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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Mestrado em Estudos de Teatro Ecos de Vanguarda Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias Eunice Lopes Tudela de Azevedo 2012

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Mestrado em Estudos de Teatro

Ecos de Vanguarda

Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias

Eunice Lopes Tudela de Azevedo

2012

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

ESTUDOS DE TEATRO

Ecos de Vanguarda

Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias

Eunice Lopes Tudela de Azevedo

Dissertação orientada pela Prof. Vera San Payo de Lemos e apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em estudos de Teatro

2012

Resumo

As novas dramaturgias como um afastamento radical em relação ao teatro dramático,

serão, juntamente com uma abordagem seletiva da vanguarda histórica, os focos

centrais das páginas que se seguem. A viagem que se realizará através dos vários

movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX, pretende salientar as

respetivas contribuições para a formação de elementos característicos das novas

dramaturgias.

Com o auxílio da produção teórica de Hans-Thies Lehmann, far-se-á uma

incursão pelas mais variadíssimas concretizações das novas dramaturgias, de maneira

a definir os seus traços principais e de que forma eles se reportam à vanguarda, bem

como a sua aplicação prática em espetáculos contemporâneos. Parte-se de uma breve

análise da Poética de Aristóteles, enquanto texto fundador do drama; um conceito

essencial para levar a cabo o confronto entre teatro dramático e teatro pós-dramático,

para uma melhor caracterização deste último.

Palavras-chave: vanguarda, pós-dramático, novas dramaturgias, teatro

contemporâneo.

Abstract

The main concerns of the present dissertation are the new dramaturgies and their

radical demarcation when it comes to dramatic theatre, as well as a selective approach

to the historical avant-garde that aims at underlining its possible contribution to the

formation of elements that are distinctive of the new dramaturgies.

With the aid of Hans-Thies Lehmann's theatrical theory, an incursion through

the vast array of possible embodiments of these new dramaturgies will be attempted

in a way that allows one to define their most bold stylistic traits and how they can be

traced back to the experimentation of the avant-garde. An analysis often accompanied

by practical contemporary examples of how these traits are applied in today's theatre

will be attempted as well. Our journey begins with a brief presentation of the dramatic

principles enunciated in the pages of Aristotle's Poetics that prove themselves

essential to the comparison between dramatic and postdramatic theatre in an effort to

best describe the latter.

Key-words: avant-garde, post-dramatic, new dramaturgies, contemporary theatre.

Agradecimentos

Queria agradecer, antes de mais, a paciência, a disponibilidade e a

generosidade da Prof. Vera San Payo de Lemos, que tão bem me acompanhou neste

percurso. Deixo, aqui, uma palavra de agradecimento, também, à Prof. Maria Helena

Serôdio, com quem dei os primeiros passos na descoberta do Teatro e cujo rigor,

competência e conhecimento tanto contribuíram para o momento em que hoje me

encontro.

Não poderia, também, esquecer a minha segunda casa, a Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa, espaço de crescimento por excelência, e a todos aqueles

que, de alguma maneira, contribuíram para a minha formação, em especial o Prof.

José Pedro Serra e o Prof. Joaquim Manuel Magalhães, figuras fundamentais no meu

percurso académico.

Por último, mas não menos importante, agradeço a meu pai e minha mãe, pela

liberdade e respeito concedidos à escolha do meu próprio caminho, pelo apoio — da

mais variada natureza —, pela dedicação, pela paciência inabalável e pelo constante

esforço sem o qual nada disto seria possível.

Theatre was and is searching for and

constructing spaces and discourses

liberated as far as possible from the

restraints of goals (telos), hierarchy and

causal logic.

Hans Thies-Lehmann

Índice

Introdução 7

Cap. I — Fundações do Drama: A Poética 11

Cap. II — A Vanguarda 21

I. Vanguarda e Modernidade 21

II. Ubu Roi 23

III. O Futurismo Italiano 28

IV. O Caso Russo 40

1) Futurismo Russo 40

2) Outubro Teatral 46

3) Agit-prop e Auto-ativismo 87

V. DADA 105

VI. Antonin Artaud 113

Cap.III — Novas Dramaturgias 121

Conclusão 135

Bibliografia 139

  7  

Introdução

A presente dissertação pretende ser uma espécie de esboço para um panorama

explicativo das novas dramaturgias, construído através da exposição de alguns dos

seus traços mais marcantes e não tanto uma exploração exaustiva e absoluta das

manifestações do pós-dramático no teatro contemporâneo, tarefa que seria, de certo,

impossível em tão reduzido número de páginas.

O termo pós-dramático utilizado por Hans-Thies Lehmann, na sua obra

Postdramatisches Theater, para apelidar as novas manifestações teatrais que vêm

surgindo desde o final dos anos sessenta apresenta-se um tanto restritivo e com uma

dimensão negativa dada pela utilização do prefixo "pós", uma vez que este transmite

uma ideia de negação e rutura radical com o passado dramático do teatro, facto que

não corresponde à realidade. O próprio autor de O Teatro Pós-dramático sente uma

necessidade de especificar a natureza do prefixo, quando declara que o termo não

pressupõe nenhuma negação cega da tradição teatral, mas antes uma prática que

pretende ir para além do dramático, mas que mantém, frequentemente, uma ligação

  8  

com essa dimensão mais convencional, ainda que não seja para dele se distanciar.1

Devido a esta possibilidade de equívoco, mas também por ser uma nomenclatura

mais abrangente no que toca às possíveis realizações de um teatro cujo cerne não é

mais o drama, o termo "novas dramaturgias" é aqui preferido em detrimento do

"pós-dramático". A obra de Lehmann será encarada, nas próximas páginas, como

uma base extremamente útil para a elaboração do roteiro das novas dramaturgias, o

que não implica que a autora da presente dissertação subscreva inteiramente as teses

desenvolvidas pelo teórico alemão, que se apresentam, por vezes, um pouco rígidas

na sua aplicação a um tema que é, por natureza, bastante livre e camaleónico e, por

isso, difícil de compartimentar em conceitos fixos.

A presente incursão pelas novas dramaturgias pretende não só dar a

conhecer melhor esta realidade, ilustrando, sempre que possível, a sua realização

prática com exemplos, tanto nacionais como estrangeiros, mas também abordar o

seu relacionamento com as experimentações teatrais levadas a cabo pela vanguarda

histórica. Este momento de afastamento em relação ao passado dramático do teatro

será abordado com vista a uma análise da extensão da influência que os movimentos

de vanguarda tiveram na construção das novas formas da arte do palco. Contudo, ao

abordar as vanguardas e a rutura que elas iniciaram é necessário ter presente que

nem todas as inovações que com elas surgiram têm um caráter completamente

original, uma vez que são conhecidas as influências da Commedia dell'Arte, dos

mistérios medievais ou do teatro isabelino, bem como de outras culturas para além

da ocidental. Digno de nota é, também, alguma divergência em relação ao

radicalismo dos manifestos produzidos pelos vários movimentos no que toca à

realização teatral, uma vez que não apresentaram experimentações tão

                                                                                                               1 Cf. Hans-Thies Lehmann, Postdramatic Theatre, Oxon, Routledge, 2009, pp.26-27.

 

  9  

profundamente radicais como seria de se esperar, visto que frequentemente se

identificava ainda uma matriz dramática em algumas das concretizações teatrais da

vanguarda. De fora da análise da pré-história das novas dramaturgias ficarão, por

uma questão de economia de espaço físico e de restrição de objeto de estudo,

figuras influentes como Edward Gordon Craig, Erwin Piscator ou Bertolt Brecht,

bem como o Teatro do Absurdo ou o Surrealismo que, mesmo constituindo este

último parte integrante da vanguarda histórica, não teve grande expressão prática no

campo teatral, pelo que o ponto de contacto mais próximo da estética surrealista

será Artaud.

