute dada incondicionalmente Jacoacute eacute tocado em
seu quadril ldquoo toque pode ser entendido como gesto de becircnccedilatildeo mas eacute um toque
doloroso um toque que deixa Jacoacute coxeandordquo (KLEIN 2007 p 135) Apesar dessa
sinistra humilhaccedilatildeo JacoacuteIsrael adquire coragem e decide ir ao tatildeo temido encontro
com seu irmatildeo Como bem assinala KLEIN (2007 p 135) ldquoesta transformaccedilatildeo e a
disposiccedilatildeo de ir ao encontro do futuro apesar do passado satildeo marcadas por dois
elementos da narrativa Um eacute o novo nome de Jacoacute Israel um nome de honra O outro
eacute a aurora que anuncia um novo e decisivo dia na vida de Jacoacute O terceiro aqui natildeo
mencionado explicitamente eacute a travessia do rio Jabocrdquo
Mas nos detenhamos na caracteriacutestica das etimologias biacuteblicas para nomes
proacuteprios de lugares e pessoas Como jaacute abordamos no segundo e quarto capiacutetulos deste
estudo havia e talvez ainda haja uma tendecircncia muito forte em se acreditar que a
nomeaccedilatildeo biacuteblica pretenda ter uma relaccedilatildeo direta com o ser essencial do objeto
denominado Ou entatildeo que essas notas explicativas sobre os nomes proacuteprios (glosa)
natildeo passem de enfeites secundaacuterios na narrativa ou resiacuteduos curiosos de uma antiga
tradiccedilatildeo popular tipo folcloacuterica Como bem identifica MARKS (1995 p 24) ldquoa glosa
tiacutepica [explicaccedilatildeo dada ao nome] marca um iniacutecio improvisado em oposiccedilatildeo a uma
origem absoluta Eacute arbitraacuteria e natildeo inevitaacutevel obstinada e natildeo essencial permissiva
mas somente em virtude dos limites que ela impotildeerdquo Nesse sentido as mudanccedilas de
nome (Jacoacute gt Israel Jaboc gt Fanuel) ocorridas no texto objeto de nosso estudo somente
poderiam ser explicadas no interior de uma surpreendente rede de duplicaccedilotildees
internas e ecos intertextuais (com suas exploraccedilotildees literaacuterias de geminaccedilatildeo e projeccedilatildeo
identidade e diferenccedila) que o ato de renomear ancora Para comprovar isso que acabo
de dizer basta perguntar-nos assim como faz MARKS (1995 p 34-35)
Pode ser uma coincidecircncia que dois nomes de Jacoacute figurem em uma histoacuteria que se caracteriza por dois acampamentos [Gn 32811] duas travessias [Gn 322324] duas embaixadas [enviadas a Esauacute Gn 328-9]
193
duas esposas [Gn 2915-30] duas servas [Gn 301-49] dois alojamentos de noite [nas duas margens do Jaboc Jacoacute e seu grupo] dois tipos de ldquobecircnccedilatildeordquo ldquolibertaccedilatildeordquo e ldquoenviarsoltarrdquo (xlv ndash Gn 3227) dois tipos de ameaccedila (vyai ndash um homem Gn 3225b e Esauacute)rdquo
Natildeo por acaso o autor escolheu verbos rariacutessimos para compor a narrativa
fazendo com que a fundamentaccedilatildeo interpretativa pela etimologia resultasse como a
concessatildeo do nome paradoxalmente dependente da narrativa que interpretaria
Inevitaacutevel nesta conclusatildeo abordarmos as semelhanccedilas e diferenccedilas entre as
duas periacutecopes onde se datildeo a teofania por meio de um acuteicircš (homem pessoa) Elas satildeo
apenas duas Gn 181-15 (apariccedilatildeo a Abraatildeo e Sara junto ao Carvalho de Mambreacute) e a
nossa em Gn 3223-33 (apariccedilatildeo a Jacoacute no vau do Jaboc) O primeiro aspecto a ser
salientado eacute o fato do proacuteprio Deus fazer questatildeo de vir confirmar a sua promessa
tanto na cena do Carvalho de Mambreacute quanto nesta do riacho Jaboc Na primeira
teofania em acuteicircš Deus assegura a continuidade da linhagem de Abraatildeo prometendo-
