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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURA ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA FIORINA MATILDE MACEDO TORRES CIVILIZAÇÃO vs BARBÁRIE EM ANDRÉS RIVERA: uma singular re(elaboração) literária SÃO PAULO 2008

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURA ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA

FIORINA MATILDE MACEDO TORRES

CIVILIZAÇÃO vs BARBÁRIE EM ANDRÉS RIVERA: uma singular re(elaboração) literária

SÃO PAULO 2008

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS LÍNGUA ESPANHOLA E LITERATURA ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANA

CIVILIZAÇÃO vs BARBÁRIE EM ANDRÉS RIVERA: uma singular re(elaboração) literária

Fiorina Matilde Macedo Torres

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutora em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Cecília Arias Olmos

SÃO PAULO 2008

El pasado es arcilla que el presente labra a su antojo. Interminablemente.

Jorge Luis Borges

RESUMO

Este trabalho se propõe fazer uma leitura crítica do conjunto de quatro romances do escritor argentino Andrés Rivera − En esta dulce tierra, La revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz −, que têm em comum a ficcionalização da história argentina do século XIX. O objetivo do trabalho é identificar as particularidades da concepção de civilização e barbárie que esses romances atualizam no século XX. A leitura é feita em sua relação intertextual com as obras decinomônicas El matadero, de Esteban Echeverría, Amalia, de José Mármol e Facundo, de Domingo F. Sarmiento e em contraste com a construção literária da questão civilização e barbárie em textos de Jorge Luis Borges que também se voltam para o século XIX argentino. O suporte teórico deste trabalho orienta a reflexão em torno das relações entre ficção e história e se concentra, fundamentalmente, nos estudos de David Lowenthal sobre memória e história, de sua obra The Past is a Foreign Country, e de Hayden White sobre o discurso historiográfico, de The Content of the Form. Palavras-chave: Literatura argentina; civilização e barbárie; história e memória;

Andrés Rivera.

ABSTRACT

This work aims at doing a critical reading of the set of four novels from the Argentine writer Andrés Rivera – En esta dulce tierra, La revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz –, which have in common the fictionalization of the Argentine history in the 19th century. The objective of the work is to identify the particularities of the concept of civilization and barbarism that these novels update in the 20th century. The reading is done in its textual relationship with the nineteenth-century pieces El matadero, from Esteban Echevarría, Amalia, from José Mármol and Facundo, from Domingo F. Sarmiento and in contrast with the literary construction of the issue civilization and barbarism in texts of Jorge Luis Borges that are also focused on the Argentine’s 19th century. The theoretical support of this work leads to reflection about the relationships between fiction and history, and is fundamentally concentrated on the studies from David Lowenthal about memory and history, of his piece The Past is a Foreign Country, and from Hayden White about the historigraphical discussion, The Content of the Form. Key-words: Argentine literature; civilization and barbarism; history and memory;

Andrés Rivera.

RESUMEN

Este trabajo se propone realizar una lectura crítica del conjunto de cuatro novelas del escritor argentino Andrés Rivera − En esta dulce tierra, La revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz −, que tienen en común la ficcionalización de la historia argentina del siglo XIX. El objetivo del trabajo es identificar las particularidades de la concepción de civilización y barbarie que esas novelas actualizan en el siglo XX. La lectura es hecha en su relación intertextual con las obras decimonónicas El matadero de Esteban Echeverría, Amalia de José Mármol y Facundo de Domingo F. Sarmiento y en contraste con la construcción literaria de la cuestión civilización y barbarie en textos de Jorge Luis Borges que se vuelven también al siglo XIX argentino. El soporte teórico de este trabajo orienta la reflexión sobre las relaciones entre ficción e historia y se concentra, fundamentalmente, en los estudios de David Lowenthal sobre memoria e historia de su obra The Past is a Foreign Country y de Hayden White, sobre el discurso historiográfico, de The Content of the Form. Palabras claves: Literatura argentina; civilización y barbarie; historia y memoria;

Andrés Rivera.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 8O passado como cifra do presente .............................................................. 8En esta dulce tierra: um universo narrativo que se expande ....................... 12 - A memória recupera a história .............................................................. 16 - A memória ............................................................................................ 16A memória e a história ................................................................................. 19A civilização vs barbárie como construção literária decimonônica .............. 23A civilização vs barbárie no universo borgesiano ........................................ 29 1. CIVILIZAÇÃO VS BARBÁRIE EM ANDRÉS RIVERA: UMA LEITURA 321.1 En esta dulce tierra: memórias de um futuro (im)possível ................. 32 1.1.1 O cativeiro de Cufré ..................................................................... 33 1.1.2 O(s) destino(s) de Cufré .............................................................. 37 1.1.3 O tom dubitativo ........................................................................... 44 1.1.3.1 O tempo da história ......................................................... 44 1.1.3.2 A dúvida e a conjectura .................................................. 45 1.1.4 Civilização vs barbárie: uma leitura de En esta dulce tierra ........ 471.2 La revolución es un sueño eterno: a memória de uma carência ....... 50

1.2.1 Uma alternância na voz narrativa, uma única perspectiva .......... 551.2.2 O peculiar tempo da narração ..................................................... 571.2.3 A indelével marca da capa .......................................................... 591.2.4 A repetição que diferencia ........................................................... 601.2.5 Civilização vs barbárie: uma leitura de La revolución es un sueño

eterno ………………………………………..………………………… 621.3 El farmer e ese manco paz: a memória de pátrias inalcançáveis .... 69

1.3.1 Rosas: a reflexão de uma imagem .............................................. 721.3.2 Rosas e Paz: universos paralelos, vozes complementares ........ 851.3.3 Civilização vs barbárie: uma leitura de El farmer e Ese manco

Paz .............................................................................................. 94 CONCLUSÃO .............................................................................................. 97 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 100

INTRODUÇÃO

O passado como cifra do presente

Una sociedad habla, entre otros discursos, con el de la literatura, diz Beatriz

Sarlo, em seu ensaio “Literatura y política”1, publicado logo do término da ditadura

militar argentina (1976-1983). Em sua reflexão sobre a literatura desse período,

aponta a presença da história no discurso literário, como busca de formas de

representação de uma sociedade, que viu suas certezas abaladas e se questiona,

perplexa, o porquê do fracasso.

Esse contexto de formulação de uma série de perguntas sobre a Argentina

impõe o surgimento de um discurso literário, cuja construção possa dar conta da

perplexidade ante a repressão, a morte e o fracasso. Para Sarlo, duas foram as

estratégias principais dos discursos narrativos: o abandono da mímese como única

forma de representação e a fragmentação discursiva. Surge, assim, uma narrativa

que expressa a desconfiança de que haya un sentido de la historia.2

Nessa perspectiva, Sarlo apresenta como condição exigida pela literatura,

no sistema cultural argentino, a do escritor reflexivo numa dupla vertente, de pensar

la escritura literaria como una de las maneras de entender la historia; y de pensar la

historia desde un sistema de representación que se haga cargo de la complejidad, la

discontinuidad y la problematicidad de lo real.3

1 SARLO, B. Literatura y política. Punto de Vista: Buenos Aires, n.19, p.8-11, 1983. p. 9. 2 Id., p. 10. 3 Id., p. 11.

Dentro da mesma linha de pensamento, Andrés Avellaneda afirma que a

reflexão sobre a narrativa argentina do período em que o país viveu o terror da

ditadura militar implica uma inversão na relação entre literatura e história, uma vez

que es muy posible que de las textualizaciones que llamamos literatura dependa la

comprensión de los hechos que denominamos historia4. Essa escrita da história, via

literatura, preencheria o sentido vacante do momento histórico vivido.

É dentro dessa concepção de literatura que se insere Andrés Rivera em sua

obra En esta dulce tierra, publicada nos momentos iniciais da volta da Argentina à

democracia.

En esta dulce tierra (1984)5 ficcionaliza o século XIX argentino, balizando

duas datas: 27 de junho de 1839 ─ assassinato de Manuel Vicente Maza, presidente

da Sala de Representantes do governo de Juan Manuel de Rosas ─ e 12 de outubro

de 1868 ─ subida ao poder de Domingo F. Sarmiento, como presidente da nação;

esse tempo se alarga por referências a outros momentos históricos, através da

memória das personagens.

O protagonista é um médico argentino, chamado Gregorio Cufré, formado na

França, leitor de Saint-Simon e discípulo do professor Pierre Girard, que participara

na batalha de Valmy. Cufré decide voltar para sua pátria, quando a Argentina sofria

o rigor do governo Rosas. Ele justifica sua decisão a seu professor francês pela

interrogação: ¿Peleó contra toda esperanza, señor? Eso es, hoy, ser argentino.

(p.25-26)

No dia da morte de Maza, por seu filho ser suspeito de conspiração contra o

governo de Rosas, cujo anúncio a Cufré abre a narrativa, ele encontra-se na

Argentina. Com o assassinato do presidente da Sala de Representantes, Cufré,

também opositor de Rosas, torna-se alvo de suspeita e perseguição o que o obriga a 4 AVELLANEDA, A. Lecturas de la historia y lecturas de la literatura en la narrativa argentina de la

década del ochenta. In: BERGERO, A. J.; REATI, F. Memoria colectiva y políticas de olvido. Rosario: Viterbo, [S.d.]. p.141.

5 RIVERA, A. En esta dulce tierra. Buenos Aires: Alfaguara, 1995. Todas as citações dessa obra, na tese, referem-se a essa edição.

esconder-se. Ele permanece confinado no porão da casa de Isabel Starkey, sua

amante no passado. É nesse porão que se passa parte da narrativa. O único elo que

o liga ao mundo exterior é a voz de Isabel.

Cufré toma conhecimento da derrota de Rosas, em Caseros, pela

contraditória notícia de vitória por Isabel e pela própria voz derrotada de Rosas que

ele pensa surpreender, vinda da superfície.

A queda de Rosas que se esperaria representasse a liberdade para Cufré,

surpreendentemente, revela um destino incerto e misterioso para a personagem. A

opacidade de seu futuro constrói-se pela sua própria voz ─ num ambiente similar a

um hospital, a personagem Cufré cala ─, restando, então, apenas versões de seu

destino, recuperadas pela memória de personagens, cuja fidedignidade é

absolutamente discutível.

Uma dessas versões expressaria uma infrutífera ação ─ Cufré teria

acompanhado a hombres aguantadores y violentos (p.113), nas tropas em retirada

por derrotas frente aos gobiernos de la civilización, ou liderado índios na guerra al

índio. Outra versão representaria uma indiferença ─ Cufré teria voltado

espontaneamente para o cativeiro ─ sótano, foso, galería ─, com a subida de

Domingo F. Sarmiento ao poder, em 12 de outubro de 1968.

Na narrativa de En esta dulce tierra, fragmentariamente, negando-se a um

sentido único para a narração da vida de Cufré, está presente o terror gerado por um

poder sem limites, a difícil sobrevivência de quem dele se opõe e,

fundamentalmente, uma aparente falta de perspectiva para um recomeço, quando

esse poder não mais existe. Nessa medida, sob a perspectiva, proposta por Sarlo e

Avallaneda, da relação história e literatura na narrativa argentina do fim da década

de 70 e início da de 80, a obra reconstrói não apenas uma possível vida de um

opositor de Rosas, mas uma reflexão sobre o próprio presente do autor. E, assim, a

obra foi lida pela crítica.

María Cristina Pons, por exemplo, em “El secreto de la historia y el regreso a

la novela histórica”6, em que trata da volta da novela histórica nas décadas finais do

século XX, inclui En esta dulce tierra dentre as obras que reconstroem o passado

como recuperación de los silencios o el lado oculto de la historia, na medida em que

enfocam aspectos, figuras o acontecimientos marginales, desconocidos, olvidados o

ignorados por las historias oficiales.7

Nos romances de Rivera En esta dulce tierra e La revolución es un sueño

eterno (1987), também Avellaneda aponta um olhar para o passado interrogando-o

sobre lo que ha hecho imposible que la injusticia fuera corregida, la explotación

morigerada o el crimen castigado. E, o que é descoberto nesse passado é uma

trama de previsiones y proyectos equivocados, o una serie de desajustes entre lo

deseado y lo vivido, entre el sueño y la vigilia. Nesses romances, o passado é usado

como forma de hablar de un presente tan cargado de horror y de enigma.8 Sarlo, em

“Política, ideología y figuración literária”9, inclui En esta dulce tierra entre as obras

nas quais a história constitui-se numa chave do presente.

Se essa leitura crítica responde ao período em que estas obras foram

publicadas, a inserção, em En esta dulce tierra, de alusões a personagens que

protagonizarão três outras obras posteriores do autor, ─ La revolución es un sueño

eterno (1987) El farmer (1996) e Ese manco Paz (2003) ─ abre a possibilidade de

uma leitura da reconstrução do passado por Rivera, tecida por essas obras em seu

conjunto, que transcenda a busca do passado como cifra do presente.

6 PONS, M; C. El secreto de la historia y el regreso de la novela histórica. In: DRUCAROFF, E. Historia crítica

de la literatura argentina: v.11. La narración gana la partida. Buenos Aires: Emecé. 2000. 7 Id., p. 108. 8 AVELLANEDA, A. Lecturas de la historia y lecturas de la literatura en la narrativa argentina de la década del

ochenta. In: BERGERO, A. J.; REATI, F. Memoria colectiva y políticas de olvido. Rosario: Viterbo, [S.d.], p.153-154.

9 SARLO, B. Política, ideología y figuración literaria. In: JARA, R. VIDAL, H. Ficción y política. La narrativa argentina durante el proceso militar. Buenos Aires: Alianza. Institute for Study of Ideologies & Literature. University of Minnesota, 1987. p. 48.

En esta dulce tierra: um universo narrativo que se expande

Em En esta dulce tierra é possível surpreender o embrião de narrativas de

Rivera, publicadas entre 1987 e 2003, pela referência do narrador a seus

protagonistas: Juan Manuel de Rosas, emoldurado por uma Buenos Aires imersa no

terror, será protagonista, no exílio na Inglaterra, de El farmer (1996) e personagem

contraponto do General José Maria Paz em Ese manco Paz (2003); Juan José

Castelli e seu médico Cufré, de La revolución es un sueño eterno (1987) e o General

José María Paz, de Ese manco Paz.

Castelli e Cufré são citados quando o narrador reproduz o diálogo entre

Sixto Toledo e Cufré, lembrado pelo filho desse último:

Pero la iniquidades de Rondeau (...), eran los entretenimientos de un

alma inocente si se los comparaba con los desafueros de Castelli. Toledo, un gigante de espíritu piadoso, enrojecía de rabia al recordar los desplantes iconoclastas del delegado de la Revolución en el Alto Perú. (...) Ese maldito diablo [Castelli] le hizo más daño a la patria que una división realista. Está bien, está bien, replicó el padre de Cufré. Pero acuérdese que relevó a los indios de servidumbres y tributos. ¡Quijotadas al cuete! Fuente-ovejuna, Toledo, dijo el padre de Cufré, que no era un erudito en citas literarias. No olvide, tampoco, que Castelli proclamó que la virginidad de las monjas era un atentado a la libertad del género humano. (p.42)

Do general Paz, o narrador lembra suas vitórias sobre o caudillo Facundo

Quiroga, sua insólita captura pelo exército de Estanislao López e sua prisão:

(Cufré, que frecuentaba al general Paz, (...)) A Paz, a Paz,

precisamente, el hombre que le quebró el espinazo a Facundo, unas boleadoras indias, disparadas en una mañana de otoño santafesino, se le enredaron en las patas de su caballo. Y el animal, las patas boleadas, entregó al jinete ─ al general José María Paz, que leía en latín pero se negaba a descifrar los signos puntuales de la baquía gaucha ─, a unos montoneros intrépidos y feroces. Y la República, pensó, Cufré, que no cree en alegorías, cambió de rumbo. Y Paz, el general José María Paz, soñó, en sus 3600 noches de prisión, los cuchillos que le aserrarían la garganta. (p. 17-18)

A idéia veiculada na última frase da citação acima, na qual ecoa o conto “El

milagro secreto”, de Jorge Luis Borges, abre o segundo parágrafo de Ese manco

Paz. A personagem Paz lembra como viveu sob ameaça constante de morte, nos

anos de prisão:

Esperé, durante tres mil doscientos ochenta y cinco días de cárcel, que los montoneros de Estanislao López me humillaran con una muerte afrentosa.

O que los mazorqueros de Juan Manuel de Rosas me sumieran en las abyecciones de la tortura (Juro por Dios que vi cómo jugaban al voleo con mis tripas.)

Esperé, vencido por la fatiga de la espera, la llegada de los asesinos y de sus risas impunes. Esperé sus manos listas para el faenamiento.

Y, en esa espera, envejecí. 10

A alusão dessas obras posteriores de Rivera em En esta dulce tierra sugere

a possibilidade de lê-las, como um conjunto, ou seja, essa recuperação da história

decimonônica, que ocupa o escritor durante praticamente duas décadas, permite

uma leitura mais ampla de sua reflexão sobre a historia do século XIX.

Se em En esta dulce tierra, um narrador ausente do universo diegético narra

a vida de uma personagem anônima na história argentina, imersa na Buenos Aires,

sob o terror do governo de Juan Manuel de Rosas, La revolución es un sueño

eterno, El farmer e Ese manco Paz têm, como personagens, figuras relevantes da

história pátria do século XIX e fragmentos de suas vidas são, singularmente,

narradas pela suas próprias vozes.

Em La revolución es un sueño eterno11, o protagonista é o advogado

argentino Juan José Castelli (1764─1812). Castelli, que morreu vítima de um câncer

na língua, foi chamado orador de la Revolución ─ ele representou seus

companheiros na noite de maio em que desafiou o poder espanhol, na figura do

vice-rei Cisneros. Também participou da campanha do Alto Peru para a libertação

das Províncias Unidas. Nessa campanha, determinou a libertação de índios (sua

participação nessa campanha é mencionada na referência à personagem em En

esta dulce tierra). Castelli foi levado ao banco dos réus, sob a alegação de conduta

lasciva e obscena.

Rivera recria Castelli, no momento de sua vida em que se encontra na fase

terminal de sua enfermidade, alijado da vida pública ─ Castelli, orador de la

Revolución, já não fala, não apenas pelo impedimento físico, decorrente de seu

10 RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003, p. 13. 11 RIVERA, A. La revolución es un sueño eterno. Buenos Aires: Alfaguara, 2000. Todas as citações

dessa obra, na Tese, referem-se a essa edição.

câncer, mas, fundamentalmente, porque já não há quem queira ouvi-lo ─ ¿A quién

hablar? ─ escribe Castelli ─ ¿A quién es útil hoy, la palabra de Castelli? (p.42). Essa

voz que cala registra, em um caderno de capas vermelhas, confinado numa peça

sem janelas, quando o inverno chega a Buenos Aires ─ hoy, un día de junio,

mientras oía llegar la lluvia, el invierno, la noche (p.15), a lembrança de episódios

cruciais de sua vida. Sua memória, estritamente pessoal, íntima, mas confirmada e

consistente por seu registro da memória do outro, reconstrói fragmentos da

experiência histórica coletiva, idiossincraticamente.

Seu desafio ao poder espanhol em nome de seus companheiros, a

campanha do Alto Peru, como representante da Primeira Junta, mas,

fundamentalmente, quando, nessa mesma Campanha, enfrenta-se com o matar e

morrer que a realidade da batalha impõe são alguns dos momentos fundamentais de

sua vida que, reflexiva e questionadoramente, a personagem Castelli reconstrói pela

sua memória. As lembranças da personagem, distanciada temporalmente da

experiência vivida, ajustadas ao seu presente, vão desvelando inquisitivamente a

resposta à pergunta final registrada pela personagem: Entre tantas preguntas sin

responder, una será respondida: ¿qué revolución compensará las penas de los

hombres?(p.175)

Juan Manuel de Rosas (1793-1877), ditador argentino do século XIX, que

permaneceu no poder por um período de quase 20 anos e marcou Buenos Aires

pelo terror, é ficcionalizado por Rivera em El farmer12. Em contraste com o Rosas de

En esta dulce tierra, a personagem, à semelhança de Castelli, já está afastada do

poder. Como está sugerido no próprio título, Rosas, solitário e empobrecido,

envelhece bajo un cielo que no es el suyo, dueño de una granja de apenas 37

hectáreas (p.12), num frio inverno, em seu exílio na Inglaterra: Nieva en el condado

de Swanthling. Y hay sol y verano, pese a mí, en el partido de Monte, provincia de

Buenos Aires, a veinte mil leguas de pampa, y mar y viento, y noches del puerto de

Southampton. (p. 23).

12 RIVERA, A. El farmer. Buenos Aires: Suma de Letras Argentinas, 2002. Todas as citações dessa

obra, na Tese, referem-se a essa edição.

Valendo-se de sua memória pessoal, íntima, Rosas reconstrói singularmente

sua imagem, através de uma reflexão questionadora dialogada com sua própria voz

e a do outro, particularmente Domingo F. Sarmiento, autor de Facundo. A

manipulação do discurso próprio e alheio vai se ajustando à sua condição atual de

um campesino, estranho a si mesmo na terra que lhe coube como exílio, mas no

qual vive ainda Juan Manuel de Rosas.

José Maria Paz (1791-1854), general argentino, participou da vida pública do

país por mais de quarenta anos. Atuou nas lutas da independência e, mais tarde, na

guerra civil. Em conseqüência de um ferimento em combate, Paz perdeu os

movimentos do braço direito (por isso, o apodo el manco Paz). Em 1831, foi feito

prisioneiro por Estanislao López, em Santa Fé (fato de que é lembrado pela

personagem Cufré em En esta dulce tierra). Em 1835, quando Rosas volta ao poder,

López entrega-lhe Paz, que passa à prisão de Luján e, por fim, é mantido em

Buenos Aires, sob liberdade vigiada. Paz exilou-se em Montevidéu em 1840 e no

Rio de Janeiro, em 1848. Voltou para Buenos Aires em 1852, com a queda de

Rosas, onde morreu em 1854.

Em Ese manco Paz13, Andrés Rivera ficcionaliza o General Paz, solitário,

numa noite no ano de sua morte, no inverno de Buenos Aires, próximo da lareira, na

casa que lhe cedieron los dueños de Buenos Aires (p.58). Diferente de Castelli que

de um papel heróico, na destituição do poder espanhol, passa a réu, Paz,

condenado a oito anos de cárcere, com a queda de Rosas, é reintegrado à

sociedade buenairense ─ la ciudad que fue mi cárcel y cuyos dueños me agasajan,

hoy, (...). Pero yo, todavía, no olvido que los que me agasajan, hoy, aquí, en la

ciudad de Buenos Aires, se apartaban, ayer, de mí, cuando la ciudad de Buenos

Aires fue mi cárcel. (p. 16-17) (nessa medida, Paz contrasta com Cufré, cujo destino

após a queda de Rosas é incerto). Na obra, Paz relembra momentos cruciais de sua

vida, em contraponto com a personagem Juan Manuel de Rosas do poder e do

exílio, em capítulos que se alternam e que têm como título “La república” e “La

estancia”, respectivamente.

13 RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003. Todas as citações dessa obra, na

Tese, referem-se a essa edição.

Em La revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz é possível

identificar pontos de contato na construção das personagens. Castelli, Rosas e Paz

estão no fim de suas vidas, afastados do poder, confinados, num frio inverno, cada

um tendo como único recurso sua memória. Eles recriam momentos históricos e, a

partir desta recuperação, redimensionam o papel que lhes coube, afirmando suas

identidades. As personagens são vozes que falam/escrevem para si mesmas, uma

vez que já não há porque e por quem serem ouvidas.

A reconstrução do passado pelas personagens se dá na privacidade, a partir

de sua própria memória. Em contraste, em En esta dulce tierra, a personagem Cufré

é construída, por um narrador do presente que narra o que perduró de sua historia.

Até Caseros, essa narração se faz sob a perspectiva de Cufré ─ a morte de Maza

lhe faz evocar seu diálogo com o professor francês, sua necessidade de esconder-

se e o longo cativeiro. Entretanto, seus possíveis destinos são fruto da memória não

confiável de outras personagens. Assim, nos quatro romances a memória é o meio

de apreensão do passado.

A memória recupera a história

A memória

David Lowenthal, no capítulo "How we know the past" de sua obra The past

is a foreign country14, destaca alguns aspectos próprios da natureza do passado e

de sua apreensão pelo homem. O fato incontestável de que ele não mais existe, de

que está fora de alcance, envolve de incertezas a sua existência. Por outro lado, a

consciência do passado, segundo Lowenthal, é essencial para o bem-estar do ser

humano; por isso, ele rodeia-se e impregna-se do passado para dar-lhe

consistência, similar ao presente.

O passado nunca será conhecido como se conhece o presente. Em alguns

aspectos, podemos conhecê-lo mais do que aqueles que o viveram, uma vez que o

presente é interpretado enquanto é vivido; em contraste, o passado é visto de fora,

14 LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

como uma operação acabada que inclui as suas conseqüências sobre o que teria

sido o futuro, e esse conhecimento privilegiado lança novas luzes sobre ele. Por

outro lado, Lowenthal destaca que a nossa compreensão do passado é, em outros

aspectos, deficiente, uma vez que the surviving residues of past thoughts and things

represent a tiny fraction of previous generations’ contemporary fabrics15.

Memória e história estão entre as fontes de conhecimento do passado

apresentadas por Lowenthal. Memory pervades life16, conforme uma hierarquia de

hábito, recordação e memento, que o autor caracteriza, como segue:

Habit embraces all mental residues of past acts and thoughts,

whether or not consciously remembered. Recall, more limited than memory but still pervasive, involves awareness of past occurrences or states of being. Mementoes are cherished purposely salvaged from the greater mass of things recalled.17

Embora a recuperação do passado seja, ao mesmo tempo, individual e

coletiva, como forma de consciência, a memória é wholly e intensely18 pessoal. A

memória é também, por sua própria natureza, inviolável (é na privacidade que nosso

ato de lembrar fundamentalmente ocorre) e assim permanecerá, a menos que a

tornemos pública. Mas, mesmo pública, a memória não pode nunca ser

compartilhada em sua totalidade, já que for someone else to know about my memory

is not at all the same as having it.19 A memória também singulariza eventos públicos,

que tornam-se experiências pessoais idiossincráticas e é crucial para nosso senso

de identidade ─ to know what we were confirms that we are.20

Do fato da memória ser intrinsecamente pessoal decorre a sua finitude. A

memória desaparece com o desaparecimento de seu sujeito. Para Lowenthal,

também decorre da natureza única e pessoal da memória, a sua imperfeita

comunicação com o passado ─ doubts assail us about a memory that is only

15 Id., p.191. 16 Id., ib. 17 Id., ib. 18 Id., p. 195. 19 Id., ib 20 Id., p. 197.

private.21 Por isso, necessitamos da memória do outro para confirmar e dar

consistência a nossa própria memória.

