UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ENFERMAGEM … · graduação e colegas da SESA, pelo trabalho...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ENFERMAGEM BRÍGIDA GIMENEZ CARVALHO COORDENAÇÃO DE UNIDADE DA ATENÇÃO BÁSICA NO SUS: TRABALHO, INTERAÇÃO E CONFLITOS São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

ESCOLA DE ENFERMAGEM

BRGIDA GIMENEZ CARVALHO

COORDENAO DE UNIDADE DA ATENO BSICA

NO SUS:

TRABALHO, INTERAO E CONFLITOS

So Paulo 2012

1

BRGIDA GIMENEZ CARVALHO

COORDENAO DE UNIDADE DA ATENO BSICA

NO SUS:

TRABALHO, INTERAO E CONFLITOS

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Gerenciamento em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Cincias rea de concentrao: Gerenciamento em Enfermagem Orientadora: Prof. Dr. Marina Peduzzi Coorientador: Prof. Dr. Jos Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

So Paulo 2012

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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Assinatura: _________________________________

Data:___/____/___

Catalogao na Publicao (CIP)

Biblioteca Wanda de Aguiar Horta Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo

Carvalho, Brgida Gimenez Coordenao de unidade da ateno bsica no SUS: trabalho, interao e conflitos / Brgida Gimenez Carvalho. -- So Paulo, 2012. 300 p. Tese (Doutorado) Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo. Orientadora: Prof Dr Marina Peduzzi Co-orientador: Prof. Dr. Jos Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

1. Administrao de servios de sade 2. Ateno primria sade 3. Conflito Psicologia 4. Trabalho 5. Enfermagem I. Ttulo.

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Nome: Brgida Gimenez Carvalho Titulo: Coordenao de Unidade da Ateno Bsica no SUS: trabalho, interao e conflitos

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Gerenciamento em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Cincias.

Aprovado em: ___/___/___

Banca Examinadora

Prof. Dr. Marina Peduzzi Instituio: EEUSP

Julgamento: ____________________ Assinatura: ___________

Prof. Dr. Jos Ricardo de Carvalho

Mesquita Ayres

Instituio: FMUSP

Julgamento: ____________________ Assinatura: ___________

Prof. Dr. Elizabeth Artmann Instituio: ENSP/FIOCRUZ

Julgamento: ____________________ Assinatura: ___________

Prof. Dr. Francisco Javier Uribe Rivera Instituio: ENSP/FIOCRUZ

Julgamento: ____________________ Assinatura: ___________

Prof. Dr. Silvana Martins Mishima Instituio: EERP/USP

Julgamento: ____________________ Assinatura: ___________

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Dedicatria

Dedico a realizao deste trabalho ao

Nilson, meu companheiro de todos os

momentos, pelo apoio incondicional

durante toda a caminhada; e aos nossos

filhos, Mateus, Filipe e Davi minha

maior riqueza.

Dedico tambm a todos os

trabalhadores da Ateno Bsica do

SUS que se comprometem

cotidianamente para a produo do

cuidado.

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Agradecimentos

Primeiramente agradeo a Deus, sempre to presente em

minha vida e que me possibilitou chegar at aqui.

Agradeo especialmente Professora Marina Peduzzi pela

forma competente com que me conduziu neste percurso e

pelo respeito e confiana em mim depositados, o que me deu segurana para ousar um caminho desconhecido, tanto

no escopo da pesquisa, quanto no referencial terico

adotado. Tenho certeza que muito do que aprendi e produzi

neste trabalho so reflexos de sua orientao.

Agradeo tambm ao Professor Jos Ricardo Ayres pelo

aceite em ser co-orientador deste trabalho, e pelas

contribuies na redefinio dos objetivos, na metodologia e

nos eixos de discusso dos resultados. Sua forma de orientar, sem dizer exatamente o que eu devia fazer,

provocou muitas inquietaes que me fizeram crescer.

Aos meus pais, Elias e Amlia, pelo incentivo, exemplo e ensinamentos recebidos durante toda minha vida. minha

famlia, especialmente Ednia pelo incentivo e cobertura

nas minhas ausncias, e famlia Carvalho pela

compreenso e apoio.

Universidade de So Paulo e ao Programa de Ps-

Graduao em Gerenciamento em Enfermagem, pela

estrutura que me possibilitou circular por suas Escolas,

Faculdades e Institutos durante esta formao, e pelos professores que comigo partilharam seu saber. Agradeo

tambm aos trabalhadores da Ps e do Departamento de

Orientao Profissional da Escola de Enfermagem, pelo

profissionalismo e ateno a mim dispensados.

Aos colegas do grupo de pesquisa da EEUSP pelas leituras e

discusses partilhadas. Em especial agradeo s colegas

Geisa, Irene, Jaqueline e Carine pelas conversas, almoos partilhados, trabalhos conjuntos e o apoio prestado na

realizao deste trabalho.

Professora Maria Rita Bertolozzi pela participao no exame de qualificao e pelas contribuies para o

aprimoramento metodolgico desta pesquisa.

6

Aos professores Francisco Javier Uribe Rivera, Elizabeth

Artmann e Silvana Martins Mishima por aceitarem participar

da banca de defesa deste trabalho.

Aos colegas do grupo de pesquisa Gesto do Trabalho, da

UEL, professores do DESC, alunos da ps-graduao e da

graduao e colegas da SESA, pelo trabalho e discusses

que realizamos juntos nos trs ltimos anos. Agradeo

especialmente colega Ftima pelos momentos partilhados na conduo da pesquisa na execuo do trabalho, nas

conversas sobre o trabalho, mas tambm sobre a vida, os

filhos, as viagens; enfim pelo aprendizado que tem sido

trabalhar e conviver com voc.

Fundao Araucria pelo importante apoio financeiro

pesquisa Gesto do Processo de Trabalho em Municpios de

Pequeno Porte da Regio Norte do Paran, da qual este estudo integrante, fundamentais para a realizao e

divulgao parcial de seus resultados.

Josiane, colega de tantos momentos vividos, conversas, viagens e experincias partilhadas nesse processo de

formao, na busca de sermos melhores como pessoas e

como educadoras.

Aos colegas do DESC pela confiana em mim depositada e pela liberao de vrias atividades nos ltimos anos,

condio indispensvel para que esse trabalho pudesse ser

realizado.

Aos gestores, coordenadores, e trabalhadores da AB dos

municpios da 17 Regional de Sade, sem a participao de

vocs no seria possvel a realizao deste estudo.

Enfim, agradeo de modo especial os coordenadores e os

trabalhadores que atuam no municpio de Camb, cuja

participao com seu olhar sobre o tema de estudo foram

fundamentais para, na fuso com o meu olhar, produzir esta

tese. Espero que possamos discuti-la e que ela contribua com vocs na produo da gesto e da ateno integral

sade da populao. A vocs meu sincero muito obrigado!!

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H um tempo em que preciso

abandonar as roupas usadas...

Que j tm a forma do nosso corpo...

E esquecer os nossos caminhos

que nos levam sempre aos

mesmos lugares...

o tempo da travessia...

E se no ousarmos faz-la...

Teremos ficado ... para sempre...

margem de ns mesmos...

Fernando Pessoa

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APRESENTAO

Apresento nas pginas a seguir um trabalho que procurou

compreender as tenses e conflitos vivenciados no cotidiano do

trabalho gerencial, na interao estabelecida com os trabalhadores

de sade. Esta investigao foi realizada no mbito da Ateno

Bsica (AB) do Sistema nico de Sade (SUS), entendido como

poltica pblica, universal, inclusiva e ainda em construo; porm,

se situa no espao microssocial, das relaes que se estabelecem

entre aqueles que produzem a ateno sade, e buscou revelar

como se do estas interaes, que racionalidade as norteia, a

gnese das tenses e dos conflitos vividos e como so enfrentados.

O desejo pelo tema em estudo est ligado minha trajetria

profissional. Durante quase toda a minha vida profissional atuo direta

ou indiretamente em diversos pontos da rede bsica de sade no

municpio de Londrina: na unidade de sade, na Diviso de

Enfermagem, na Diretoria de Controle, Avaliao e Auditoria, na

Diretoria de Ateno Sade (DAS) e atualmente como docente do

Departamento de Sade Coletiva de uma Universidade, na formao

de profissionais de sade, tendo os servios da ateno bsica do

SUS como escola.

Foi, porm, a vivncia na DAS, no perodo de 2001 a 2005, no

exerccio de uma gerncia intermediria entre o Secretrio de Sade

e as Coordenadoras de Unidades Bsicas de Sade, responsvel

pela Ateno Bsica, especialmente no contato com toda a tenso

que reina neste espao, com as crises vividas, com os avanos

alcanados, mas tambm com a no concretizao de muitos

projetos, que me despertou para o tema deste estudo.

Posteriormente, a oportunidade de refletir de forma mais

sistematizada sobre a experincia vivida, com a participao em

uma mesa-redonda no 58 Congresso Brasileiro de Enfermagem

sobre os desafios da gerncia na Ateno Bsica para a produo

9

da autonomia, em 2006, e a participao na disciplina Teoria da

Organizao e Gesto em Sade, cursada na UNIFESP, no ano de

2007, me estimularam a elaborao deste trabalho.

O ingresso no doutorado na Escola de Enfermagem da

Universidade de So Paulo (EEUSP) no ano de 2009 possibilitou

transformar o desejo inicial em objeto de estudo e permitiu ampliar

minha viso sobre o tema por meio do aprofundamento terico

obtido na orientao, nas disciplinas cursadas, leituras realizadas e

tambm nas discusses do grupo de pesquisa.

Atualmente na universidade, como docente do Departamento

de Sade Coletiva, atuo em duas atividades em que tenho contato

direto com a coordenao da unidade de sade: no internato de

enfermagem, em que os estudantes, no ltimo semestre do curso,

acompanham as enfermeiras e a coordenadora da unidade de

sade, e na Residncia Multiprofissional em Sade da Famlia, em

que os profissionais/residentes atuam na ateno bsica, em uma

equipe de sade da famlia. Em ambas as situaes, tenho

acompanhado a atuao das coordenadoras das unidades de sade

e tido a oportunidade de me aproximar e discutir questes

relacionadas ao exerccio dessa funo.