Para dar início a esta reflexão será necessário, num primeiro momento,

definir, de forma sumária, em que consiste o teatro dito dramático, tratado como

ponto de partida através da análise da Poética de Aristóteles, no primeiro capítulo

da presente dissertação, de forma a servir de termo de comparação para melhor

definir o objeto de estudo das próximas páginas. Segue-se um segundo capítulo,

construído cronologicamente, em que se aborda a vanguarda histórica, começando

pela sua ligação com a modernidade, procedendo, depois, à exposição dos

movimentos com maior expressão teatral que a constituíram — o Futurismo Italiano

e o caso russo, que compreende não apenas o Futurismo, mas também as várias

experimentações que se seguiram à Revolução de Outubro, e o Dada —, bem como

à abordagem da prática teatral e reflexão estética de Alfred Jarry e Antonin Artaud.

Alfred Jarry é destacado por Ubu Roi, considerado por muitos como o primeiro

espetáculo de vanguarda, devido à sua natureza profundamente disruptiva em

relação ao teatro convencional, e Artaud é referido principalmente pelos seus textos

teóricos em que este expressa o seu desejo de ver realizado um teatro livre da

estrutura empedernida do drama ocidental, fruto de um teatro que havia esquecido a

sua especificidade. O teatro artaudiano seria completamente pensado a partir da

  10  

dimensão do espetáculo, que se construía com uma matriz sensorial — não racional

como o drama logocêntrico — que envolvesse por completo o espectador de forma

a abalá-lo por meio da saturação dos seus sentidos.

O terceiro e último capítulo, parte de uma definição sumária do teatro

dramático, bem como de uma breve síntese da rutura trazida pela vanguarda, para

chegar ao tal esboço que pretende servir de base para a análise das transformações

trazidas pelo abandono do texto como cerne do teatro. A partir das alterações

salientadas pretende-se compreender quais as principais consequências da

desconstrução da hierarquia do dramático que se manifestaram ao nível do estatuto

do espectador, do papel do ator, e dos elementos que compõem o espetáculo teatral

— o espaço, a cenografia, a sonoplastia, a iluminação, o texto e a linguagem cénica

— , bem como salientar a influência das novas tecnologias e meios de comunicação

e de como elas se articulam com a cena.

As possibilidades de aplicação do pós-dramático à realidade do espetáculo

são incontáveis. O desaparecimento do jugo literário abriu todo um novo mundo

que pressupõe uma liberdade quase total para a conceção e produção de espetáculos,

para a descoberta de novas formas de receção do momento teatral, para a revisitação

de textos clássicos, para o trabalho do ator, do encenador, e até do autor. Constitui-

se, assim, uma abertura notável, num momento em que o Teatro encontrou um

amplo espaço para além da rigidez da razão, que culmina na oportunidade de este se

reinventar, de se reconstruir como bem entende. As novas dramaturgias constituem,

de certa forma, um retorno do Teatro à sua infância, momento em que, saído de uma

dimensão cerimonial, o seu cerne era ele mesmo.

  11  

Capítulo I

Fundações do Drama: A Poética

Na sua vasta obra, Aristóteles tratou de temas tão diversos quanto física e retórica

ou música e política. Alguns desses temas estavam intrinsecamente ligados à pólis,

como é o caso do drama, cerne da Poética, obra central deste capítulo. A reflexão

presente na obra nasce após o século de ouro da tragédia ática, sendo posterior à

representação dos grandes textos dramáticos da Antiguidade e, como tal, retira delas

as características que definem o drama, não estabelecendo, a priori, o paradigma

sobre as quais elas se baseiam, não apresentando, portanto, uma natureza

normativa2. Contudo, com o passar dos séculos, a Poética acabou por dar origem a

tratados normativos, estabelecendo regras que se empederniram com as inúmeras

leituras e releituras do texto feitas pela Renascença e classicismo francês.

Nesta obra em particular, Aristóteles propõe-se tratar da

                                                                                                               2 Cf. L'Esthétique Théâtrale, Catherine Naugrette, Armand Colin, Paris, 2000, p.89.

  12  

(...) arte poética em si e das suas espécies, do efeito que cada uma

destas espécies tem; de como se devem estruturar os enredos, se se pretender

que a composição poética seja bela; e ainda na natureza e do número das suas

partes. E falaremos igualmente de tudo o mais que diga respeito a este

estudo, abordando, naturalmente, em primeiro lugar, os princípios básicos

(ARISTÓTELES 2007: 37).

Os princípios básicos referidos pelo autor são, nomeadamente, a mimesis e a

katharsis, uma vez que o primeiro constitui o fenómeno através do qual o drama é

possível e o segundo o seu objetivo último e extraliterário, já que uma tragédia apenas

se torna completa fora de si mesma, ao provocar no seu espectador ou leitor esse

sentimento de purificação.

Aristóteles não foi o primeiro a abordar o tema da mimese, uma vez que Platão

já havia introduzido o conceito na República — a propósito da questão da presença dos

poetas na sua cidade perfeita e se esta seria ou não nociva para a ordem pública e boa

formação dos cidadãos — embora de uma forma bastante diferente daquela que

podemos encontrar na Poética. Para Platão, a mimese não é mais que uma simples

imitação sem technè, "duas vezes mais distante do princípio ordenador da realidade"

(SERRA 2006: 107) — a Ideia —, presente apenas nos casos em que o poeta se

fragmenta e dissimula a sua própria voz assumindo a pele de outras personagens,

fazendo crer ao leitor/espectador que não é ele, mas um outro que lhes fala. Deste

modo, para Platão, nem toda a produção poética tem por base a mimesis, uma vez que

aquela pode ser levada a cabo também por meio de diegesis, ou seja, através da

narração simples, em que o poeta assume a sua voz quando narra os acontecimentos,

evitando a multiplicidade. A mimese é, assim, apresentada na República com uma

  13  

conotação negativa3, uma vez que se afasta da verdade — tão cara a Platão,

contrariamente a Aristóteles que prefere a constante presença da verosimilhança — já

que pode dificultar a boa formação dos jovens quando o objeto de imitação não é de

índole superior e deturpar a noção do real dos cidadãos, algo que não vemos no

pensamento de Aristóteles, pois reabilita o conceito e, consequentemente, a produção

artística que dele nasce.