Duas importantes particularidades da memória são apontadas por

Lowenthal. Diferentes tipos de lembranças ─ desejadas e espontâneas, inatas e

adquiridas ─ desvelam diversos aspectos do passado que se associam, constituindo

nosso passado como um todo. Ademais, a necessidade de usar e reusar o

conhecimento da memória, de lembrar e esquecer, força-nos to select, distil, distort,

and transform the past, accommodating things remembered to the needs of the

present.22

Embora a experiência original seja imutável, a sua lembrança é passível de

constantes mudanças. Permanentemente reajustamos nosso passado,

reescrevemos nossas histórias pessoais, dada à imprevisibilidade de seu futuro

significado, no momento da experiência vivida. All memory transmutes experience,

distils the past rather than simply reflecting it.23

À luz das peculiaridades próprias da memória, Lowenthal apresenta sua

função fundamental:

The prime function of memory (…) is not to preserve the past but to

adapt it so as to enrich and manipulate the present. Far from simply holding on to previous experiences, memory helps us to understand them. Memories are not ready-made reflections of the past, but eclectic, selective reconstructions based on subsequent actions and perceptions and on ever-changing codes by which we delineate, symbolize, and classify the world around us. 24

Nessa perspectiva, a memória é fonte de conhecimento de nosso passado,

cuja natureza essencialmente pessoal, inviolável, finita assegura nossa identidade

como indivíduo singular. A função primeira da memória não é simplesmente refletir

ou preservar as experiências originais vividas. Lembrar o passado implica

conhecimentos ulteriores à experiência que autorizam remodelá-lo constantemente.

O passado permanece intacto e a sua memória diferirá sempre dele. A recuperação

21 Id., p. 196. 22 Id., ib. 23 Id., p. 204. 24 Id., p. 210.

mutável do passado pela memória responde à busca de sua compreensão,

ajustadas às necessidades, ao enriquecimento e à manipulação do presente.

A memória e a história

Outra fonte de conhecimento do passado, analisado por Lowenthal, é a

história. A história, como a memória, é a recuperação de algo, por natureza,

irrecuperável e, por isso, o conhecimento histórico, similar ao da memória, adoece

das mesmas fragilidades de ser um conhecimento ora maior ─ Hindsight as well as

anachronism shapes historical interpretations. To explain the past to present means

coping not only shifting perceptions, values, and languages, but also with

developments after the period under review25 ─, ora deficiente ─ no historical

account can recover the totality of any past events, because their content is virtually

infinite26 ─, mas nunca fiel desse passado.

A distinção entre memória e história se faz, portanto, segundo Lowenthal,

menos pelo tipo de conhecimento, mas, fundamentalmente, pela atitude relativa a

esse conhecimento. A história, diferente da memória, tem um caráter coletivo.

Whereas the past that I remember is partly shared with others, much of it is uniquely

my own. But historical knowledge is by its very nature collectively produced and

shared; historical awareness implies group activity.27

Assim como a identidade pessoal é validada pela memória, a

autoconsciência de um grupo é perpetuada pela história. Diferente da memória que

perece com o seu sujeito, a história é potencialmente perene, preserva o

conhecimento do passado e resiste mais à deformação. Lowenthal, finalmente,

aponta, como distinção entre memória e história, o fato de que, embora a história e a

memória gerem conhecimentos novos sobre o passado, é a história que o faz

sempre de forma deliberada.

25 Id., p. 217. 26 Id., p. 214-215. 27 LOWENTHAL, op. cit., nota 14, p. 213.

Hayden White no capítulo "The value of narrativity in the representation of

reality", de sua obra The Content of the Form apresenta a narrativa como inerente a

própria natureza humana e destaca o sentido como elemento fundamental por ela

gerado – the absence of narrative capacity or a refusal of narrative indicates an

absence or refusal of meaning itself.28

Ao tratar da distinção entre o discurso histórico que narra e o que narrativiza,

dentro da discussão sobre discurso e narrativa, que surge no estruturalismo, White

afirma que a circunscrição ao campo do real na representação histórica leva à

artificialidade da forma de narrar sem intermediação, na medida em que os eventos

reais não podem falar por eles mesmos; eles não se apresentam sob a forma de

história, não são sujeitos da narrativa – Real events should simply be29. Por isso eles

podem apenas servir como referente de um discurso. Também Lowenthal

estabelece uma distinção entre eventos passados e o relato desses eventos. Diz o

Autor:

no account can recover the past as it was, because the past was not an account; it was a set of events and situations. As the past no longer exists, no account can ever be checked against it, but only against other accounts of the past; (…) Historical narrative is not a portrait of what happened but a story about what happened. 30

Contrastando as formas básicas de representação histórica estabelecida

pela comunidade historiográfica moderna - os anais, a crônica e o próprio texto

histórico, White estabelece parâmetros para a distinção entre elas: lidar com fatos

reais passados; manejar judiciosamente as evidências; respeitar a seqüência

cronológica original dos eventos; possuir o caráter narrativo, ou seja, possuir uma

estrutura geradora de sentido.

Em sua análise dos Annals of Saint Gall, que abarcam o período entre o

século VIII e o X, White, discutindo o sentido que poderia emergir da seqüência

vertical, não–narrativa de eventos, aponta a tendência (que o autor refere como

necessidade ou impulso) dos historiadores modernos de organizá-los

28 WHITE, H. The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation. Baltimore

& London: The Johns Hopkins University Press, 1992, p. 2 29 Id., p. 3. 30 LOWENTHAL, op. cit., nota 14, p. 215.

hierarquicamente a partir da perspectiva de uma cultura específica, portanto não

universal, e acrescenta que essa tendência é que torna possível uma representação

narrativa de eventos reais.

Ao aplicar as idéias de um fragmento da obra Lectures on the Philosophy of

History, de Hegel, em que este sugere a existência de uma relação íntima entre lei,

historicidade e narratividade, aos Annals of Saint Gall, White generaliza para a

narrativa ficcional e factual essa relação:

once we have been alerted to the intimate relationship that Hegel suggests exists between law, historicality, and narrativity, we cannot but be struck by the frequency with which narrativity, whether of the fictional or the factual sort, presupposes the existence of a legal system against which or on behalf of which the typical agents of a narrative account militate. And this raises the suspicious that narrative in general, from folktale to the novel, from the annals to the fully realised "history", has to do with topics of law, legality, legitimacy, or, more generally, authority.31

Distinguindo a crônica da narrativa histórica propriamente dita, pelo fato de

que a primeira não conclui, apenas termina, e, portanto, é deficiente como narrativa,

White sugere que a necessidade de um fechamento é devida à necessidade de um

sentido moral e pergunta: Has any historical narrative ever been written that was not

informed not only by moral awareness but specifically by the moral authority of the

narrator?32 E, sobre as possibilidades de fechamento da narrativa, destaca:

What else could narrative closure consist of than the passage from

one moral order to another? I confess that I cannot think of any other way of "concluding" an account of real events, for we cannot say, surely, that any sequence of real events actually comes to an end, that reality itself disappears, that events of the order of real have ceased to happen. Such events could only seem to have ceased to happen when meaning is shifted, and shifted by narrative means, from one physical or social space to another.33

White, portanto, destaca como elementos do discurso histórico, cujos fatos

narrados são apenas referentes desse discurso, o voltar-se para fatos passados, o

respeito à cronologia, às evidências históricas e à forma narrativa que se organiza

gerando sentidos e que conclui deslocando-os.

31 WHITE, op. cit., nota 28, p. 13. 32 Id., p. 21. 33 Id., p. 23.

Entretanto, o passado histórico, partilhado coletivamente, legitimador da

autoconsciência de um grupo, perene e relativamente resistente à deformação, é

singularmente recuperado por Rivera, através da memória extremamente pessoal,

inviolável, finita, ratificadora da identidade individual das personagens. Nessa

perspectiva, a história coletiva, por ser recuperada pela memória wholly e intensely

pessoal das personagens, passa a ser uma experiência idiossincrática.

Essa recuperação do passado tem como efeito, ao mesmo tempo, a não

interferência e o redimensionamento crucial e irremediável do relato historiográfico.

Assim, o passado transformado pela memória, porque ao tempo dos eventos

dificilmente poder-se-ia predizer suas significações futuras, leva à emergência de

sentidos possíveis, expressão de um singular, íntimo iluminamento questionador da

história.

Os romances En esta dulce tierra, La revolución es un sueño eterno, El

farmer e Ese manco Paz têm sua escrita permeada por textos decimonônicos de

Esteban Echeverría, José Mármol e Domingo F. Sarmiento e do próprio José Maria

Paz, numa evidente relação intertextual que alimenta a relação memória e história.

Assim, por exemplo, no terror rosista de En esta dulce tierra ecoa, como a crítica

exaustivamente aponta, a narrativa de Amalia; Rosas de El farmer e Ese manco Paz

dialoga tensamente com o discurso de Sarmiento, em Facundo; El matadero está

subjacente nos textos de Rivera, fundamentalmente, através do uso reiterado do

termo faenamiento. Há em Rosas e Paz, de Ese manco Paz, reflexos do relato que o

general Paz faz de sua vida em Memorias póstumas del Brigadier General D. José

M. Paz. Nas Memorias também está aludida a passagem de Castelli pelo Alto Peru.

As obras El matadero, de Echeverría, Amalia, de Mármol, Facundo, de

Sarmiento inserem-se numa proposta de literatura, expressa por Echeverría em

“Palavras Simbólicas”. Em sua leitura (1838) aos jovens pertencentes a Asociación

de la Joven Generación Argentina, que se via como legítima herdeira dos ideais de

Mayo e que estava decidida a aperfeiçoá-los e complementá-los para construir uma

nação acima dos valores que a dividiam, Echeverría afirma: Arte que no se anime en

su espíritu, y no sea la expresión de la vida del individuo y de la sociedad, será

infecundo34.

Inspirados no pensamento de intelectuais franceses, os homens de letras

rio-platenses incumbiram-se do duplo papel de criar uma literatura nacional e fundi-

la com o processo de construção de uma nova sociedade pós-Mayo. Nessa

perspectiva, as obras literárias deveriam refletir uma originalidade ─ expressão de

independência cultural em relação à matriz espanhola ─ e, simultaneamente, uma

nacionalidade e um projeto de nação.

A singularidade de um contexto social de irreconciliável tensão entre duas

facções políticas imiscíveis ─ unitários e federalistas ─, em que se dividira a

revolução de Mayo desde seu início, de constantes guerras civis, do longo e

despótico governo de Juan Manuel de Rosas e de um contraste entre dois mundos

─ o mundo civilizado, urbano, de inspiração européia e o mundo bárbaro,

representado pela terra americana marca indelevelmente essa produção literária.

Civilização vs Barbárie como construção literária decimonônica

El matadero, de Esteban Echeverría35, foi escrito em torno de 1839, mas

publicado somente trinta e dois anos depois, na Revista del Río de la Plata, e

incluídos nas Obras Completas do autor, surgidas em Buenos Aires entre 1870-

1874. O espaço é o matadouro de la Convalecencia, num subúrbio de Buenos Aires,

o tempo é a quaresma de um impreciso ano de 183..., ou seja, durante o governo de

Juan Manuel de Rosas. A narrativa é a imolação de um jovem unitário pelos

federalistas de Rosas, representados pelos diferentes elementos do matadouro. A

morte do jovem unitário é antecipada pela questão da falta de carne e a chegada de

gado para o matadouro e pela resistência infrutífera de um touro à morte.

El matadero expõe de modo contundente a barbárie do governo Rosas,

representada não apenas pela caracterização das personagens, pelas suas ações,

34 ECHEVERRÍA, E. Obras escogidas. Caracas: Ayacucho, 1991, p.253. 35 ECHEVERRÍA, E. El matadero. La cautiva. Madrid: Catedra, 2003. Todas as citações dessa obra,

na Tese, referem-se a essa edição.

mas pelo próprio linguajar dos integrantes do matadouro ─ simulacro en pequeño

era éste del modo bárbaro con que se ventilan en nuestro país las cuestiones y los

derechos individuales y sociales. (p. 103)

O jovem unitário que se aproxima do Matadouro e cuja inevitável morte

pelos integrantes do universo bárbaro do matadouro é apontada pelo narrador, como

una de sus innumerables proezas (p. 114) personifica a integridade de um segmento

da sociedade, contrário a Rosas, e é caracterizado em contraste com os

federalistas:

Llamaron ellos salvaje unitario, conforme a la jerga inventada por el Restaurador, patrón de la cofradía, a todo el que no era degollador, carnicero, ni salvaje, ni ladrón; a todo hombre decente y de corazón bien puesto, a todo patriota ilustrado amigo de las luces y de la libertad; y por el suceso anterior puede verse a las claras que el foco de la federación estaba en el matadero. (p.114)

A obra Amalia, de José Mármol36, começou a ser escrita em 184537 e foi

publicada, de forma descontínua, em 1851, como folhetim em La semana, de

Montevideo (Mármol sofrera perseguição rosista e emigrara para Montevideo em

1840). Com a queda de Rosas, em 1852, Mármol voltou a Buenos Aires e anunciou

a publicação de Amalia em seu novo jornal El Paraná. Entretanto, essa publicação

foi suspensa. Somente três anos depois, veio à luz a edição definitiva de Amalia,

que incluiu documentos que o autor teve acesso ao voltar do exílio38.

Mármol, talvez movido pela consciência da história, como um processo

ininterrupto de mudança e de interferência direta na vida do indivíduo, escreve uma

obra sobre seu presente, mas a situa artificialmente num tempo anterior. Essa

estratégia, o autor a justifica em “Explicación”, datada de maio de 1851, que precede

o texto. A interposição de algumas gerações entre o universo diegético de Amalia e

36 MÁRMOL, J. Amália. Novela histórica americana. Buenos Aires: Biblioteca de La Nación, 1909.

Todas as citações dessa obra, na tese, referem-se a essa edição. 37 BENÍTEZ-ROJO, A. “The nineteenth-cetury Spanish American novel. In: ECHEVERRÍA, R G.

PUPO-WALKER, E. The Cambridge History of Latin American Literature. Cambridge: University Press, 1996, p. 446.

38 Notas do autor, na obra, fornecem essa informação:

Entre los curiosos documentos inéditos que poseemos hoy del tiempo de la dictadura, se hallan las famosas «clasificaciones», de que tanto se ha hablado, (...) Cuando escribimos la Amalia, en el destierro, nos referimos á ellas; pero, como se comprende, no poseímos entonces los documentos. (Tomo III, p. 149)

o presente é alcançada no que denomina una ficción calculada, que utiliza o

passado, como tempo verbal e visa à leitura pelas gerações futuras. Explica Mármol:

La mayor parte de los personajes históricos de esta novela, existen

aún, y ocupan la posición política ó social que en la época en que ocurrieron los sucesos que van á leerse. Pero el autor, por una ficción calculada, supone que escribe su obra, con algunas generaciones de por medio entre él y aquéllos. Y es ésta la razón por qué el lector no hallará nunca en presente los tiempos empleados al hablar de Rosas, de su familia, de sus ministros, etc.

El Autor ha creído que tal sistema convenía tanto á la mayor claridad de la narración, cuanto al porvenir de la obra, destinada á ser leída, como todo lo que se escriba, bueno ó malo, relativo á la época dramática de la dictadura argentina, por las generaciones venideras, con quienes entonces se armonizará perfectamente el sistema, aquí adoptado, de describir, en forma retrospectiva, personajes que viven en la actualidad. (p.7)

A narrativa abre em 4 de maio de 1840 e encerra-se em 5 de outubro do

mesmo ano, ou seja, está inserida no governo de Juan Manuel de Rosas. A

perseguição feroz a seus opositores pela Mazorca39, a emigração de unitários para

Montevidéu e a expectativa frustrada da juventude pela entrada vitoriosa do General

Lavalle em Buenos Aires, que levaria a queda de Rosas estão presentes em Amalia.

A narrativa não está diretamente centrada na personagem histórica Rosas,

mas no contexto socio-político de seu governo, abarcado pelo tempo da história40 e

caracterizado como época de sangre y de crímenes, que debía traer el duelo y el

espanto a la infeliz Buenos Aires (Tomo I, p. 52), época na qual la salud del ánimo

empezaba a ser quebrantada por el terror: por esa enfermedad terrible del espíritu

(Tomo I, p. 72). Rosas é caracterizado como el inimigo a quién hay que combatir

(Tomo I, p. 11), déspota (Tomo I, p. 72); tirano (Tomo I, p. 116); seu governo como

uma dictadura (Tomo I, p. 13), e a sua polícia — a Mazorca —, como ese club de

bandidos (Tomo I, p. 13).

Esse contexto é apresentado, fundamentalmente, por personagens em suas

virtudes e debilidades, e cujos rasgos individuais de caráter respondem ao momento

histórico em que vivem, como representantes de capas da população que compõem

39 Mazorca é o nome dado a Sociedad Popular Restauradora, polícia política do governo de Rosas,

criada em 1834. 40 O termo história, no sentido empregado por Gerard Genette em Discurso da narrativa: história

como conteúdo narrativo em contraste com o termo narração como ato narrativo produtor. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Veja, [S.d.].

a sociedade buenairense e que têm suas vidas crucialmente afetadas pelo poder

rosista.

Da composição heterogênea de personagens que integram o universo

diegético de Amalia emergem as peculiaridades anímicas da Buenos Aires, centrada

no poder de Rosas ― o medo, a suspeita, a delação, desintegradoras da sociedade.

Nessa perspectiva, a emigração e o individualismo41 imobilizador de qualquer reação

tornam-se discussões pertinentes que ocupam as personagens.

Eduardo Belgrano, personagem, cuja tentativa frustrada de emigração para

Montevideo abre a narrativa, é descendente do General Belgrano, um dos heróis

das lutas pela independência da Argentina; sua caracterização se faz pela

inflexibilidade de pensamento e ação que, embora louváveis, já não tem lugar na

sociedade e traduz-se pela inevitabilidade de sua morte pela Mazorca. O universo

de Belgrano é partilhado por Amalia, por outras intransigentes mulheres unitárias,

por Pedro, criado de Amalia, que servira no exército no período da independência.

A esse universo opõem-se de forma irreconciliável, o pertencente a Rosas e

seus colaboradores, composto por um leque de personagens, desde a ferrenha

federal e sua cunhada María Josefa Ezcurra, os homens sem escrúpulos da

Mazorca, as negras delatoras, serviçais nas casas unitárias até sua filha Manuela,

construída como sua vítima. É, ainda, relevante na composição da Buenos Aires

rosista, a personagem Cândido Rodríguez, professor primário de Daniel e Eduardo.

Sem qualquer convicção política, importa-lhe apenas manter-se vivo.

Somente uma personagem transita nos dois universos, graças a suas

engenhosas artimanhas ─ Daniel Bello. Filho de um federalista, dono de terras, por

sua educação e refinamento, aproximava-se dos unitários. Daniel personifica o

pensamento da Joven Argentina, a quem pertence o futuro da nação e busca uma

pátria livre do poder de Rosas:

41 Esteban Echeverría, em “Palavras simbólicas” destaca a associação como a primeira condição de

civilização e progresso. Também Sarmiento, em Facundo, aponta a necessidade de viver em comunidade, representada pela cidade, como condição para a civilização.

Por primera vez de su vida, Daniel sintió cierta timidez en su espíritu, (…) al ver entrar en la sala del señor Martigni, uno en todos los grandes acontecimientos ocurridos en la Republica desde 1821 hasta 1829, y el otro en los sucesos tan serios de la actualidad; el uno un hombre de Estado, el otro, como literato; el uno una encarnación viva del partido unitario; el otro, término medio entre el partido unitario y la nueva generación, que ni era federal ni unitaria, y á la que Daniel pertenecía por su edad y por su principios. (Tomo II, p.85) (o grifo é meu)

A conduta de Bello permite que Eduardo Belgrano permaneça protegido, fiel

e incorruptível dentro do universo unitário até sua morte.

Na cena final que corresponde à noite em que Eduardo e Amalia se casam,

a invasão da Mazorca é apenas interrompida pela chegada do pai de Bello, gritando

─ Alto, alto, en nombre del Restaurador! ─ , o que não impede a morte de Eduardo e

Pedro. A morte de Eduardo já antecipada por ter sobrevivido à repressão de Rosas,

no momento de sua tentativa de fuga para o exílio, representa a impossibilidade de

sua convivência com a barbárie rosista, proposta pelo pensamento político do

momento. O federalista pai de Daniel, que não partilha da violência que move a

polícia rosista e Daniel que, embora ferido pela Mazorca, sobrevive, representam

uma Argentina sem divisões, que tem como um obstáculo a tirania de Juan Manuel

de Rosas ─ el inimigo á quién hay que combatir (Tomo I, p. 11).

Nesse contexto, a barbárie fica restrita ao reduto rosista, com seus métodos

completamente reprováveis e contrasta com uma civilização, não intransigente como

a de Eduardo, mas personificada em Daniel, inspirada em “Palavras Simbólicas” de

Echeverría.

É na obra Facundo42, de Sarmiento, publicada em 1845, que está a mais

consistente e sistemática apresentação da questão civilização-barbárie. Seu

protagonista é o caudilho riojano Facundo Quiroga, apresentado por Sarmiento

como a semente que gerará Juan Manuel de Rosas, ambos personificações da

inevitável barbárie argentina a ser combatida pela civilização, inspirada na Europa e

Estados Unidos.

42 SARMIENTO, D. F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colegio, 1933.

Obra de caracterização difícil, quanto ao gênero, formalmente organizada

através de uma série de perguntas que são feitas ao longo do texto, às quais o autor

vai respondendo segundo suas convicções, pode ser lida como uma tentativa de

compreender a complexidade do povo argentino. O texto culmina definindo uma

imagem da Argentina, prefigurada no chamado nuevo gobierno, regido pela

civilização, em oposição ao governo bárbaro de Rosas. Nessa medida, Facundo reflete o inevitável presente, mas projeta-se para um futuro ao que diz estar

destinada, também inevitavelmente, a nação argentina ─ o do triunfo da civilização.

Memorias póstumas del Brigadier General D. José M. Paz é o relato do

general Paz de sua vida de militar íntegro, dedicada inteiramente a sua pátria, desde

que jovem ingressou no exército. Memorias foi escrita, em duas etapas: em Buenos

Aires, logo de deixar a prisão de Luján e no Rio de Janeiro, em 1848. Nela, além da

narração de inúmeras batalhas, há relatos da crueldade dos métodos empregados

na campanha na execução dos inimigos e da indiferença com que as pessoas que

pertenecían a una clase más distinguida viam essa barbárie.

Paz também estabelece um paralelo entre López, que o manteve prisioneiro,

em Santa Fé, e Rosas. Ele destaca em Rosas o gesto de enviar-lhe livros, quando

esteve preso. Embora para Paz, López e Rosas sejam tiranos e indiferentes aos

infortúnios da humanidade, Rosas age em grandes proporções. Também, apesar de

querer que o tomem por culto, Rosas deixa claro que as formas de civilização não

são um entrave para ele. Ademais, Paz admite que Rosas quer o progresso, mas a

seu modo, que a Paz representa um retrocesso em muitos sentidos. Paz refere,

ainda, que Rosas escribe mucho e dá grande valor ao trabalho de gabinete e que,

ao contrário de López, não aspirou às glórias militares.

Essa descrição de Rosas ecoa nas reflexões da personagem Paz, de Ese

manco Paz. Também a insuportável incerteza, quanto a seu futuro, que impregna,

em Memorias, sua narração minuciosa dos anos de prisão está subjacente nos

parágrafos iniciais de Ese manco Paz, que se tecem num cruzamento entre o El

matadero, de Echeverría e “El milagro secreto”, de Jorge Luis Borges.

Uma vez que a memória das personagens em En esta dulce tierra, La

revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz, que reconstrói o

passado, evoca numa relação intertextual as obras decimonônicas, a leitura desses

romances obrigatoriamente envolve a concepção de civilização vs barbárie

construída pela literatura do século XIX.

Uma vez que na obra de Jorge Luis Borges identifica-se uma re(criação) do

século XIX argentino, gesto que aproxima Rivera de Borges, parece pertinente

estabelecer um contraste entre os dois autores, quanto à construção literária da

concepção civilização e barbárie. Ademais, caberia se perguntar se é possível

identificar também uma aproximação em relação aos procedimentos narrativos na

construção do universo diegético de En esta dulce tierra, La revolución es un sueño

eterno, El farmer e Ese manco Paz.

Civilização vs Barbárie no universo borgesiano

Jorge Luis Borges, em sua conferência “El escritor argentino y la tradición”,

proferida em 1953 no Colegio Libre de Estudios Superiores, de Buenos Aires43,

apresenta sua refutação às proposições de que la tradición literaria argentina ya

existe en la poesía gauchesca, de que una literatura debe definirse por los rasgos

diferenciales del país que la produce, de que hay una tradición (...) y que esa

tradición es la literatura española e de que os argentinos estão desvinculados del

pasado; que ha habido una solución de continuidad entre a Argentina e a Europa. E,

concluindo, reivindica:

debemos pensar que nuestro patrimonio es el universo; ensayar todos los temas, y no podemos concretarnos a lo argentino para ser argentinos: porque o ser argentino es una fatalidad y en ese caso lo seremos de cualquier modo, o ser argentino es una mera afectación, una máscara.44 [o grifo é meu]

Essa declaração focaliza, na literatura, a expressão de que se vale

Echeverría, em “Palavras simbólicas”:

43 Esse ensaio foi publicado em Sur em ene.feb. 1955 e incluído na edição de 1957 de Discusión.

HELFT, N. Jorge Luis Borges: bibliografia completa. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1997.

44 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Discusión, p. 273-274.

La sociedad es un hecho estampado en las páginas de la historia, y condición necesaria que a Providencia impuso al hombre para el libre ejercicio y pleno desarrollo de sus facultades, al darle por patrimonio el Universo. 45[o grifo é meu]

Valendo-se da autoridade de uma das figuras mais representativas da

geração de 37, as quais fundaram simbolicamente a nação, Borges, com sua

solución para a relação do escritor argentino e a tradição, ao mesmo tempo em que

responde ao exacerbado nacionalismo do momento histórico que vivia a Argentina,

reedita o gesto fundador.