A vivncia atual e o aprofundamento terico e emprico

propiciado por esta pesquisa, alm de manterem o desejo pelo tema,

despertaram o anseio por pensar propostas de interveno que

propiciem a reflexo desta prtica por quem esteja vivenciando este

papel, e de produzir conhecimentos que contribuam para o

desenvolvimento de tecnologias de gesto adequadas para o

manejo dos conflitos e para o fortalecimento da ateno bsica no

SUS.

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Carvalho BG. Coordenao de Unidade da Ateno Bsica no SUS: trabalho, interao e conflitos [tese]. So Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de So Paulo; 2012.

RESUMO

Introduo: A gerncia no nvel local da ateno bsica (AB) busca promover condies propcias para ateno integral sade de usurios, com a participao destes, dos trabalhadores e gestores e inclui a gesto de conflitos no cotidiano de trabalho. Objetivo: O

estudo teve como objetivo compreender a emergncia e o manejo de conflitos que ocorrem na interao entre trabalhadores e coordenadores de unidade bsica de sade (UBS) e suas relaes com os processos de reconhecimento mtuo e desrespeito. Mtodo:

A pesquisa foi realizada em duas fases. Na primeira, exploratria, foram caracterizados o perfil dos coordenadores e os instrumentos gerenciais utilizados, a partir de um questionrio semiestruturado, aplicado aos coordenadores de 108 UBS de 21 municpios da regio norte do Paran, Brasil. Os resultados dessa fase possibilitaram compreender o contexto da atuao gerencial e definir o campo de pesquisa da segunda fase: um municpio de mdio porte cujos gerentes das UBS eram todos enfermeiros, apresentavam experincia na gerncia de UBS e utilizavam, com certa regularidade, instrumentos para a gesto do trabalho. Na segunda fase foi desenvolvido um estudo de caso, de carter compreensivo e interpretativo de abordagem critico-hermenutica. As tcnicas de coleta foram: grupo focal com coordenadores, observao do cotidiano de trabalho e entrevista semiestruturadas com trabalhadores. Na anlise utilizou-se o quadro terico-conceitual do processo de trabalho em sade, das teorias do agir comunicativo de Jrgen Habermas e do reconhecimento de Axel Honneth e a triangulao dos resultados. Resultados: O conflito foi

compreendido como fenmeno relacionado ao trabalho e permeado pela interao social; se manifesta no contexto organizacional como obstculos que tensionam ou levam ao rompimento da contratualidade prevista nas relaes de trabalho. Os conflitos foram provocados por situaes de desrespeito em trs esferas de relaes: primrias; jurdicas; ou da solidariedade. Foram tipificadas seis modalidades de conflitos, relacionados : falta de colaborao no trabalho; desrespeito por relaes assimtricas entre os trabalhadores; comportamento do funcionrio-problema; problemas pessoais; assimetria com outros nveis de gesto e infraestrutura deficitria dos servios do SUS. Na gesto dos conflitos, observou-se a referncia tambm aos usurios, por serem os destinatrios da ateno sade, e a meno ao coordenador como mediador de conflitos que utiliza como recursos de manejo: reconhecimento, atitude dialgica, sabedoria prtica e sua autoridade, articulando aes tcnico-cientficas e comunicativas. Concluso: O estudo

mostrou que os conceitos de processo de trabalho em sade e as

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teorias do agir comunicativo e do reconhecimento, ao serem articulados, constituiu quadro terico com potncia explicativa e de compreenso do fenmeno estudado. Os resultados mostraram complementaridade da ao instrumental e comunicativa na gesto de UBS e, em particular, dos conflitos, evidenciando uma modalidade de gesto comunicativa. Tambm permitiram identificar que a ausncia de reconhecimento nas esferas das relaes primrias, do direito e da solidariedade est na origem dos conflitos no trabalho, bem como construir uma tipologia de conflitos que pode subsidiar o seu entendimento e manejo. A pesquisa aponta para a necessidade de estudos futuros sobre o carter interprofissional da gerncia na AB e a presena expressiva de enfermeiras nessa atuao.

PALAVRAS-CHAVE: Gerncia, Ateno Bsica, Conflito

(Psicologia), Trabalho, Enfermagem.

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Carvalho BG. Coordination of primary care unit in the Unified Health System of Brazil: work, interaction and conflict. [thesis]. 2012. So Paulo: So Paulo College of Nursing, University of So Paulo; 2012.

ABSTRACT

Introduction: The management at the local primary care (PC)

setting seeks to promote conducive conditions to provide comprehensive health care, with the participation of workers, managers and udders. It includes conflict management in everyday work. Objective: This study aims to understand the emergence and

handling of conflicts that occur in the interaction between workers and coordinators of the basic health unit (BHU) and their relations with the processes of mutual recognition and disrespect. Method: The study was conducted in two phases. First, the exploratory study characterized the profile of coordenatores and the management tools appling a semi-structured questionnaire to the managers of 108 BHU of 21 municipalities in northern Paran, Brazil. The results of this phase enabled to understand the context of managerial performance and to define the field of search of the second phase. It was chosen a medium-sized city whose BHUs managers were all nurses, had experience in the management of BHU and used tools for managing the work process. In the second phase we developed an understanding and interpretive case study of critical-hermeneutics approach. The techniques used were: focus group with coordinators, observation of daily work and semi-structured interviews with workers. In the analysis was used the theoretical and conceptual framework of the work process in health, of Jrgen Habermas theories of communicative action and Axel Honneth's recognition. Addionnaly was used triangulation of results. Results: The conflict was understood as a phenomenon related to the work process and permeated by social interaction. It is manifested in the organizational context as obstacles that stress or lead to disruption of contractually established labor relations. The conflicts were caused by situations of disrespect in three levels of relationships: primary relations, juridical, or mutual solidarity. Six modes of conflict were specified: lack of collaboration at work; disrespect for asymmetric relations between workers; behavior of the "problem employee"; personal problems; asymmetry with other levels of management and infrastructure deficit of the services of the Health System. In the area of conflict management were observed references to the users, because they are the health care recipients; and the mention of the coordination as mediatorI in conflicts using as management resource: recognition, dialogical attitude, practical wisdom and its authority, articulating technical-scientific and communicative actions. Conclusion: The

study showed that the concepts of work process in health and theories of communicative action and recognition, when articulated, have composed a theoretical framework with explanatory power and understanding of the phenomenon under study. The results showed

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complementarity of instrumental and communicative action in managing a BHU and, in particular, the conflicts, showing a communicative management approach. Findings have identified that the lack of recognition in the spheres of primary relations, of law and of mutual solidarity is at the origin of the conflicts at work. The study allows to build a typology of conflicts that may improve their understanding and management. The research also points to the need for future studies on the interprofessional nature of management in PC and on the expressive presence of nurses in this role.

Keywords: Management, Primary Health Care, Conflict (Psychology), Work, Nursing.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Representao da gerncia como instrumento do processo de trabalho em sade

81

Figura 2- Processo de trabalho gerencial

83

Figura 3 - Modelo terico proposto - compreenso de como se d a interseo das categorias analticas

87

Figura 4 - Mapa da regio Norte do Paran, com destaque para os municpios que integram a 17 Regional de Sade do Paran e respectivo IDH 2010

96

Figura 5 - Curva de Nelson de Moraes, Camb 2008

118

Figura 6 - Distribuio dos gerentes de unidades bsicas de sade, nos dois grupos de municpios da 17 RS - PR, segundo faixa de idade e de salrio 2010

129

15

LISTA DE QUADROS

Quadro1 - Estrutura das relaes sociais de reconhecimento

74

Quadro 2 - Relao dos municpios integrantes da 17 Regional de Sade do Paran, populao e o nmero respectivo de unidades bsicas de sade dos municpios 2010

97

Quadro 3 - Distribuio das unidades de sade da famlia, por regio, Camb - 2009

125

Quadro 4 - Categorizao das atividades de planejamento e de avaliao das aes de sade desenvolvidas pelos gerentes de unidades bsicas de sade dos municpios da 17 Regional de Sade do Paran 2010

136

Quadro 5 - Categorizao das atividades de avaliao de desempenho e de educao permanente em sade, desenvolvidas pelos gerentes de unidades bsicas de sade dos municpios da 17 Regional de Sade do Paran 2010

142

Quadro 6 - Categorizao das atividades desenvolvidas pelos gerentes de unidades bsicas de sade junto comunidade, nos municpios da 17 Regional de Sade do Paran 2010

148

16

LISTA DE SIGLAS

AB Ateno Bsica

ACS Agente Comunitrio de Sade

AIS Aes Integradas de Sade

APS Ateno Primria Sade

CAPS Centros de Apoio Psicossocial

CDC Centers for Disease Control and Prevention

EPS Educao Permanente em Sade

IPARDES Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social

IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia

OPAS Organizao Panamericana de Sade

OS Organizaes Sociais

OSCIP Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

PCCS Plano de Cargos, Carreiras e Salrios

PDR Plano Diretor de Regionalizao

PSF Programa Sade da Famlia

RAS Rede de Ateno Sade

RIPSA Rede Interagencial de Informao para a Sade

SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia

SUS Sistema nico de Sade

TCGM Termo de Compromisso de Gesto Municipal

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UBS Unidade Bsica de Sade

WHO World Health Organization

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SUMRIO CAPTULO 1 INTRODUO ................................................... 21

1.1 Temtica de Estudo ............................................................. 21

1.2 A Ateno Bsica no SUS ................................................... 26

1.3 A Coordenao de Unidade da Ateno Bsica..................

34

CAPTULO 2 - REFERENCIAL TERICO ................................. 42

2.1. Processo de Trabalho ......................................................... 42

2.1.1 Processo de Trabalho em Sade ........................... 47

2.2. Intersubjetividade e o Trabalho em Sade ........................ 54

2.3. O Agir Comunicativo .......................................................... 57

2.4. O Desrespeito e a Manifestao de Conflitos ....................

64

CAPTULO 3 - MODELO TERICO ..........................................