lhe o nascimento de um filho Na segunda teofania (Gn 3223-33) Deus renomeia e
abenccediloa Jacoacute que eacute o pai direto da naccedilatildeo numerosa prometida a Abraatildeo Portanto a
promessa feita em Gn 18 realiza-se com a becircnccedilatildeo de Jacoacute em Gn 32 Como constata
HAMORI (2008 p 102) ldquoembora os dois textos seguramente natildeo vecircm do mesmo autor
original as funccedilotildees das apariccedilotildees divinas estatildeo relacionadasrdquo Um segundo aspecto a
ser destacado eacute o realismo antropomoacuterfico presente nesse tipo de teofania Em Gn 18
Deus eacute um ldquohomemrdquo em meio a outros indistinguiacuteveis homens que dialoga com
Abraatildeo deixa-se acolher pelo anfitriatildeo come bebe e comporta-se como qualquer ser
humano Em Gn 32 o ldquohomemrdquo luta com Jacoacute toca-lhe em sua coxa e ainda mais
impressionante perde a luta com Jacoacute ou seja natildeo daacute conta dele em seu combate Esse
tipo de realismo antropomoacuterfico natildeo eacute possiacutevel ser encontrado em nenhuma cultura
circunvizinha a Israel naquelas eacutepocas (cf HAMORI 2008 p 102) Com isso o autor
salienta os viacutenculos inusitadamente estreitos que Abraatildeo e Jacoacute tiveram com Deus
Mais do que por meio de palavras esse estilo de teofania demonstra o grau de
intimidade entre as personagens e a divindade Poreacutem em Jacoacute manifesta-se uma
audaacutecia extraordinaacuteria que natildeo encontramos na figura de Abraatildeo Esse atrevimento
manifesta-se no modo de
194
Jacoacute que ldquocobre o rostordquo de seu irmatildeo [Gn 3221 acuteaacutekaPPuumlracirc paumlnaumlyw ndash
com seus presentes] e golpeia a cavidade da coxa de seu oponente [Gn 3226 Kap-yerek ndash durante a luta no vau do Jaboc] dispor desse rosto
proibido - o Fanuel - natildeo esperando pelo nome que o anjo transmite mas apreendendo a sua mais sagrada e paradoxal expressatildeo e tornando-a um memorial de seu proacuteprio sucesso [ao nomear o lugar da luta] Em Jaboc o nome oculto eacute proclamado mas eacute proclamado na voz de Jacoacute O texto assim encena no niacutevel literaacuterio uma versatildeo da luta que representa o niacutevel da histoacuteria A presenccedila e o nome divinos para o escritor biacuteblico nunca podem se manifestar em si mesmos mas apenas em virtude da resistecircncia da literatura a eles como possibilidades poeacuteticas latentes nos nomes dos homens (MARKS 1995 p 40-41)
Para finalizar eacute evidente que o nome Israel eacute associado agrave luta ao combate agrave
contenda agrave disputa Tentei evitar ao longo deste estudo chegar a uma definiccedilatildeo
etimoloacutegica para esse nome mesmo porque para o proacuteprio autor o que interessa eacute o
seu significado no contexto como abordei no uacuteltimo capiacutetulo Mas o povo de Israel se
vecirc refletido nesse epocircnimo Subjacente a ele podem estar as seguintes memoacuterias
Aiacute estatildeo mais proacuteximas do campo do pensamento as vitoacuterias de Davi contra os filisteus moabitas edomitas arameus e amonitas de modo muito geral (2Sm 517-25 81-14 10119 11) Aleacutem disso pode-se pensar nas vitoacuterias posteriores de IsraelJudaacute contra os seus inimigos sobretudo na eacutepoca dos Macabeus (1 e 2 Mc) Em ciacuterculo mais amplo ainda a partir de nossa maior distacircncia com referecircncia a essas antigas vitoacuterias deveremos pensar nas sujeiccedilotildees causadas pelas grandes potecircncias de todos os tempos agraves quais de modo geral Israel esteve exposto e entre as quais esteve de fato politicamente triturado sem contudo ser totalmente aniquilado como comunidade nacional e religiosa (KRINETZKI 1984 p 83-84)
De qualquer modo penso que tenha conseguido demonstrar que a etimologia