Essa perspectiva pode ser identificada na reconstrução borgesiana do

século XIX argentino. Momentos iniciais da história nacional singularizados num

novo contexto, fazem com que o contraste civilização-barbárie assuma uma feição

borgesiana própria, fruto do duplo diálogo que estabelece com os textos clássicos

decimonônicos e com seu próprio tempo e, ainda, de um caráter de fundação ─ a

tentativa de traçar uma mitologia.

Em Borges, há uma cautiva, mas ela já não é a de Echeverría, na medida de

sua opção pelo deserto; há um Martín Fierro, porém una pelea más allá del poema46

afasta-o de seu criador José Hernández. Pertencem à história as lutas

decimonônicas argentinas, mas elas integram o universo borgesiano através de

alguns de seus ancestrais que, movidos pela coragem e por um destino bárbaro,

morrem honrosamente em batalhas reais e fictícias. De algumas personagens

históricas como Facundo Quiroga, ficcionalizado por Sarmiento ou Juan Manuel de

Rosas, por Sarmiento e José Mármol, sobrevivem em Borges apenas alguns

momentos privilegiados, como o destino do unitário Pedro Salvadores ou o encontro

de Facundo com a morte e um diálogo definitivo com Rosas.

Dos cruzamentos com construção literária da disjuntiva civilização e barbárie

decimonônica e borgesiana emerge em En esta dulce tierra, La revolución es un

sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz uma extremamente eloqüente e singular

concepção de civilização e barbárie, subjacente à recuperação íntima, reflexiva,

45 ECHEVERRÍA, E. Obras escogidas. Caracas: Ayacucho, 1991, P. 219-220. 46 BORGES, J. L. GUERRERO, M. El “Martín Fierro”. Madrid: Alianza, 1983, p. 81.

questionadora de fragmentos da história argentina do século XIX, pelas

personagens Castelli, Rosas, Paz, e pelo que restou da história de Cufré.

O objetivo desta tese é a análise das obras En esta dulce tierra, La

revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz, focada na identificação e

descrição de uma concepção de civilização e barbárie em Rivera, em sua

singularidade, à luz dos textos decimonônicos e de textos borgesianos, que permita

uma leitura de sua obra, não vinculada ao processo de terror vivido pela Argentina,

no século XX.

1 CIVILIZAÇÃO vs BARBÁRIE EM ANDRÉS RIVERA: uma leitura

1.1 EN ESTA DULCE TIERRA: memórias de um futuro (im)possível

En esta dulce tierra é um romance que narra, segundo as palavras do

narrador, o que perdurou da história da personagem Gregório Cufré, médico

argentino, formado na França, que volta a sua pátria, durante o período do governo

de Juan Manuel de Rosas.

A narrativa é introduzida por duas epígrafes. A primeira é do Almirante Jorge

Isaac Anaya (membro da Junta de Gobierno, sob a presidência de Leopoldo Galtieri,

durante a ditadura militar argentina47) ─ No sé qué es lo que ocurre en este país,

pero todo el mundo transmite todo”. A segunda, de Karl Marx ─ El misterio es

perturbador. A primeira epígrafe é sugestiva da atmosfera de delação da Buenos

Aires rosista de En esta dulce tierra, a partir do presente da ditadura militar. O jogo

temporal presente e passado, que a epígrafe propõe, aparecerá em outros

momentos do texto. A segunda epígrafe antecipa o inesperado do incerto destino de

Cufré.48

47 KOHAN, M. “Historia y Literatura: la verdad de la narración”. In: DRUCAROFF, E. (directora del

volumen). Historia crítica de la literatura argentina. V.11. La narración gana la partida. Buenos Aires: Emecé, 2000. p. 249.

48 Martín Kohan vê, no cruzamento das epígrafes, uma evidência da projeção do rosismo para o presente da escritura: Los términos con los que Rivera caracteriza al absolutismo rosista pretenden proyectarse en el futuro hasta tocar al presente de la escritura, como se evidencia ya en el cruce que proponen los epígrafes de la novela.

KOHAN, M. “Historia y Literatura: la verdad de la narración”. In: DRUCAROFF, E. (directora del volumen). Historia crítica de la literatura argentina. V11. La narración gana la partida. Buenos Aires: Emecé, 2000. p. 249.

O romance organiza-se em quatro capítulos: “Anuncios”, “Puertas”, “Isabel” e

“Pistas”. “Anuncios” inclui a notícia da morte de Manuel Vicente Maza e a lembrança

de Cufré de sua decisão de voltar a Argentina. “Puertas” refere-se às portas que se

fecham e abrem para o protagonista, quando perseguido pelo Governo de Rosas.

“Isabel” corresponde ao longo período em que Cufré permaneceu escondido num

subterrâneo, na casa de Isabel Starkey e a narração da personagem de sua rotina

em um “hospital”. “Pistas” apresenta as versões do destino de Cufré.

Na narrativa de En esta dulce tierra podem ser identificados dois momentos

decisivos para a personagem Cufré: o primeiro resulta em seu cativeiro e o segundo,

em seu misterioso e incerto destino.

1.1.1 O cativeiro de Cufré

O assassinato de Manuel Vicente Maza ─ El viejo Manuel Maza, presidente

de la Sala de Representantes y el colaborador más incondicional que Rosas haya

tenido nunca49 (p. 16) ─, cujo anúncio a Cufré é feito por um homem, caracterizado

apenas como hombre pequeño y delgado, abre o texto ─ Mataron a Maza, jadeó el

49 O episódio da morte de Vicente Maza é narrado em Facundo, de Sarmiento, como segue:

El doctor don Vicente Maza, presidente de la Sala y de la Cámara de Justicia, consejero de Rosas, y el que más ha contribuido a elevarlo, ve un día que su retrato ha sido quitado de la sala del Tribunal por un destacamento de la Mazorca; en la noche rompen los vidrios de las ventanas de su casa donde ha ido asilarse; al día siguiente escribe a Rosas, en otro tiempo su protegido, su ahijado político, mostrándole la extrañeza de aquellos procedimientos, y su inocencia de todo crimen. A la noche del tercer día se dirige a la Sala, y estaba dictando al escribiente su renuncia cuando el cuchillo que corta su garganta interrumpe el dictado. Los representantes empiezan a llegar, la alfombra está cubierta de sangre, el cadáver del presidente yace tendido aún; el señor Irigoyen propone que al día siguiente se reúna el mayor número posible de rodados para acompañar debidamente al cementerio a la ilustre víctima. Don Baldomero García dice: “Me parece bien, pero… no muchos coches… ¿para qué?” Entra el general Guido, y le comunican la idea, a que contesta, clavándoles unos ojos tamaños, y mirándolos de hito en hito: “¿coches? ¿acompañamiento? Que traigan el carro de la policía y se lo lleven ahora mismo”. “Eso decía yo, continúa García, ¿para qué coches?...” La Gaceta del día siguiente anunció que los impíos unitarios habían asesinado a Maza. Un gobernador del interior decía aterrado al saber esta catástrofe: “Es imposible que sea Rosas el que lo ha hecho matar”. A lo que su secretario añadió: “Y si él lo ha hecho, razón ha de haber tenido”, en lo que convinieron todos los circunstantes.

Efectivamente, razón tenía. Su hijo, el coronel Maza tenía tramada una conspiración en que entraba todo el ejército; después, Rosas decía que había muerto al anciano padre para no darle el pesar de ver morir a su querido hijo.

SARMIENTO, Domingo F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colegio, 1933, p. 303-304. Também nas obras Amália, de Mármol e em Memorias Póstumas del Brigadier General D. José M. Paz, do general Paz está esse episódio.

hombre pequeño y delgado. (p. 13) A narrativa pontualmente marcada por esse

episódio histórico coloca, imediatamente, o leitor na Buenos Aires de Rosas, no dia

27 de junho de 1839.

Um ambiente de total insegurança para Cufré, como opositor de Rosas, que

esse anúncio determina, pode ser identificado, no texto, pelo relato do hombre

pequeño y delgado, que o narrador qualifica como execrable quimera (p.16); por sua

reação, descrita com os verbos jadear, gemir, susurrar, gargarear; por deixar-se cair

no sofá; por sua recusa em permanecer na casa de Cufré, por julgá-la insegura e

por sua queixa que encerra o capítulo “Anúncios”: Estamos perdidos, Cufré, Rosas

nos matará a todos (p. 28). Também o reconhecimento da loucura, palabra

imprecisa e que deriva de lo que el hombre ignora de si (p.14), que Cufré

presenciara no Hospício de Charenton e reconhece na reação do hombre pequeño y

delgado, denuncia o difícil momento que vive a personagem:

en el asilo, (...), Cufré creyó tocar la vertiginosa y hedionda entraña de la degradación humana. Allí vio esas máscaras que un vago horror barniza de plomo; ………………………………………………………………………………………... Allí oyó el idioma de seres que traspusieron una frontera que nadie trazó (…) Allí vio al hombre pequeño y delgado y no lo reconoció. Tuvo que regresar a un puerto que los corsarios omitían, tuvo que abrir la puerta de su casa y oír cómo un campanero arrancaba del bronce las notas más dichosas del Ángelus, tuvo que avivar la llama de una lámpara y remover los carbones de un brasero para recordar al hombre pequeño y delgado, para saber que el asilo ─ guarde lo que guarde el asilo ─ es un espacio delimitado por muros y rejas y puestos de guardia, pero que la imagen de la locura es innumerable y no tiene rejas ni muros ni puestos de guardia, y que su cara es una y también innumerable. (p. 15)

Ainda o uso da palavra derrota, para o relato do hombre pequeño y delgado;

a referência à visita do protagonista ao general Paz, inimigo de Rosas, que leva

Cufré a uma reflexão sobre a história ─ es, supuso, un juego de azar que ofrece

revanchas que nunca superan el esplendor de la primera apuesta (p. 18) ─ reforçam

a gravidade da situação em que se encontra a personagem.

Também espelha essa gravidade, a descrição de Buenos Aires. O ambiente

da Buenos Aires rosista é apontada pelo professor Girard como tierra que sometía a

sus hijos a ritos horripilantes y a padecimientos que rechazaría el más envilecido de

los siervos del zar. (p. 23). Cufré a associa a puertas y bocas selladas, al ronco

estertor de los mutilados y a la enfermiza sensualidad de los verdugos (p.19-20). Da

mesma forma, a ironia na descrição da chuva sobre os homens da Mazorca é

indicativa da atmosfera de ameaça:

Oyeron caer la lluvia sobre las calles de Buenos Aires, (…) sobre los ponchos de los serenos y su incorruptible desvelo que cantaba a la patria redimida de las insidias del desorden y a la gloria perfecta de la Restauración. (p. 16)

Com o perigo que o espreita, Cufré vê-se obrigado a buscar onde esconder-

se. Uma porta possível fecha-se ─ ele assiste o Coronel Sixto Toledo, cuja casa

buscava, ser degolado pela Mazorca (Cufré, em sua fuga, mata um de seus

membros). Cufré, então, procura a casa de sua amante no passado. Isabel Starkey,

que o despreza, abriga-o e ele passa a viver num porão, onde la noche sería noche

y el día sería noche (p. 68), tendo, em Isabel, seu único elo com o mundo exterior.

Lá permanece, pelo menos, até a queda de Rosas.

A personagem protagonista Gregório Cufré é construída, nesse primeiro

momento, pela descrição do narrador ─ narrador heterodiegético, segundo a

tipologia proposta por Gerard Genette, situado ulteriormente em relação à narração

─, pela caracterização de Pierre Girard, seu mestre na França e pelo diálogo entre

Cufré e Girard e entre Cufré e o hombre pequeño y delgado.

Cufré é descrito como um médico argentino, nem unitário, nem federal, leitor

de Saint-Simon, que estudara na França, onde freqüentou o hospício de Charenton

e foi aluno de um professor Girard, cujos juízos acerca do tratamento dos pacientes

destoava de seus contemporâneos europeus ─ juicios acerca de la sanidad militar,

las mortificaciones que se inferían, en los hospitales, a indigentes y desvalidos, y la

unidad del cuerpo y el alma, no dejaban de provocar zozobra y desdén en los

círculos académicos de Europa. (p.13-14).

A participação de Pierre Girard na vitória da França revolucionária sobre

uma coalizão européia, em Valmy, em 20 de setembro de 1792 e sua descrição

como um anciano melancólico e incrédulo (p. 23) que, como pocos, dominaba el

idioma del sufrimiento (p. 24) contamina a caracterização da personagem Cufré,

dando sentido a sua volta a Argentina rosista.

Do diálogo entre Cufré e o seu professor, lembrado pela personagem,

quando recebe a notícia da morte de Maza, emergem dois Cufré. O que quizá fuese

su sombra, na qual flui a desdicha, fala dos argentinos, transcrevendo palavras da

carta de um amigo ─ Deportación, patíbulo y olvido. Eso le dio la patria en pago de

sus servicios; ─; menciona um imprudente que deseaba vivir en un país donde el

menor agravio hecho a la libertad de un ciudadano resintiera a todos y a cada uno.

(p. 24); justifica sua volta à Argentina, num momento tão difícil de sua história,

definindo-se como argentino ─ La sombra que quizá fuese Cufré reincidió en una

definición que la soberbia y la muerte no termina de escarnecer; Soy argentino,

señor.

Cufré, ele próprio, no su sombra, ni la desdicha que fluía de lo que quizá

fuese su sombra vê a boca de seu mestre como un pozo de peste quando ele lhe

pergunta: ¿Argentino?, preguntó, sigiloso, el anciano melancólico. ¿A qué se refiere

usted, amigo mío, cuando dice soy argentino? ¿A una particular categoría de

suicidas? e declara: ¿Peleó contra toda esperanza, señor? Eso es, hoy ser

argentino. (p.25) Essas palavras de Cufré, ele próprio, não sua sombra, são

compreendidas, não pelo cirurgião, mas pelo republicano de Valmy e o professor

Girard entrega a Cufré uma caixa com duas pistolas, dizendo: Son, mi querido Cufré,

los instrumentos más aptos que conozco para acabar con uno, cuando uno sabe que

todo está acabado. (p. 26)

Essa relação dicotômica entre o eu e a sombra do eu, na qual flui a desdita,

o infortúnio, parece apontar para as versões do destino de Cufré, que povoa a

memória de outras personagens. Cufré lutaria entre homens duros e violentos ou

entre os índios, mesmo que sua luta seja infrutífera; em contraste, a sombra de

Cufré, irremediavelmente impregnada pela desventura, retornaria ao cativeiro.

O reconhecimento de Cufré de uma das faces da loucura no hombre

pequeño y delgado sugere uma antecipação de sua própria face, quando, no

confinamento em casa de Isabel, se vai esvanecendo a consciência de sua própria

realidade ─ a personagem é referida como lo que de él quedaba (p. 78-79) ou lo que

aún era Cufré (p. 79) ─, e que culmina quando ele recebe a notícia sobre a derrota

de Rosas em Caseros (1852), que abre o segundo momento decisivo da narrativa.

1.1.2 O(s) destino(s) de Cufré

A queda de Rosas, que se esperaria, representasse para Cufré a volta à

superfície e à vida, é inicialmente recebida por ele pela voz do próprio Rosas, que a

personagem julga ouvir, vinda da superfície, e que significa ver aproximar-se sua

libertação:

lo que aún era Cufré oyó a Su Excelencia, desde algún lugar, en que la noche no menoscaba sus miedos de hombre, preguntarse pero dónde voy, si ya son las cinco de la mañana, si ya no puedo más. Su Excelencia, que también es un hombre, dice, allá arriba, donde la noche quizá sea un acaecer previsto y remediable, no puedo más. El hombre que palpita detrás del uniforme de Su Excelencia se pregunta dónde voy. Lo que aún era Cufré rió, despierto o dormido, como el náufrago que ve acercarse la proa que lo rescatará de los maleficios de la soledad. (p. 86-87) (grifado na obra)

Em seguida, Isabel lhe relata Caseros como uma vitória de Rosas: la voz de

la señora Isabel sonó debajo del trueno. Los ejércitos de Su Excelencia ─ dijo la voz

de la señora Isabel en los intersticios del trueno ─ acaban de vencer a la tropa

brasilera, uruguaya y entrerriana del descastado Urquiza (p.87). A ambigüidade

quanto ao desfecho de Caseros poderia sugerir a falta de certezas sobre a vida da

personagem com a queda de Rosas, ou ainda, a indiferença, em sua opção pela

volta ao cativeiro, no dia em que Sarmiento sobe ao poder.

Como reação a esse anúncio, pela voz de Isabel, Cufré tenta o suicídio,

clímax da obra. Ele utiliza a pistola que fora presente de seu professor francês para

que Cufré a utilizasse quando tudo estivesse acabado. Cufré não disparara a arma,

cuando aún había viento, cielo y miedo y coraje para regalar (p. 89). Embora a arma

não tenha funcionado, deteriorada pelo tempo, sua atitude parece convencer-lhe de

que estava louco, uma vez que associa a loucura à desistência da luta contra o

destino:

Apretó, una vez más, con calma, con cuidado, con aplicación, el gatillo de la pistola. Como si soñara, apretó el gatillo de la pistola. Se rió, despierto. Arrojó, lejos de sí, el arma, y los mecanismos del arma, vencidos por el óxido, la bala y la pólvora roídos por la humedad, y el acero inútil, rebotaron en la noche de ese lugar, fuese lo que fuera ese lugar. Y se rió. Y pensó, despierto, que los hombres de Badía, no fallaron en el pronóstico: estaba loco. Los locos son los que dicen no puedo más al destino. (p.89-90)

O fato de que, nesse momento da narrativa, a personagem seja referida

como Cufré, no lo que aún era Cufré (p.88), somado à aproximação que Cufré faz

entre essa atitude e a loucura, como abandono da luta, reforça a possibilidade de

pensar o eu em Cufré, não sua sombra, como a resistência ao destino adverso,

mesmo contra toda a esperança.

Após a narração do frustrado apertar do gatinho de Cufré, bruscamente, o

espaço muda. Já não é mais o porão da casa de Isabel, mas um “hospital” ─ uso la

palabra hospital, imprecisa y brusca, para conjurar una presencia y no su indefinida

misión (p.91). Nele, é descrita uma rotina, que envolve três leitos, identificados pelos

números trinta e um a trinta três e, a voz que narra, é o trinta e dois, supostamente

Cufré.

Até esse momento, a narrativa em En esta dulce tierra é urdida por um

narrador que se situa exterior e ulterior ao universo diegético, cuja voz surge,

explicitamente, em vários momentos ─ intrusões do narrador ─, ora revelando um

privilegiado conhecimento posterior sobre o presente da história, ora proferindo um

comentário sobre ações e reflexões das personagens. A manifestação da

subjetividade do narrador, que antecede à apreensão do relato do hombre pequeño

y delgado sobre a morte de Maza, por Cufré, expressa um conhecimento do que foi

o futuro do presente narrado, ainda vedado às personagens:

El relato de una derrota es, siempre, una suma de divagaciones atroces y estupor, a la que el relator acosa con las morbosidades del suplicio. De la execrable quimera narrada por el hombre pequeño y delgado ─ que llegó a nuestros días reconstruida por infatigables y púdicos caballeros que describen al pasado limpio de la avidez de los patrones de tierras, vacas, esclavos, bancos, asesinos, orfelinatos, comercios y lupanares, y habitado por limpios y pulcros guerreros (que jamás traficaron una derrota o una victoria) y más limpio aún de las imprecaciones y los odiosos excesos de la multitud ─. (p. 16) (o grifo é meu)

O comentário do narrador sobre a depuração que sofre a história que chega

ao presente também parece ter repercussões no futuro da personagem, na medida

em que essa depuração está implícita na leitura, feita por Cufré, no capítulo final, de

uma nota publicada no jornal que anuncia a subida de Sarmiento ao poder:

La nota mencionaba gestas, profusos héroes homéricos, hazañas, retiradas honrosas, acuerdos fraternos, la vibración de clarinetes y tambores, el centelleo de las espadas, las proezas de los arados. La nota ensalzaba el desprendimiento vocacional del más prolífero propietario de tierras (…), y la ponderación y equilibrio del presidente electo. (p. 121)

A ação seguinte da personagem é seu retorno ao cativeiro e esse retorno o

justifica: La segunda versión quiere que Cufré, el puro entre los dientes, no necesitó

ir hasta el espejo lejano para que le dijese quién era él. Y quién iba a ser. Inmóvil en

el diván, vio apagarse la luz que entraba por la ventana. Se puso de pie. Caminó

hacia la puerta del sótano50 (p. 122).

Também é exemplar dessa presença do narrador, a referência à obra

Facundo, de Sarmiento: (Pero ni Facundo ni la sombra que enmudeció a Facundo,

previeron que la escritura de un loco los arrancaría del olvido, y los convertiría en

cifra del destino. Tampoco Cufré...) (p. 20)

Outra intrusão do narrador é sua indagação que segue o segmento em que

a personagem Cufré localiza no tempo ─ 27 de junho de 1839 ─ o dia do

assassinato de Maza:

(Cufré detuvo, largamente, la mirada en el almanaque. Leyó un número: 27. Leyó una palabra: junio. Leyó un número: 1839. ¿Recordaría, alguna vez, la fatal necesidad del hombre de fechar el tiempo; la insensatez de oponer una efusiva cronología al tiempo; de medir lo que no se mide; de fraccionar el tiempo que es anterior a todas las muertes del hombre; de detenerlo para que, a partir de una cifra, se pueda rehacer la vida, el destino, los sueños?) (p.16-17)

A personagem volta a ler uma data, na segunda versão de seu destino,

quando no jornal há a notícia da subida ao poder de Domingo Faustino Sarmiento ─

50 Nessa frase final ecoa o parágrafo que encerra o conto Sur, de Borges, quando a personagem

Dahlmann caminha para o duelo que sabe não será vencedor: Dahlmann empuña con firmeza el cuchillo, que acaso no sabrá manejar, y sale a la llanura.

BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Ficciones. p. 530.

Leyó, (...) un número: 12. Leyó una palabra: Octubre. Leyó, otro número: 1868.

(p.121) Embora, nesse fragmento, não haja nenhuma interferência direta do

narrador, sua reflexão sobre o tempo, da primeira passagem, contamina a segunda,

o que qualificaria a volta da personagem ao cativeiro, como uma atitude “sensata”.

Nessa perspectiva, tudo se passa como se esse momento correspondesse a alguna

vez da pergunta que formulara o narrador.

Quando inicia o relato da rotina do “hospital”, a narrativa que era

heterodiegética e ulterior, passa a ser autodiegética, segundo a tipologia proposta

por Genette, e simultânea, ou seja, uma narrativa no presente que ocorre ao mesmo

tempo da ação, tendo, como narrador, o próprio protagonista ─ a personagem Cufré.

O fragmento abre, questionando sua possível loucura: ¿Un loco? ¿O algo más que

un loco? ¿O hay algo que soy, que el loco no es? Voy a hablar de lo que soy, y lo

que diga será lo último que ustedes oirán de mi boca. Diré lo indispensable para que

sepan quién soy. (p.90)

Se a escolha desse narrador levaria ao conhecimento mais profundo da

interioridade da personagem, o seu discurso frustra essa possibilidade, na medida

de sua opacidade, já que o fragmento e o capítulo concluem com:

La ronda nocturna de hombres que visten túnicas blancas pasa delante de la cama 31, de la mía, y de la cama 33. Uno de los hombres que viste túnica blanca se vuelve al llegar a la puerta de la habitación, pálido, y como agazapado. Y me habla. (…) y me repite las mismas palabras que le oí desde que me alojaron aquí, desde que me adjudicaron el número 32. Me dice: Usted, ¿qué escribe? Y lo que le digo a él es lo último que le digo a él y a ustedes. Le digo a él y les digo a ustedes: Nada sabrá nunca qué escribo: soy el prontuariante de Dios. (p. 91-92)

A instância narrativa e a perspectiva que, nesse fragmento, pertence à

personagem Cufré desaparecem do discurso narrativo. Entretanto, o fato de Cufré,

que conhecia intimamente a loucura, por ter freqüentado o Hospício de Charenton,

ter se perguntado se era mais que um louco ou se havia algo em si que o louco não

tinha, abre outras possibilidades para a personagem, que serão preenchidas pelas

versões de seu futuro pós-Caseros.

No capítulo “Pistas”, a narração volta a ser feita pelo narrador

heterodiegético e a perspectiva, que pertencia a Cufré, torna-se variável. Será a

memória de outras personagens que construirá possíveis destinos de Cufré. Esse

deslocamento da perspectiva é antecedido por um esclarecimento do narrador: Dos

versiones reconoce el epílogo de esta historia (p.95)

Segundo Lowenthal, o passado permanece intacto e a sua memória diferirá

sempre dele. A função primeira da memória não é simplesmente a preservação ou o

reflexo das experiências originais vividas. Lembrar o passado implica conhecimentos

ulteriores que autorizam reconstruí-lo constantemente. A recuperação mutável do

passado pela memória permite a delineação e simbolização do mundo que nos

rodeia. Para Lowenthal, também a natureza única e pessoal da memória resulta

numa comunicação imperfeita com o passado, na medida em que a dúvida

acompanha a memória que é privada. Por isso, necessitamos da memória do outro

para confirmar e dar consistência à memória própria.

Em En esta dulce tierra, a diversidade na reconstrução, exclusivamente pela

memória de outras personagens, do passado que envolve o destino de Cufré, cuja

fidedignidade discutível do relato se dá por um jogo entre o que poderia ser

reconhecido como Cufré e as incertezas que povoam os relatos, incertezas que se

estendem-se ao seu próprio nome ─ Cofré o Yofré o Dupré ou ainda, Ruca Nahuel

─, esvazia de consistência e confirmação a memória do supostamente vivido.

A primeira versão é fruto de uma memória que vai sendo filtrada por outras

até que uma versão última é reproduzida pelo narrador, mas os autores primeiros

não são confiáveis. A segunda é introduzida pela seguinte advertência: [segunda

versão] cuya procedencia conviene no divulgar, menos fiable, o de algún modo, más

escandalosa y arbitraria que la primera (p.119). Apesar dessa atmosfera de falta

completa de sustentação, a presença, no texto, destas versões tão inconsistentes

insinua a possível plausibilidade das mesmas. Simultaneamente, ambas são

discutíveis, ambas são fundamentais.