79

CAPTULO 4 OBJETIVOS .......................................................

90

CAPTULO 5 METODOLOGIA ................................................ 91

5.1. Primeira Fase: Pesquisa Exploratria ................................ 94

5.1.1. Campo de Estudo ................................................. 95

5.1.2. Sujeitos de Pesquisa ............................................. 96

5.1.3. Procedimentos de Coleta e Anlise de Informaes ..........................................................

97

5.2. Segunda Fase: Estudo de Caso ................................. 101

5.2.1 Sujeitos de Pesquisa ............................................. 102

5.2.2 Tcnicas de Pesquisa ........................................... 103

5.2.2.1 Grupo Focal ...................................................... 103

18

5.2.2.2 Observao Direta e Sistematizada ................. 105

5.2.2.3 Entrevista Semiestruturada ............................... 106

5.2.3. Procedimentos de Anlise .................................... 107

5.3 Aspectos ticos da Pesquisa .................................... 115

5.4 Contexto do Estudo: O Municpio de Camb .............

116

CAPTULO 6- RESULTADOS E DISCUSSO ........................... 127

6.1 Primeira Fase - Estudo Exploratrio .......................... 127

6.1.1 Caracterizao da Coordenao ............................ 127

6.1.2 Atividades de Organizao do Processo de Trabalho ..................................................................

132

6.1.3 Atividades de Gesto do Trabalho na Unidade de Sade .....................................................................

140

6.1.4 Atividades com a Comunidade ........................ 147

6.1.5 Sntese da Fase Exploratria e Definio do Municpio Campo para o Estudo de Caso ..............

149

6.2 Segunda Fase - Estudo de Caso .............................. 153

6.2.1 Percepo do Conflito ............................................ 153

6.2.1.1 Como o Conflito visto pelos Gerentes ............

153

6.2.1.2 Como o Conflito visto pelos Trabalhadores .....

155

6.2.1.3 Como o Conflito foi Compreendido e Interpretado pelo Pesquisador no Contexto do Estudo ...............................................................

158

6.2.2 Tipologia de Conflitos Presentes no Cotidiano do Trabalho ..................................................................

162

6.2.2.1 Conflitos Relacionados Falta de Colaborao entre os Trabalhadores ......................................

163

19

6.2.2.2 Conflitos Relacionados s Relaes Assimtricas entre os Trabalhadores ou Coletivo de Trabalhadores no Ambiente de Trabalho .............................................................

168

6.2.2.3 Conflitos Relacionados ao Comportamento do Funcionrio-Problema ......................................

173

6.2.2.4 Conflitos Relacionados a Problemas Pessoais Ocorridos fora do Trabalho .................................

188

6.2.2.5 Conflitos Relacionados Assimetria com outros Nveis de Gesto ................................................

191

6.2.2.6 Conflitos Relacionados Infraestrutura e Organizao Deficitria da Rede de Servios do SUS ....................................................................

206

6.2.3 Gesto Comunicativa do Trabalho e dos Conflitos ..........................................................

215

6.2.3.1 Gesto Comunicativa do Trabalho ..................... 215

6.2.3.2 Gesto Comunicativa do Conflito ....................... 229

6.2.4 Manejo dos Conflitos: Recursos Acionados pela Gerncia .................................................................

234

6.2.4.1 No Conflito Envolvendo Trabalhadores e Usurios..............................................................

234

6.2.4.2 No Conflito entre Trabalhadores ........................ 240

6.2.5 Refletindo sobre a Ao Uma Proposta de Interveno sobre o Conflito ...........................

252

CAPTULO 7 CONSIDERAES FINAIS ...............................

REFERNCIAS............................................................................

APNDICES

257

269

APNDICE 1 Termo de Autorizao Institucional .................... 283

20

APNDICE 2 Questionrio Semiestruturado ........................... 284

APNDICE 3 TCLE Questionrio (Coordenadores) ................. 287

APNDICE 4 Roteiro Grupo Focal ........................................... 289

APNDICE 5 TCLE Grupo Focal (Coordenadores) ................. 291

APNDICE 6 Roteiro Observao ............................................ 293

APNDICE 7 TCLE Observao (Coordenadores) .................. 294

APNDICE 8 Roteiro Entrevista ........................................ 296

APNDICE 9 TCLE Entrevista (Trabalhadores).................. ANEXOS

297

ANEXO 1 - Aprovao do Comit de tica em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina ...................

299

ANEXO 2 - Aprovao do Comit de tica em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo .......................................................................

300

21

CAPTULO 1 - INTRODUO

1.1 TEMTICA DE ESTUDO

Esta investigao tem como tema central a coordenao de

unidade de sade da Ateno Bsica no SUS com foco nas tenses

e conflitos presentes na interao que se processa entre os

coordenadores e os trabalhadores de sade no cotidiano do

trabalho.

A gerncia, no nvel local da ateno bsica, busca promover

condies propcias para a abordagem integral das necessidades de

sade de usurios e populao, com a participao destes, dos

trabalhadores e gestores. Lidar com esta trade, qual seja: o

produtivo campo de autogoverno dos trabalhadores, diretrizes e

projetos institucionais advindos da direo hierrquica superior e as

necessidades de sade de usurios e populao do territrio, coloca

os gerentes de unidade frente necessidade de reconhecer os

variados interesses e objetivos dos respectivos atores sociais, nem

sempre convergentes. Neste cenrio, a atuao cotidiana do

coordenador de unidade expressa a complexidade da prtica

gerencial que inclui a ocorrncia de tenses e a emergncia de

conflitos.

Os conflitos sempre estiveram presentes nas organizaes,

especialmente naquelas em que os processos de trabalho so

mediados pela interao social, como o caso das organizaes de

sade. Apresentam-se como algo que escapa, que denuncia, que

invade a agenda de quem faz a gesto, que incomoda. Na verdade,

lidar com conflitos uma constante no cotidiano dos gerentes e da

direo superior, em toda e qualquer organizao (Ceclio, 2005).

O termo conflito vem do latim conflictus, particpio passado de

confligere, bater junto, estar em desavena, formado por com

22

junto e fligere golpear, atacar. Segundo Ferreira (2010),

significa: luta, combate; guerra; enfrentamento; oposio entre duas

ou mais partes; desavena entre pessoas ou grupos; divergncia,

discordncia de ideias, de opinies.

No vocabulrio tcnico e crtico da Filosofia, o conflito

definido como a relao entre dois poderes ou dois princpios cujas

aplicaes exigem num mesmo objeto determinaes contraditrias.

Considera ainda a existncia de diferentes tipos de conflitos: de

deveres, conflito de uma nica autoridade com ela mesma e conflito

de tendncias (Lalande, 1999).

Ao delimitar o conceito, Ceclio (2005) destaca que o conflito

sempre consciente e que sua ecloso e desenvolvimento ocorrem

tanto por distintas posies que os atores envolvidos ocupam nas

estruturas como por intencionalidades opostas destes. Ou seja, h

conflito quando dois ou mais atores fazem uma apreciao

situacional divergente. Este autor aponta que os conflitos se

apresentam como fenmenos, fatos, comportamentos que, na vida

organizacional, constituem-se em rudos, podendo ser observveis

(aqueles que exigem tomadas de providncias do gestor) ou

encobertos (aqueles que circulam nos bastidores e que, nos

sistemas de gesto mais tradicionais, no conseguem ocupar a

agenda da direo). Defende ainda que nas organizaes

h uma convivncia, sem excluso, de conflitos decorrentes de interesses de classe ou de lugares diferenciados na estrutura social com aqueles ligados ao trabalho e disputa de interesse entre pequenos grupos e mesmo conflitos interpessoais (Ceclio, 2005, p.510-11).

O termo conflito, empregado tanto na linguagem usual entre

as pessoas como na linguagem especializada de diferentes

disciplinas, como a Psicologia e as Cincias Sociais , que tratam os

conflitos na interao social como tema de estudo , traduz uma

situao de divergncia, com a conotao de tenso, de violncia,

23

ou, pelo menos, de iminncia de ruptura de um equilbrio tornado

precrio (Boccato, 2009).

A tenso e o rompimento da contratualidade se manifestam

por meio do desrespeito, do desacordo, do desentendimento, da

injria e frequentemente envolvem a dimenso emocional. Nesse

mbito, na maioria das vezes, afloram sentimentos negativos

relacionados aos valores, crenas e percepes dos indivduos na

sua relao com o outro; decorrem tambm de experincias

anteriores e trajetrias de vidas distintas (Ciampone, Kurcgant,

2005).

Nesta perspectiva, o conflito considerado um fenmeno

inerente s relaes interpessoais e ao contexto organizacional, e

apresenta significados positivos ou negativos, dependendo de

experincias anteriormente vivenciadas, mas tambm da estratgia

utilizada para o seu enfrentamento (Ciampone, Kurcgant, 2005;

Spagnol et al., 2010).

Para a compreenso do fenmeno estudado, optou-se pela

composio de um quadro terico que engloba o referencial terico

do trabalho, da teoria do Agir Comunicativo e da teoria do

Reconhecimento. O referencial terico marxiano do trabalho foi

aplicado, a partir dos estudos produzidos no Brasil, em especial no

campo da Sade Coletiva, sobre o processo de trabalho em sade.

Com o intuito de elucidar as dimenses processuais e intersubjetivas

das prticas de sade, o referencial terico do processo do trabalho

foi articulado teoria do Agir Comunicativo, de Jrgen Habermas

(Carvalho et al., 2012).

Ao desenvolver sua teoria, Habermas (2003) aponta a

existncia de uma racionalidade comunicativa que deve orientar as

aes humanas para que os homens possam tomar decises

consensuais na vida em sociedade. Em sua produo terica,

reconhece que nas interaes um acordo normativo perturbado pode

24

se manifestar como conflito. No entanto, Habermas no aprofunda a

anlise da gnese dos conflitos nas organizaes, questo

considerada essencial neste trabalho. O referencial utilizado para a

compreenso sobre a gnese motivacional do conflito foi a obra de

Axel Honneth Luta por Reconhecimento: a gramtica moral dos

conflitos, (2003).