Para Aristóteles, a mimese não é uma simples cópia do real e a poesia não é

uma atividade desprovida de technè, mas antes uma obra produzida por meio de um

verdadeiro conhecimento aplicado. Contrariamente ao pensamento de Platão, a mimese

é, na Poética, apresentada com um fenómeno natural4, inseparável da natureza

humana, através do qual o homem se faz homem, levando a cabo a sua aprendizagem,

mas também porque retira da mimesis um certo prazer. Aristóteles não faz a distinção

entre diegesis e mimesis, pois para este autor tudo é mimese, sendo esta última

considerada o fenómeno na base de toda a produção artística5.

Contudo, é feita a distinção entre modo, objetos e meios para efetuar a mimese,

que variam consoante a arte em questão. Entre os meios6 através dos quais se pode

realizar a mimese Aristóteles destaca "o ritmo, a melodia e o metro" (ARISTÓTELES

2007: 39), embora também possa ser levada a cabo por meio da cor, da imagem, do

som, etc. Relativamente ao objeto da imitação, Aristóteles destaca o homem em ação

— o objeto da mimese trágica por excelência —, ainda que, como já foi referido,

consoante a arte, este possa variar. No que toca aos modos7 de imitação o autor

distingue narração de representação, sendo esta última o modo identificado na mimese

trágica e o primeiro o modo através do qual nasce a epopeia.

                                                                                                               3 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.135 4 Cf. Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.42. 5 Cf. ibidem, p.38. 6 Cf. ibidem, p.39 7 Cf. ibidem, p.40

  14  

A mimese é, portanto, um fenómeno natural de representação do real através do

qual é possível a produção artística, baseando-se num jogo de semelhança e

dissemelhança com a realidade. É através da mimese que o poeta forja um novo

universo, uma realidade forjada num plano distinto do do seu autor, e,

consequentemente, fictício para o espectador que necessita de ter a plena consciência

dessa dimensão ilusória, de modo a que experiencie a catarse.

Chegamos, assim, a outro aspecto essencial da teoria aristotélica: a catarse. Este

polémico conceito8 é encarado como o objetivo último da tragédia, devendo ser

experienciada pelo espectador ou leitor de modo a que neste ocorra a sublimação do

temor e compaixão. Estas paixões são provocadas através de uma identificação com os

heróis trágicos — indivíduos "que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela

justiça; tão-pouco caem no infortúnio devido à sua maldade ou perversidade"

(ARISTÓTELES 2007: 61) — em quem o espectador reconhece os traços de uma

humanidade universal, apesar de serem indivíduos de condição nobre e elevada. Deste

modo, o espectador sente receio que desgraças semelhantes lhe possam acontecer, mas

também compaixão ao constatar que um ser, nem bom, nem mau, é vítima de um

"imerecido castigo que, ao abater-se sobre o nosso semelhante, revela a nossa

fragilidade" (SERRA 2006: 170). Assim,

A catarse da piedade e do terror implica, pois, uma aprendizagem

destas emoções; esta aprendizagem consiste numa clarificação, isto é, na

conveniente e apropriada adequação da piedade e do terror aos objectos

devidos, no tempo oportuno e de maneira correcta. A procura de uma

habitualmente justa, equilibrada e proporcionada atribuição de piedade e

                                                                                                               8 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.178  

  15  

de terror às diversas situações é não só esforço educativo, como sinal de

sabedoria (SERRA 2006: 284).

Deste modo, a catarse apresenta-se como um fenómeno de efeito esclarecedor e

fomentador de equilíbrio, através do qual o espectador se liberta das paixões suscitadas

pelo desenrolar da acção, mas também como um fenómeno próprio da tragédia, visto

que é apenas a queda do herói trágico, a mudança da fortuna e o pathos que daí nasce

que provocam tais sentimentos no espectador.

A já referida distância reconhecida entre realidade e ficção, entre plateia e

palco, permite ao espectador viver de forma vicariante as emoções que, quando

realmente experienciadas, seriam demasiado dolorosas e difíceis de comportar

impossibilitando, assim a sublimação das mesmas e consequente aprendizagem, ou

seja, a catarse. Essa tão necessária distância, bem como a identificação anteriormente

referida, nasce da criação de um universo que apesar de real não o é, uma vez que é

apenas uma imitação trabalhada do real, o que significa que a catarse vem no

prolongamento da mimese trágica.

Vimos já que a catarse é um aspecto específico e fulcral ao género trágico do

qual Aristóteles apresenta uma definição um tanto vaga, embora revelando alguns

conceitos fulcrais:

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa,

dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas

diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e

não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,

provoca a purificação de tais paixões (ARISTÓTELES 2007:

47-48).

  16  

Aristóteles apresenta, então, a tragédia como a mimese de uma ação, levada

a cabo por meio da representação e não da narração — reservada à epopeia —, que

deverá ser elevada e completa, introduzindo, assim, a importante unidade da ação

— a única realmente abordada por Aristóteles, uma vez que a 'Lei das Três

Unidades' provém de uma releitura da Poética feita por Castelvetro no séc. XVI. O

autor refere, também, a linguagem adequada ao género trágico, especificada como

"a que tem ritmo, harmonia [e canto]", e que deverá ser embelezada e composta

"por ‘formas diferentes’", isto é, deverá ser composta por "algumas partes

executadas apenas com metros, enquanto outras incluem o canto.” (ARISTÓTELES

2007: 48). Por último, Aristóteles faz referência ao objetivo da tragédia, a catarse,

atingida, como já foi referido, através da experiência de sentimentos como o temor e

compaixão.

Relativamente à tragédia Aristóteles apresenta não apenas as suas divisões

formais9, mas também, e principalmente, os elementos que a constituem: enredo,

caracteres, elocução, pensamento, espectáculo e música. Estas seis partes que

definem a tragédia estão hierarquicamente organizadas10, por importância, pelo

próprio autor, que dá clara primazia ao mythos — o enredo —, isto é, à estruturação

dos acontecimentos. O enredo é considerado a parte mais importante, uma vez que o

objeto imitado tem por base a ação humana, e é essa mesma ação que, por meio de

um desenrolar natural, provoca o temor e compaixão que conduzem à catarse, pelo

que é essencial que o enredo seja bem estruturado, de acordo com o princípio da

necessidade e verosimilhança. Estes dois conceitos chave da Poética são

constantemente frisados por Aristóteles, não apenas no que toca à estruturação dos

                                                                                                               9 “(...) quantitativamente, as partes em que se divide a tragédia são estas: prólogo, episódio, êxodo, parte coral e, dentro desta, o párodo e o estásimo, que são comuns a todas as tragédias (...)." Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.59. 10 Cf. ibidem, pp.50-51.

  17  

acontecimentos, mas também em relação à construção dos caracteres que

constituem o segundo elemento mais importante da tragédia.

Aristóteles apresenta o carácter como "o que nos permite dizer que as pessoas

que agem têm certas qualidades" (ARISTÓTELES 2007: 48). Os caracteres são factores

importantes no processo de identificação do auditório com a cena, devendo ser bons,

mas não excessivamente, para que seja possível tal processo, mas também para que o

infortúnio que se abate sobre o herói trágico não cause repulsa no espectador, mas

antes compaixão e temor.