O destino de Cufré, na primeira versão, é fruto da memória de Tuerto Sosa,

cuja cabeza le funciona al revés, desde que supo que su hijo murió en la batalla de

Curupaytí, (p. 98-99). Mas Tuerto Sosa jura, pela memória do filho, não estar

bêbado na manhã, em que sentiu uns olhos cravados em sua cabeça e ouviu o

pedido de compra de um cavalo. Segundo contava, reconheceu neles o perseguido

da Mazorca ─ eran los ojos del hombre que el comandante Silverio Badía, que Dios

tenga en su gloria, se encargó de pintarme apenas despenaron a don Manuel Maza

(p. 98) ─ e se perguntou qué había hecho ese hombre con su cara (p.98). Nessa

versão de Tuerto Sosa, há, ao mesmo tempo, uma aproximação com Cufré e uma

desautorização dessa aproximação, pela falta de lucidez da personagem, autora do

relato.

Também essa primeira versão é construída pela memória de três ou quatro

cidadãos de Buenos Aires que ven lo que quieren ver (p.99); de uma carta de áspera

caligrafía y sintaxis poco ortodoxa do coronel Felipe Varela (p.95); da memória de

um velho fotógrafo Cristián Van Derer que, quando jovem e movido por un ingenuo

anhelo de justicia humana (p. 116), acompanhara os homens duros e violentos do

Coronel Felipe Varela, em sua retirada; e, ainda, dos escritos de cronistas da guerra

ao índio.

Dessa versão, emerge a figura de Dupré, Cofre, Yofré, ou de um blanco de

pelo canoso (p. 118), chamado Ruca Nahuel. Talvez um estrangeiro, um francês,

mas sempre vestindo um sombrero aludo sobre los ojos. Para Tuerto Sosa, uma

cara como frotada por un cepillo de acero, y fofa (p.97). Para Cristián, un brujo de

cara flaca y pálida que tratava a dor alheia com respecto e afecto e palavras que

acalmavam. E, ainda, num Café, ouviram-lhe dizer, num mejor acento porteño: mi

reino por un café. (p.101) As palavras de Ricardo III, da peça homônima de

Shakespeare, também deformando-as, Cufré havia pronunciado no cativeiro ─ mi

reino por un cigarro (p. 69).

Povoada de contradições, mas nas quais há ecos da personagem Cufré, a

primeira versão revela-o participando junto a homens do coronel Felipe Varela que

haviam sido duros, duros y aguantadores y violentos como el hierro y el incendio e

que habían sobrevivido a veinte años de contiendas civiles, (p. 104) e que estavam

em retirada, derrotados, como un montón de andrajos e já não eram nem duros nem

violentos, pois no se es violento e implacable cuando la bandera que se defendió es

pasto de la derrota (p. 116); ou liderando índios na guerra al indio (p. 118).

A segunda versão parte do momento em que Cufré cala ─ en la noche del

lugar en que revelo quién era, calló. (p. 119) Há a descrição de uma rotina de lo que

él dijo que era (p.120), na qual sua curiosidade esvanece até o nada, num ambiente

que parece remeter não ao “hospital”, mas ao cativeiro na casa de Isabel. O

emprego dos termos, como, por exemplo, el goteante ojo amarillo, la noche de ese

lugar, fuese lo que fuera ese lugar atestam essa possibilidade. Cufré transpõe uma

porta, lê num jornal que Sarmiento assumira a presidência do país e volta

espontaneamente para a porta do porão e fecha-a sobre su cabeza, la puerta del

sótano, foso, galería o lo que hubiese debajo de esa puerta.(p. 122)

O contraditório relato da opção do suposto Cufré por juntar-se a homens

derrotados, em retirada, ou sua luta ao lado dos índios desvela o desencanto da

personagem frente à fragilidade da dita civilização. São exemplares os fragmentos,

em que Sarmiento é mencionado, particularmente o que segue:

y presencié [Cristián] los horrores de esa retirada, y oí de boca de los pocos que sobrevivieron a esa retirada, el relato de otras derrotas, el monótono y descarnado relato de otras derrotas, y lo que hicieron y dejaron de hacer los que vencían, azuzados por los furiosos apóstrofes y el arrojo místico de hombres como Sarmiento, que llegaron a creer, por un instante, por un solo instante, que la alucinada fe que depositaban en el futuro ─ un gran día, lo llamó el propio Sarmiento ─ exculparía a todos, a todos y a cada uno de los vencedores, del pecado y la execración. (p. 104)

A volta de Cufré ao porão, fosso ou galeria, no dia da subida ao poder de

Sarmiento, exposta na segunda versão, reforça essa idéia de desencanto. Cufré

reproduziria o desânimo profundo de seu pai, quando viu, na vitória de Ituzaingó,

paradojalmente, la metáfora sangrienta y miserable del fracaso de la Revolución. (p.

34)

Em contraste, o fato de existirem homens que participam dessas lutas,

homens como o ferro e o incêndio, embora já não o fossem, justificam Cufré que

lutou contra toda la esperanza. Seu destino junto a esses homens refletiria sua

imagem na perseguição e fuga da Mazorca, na qual não lhes concederia a covardia

─ Todavía no. Nada había acabado de todo: ni la jerga trastornada de ese tiempo ni

el susurro aun inteligible de la historia (p. 45) ─, e, também, o Cufré jovem, quando

não tinha ainda trinta anos e voltava-se para o futuro:

Cufré (…) tenía menos de treinta años y ponía sus ojos en el porvenir, esa abstracción que, en hombres como él, incita a la conspiración y al combate. Y que sobrevive a la derrota, en hombres como él, con los signos inapelables de la utopía. (p. 61)

A esses homens, cabe-lhes a espera, na forma de lutas infrutíferas ou a

escolha do cativeiro, desse sussurro da história.

Uma atmosfera de dúvida, de afirmações e de correções dessas afirmações,

estão presentes na narrativa de En esta dulce tierra. Há questionáveis versões ─

são muitos os relatos, são relatos de pessoas, cuja sanidade mental é discutível, ou

elas vêem o que querem ver, ou, ainda, são já muito velhos. Há a concomitância de

sonho e realidade que domina, em alguns momentos, as personagens ─ Y Cufré [no

cativeiro], que, dormido, soñó que estaba despierto (p. 74) ou No esa mañana de

verano, si es que no la soñé [Tuerto Sosa] a esa mañana de verano (p. 98). Essa

atmosfera se vê potencializada, ao longo da narrativa, pela excepcionalidade do

tempo da história e pelo uso reiterado da conjectura, do quizá, do acaso.

1.1.3 O tom dubitativo

1.1.3.1 O tempo da história

A narrativa de En esta dulce tierra situa-se no século XIX, e está marcada

por duas datas precisas; 27 de junho de 1839 ─ assassinato de Manuel Maza ─ e 12

de outubro de 1868 ─ subida ao poder de Domingo F. Sarmiento, como presidente

da nação.

Em contraste, há menções extemporâneas ao conto “El milagro secreto”, de

Borges e à obra Ulisses, de James Joyce, contidas em uma carta51, que a

personagem Cufré reconstrói dormido o despierto. Esse jogo temporal poderia

51 Nessa carta, como é detectado pela crítica, ecoam as cartas enviadas do futuro, da obra

Respiración artificial, de Ricardo Piglia.

explicar-se pela possível circunstância de sonho/vigília da personagem Cufré ─

Divago, tal vez. Y, tal vez, fue otro. Y, tal vez, viajo. Pero si viajo nunca sabría

cuánto espacio de la noche absorbió ese viaje, y si el viaje fue azaroso o le deparó

placer, o si descubrió algo que lo que él aun era ignorase (p.79).

Essa presença do futuro no presente da diegese narrada parece reforçar a

aproximação presente e passado, já sugerida na escolha da epígrafe do Almirante

Anaya, na perspectiva de uma ficción calculada, proposta por Mármol, que Luis

Gusmán, em sua leitura de Amália, destaca como o contar a história, más allá de la

historia que cuenta.52 Como uma ficção calculada, também, podem ser pensadas as

intrusões do narrador.

Ainda, se poderia associar essa indefinição à pouca nitidez temporal que

envolve a personagem Cufré, fruto das versões.

1.1.3.2 A dúvida e a conjectura

Ana Maria Barrenechea, em sua obra La expresión de la irrealidad en la obra

de Borges, aponta o uso reiterado da conjectura, do quizá, do acaso na obra de

Borges, como el estilo de la duda y de la conjetura53. Também a Rivera, em En esta

dulce tierra, é possível aplicar as palavras de Barrenechea. As múltiplas

possibilidades para os motivos que levaram a morte do jovem Maza – acaso porque

dudó de su fidelidad a la Federación, acaso porque le tembló la mano y la voz, la

tarde inhóspita de 27 de junio de 1839, cuando se paseó, por los jardines de

Palermo, a la vera de Su Excelencia; acusado acaso de ser cismático. (p. 17); a

reflexão de Cufré sobre a história, introduzida pelo narrador por quizás entrevió la

historia a la flaca luz de un relámpago (p.19) são dois exemplos do uso reiterado da

conjectura na obra.

52 GUSMÁN, L. La ficción calculda. Buenos Aires. Norma, [S.d.]. p. 159. 53 BARRENECHEA, A. M. La expresión de la irrealidad en la obra de Borges: Buenos Aires: Paidós,

1967. p.192.

A própria referência à história de Cufré, narrada em En esta dulce tierra, é

um signo de insegurança, na medida em que ela está sujeita seja ao esquecimento,

seja ao extravio do tempo: Esa historia ─ o lo que perduró.

Como Barrenechea afirma para a obra de Borges, em Rivera, queda tras las

palabras un mundo en el que nada es certero y donde nada ofrece una base en la

cual apoyarse.54 Esse é o mundo de Cufré, depois que ele cala. Entretanto, são as

incertezas que permitem que seja plausível a possibilidade simultânea de sua luta e

de sua indiferença.

O universo diegético de En esta dulce tierra construído por estratégias

narrativas que, em seu conjunto, levam a emergência coerente de uma personagem

a quem é dado uma variada possibilidade de destinos, permite aproximar essa obra

das características, apresentadas por Borges, em sua análise das estratégias

narrativas do romance, em "El arte narrativo y la magia" (1932)55.

Em seu ensaio, Borges privilegia dois procedimentos fundamentais: a busca

da narração verossímil, necessária à suspensão da incredulidade do leitor ─ a fé

literária de Coleridge ─ e o uso de vínculos inevitáveis entre coisas distintas, em

resposta ao que aponta como problema central da novelística, qual seja, a

causalidade. A analogia, contraposta à narrativa realista é definida, pelo autor, como

la primitiva claridad de la magia. Borges distingue a magia imitativa da contagiosa ou

de cercanía anterior e preconiza que o romance deve ser un juego preciso de

vigilancias, ecos y afinidades. Todo episodio, en un cuidadoso relato, es de

proyección ulterior.56

Cinqüenta anos depois, essa concepção de narrativa reaparece no "Prólogo"

de Nueve ensayos dantescos (1982). Referindo-se à eficiência estética da Comédia,

Borges ressalta em Dante la variada y afortunada invención de rasgos precisos, e

que en su libro no hay palabra injustificada57. E, acrescenta:

54 Id., ib. 55 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Discusión, p. 226-232. 56 Id., p. 231. 57 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v.V.3: Nueve ensayos dantescos.

p. 343-344.

La precisión [em Dante] (....) no es un artificio retórico; es afirmación de la probidad, de la plenitud, con que cada incidente del poema ha sido imaginado. (...) La novela de nuestro tiempo sigue con ostentosa prolijidad los procesos mentales. Dante los deja vislumbrar en una intención o en un gesto.58

Nessa perspectiva, a construção do universo diegético de En esta dulce

tierra ─ a personagem cuja definição vai sendo ampliada por várias antecipações de

seu (im)possível futuro; a voz que, ao longo de toda a narrativa, pertence a um

narrador heterodiegético, situado ulteriormente à diegese narrada, e que,

bruscamente, num pequeno, mas crucial fragmento, torna-se autodiegética e

simultânea, embora essa mudança não remova a opacidade do destino da

personagem; o tom dubitativo que reforça a atmosfera de incerteza do destino de

Cufré ─ aponta para a identificação, em En esta dulce tierra, de uma rigorosa

eficiência estética.

1.1.4 Civilização vs barbárie: uma leitura em En esta dulce tierra

Gerard Genette, em sua obra Palimpsestes59, faz um estudo detalhado do

que denomina hipertextualidade, ou seja, todas as relações que unem um texto com

outro preexistente, com exceção do comentário. A hipertextualidade é aproximada à

bricolagem, como a arte de fazer o novo através do velho. No hipertexto, uma nova

função se sobrepõe e se prende à estrutura velha. A dissonância entre os dois

elementos co-presentes dá um novo sabor ao conjunto. A duplicidade do objeto, na

ordem das relações textuais, pode ser representada pelo que Genette caracteriza

como a velha imagem do palimpsesto. Um texto sobrepõe-se ao outro, não para

dissimulá-lo, mas para deixá-lo ser visto por transparência.

En esta dulce tierra sobrepõe-se a três outros textos: El matadero, de

Esteban Echeverría, Amalia, de José Mármol e “Pedro Salvadores”, de Jorge Luis

Borges. Das semelhanças e das dissonâncias entre os elementos que integram

essas obras emerge, em En esta dulce tierra, uma singular concepção de civilização

e barbárie.

58 Id., p. 344. 59 GENETTE, G. Palimpsestes. La littérature au second degré. France: Seuil, 1982.

Os quatro textos reconstituem a ação extremamente cruel e firme do

governo de Rosas contra seus opositores e sua repercussão na vida de indivíduos.

Neles, há a coexistência imiscível de dois campos opostos: o universo do tirano

Rosas, povoado por gente rude, violenta que não poupa seus opositores e um

universo educado, representante da civilização, inspirada na Europa.

Em El matadero, um jovem unitário é morto, em um matadouro, na Semana

Santa; em Amália, a personagem Eduardo Belgrano, neto do general Belgrano, após

uma tentativa frustrada de emigração, em que mata um membro da Mazorca,

esconde-se, mas é caçado implacavelmente e acaba ferido mortalmente. Se, nos

textos El matadero e Amalia, o tempo da história está circunscrito ao período em que

Rosas está no poder, em “Pedro Salvadores”, Caseros representa a esperada

liberdade para a personagem, embora ela já não possa retomar sua vida como antes

─ Fofo y obeso, estaba del color de la cera y no hablaba en voz alta. Nunca le

devolvieron los campos que le habían sido confiscados; creo que murió en la

miseria. (p. 373) Nessa medida, a personagem Cufré se aproximaria de Pedro

Salvadores.

Amália e El matadero constroem as personagens Eduardo Belgrano e o

jovem unitário, respectivamente, como configurações da irreconciliável convivência

entre civilização e barbárie. Amália, no entanto, inclui um elemento novo, na figura

do personagem Daniel, que representa o pensamento expresso nas “Palavras

simbólicas”, de Echeverría, ou seja, a figura do não unitário, nem federal, que vê a

possibilidade de uma convivência associativa, de fraternidade, igualdade,

possibilidade essa impedida pelo tirano que está no poder. Assim, a barbárie está

centrada, não no federalismo (o pai de Daniel é federalista), mas no universo de

Rosas.

Nessa perspectiva, diferente de Belgrano, Daniel projeta uma esperança

futura para a Argentina. Cufré, a semelhança de Daniel, é caracterizado como ni

federal, ni unitario (p.25). Para Daniel a emigração é impensável. Similarmente,

Cufré volta à Argentina.

Se para Daniel a queda de Rosas representaria o caminho aberto para sua

verdadeira face e se Caseros representou para Pedro Salvadores a saída a la luz

del día (p. 373), por que a queda de Rosas, no que sobreviveu da história de Cufré,

trouxe-lhe uma indefinição de seu destino? É na busca de respostas a essa

pergunta que reside a singularidade da questão civilização e barbárie, em En esta

dulce tierra.

A força férrea do governo Rosas sobre seus opositores levou Cufré ao

confinamento. A queda de Rosas ─ a barbárie ─ e, posteriormente, a presença de

Sarmiento no cenário político posterior a Caseros ─ a civilização ─,

surpreendentemente, não o trazem à superfície e à vida.

Se mantivermos a perspectiva dos intelectuais liberais do século XIX, em En

esta dulce tierra, desfaz-se a oposição decimonônica entre civilização e barbárie.

Rosas e Sarmiento seriam duas faces de uma mesma moeda e essa constatação

representaria o trágico em En esta dulce tierra e o adjetivo “dulce” do título, que

poderia representar a Buenos Aires que acolheria Cufré que vem da França, dá

lugar a irônica constatação de que a doçura não está permitida a ela,

independentemente de quem esteja à testa de seu governo.

Em En esta dulce tierra, a barbárie não está só em Rosas, está na

impossibilidade de recomeço. Para homens como Cufré, a barbárie está na

percepção de que ainda não é tempo de viver o ideário representado por ele e

compreendido pelo republicano de Valmy.

En el tiempo real, en la historia, cada vez que un hombre se enfrenta con

diversas alternativas opta por una y elimina y pierde las otras; no así en el ambiguo

tiempo del arte, que se parece al de la esperanza y al del olvido.60 A simultaneidade

de destinos, que a memória abriga, permitida pelo ambíguo tempo da arte, aponta

para a leitura, em En esta dulce tierra, da civilização na busca utópica de ideais de

justiça e convivência pacífica e fraterna, herdeira da revolução de Mayo, e da

barbárie, na impossibilidade de realizá-la.

60 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v.V.3: Nueve ensayos dantescos,

p. 353.

1.2 LA REVOLUCIÓN ES UN SUEÑO ETERNO: a memória de uma carência

La revolución es un sueño eterno é um romance que narra fragmentos da

vida da personagem histórica Juan José Castelli, advogado argentino, que

desempenhou um importante papel na queda do vice-rei, em 1810 e na Campanha

do Alto Peru, como representante da Primeira Junta de Governo61.

Andrés Rivera ficcionaliza Castelli, quando ele se encontra em fase terminal

de um câncer de língua, construindo-o, exclusivamente através do próprio registro

escrito da personagem em um caderno de capas vermelhas, numa habitação sem

janelas. Nesse registro, fragmentária e reflexivamente, Castelli recupera, pela

memória, episódios fundamentais de sua vida pública e privada.

61 A participação de Castelli na ocupação do Alto Peru mereceu do General Paz em suas Memórias

Póstumas, comentários que o desabonam, na medida em que aponta excessos em sua conduta, ofensiva ao inimigo (os excessos de Castelli também estão referidos em En esta dulce tierra) Ademais, ao referir-se a reorganização administrativa que o general Belgrano realizou nas províncias libertadas do Alto Peru, Paz a contrasta com a administração de Castelli:

Todo empezó a tomar un carácter de orden y de moralidad, sumamente honroso al que lo prescribía y altamente útil a aquellos pueblos, al progreso de la causa y al crédito del ejército. Preciso es decirlo francamente, la causa de la revolución, bajo la dirección del General Belgrano, recuperó en la opinión de los pueblos del Perú lo que había perdido en la administración del Sr. Castelli.

PAZ, J. M. Memorias Póstumas del Brigadier General D. José M. Paz. 2 v. V. I. Buenos Aires: Imprenta de la Revista, 1855. p.107.

Halperin Donghi, historiador do século XX, em sua obra Revolución y guerra, ao analisar o malogro

na campanha do Alto Peru, destaca o cumprimento de ordens como subjacente à conduta de Castelli na libertação dos índios:

La hora de buscar culpas y responsabilidades ha llegado y (en un grupo dirigente revolucionario ya hondamente dividido) (…) las halla sobre todo en Juan José Castelli, que ha acompañado a la expedición como representante de la junta, a quien se acusa de imprudencias nacidas de un exceso de celo revolucionario. El 25 de mayo de 1811, Castelli, (…), proclamó concluida la secular servidumbre indígena. Aunque la proclamación no tuvo efectos jurídicos inmediatos (menos de un mes más tarde se producía la pérdida de la zona entera) sirvió sin duda para acrecer la alarma de quienes estaban, sobre todo, preocupados por el futuro del equilibrio social y racial dentro de ella. Pero esa política filoindígena no era una iniciativa personal del delegado; estaba indicada en las instrucciones que la junta le había dirigido. Y, por otra parte, era impuesta por la guerra misma: el ejército que llegó al Alto Perú, (…) necesitaba numerosos auxiliares, que sólo “la indiada” podía proporcionar.

HALPERIN DONGHI, T. Revolución y guerra. Formación de una élite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires: Siglo veintiuno, 1994, p. 250-251.

Segundo Lowenthal, a experiência original vivida é imutável. A função da

memória não é refletir essa experiência, mas reconstruí-la ─ memories are not

ready-made reflections of the past, but eclectic, selective reconstructions based on

subsequent actions and perceptions and on ever-changing codes by which we

delineate, symbolize, and classify the world around us.62 Favorecido pela distância

temporal entre a experiência original e o registro da lembrança do vivido, Castelli

redimensiona, interrogativamente,esses momentos como foram desejados/sonhados

e, realmente vividos, à luz do presente do registro, que é o presente solitário de

derrota física e política. Episódios históricos, pertencentes à memória coletiva ─ as

invasões inglesas, a Revolução de maio, a Campanha do Alto Peru ─ são

relembrados, sob a perspectiva completa e intensamente singular de Castelli.

A recuperação do passado, tendo como fonte a memória da personagem,

não se contrapõe ao discurso historiográfico. A narrativa vai se tecendo por

preenchimento de espaços vazios ─ a visão retrospectiva da personagem remodela

momentos da história, através de uma reflexão perplexa e intensamente pessoal.

Jorge Luis Borges, em sua conferência "Nathaniel Hawthorne", proferida no

Colegio de Estudios Superiores de Buenos Aires, em 1949, e incluída em Otras

inquisiciones (1952), ao referir-se à morte do escritor americano, durante o sono,

sugere a possibilidade de preencher esse sonho com um conto:

Su muerte fue tranquila y fue misteriosa, pues ocurrió en el sueño. Nada nos veda imaginar que murió soñando y hasta podemos inventar la historia que soñaba (...) Algún día, acaso, la escribiré y trataré de rescatar con un cuento aceptable esta deficiente y harta digresiva lección.63

Se Borges não escreveu esse conto, a possibilidade de preenchimento

possível de vazios ele explora, por exemplo, em “El fin”, no qual imagina una pelea

más allá del poema [Martín Fierro] en la que el moreno venga la muerte de su

hermano64. Nessa medida, Rivera aproxima-se de Borges. Em La revolución es um

sueño eterno, Rivera não cria um sonho para Castelli, mas dá-lhe voz para que

expresse uma possível memória reflexiva, íntima da Revolução.

62 LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 210. 63 BORGES, Jorge L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.2: Otras inquisiciones. p. 63. 64 BORGES, Jorge L. Guerrero, Margarita. El “Martín Fierro”. Madrid: Alianza, 1983. p.81.

A narrativa é precedida de duas epígrafes: uma extraída de Del poder al

exilio, de J. D. Perón ─ “Como todos aquellos que en cierto momento de su vida

cambian de camino, me di vuelta a mirar lo que dejaba a mis espaldas. En aquella

atmósfera borrosa de lluvia y de niebla todo parecía irreal” ─, que fala de uma

atmosfera de lluvia y niebla ─ atmosfera que também envolve a La revolución es un

sueño eterno ─ e de voltar-se para o deixado para trás ─ atitude que assume

também a personagem Castelli. A Perón tudo parece irreal. A segunda epígrafe é de

Lenin e refere-se à revolução como o único real possível ─ “Todo es irreal, menos la

Revolución”. O jogo entre o real e o irreal, resultado da aproximação das epígrafes,

é antecipador da marca das reflexões de Castelli, transcritas nos cadernos.

A narrativa está dividida em três partes: Cuaderno I, Cuaderno II e Apéndice.

O Cuaderno I inclui 25 capítulos que poderiam ser divididos em dois blocos

principais. O primeiro engloba o registro retrospectivo de Castelli, quando foi réu no

tribunal, sentado num banco escolar, olhando en el pupitre del banco escolar, una

pila de hojas en blanco, la cara absorta encajada entre las manos abiertas en v

(p.28). Esse registro se faz pela recuperação de sua defesa frente aos juízes, que o

acusam de conduta lasciva, quando ainda falava ─ a quien [Castelli], hoy, todavía,

les habla (p.19), pela lembrança reflexiva do episódio que o fez ser chamado de

orador de la Revolución e pela acusação não formulada verbalmente, mas apenas

pensada, de hipocrisia a seus juízes.

No segundo bloco, Castelli registra o reencontro com seu passado privado e

público, através de sua única saída da habitação sem janelas para visitar a Irene

Orellano Stark, a Segundo Reyes e a mister Abraham Hunguer, visitas que lhe

pesaram como si hubiera tenido que revivir lo que ocurrió hace miles de años (p. 65)

e que foram motivadas pela venda da escrava Belém de propriedade de Irene a

Hunguer. Dois momentos históricos são lembrados por Castelli ─ o período das

invasões inglesas, quando jovem encontrou Martín de Alsaga e, naquele dia, seu

cadáver; a Campanha do Alto Peru e a morte de Santiago de Liniers65, determinada

por Castelli, em nome da Primeira Junta.

65 Santiago Liners, soldado francês a serviço da Espanha e Martín Alzaga, rico mercador espanhol,

haviam participado na resistência de Buenos Aires às invasões inglesas.

Nesses blocos há, entremeados, capítulos que registram o cotidiano

presente de Castelli, no qual ele precisa com detalhe o espaço onde se encontra ─

una habitação sem janelas que tem como único mobiliário uma mesa (em cima dela

o caderno de capas vermelhas, um tinteiro com base de pedra, uma grossa vela que

ilumina o caderno); duas cadeiras, uma de cada lado da mesa (em uma delas

Castelli senta-se); um catre de soldado, tendo nos pés uma manta limpa e dobrada

com cuidado e, na cabeceira, enrolada, una capa azul, que huele a bosta e sangre

(p.25). Entre a manta e a capa um tabuleiro de xadrez, com os reis que parecen muy

altos y muy encorvados, como si hubieran cargado un mundo sobre sus espaldas.

(p.26).