Desta forma, este estudo procurou validar a pertinncia da

produo de Axel Honneth Luta por Reconhecimento , a partir do

uso dos conceitos de reconhecimento e desrespeito, na tentativa de

produzir uma anlise compreensiva das relaes intersubjetivas

construdas no processo de gesto e das manifestaes de conflito

nos ambientes de trabalho em unidades bsicas de sade. Isto no

quer dizer que se procurou aqui validar a luta por reconhecimento

como uma teoria geral da ao social, mas sim que se fez uso de

seu conceito central para melhor compreender a gnese e a

manifestao do conflito e de sua mediao nos processos de

gesto.

Apesar da relevncia desta temtica para aqueles que

exercem a funo gerencial nos diversos espaos de ateno

sade, a produo cientfica sobre a gesto do conflito entre

trabalhadores em organizaes de sade muito escassa, tanto em

publicaes de peridicos nacionais como internacionais, e ainda

muito mais exgua aquela que trata do tema gesto do conflito no

espao da ateno bsica. Em levantamento bibliogrfico sobre a

manifestao/manejo do conflito nesta rea, envolvendo a gerncia

e equipe de trabalhadores, em vrias bases de dados (Lilacs,

Medline, Pubmed, CINAHL), sem limitar o perodo, foram

identificadas apenas uma publicao em peridico nacional (Corradi,

Zgoda, Paul, 2008) e duas em peridicos internacionais (Brown et

al., 2011; Long, 1996).

25

Com o intuito de ampliar a visibilidade e a discusso deste

tema, esta tese coloca em cena a manifestao e o manejo dos

conflitos entre trabalhadores e coordenadores na ateno bsica.

Concomitante ao desvendamento do tema, esta tese, ao apresentar

seus resultados, disponibiliza conhecimentos que contribuem para

melhor entendimento e manejo do conflito no trabalho gerencial,

bem como para o desenvolvimento de tecnologias de gesto

adequadas para o fortalecimento da ateno bsica no SUS.

Com o propsito de contextualizar o objeto do estudo no

espao em que a gerncia exercida, ainda na introduo so

caracterizados a Ateno Bsica no SUS e os aspectos que

envolvem a atuao da gerncia de UBS. Tambm so

apresentados os pressupostos e as questes para as quais foram

buscadas respostas com este estudo.

No captulo dois apresentado o referencial terico, em que

esto apoiados os pressupostos da pesquisa e que embasou a

anlise do material emprico: o processo de trabalho e o processo de

trabalho em sade; a intersubjetividade e o trabalho em sade; o

agir comunicativo e, o desrespeito e a manifestao de conflitos.

No captulo trs apresentado o modelo terico proposto, em

que foram articulados os referenciais do processo de trabalho

gerencial na ateno bsica, da teoria do Agir Comunicativo de

Jrgen Habermas e a Luta por Reconhecimento: a gramtica moral

dos conflitos, de Axel Honneth, que, de modo articulado, permitiram

a compreenso e a interseo das categorias analticas.

O captulo quatro expe os objetivos pretendidos com esta

tese e o captulo cinco descreve o percurso metodolgico que,

ancorado no quadro terico, esboa o desenho da pesquisa,

composta de duas fases: um estudo exploratrio e um estudo de

caso. Apresenta tambm a abrangncia do campo da pesquisa, os

26

sujeitos, as tcnicas de coleta de dados e de anlise do material

emprico e ainda o contexto do municpio estudo de caso.

No captulo seis, esto apresentados os resultados do estudo,

com base na anlise do material emprico, e as discusses, luz do

quadro terico, da reviso da literatura e do dilogo com autores que

pesquisam o tema.

Por fim, no captulo sete so feitas as consideraes finais

sobre a pesquisa, com uma sntese deste percurso, dos principais

resultados em resposta aos objetivos pretendidos, e dos avanos

percebidos com a realizao deste estudo: para a pesquisadora,

para a rea acadmica e para os servios de sade.

1.2 A ATENO BSICA NO SUS

O Sistema nico de Sade, pblico, universal, criado pela

Constituio Federal de 1988, ainda est em construo,

implementado em um espao permeado por disputas polticas,

econmicas e, portanto, sociais.

Nesses mais de 20 anos de construo, a descentralizao,

um dos princpios organizativos do SUS, foi o processo que mais

provocou mudanas no mbito da gesto, introduzindo novos atores

neste campo de atuao. Estas mudanas provocaram a

transferncia para os municpios de decises e aes antes

centralizadas. Os municpios, ao assumirem a gesto do SUS,

estruturaram uma ampla rede de servios de sade, no nvel da

ateno bsica.

A maioria dos pases adota a terminologia ateno primria

sade (APS), ao invs de ateno bsica. A Conferncia

Internacional de Alma-Ata definiu ateno primria sade como:

27

[...] cuidados essenciais de sade baseados em mtodos e tecnologias prticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitveis, colocadas ao alcance universal de indivduos e famlias da comunidade, mediante sua plena participao e a um custo que a comunidade e o pas podem manter em cada fase de seu desenvolvimento [...]. Representam o primeiro nvel de contato dos indivduos, da famlia e da comunidade com o sistema nacional de sade pelo qual os cuidados de sade so levados o mais proximamente possvel aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistncia sade (OPAS. Declarao de Alma-Ata, 1978, item VI).

Orientados para a ateno primria, os sistemas de sade

alcanam melhores resultados e, conforme demonstram diversos

estudos, propiciam maior satisfao aos usurios, possuem custos

mais aceitveis e promovem a equidade (Macinko et al, 2006;

Starfield, 2002; WHO, 2008).

Em relao ao termo, parte-se do pressuposto de que os dois

(ateno bsica e APS) se equivalem e ser utilizado o primeiro por

ser este o adotado no Brasil pelo Ministrio da Sade em seus

documentos oficiais.

Na atualidade, a ateno bsica no Brasil configura-se como

a porta de entrada, o contato preferencial dos usurios com o

sistema de sade. Segundo aposta do Ministrio da Sade, deve ser

desenvolvida por meio de prticas gerenciais e sanitrias,

democrticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe,

dirigidas a populaes de territrios bem delimitados, pelas quais

assume a responsabilidade sanitria (Brasil, 2006a, 2011).

O processo de estruturao da ateno bsica pressupe

maior autonomia e poder decisrio nas unidades bsicas de sade

tendo em vista a necessidade da organizao do processo de

trabalho e da administrao dos trabalhadores de sade (em maior

nmero e com maior diversidade de formao profissional), no mais

28

vistos como meros insumos, mas como agentes sociais necessrios

a mudar o jeito de fazer sade (Mishima et al., 1997).

A concretizao desta proposta exige um amplo processo de

mudanas no modelo de ateno sade, pois as ideias e os

valores oriundos do modelo mdico-hegemnico ainda so

predominantes na sociedade. No entanto, existe o reconhecimento

de que a mudana das prticas de sade e a reorientao do

modelo tecnoassistencial so campos em que o SUS ainda no foi

capaz de produzir avanos significativos (Feuerwerker, 2005).

As caractersticas acima referidas configuram a ateno

bsica com particularidades que a diferenciam da ateno sade

prestada em hospital, lcus privilegiado da ateno sade no

modelo hegemnico biomdico.

Dentre as particularidades vale ressaltar, em primeiro lugar,

que na ateno bsica o foco da ateno sade so as

necessidades de sade dos usurios e da populao do territrio, o

que a coloca na dupla dimenso individual e coletiva (dos grupos

sociais e populao). Neste sentido, a equipe no restringe suas

atividades no interior dos servios de sade; seu local de atuao

so tambm as outras instituies presentes no territrio: creches,

escolas, espaos comunitrios, o domiclio e a prpria comunidade,

e so responsveis pela situao de sade de uma determinada

coletividade. Para tanto, o reconhecimento e a adscrio do territrio

de atuao da equipe essencial. O termo territrio no se refere

apenas a um espao topogrfico, estanque; no territrio que as

pessoas vivem, espao onde ocorrem encontros, contatos, trocas.

Neste sentido, o territrio considerado

um espao em permanente construo, produto de uma dinmica social onde se tensionam sujeitos sociais postos na arena poltica. Uma vez que essas tenses so permanentes, o territrio nunca est acabado, mas ao contrrio, em permanente construo e reconstruo (Mendes et al., 1993, p.166).

29

Em segundo lugar, na ateno bsica, o usurio e a

populao do territrio no se encontram institucionalizados,

preservam certa autonomia em relao ao servio e aos

profissionais, o que requer uma atuao profissional e um processo

de trabalho no qual se efetive a comunicao, a interao

argumentativa, o dilogo. Diferentemente de quando esto

institucionalizados no espao hospitalar, pois seguem a rotina da

instituio, geralmente numa atitude mais passiva de receber os

cuidados prestados pelos trabalhadores de sade. O que o usurio

necessita no espao hospitalar para obter o resultado esperado

daquele processo de trabalho, ele recebe dos profissionais: a dieta,

o medicamento, o curativo, entre outros cuidados, que lhe so

prestados nas condies e nos horrios previamente estabelecidos.

Na ateno bsica, os profissionais no sabem, a priori,

quantos e quais usurios atendero numa jornada de trabalho, quais

as suas necessidades, tampouco se tero condies de atend-las.

A posio do usurio, na maioria das vezes em condies de se

deslocar com autonomia at a unidade de sade, pressupe que a

execuo dos cuidados necessrios depende de sua colaborao,

visto que apenas pequena parte desses cuidados desenvolvida no

interior da unidade e pelos profissionais de sade. A maior parte dos

cuidados necessrios para manuteno e/ou recuperao de sua

sade (dieta, medicao, curativo, atividade fsica) depende quase

que exclusivamente do usurio ter compreendido, ter concordado

com o que foi proposto e ter possibilidades de desenvolv-los.