Em seguida é referido o pensamento, expresso pela linguagem, que "consiste

em ser capaz de exprimir o que é possível e apropriado" (ARISTÓTELES 2007: 50),

seguido da elocução que é apresentada como a capacidade de "comunicação do

pensamento por meio de palavras" (ARISTÓTELES 2007: 50). As duas últimas partes

que constituem o drama são, claramente, as mais negligenciadas por Aristóteles, uma

vez que o efeito da tragédia pode ser cumprido sem recurso ao espectáculo e música,

sendo esta última vista como "o maior dos embelezamentos" (ARISTÓTELES 2007: 50).

É na recusa da centralidade do opsis — o espectáculo — que Aristóteles funda

a superioridade do género trágico perante o épico, defendida nas últimas páginas da

Poética:

[A] tragédia, tal como a epopeia, mesmo sem nenhum

movimento, produz o seu efeito próprio: de facto, a sua qualidade é

visível através da leitura. (...) E depois, é melhor porque tem tudo que

a epopeia tem (já que até pode usar o mesmo metro) e tem ainda um

elemento que não é de menos importância, como a música [e o

espectáculo], através dos quais se produzem os mais vivos prazeres.

Por conseguinte, tem vivacidade tanto na leitura como nas

representações (ARISTÓTELES 2007: 105-106).

  18  

Embora não negue alguma importância à dimensão do espectáculo, aquela é

sempre relativa, já que nem sequer é considerada uma questão do domínio da arte do

poeta, mas antes do domínio do corego, que assume a responsabilidade da produção do

espetáculo.

No que toda à estruturação do enredo, Aristóteles insiste, como já foi aqui

referido, no princípio da verosimilhança e da necessidade, apresentado como o que

distingue o poeta do cronista, uma vez que este último relata as coisas como

aconteceram, estando preso aos factos, ao passo que o poeta relata o que poderia ter

acontecido, da forma mais credível possível, mesmo que isso signifique relatar algo

que não é verdade ou impossível. O importante é a verosimilhança (e não a verdade),

para que o espectador acredite no que está a ver e seja envolvido pelos acontecimentos,

tudo para que seja criado um sentimento de identificação com o herói trágico e com a

ação que este pratica, de modo a que sejam produzidos temor e compaixão, e,

consequentemente, a catarse.

O enredo deve ser formado por episódios que sigam uma sequência lógica de

causalidade, e que formam uma ação una e completa, composta apenas pelos

acontecimentos essenciais e de acordo com a verosimilhança, o que não deixa espaço

para o irracional não justificado11. Dentro do enredo Aristóteles distingue aqueles que

são simples "em que os acontecimentos vão progredindo lenta mas seguramente no

sentido da inversão da fortuna, sem surpresa nem paradoxo" (SERRA 2006: 152), como

se verifica em As Troianas, de Eurípides, daqueles que são compostos por ações

complexas, onde têm lugar a peripécia e o reconhecimento. Entende-se por peripécia "a

mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de

acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade" e por reconhecimento "é a

                                                                                                               11  Cf.  Poética,  Aristóteles,  Fundação  Calouste  Gulbenkian,  Lisboa,  2007,  p.96.  

  19  

passagem da ignorância para o conhecimento" (ARISTÓTELES 2007: 57),

acontecimentos sempre regidos pela necessidade e verosimilhança.

Em suma, um enredo bem elaborado, para Aristóteles, é aquele que é

(...) simples de preferência a duplo, como pretendem alguns, e que

a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo

contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade,

mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que

defini, ou de outras melhores, de preferência a piores.” (ARISTÓTELES

2007: 61).

Aristóteles introduz, nesta passagem, um outro conceito de definição polémica

— uma vez que pode ser interpretado de várias formas12 —, que está na origem da

mudança da fortuna do herói trágico: hamartia. Entendido como um "erro grave"

(ARISTÓTELES 2007: 23), não numa acepção moral, mas antes no sentido de errar o

julgamento, de modo que "a queda não remete directa e primordialmente para uma

culpa que se desdobrava no castigo, mas resulta de um equívoco, de um erro de

cálculo, do qual o agente é mais vítima do que causador" (SERRA 2006: 165),

sublinhando, assim, a vulnerabilidade humana e a arbitrariedade da existência.

Para além da tragédia, Aristóteles aborda, também, a epopeia, em muito

semelhante à tragédia13, divergindo não só na extensão e capacidade de abarcar

múltiplos episódios — algo dificultado pela representação da tragédia —, como no

modo através do qual a mimese se constrói: a narração. Relativamente à comédia,

igualmente comparada com a tragédia, a distinção de géneros é feita apenas através do

                                                                                                               12  Cf.  Pensar  o  Trágico,  José  Pedro  Serra,  Fundação  Calouste  Gulbenkian,  Lisboa,  2006,  p.161  13  Cf.  Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp.46-47.  

  20  

objeto imitado, já que na comédia são representados "caracteres inferiores"

(ARISTÓTELES 2007: 46).

Apesar de centrada na tragédia, esta obra contém em si diretrizes aplicáveis a

todo o drama14, e não apenas ao da Antiguidade Clássica, já que se registam

repercussões desta obra durante séculos, mesmo quando o intuito consistia em quebrar

as formas tradicionais, como no caso de Brecht, que, mesmo querendo inovar, fê-lo por

oposição direta ao teatro aristotélico, forjando o seu teatro épico.

Em suma, os conceitos que importam salientar são a mimese aristotélica, a

definição de tragédia dada por Aristóteles e os elementos que a constituem, bem como

o fraco papel do espectáculo na sua composição, por oposição à importância dada ao

enredo que deverá ser bem estruturado, sempre de acordo com a necessidade e

verosimilhança. Esta extrema importância dada ao enredo traduz-se na centralidade do

texto, facto que resulta numa noção de teatro principalmente literária e não tanto

performativa.

                                                                                                               14"S'il traite, dans La Poétique, surtout de la tragédie qui est, dans l'Antiquité, le genre dramatique majeur, la définition que nous citons ici est pertinente pour toute pièce de théâtre, quels que soient le genre et l'époque auxquels elle appartient." Les Grandes Théories du Théâtre, Marie-Claude Hubert, Armand Colin, Paris, 2008.  

  21  

Capítulo II

A Vanguarda

I. Vanguarda e Modernidade

O termo vanguarda tem a sua origem na palavra avant-garde, de origem francesa,

utilizada para definir, num contexto militar, a linha da frente de uma ofensiva de

guerra, cuja responsabilidade consiste em liderar os restantes soldados para a

batalha. Aplicado ao campo artístico, o termo é usado, de forma semelhante, para

definir artistas e movimentos que, apesar de terem assumido várias formas,

constituíram sempre a linha da frente do progresso artístico, sendo, frequentemente,

recebidos, num primeiro momento, de forma hostil por um público representativo

dos costumes e valores que essa mesma vanguarda pretendia combater.