Ainda, desse cotidiano, são registrados os seus pedidos de comida para sua

filha Ângela; sua conversa sobre o prognóstico de sua enfermidade com seu médico

Dr. Cufré, que extrajo plomo y metralla del cuerpo de porteños, negros e indios y, sin

reparar en grados y apellidos (p.40); sua revolta e desafio frente à morte (que

contrastam com o capítulo em que relembra um diálogo mais antigo seu com María

Rosa, em que essa lhe fala da promessa que havia feito a Santa Rita, pedindo sua

cura); e um dos encontros semanais com seu companheiro Monteagudo, que lhe lê

um artigo que havia publicado, motivador de uma reflexão de Castelli sobre a

campanha do Alto Peru. Há, ainda, um pequeno capítulo em que Castelli questiona-

se sobre a derrota da utopia, já antecipada no capítulo que abre o Cuaderno:

¿Qué nos faltó para que la utopía venciera a la realidad? ¿Qué derrotó a la utopía? ¿Por qué, con la suficiencia pedante de los conversos, muchos de los que estuvieron de nuestro lado, en los días de mayo, traicionan la utopía? ¿Escribo de causas o escribo de efectos? ¿Escribo de efectos y no escribo de causas? ¿Escribo de causas y no describo los efectos? Escribo la historia de una carencia, no la carencia de una historia. (p.58)

No Cuaderno II, composto de 12 capítulos, além de seu cotidiano, como no

anterior, estão registradas as reflexões finais de Castelli, quando sua mão já está

trêmula e sua letra é angulosa, frágil, de viejo (p.130). A narração da lembrança de

ações vividas dá lugar, fundamentalmente, a reflexões e perguntas que revelam a

perplexidade de Castelli sobre o destino da Revolução: ¿Qué juramos, el 25 de

mayo de 1810, arrodillados en el piso de ladrillos del Cabildo? (p.147) ¿Qué juré yo,

y a quién, ese 25 de mayo oscuro y ventoso, de rodillas, la mano derecha sobre el

hombro de Saavedra? (p.154).

O caderno inclui, ainda, um inventário sobre seus pouquíssimos bens ─ El

doctor Castelli, declararon los testigos, salió tan pobre como entró al ejército del Alto

Perú (p. 170) ─, no qual está contido o caderno de capas vermelhas, que teriam sido

posteriormente confiados por seu filho a Belém Hunguer. O Cuaderno II encerra com

o parágrafo que justifica todo o registro fragmentário, mas eloqüente que Castelli faz

de sua vida: Entre tantas preguntas sin responder, una será respondida: ¿qué

revolución compensará las penas de los hombres?

O Apéndice, apresentado como um inserto da editora, inclui uma introdução

e a biografia de alguns amigos de Castelli, que reforçam ou redimensionam registros

dos Cuadernos.

O texto abre com uma narração no presente em que o narrador protagonista

Juan José Castelli escreve e questiona-se sobre o escrito. Duas informações sobre

sua vida são registradas: a primeira é sobre o presente: un tumor me pudre la

lengua (...) me asesina con perversa lentitud de un verdugo de pesadilla. (p.15); a

segunda, sobre o passado que o narrador não situa deliberadamente no tempo,

talvez por sua obviedade, talvez pela natureza utópica da revolução, talvez pela

ironia de sua própria condição atual: me llamaron ─ ¿importa cuándo? ─ el orador

de la Revolución.(p. 15)

O narrador volta-se novamente sobre o presente para expressar seu estado

de ânimo: una risa larga y trastornada se enrosca en el vientre de quien fue llamado

el orador de la Revolución (...) mi boca no ríe. La podredumbre prohíbe, a mi boca,

la risa. (p.15) Identifica-se Yo, Juan José Castelli, situa-se no espaço ─ Buenos

Aires ─ e no tempo ─ fim de um dia de chuva de junho, quando chega a noite e o

inverno. O narrador volta a questionar-se sobre o escrito e o capítulo encerra com

Castelli perguntando-se se ainda sabe (se ainda tem lucidez) sobre seu riso, sobre

ser uma noite de junho, sobre a chegada do inverno em Buenos Aires, especificada

por ele, sem qualquer hesitação, como uma cidade que exterminó la utopía pero no

su memoria. (p.15)

A caracterização do tempo como sendo uma noite chuvosa de inverno pode

ser interpretado não apenas como uma metáfora do presente da personagem ─ o

orador da revolução que lentamente morre por um tumor de língua, que o assassina

─, como também uma metáfora do presente da Buenos Aires, em seu aniquilamento

da utopia que sua memória reconstruirá.

No primeiro capítulo, identifica-se a personagem protagonista da narrativa:

Juan José Castelli é el orador de la Revolución, cujo câncer na língua, que o está

matando, lhe impede de manifestar oralmente seus sentimentos, mas não de senti-

los e registrá-los. E, a frase final justifica esse registro ─ sua memória permitir-lhe-á

desvelar o extermínio da utopia, da qual Buenos Aires é a responsável.

1.2.1 Uma alternância na voz narrativa, uma única perspectiva

A narrativa contida nos cadernos é tecida ora explicitamente pela voz do

narrador protagonista Castelli ─ escribo ou Yo que escribí ─, ou seja, uma narrativa

autodiegética, segundo a tipologia proposta por Gérard Genette; ora de forma

apessoal (mais freqüente) ─ uma narrativa heterodiegética (também segundo

Genette) ─ escribe Castelli ou escribirá, esa noche (p. 78).

A alternância entre a pessoalidade e a apessoalidade poderia justificar-se

pelas questões que a personagem se propõe sobre sua identidade, no terceiro

capítulo:

Yo, ¿quién soy? ………………………………………………………………………..……………....¿Qué soy? ¿Un actor que levanta sus ojos de un cuaderno de tapas rojas, y mira la transparente penumbra de una habitación sin ventanas, ………….…………………………………………………………………………… ¿Soy un actor que, mudo, mira, desde el escenario, al público que le contempla, y se ríe? (...) ¿Soy un actor que escribe que se ríe de él y de las vidas que vivió, ………..………….…………………………………………………….…………..…¿Soy un público que contempla a un actor mudo, y que le devuelve, con las simetrías implacables de un espejo, sus representaciones (...) yo, ¿quién soy? (p.25-26) (o grifo é meu)

A construção do narrador que vê a si mesmo como ator ─ el actor que

representa Castelli en el escenario silencioso de una habitación sin ventanas (p. 53)

─ e público ─ silencioso, contempla al actor mudo que representa el papel de

Castelli, en una habitación sin ventanas (p. 53) ─ implica duas atitudes narrativas: o

narrador ora é uma personagem, Castelli─ator, ora é estranho à diegese narrada,

Castelli─público. É exemplar da narração feita por Castelli─ator, o capítulo que abre

o primeiro caderno, já referido anteriormente. A narrativa do Castelli─público, pode

ser exemplificada pelo crucial encontro de Castelli com o vice-rei Cisneros, lembrado

por ele no tribunal:

Deshizo, Castelli, con la displicente y ominosa arrogancia de un orillero, el mazo de barajas españolas que el virrey Cisneros abría, como un abanico, sobre la mesa de juego. (...) Ahí estaban, las barajas españolas, dispersas sobre la mesa de juego, y ahí se levantaba el virrey Cisneros, en esa noche de mayo (p.28-29) (o grifo é meu)

Na narrativa autodiegética de La revolución es un sueño eterno, a exposição

da interioridade da Castelli leva o leitor a um profundo conhecimento dos

sentimentos da personagem. Desde a primeira página, por exemplo, ele sabe da

irônica risa larga y trastornada no ventre de Castelli. Esse conhecimento leva o leitor

a sentir uma intensa empatia com Castelli, no momento em que o riso dá lugar à

lágrima ─ Segundo Reyes miró a Castelli, la cara flaca de Castelli, los ojos

desteñidos en la cara flaca de Castelli (...), las lágrimas que corrían en la cara flaca

de Castelli. (p.108). Também, privilegiadamente, o leitor compartilha as perguntas

que, perplexo, ele se formula ao longo do texto.

Em contraste, nos momentos em que a narrativa é heterodiegética, ou seja,

quando a apessoalidade domina a narrativa, modifica-se o conhecimento do

narrador em relação ao universo diegético, e o íntimo de outras personagens pode

ser desvelado, amplificando, assim, as possibilidades interpretativas. É exemplar

desta estratégia narrativa o episódio em que Castelli encontra-se com o vice-rei

Cisneros. A descrição do que estaria se passando no íntimo do vice-rei tem um

efeito potencializador das reflexões de Castelli:

el virrey Cisneros, en esa noche de mayo, el fuego del hogar a sus espaldas, y sus ojos, en la larga cara rígida, miraron a Castelli. Miraron a Castelli (...); y a esa aldea atolondrada y réproba y pretensiosa en la que languidecía su cuerpo alto y rígido de soldado (...) oyó la voz de un individuo, magro de carnes (...) Y él, Cisneros el soldado que envejecía (...) y que olvidaba, en el sopor letal del exilio, las guerras y las mujeres (...) supo que esa voz (p.28-29) (o grifo é meu)

Apesar dessa alternância na pessoa do relato, a perspectiva narrativa é

constante e única ao longo de todo o texto; o registro é sempre feito pela mão de

Castelli, filtrado pela sua consciência (escribe Castelli). A narrativa é total e

intensamente pessoal. É do jogo desses dois procedimentos narrativos

autodiegético e heterodiegético que a memória de Castelli reconstrói seu papel na

história da Argentina que surge com a independência.

1.2.2 O peculiar tempo da narração

O tempo da narração em relação ao da ação é sempre ulterior ao longo de

toda a narrativa. O olhar retrospectivo do narrador permite, pelo privilégio da

distância temporal, uma avaliação reflexiva do vivido ─ Castelli (...) sabe ahora, que

habló por los que no escucharon, y por los otros, que no conoció, y que murieron por

haberlo escuchado. Castelli sabe, ahora, que el poder no se deshace con un

desplante de orillero. Y que los sueños que omiten la sangre son de inasible belleza.

(p.33).

No momento único da narrativa em que Castelli deixa sua habitação sem

janelas, monta no cavalo sem apuro e visita Irene Orellano Stark, Segundo Reyes e

mister Abraham Hunguer, o registro da ação se fará ulteriormente, à noite, quando

ele retorna ─ escribe Castelli, en un cuaderno de tapas rojas, de regreso a la pieza

sin ventanas. (p. 79). Aparentemente, desaparece a distância temporal entre o

narrado e a ação ─ não se teria o registro do vivido, mas o vivido que se torna

imediatamente registro. Embora Castelli, que escreve à noite, não seja mais o

mesmo que protagonizou a ação, ele agirá como uma testemunha que reconstitui o

discurso, como supostamente foi pronunciado pelas personagens.

Para Lowenthal, uma decorrência da natureza intrinsecamente pessoal da

memória é sua comunicação imperfeita com o passado. A memória do outro

confirma e dá consistência à memória própria. Nessa perspectiva, o registro da

palavra proferida por uma outra voz, potencializa a voz de Castelli. O passado

reconstruído pela transcrição da voz de Segundo Reyes ─ ele lembra quando

galoparam desde Buenos Aires a Córdoba para matar os que se levantaram contra a

Revolução e lembra, também, que él [Reyes] que es un perfecto idiota, creyó en las

palabras del doctor Castelli, como se cree en las palabras del Mesías, (...) y que

creyó en eso de que un hombre libre es igual a otro hombre libre. (p.113-114) ─

torna mais sólido e consistente o discurso de Castelli.

O fato de que tudo se passa, nesse momento da narrativa, como o vivido

que se tornará registro, a fidelidade literal ao discurso do outro parece estar

assegurada. E essa veracidade é dramaticamente exposta pela total mudança na

expressão de Castelli. O riso próprio ou alheio que o acompanha ao longo de quase

toda a narrativa ─ una risa larga y trastornada se enrosca en el vientre de quien fue

llamado el orador de la Revolución (p.15); Cisneros, que olvidaba y sonreía (p.31);

una risa de horror y asco se levantó en el ejército del Alto Perú.(p.37); Monteagudo

sonrió (p.54) ─ desaparece e, em seu lugar, surgem lágrimas ─ Segundo Reyes

miró a Castelli, (...), las lágrimas que corrían en la cara flaca de Castelli (p.108). É

como se na voz de Reyes, Castelli reconhecesse sua própria voz.66

Há ainda, uma organização mais complexa do vivido e do registro do vivido.

No capítulo terceiro do primeiro caderno, a narração da acusação de Castelli a seus

juízes é apenas pensada e só se tornará registro na noite de suas visitas. Assim,

essa narração é introduzida por: Castelli mira las hojas en blanco y escribe, en una

tras otra de las hojas apiladas sobre su pupitre de escolar, con un letra apretada y

aún firme (p.34) e encerrada pelo que segue: Castelli cree escuchar que le

preguntan si tiene algo que agregar al testimonio de los señores Viamonte (...).

Castelli se pone de pie (...), mira la pila de hojas en blanco que yace sobre su

pupitre de escolar, y mueve la cabeza, de izquierda a derecha, la boca muda, para

que se sepa que dice no. (p. 39) (o grifo é meu)

Essa acusação de Castelli que foi pensada, mas não escrita é somente

recuperada para seu registro no caderno na noite da visita a Irene Orellano Stark, a

Segundo Reyes e a mister Abraham Hunguer, momento em que suas lembranças

mais cruciais haviam aflorado: Castelli, que no tiene apuro, escribirá, esa noche, que

66 Essa definição de Castelli pela lágrima irremediavelmente distancia a personagem de Rivera dos

discursos sobre a personagem histórica José Castelli, de Paz e Halperin Donghi, referidos no início do capítulo. É também exemplar dessa definição, o fragmento em que a personagem refere-se à libertação dos índios no Alto Peru: y dijo [Castelli] que el indio es un hombre, igual en derechos y oportunidades, por ser hombre (p.159) (o grifo é meu).

vio a sus jueces orar al Eterno Padre, al Hijo y al Espíritu Santo, y flagelarse,

crucificados, y morder el polvo de una ciudad de piedra, (p.78) É como se Castelli

escolhesse o momento mais significativo para o seu registro.

A aparente oscilação entre os tempos da narração e o da história permite

que o registro de Castelli no caderno de capas vermelhas, embora filtrado

exclusivamente por sua consciência, se enriqueça pela fidelidade à palavra

pronunciada por outras vozes e pela pertinência do momento em que esse registro é

feito. Tudo se passa como se a memória, fundamentalmente individual e mutável se

ampliasse para o coletivo, não deformável, através da reiteração, do reforço pelo

discurso do outro, adquirindo, assim, a solidez de verdade.

1.2.3 A indelével marca da capa

Jorge Luis Borges, em seu ensaio “La postulación de la realidad" (1931),

descreve, entre os modos de postulação clássica da realidade, o que consiste na

invención circunstancial67 ─ lacônicos pormenores de longa projeção ─ e cita, como

exemplo, um fragmento de La gloria de Don Ramiro. Diz Borges: ese aparatoso

caldo de torrezno, que se servía en una sopera con candado para defenderlo de la

voracidad de los pajes, tan insinuativo de la miseria decente, de la retahíla de

criados, del caserón lleno de escaleras y vueltas y de distintas luces.68 (grifado na

obra)

Em La revolución es un sueño eterno, uma invenção circunstancial, como a

descrita por Borges, assume um papel decisivo na compreensão do desencanto de

Castelli, da irremediável perda da inasible belleza dos sonhos. É a caracterização da

capa azul que o envolve nos momentos mais importantes de sua vida. A capa azul

no huele a bosta y sangre (p.28) (o grifo é meu) quando Castelli, representando

seus companheiros, desafia o vice-rei Cisneros, ou antes, no encontro de Castelli

com Martín de Alzaga na infundada noche del 5 de julio de 1807 (p.89). Em

contraste, huele a bosta y sangre quando Castelli inicia seu registro no caderno de

67 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Discusión. p.220. 68 Id., ib.

capas vermelhas. E, o momento em que esta caracterização se faz positiva é o

momento em que Castelli, numa manhã de junho na campanha do Alto Peru, mata:

Castelli vio la turba, portadora de muerte (...) La vio venir, indiferente, envuelto en una capa que olía a la sangre, propia o ajena, que se derramó en esa mañana interminable de junio, y a la bosta de los caballos que le fusilaron en esa mañana interminable de junio. (...) El hombre que corría al frente de la turba (...) El hombre cayó, y Castelli alcanzó a ver el agujero que el plomo de su pistola abrió en la garganta del hombre (p.62) (o grifo é meu)

Com a introdução da morte, cai por terra a crença de Castelli de que sus

sueños [seu e de seus companheiros], la inasible belleza de sus sueños, sería el

pan que comerían en los días por llegar, pois los sueños que omiten la sangre son

de inasible belleza. (p. 33). Na caracterização da capa azul está a marca indelével e

definitiva da realidade da Revolução.

1.2.4 A repetição que diferencia

Na narrativa de Rivera identificam-se repetições também amplificadores de

sentidos. As repetições mais freqüentes apresentam-se em seqüência na narrativa,

e vão introduzindo, paulatinamente, por deslocamento de ênfases, novas

informações. É exemplar dessas repetições o encontro de Castelli com Martín de

Álzaga:

Allí, en la sala del fuerte, bajo la luz de las lámparas y detrás de una

larga mesa de madera en la que había papeles sucios, cigarros, tinteros, sables y balas, canastos de paja con empanadas que chorreaban grasa, fusiles, jarras de vino, estaba, de pie, Martín de Alzaga.

Estaba de pie, Alzaga, los largos y flacos brazos y las manos, cuidadas, de dedos largos y flacos, que recogían, a la larga mesa, papeles sucios en los que un amanuense asentaba los mandatos, las imprecaciones que él dictaba, distante, (...). Y Alzaga, de pie detrás de la larga mesa, repartía entre jefes y soldados, ricos y esclavos (...) jarras de vino y empanadas que chorreaban grasa y mandatos, imprecaciones, dones y sentencias (...)

Alzaga, que repartía mandatos, imprecaciones, dones y sentencias, mira a Castelli (p.89).

Algumas repetições fazem-se por reiteração de expressões em momentos

distintos do texto, que, por aproximarem idéias, promovem uma compreensão mais

profunda do dito. A resposta de Castelli a Hunguer, quando esse lhe pergunta se

Castelli daria a liberdade à escrava Belém ─ Un hombre solo no va más lejos que su

propia sombra (p.122) ─ torna-se uma pergunta que Castelli se faz, quando se

questiona sobre o que e a quem jurara a 25 de maio ─ ¿Juré, de rodillas en la sala

capitular del Cabildo, que no iría más lejos que mi propia sombra, que nunca diría

ellos o nosotros?(p.157) ─, que lhe merece a resposta: Juré que la Revolución no

sería un té servido a las cinco de la tarde. (p.157)

Uma repetição, identificada na narrativa, tem uma carga semântica

particularmente importante. Em La revolución es un sueño eterno, essa frase que dá

título ao texto é repetida integrada ao narrado: Y en el escenario, cuya luz se

extingue, el actor escribe: la revolución es un sueño eterno. (p.50) (o grifo é meu)

Em outro momento, registra Castelli: Usted, Monteagudo, escribe Castelli con letra

angulosa, frágil, de viejo, dijo, en el curato de Laja: La muerte es un sueño eterno.

Bellísima oración. Y verdadera. (p.152) (o grifo é meu). A aproximação que se

estabelece entre revolução e morte é extremamente significativa, na medida da

constatação de que a revolução implica morte e a revolução resultou em morte dos

sonhos e pública para Castelli.

No romance La revolución es um sueño eterno, a semelhança de En esta

dulce tierra, identifica-se um preciso jogo de vigilâncias, ecos e afinidades. Todo

episódio tem uma projeção posterior, como Borges preconiza, em “El arte narrativo y

la magia”69, bem como não há palavra injustificada, ressaltada por ele no "Prólogo"

de Nueve ensayos dantescos70.

Nessa perspectiva, os procedimentos narrativos identificados na construção

do texto La revolución es un sueño eterno ─ a personagem que define a si e seu

registro já no primeiro capítulo; a instância narrativa que aparentemente se alterna

entre a pessoalidade e a apessoalidade; as variações da distância temporal entre os

tempos da história e da narração; o crucial emprego da invención circunstancial,

como a concebeu Jorge Luis Borges e a presença de repetições ─ permitem que se

aponte nesse romance de Rivera, a semelhança de En esta dulce tierra, uma

rigorosa eficiência estética.

69 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v.V.I: Discusión. p. 231. 70 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v.V.3: Nueve ensayos dantescos.

p. 343-344.

1.2.5 Civilização vs barbárie: uma leitura de La revolución es un sueño eterno

Facundo, de Sarmiento, é a obra fundamental na concepção decimonônica

da questão civilização e barbárie. Ela estabelece uma oposição irreconciliável entre

civilização e barbárie, identificando-as com a cidade e com a campanha,

respectivamente. A cidade, uma sociedade constituída, é receptáculo do

pensamento europeu, enquanto a campanha é bárbara por sua geografia e pela

atividade do homem que a habita ─ o gaucho. Agudo conhecedor do solo,

circunspecto, reservado, indissociado de seu cavalo, o gaucho enfrenta as

asperezas da vida com coragem e valentia. Vivendo no isolamento da imensidão da

planície, sujeito a todo perigo vindo ou do selvagem que o espreita ou de animais

ferozes, o gaucho vê na morte violenta uno de los percances inseparables de la

vida.71 (Sarmiento atribui a essa insegurança da vida gaucha cierta resignación

estoica para la muerte violenta do carácter argentino.)

Esse isolamento característico da atividade da campanha não favorece sua

organização em sociedade, sua sujeição a um governo, o que incompatibiliza a vida

campeira com qualquer possibilidade de presença da civilização. Facundo Quiroga,

personagem título da obra, personifica a inevitável barbárie argentina a ser

combatida pela civilização, inspirada na Europa.

Borges, ao voltar-se para o século XIX argentino, promove um deslocamento

dessa concepção de barbárie. É exemplar dessa redefinição o "Poema conjetural",

em que são construídos possíveis pensamentos mais íntimos do doctor Francisco

Narciso de Laprida, presidente do Congresso de Tucumán, no momento que

antecede sua morte, em 1829 por los montoneros de Aldao72.

A primeira estrofe não explicita a derrota como fim da batalha e de Francisco

de Laprida. Entretanto, a caracterização da batalha como deforme e o prenúncio da

morte próxima ─ Zumban las balas en la tarde última ─ dão ao cenário um caráter

de excepcionalidade, de anormalidade, que se completa na declaração da vitória

71 SARMIENTO, D. F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colegio, 1933. p. 44. 72 BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.2: El otro, el mismo. p.245.

dos gauchos ─ sinônimo de bárbaros no poema ─ Vencen los bárbaros, los gauchos

vencen.

Essa idéia de desfiguração aprofunda-se pelo uso do adjetivo crueles para

caracterizar as províncias e pelo contraste entre seu papel na história argentina ─

Yo, que estudié las leyes y los cánones / yo, Francisco Narciso de Laprida/ cuya voz

declaró la independencia ─ e o seu ultimo momento, que é de um Yo derrotado. Há,

assim, a conformação de dois campos opostos ─ o bárbaro vencedor e o civilizado,

derrotado. Essa imagem borgesiana parece em perfeita sintonia com a noção de

civilização e barbárie, proposta por Sarmiento.

Os versos seguintes, entretanto, expõem nova oposição. A falta de

esperanza, a ausência do temor, o sentir-se perdido, naturais em um herói que se vê

vencido, contrastam com o verso huyo hacia el Sur por arrabales últimos. Nesse

verso, ecoa a definição de Borges de dois espaços míticos, de seu ensaio “La

pampa y el suburbio son dioses”73:

Dos presencias de Dios, dos realidades de tan segura eficacia reverencial que la sola enunciación de sus nombres basta para ensanchar cualquier verso y nos levanta el corazón con júbilo entrañable y arrisco, son el arrabal y la pampa.74

Nessa perspectiva, essa referência, no “Poema conjetural”, ao espaço

fundador redesenha a figura de Laprida e o insere definitivamente nesta Argentina

mítica bárbara, prefigurando o inexplicable júbilo secreto que o eleva em seu

encontro com a morte, desvelador de seu destino sudamericano:

pero me endiosa el pecho inexplicable un júbilo secreto. Al fin me encuentro con mi destino sudamericano (...) Al fin he descubierto la recóndita clave de mis años, la suerte de Francisco de Laprida, la letra que faltaba, la perfecta forma que supo Dios desde el principio.75

73 BORGES, J. L. El tamaño de mi esperanza. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1993. p.21-25. 74 Id., p. 21 75 Id., ib.

O poema pode ser lido como a presentificação da questão civilização–

barbárie, construída literariamente no século XIX ─ o passado de homem de letras,

cuja voz declarou a independência e o presente da derrota. Tulio Halperin Donghi lê

o "Poema conjetural", à luz da obra El matadero, de Esteban Echeverría:

El Poema conjetural que Borges compone en 1942 presenta una peripecia análoga [ao Matadero] como algo más que una celada: el degüello llega allí a Francisco Narciso de Laprida como la revelación del "destino sudamericano" contra el cual había buscado vano refugio en las filas de la ilustración europea. La inmolación del intelectual, que en Echeverría era a la vez un imperdonable escándalo y una prenda de redención futura, aparece ahora casi como la reafirmación plena del orden natural, cuya maciza coherencia ha sido por un momento quebrada por esa presencia discordante. Sin duda sería ilegítimo leer en Poema conjetural las moralejas justificatorias del exterminio de esos contrabandistas de nociones exóticas que habrían sido los intelectuales argentinos, que se podían oír tan frecuentemente en 1942; entre ellas y las que propuso Echeverría combinando la denuncia y la esperanza, el poema se rehúsa en cambio a optar; si tiene una dimensión profética, ésta no puede ser otra que la develación de una desolada verdad.76

Como Sarmiento, Beatriz Sarlo, em seu livro La pasión y la excepción,

aponta o estoicismo como uma peculiaridade própria da moral criolla. E, entre os

exemplos, inclui o poema "Poema conjetural":

El pavor es un sentimiento innoble, tanto para el gaucho cuyo primitivismo estoico le impone la aceptación del destino, como para el hombre de letras que (como Laprida en "Poema Conjetural") acepta el destino americano de la muerte violenta, o para Quiroga que, en "La tentación", la provoca al repetir el camino por donde viajan quienes van a matarlo. Contra el miedo, la cultura criolla opone la postura distante de quien espera la muerte sin rehuirla y sin alardear: el momento estoico de la violencia.77

Se é certo pensar, segundo Halperin Donghi, na hipótese de que a

develación de una desolada verdad impossibilita a opção ou, como Sarlo, na estóica

aceitação da morte por Laprida, a intrigante introdução do substantivo júbilo no

poema parece operar como um elemento desestabilizador das leituras citadas

acima. O traço singular do "eu lírico" que foge para o Sur e o júbilo que o invade e o

endiosa, introduz o caráter fundador do espaço marginal que o justifica. Assim, a

alegria da constatação de ser sul-americano bárbaro — resposta perfeita para a vida

76 HALPERIN DONGHI, T. El espejo de la historia. Problemas argentinos y perspectivas

latinoamericanas. Buenos Aires: Sudamericana, 1998. p. 332-333. 77 SARLO, B. La pasión y la Excepción. Buenos Aires. Siglo XXI, 2003. p. 214.