realizada em nossa periacutecope bem como na maior parte da BH seja de cunho poeacutetico
Aliaacutes um caacutelculo conservador em livros narrativos da BH pode proporcionar-nos
mais de oitenta etimologias expliacutecitas de nomes proacuteprios de pessoas e lugares em sua
maior parte nas quais se oferece uma interpretaccedilatildeo semacircntica baseada em
correspondecircncias foneacuteticas A linguagem expande aquilo que a histoacuteria poderia
limitar Esse seria o risco de nos preocuparmos mais com o contexto histoacuterico do que
literaacuterio por exemplo As narrativas biacuteblicas demonstram que apesar de serem textos
195
compostos e conterem camadas redacionais de diversas eacutepocas tradiccedilotildees e lendas de
tempos mais antigos toques e retoques de diversos autores elas jamais deixam de ser
um texto unitaacuterio como reconhece HARTMAN (1986 p 11) ldquoNa Escritura apesar de
histoacuterias duplicadas e inconsistecircncias haacute uma unidade agraves vezes lacocircnica agraves vezes
prolixa mas sempre imperiosa No combate de Jacoacute essa tensatildeo unificadora alcanccedila
um tom peculiarrdquo Todo o ciclo de Jacoacute assim como a nossa periacutecope demonstra que
natildeo haacute uma expliacutecita e piedosa preocupaccedilatildeo moral na descriccedilatildeo e encenaccedilatildeo
proporcionadas pelas narrativas biacuteblicas A personagem Jacoacute natildeo eacute poupada nem
maquiada nem adaptada ao figurino de um tiacutepico homem temente a Deus com o qual
este possa ter uma estreita e iacutentima relaccedilatildeo Nosso Jacoacute eacute retratado em toda a sua nudez
moral e eacutetica e ateacute o final natildeo perde a sua principal e identificadora caracteriacutestica ser
um persistente suplantador algueacutem que deseja estar agrave frente Por isso ele natildeo teme
tocar e ser tocado por Deus mostrar sua face (seu ldquoeurdquo) e ver a face do totalmente
Outro (Deus) prender e ser libertado
A duplicaccedilatildeo e duplicidade fazem parte da nossa personagem principal Tudo
em sua vida eacute duplo e ambiacuteguo E eacute dessa realidade que ele deve sempre emergir
Portanto estabelece-se uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre personagem e texto o texto eacute
repleto de duplicidades e ambiguidades a fim de espelhar a personagem com estas
mesmas caracteriacutesticas e a personagem se revela melhor justamente atraveacutes dessa
peculiar caracteriacutestica da literatura biacuteblica Haacute portanto como pudemos perceber ao
longo desse estudo uma perfeita cumplicidade entre ambos A palavra o nome estaacute a
serviccedilo da histoacuteria e do texto
196
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- Um nome que faz toda diferenccedila anaacutelise literaacuteria de Gecircnesis 3223-33
-
- RESUMO
- ABSTRACT
- SUMAacuteRIO
- INTRODUCcedilAtildeO
- CAPIacuteTULO 1
-
- 1 O nome proacuteprio
-
- 11 O que eacute o nome proacuteprio
- 12 A que serve o nome proacuteprio
- 13 Noccedilotildees semacircnticas baacutesicas sobre o nome proacuteprio10
-
- 2 Diferentes abordagens do nome proacuteprio
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- 21 Semioacutetica
- 22 Psicanaacutelise
-
- 3 O nome proacuteprio na literatura
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- 31 Nomes que revelam a qualidade dos personagens
- 32 Nomes que indicam o local da accedilatildeo
- 33 Nomes sugestivos do tempo da accedilatildeo
- 34 Nomes que exercem um papel na estrutura da obra
- 35 Nomes que ressaltam as associaccedilotildees sinesteacutesicas26
-
- 4 Uma anaacutelise antropoloacutegica do nome proacuteprio
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