Apesar das inúmeras diferenças entre os vários movimentos de vanguarda,

como veremos no desenrolar do presente capítulo, é possível constatar tantos outros

pontos comuns. No entanto, parece haver um sintoma maior na base destes mesmos

  22  

movimentos: a modernidade entendida como um conceito sócioeconómico, definida

por Ben Singer da seguinte maneira:

(…) uma grande quantidade de mudanças tecnológicas e sociais

que tomaram forma nos últimos dois séculos e alcançaram um volume

crítico perto do fim do século XIX: industrialização, urbanização e

crescimento populacional rápidos; proliferação de novas tecnologias e

meios de transporte; saturação do capitalismo avançado; explosão de

uma cultura de consumo de massa e assim por diante. (SINGER 2004:

95)

Segundo Singer, com o processo de industrialização e desenvolvimento da

sociedade capitalista ocorreu um novo fenómeno de urbanização que levou à

concentração, nas grandes metrópoles, de um elevado número de pessoas, muitas

das quais gravitavam entre as indústrias e os espaços urbanos de lazer

experienciando toda uma série de novas sensações produzidas pela vida da cidade,

repleta de luzes, atrações, novos meios de transporte e um novo ritmo frenético até

então desconhecido. Esta profunda transformação do mundo e do quotidiano do

homem urbano, que se havia tornado "(…) marcadamente mais rápido, caótico,

fragmentado e desorientador (…)" (SINGER 2004: 96), ocorreu num curto espaço de

tempo, trazendo consigo a necessidade de desenvolvimento de um novo modo de

lidar com o mundo, bem como de o apreender e expressar. Foi, em parte, essa tarefa

que o movimento modernista tentou levar a cabo no campo artístico, onde, perante a

incapacidade das formas antigas face a um mundo radicalmente diferente, tentou

elaborar novas e surpreendentes formas de expressão.

A vanguarda, fenómeno heterogéneo, constituiu a dianteira do progresso

artístico no início do século XX, tendo como objetivo primeiro a destruição da

  23  

ordem burguesa — tanto ao nível dos valores sociais e políticos, como da expressão

artística — abrindo, assim, caminho ao desenvolvimento de novas linguagens,

novas formas e conteúdos que expressassem em pleno o novo estilo de vida e que

exercessem um poder transformador sobre todos os setores da sociedade. Apesar de

se confundir com o movimento modernista, não o esgota. Os modernistas, não

obstante erguerem um espelho crítico perante a sociedade, não intervinham

diretamente no domínio social ou político, nem promoviam, por meio da sua arte, a

transformação da ordem mundial. De forma contrastante, a vanguarda atacava

veementemente a ideologia dominante na sociedade burguesa, criticava as

convenções estéticas em vigor e subvertia as instituições de produção e distribuição

artísticas. Em suma, a vanguarda, constituída por pequenos grupos coesos de não

conformistas, integrava o movimento Modernista, mas devido à postura radical e

opções políticas adotadas pelos artistas que a compunham diferia, assim, da vertente

mais comercial da cultura Modernista (BERGHAUS 2005: 15).

II. Ubu Roi

Será, certamente, uma tarefa árdua, se não impossível, a tentativa de determinar

exatamente em que momento histórico teve início o movimento modernista —

expressão artística das transformações sociais e culturais trazidas pelo processo de

modernização — e a partir de que altura se começaram a fazer sentir manifestações

da vanguarda na arte do palco. Contudo, parece impossível ignorar a contribuição

de Alfred Jarry como um dos grandes pontos de partida da rutura.

Estreado em Paris, no Théâtre de l'Œuvre, dirigido por Lugné-Poë, em

dezembro de 1896, Ubu Roi contou com apenas duas representações — um ensaio

geral público no dia nove e a estreia no dia dez — perante um público de dimensões

  24  

reduzidas composto, em parte, por amigos do autor. Mesmo nestas circunstâncias a

reação à criação de Jarry foi, à semelhança de um motim, forte e maioritariamente

negativa desde as primeiras falas controversas, reação semelhante à provocada pelo

texto publicado no início desse mesmo ano, constituindo, assim, um dos maiores

escândalos do teatro francês. Ubu, "(...) uma estranha e violenta comédia inspirada,

sob uma perspectiva grotesca, no Macbeth shakespeariano" (MOLINARI 2010: 354),

de curta duração, apresentava algum dinamismo e economia de meios, centrando-se

no regicídio do Rei da Polónia levado a cabo por Mère e Père Ubu, personagens

movidas pela ganância e estupidez.

A produção de Jarry cobriu-se, logo nos primeiros momentos, de formas

profundamente anti-realistas, quando o próprio autor, envergando um figurino

extravagante, que evocava o estilo clown, se dirigiu diretamente ao público, em jeito

de prefácio, proferindo um discurso algo extenso num tom exagerado, através do

qual partilhou importantes linhas da sua estética teatral e informaçao sobre o

espetáculo. Alguma dessa informação revelava o local da ação — "As to the action

which is about to begin, it takes place in Poland -- that is to say, nowhere." (JARRY,

2003: 3) — que reiterava as qualidades anti-realistas do espetáculo, uma vez que era

constituído por uma tela onde havia sido pintado, de forma quase pueril, uma

mistura de espaços interiores e exteriores — sendo possível, nestes últimos, notar

uma clara mistura de regiões geográficas — onde muito pouco ou até mesmo nada

fazia lembrar a Polónia. Este cenário único concebido para ser simples, ter um

mínimo de adereços e alguma abstração de maneira a exigir ao espectador uma

participação mais ativa através da sua imaginação. Terá sido, de igual forma,

construído com o objectivo de se revestir de intemporalidade e universalidade,

combatendo, assim, o realismo de palco, bastante comum no teatro de então. No

combate ao realismo salienta-se também a entrada e saída em palco das

  25  

personagens, que ocorria através de uma lareira, bem como a marca de mudança de

cena levada a cabo por cartazes trazidos por um personagem, —"'Father time

figure" (BERGHAUS, 2005: 26) — trajado de um negro formal. A economia de

meios cénicos contagiou também o número de personagens, uma vez que Jarry

utilizava um único ator como representante de um grupo — um soldado em vez de

um exército inteiro —, outro aspecto que, juntamente com a música, combatia o

realismo. A banda sonora, com ecos de feira, composta por Claude Terrasse, fora

produzida apenas por um piano e alguma percussão, contrariamente à orquestra

inicialmente pretendida.

Entre personagens representadas por atores reais, com uma dicção peculiar,

envergando máscaras e movimentando-se de forma alusiva à marioneta,

encontravam-se várias figuras relacionadas com o universo burguês — magistrats e

financiers —, que no terceiro acto transformar-se-iam em autênticas marionetas. Os

figurinos, grotescos e pueris, reforçavam a linha anti-realista, não correspondendo

muitas vezes à boa caracterização dos personagens, apresentando-se estes em vestes

exageradas e excêntricas, como era o caso do próprio Père Ubu que, "com uma

túnica cinzento-aço e um chapéu de côco na cabeça" (MOLINARI 2010: 354), se

assemelhava, segundo as ilustrações originais, a uma esfera gigante da qual

brotavam os membros de Firmin Gémier, ator principal.

Jarry procurou sempre o escândalo e formas de provocar um efeito de

choque no público, algo construído em Ubu Roi pela convergência de todos os

elementos do espetáculo, mas dado principalmente pelo tratamento subversivo da

linguagem. Foi precisamente o jogo da linguagem —'Merdre!' (JARRY 2002: 29) —

que despoletou a forte reação do auditório, uma vez que, a ligeira dissimulação do

termo tabu não foi suficiente para o mascarar. O jogo mantém-se ao longo de toda a

peça em que Jarry desconstrói a linguagem, ignorando regras de ortografia e

  26  

brincando com as palavras em detrimento da racionalidade, agrupando-as mais pela

sua dimensão sonora do que pela sua capacidade de produtora de sentido (HUBERT

2008b: 161).