─ pode ser lida como a recusa à aceitação de uma desolada verdad, ou à

resignação, à indiferença frente à morte.

A escolhida morte sonhada/vivida pela personagem Juan Dahlmann de "El

Sur” (La Nación 8/02/1953 e Ficciones 195678), reforça essa concepção borgesiana.

No conto, o sur é explicitamente descrito como un mundo más antiguo y más firme.

E é desse mundo que a personagem recebe a arma que o justificará quando, sem

esperança e sem temor (mesmos sentimentos de Laprida), entregar-se-á a morte

em duelo com o compadrito que o desafiara:

Desde un rincón, el viejo gaucho extático, en el que Dahlmann vio una cifra del Sur (del Sur que era suyo), le tiró una daga desnuda (...) Sintió que si él, entonces, hubiera podido elegir o soñar su muerte, ésta es la muerte que hubiera elegido o soñado. Dahlmann empuña con firmeza el cuchillo, que acaso no sabrá manejar, y sale a la llanura.79

Tanto a concepção de uma campanha bárbara em oposição inconciliável

com a cidade civilizada, proposta por Sarmiento, como a da barbárie orillera,

manifestação de um espaço sagrado, que desfaz o abismo que a separa da

civilização, elaborada por Borges, assumem uma nova feição em La revolución es

un sueño eterno.

Juan José Castelli é ficcionalizado como um homem em fase terminal de sua

enfermidade que reconstrói, pela memória sua e alheia, mas sempre filtrada por sua

consciência, fragmentos de seu passado, com o privilegio que a distância temporal

lhe confere. A percepção do passado como algo acabado e o conhecimento de suas

conseqüências no presente permitem à personagem uma visão profundamente

reflexiva e crítica de seus atos ─ o registro do passado já não é aquele do presente

vivido. E, essa reconstrução, contaminada pelo presente da personagem, desvela

uma nova configuração para a questão civilização e barbárie.

Em primeiro lugar, a personagem Castelli pode ser identificada como um

representante da civilização, na concepção de Sarmiento. É oriundo da cidade,

78 HELFT, N. Jorge Luis Borges: bibliografía completa. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,

1997. 79 BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Ficciones. p. 529-530.

advogado, cujos ideais estão em harmonia com o pensamento europeu. Em um

momento do texto, em que Castelli se questiona sobre sua identidade, uma das

perguntas que se faz o identifica com o representante do Clube dos jacobinos ─ ¿El

robesperriano [Castelli] que resiste en una ciudad de comerciantes y banqueros, y

no abjura de la utopía? (p.159).

Em outros momentos do texto, quando registra o que pensou frente a seus

acusadores, a aproximação de Castelli com os Jacobinos assume uma dupla

perspectiva. A primeira, a defesa de sua verdade em oposição a hipócrita conduta

religiosa de seus juízes:

El acusado ruega al señor escribano haga constar que menospreció la más espléndida enseñanza de San Agustín [La misión de la Iglesia no es liberar a los esclavos, sino hacerlos buenos], y que, sin embargo, tiene la pretensión que sabe fatua y soberbia, de defender la verdad. La suya al menos. Hágase constar, donde sea, que el acusado proclamó, (…) la libertad del indio, cumpliendo órdenes que recibió de la Primera Junta. Hágase constar que os señores (…) que se flagelan en la negra noche de Semana Santa, (…) deploraran la abrupta manumisión del indio (p. 37-38)

A segunda, a irônica acusação aos opositores dos jacobinos, definidos por

ele como os ausentes sin excusa:

Ruego que, cuando aluda a los ausentes sin excusa, se vea, en la alusión, a quienes execran, virtuosamente, en los jacobinos, la nefasta y aciaga pretensión de seducir a paisanos, indios y negros esclavos —entendámonos, señores jueces: la chusma —para que escarnezcan, derroquen y expropien a los que enriquecieron, y, al enriquecerse, enriquecieron a estos territorios, sin apelar a la usura, el contrabando, la prolija evasión de los impuestos, y otras sutilezas que, en pocas oportunidades, e inexplicablemente, la prensa responsable calificó como una exigencia de la libertad de mercado) (p.16-17)

Castelli, como representante da cidade civilizada que absorveu o

pensamento europeu, deveria identificar-se com Buenos Aires. Entretanto, isso não

ocorre. Desde o primeiro capítulo, ela é apontada como a causa da destruição da

utopia e que caberá a ele perpetuar a memória dessa carência, mesmo que seu

registro seja feito no confinamento e por alguém que não pode falar pela

enfermidade física, e, principalmente, pelo alijamento político a que foi condenado.

Nessa medida, inverte-se a concepção da cidade e los gritos de afrancesado

jacobino, escupidos por la beatería patriótica (p. 103) atestam essa inversão. Em

Buenos Aires, a barbárie toma o lugar da civilização. A atmosfera que a envolve

quando a personagem vê llegar la lluvia, el inverno, la noche (p. 15), não apenas

reflete seu desencanto, mas potencializa essa perspectiva. A civilização que Castelli

encarna está, portanto, em descompasso com Buenos Aires.

Por outro lado, como representante da civilização, é possível aproximá-lo de

Laprida. Ambos são homens dedicados a leyes y los cánones, vozes relevantes no

processo de independência argentina: Laprida, cuja voz proclamou a independência.

Castelli, el orador de la Revolución ─ Hable, Castelli, por nosotros, le dijeron, en esa

noche de mayo, sus camaradas (p. 31)

Entretanto, se Laprida, no monólogo final de sua vida, criado por seu

descendente, reconhece-se jubiloso frente à consciência de seu destino sul-

americano, conferido pelo espaço primordial do sur, a personagem Castelli, em seu

olhar retrospectivo, reflexivo sobre sua vida e a Revolução segue outra direção. São

particularmente exemplares do afastamento entre a personagem de Rivera e a de

Borges, dois momentos da narrativa, intimamente ligados e apontados como cruciais

pela personagem: o episódio do confronto de Castelli com o vice-rei Cisneros e a

batalha vencida por ele na interminable mañana de junio. (p.61)

Quando Castelli, condenado al silencio y la clandestinidad registra no

caderno de capas vermelhas o momento em que Castelli, como el orador de la

revolución, em nome de seus companheiros, desafia o poder espanhol na figura do

vice-rei Cisneros, ele o situa na orilla ─ Deshizo, Castelli, con la displicente y

ominosa arrogancia de un orillero, el mazo de barajas españolas que el virrey

Cisneros abría, como un abanico, sobre la mesa de juego. (p. 28) Naquela noite de

maio, Castelli, com sua capa azul que ainda não cheirava a bosta y sangre, falou a

seus camaradas que eran hombres y no cosas, y que sus sueños, la inasible belleza

de sus sueños, sería el pan que comerían en los días por llegar. (p. 33)

A lembrança dessa noite, já afastada da experiência vivida, já contaminada

pelo presente, é registrada sem o júbilo que experimentara Laprida ao buscar, no

espaço primordial, a legitimação de sua morte, mas com a amarga consciência de

onde aquela remota noite de maio o levara e a seus companheiros:

Todo terminó, repitió Castelli, como si el cuerpo del cual emanaba la voz murmurante y glacial se negara a creer en la armonía, la literalidad, la lógica de las palabras que emitía, la impredecible realidad que cargaban, las depravaciones a las que estaban expuestas, las expurgaciones a las que serían condenadas. (p.31)

Ao desafiar o poder espanhol, Castelli falou por los que no lo escucharon, y

por los otros, que no conoció, y que murieron por haberlo escuchado. E, Castelli

conclui esse capítulo, em seu caderno: Castelli sabe, ahora, que el poder no se

deshace con un desplante de orillero. Y que los sueños que omiten la sangre son de

inasible belleza. (p.33)

Em estreita conexão com essa constatação está o registro da manhã da

batalha em que Castelli mata ─ Y en esa mañana interminable de junio, mató. (p.62)

Se a coragem no confronto com o inimigo aproximaria Castelli e Laprida, duas

grandes diferenças o separam: a primeira independe do denodo das personagens ─

Laprida é derrotado e Castelli, vitorioso; a segunda, fundamental, é a reação das

personagens frente ao resultado da batalha. Laprida jubiloso entrega-se à morte,

Castelli, que sobrevive, sente a realidade bárbara do matar que a guerra impõe, e

essa realidade marca indelevelmente sua capa azul e destrói a inasible belleza de

los sueños.

Parece, então, que o Castelli de Rivera, em contraste com o Laprida de

Borges assume seu destino sul-americano não como uma identificação com o

universo orillero, nem estoicamente, como propõe Sarlo, mas como a desolada

verdad de que trata Halperin Donghi. Essa revelação, no entanto, não destrói a

utopia sonhada por Castelli. Ao contrário, é ela que o justifica.

Em La revolución es um sueño eterno não há um espaço mítico, primordial,

nem há uma campanha bárbara. Há, sim, a impossibilidade de realização de ideais

de homens, como Castelli, que irromperam en el escenario de la historia antes de

que suene su turno e esses homens esperan que el apuntador les anuncie, por fin,

que sus relojes están en hora.(p.144-145) Esta constatação de Castelli, que no

abjura de la utopia (p. 159) pode constituir-se em um dos argumentos que permitem

uma resposta para a sua pergunta final do texto: ¿qué revolución compensará las

penas de los hombres?

1.3 EL FARMER e ESE MANCO PAZ: a memória de pátrias inalcançáveis

El farmer é uma narrativa que tem como protagonista Juan Manuel de

Rosas. Proeminente figura da política argentina do século XIX, Rosas foi

proclamado governador de Buenos Aires em 1829, permanecendo no poder até

1832. Em 1835, após sua vitoriosa Campaña al Desierto ─ luta contra o índio, que

promoveu a extensão e consolidação da fronteira ─, retornou ao governo, através de

um plebiscito, com poderes ilimitados que exerceu com mão férrea. Seus opositores

foram implacavelmente perseguidos e mortos. Em 1852, o exército de Rosas foi

derrotado por Justo José de Urquiza, em Monte Caseros, obrigando-o a refugiar-se

na Inglaterra, onde viveu na pobreza até sua morte, em 1877.

Diferente de En esta dulce tierra, Rosas é ficcionalizado por Rivera, no

romance El farmer, como o próprio título da obra sugere, não no governo na cidade

de Buenos Aires, mas despojado do poder, no frio inverno de seu desterro em solo

inglês, como diz a personagem, a muchas más leguas de las que uno puede

imaginar de mis pagos de Monte, la tierra de mis padres, y de los padres de mis

padres. (p.10)

Do amanhecer ao anoitecer do dia 27 de dezembro de 1871, aos 78 anos,

Rosas encontra-se à beira de um braseiro de ferro, solitário, empobrecido, em terra

estrangeira, onde simplesmente envelhece. Fragmentária e reflexivamente, ele

reconstrói perplexo, desiludido, questionador e afirmativo seus dias de poder

absoluto na Argentina, em contraste com a derrota em Caseros, a fuga para a

Inglaterra, onde sua propriedade em Swaythling, perto de Southampton, tem apenas

37 hectares e não incita nem a inveja, nem a cobiça de seus vizinhos80, tão diferente

das estâncias em sua terra. Nessa descrição de sua granja, está exposto o seu

empobrecimento, mas, fundamentalmente, a perda de poder.

Em sua reconstrução do passado, Rosas vale-se, não apenas de sua

memória pessoal, inviolável, intransferível em sua completude, como também da voz

do outro, que sua memória evoca. Lowenthal, ao tratar da inviolabilidade da

memória, já que a maior parte do ato de lembrar se dá na privacidade, destaca que,

mesmo quando partilhada, ela não se dá em sua totalidade, pois o conhecimento da

memória do outro não significa possuí-la.81 É exemplar desta peculiaridade da

memória, o fragmento em que Rosas fala das visitas que recebe de jovens que

buscam nele o Rosas pertencente à História:

Después, guardan sus anotaciones, (…), y yo los miro partir, esmirriados, sudorosos, pobres hombrecitos que nunca montaron a caballo, que nunca galoparon de cara al viento, que nunca crecieron en un mundo interminable como sólo Dios pudo concebirlo, leguas y leguas de tierras tan anchas como el horizonte, y un cielo tan ancho como el horizonte (…). Pobres hombrecitos: nunca sabrán de eso. Nunca encontrarán la palabra para escribir eso. (p.22)

Nessa medida, a reconstrução do passado pela própria personagem

representaria o mais genuíno de Rosas, ou seja, só a ele cabe construir a palabra

justa para si.

80 Nessa descrição de Rosas de sua granja, ressoa, contrastivamente, a notícia que Isabel deu a

Cufré, em En esta dulce tierra: La reina de Inglaterra, dijo lo que era Isabel, honró el valor de Su Excelencia, y le regaló un farm en Southampton.

RIVERA, A. En esta dulce tierra. Buenos Aires: Alfaguara, 1995. p.81. Em Ese manco Paz, há também uma alusão à propriedade de Rosas na Inglaterra, feita pela personagem Paz: Rosas vive, ahora, en una granja de la Gran Bretaña que le compraron quienes fueron sus amigos cuando Rosas era joven y apuesto, y escribía órdenes de muerte en su casona de Palermo.

RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003. p.58. 81

memory is by its nature inviolable; most of our remembering is done in private, (…); they [our recollections] remain so unless we decide to make them public. Even then they can never be fully shared; for someone else to know my memory is not at all the same as having it.

LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p.195.

A narrativa, em El farmer, organiza-se em capítulos intercalados por textos

breves82, cuja voz alterna-se. Ora é um eu, ora está dirigida a um tu e ora é

apessoal. Tendo como suporte a alternância da instância narrativa dos textos

breves, a relação que pode ser estabelecida entre eles e os capítulos que compõem

o romance e a reiterada interrogação da personagem sobre sua própria identidade, é

possível fazer uma leitura desses textos como um diálogo entre as personagens

Rosas general e Rosas desterrado. Nessa medida, pertenceriam ao Rosas general a

voz que abre o romance, declarando ─ Que en mi epitafio se lea: Aquí yace Juan

Manuel de Rosas, un argentino que nunca dudó ─; a voz que pede a Deus para não

morrer e a que, já no final, suplica a sua pátria: Patria, no te olvides de mí.

A Rosas camponês caberia a voz, carregada de desencanto, que se dirige a

um tu ─ ao Rosas general ─ Cuídate de la noche / Cuídate del día / La vejez es

inevitable / La muerte, también; No importa lo que digas / No importa lo que calles /

La vejez es una / La muerte, también; ou o extremamente significativo texto breve ─

Gritan tu nombre / veinte años después. / Qué importa lo que gritan / veinte años

después ─, que segue imediatamente o capítulo em que Rosas lembra, após vinte

anos de exílio, a permanência de sua figura na memória dos gauchos. Também de

Rosas camponês seria a voz que diz: Enfermedad, agonía, nada / El destino no

tiene fin.

82 Abaixo, em seqüência, transcrevo os textos breves, presentes em El farmer:

Que en mi epitafio se lea: Aquí yace Juan Manuel de Rosas, un argentino que nunca dudó Cuídate de la noche / Cuídate del día / La vejez es inevitable / La muerte, también. No importa lo que digas / No importa lo que calles / La vejez es una / La muerte, también. Gritan tu nombre / veinte años después. / Qué importa lo que gritan / veinte años después. Enfermedad, agonía, nada / El destino no tiene fin. Dios: Rosas no debe morir. Patria, no te olvides de mí. Nieva. / Hiela. / El día se fue. / Miro a Rosas. /Es triste todo.

O romance encerra-se por um eu que não se identifica, talvez porque seja o

general que olha o camponês, talvez o camponês que vê o presente do general, ou

ainda, talvez, o próprio leitor que esteve com Rosas todo o dia. Na realidade, não

importa de quem seja esta voz. O que conta é a inexorável verdade que ela encerra,

o presente de Rosas desterrado ─ Nieva. / Hiela. / El día se fue. / Miro a Rosas. / Es

triste todo. É nessa atmosfera potencializadora das palavras noche, vejez,

enfermedad, agonía e destino, presentes nos outros textos breves, que se dá a

reconstrução do passado pela personagem.

1.3.1 Rosas: a reflexão de uma imagem

El farmer inicia com uma descrição de si própria, no tempo presente, da

personagem-narrador como um homem comum, sem vícios e solitário:

No fumo. No tomo vino ni licor alguno. Ni rapé. No asisto a comidas. No visito a nadie: Lord Palmerston me visitó siete veces en doce años. No voy al teatro. No paseo. Mi ropa es la de un hombre común. (p.9)

A seguir, declara sua atividade de camponês ─ En mis manos y en mi cara

se lee, como en un libro abierto, cuál es mi trabajo durante los treinta santos días del

mes. / Uso bota. / Mi comida es un pedazo de carne asada. Y mate ─, mas um

homem do campo particular que escribe diez cartas diarias e un Diccionario. (p. 9)

Essas primeiras informações vão dando forma à personagem e nelas se

pode intuir sua identidade ─ a citação de Lord Palmerston, os hábitos rio-platenses

do assado e do mate. Essa identidade torna-se mais clara com o parágrafo,

extremamente significativo, em que cita a referência que de si faz o que foi

presidente da Argentina Bartolomé Mitre. Nesse momento, a conformação da

personagem se faz em contraste com a perspectiva do outro:

El general Bartolomé Mitre, (...) declaró que yo fui el representante de los grandes hacendados y jefe militar de los campesinos. ¿Dónde vio campesinos, el general Mitre, en el país que supo darnos España? Aquí, sí, soy campesino (p.9-10)

Se ser chamado camponês em sua terra causa-lhe indignação, em solo

inglês, é perfeitamente adequado, pois se pronuncia seu nome por estos campos de

la desgracia, ¿quién sabrá decir: ahí va un hombre cuyo poder fue más absoluto que

del autócrata ruso, y que el de cualquier gobernante en la tierra? Nessa passagem

fica reforçada a associação entre a perda de poder e sua acanhada propriedade em

solo inglês, já referida anteriormente.

Num parágrafo único, a personagem identifica-se pelo nome ─ Soy Juan

Manuel de Rosas. (p. 10) O narrador-personagem que se descrevera como um

homem comum, dono de uma pequena granja, em terra que lhe era alheia revela-se

como sendo Rosas, o homem que deteve o poder na Argentina, durante vinte anos.

Ele expressa seu estado de ânimo, associando-o com o frio que o envolve: Nieva en

el Reino Unido. (...) Nieva en mi corazón. Essa sensação ele a traz desde a fuga da

pátria: Descendí a mi cabina que era la del comandante... Me acosté pronto, pero

tardé en conciliar el sueño. Llegué con el recuerdo a todas las cosas y todo estaba

sin vida y sin calor. (p.11) Essa atmosfera de frialdade torna a ser evocada, como já

foi mencionado, no pequeno texto que fecha o romance ─ no olhar para Rosas,

quando a luz do dia se apaga.

Duas perguntas, Rosas se faz sobre sua própria identidade, na qual está em

jogo um contraponto entre sua figura pública e seu presente solitário do desterro ─

¿Soy el nombre de la Historia que se mira a ningún espejo, y habla con ningún

espejo? ¿Soy el nombre de un hombre viejo que, a la luz de unas velas, llora frente

a ningún espejo? (p. 22). Essas perguntas parecem ter como resposta a

impossibilidade de opção entre os dois nomes. Há Juan Manuel de Rosas que no

passado foi senhor do destino dos argentinos e cuja voz presentifica esse poder em

vários momentos da narrativa e há o camponês despojado de sua autoridade,

solitário, empobrecido, que envelhece no frio inverno de uma terra que não é sua. O

Rosas camponês busca respostas que justifiquem seu presente e justifiquem Juan

Manuel de Rosas. Nessa perspectiva, é exemplar a passagem em que expõe sua

fragilidade, solitário no frio inglês e propõe duas questões cruciais quanto ao seu

destino:

Soy un hombre fuerte, y lloro, a veces, el olvido de los otros. ¿Por qué mi vejez no debe llorar, a veces, el olvido de los otros? ¿No escribí, en ese mediodía de soledad y británico, o antes, en algún mediodía de sol y silencio, cuando la sombra del destierro caía, implacable, como una trampa de espasmos y lágrimas sobre mi corazón, que tengo sobrado derecho a que reflexione acerca de mí, de lo que fue y de lo es Juan Manuel de Rosas? ¿Qué debí hacer para que mi destino fuese otro? ¿Qué no hice para que mi destino fuese otro? (p.26)

Ademais, se é um desconhecido na Inglaterra, não o é nem para a História,

nem para Rosas o detentor do poder em Buenos Aires, o desterrado em solo inglês:

Y, ahora, yo, gobernador-propietario de la provincia más extensa y rica de América española, estoy aquí, en el condado de Swanthling, reino de la Gran Bretaña, afeitado y acurrucado junto a un brasero de hierro inglés, un desconocido para quienquiera que escuche, menos para la Historia. Y menos para mí. (p.12)

E, porque a História e ele próprio conhecem Rosas é que se vai se

construindo paulatinamente, por sua memória, a reflexão de uma imagem singular,

fruto do olhar íntimo, questionador, afirmativo e decepcionado, que o privilégio da

distância temporal que o separa da experiência vivida, irrecuperável como tal, lhe

confere.

Essa reconstrução do passado é sustentada e reforçada pelo discurso

próprio que ecoa do passado e por um tenso e relativizador diálogo com o discurso

do outro, particularmente com o Sarmiento no poder na Argentina, mas,

principalmente, com o autor da obra Facundo, na qual a figura de Rosas ficou

solidamente aderida à concepção sarmentiana da barbárie.

Sarmiento, em sua evocação à figura de Facundo, na introdução da obra de

mesmo nome, estabelece um elo entre o caudilho de La Rioja e Rosas que norteará

sua construção dessas duas figuras históricas:

¡Sombra terrible de Facundo, voy a evocar-te, para que sacudiendo el ensangrentado polvo que cubre tus cenizas te levantares a explicarnos la vida secreta y las convulsiones internas que desgarran las entrañas de un noble pueblo! Tú posees el secreto, ¡revélanoslo! Diez años aún después de tu trágica muerte, (…) Facundo no ha muerto; está vivo (…) en Rosas, su heredero, su complemento: su alma ha pasado a este molde más acabado, más perfecto; y lo que en él era solo instinto, iniciación, tendencia, convirtióse en Rosas en sistema, efecto y fin. …………………………………………………………………………………………Facundo, provinciano, bárbaro, valiente, audaz, fue reemplazado por Rosas, hijo de la culta Buenos Aires, sin serlo él; por Rosas, falso, corazón helado, espíritu calculador, que hace el mal sin pasión y organiza lentamente el despotismo con toda la inteligencia de un Maquiavelo. Tirano sin rival hoy en la tierra (o grifo é meu)83.

A afirmação de Sarmiento de que Rosas hace el mal sin pasión merecerá

um redirecionamento da concepção de Bem e Mal, por parte da personagem Rosas,

ao longo do texto El farmer, e contribui decisivamente na delineação da imagem que

refletirá a de Rosas. Assim, Rosas expande a caracterização do mal, proposta pelo

autor de Facundo, como segue: El Mal, en mi boca y por mi brazo, fue orden y

justicia. Lo digo aquí, en tierra extranjera, para quien quiera escucharme, Dios

incluido. (p.12) Em En esta dulce tierra, há um paralelismo entre Bem e ordem,

expresso no diálogo entre o hombre pequeño y delgado e Cufré:

No se impaciente, Cufré: (...) Usted, eso se sabe, no es un delator ni aprecia la prosa embaucadora de don Pedro de Angelis… Es un espejo que nos mide, el señor Pedro de Angelis: dijo de algo hay que vivir; y puso precio a su pellejo y a su pluma, y vendió su talento a Dios, no al Diablo. Al Bien, no al Mal. Al orden, no a la utopía.84 (o grifo é meu)

Também em Ese manco Paz, esta idéia subjaz na interrogação de Paz

sobre o que o diferencia de Rosas:

Resulta que yo ruego a Dios paz, orden, quietud y prosperidad para la República, y Rosas pide orden, quietud, paz y prosperidad para este país donde él y yo nacimos. ¿Queremos lo mismo, él y yo, para este país donde, él y yo, nacimos? ¿Por qué, para la República, él y yo, pedimos lo mismo? Si Rosas no miente, y Paz no miente, ¿qué nos diferencia? (grifado na obral)85

Rosas complementa sua concepção de Mal, apresentando o que seria o

Bem em Sarmiento: ¿Qué hace, hoy, el señor Sarmiento? Levanta escuelas y

83 SARMIENTO, D. F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colegio, 1933, p.27-28. 84 RIVERA, A. En esta dulce tierra. Buenos Aires: Alfaguara, 1995, p. 27. 85 RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003, p.57.

supone que iguala a los hijos de los pobres y a los de los ricos con el guardapolvo

blanco. / El señor Sarmiento cree que hace El Bien. (p.23)

Apropriando-se da palavra do outro e a reescrevendo sob a sua perspectiva,

a personagem Rosas desestabiliza o discurso de Sarmiento, para finalmente

deslegitimá-lo com a pergunta ─ ¿Cuánto sabe el señor Sarmiento del Bien y del

Mal? (p.14) E, nessa medida, vai se tornando relativizada a aderência da imagem de

Rosas com a barbárie, em Facundo.

Também em seu diálogo com o autor de Facundo, Rosas reproduz, com

comentários, cortes, acréscimos e alteração na pontuação, a descrição de

Sarmiento do episódio do plebiscito, que o levou de volta ao poder, em 183586:

El señor Domingo Faustino Sarmiento escribió, además: En obsequio a la verdad histórica, nunca hubo gobierno más popular,

más deseado ni más bien sostenido por la opinión, y su plebiscito fue la imagen de su triunfo más amplio. ¿Seria acaso que los disidentes no votaron? Nada de eso: no se tiene aún noticia de ciudadano alguno que no fuese a votar; los enfermos se levantaron de la cama para ir dar su asentimiento. (p. 11) (grifado na obra)

Embora o passado seja irrecuperável como experiência original (os

discursos de Sarmiento e Rosas são construções), a manipulação do discurso do

outro, pela memória mutável de Rosas ─ a memória editando o dito ─, é feita, nesse

fragmento, segundo uma perspectiva que não reconhece a possível represália, a

possível atmosfera de terror, sugerida por Sarmiento e que com tanta insistência foi

86 Essa referência está na mesma obra de Sarmiento, como segue:

Y debo decirlo en obsequio de la verdad histórica: nunca hubo gobierno más popular, más deseado, ni más bien sostenido por la opinión.