Em terceiro lugar est a forma como se d a apreenso das

necessidades dos usurios. Levando-se em conta que a ateno

bsica a porta de entrada preferencial na rede de ateno sade,

a apreenso dessas necessidades deve ser a mais ampliada

possvel e, como j referido, contemplar a dinmica individual-

coletiva do processo sade-doena. Portanto, caracteriza-se

30

tambm pela necessidade de dilogo profissional - usurio,

participao social e controle social.

O controle social no SUS entendido como o controle que o

conjunto da sociedade organizada (em todos os segmentos sociais)

exerce sobre o Estado (Brasil, 2001a). Representa a tentativa de se

estabelecer uma relao entre o Estado e a sociedade, implicando

uma abertura do Estado para que a sociedade participe das suas

decises (Carvalho, 1995).

A participao da comunidade no SUS, atuando tanto na

formulao de estratgias quanto no controle da execuo das

polticas de sade, visa contribuir para a implantao de um novo

modelo assistencial de sade, que privilegie os interesses e direitos

de cidadania da populao usuria, partindo sempre das suas

necessidades, identificadas pelos indicadores sociais,

epidemiolgicos e pelas informaes das entidades representantes

dos usurios (Brasil, 2001a).

H que se ressaltar, entretanto, a dificuldade das entidades

representativas dos usurios, frequentemente desarticulados das

bases, instituies ou segmentos que representam na sociedade, de

estabelecerem objetivos que traduzam as reais aspiraes da

sociedade, seja pela ausncia de uma cultura de controle social e/ou

pelo desconhecimento dos usurios sobre as formas e mecanismos

de sua participao no SUS, principalmente nos conselhos de

sade.

Esta dificuldade potencializada pelos conflitos existentes

entre os usurios, gestores e usurios, componentes do conselho.

Ceclio (1999a) relata que tal fato decorre das diferentes inseres

sociais e aspiraes destes diversos atores. Assim, frequente que

nos conselhos o gestor objetive a construo de legitimidade; os

trabalhadores de sade visem s boas condies de trabalho,

salrios, aprimoramento profissional; e os usurios se preocuparem

31

com a resoluo de seus problemas. Enfim, essa dificuldade ocorre

porque os conselhos de sade so compostos por atores cujos

interesses e projetos nem sempre so coincidentes.

Apesar de toda a problemtica que envolve a participao da

comunidade, houve, sem dvida, um avano significativo no controle

social do SUS nos ltimos anos, fruto de intensas mobilizaes e

lutas, o que contribuiu para a melhoria do acesso, da qualidade e da

humanizao na ateno sade, especialmente no mbito da

ateno bsica.

Destaca-se, ainda, uma quarta caracterstica da ateno

prestada na rede bsica que se refere busca da integralidade da

assistncia, entendida como um conjunto articulado e contnuo das

aes e servios preventivos e curativos, individuais e coletivos,

exigidos para cada caso (Brasil, 2001b, p.19).

Segundo Mattos (2001), a integralidade, desde a criao do

SUS, segue sendo um bom indicador da direo a ser seguida pelo

sistema e suas prticas. Este mesmo autor aponta trs conjuntos de

sentidos do princpio da integralidade:

o primeiro conjunto se refere a atributos das prticas dos profissionais de sade, sendo valores ligados ao que se pode considerar uma boa prtica [...]; o segundo conjunto refere-se a atributos das organizaes dos servios; o terceiro aplica-se s respostas governamentais aos problemas de sade. [...] Quer tomemos a integralidade como princpio orientador das prticas, quer como princpio orientador da organizao do trabalho, quer da organizao das polticas, integralidade implica uma recusa ao reducionismo, uma recusa objetivao dos sujeitos e talvez uma afirmao da abertura para o dilogo (Mattos, 2001, p.61).

Na rea da gesto, a discusso sobre integralidade no Brasil

apresenta dois eixos distintos, mas interligados. O primeiro refere-se

utilizao de todas as tecnologias disponveis, com base nas

necessidades e com a prudncia necessria a um bom resultado,

para todos os usurios do SUS. O outro eixo trata da forma de como

32

implantar este princpio estruturante. A aposta atual passa pela

constituio de redes de ateno, articuladas e ordenadas pela

ateno bsica, possibilitando a qualificao e resolubilidade e

assim a integralidade da ateno (Magalhes Jr, 2008).

Silva (2008) defende que a garantia da integralidade da

ateno poder ser alcanada a partir da mudana das prticas e

consequentemente do modelo de ateno, que passa por uma

ateno bsica qualificada, indispensvel para que exera a funo

de coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de ateno

sade. Esta mudana passa por estratgias articuladas, no sentido

de garantir o fortalecimento da ateno bsica, a partir de seu

conceito mais abrangente; de adequar tanto a oferta quanto a

formao/preparo dos profissionais para atuarem de forma

interprofissional e interdisciplinar neste campo; de organizar o

processo de trabalho no espao do territrio, articulando a vigilncia

em sade ateno clnica e de que seja ampliado o escopo de

ao da ateno bsica, com apoio e integrao matricial de

especialistas.

Para que este processo de mudanas seja efetivo, h

necessidade de que elas ocorram em mltiplas dimenses (macro e

micro): mudanas polticas, ideolgicas, jurdico-legais e

organizacionais no nvel macro, mas tambm nas prticas de sade

(nvel micro). As prticas de sade se do num espao relacional

entre os trabalhadores e entre estes e os usurios. E a forma como

as tecnologias e os processos de trabalho esto organizados que

vo configurar um determinado modelo de ateno (Merhy, 1999).

Este espao relacional mediado pela comunicao, pela

linguagem.

Para Habermas, a comunicao tem uma natureza

essencialmente dialgica e intersubjetiva que possibilita o

entendimento entre os homens e a produo de acordos

33

intersubjetivos (Arago, 2002; Freitag, 2005), processos

fundamentais para a garantia da integralidade da ateno sade.

Habermas chama de comunicativas as interaes nas quais as

pessoas envolvidas se pem de acordo para coordenar seus planos

de ao (Habermas, 2003, p.79).

No entanto, esse espao relacional no est isento de

disputas e de tenses. Todo o processo de produo de atos de

sade, visando conformao de novos modos de produzir sade,

ocorre em um territrio atravessado por tenses e disputas de

projetos (Campos, 2007).

E este o campo de atuao da coordenao local. A

gerncia desses servios, que atua no mbito da ateno bsica,

tem a difcil tarefa de compatibilizar, o tempo todo, o produtivo

campo de autogoverno dos trabalhadores com certas diretrizes

propostas e interesses advindos da direo hierrquica superior da

organizao e, principalmente, atender as necessidades de sade

dos usurios.

Neste sentido, tem fundamental importncia o papel

que a gerncia desempenha nas unidades bsicas de sade,

considerando principalmente sua funo de articular os

trabalhadores de modo a organizar o processo de trabalho em sade

com vistas integralidade da ateno. Assim, o objeto deste estudo

a anlise de como se processa a interao entre a coordenao da

unidade e os trabalhadores de sade, no cotidiano dos servios da

ateno bsica, com destaque para as tenses e os conflitos

presentes nesta interao.

34

1.3 A COORDENAO DE UNIDADE DA ATENO BSICA

NO SUS

Por coordenao entende-se o ato ou a ao de coordenar;

reunir ou dispor com coordenao; arranjar, organizar. A viso

tradicional de gerncia tem um sentido muito parecido: planejamento

sistemtico, coordenao e superviso eficiente das atividades

organizacionais (Motta, 1994). No entanto, este mesmo autor afirma

que no cotidiano a gerncia atua de forma fragmentada, imediatista

e pouco planejada, devido principalmente realidade catica da

maioria das organizaes.

Neste estudo, o termo coordenao ser utilizado com o

mesmo sentido de gerncia, tendo em vista que nos servios de

sade da regio (campo deste estudo) o cargo que gerencia a

unidade bsica de sade recebe a denominao de Coordenadoria

de Unidade de Sade.

Entre as funes exercidas pelos coordenadores de unidades

de sade destacam-se:

[...] colaborar com a atuao dos Assessores Tcnico-Administrativos nas reas de medicina, enfermagem, odontologia e sade mental, visando a resolutividade da assistncia das Unidades de Sade; coordenar o processo de educao permanente na unidade de sade; providenciar os suprimentos e servios necessrios ao perfeito funcionamento da unidade de sade [...]; prover e controlar o material utilizado na unidade de sade, [...]; promover integrao entre a unidade de sade e a comunidade local, objetivando o melhor conhecimento da realidade; coordenar a elaborao da escala de trabalho dos profissionais da unidade de sade; [...] supervisionar as atividades desenvolvidas na unidade de sade (Londrina, decreto 275 de 30 de abril de 2007, p.17 e 18).

De maneira geral, nos servios de sade atribuda

gerncia a responsabilidade pela conduo, no sentido de

acompanhar e orientar os processos de trabalho, de todos os

trabalhadores da equipe; de conferir direcionalidade s aes

35

desenvolvidas pela unidade/servio e tambm de responder pela

tomada de deciso.

Claus (2005) desenvolveu em sua tese de doutorado um

estudo sobre as competncias para o gerenciamento de processos

de trabalho na ateno bsica e props um conjunto de

competncias, organizadas em quatro ncleos, que se referem: ao

planejamento local de sade; conduo do trabalho gerencial; ao

trabalho com coletivos organizados; e, ainda, ao trabalho educativo

em sade.

Quanto ao trabalho gerencial na sade, Mishima (1995)

afirma que o mesmo uma atividade meio, cuja ao principal se

refere articulao e integrao, e que, ao mesmo tempo em que

possibilita a transformao do processo de trabalho, tambm

passvel de transformao, mediante as determinaes que estejam

presentes no cotidiano das organizaes de sade.

Para Campos, Merhy, Nunes (1989), a gerncia um

importante instrumento para a efetivao das polticas, sendo

simultaneamente condicionante e condicionada pelo modo como se

organiza a produo de servios.