Encontramos refletido em Ubu Roi o programa estético de Jarry que prduzia

um teatro total, onde o jogo com os sentidos ocupava um lugar cimeiro em

detrimento da presença do texto. Entre essas opções estéticas — que serviram,

posteriormente, de inspiração a muitos artistas de vanguarda — contam-se "(...) a

violenta agressividade contra o público, o absurdo, o simbolismo sumário, o

grotesco violento ao ponto de se tornar trágico, a dissolução da linguagem, repleta

de neologismos e de expressões sem sentido, a crueldade, a redução da cenografia a

poucos elementos indicativos." (MOLINARI 2010: 354)

A sua conceção estética assentava principalmente, como já foi referido, num

antirealismo marcado15, presente em todas as componentes do espetáculo, uma vez

que Jarry pretendia revitalizar um teatro que ele julgava esgotado pelas formas

convencionais do teatro burguês, encarado então como o papel químico do

quotidiano. Este combate ao realismo encontrava-se presente na cenografia por

meio da simplicidade, uma vez que esta não deveria ser elaborada, antes meramente

sugestiva, para que fosse transmitido ao espectador apenas o essencial do

espetáculo. A presença de elementos cénicos apenas alusivos abriam espaço à

participação ativa do espectador, já que este poderia permitir que a sua imaginação

corresse livremente, bem como refletir na cena a sua subjectividade interpretando-a

como preferisse, pois Jarry não pretendia construir bloqueios à dimensão criativa do

público, nem torná-lo num mero consumidor passivo dos produtos da indústria

teatral.                                                                                                                15 "Cette transformation simultané de l'espace scénique et du personnage, opérée par Jarry, bouleverse la nature

de l'illusion. Le théâtre ne cherche plus à reproduire la réalité (...). Il représente crûment la condition humaine de

façon burlesque." Marie-Claude Hubert, Le Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 163.

  27  

A sua posição face ao ator contrariava o estatuto de estrela do mesmo, que

permitia que ao ator manipular o texto e o espetáculo em proveito próprio. Jarry

pretendia submetê-lo à visão artística do encenador, mas também do autor do texto,

atribuindo-lhe uma importância menor. O ator deveria trabalhar de forma mecânica,

física, com um tom monótono que contrastaria com os seus gestos expressivos,

pondo, deste modo, a tónica na comunicação não verbal, sendo, assim, influenciado

pelo teatro de marionetas. A utilização da máscara seria também importante, bem

como um aspecto que reforçaria o forte peso da expressão física em detrimento de

uma representação mais focada no aspecto psicológico e de expressão emocional,

assemelhando-se, assim, ao trabalho que Meyerhold desenvolveu com os seus atores

décadas mais tarde.

Também o conteúdo do seu teatro diferia em muito do teatro burguês, bem

como as formas através das quais era expressado. Jarry não optava pela linearidade

narrativa, nem pela psicologização dos personagens, muito menos abordava

assuntos contemporâneos ou trivialidades do quotidiano. Pretendia tratar tópicos

universais de uma forma intemporal e abstrata.

Todos os esforços de Jarry convergiam para um objetivo claro de

desconstrução do teatro dominante: um teatro burguês, estrangulado por convenções

ultrapassadas e esgotado num realismo psicológico, produto de uma indústria que

procurava mais lucro do que expressão artística. Ubu Roi foi orquestrado como uma

bomba que deveria ser atirada a um público para quem o teatro constituía apenas um

espaço de diversão superficial e ostentação. Assim, Ubu tornou-se o símbolo da

estupidez burguesa nos mais variados domínios (STYAN 2004a: 49), facto que

justifica o enorme impacto do espetáculo no século que o seguiu. A sua importância

fora também alimentada pela reação do público e da crítica que, ao produzir duras

apreciações sobre o espetáculo, propagaram a onda de escândalo por toda a élite

  28  

parisiense (BERGHAUS 2005: 26). A sua popularidade ultrapassou em pouco tempo

as fronteiras francesas, dando a conhecer Jarry e o seu ataque aos valores burgueses

a todos os centros culturais do velho continente. Na Itália, Filippo Tomaso

Marinetti, ao tomar conhecimento do escândalo, entrou em contacto com o autor do

espetáculo, com que manteve correspondência, chegando mesmo a conhecê-lo

numa das suas idas a Paris. Contudo, o reconhecimento da influência de Jarry não se

esgotou no Futurismo de Marinetti, já que foram vários os registos de homenagens

ao seu trabalho, como a que lhe prestou Antonin Artaud, em 1926, juntamente com

Roger Vitrac, com a fundação do Teatro Alfred-Jarry, e Eugène Ionesco, com a

criação do Collège de 'Pataphysique, em 1948.

Ubu Roi é, deste modo, justamente considerado como o primeiro espetáculo

de vanguarda16, tendo libertado o teatro dos grilhões da convenção burguesa. Ainda

que não tenha proposto nenhuma alternativa completa, viável e concreta, para a

formação de novas convenções, certamente terá aberto caminho para uma série de

experimentações levadas a cabo nas primeiras décadas do século XX e sobre as

quais nos debruçaremos nas próximas páginas.

III. O Futurismo Italiano

Alimentados pelas já referidas drásticas mudanças socioculturais e tecnológicas do

fim do século XIX, muitos dos movimentos de vanguarda não só defendiam o

progresso tecnológico, como cantavam a glória das máquinas e o fervor da guerra,

como Filipo Tomaso Marinetti o fez, no primeiro manifesto futurista de 1909,

intitulado Manifesto do Futurismo, que, impresso nas páginas do Le Figaro, obteve

                                                                                                               16 Cf. Marie-Claude Hubert, Le Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 161.

  29  

reações fortes e abalou a boa sociedade parisiense espalhando-se rapidamente pela

Europa como força agitadora.

Pouco tempo após a publicação do primeiro manifesto, Marinetti levou à

cena o primeiro espetáculo futurista — de influência jarryesca —, no Théâtre

L'œuvre de Lugné-Pöe, onde havia sido estreado, anos antes, Ubu Roi. O espetáculo,

Roi Bombance, assumia os contornos de uma sátira de revolução e democracia17. A

produção gerou algum escândalo embora tenha assumido formas menos radicais que

o expectável quando confrontada com as ideias do manifesto de 1909 onde, de

forma violenta, era proclamada a necessidade de uma nova arte, mais adequada ao

jovem mundo moderno, dedicada à velocidade e à luta, às massas, às máquinas e

fábricas (CARLSON 1993: 339).

Foi após o contacto com Jarry e a recusa do seu estatuto de poeta simbolista

que Marinetti, influenciado pelas características mais marcadas da vida moderna —

simultaneidade, dinamismo e velocidade — teve o impulso do Futurismo: o

primeiro movimento organizado de vanguarda e também um dos mais radicais, uma

vez que bebeu do termo original — avant-garde — o seu caráter bélico. Com a

Itália como seu berço e Paris como rampa de lançamento, este movimento

vanguardista, que pretendia ter repercussões em todos os setores da sociedade

através da disseminação artística, considerava-se pioneiro numa guerra contra a

tradição.