Los unitarios que en nada habían tomado parte lo recibían, al menos, con indiferencia; los federales, lomos negros, con desdén, pero sin oposición; los ciudadanos pacíficos lo esperaban como una bendición y un término a las crueles oscilaciones de los largos años; la campaña, en fin, como el símbolo de su poder y la humillación de los cajetillas de la ciudad. Bajo tan felices disposiciones principiáronse las elecciones o ratificaciones en todas las parroquias y la votación fue unánime, excepto tres votos que se opusieron a la delegación de la suma del poder público. ¿Concíbese cómo ha podido suceder que una provincia de cuatrocientos mil habitantes, según asegura la Gaceta, sólo hubiese tres votos contrarios al gobierno? ¿Seria acaso que los disidentes no votaran? ¡Nada de eso! No se tiene aún noticia de ciudadano alguno que no fuese a votar; los enfermos se levantaron de la cama para ir dar su asentimiento, temerosos de que sus nombres fuesen inscriptos en algún negro registro, porque así se había insinuado. El terror estaba ya en la atmósfera, y aunque en trueno no había estallado aún, todos veían la nube negra y torva que venía cubriendo el cielo (…).

SARMIENTO, D. F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colegio, 1933, p. 289.

marcada a construção literária da figura histórica de Rosas, no século XIX. Essa

omissão aponta para uma aceitação das condutas ilícitas, na medida em que elas

não estão restritas a Rosas, como parece apontar o fragmento de sua reconstrução

do passado, no qual, rancoroso, Rosas refere-se aos papéis comprometedores que

levou consigo para Inglaterra:

Pensé que mis amigos y compadres, a los que beneficié ─ y sólo Dios sabe cómo ─, no se entregarían alegremente al olvido. Cargué, en el Centaur, mis archivos. Letras. Cartas. Confidencias. Condiciones. Promesas. Delaciones. Ruegos. Suegras que denuncian nueras. Hermanas que denuncian a hermanos. ..………………………………………………………………………………………Abro el archivo y miro cómo se cocina la perversidad humana. (...) Los papeles de mi archivo, que huelen a la más pestífera mierda que vientre alguno haya echado sobre la tierra, me absuelven y me honran ante el futuro. (p.27-29) 87

A ampliação do espectro de condutas não aceitáveis para outros argentinos,

apresentada por Rosas nesse fragmento, antecipadora da justificativa que dará para

fazer o mal sem paixão, se não o redime, torna mais leve o peso que delas lhe

coube. Fica relativizada, novamente, sua imagem junto à barbárie. E, ela o autoriza

a narrar o rigor de seu poder, seja pela reprodução de suas ordens à população ─

Consigna del general Rosas a la población: Queda desautorizado lo que no autoricé.

(p.46); seja pelas punições impostas ─ o fuzilamento de Camila e seu amante ─,

seja pela sua forma espúria de propriedade sobre pessoas ─ a posse da filha virgem

do comandante Castro.

Extremamente eloqüente da convivência no texto da ação bárbara do poder

de Rosas com sua relativização é a lembrança, em tom interrogativo, no capítulo

final, do faenamiento de mulheres, homens, adolescentes, pelos seus homens da

Mazorca, con sus curvos sables afilados:

87 O hábito de Rosas de receber esse tipo de documento em seu despacho na casona de Palermo

está descrito em Ese manco Paz, despojado do tom rencoroso, que o abandono no exílio suscitou: Todas y cada una de las mañanas que Juan Manuel de Rosas ocupa su despacho, lee, rubio, alto, sano y hermoso como es, los informes de sus fieles, y la papelería que redactaron damas que portan apellidos vascos y gallegos y asturianos. Allí, en esa papelería de la que se desprenden perfumes de extravío, están las filiaciones de sus rencores, de pasiones insatisfechas, de sus revanchas.

RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003. p.27.

¿Veían, como vi yo, sentado en mi despacho de Palermo, dieciocho horas del día sentado en mi despacho de Palermo, entrarles el cuchillo curvo en la carne del cuello, debajo de la nuca, manejados, los cuchillos curvos, por cuchilleros duchos en faenar reses, en hundirles, a las reses, los cuchillos curvos en la garganta, y esquivar, con un cigarro en la boca, los corcovos de las reses, y escucharlas balar y mugir como si se partiera el cielo? (p.89).

O termo faenamiento e a familiaridade dos algozes com as atividades em um

matadouro, obrigatoriamente, remete o discurso de Rosas para o de Echeverría, em

El matadero, ou seja, a pretendida descrição do matadouro de la Convalecencia o

del Alto como um microcosmos representativo da barbárie rosina (termo extraído do

El matadero), confirma-se pela voz de Rosas.

A crueldade de seus métodos leva Rosas a aceitar a caracterização do Mal

defendida por Sarmiento em Facundo, mas justifica-a por ser argentino. Se a

aceitação é compreensivelmente justa para ele, ela assume uma inesperada

dimensão no momento em que Rosas, interrogativamente, torna extensível ao

próprio Sarmiento a afirmação de Facundo sobre o Mal:

Hace el mal sin pasión, escribió de mí, el señor Sarmiento. Acepto eso. Y lo acepto porque soy argentino, y porque los argentinos, unitarios y federales, y eso ya se dijo, somos puros cristianos. Y el señor Sarmiento, que es argentino, escribió, desde el silencio de un escritorio: Derrame sangre de gauchos, que es barata. Que se escriba qué diferencia el general Rosas del señor Sarmiento. (p.90)

Assim, o ato de deslocar a perspectiva dos fragmentos da narrativa de

Facundo, quando Rosas deles se apropria, aponta para a emergência, em El farmer,

de uma imagem singular, que nem reproduz apenas o tirano, como o chamou

Sarmiento, nem simplesmente o camponês que envelhece no desterro, mas um

argentino, como Sarmiento. Nessa medida, na reconstrução do passado em El

farmer, pela personagem Rosas, cuja memória intensamente pessoal88 estabelece

um tenso e transgressor diálogo com o discurso do outro, torna-se definitivamente

problematizada a sólida e irreconciliável oposição entre civilização e barbárie,

proposta em Facundo, uma vez que na imagem refletida de Rosas está Sarmiento.

88

The remembered past is both individual and collective. But as form of awareness, memory is wholly and intensely personal.

LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 195.

Ampliando essa imagem que Rosas vai modelando no reflexo da sua

própria, que a memória individual constrói, estão duas referências a Shakespeare, já

no primeiro capítulo, ambas extraídas do diálogo de Rosas com Lord Palmerston, ou

seja, da reprodução não de sua própria voz, mas da do outro, embora filtrada

exclusivamente por sua memória. Essas referências são antecedidas da dolorosa

interrogação de Rosas sobre o conhecimento do que é o seu desterro ─ ¿Sabe

alguien qué es el destierro? / ¿Sabe alguien cuántos son veinte años de destierro?

(p. 14)

A primeira referência é também uma interrogação. Rosas se pergunta sobre

o conhecimento de Shakespeare do Bem e do Mal ─ Y ese tal Shakespeare, de

quién lord Palmerston me dijo que perpetuó la lengua inglesa para toda una

eternidad, ¿cuánto sabe del Bien y del Mal? (p.14)

Essa passagem poderia apontar apenas para a falta de ilustração de Rosas

─ sua origem bárbara ─, já que ignora a existência do Bardo de Avon, revelada pelo

modo como a ele se refere ─ ese tal Shakespeare ─ ou para sua própria prepotência

ao questionar o conhecimento de Shakespeare sobre o Bem e o Mal. Mas porque a

esta pergunta, segue outra de Rosas, em que transfere para Sarmiento a mesma

interrogação ─ ¿Cuánto sabe el señor Sarmiento del Bien e del Mal? (p.14) ─, é

mais sedutor pensar que ela permite uma leitura mais complexa de uma possível

definição do Bem e do Mal, em El farmer, e que lhe responda sua pergunta sobre o

desterro.

Entre Shakespeare a Sarmiento parece que Rosas escolhe Shakespeare

para responder-lhe, na medida de sua aproximação com a personagem Lear,

contida na segunda referência. Ela decorre da lembrança de Rosas também de um

diálogo que teve com Lord Palmerston, em que esse, ironicamente, estabelece uma

aproximação entre ele e a personagem shakespeareana:

Lord Palmerston me dijo, una tarde en su última visita, que ese tal Shakespeare se inspiró en mí para su King Lear. Así dijo: King Lear. Y rió. (...) Lord Palmerston me dijo que el rey Lear tenía tres hijas, y que yo tenía una, Manuelita, (…) Y Lord Palmerston dijo que el rey Lear interrogó a sus hijas, cuál de vosotras, decimos, nos ama más. Usted, general Rosas, mi buen amigo, dijo Lord Palmerston, es un hombre de suerte: no se formulará, jamás, esa pregunta abominable. (p. 15)

A. C. Bradley, em Lecture VII sobre o rei Lear, incluído em Shakespearean

Tragedy, define esta tragédia como the most terrible picture that Shakespeare

painted of the world89 e estabelece uma comparação entre as personagens Iago e

Othello, de Othello, com Lear: What is Iago’s malignity against un envied stranger

compared with the cruelty of the (…) daughters of Lear? What are the sufferings of a

strong man like Othello to those of helpless age?90

Essa aproximação pode insinuar uma interrogação sobre o amor de Manuela

pelo pai. O fragmento em que Rosas faz alusão a sua filha Manuela ─ la única hija

criolla y presentable en la sociedad de King Lear, la sucesora de King Lear en los

manejos de Estado, la de la grupa carnosa, la que tuvo mano suave para los

desvelos de Lear ─, em seu comportamento na Inglaterra, sustentam essa leitura:

Escribo [Rosas] que Manuelita insinuó ─ en una visita al rancho con sus dos hijos, visita que le concedí ─ que yo abandone el farm, y ocupe, en las condiciones que se ofrezcan, alguna casa, en Londres. Y cuando me dijo eso, Manuelita rió. Manuelita es cruel. Desconozco a Manuelita. (p.50)

Entretanto, a personagem Rosas, que envelhece solitária, pobre, no frio

inverno inglês, longe da pátria, ganha em profundidade se essa aproximação com a

personagem Lear for feita pela dor do velho rei, infligida pela irreparável ingratidão,

que para Rosas é não apenas de sua filha, mas, essencialmente, daqueles que,

zelosamente, protegeu quando deteve o poder em Buenos Aires.

Aponta para essa possibilidade interpretativa, o fato de Rosas caracterizar

como pecado, traição sua derrota em Caseros e seu presente de desterro, em

contraste com a fidelidade que sempre contou dos gauchos, cujo grito durará más

que el pecado (p.34):

Han pasado veinte años desde que me arrojaron a tierra de gringos. A veinte años de ese crimen, a veinte años de ese pecado de sangre que Dios no le perdonó al cojudo de Urquiza y a la traición de mis generales, un paisano clava su cuchillo en el mostrador de una pulpería, y grita Viva Rosas. Y otro clava su cuchillo en el mostrador de otra pulpería, y grita Viva Rosas (…) listo para morir o para cobrarse una cuenta que nunca sabrá cuándo y quién la abrió. (p.33).

89 BRADLEY, A. C. Shakespearean Tragedy. New York: St. Martin’s Press, 1904, p. 225. 90 Id., ib.

Ainda mais eloqüente parece ser a caminhada solitária, que Rosas refaz,

pela memória ─ espectro lívido de la derrota en los campos de Caseros montado

sobre mí, sobre mis hombros y sobre las ancas de Victoria, mi yegua ─, na Buenos

Aires, vazia, silenciosa, que o olhava amedrontada, através de suas janelas

fechadas, esperando que chegasse a hora de substituir o grito de Viva Rosas por

Viva Urquiza. E, conclui sua reconstituição desse momento crucial de sua relação

com sua terra, com amarga ironia, entremeando nas suas, novamente as palavras

de Sarmiento:

Miré, digo, como nunca miré, la cobardía de los porteños. No la vi, ni siquiera el 6 de diciembre de 1829, cuando fui electo, por primera vez, gobernador de Buenos Aires, para ejercer el mal sin pasión. Demoré una vida en reconocer la más simple y pura de las verdades patrióticas: quien gobierne podrá contar, siempre, con la cobardía incondicional de los argentinos (p.26)

A traição também se revela, ao longo do texto, menos dramática, mais

pragmática, quando, ironicamente, Rosas trata dos parcos recursos que ainda lhe

chegam da Argentina e das dívidas em dinheiro que homens, como Anchorena, lhe

devem:

Hoy, Don Nicolás de Anchorena, su dignísima esposa, hijos y parientes, fingen no acordarse del brigadier general Don Juan Manuel de Rosas, ni de sus estrecheces, ni que a él ─ a Don Juan Manuel, capataz de manos limpias, gobernador-propietario de los bienes de la provincia de Buenos Aires, y guardián de sus noches ─ le deben la posesión de 306 leguas cuadradas de tierras aptas para lo que guste mandar. (p.35) 91

Ou, ainda, quando se refere à proteção dos recursos que pode levar para o exílio:

Me embarqué, la noche del 3 de febrero de 1852, en al Centaur, con 745 onzas y 200 pesos fuertes, y algunas otras pocas monedas: en verdad, algo más de 2 mil libras esterlinas, que protegí, atento y en calma, del manotazo de algún gaucho ventajero. Yo soy Rosas, sí, pero no hay como la tentación que despierta el oro para borrar el respeto. (p.24)

Assim, a dor da traição, do abandono que sofreu por parte daqueles que

protegera, que a aproximação com o velho rei shakespeareano potencializa,

91 Essa passagem ecoará, pateticamente, em Ese manco Paz, quando Rosas, no poder, surpreende-

se do receio de Anchorena de uma rebelião de los hombres de chiripá y chuza. RIVERA, A. Ese manco Paz. Buenos Aires: Alfaguara, 2003. p.24-25.

contribui para relativização do Mal, já elaborada no deslocamento da perspectiva,

quanto à concepção do Bem e do Mal, a partir do discurso de Sarmiento, que a

memória de Rosas evoca. Ademais, essa aproximação pode ser a resposta a sua

interrogação sobre o desterro, no frio inverno inglês, onde há vinte anos apenas

envelhece pobre e solitário. Portanto, não é Sarmiento o detentor do saber sobre o

Bem e o Mal, mas Shakespeare ─ Lear na imagem refletida de Rosas dá a real

dimensão do injusto destino a que se sente condenado pelo virar de costas de seus

amigos. E, é nessa traição sofrida que residiria o Mal.

A relativização do Mal, por seu deslocamento para Sarmiento e para seus

amigos, que injustamente o abandonaram, construída pela memoria da personagem

Rosas, no frio inverno de seus vinte anos de exílio inglês, solitário, envelhecido e

pobre, matizada por um pragmatismo quanto à dependência de seu sustento, e pela

reconstrução de episódios desveladores de sua frieza em exercer o Mal,

redimensiona a reflexão de sua imagem.

A singular imagem que reflete é de um Rosas, não como a personificação da

barbárie, mas apenas como argentino, Sarmiento incluído92. E, porque Rosas o

inclui, a concepção dicotômica entre civilização e barbárie, que Sarmiento elabora

em Facundo, fica irremediavelmente comprometida. E se o Rosas de El farmer, que

a imagem desvela, não o libertará do exílio, ela lhe conferirá, talvez, a palabra justa

para a Pátria.

A personagem Rosas retorna ao universo ficcional de Rivera na obra Ese

manco Paz. Rosas e Paz, que ocuparam campos opostos na história argentina

decimonônica, tiveram suas vidas aproximadas por uma relação de poder.

Prisioneiro de Estanislao López, em Santa Fé, Paz passa a ser mantido, a partir de

1835, por Rosas, na prisão de Luján e, depois, em cárcere privado em Buenos Aires,

até sua fuga para Montevideo, em 1840. Com a derrota em Caseros, em 1852,

Rosas exila-se na Inglaterra e Paz volta a Buenos Aires, onde morre dois anos

depois.

92 Nessa imagem de Sarmiento, ecoa a segunada versão do destino de Cufré: sua volta espontânea

ao cativeiro.

Em Facundo, Sarmiento descreve o general Paz, em contraste com Facundo

Quiroga, derrotado por Paz, em La Tablada, dentro da disjuntiva civilização e

barbárie:

En la Tablada de Córdoba se midieron las fuerzas de la campaña y de la ciudad bajo sus más altas inspiraciones, Facundo y Paz, dignas personificaciones de las tendencias que van a disputarse el dominio de la República. Facundo, ignorante, bárbaro, (…) valiente hasta la temeridad, dotado de fuerzas hercúleas, gaucho de a caballo, (…) dominándolo todo por la violencia y el terror. ……………………………………………………………………………………….. Paz, es, por el contrario, el hijo legítimo de la ciudad, el representante más cumplido del poder de los pueblos civilizados. (…) Paz es militar a la europea; no cree en el valor solo, si no se subordina a la táctica, la estrategia y la disciplina; (…) La ostentación de fuerzas numerosas lo incomoda; pocos soldados, pero bien instruidos. (…) Es el espíritu guerrero de la Europa hasta en el arma en que ha servido, es artillero y por tanto matemático, científico, calculador. Una batalla es un problema que resolverá por ecuaciones, hasta daros la incógnita, que es la victoria. ………………………………………………………………………………………..es, en una palabra, el representante legítimo de las ciudades, de la civilización europea, que estamos amenazados de ver interrumpida en nuestra patria.93

No século XX, Martín Kohan, em “Memoria voluntaria, novela involuntaria.

Las memorias póstumas del general Paz”94, define o militar Paz, aproximando-o de

Belgrano e San Martín:

La figura de Paz se inscribe (…) en un lugar intermedio, y ciertamente considerable, entre los dos grandes próceres argentinos (el tercero, que será Sarmiento, ya lo ha reconocido como un par en la empresa civilizadora). Al igual que Belgrano, entra en el ejército por la necesidad del país y por su disposición a servir en lo que sea preciso. Al igual que San Martín, sistematiza un saber sobre la guerra, forma soldados y contribuye a la modernización del empleo estatal de la violencia. Al igual que San Martín, repudia la guerra civil y la lucha entre facciones; pero, al igual que Belgrano, se ve envuelto en ellas, muy a su pesar.95

Paz, que integrou o exército sob o comando do General Belgrano, que

participou da guerra com o Brasil e que venceu Facundo em La Tablada e Oncativo,

não é ficcionalizado por Rivera em nenhum importante momento da história pátria.

Ao contrário, a personagem Paz, de Ese manco Paz, encontra-se só, em 1854, ano

de sua morte, na casa que lhe foi concedida pelos que ele chama de los dueños de

93 SARMIENTO, D. F. Facundo. Buenos Aires: Librería del Colégio, 1933, p. 198-200. 94 KOHAN, M. “Memoria voluntaria, novela involuntaria. Las memorias póstumas del general Paz. In:

SCHVARTZMAN, J. (director del volumen) Historia crítica de la literatura argentina. V. 2. La lucha de los lenguajes. Buenos Aires: Emecé, 2003.

95 Id., p. 574.

Buenos Aires (p.58), que o acolheram con ese respeto que se les depara a los

abuelos algo idos, y balbuciadores de historias inconclusas, de los que se espera

que no requieran excesivos cuidados, y que mueran rápido y en silencio (p.16-17).

Em Ese manco Paz, o general Paz, detentor de um fundamental saber

militar, dá lugar ao velho general que, no fim de sua vida, questiona, intimamente, o

significado de suas batalhas ─ ¿Para quién gané esas batallas? / ¿Para qué?

Numa busca de compreender esse significado que daria resposta também à

pergunta que Salvador Maria del Carril lhe fizera no exílio, focaliza uma concepção

sonhada, irrealizada de Pátria, expressa no papel amarelecido que escrevera na

prisão, no qual admite que entre os povos a causa da Pátria é considerada

estrangeira.

Algumas aproximações podem ser identificadas entre Paz, de Ese manco

Paz e Rosas, de El farmer. Ambos, solitários, narram seu presente e, ao narrá-lo,

procuram, questionadora e reflexivamente, pela memória estritamente íntima,

compreender as experiências vividas, em uma reconstrução, baseada no

conhecimento que a distância temporal lhes confere e que lhes leva a redimensionar

o papel que lhes coube na história pátria.

A semelhança de Rosas, Paz já não tem um papel atuante ─ Soy, para los

dueños de la ciudad, una estatua que camina. (p.41). Assim como Rosas, que no

exílio afirma que o chamarão para salvar o país que está enfermo96, Paz alimenta o

sonho de ser, ainda, o general José María Paz:

Yo paseo por las calles de Buenos Aires, solo, y los dueños de la ciudad se descubren ante mí y me saludan ─ moviendo esforzadamente los labios ─ , y el general José María Paz, que espera librar, todavía, una o dos batallas, responde, educado, ceremonioso, al homenaje de los dueños de la ciudad.(p.41)

96 A passagem é como segue:

Me llamarán y yo no volveré. Eso es tan cierto como que Nuestro Señor Jesucristo fue vendido y clavado en la cruz. Me llamarán para que salve a un país enfermo, roído por la anarquía, devastado y empobrecido (…).

RIVERA, A. El farmer. Buenos Aires: Suma de Letras Argentinas, 2002, p. 35.

Se a cidade de Buenos Aires abriga Paz e rejeita Rosas, se no ditador

exilado há uma nostalgia de sua terra ─ ¿Cómo es Buenos Aires, mi general?/

Lluviosa como un recuerdo97 ─ e no General Paz um repúdio ─ una ciudad

degradada y hereje que se llama Buenos Aires (p. 94), um sentimento comum os

aproxima. Para ambos, a Buenos Aires do presente é estranha aos seus sonhos.

Uma epígrafe da obra Los libros de los otros, de Ítalo Calvino, precede a

narrativa. O fragmento selecionado é uma pergunta, que subentende um contraste

entre duas escrituras sobre a história: ...porque, desde luego, no hay nada más

divertido que escribir cosas históricas... / pero de nuevo, de verdadero, de sufrido, de

esforzado, de no-del-todo-claro-ni-siquiera-para-ti,¿qué dices? Essa epígrafe dará o

tom da recuperação, pela memória da personagem, de fragmentos de sua história,

intimamente ligados a da pátria, na medida em que Paz buscará uma resposta à

pergunta de Calvino, que é sua, quando estiver em jogo a palavra Pátria. Sua

narrativa, como sugere interrogativamente Calvino, será nova, verdadeira, corajosa,

desveladora do ainda obscuro, até mesmo para ele, na sua e na história argentina.

A narrativa vai sendo tecida por uma alternância de capítulos intitulados “La

república” e “La estancia”, os quais são protagonizados pelas personagens Paz e

Rosas, respectivamente, sendo que em “La estancia” ecoa a narrativa de El farmer.

Sem se contraporem ao discurso historiográfico, coletivo – a memória de Paz e de

Rosas vão preenchendo espaços vazios, como proposto por Borges, em sua

conferência "Nathaniel Hawthorne", já referida anteriormente na análise de La

revolución es un sueño eterno. Ao preenchê-los, redefinem o papel próprio e do

outro, na história de suas vidas e da pátria.

1.3.2 Rosas e Paz: universos paralelos, vozes complementares

El manco Paz abre com um capítulo, intitulado “La república”, que, como os

demais, organiza-se em fragmentos. No primeiro fragmento, o narrador-personagem

faz uma afirmação definitiva e definidora da perspectiva que norteará sua memória

de momentos da sua história pessoal e da Argentina:

97 RIVERA, A. El farmer. Buenos Aires: Suma de Letras Argentinas, 2002, p.12.

Sé que anoté, como un maníaco, como si grabara en piedra y en hierro las últimas letras de mi testamento, a lo largo de mis nueve años de cárcel: En los pueblos es ya como extranjera la causa de la Patria. (grifado na obra) (p. 13)

Esse registro encontra eco na pergunta ─ dónde está la patria? ─ que

Salvador María Carril, dono de las lenguas más poderosas del país (p. 15), havia lhe

feito em seu exílio, a ele, um general sin tropa e um granjero endeudado (p.15), e

que não havia respondido.

No segundo fragmento, relembra sua longa e insoportable espera por seus

algozes, no cárcere e, como, nessa espera, prefigurava sua morte98. As incontáveis

vezes em que imaginou formas de como os montoneros de Estanislao López ou a

Mazorca de Rosas o matariam são descritas como segue:

Esperé, (…) que los montoneros de Estanislao López99 me humillaran

con una muerte afrentosa. O que los mazorqueros de Juan Manuel de Rosas me sumieran en

las abyecciones de la tortura (Juro por Dios que vi cómo jugaban al voleo con mis tripas.)

Esperé, vencido por la fatiga de la espera, la llegada de los asesinos y de sus risas impunes. Esperé sus manos listas para el faenamiento.

Y, en esa espera, envejecí. No pude dormir; esperé, en los repliegues vertiginosos de la noche, escucharme cacarear las abominaciones de la agonía. Esperé en las nieblas del alba, y a la luz del día. (p.13)

98 Essas ejecuciones imaginarias, o aproximam da personagem, o judeu Jaromir Hladík, preso e

condenado à morte por fuzilamento, pelo Terceiro Reich, em Praga de “El milagro secreto”, uma criação de Jorge Luis Borges, no século XX:

No se cansaba de imaginar esas circunstancias: absurdamente procuraba agotar todas las variaciones. Anticipaba infinitamente el proceso, desde el insomne amanecer hasta la misteriosa descarga. Antes del día prefijado (...) murió centenares de muertes, en patios cuyas formas y cuyos ángulos fatigaban la geometría, ametrallado por soldados variables, en número cambiante, que a veces lo ultimaban desde lejos; otras, desde muy cerca.

BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1994. 3v. V.1: Ficciones, p.509.

Essa construção de Rivera que reproduz no seu narrador-personagem os sentimentos de outro poderia ser lida como uma forma de estender, amplificar as sensações desse penoso momento.

99 Paz, em suas Memórias, descreve Estanislao López, como segue:

Este caudillo, era un gaucho en toda la extensión de la palabra. Taimado, silencioso, suspicaz, penetrante, indolente y desconfiado: no se mostró cruel, pero nada era menos que sensible: no se complacía en derramar sangre, pero la veía correr sin conmoverse: no excitaba desenfrenadamente la plebe, pero tampoco reprimía los desórdenes, tenía un modo particular de obrar cuando se proponía corregirlos.