Onocko Campos (2003) afirma que a gerncia apresenta duas

funes essenciais: gerir e gerar. Compreende o gerir como a ao

sobre a ao dos outros, fortemente ligada ao poder. Por esta

funo, cabem gerncia o controle, a garantia da produo e da

produtividade, ou seja, constitui-se num espao de reproduo de

status quo. Em um polo oposto, cabe gerncia a funo de gerar.

Gerar a criao e a instituio de espaos nos quais se possa

experimentar a tomada de decises coletivas, de formular projetos

comuns, de constiturem-se espaos que possam virar instncias de

deciso compartilhada.

36

Para desempenhar estas funes, o coordenador deve ter

clareza que sua atuao pressupe assegurar tanto o cumprimento

das deliberaes, de preferncia as definidas pelo coletivo, quanto

tomar decises que os espaos colegiados no trabalharam, visando

assegurar que a finalidade da organizao o atendimento s

necessidades de sade dos usurios seja cumprida.

Neste processo, necessrio que o coordenador atue na

produo de intersubjetividades e de processos nos quais se possa

experimentar a tomada de decises coletivas, que seja trabalhada a

grupalidade (para que as equipes se constituam enquanto grupos e

no agrupamentos); que se atente para a necessidade de

qualificao dos espaos de gesto, destinando-lhes um lugar e

tempo; suporte e manejo. Essa atuao implica que o gerente se

qualifique para compreender, suportar e interagir com os dramas

intersubjetivos do grupo (conflitos), reconhecendo-se como

integrante da equipe de trabalho, porm no como mais um ou

qualquer um, mas como aquele que desempenha uma funo

diferenciada (Onocko Campos, 2003).

Outro aspecto a destacar so as dimenses do trabalho

gerencial. Para Mishima et al. (1997), so inerentes gerncia as

dimenses tcnica, poltica, comunicativa e a de desenvolvimento da

cidadania. A primeira refere-se aos aspectos mais gerais e

instrumentais do trabalho, como planejamento, coordenao,

superviso, controle e avaliao, visando atingir os objetivos

propostos pela organizao. Est tambm includo nesta dimenso

um conjunto de saberes, como epidemiologia, sociologia, geografia

humana, antropologia e planejamento.

A dimenso poltica refere-se articulao entre o trabalho

gerencial e o projeto poltico a ser desenvolvido. Nesta dimenso

esto presentes as determinaes de carter poltico-ideolgico e

econmico, bem como as tenses provocadas pelas corporaes

37

dos trabalhadores e tambm pelos distintos grupos de usurios. A

dimenso comunicativa diz respeito ao carter de negociao

presente no lidar com as relaes de trabalho na equipe, e nas

relaes da unidade com a comunidade; e a ltima dimenso, a de

desenvolvimento da cidadania, busca a emancipao dos sujeitos,

sejam eles os trabalhadores ou os usurios do servio de sade

(Mishima et al., 1997, p.289).

Ermel e Fracolli (2003) propem outra classificao para as

dimenses afetas ao trabalho gerencial, que so: dimenso poltica,

dimenso organizacional e dimenso do processo de trabalho. A

dimenso poltica justifica-se pelo fato que, de alguma forma, o

trabalho gerencial visa implementar uma dada poltica pblica de

sade ou um modelo tecnoassistencial; a dimenso organizacional

aquela que revela as normas, os contratos (explcitos ou no) que

regem as relaes entre os agentes do trabalho e entre estes e a

instituio, ou seja, refere-se s tcnicas de gerenciamento

utilizadas pelos gerentes. Com relao dimenso do processo de

trabalho de gerncia, esta definida como o lugar que representa a

produo dos atos e aes de sade.

Independente de qual tipologia se utilize para anlise das

dimenses da prtica gerencial nos servios, cabe ressaltar que

estas so sustentadas por racionalidades distintas (instrumental e

comunicativa), mas que no podem ser consideradas excludentes e

nem separadas, pois devem estar em permanente articulao na

atuao gerencial, principalmente nos processos de tomada de

deciso (Mishima et al., 1997).

No entanto, em pesquisa bibliogrfica sobre a temtica da

gerncia que buscou analisar a produo cientfica sobre as

dimenses adotadas pelos gerentes, publicada no perodo de 1989 a

1999, Ermel e Fracolli (2003) verificaram que a grande maioria dos

trabalhos encontrados (81%) abordava a temtica da gerncia a

38

partir de uma nica dimenso, e apenas 19% abordavam o trabalho

de gerncia atravs da articulao de duas ou mais das dimenses.

Verificaram tambm que a dimenso mais relatada foi a

organizacional, abordando principalmente as tcnicas de

gerenciamento, com base nas teorias administrativas, e que o

controle o conceito fundamental da maioria destas teorias.

Diferentes opes tericas so adotadas para anlise e

compreenso da gerncia de servios de sade, com marcante

presena das teorias administrativas. O modelo estrutural

funcionalista tem sido hegemnico na produo terica sobre a

gesto das organizaes de sade (Merhy, Ceclio, 2003). A teoria

estruturalista faz uma sntese da escola clssica e das relaes

humanas, e v a organizao como uma unidade social grande e

complexa, onde interagem muitos grupos sociais (Etzione, 1989).

Esta teoria compreende a organizao como um sistema,

constitudo por partes, que na rea da sade seriam as unidades ou

setores de um servio. O trabalhador tido como recurso humano

e tratado como pea dentro da organizao, devendo cumprir

normativamente seu papel para que sejam atingidos os objetivos

organizacionais (Ceclio, 2007).

Nesse sentido, a questo central das organizaes est em

como controlar os participantes a fim de reduzir ao mnimo a sua

infelicidade decorrente das medidas de controle utilizadas, o que

pode ser atingido com a adoo do enfoque da burocracia de Max

Weber. Este contempla estruturas estveis que utilizam regras para

regular as condutas dos seus agentes, a diviso sistemtica de

trabalho para o controle do desempenho das funes e o princpio

da hierarquia para a distribuio de cargos e da autoridade. Nesta

abordagem administrativa, o papel da gerncia institudo

formalmente e objetiva manter o controle de seus participantes

utilizando-se da autoridade e do poder (Etzione, 1989).

39

No entanto, esta teoria mostra-se insuficiente para a anlise

das organizaes de sade em todas as dimenses referidas

anteriormente. Permite uma anlise do macro, j que estas

organizaes tm muitos componentes do funcionamento

burocrtico, mas elas no se configuram como uma burocracia

tradicional (Carapinheiro, 1997). Desta forma, este modelo

precrio para anlise dos processos que ocorrem cotidianamente

nos servios de sade e dos mecanismos que a coordenao utiliza

para gerenciar estas organizaes (Merhy, Ceclio, 2003).

Alm disso, as teorias administrativas so embasadas

estritamente na racionalidade instrumental, com grande nfase na

disciplina e no controle dos trabalhadores, cujo objetivo principal tem

sido a busca da eficcia e da eficincia, com pouca importncia para

os meios destinados obteno destes resultados (Mishima, 1995).

A autora afirma que a anlise da prtica gerencial somente por esta

dimenso insuficiente, visto que os princpios que a norteiam no

so estticos, neutros, racionais ou eminentemente tcnicos para se

adequarem ou se moldarem resoluo dos problemas que se

apresentem no cotidiano do trabalho, pois como atividade humana,

a ao gerencial no prescinde do homem em suas relaes com

outros homens e de toda subjetividade presente neste processo,

bem como de suas determinaes (Mishima, 1995, p.19).

Tendo clareza que em sua atuao o gerente articula-se a

outros trabalhadores com os quais mantm relaes de

interdependncia, tomo para delimitao e melhor compreenso do

objeto deste estudo alguns pressupostos elaborados com base no

quadro terico, apresentado em maior profundidade a seguir, e na

vivncia com coordenadores de unidades de sade:

A gerncia/coordenao da unidade bsica de sade uma

atividade meio que estabelece relaes em seu cotidiano com o

40

gestor, trabalhadores e usurios (populao) porm sua maior

atuao junto aos trabalhadores;

As necessidades de sade dos usurios so orientadoras do

trabalho da gerncia/coordenao local;

A AB a ordenadora do cuidado na rede SUS e, portanto, cabe

coordenao:

fazer a traduo e a intermediao das polticas emanadas do

gestor junto aos trabalhadores, usurios e populao do

territrio;

identificar/diagnosticar as necessidades/problemas dos

usurios e populao e planejar/programar aes para o

enfrentamento destes (juntamente com demais trabalhadores

da unidade e comunidade);

promover a articulao e a integrao dos trabalhadores da

unidade (coordenar o processo de trabalho);

promover a articulao da unidade bsica aos outros servios

da rede, necessrios integralidade da ateno.

A gerncia se utiliza de aes comunicativas, instrumentais e

estratgicas no desempenho de sua funo;

As tenses e os conflitos permeiam o trabalho do

gerente/coordenador;

medida que a interao entre a coordenao e os

trabalhadores busca constituir-se como prtica comunicativa em

que os envolvidos se ponham de acordo para coordenar seus

planos de ao, h maior possibilidade de enfrentamento e

soluo dos conflitos no nvel local.

Partindo desses pressupostos, a investigao sobre a interao

que se processa entre os coordenadores e os trabalhadores das

41

unidades bsicas de sade, com destaque para as tenses e

conflitos presentes nesta interao, visa responder as seguintes

questes: Em que espaos e como se d a interao da

coordenao/gerncia com os trabalhadores? Quais so os

principais conflitos/tenses que a coordenao local enfrenta no seu

cotidiano de trabalho e que recursos utiliza na lida com eles? Como

as lgicas comunicativa, instrumental e estratgica so articuladas

na gesto do trabalho e dos conflitos?

Para responder a estas perguntas o trabalho apoia-se em

pesquisa emprica desenvolvida em unidades bsicas de sade na

rea da 17 Regional de Sade do Paran, alm de uma construo

terico-conceitual, apresentada a seguir.

42

CAPTULO 2 - REFERENCIAL TERICO 2.1 PROCESSO DE TRABALHO

A atividade de gerncia na rea da sade

reconhecidamente integrante das prticas de sade, uma prtica

social.