Marinetti elegera o teatro como campo de batalha e veículo por excelência

para a propagação da mensagem futurista, não apenas por se encontrar já inserido

no meio como crítico e dramaturgo, mas principalmente pela possibilidade de

intervenção imediata, pelo cariz público e popularidade do meio, que poderia,

                                                                                                               17 Cf. RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the Present, London, Thames&Hudson, 2010,

13.

  30  

através da libertação do espectador da realidade do quotidiano, ter um efeito

libertador na sociedade em geral. (BERGHAUS 2005: 31). Contudo, os Futuristas —

à semelhança dos Dadaístas e Surrealistas — não foram nem grandes teóricos, nem

grandes técnicos do teatro, como refere Molinari18, revestindo sempre as suas

produções de um carácter amador e experimental.

O manifesto, texto convencionalmente político, foi por estes artistas

italianos utilizado para dar a conhecer, de forma original e agressiva, o programa do

movimento que não se esgotava no meio artístico, como já foi referido, havendo,

também, manifestos de cariz político, como é o caso do Manifesto do Partido

Político Futurista (1915), que mostrava ligações ao fascismo. Contudo, os

manifestos mais relevantes no que toca à actividade teatral dos futuristas são o

Manifesto dos Dramaturgos Futuristas, de 1911, e autoria de Marinetti, Teatro de

Variedade, de 1913, também de Marinetti, Manifesto do Teatro Futurista Sintético,

de 1915, produzido por Marinetti em conjunto com Emilio Settimelli e Bruno Corra.

O teatro dominante de então, apelidado de passadista por Marinetti e seus

companheiros, era um mero duplicado do quotidiano, feito de realismo psicológico

e linearidade narrativa; espelho da sociedade burguesa e produto de uma indústria

de entretenimento movida muito mais pelo lucro do que pela expressão artística, ao

qual o público acorria, num desfile de ostentação e vaidade, pela dimensão social do

evento. Tal como acontecera com o programa estético de Alfred Jarry — e de todos

os movimentos de vanguarda —, o teatro futurista formou-se por oposição a este

teatro de digestão. Abertamente influenciado pelo teatro de variedades, Marinetti

considerava-o o mais adequado à sensibilidade moderna, não apenas pelas formas e

conteúdos do espetáculo, ou pela maneira como o espectador era chamado a

colaborar, mas também por ser um produto da modernidade eletrificante no qual

                                                                                                               18 Cf. Cesare Molinari, História do Teatro, Lisboa, Edições 70, 2010, 365.  

  31  

Marinetti não reconhecia "tradição alguma, nem mestres, nem dogmas"

(BERNARDINI 1980: 119). Contudo, é possível reconhecer no teatro de variedades

a influência do passado, embora extremamente variada e composta principalmente

por formas menores de entretenimento19.

Radicalmente distinto do teatro passadista, a tónica do teatro de variedades

encontra-se no espetáculo, facto bastante presente na ausência de enredo lógico,

mas também no espaço dado ao improviso do ator no contacto com o público. Com

base na Fisicofolia de que fala Marinetti20, o teatro de variedades compõe-se através

de uma série de números diferentes, — desde acrobacias, a números musicais,

passando pelo clowning e dança, etc. —, onde reinavam a energia e o movimento,

postos em cena de forma bastante dinâmica e breve, mas também absurda. O teatro

de variedades tinha como objetivo primeiro a distração da plateia através da

ativação de quase todos os seus sentidos, trabalhando incessantemente na inovação

e originalidade dos seus actos, de forma a conseguir produzir o espanto no

auditório. Esta interação entre o palco e a plateia, que proporcionava o desenrolar da

ação não apenas no palco, mas por todo o auditório, agradava bastante os Futuristas,

já que pretendiam banir das salas de espetáculo o mero voyeur. A utilização do

cinematógrafo em alguns dos números do teatro de variedades também apelava

bastante aos Futuristas, cuja sensibilidade vibrava com qualquer produto do

progresso técnico e reconhecia nessa utilização mais uma forma para cobrir o teatro

                                                                                                               19 "Marinetti admired variety theatre for one reason above all others: because it 'is lucky in having no tradition,

no masters, no dogma'. In fact variety theatre did have its traditions and its masters, but it was precisely its

variety — its mixture of film and acrobatics, song and dance, clowning and 'the whole gamit of stupidity,

imbecility, doltishness, and absurdity, insensibly pushing the intelligence to the very border of madness' — that

made it an ideal model for Futurist performances." RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the

Present, London, Thames&Hudson, 2010, 17. 20 Cf. Aurora Fornoni Bernardini, O Futurismo Italiano. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980, 123.

 

  32  

do muito desejado dinamismo, velocidade e simultaneidade contributivas para a

desconstrução de formas teatrais tradicionais.

Este espetáculo anti-académico, primitivo e ingénuo (GOLDBERG 2010: 17),

onde não havia espaço para personagens bem delineadas, criava aquilo que

Marinetti apelidou de "maravilhoso Futurista", composto por uma série de recursos

utilizados no teatro de variedades. Entre eles Marinetti destaca:

1) caricaturas possantes; 2) abismos do ridículo; 3) ironias (…); 4)

símbolos envolventes e definitivos; 5) cascatas de hilaridade irrefreável; 6)

analogias profundas entre a humanidade, o mundo animal, o mundo vegetal e

o mundo mecânico; 7) esforços de cinismo revelador; 8) enredos de frases

espirituosas, de trocadilhos e de adivinhações que servem para arejar

agradavelmente a inteligência; 9) toda a gama de riso e de sorriso para

distender os nervos; 10) toda a gama de (…) imbecilidades, parvoíces e

absurdos que impelem insensivelmente a inteligência até à beira da loucura;

11) todas as novas significações da luz, do som, do ruído e da palavra, com

seus prolongamentos inexplicáveis na parte mais inexplorada de nossa

sensibilidade; 12) um acúmulo de acontecimentos tramitados às pressas e de

personagens empurradas da direita para a esquerda em dois minutos (...); 13)

pantomimas satíricas instrutivas (…). (BERNARDINI 1980: 120)

Também no Manifesto do Teatro Futurista Sintético se encontra o elogio da

guerra e é reiterada a importância do teatro como veículo de propagação das ideias

futuristas devido à extensão do seu alcance junto da população italiana, no entanto, o

tópico principal do manifesto é a importância da síntese no teatro. Em oposição ao

demorado teatro passadista, os Futuristas queriam apresentar um espetáculo assente

na brevidade, de tal modo que propunham que a construção dos mesmos tivesse por

  33  

base "átimos": atos tão curtos que durariam apenas alguns segundos. Os Futuristas

pretendiam, assim, encenar em poucos minutos e com economia de linguagem e

movimentos, toda uma série de situações, ideias, sensações, factos e símbolos, sem

qualquer tipo de linearidade narrativa ou lógica de enredo, que formariam um

espetáculo altamente dinâmico e breve. Com estes átimos os Futuristas pretendiam

construir um espetáculo baseado, como escreve Bernardini, numa "(…) síntese de

contusão, de choque, cujo propósito era não embalar o espectador mas arrancá-lo,

com uma risada ou um safanão, de seu engodo, para pô-lo defronte da redução ao

absurdo da forma habitual de edificação ou de consolo veiculada pelo teatro"

(BERNARDINI 1980: 23). O dinamismo, brevidade e simultaneidade, que

constantemente reclamavam para o teatro, tinha como finalidade não apenas

desconstruir a convenção, mas também fazer frente à crise que se fazia sentir no

teatro desde o aparecimento do cinematógrafo, cujo carácter de novidade e

linguagem mais próxima da sensibilidade moderna o distanciava do velho teatro

passadista.