PAZ, J. M. Memorias Póstumas del Brigadier General D. José M. Paz. 2 v. Buenos Aires: Imprenta de la Revista, 1855, p. 364.

Nesse fragmento, fica exposta, de forma contundente, a crueldade dos

homens do caudilho Estanislao López e da polícia de Rosas, na medida do uso do

termo faenamiento, que remete à obra El matadero, de Echeverría, em que há a

imolação do jovem unitário, pelos integrantes de um matadouro.

Se, em sua espera insoportable na prisão, envelheceu, uma certeza resistiu

ao tempo: os ideais de Mayo não encontraram eco numa sociedade acostumada às

benesses que lhe garantira a Espanha:

La Revolución de Mayo se propuso sacudir un orden conformado por

burócratas, prestamistas, letrados, comerciantes, propietarios urbanos, propietarios de tierras. Y a ese orden se integraban, complacidos, satisfechos, ahítos, esclavos y peones, y sus hembras, e hijos y las hijas de esclavos y peones, y familiares cercanos y lejanos de esclavos y peones.

Y patrones, peones, esclavos ─ satisfechos y complacidos ─ no necesitaban que nadie ─ y menos unos tortuosos jacobinos, maldecidos por Dios que Roma y España nos legó ─ viniese a cambiarles las dichosas rutinas de sus vidas. (p.14)

Embora fruto de diferentes perspectivas, pode-se identificar nessa

constatação de Paz, uma proximidade com a observação de Rosas, em El farmer,

sobre a Revolução: España es mi madre. (...) Los jacobinos, con la Revolución de

Mayo, nos empujaron al mundo de enfermedad, de la disolución y de la duda (p.40).

Também é possível ler, nesse fragmento, a afirmação de Halperin Donhgi de que a

Revolução foi una aventura estrictamente personal de algunos porteños.100

Uma nova referência a Mayo é feita por Paz, ao lembrar a forma

emocionada com que seu pai recebera a notícia da Revolução:

Vi llorar a mi padre, cuando llegaron a Córdoba las noticias del

alboroto porteño un 25 de mayo. Aquel hombre juicioso, prolijo y atento a las reglas más estrictas de

comportamiento formal, y desdeñoso de las gratificaciones emocionales, lloró. Las proclamas jacobinas y democráticas de mayo cargaron sus ojos con tibias y dóciles lágrimas. (…)

Recuerdo que hubo palabras como despotismo, libres, independientes en su murmullo. Las hubo como si las descubriera, y como si recién descubiertas, se decidiera a incorporarlas, nuevas, espléndidas, mágicas, a su parco vocabulario. (p.38-39)

100 HALPERIN DONGHI, T. Revolución y guerra. Formación de una élite dirigente en la Argentina

criolla. Buenos Aires: Siglo veintiuno, 1994, p.15.

Estabelece-se, nesse fragmento, um diálogo com o romance La revolución

es un sueño eterno, na medida em que a emoção do pai de Paz fica contaminada

pela lágrima de Castelli, quando, nas palavras de Segundo Reyes, constata a

impossibilidade de ver seus ideais tornarem-se realidade.

A seguir, a personagem, que já se havia referido a si como manco,

identifica-se como “el manco Paz”. Ele traça um contraste entre a atitude dos que

chama los dueños de Buenos Aires que o acolhem no presente e o repudiaram no

passado:

Yo no olvido que soy argentino, y, por eso, me miro, aquí, en Buenos

Aires, en la ciudad que fue mi cárcel y cuyos dueños me agasajan, hoy, con ese respeto que se les depara a los abuelos algo idos, y balbucientes narradores de historias inconclusas, de los que se espera que no requieren excesivos cuidados, y que mueran rápido y en silencio. ……………..…….……………………………………………………………………..Pero yo, todavía, no olvido que los que me agasajan, hoy, aquí, en la ciudad de Buenos Aires, se apartaban, ayer, de mí, cuando la ciudad de Buenos Aires fue mi cárcel.

Se apartaban de mí, los señores, como si yo, el manco Paz, fuese uno de esos leprosos de la Edad Media, condenados a la soledad por los Cánones de la Iglesia de Dios. (p. 16-17)

Ao estabelecer esse contraste, a personagem define o espaço ─ Buenos

Aires ─, o tempo da história ─ o presente de liberdade e de final de vida ─ e, ainda

sua condição de argentino.

Os donos de Buenos Aires são definidos, pela personagem,

fundamentalmente, por serem proprietários de grandes extensões de terra ─

doctores en leyes, diplomáticos, jefes de ejércitos, y todos, todos, poseedores de

tierras sin horizonte, de bosques donde no penetra la luz del sol, de ríos aún no

bautizados (p. 17) ─ e por gozarem da tutela protetora da igreja católica,

independente de suas questionáveis condutas, e de Rosas ─ celoso guardián de sus

fortunas ─, primeiro identificado como el hombre rubio y alto y sano (p. 18) e, em

seguida, por seu próprio sobrenome. Rosas é o celoso guardián de sus fortunas a

quem eles rogavam a Deus para que no enfermase nunca. (p. 18)

De Rosas, ainda, a personagem Paz agrega a particularidade de escrever

incessantemente ─ el hombre rubio y alto y sano escribía infatigable ─ e transcreve

alguns de seus conselhos e ensinamentos que escrevia para os donos de Buenos

Aires:

Y les aconsejara, infatigable su pluma, cómo despellejar a los

adversarios del orden, cómo quebrarles las patas, cómo violar a sus mujeres e hijas, hasta que esas mujeres y esas hijas aceptaran las persistentes efusividades de sus dueños.

Y les enseñara, infatigable la pluma del hombre alto, rubio, hermoso, que el país es una estancia. (p.18)

Nesses conselhos, apresentados por Paz, ecoam a crueldade do poder

rosista, construído pela memória da personagem Rosas, em El farmer. A afirmação

orgulhosa de Rosas Yo soy um caballero español101, em El farmer, parece expandir-

se, em Ese manco Paz, pela descrição de Rosas no poder, como la bella cara de

macho español e, fundamentalmente, pela observação de Paz de que esses

conselhos e ensinamentos de Rosas não eram mais que uma continuidade do

recebido da Espanha ─ Pero ellos lo supieron desde que la España de la conquista

expandió sus apellidos por estas tierras de desventura. Desde que la España católica

perpetuó la rapiña de sus soldados por tierras de maravillas y de tormentos. (p. 18-19)

Essa explicação de Paz harmoniza-se com a identificação de Rosas com a Espanha e

sua posição frente a Revolução de Maio, já referida anteriormente.

O capítulo conclui com a frase ─ El hombre rubio, alto, hermoso, sano,

escribía, infatigable, porque nada borra la palabra escrita. A condição de perenidade

do registro escrito é questionada, mas imediatamente reafirmada pela personagem

Rosas, ao evocar Sarmiento, no capítulo “La estancia”, que imediatamente segue a

este, no fragmento em que é descrito Rosas em sua relação com o registro da

palavra:

Don Juan Manuel, recta la espalda, escribe y escribe palabras en hojas de oficio. …………………………………………………………………………………………. Relee, el mejor archivista que, dicen, hayan conocido los argentinos, las líneas que tiene frente a sus ojos y las aprueba, receloso. Mañana, piensa, las reescribiré. Piensa que toda escritura es provisoria. Pero el señor Sarmiento tampoco tacha lo que reescribe. (p.26-27)

A palavra escrita que não se apaga estende-se também para o discurso do

próprio Paz: a frase anotada na prisão e o registro escrito de sua certeza em relação

101 RIVERA, A. El farmer. Buenos Aires: Suma de Letras Argentinas, 2002, p.21.

a Revolución de Mayo e a ordem estabelecida ─ Leo las líneas que acabo de escribir:

tienen la frialdad de los datos estadísticos (p. 14) ─ não serão borradas.

A personagem-narrador José Maria Paz ─ el manco Paz ─ apresenta-se, no

primeiro capítulo, como um velho argentino que vive em liberdade, acolhido pela

benevolente hipocrisia dos donos da cidade, que representam o poder, em Buenos

Aires pós-Caseros. Paz reconstrói, pela memória, reflexivamente, dois universos: o

seu que sintetiza na concepção de Pátria e o universo herdado da Espanha, dos

dueños de Buenos Aires e de Juan Manuel de Rosas, onde a Revolução de Mayo não

tem lugar.

Os dois universos irreconciliáveis serão expandidos nos capítulos seguintes,

cujos títulos que se alternam ─ “La república” e “La estancia” ─ condensam as

posições diante da história das personagens Paz e Rosas, respectivamente.

O discurso narrativo que segue o primeiro capítulo é tecido ora

explicitamente pela voz do narrador-protagonista Paz ou pela voz de Rosas, ou seja,

uma narrativa auto e homodiegética, ora de forma apessoal (menos freqüente) ─

uma narrativa heterodiegética. O segundo capítulo “La estancia” é, singularmente,

exemplar dessas possibilidades de apresentação da voz que narra.

O capítulo abre, mantendo o mesmo tom do final do capítulo anterior ─ El

hombre rubio, alto, sano, hermoso, les escribía el país es una estancia (p.23) ─, ou

seja, a introdução à personagem de Rosas poderia ser interpretada como a

seqüência do discurso de Paz:

El hombre que escribía, infatigable y sano y hermoso, en su casona de Palermo, aceptaba la misión que le deparó el Dios que vino de España y de Roma. Era un buen católico el hombre a quien la escritura de lo que fuese no fatigaba (p.24)

A essa voz que, embora não identificada, soa como a de Paz, segue um

novo fragmento em que, sem mediação alguma, surge a voz de Rosas que inicia

expressando sua incredulidade sobre uma afirmação de Nicolás Anchorena: ¿Por

qué mi amigo, don Nicolás de Anchorena, tan rico él, y tan sabio, probablemente,

dijo que teme la rebelión de los hombres de chiripá y chuza? (p. 24). E, conclui, com

uma resposta:

Don Nicolás: su fortuna no dejará de crecer mientras yo sonría, en alguna tarde gris y porteña, de recorrida por algún barrio de negros, indios y mestizos, criollos y guitarreros, que existen. (p.25)

A seguir, a narrativa torna-se apessoal, na qual não mais ressoa a voz de

Paz. Um narrador externo ao universo diegético assume a narrativa: Los bordes del

ancho vestido de Manuelita rozan los pisos limpios de la casona de Palermo hasta

que ese roce cesa y la joven dama se inclina hacia el oído de su padre. (p.25)

Essa alternância de vozes justifica-se pelo tempo da história. Nesse capítulo,

em contraste com o primeiro, o tempo da história é o tempo da ditadura rosista, no

qual Paz está preso em Luján e Rosas no poder, a partir de sua casa em Palermo.

Tudo se passa como se Paz conduzisse o leitor até a porta da casona de Palermo,

mas, como sua entrada está vedada, ele se retira e cede a voz a quem a habita. O

que se passará nessa casa será narrado ou diretamente sem mediação ou por

alguém que a focaliza de fora e descreve o que vê.

Essa estratégia narrativa permite a separação e a independência do narrado

no universo de Paz ─ “La república” ─ e no de Rosas ─ “La estancia”. Essa

independência também se revela na falta completa de linearidade na seqüência

temporal entre o narrado nos dois universos. É exemplar o capítulo décimo,

intitulado “La estancia”, no qual Rosas, já no exílio inglês, declara que Paz está

morto:

Esto les digo:

Don Justo José, muerto. El manco, muerto. Don Estanislao, muerto. Yo, Juan Manuel de Rosas, estoy vivo. (p.105) (grifado na obra)

E, o capítulo seguinte, “La república”, abre pela voz de Paz, relembrando

sua fuga para Montevideo, aos 49 anos, catorze anos antes de sua morte: Estoy

aqui, bajo el sol de un verano que demora su partida, y miro mi sombra, la sombra

de mi cuerpo en el agua. (p. 109)

Nos capítulos “La república”, Paz traz à tona, numa interrogativa reflexão, o

ingresso no exército ainda muito jovem, levado por sua mãe; possíveis

aproximações entre ele e Rosas, que na realidade desvelam um abismo existente

entre eles ─ Resulta que yo le ruego a Dios paz, orden, quietud y prosperidad para

la República, y Rosas pide orden, quietud, paz y prosperidad para este país donde él

y yo nacimos. ¿Queremos lo mismo, él y yo, para este país donde, él y yo nacimos?

(p.58) (grifado na obra) ─; sua fuga para Montevideo e diálogos vividos e imaginados

com sua mulher morta, Margarita Weild. Esse olhar reflexivo para o passado se faz

em busca de uma inalcançável Pátria.

Nos capítulos “La estancia”, quando o tempo da história é anterior a

Caseros, há a construção paulatina do poder de Rosas, em reciprocidade com a

fidelidade daqueles que, no exílio, de El farmer, Rosas acusará de abandono ─ a

referência a Anchorena, os informes de sus fieles que Rosas recebe todas as

manhãs, já mencionados anteriormente, apontam para essa perspectiva. Os

capítulos que situam Rosas no exílio reeditam o tom da personagem de El farmer,

em seu diálogo com o discurso de Sarmiento e, sobretudo, na contundente

interrogativa sobreposição de sua imagem com a do autor de Facundo:

Don Domingo Faustino Sarmiento ordenó que degollaran al Chacho Peñaloza. (…) Se alzó contra el gobierno, y los paisanos que lo siguieron gritaban Viva Rosas. (…) ¿Y el señor Sarmiento? El señor Sarmiento apela al mismo recurso que utilicé yo, Juan Manuel de Rosas, para aplacar a los indóciles, y a los que tienen perturbada la razón. Y a los que se mofan de los que están llamados a conducir la República, hoy y siempre. Yo soy el nombre de siempre. El nombre de hoy. El nombre de ayer. (p.120)

Se a voz de Rosas reforça a permanência de seu universo bárbaro, a figura

de Paz não pertence a ele.

Paz associa o poder à posse de terras, ao referir-se aos donos de Buenos

Aires como grandes proprietários, e a barbárie, em Paz, situa-se nos detentores

desse poder. Para Paz, não há, também, a dicotomia entre unitários e federais e a

seguinte passagem é exemplar dessa posição do general:

¿Unitarios? ¿Federales? Siempre me pregunté a quienes identificaban esas denominaciones, eses apelativos de clanes o de tribus, esos alaridos que brotan de las gargantas del paisanaje, hoy, y que se escucharon ayer, y que se escucharán mañana entre los tormentos de un degüello y otro. Rosas dilo que cuando lo llamaban federal se reía. Inteligente, Rosas. (p.61)102

Rosas reforça a voz de Paz ao apontar, num diálogo com sua filha, na casa

de Palermo, sua superioridade sobre ele:

─ Escúcheme, Manuela: el manco es nadie. El manco no es unitario. El manco no es federal. No es rico, el manco. ¿Dónde lo han de enterrar, si no es dueño de una miserable lonja de tierra…? Y yo soy Dios: por eso está vivo Paz, el manco (p.27)

Essa pretensa superioridade é desfeita pelo próprio Rosas, em uma

declaração íntima sobre Paz, quando já fazia muitos anos de sua morte e Rosas

estava no exílio:

Está muerto el manco Paz. Años de años que está muerto el hombre, el único que supo meterme miedo en el cuerpo, y esto me lo digo aquí, en tierra inglesa, entre las paredes de mi casa, a solas con mi alma. Y Dios es testigo de que no miento. El manco llevaba sus ejércitos hacia Buenos Aires: no quería tierras el manco, y no había oro en tierra argentina que comprase al manco, y no había tributos ni homenajes que corrompiesen su voluntad. (p.103)

A palavra do seu antagonista sobre sua integridade moral dá à voz de Paz ─

Y también sé que hay una calumnia que nadie puede inventarme: soy y he sido

pobre de toda pobreza ─ a solidez incontestável de verdade.

Também para as personagens Rosas e Facundo, situados em campos

opostos ao de Paz, não há sequer um senão na excelência de Paz, quanto à arte da

102 Em suas Memórias, Paz coloca-se com imparcialidade frente à guerra civil dos momentos iniciais da

Argentina, ao caracterizar como espíritu de democracia a agitação que protagonizavam os gaúchos incitados pelas idéias de Federação que se confundiam com as de independência das províncias defendidas por Artigas e seus tenentes e julga que será censurado por isso. Diz Paz:

Era un ejemplo muy seductor ver á eses gauchos de la Banda Oriental, Entre-Rios y Santa-Fé, dando la ley á las otras clases de la sociedad, para que no desease imitarlo los gauchos de las otras provincias. (…) Acaso se me censurará que haya chamado espíritu democrático al que en gran parte causaba esa agitación, clasificándolo de salvajismo; mas en tal caso deberán culpar al estado de nuestra sociedad, porque no podrá negarse que era la masa de la populación la que reclama el cambio. (…) no era tampoco una equivocación pasajera que luego se rectifica: era una convicción errónea si se quiere, pero profunda y arraigada.

PAZ, José María. Memorias Póstumas del Brigadier General D. José M. Paz. 2 v. T. 2. Buenos Aires: Imprenta de la Revista, 1855, p. 179.

guerra. A reprodução da narrativa perplexa de Facundo Quiroga103, sobre as

batalhas em que foi vencido por Paz, feita por Rosas, ainda no poder, atestam essa

competência:

Dígame por qué el manco me ganó en Oncativo… ………………………………………………………………………………………….. Y ni Dios sabe cómo movió el manco su infantería y sus cañones, pero los tuve, antes de que se pusiera el sol, en los flancos de mi caballería. Un fantasma, el manco. La cara de piedra, el manco. Y me adivinaba el pensamiento, mirándome lancear riojanos. (p.49)

O próprio Rosas, no exílio, reafirma o discurso de Facundo:

No había otra cabeza para la guerra como la de él, la de Paz. Quien lo tuviese bajo su ala ─ (…) dormiría sus noches sin sobresaltos: la victoria, hoy o mañana, o en un año o en diez, estaba asegurada. (p. 104)

Nessa medida, em El manco Paz, duas personagens, sob perspectivas

próprias, situadas em campos opostos na história, Rosas e Paz, constroem em

uníssono a personagem José Maria Paz. Essa construção não difere do militar à

européia, de Sarmiento, nem do militar que se colocou, sem restrições, a serviço de

sua pátria, descrito por Kohan.

1.3.3 Civilização vs barbárie: uma leitura em El farmer e Ese manco Paz

Textos do século XIX, que construíram literariamente as figuras de Rosas e

Paz, os colocam em campos opostos e, na figura de Rosas, a personificação da

barbárie. Assim, em El matadero, de Echeverría, o matadouro é um microcosmos

representativo do universo bárbaro rosista que imolará o jovem unitário. Em

Facundo, Rosas é apresentado como herdeiro do bárbaro Facundo Quiroga, sem,

contudo, levar consigo a genuinidade daquele. Amalia constitui-se no texto que,

talvez, melhor expresse, literariamente, o terror do poder de Rosas. Sem focar

especificamente a figura de Rosas, a atmosfera de delação, temor que impede a

associação percorre todo o texto e, eloqüentemente, é reveladora desse terror.

103 Paz, ao descrever, em suas Memórias, a batalha de La Tablada e a posterior preparação de

Facundo para uma nova investida, destaca sempre a audácia e coragem de Facundo, e simultaneamente, a crueldade que se revestem seus métodos.

Rivera, ao reconduzir ao universo ficcional as personagens históricas Rosas

e Paz, nos romances El farmer e Ese manco Paz, abre novamente o tema da

oposição civilização e barbárie, com deslocamentos de sentidos em relação aos

textos decimonônicos.

A personagem Paz que, inquisitivamente, no ano de sua morte, reflete sobre

sua vida e a da pátria, não se incompatibiliza com o Paz de Sarmiento. Sua imagem

de militar é avalizada por seus inimigos Quiroga e Rosas.

Em Ese manco Paz, a esse militar, estão aderidos os ideais de Mayo,

expressos por ele e reforçados pelas palavras proferidas por seu pai, que a memória

do filho recupera. Os ideais de uns tortuosos jacobinos estão também refletidos nas

perguntas que, desencantado, Paz faz a si próprio: ¿Para quién gané esas batallas?

¿Para qué? (p.77). Nessa medida, o militar impecável aproxima-se de Castelli, de La

revolución es un sueño eterno. Podem-se estender a Paz suas palavras de que

homens como ele irromperam en el escenario de la historia antes de que suene su

turno e esses homens esperan que el apuntador les anuncie, por fin, que sus relojes

están en hora. (p.144-145) E, esta constatação responderia a pergunta que fez

Salvador María Carril a Paz e que ele deixara sem resposta ─ donde está la patria?

Rosas, que foi literariamente construído como a personificação da barbárie

no século XIX, em El matadero, Amalia e Facudo, tem essa carcterização

relativizada no Rosas que emerge de El farmer e Ese manco Paz. Se é certo que ele

não é isentado de suas cruéis perseguições e de deter um poder absoluto sobre a

vida pública e privada dos argentinos, quando no poder, Rivera parece despojá-lo

um pouco do peso da barbárie, ao ampliar o seu espectro, quando a identifica,

também, nos seus aliados que o abandonaram. Por exemplo, na figura Anchorena,

ou quando a personagem Rosas, crucialmente, vê em Sarmiento os seus próprios

métodos.

Assim, a barbárie por um lado, desloca-se de uma personificação em Rosas,

como pretenderam os escritores decimonônicos, para um espectro maior que inclui

Sarmiento e os dueños de Buenos Aires. Exemplarmente, a Buenos Aires do

presente das personagens, enfocada nos dois textos, não traduz a desejada pelas

personagens. A luta pelos ideais de Revolução buscados por Paz o estranha de

Buenos Aires. E Rosas não previu a traição de seus pares.

A busca utópica da Pátria perseguida pela personagem Paz e a relativização

do Mal em Rosas, não apenas pela inclusão de Sarmiento na barbárie, mas pela

deslealdade daqueles que considerava seus amigos, os dueños de Buenos Aires

que condenaram no passado e no presente acolheram Paz, permite uma total

relativização da barbárie. Ela não se personifica em homens, mas na essência do

humano, no qual convivem o Bem e o Mal.

A figura de Shakespeare que Rivera traz para sua ficção, em El farmer,

reforça essa possibilidade de uma leitura da civilização e barbárie que, embora,

particularizada na Argentina pode ter uma projeção universal. A civilização,

representada por Paz, corresponderia à utópica busca de ideais de paz, de

liberdade, justiça, que realmente lhe respondesse o porquê e para quê lutou tantas

batalhas e a barbárie, à fragilidade humana, quando está em jogo o poder.

CONCLUSÃO

La cultura mueve tiempos plurívocos, que son elegidos dentro del repertorio

amplio que ofrece el pasado, según los intereses y las ideas de los grupos sociales

que se enfrentan en el presente, afirma Angel Rama, em “Argentina: crisis de una

cultura sistemática”, artigo datado de 1980.104

Sob essa perspectiva cultural, Rama estabelece um paralelismo entre o

século XIX e XX da história argentina, no que se refere a momentos de crise que

levaram a um intenso debate intelectual, baseado em (re)definições da concepção

de nação, com a finalidade de desenhar novos projetos organizativos. Rama

estabelece duas grandes épocas de duração de meio século: a primeira de 1800 até

Caseros e, a segunda, de 1930 até 1980 (esse período o autor considera ainda

inconcluso).

Levando em conta esse paralelismo, parece possível pensar uma leitura da

questão civilização e barbárie, na obra En esta dulce tierra (que se publica logo do

final da ditadura militar) em conjunto com La revolución es un sueño eterno, El

farmer e Ese manco Paz, publicadas entre 1984 e 2003, dentro de um novo período

de redefinição da nação. A reconstrução do passado, que não se contrapõe ao

discurso historiográfico, e que é fruto da memória pessoal, íntima das personagens,

matizada por um interrogativo e reflexivo desencanto, desenharia uma tensa busca

de refundação da nação.

104 RAMA, A. Argentina: crisis de una cultura sistemática. In: Punto de Vista: Buenos Aires, n.9, p.3-

10, 1980. p. 3.

No gesto refundador, que se pode surpreender em Rivera, não há a

dicotomia decimonônica, que torna irreconciliáveis a cidade civilizada e a campanha

bárbara ou unitários representantes da primeira e federalistas, encarnados no poder

de Rosas. Também não há, como em Borges, a construção de uma mitologia, na

qual há a eleição de um espaço mítico.

Valendo-se de personagens históricas, o controverso revolucionário jacobino

Castelli, Rosas, cujo poder persegue implacavelmente seus inimigos (que inclui

Cufré) e que, derrotado em Caseros, exila-se na Inglaterra e Rosas, inimigo de Paz,

Rivera relativiza a barbárie, sem, contudo, tomar o partido da civilização, como fora

concebida no século XIX.

Suas personagens Cufré, Castelli e Paz lutam contra toda a esperança, não

abdicam da utopia, mas porque irromperam no cenário da história antes que

houvesse soado a sua hora, viram inviabilizadas suas buscas de ideais de igualdade

entre os homens, de justiça e convivência pacífica e fraterna e da própria Pátria.

Nessa perspectiva, o universo diegético construído nessas obras parece voltar-se

para uma Argentina que ressurge, interrogando-a quanto à construção de um

cenário para as idéias que as personagens abrigam.

Por outro lado, há a construção das personagens Castelli, Rosas e Paz

como personagens solitárias, próximas da morte, num frio inverno, e de Cufré, como

personagem que povoa a memória do outro, que preenche a sua que cala. Assim

construídas, essas personagens retomam o discurso historiográfico e literário do

século XIX de uma forma extremamente pessoal, íntima, própria da natureza da

memória. Ao mesmo tempo, essas personagens revelam-se numa dimensão

extremamente humana; não há simplesmente uma experiência coletiva que se torna

idiossincrática; há, sobretudo, nessas obras, o que Maria Cristina Pons identificou

como o simbolicamente verdadeiro, ou seja, la verdad de la literatura que está por

detrás de lo “falso” de la ficción.105

105 PONS, M. C. El secreto de la historia y el regreso de la novela histórica. In: DRUCAROFF, E.

(directora del volumen) Historia crítica de la literatura argentina: v.11. La narración gana la partida. Buenos Aires: Emecé, 2000, p. 106.

Nessa medida, na poética de Rivera que emerge de En esta dulce tierra, La

revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz, há o poético, que

permite estender a concepção de civilização e barbárie da Argentina, para o âmbito

universal. E, essa verdade da literatura confere às obras En esta dulce tierra, La

revolución es un sueño eterno, El farmer e Ese manco Paz, sua perenidade.

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