As prticas sociais se diferenciam de qualquer

comportamento natural, ou seja, esto inseridas no processo

cultural, construdas historicamente e produzidas na relao

intencional entre seres humanos. Este entendimento implica em

tomar cada prtica articulada s demais prticas no movimento da

dinmica social, no qual se estabelecem relaes dialticas entre

parte e todo, no podendo, portanto, ser tratada isoladamente

(Mishima, 1995).

Por se constiturem enquanto prticas sociais, as prticas de

sade so consideradas trabalho, porque sua ao visa produo

de um bem ou servio para a sociedade, com intuito de satisfazer as

necessidades de seus indivduos e alterar um determinado estado de

carecimento. Reforando esta afirmao, possvel dizer que

trabalho

[...] medida que atravs da interiorizao de necessidades articula-se ao conjunto da diviso do trabalho social, isto , redefine-se como atividade produtora que, ao mesmo tempo em que estabelece a forma bsica de socialidade de seus agentes, o faz exatamente atravs de uma relao de alteridade, com isso subordinando o seu contedo tcnico s exigncias daquela articulao social (Mendes Gonalves, 1994, p. 57).

O campo de atuao da gerncia em sade o processo de

trabalho em sade, e cabem ao gerente tanto a interlocuo com os

profissionais que atuam na unidade quanto promover a interao

entre eles, de forma a assegurar a ateno sade dos usurios e

populao. No entanto, no desempenho dessa importante funo,

43

habitual que a gerncia assuma o papel de controlar e regulamentar

o trabalho dos demais trabalhadores da unidade de sade pautada

na administrao cientfica, por meio de normas e padronizaes

tcnicas, eliminando todo trao de subjetivismo no momento da

execuo das tarefas (Campos, 2007).

Neste estudo, a gerncia na ateno bsica abordada na

perspectiva do processo de trabalho, podendo ser apreendida,

simultaneamente, como instrumento do processo de trabalho em

sade e como processo de trabalho gerencial.

Vrios autores tm se dedicado ao estudo do trabalho em

sade, sendo um de seus precursores Ricardo Bruno Mendes

Gonalves (1992, 1994). Este autor adota a concepo de trabalho

de Marx, na qual:

[...] o trabalho um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua prpria ao impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza. [...] Pe em movimento as foras naturais de seu corpo, braos e pernas, cabea e mos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma til vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua prpria natureza. [...] No fim do processo do trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (Marx, 1994, p.202).

O processo de trabalho, enquanto categoria de anlise,

definido como uma atividade humana, em que instrumentos de

trabalho so usados para operar a transformao de um

determinado objeto, seja este em estado natural ou j trabalhado,

em um produto. Ou seja, o trabalho constitui atividade orientada para

um dado fim (Marx, 1994).

Este processo tem como caracterstica ser o seu produto

resposta a um carecimento, a uma necessidade sentida, e sempre

44

idealizado antes de ser produzido, sendo assim resultado de uma

intencionalidade (Marx, 1994).

Para realizar-se, o trabalho requer: instrumentos de trabalho

e fora de trabalho. O instrumento de trabalho uma coisa ou um

complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o

objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse

objeto. Ele utiliza as propriedades mecnicas, fsicas, qumicas das

coisas, para faz-las atuarem como foras sobre outras coisas, de

acordo com seu objetivo final (Marx, 1994). O instrumento de

trabalho pode ser material e/ou imaterial.

A fora de trabalho expressa no conjunto de qualidades

humanas que podem ser ativadas para obter transformaes no

objeto em um produto, ou seja, a fora de trabalho fornece energias

mecnicas e intelectuais ao processo de trabalho (Mendes

Gonalves, 1992). Esta capacidade de trabalho sempre ligada a

uma finalidade, presente todo o processo de trabalho, para que ao

final se produza um resultado que j existia virtualmente na

imaginao do trabalhador (Marx, 1994). Desta forma, a finalidade

do processo de trabalho refere-se a seu carter teleolgico, ou seja,

diz respeito ao fim a que se dirigem as aes ou atividades que

compem o processo de trabalho (Peduzzi, 2007, p.22).

Segundo Mendes Gonalves (1992), so as finalidades que

desencadeiam os processos de trabalho e so por eles satisfeitas. A

forma como os trabalhadores entram no processo de produo,

como uma mercadoria, caracterizada pela sua capacidade de

trabalho, e as relaes sociais estabelecidas nesse processo so o

que se denomina modo de produo. No processo, a diviso tcnica

do trabalho sobredeterminada por uma diviso social resultante

das relaes desiguais entre os homens. Estas relaes provocam

uma apropriao desigual das condies do processo de trabalho e

por decorrncia de seus resultados.

45

O processo de produo na sociedade capitalista atribui ao

trabalho um duplo carter: o trabalho concreto corresponde

utilidade da mercadoria, ao valor de uso (voltado satisfao das

necessidades humanas); e o trabalho abstrato corresponde ao

valor de troca de mercadoria (voltado produo de mercadoria,

baseado na mais-valia gerada pela fora de trabalho) (Navarro,

Padilha, 2007).

Em suma, o trabalho o modo humano de produzir respostas

s necessidades sociais, com o que participa da construo da vida

social, sendo expresso da prpria socialidade humana. Deste

modo, as finalidades dos trabalhos so correspondentes

construo dos diferentes valores e projetos tico-polticos que

constituem o modo social de viver (Schraiber et al., 1999).

A concepo, apresentada at aqui, parte do princpio de que

a produo e a forma como se processa o intercmbio de seus

produtos constituem a base de toda a ordem social. Ou seja, o

trabalho ocupa posio central na organizao da sociedade, a

condio bsica e fundamental de toda a existncia humana. Esses

aspectos configuram o carter histrico e social do trabalho. No

entanto, a tese da centralidade do trabalho na sociedade

contempornea tem sido questionada por alguns autores, como

Andr Gorz, Claus Offe e Jrgen Habermas (Antunes, 2005); e a

constituio do trabalho contemporneo tem sido questionada com

base na configurao do trabalho imaterial por autores como

Lazzarato e Negri (2001).

Estes ltimos desenvolveram uma tese de que o trabalho

imaterial, definido como aquele que produz um bem imaterial

informao, servio, produto cultural, conhecimento ou comunicao

, integrou-se ao trabalho industrial, tornando-se uma das principais

fontes de produo (Lazzarato, Negri, 2001).

46

Isso ocorreu de certa forma porque, a partir das mudanas

contemporneas no mundo do trabalho, que se iniciaram na dcada

de 1970, a grande indstria passa a controlar no somente o seu

produto, o mercado de matrias-primas, o trabalho dos operrios,

mas estrutura sua estratgia no final do processo de produo na

venda e na sua relao com o consumidor. Ou seja, concentra mais

esforos na comercializao do que na produo. Um produto antes

de ser fabricado deve estar vendido, ou no mnimo ser objeto de

desejo do consumidor. Esta estratgia se baseia na produo e no

consumo da informao na propaganda. Desta forma, a

mercadoria ps-industrial o resultado de um processo de criao

que envolve tanto o produtor quanto o consumidor (Lazzarato,

Negri, 2001, p.44), pois

[...] quando o trabalho se transforma em trabalho imaterial e o trabalho imaterial reconhecido como base fundamental da produo, este processo no investe somente a produo, mas a forma inteira do ciclo reproduo consumo: o trabalho imaterial no se reproduz (e no reproduz a sociedade) na forma de explorao, mas na forma de reproduo da subjetividade (Lazzarato, Negri, 2001, p.30).

Os autores que discutem o trabalho tm em comum, embora

com teses diferentes em muitos aspectos, o destaque para

mudanas significativas no mundo do trabalho (desemprego,

terceirizao, flexibilizao do trabalho, precarizao,

transnacionalizao da produo, internacionalizao do capital,

materialidade e imaterialidade do trabalho, qualificao e

desqualificao dos trabalhadores), como consequncia de uma

reestruturao tecnolgica, que transforma de forma radical o

parcelamento dos processos de trabalho e reduz a insero dos

trabalhadores, principalmente nos processos produtivos industriais.

Contudo, o trabalho no se tornou mera virtualidade, ainda que

venha sofrendo mutaes e metamorfoses significativas (Antunes,

2005, p.26).

Ainda sobre este aspecto, Peduzzi (2002) aponta que

47

[...] a reestruturao do trabalho no implica desconsiderar a categoria trabalho como recurso terico e analtico que permite a apreenso de certos aspectos da realidade, realidade esta que no reduz dimenso trabalho ou a qualquer outra dimenso possvel, ao curioso olhar humano. Essa ressalva cabe em especial ao trabalho em sade, tal como o vemos, talvez at pelo fato de que, contraditoriamente, a categoria trabalho nunca aplicou-se completamente sade. A peculiaridade de ao intrnseca dimenso trabalho fez com que o uso desta categoria iluminasse, por analogia, o trabalho social tpico do campo da sade (Peduzzi, 2002, p.79).

2.1.1 PROCESSO DE TRABALHO EM SADE

Na sade, o processo de trabalho sofreu influncia das

organizaes produtivas hegemnicas da rea industrial, como, por

exemplo, o taylorismo, o uso intensivo de equipamentos de

tecnologia de ponta e a terceirizao de parte de seus trabalhadores

(Pires, 1998). Possui pontos comuns aos processos desenvolvidos

em outros setores, como a existncia de uma direcionalidade

tcnica, que, como referido anteriormente, destina-se a cumprir uma

determinada finalidade, com anteviso dos resultados e ser

dependente dos instrumentos e da fora de trabalho (Nogueira,

1995).

Porm, o trabalho em sade possui vrias especificidades. A

primeira sua insero no setor tercirio de produo em servio. O

setor de servios ganhou expresso especialmente com a

urbanizao e a industrializao, sendo caracterizado pela produo

de bens e servios que possibilitam o funcionamento da sociedade.

H uma pluralidade de vises e interpretaes sobre a conceituao

e classificao das atividades de servio, no entanto, para Meireles

(2006),

o entendimento de ser trabalho em processo, ou fluxo de trabalho, que permite tornar inteligveis os atributos

48

reconhecidos pelos autores clssicos e contemporneos nas atividades de servio, como a intangibilidade, a simultaneidade e a inestocabilidade. [...] Sendo fluxo de trabalho os servios apresentam tambm como atributo caracterstico a interatividade [...] entre prestadores e usurios de servio. [...] A natureza do fluxo revela ainda outro atributo dos servios que a irreversibilidade. [...] possvel interromp-lo, mas no revert-lo, [...] (Meireles, 2006, p.133).

O trabalho em servios distingue-se dos demais processos

produtivos por trs caractersticas: fluxo, variedade e uso intensivo

de recursos humanos. A caracterstica fluxo reflete que o processo

de trabalho desencadeado por solicitao do usurio e se d sob a

forma de um fluxo de trabalho contnuo, nem sempre controlado e

previsvel, sendo a produo e o consumo instantneos no tempo e

no espao. Esta caracterstica no permite que o produto seja

estocado porque ele consumido simultaneamente sua produo

e, no sendo possvel estoc-lo, torna-se difcil de ser mensurado. A

variedade refere-se principalmente diversidade de tcnicas de

produo considerando as inmeras reas de atuao neste setor. E

a caracterstica uso intensivo refere-se presena intensiva dos

recursos humanos, pois, apesar da crescente incorporao da

tecnologia, atravs de mquinas e equipamentos, os trabalhadores

continuam a representar o fator produtivo predominante no processo

de prestao de servio, porque se trata de uma atividade de

natureza relacional e profundamente interativa (Meireles, 2006).

No incio do sculo XXI, observa-se um maior

desenvolvimento das relaes de servio, com aumento dos

empregos de front-office, ou seja, daqueles que se relacionam

diretamente com os clientes, havendo uma integrao cada vez

maior da relao entre produo e consumo, o que se aplica

especialmente ao setor sade. Isto traz como consequncia uma

tendncia de superao da organizao taylorista de produo nos

servios, porque coloca em discusso, seja o contedo, seja a

diviso do trabalho, em que a relao concepo/execuo perde o

seu carter unilateral, pois h necessidade de maior integrao entre

49

os agentes e entre estes e os usurios, com uma ativa interveno

destes ltimos (Lazzarato, Negri, 2001).

Entre outras especificidades do trabalho em sade podem ser

citadas: seu produto no se refere a um bem material, mas a uma

determinada transformao em seres humanos, ou seja, um produto

imaterial indissocivel do processo que o produziu e que se

consome ao mesmo tempo em que executado. Trata-se, portanto,

de um trabalho imaterial, mediado pela relao social e pela

comunicao, uma atividade abstrata ligada subjetividade

(Lazzarato, Negri, 2001). Seu processo de trabalho condicionado

pelo estgio de conhecimento e percepo das necessidades, que

se d de acordo com as concepes e valores morais, ticos e

ideolgicos de seus agentes, pois envolve interpretao e deciso

pessoal na aplicao do conhecimento cientfico; um processo de

natureza coletiva e parcelar, em que vrios profissionais procuram

agir coerentemente, compartilhando saberes. Estes agentes

desenvolvem processos de trabalho prprios e so valorizados

diferentemente segundo os vrios fazeres. Possui intensa inter-

relao entre agentes e usurios, ou seja, o consumidor participa,

faz parte e precisa contribuir com o processo de trabalho em sade

para que sua finalidade seja alcanada (Nogueira, 1995; Pires,

1998).

Tambm na sade, o trabalho tem sempre uma finalidade

para que se realize, a qual est ligada ao atendimento de

determinadas necessidades, desde aquelas circunscritas ao corpo

biolgico at as de ordem social e subjetiva, assim as necessidades

humanas no s abrangem as dimenses fsica, psquica, afetiva,

sociocultural, mas tambm a dimenso poltica da vida (Mandu,

Almeida, 1999, p.57).

Segundo Mendes Gonalves (1992), as necessidades so

sempre conscientes, objetualizadas e scio-histricas, e devem

50

estar presentes para a reproduo do homem em certo perodo e em

certa sociedade. Esto ligadas, portanto, aos processos de

reproduo social.

Visando a uma melhor compreenso do que seriam as

necessidades de sade, Ceclio (2001) sistematiza uma taxionomia

em quatro grandes conjuntos. O primeiro diz respeito a se ter boas

condies de vida, considerando que a maneira como se vive se

traduz em diferentes necessidades de sade. O segundo conjunto

fala da necessidade de se ter acesso e se poder consumir toda

tecnologia de sade capaz de melhorar e prolongar a vida. O

terceiro conjunto diz respeito insubstituvel criao de vnculos (a)

efetivos entre cada usurio e uma equipe e/ou um profissional. E o

quarto e ltimo conjunto de necessidades de sade refere-se

necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no

seu modo de levar a vida.

As necessidades de sade referidas acima devem ser

compreendidas como um carecimento, e se manifestam na rea da

sade em grande parte pela procura aos servios. Ocorre, porm,

que o modo como esto organizados os servios passa a ser no

somente uma resposta s necessidades, mas tambm um contexto

instaurador de novas necessidades. H desta forma uma conexo

circular entre a organizao da produo, a oferta e distribuio dos

servios e o consumo destes, um induzindo o outro (Schraiber,

Mendes Gonalves, 2000, p. 30). Isso nos leva a refletir em que

medida no trabalho em sade, um tpico trabalho imaterial, produtor

de subjetividades, no estamos ampliando o desejo/necessidade

dos usurios mais pelo consumo de procedimentos (consultas,

exames, medicamentos) e menos pela promoo da sade, pela

autonomia e autocuidado, pela criao de vnculos.

Em relao s tecnologias utilizadas nos processos de

trabalho em sade, Mendes Gonalves (1994) formula os conceitos

51

fundamentais em seu trabalho Tecnologia e organizao social das

prticas de sade, que sero utilizados como referncia para

aprofundamento deste aspecto, juntamente com as contribuies

posteriores de Merhy (2003, 2007) sobre as tecnologias em sade.

Antes de expor as contribuies de Mendes Gonalves, vale

explicitar que tecnologia, segundo o conceito clssico, refere-se ao

estudo dos procedimentos tcnicos, naquilo que eles tm de geral e

nas suas relaes com o desenvolvimento da civilizao (Lalande,

1999, p.1.111). Porm, este conceito no nico, possui diferentes

mediaes e significados. O mais geral seu sentido etimolgico:

tecnologia como o logos ou o tratado da tcnica, estando

englobadas a teoria, a cincia, a discusso da tcnica (Pinto, 2005,

apud Frigotto, 2006)1.

Mendes Gonalves (1994) vai alm desta definio ao

apontar que os instrumentos ditos tecnolgicos s ganham

existncia concreta no trabalho enquanto expresso das relaes

provisoriamente adequadas, estabelecidas entre os homens e os

objetos sobre os quais trabalham. O autor defende a existncia de

uma dimenso no material da tecnologia, constituda pelo saber e

por seus desdobramentos materiais e no materiais na produo de

servios de sade. Compreende o saber como a mediao entre os

resultados do processo de conhecimento (as cincias) e as

determinaes de todas as outras ordens advindas prtica de sua

articulao social, ou seja, a forma como o fazer acontece na prtica

dos servios. Para este autor, a tecnologia s adquire sentido

enquanto expresso conjunta das determinaes internas e externas

dos processos de trabalho (p.126).

Desta forma, Mendes Gonalves (1994, p.32) adota como

concepo de tecnologia o conjunto de saberes e instrumentos que

1PINTO, A. V. O Conceito de Tecnologia.Rio de Janeiro: Editora Contraponto,

2005. v I e II..

52

expressa, nos processos de produo de servios, a rede de

relaes sociais em que seus agentes articulam sua prtica em uma

totalidade social. Esta abordagem leva-o concepo de saber

operante, tal como a clnica e a epidemiologia, que so saberes

pautados no conhecimento cientfico, mas de carter tecnolgico

pois fundamentam imediatamente a ao ou interveno do

profissional de sade no trabalho.

No processo de trabalho em sade, o trabalhador

desempenha um papel de fundamental importncia, pois sua

histria, suas habilidades, sua capacidade inventiva atuam no

sentido de organizar o processo e de compor os saberes

tecnolgicos. Utilizando de sua capacidade de autogoverno, o

trabalhador da sade tem a possibilidade de, a partir de processos

intersubjetivos, imprimir mudanas nos processos de trabalho

(Merhy, 2002).

Partindo destas reflexes e utilizando-se do referencial da

micropoltica do trabalho em sade, Merhy (2002, 2007) amplia as

contribuies tericas sobre a organizao tecnolgica do trabalho

estabelecidas por Mendes Gonalves (1994), em especial

retomando de Marx o conceito de trabalho morto e trabalho vivo e

introduzindo uma tipologia de tecnologias em sade: tecnologias

leve, leve-dura e dura.

Os saberes sistematizados, os produtos ou resultados de

trabalhos humanos anteriores, ao entrarem em novos processos de

trabalho como meios de produo, constituem o trabalho morto. E

so chamados de trabalho morto neste processo porque, apesar de

ser produto de um trabalho vivo, agora ele incorporado como uma

cristalizao deste trabalho vivo (Merhy, 2007, p.83). Por trabalho

vivo compreendido o trabalho em ato, a atividade produtiva e

criativa do trabalhador.

53

O que faz com que o trabalho morto prevalea sobre o

trabalho vivo, ou vice-versa, o exerccio do

protagonismo/liberdade ou do protagonismo/reproduo que esteja

ocorrendo no mundo geral da produo, tanto na conformao

tecnolgica dos atos produtivos quanto nos modos de atend-los

(Merhy, 2002, p.46), e isso ocorre em todos os setores produtivos.

Porm, segundo este autor, o trabalho em sade no pode

ser totalmente capturado pela lgica do trabalho morto, pois as

especificidades desse processo de trabal