Referem, no mesmo texto, a apologia de um teatro sem técnica, ou seja, sem

o peso da tradição dramática que, na ótica futurista, se havia transformado, desde os

Gregos, num dogma empedernido e castrador da liberdade criativa do artista. Esta

renúncia à tradição está bem presente na negação de princípios aristotélicos, como a

verosimilhança, os caracteres bem construídos, a identificação do público com os

personagens, o desenvolvimento lógico de um enredo coerente21, mas também no

reconhecimento da distância da convenção em relação à realidade moderna. Este

teatro "atécnico" pretendia dar um espaço considerável ao improviso no contacto

com o espectador, uma vez que pretendia conseguir um maior envolvimento do

público no espetáculo — de modo a resgatá-lo da sua qualidade de voyeur — bem                                                                                                                21 Cf. ibidem, 180-181.

  34  

como revolucionar o estatuto do ator ao destruir a ribalta, submetendo-o, assim, ao

projeto do encenador ou do autor.

No Manifesto do Teatro Futurista Sintético é abordada, também, uma série

de formas próprias do teatro Futurista que deveriam substituir os antigos géneros

teatrais:

(…) Abolir a farsa, o vaudeville, a pochade, a comédia, o drama e

a tragédia, para criar no seu lugar, as numerosas formas do teatro

futurista, como: as saídas em liberdade, a simultaneidade, a

compenetração, o poemeto animado, a sensação encenada, a hilaridade

dialogada, a sensação encenada, a hilaridade dialogada, o ato negativo, a

saída em eco, a discussão extralógica, a deformação sintética, a aberração

científica, a coincidência, a vitrina... (BERNARDINI 1980: 23)

Estas formas descritas num estilo irreverente, próprio do manifesto que

pretende mais a agitação que o esclarecimento pleno, nem sempre tornam clara a

realidade prática do programa futurista, mas algumas delas tiveram expressão nas

experiências práticas do movimento podendo ser reconhecidas nos relatos das

serate22. Materializando a verdadeira inovação prática do movimento Futurista —

onde as fronteiras do teatro e performance se esbateram — as serate eram

apresentações públicas das principais ideias do programa futurista transmitidas

através das formas que haviam sido desenvolvidas por estes artistas. Estes

acontecimentos, que tinham lugar num edifício teatral convencional, consistiam

numa mistura de leitura de manifestos com a apresentação das criações artísticas —

                                                                                                               22 As of 1910, the term 'Futurist serata' meant: presenting the key ideas of the Futurist movement in a large

theatre and offering the audience examples of how these principles could be translated into performative

language." Günter Berghaus, Avant-Garde Performance: Live Events and Electronic Technologies, New York,

Palgrave Macmillan, 2005, 31.

  35  

poesia, pintura, teatro e música — que emanaram dos princípios enunciados nesses

mesmos manifestos, constituindo, assim, não apenas um meio de propagação da

mensagem, mas também uma forma demonstrativa dos princípios práticos do

movimento. Em suma, as serate eram soirées literárias transformadas em veículo de

agressão da platéia, bem como dos valores burgueses e da convencionalidade

artística.

Contudo, uma serata não se esgotava no domínio artístico, já que o seu cariz

político era fortemente marcado. Os Futuristas prentendiam, através delas, atacar

todas as esferas da vida pública, combatendo em especial o culto do passado e as

forças sociais que o sustinham (BERGHAUS 2005:33), fazendo propaganda pelo

progresso tecnológico e pela ideologia militarista e nacionalista que defendiam. Foi

nestas soirées tumultuosas que os Futuristas forjaram um novo tipo de declamação,

uma que se caracterizava, principalmente, pela ilustração visual e gestual de textos

poéticos e teóricos, levada a cabo por declamadores preparados para enfrentar a ira

da platéia que, muitas vezes, respondia à provocação dos Futuristas de forma

agressiva, atirando, para o palco, não apenas palavras desagradáveis, mas também

projéteis de todo o tipo23.

A violenta rutura da ilusão teatral, a surpresa, a provocação da plateia e o

apelo à participação do público são recursos que marcavam presença já nas primeiras

serate e constituem as características principais dos espetáculos futuristas, cujos

objetivos primeiros consistiam na libertação do teatro do mercantilismo

estrangulador que se fazia sentir no meio dominante da altura, bem como do teatro

da convenção com séculos de existência e do jugo da moral burguesa. Para tal

                                                                                                               23 Cf. ibidem, 33.

 

  36  

recorriam a uma série de elementos e inovações, começando por modificar o estatuto

do ator, do autor e do público.

Relativamente ao ator, os Futuristas pretendiam desfazer o preconceito da

ribalta e a sede de aplausos, de modo a que o seu trabalho se submetesse à

autoridade do autor, em vez de se reger pelas opções que o destacariam, muitas

vezes em detrimento do espetáculo (BERNARDINI 1980: 55). Esta alteração na

conduta do ator implica, também, uma mudança no estatuto do autor do espetáculo,

uma vez que lhe é dado maior controlo sobre o mesmo. Salienta-se, também, no que

toca ao autor, a promoção, pelos Futuristas, do

(…) desprezo pelo público, especialmente o desprezo pelo público

das primeiras apresentações, cuja psicologia podemos assim sintetizar:

rivalidade de chapéus e de toilettes femininas, - vaidade pelo lugar que

custou caro, que se transforma em orgulho intelectual, - palcos e plateia

ocupados por homens maduros e ricos, de cérebro naturalmente desdenhoso

e com digestão dificílima, que torna impossível qualquer esforço mental

(BERNARDINI 1980: 53).

Também recomendam, tanto ao autor como ao ator, que experienciem "a

volúpia de serem apupados"24, que, aliada ao já referido desprezo pelo público, se

traduz na libertação de ambos das expectativas deste último, para que possam criar

na absoluta independência e originalidade. No que toca ao público, Marinetti e seus

companheiros de movimento pretendiam que renunciasse ao seu convencional

estatuto de simples voyeur que procurava o teatro como lugar de ostentação e

digestão. No seu lugar, os Futuristas pretendiam um espectador resgatado da

realidade do quotidiano, ativo, pensante, colaborante e aberto a novas experiências.                                                                                                                24  Cf.  Aurora  Fornoni  Bernardini,  O  Futurismo  Italiano.  São  Paulo,  Editora  Perspectiva,  1980,  55.  

  37  

O reportório — radicalmente distinto do do teatro passadista — deveria

"reflectir alguma parte do sonho futurista", produto da vida moderna "exasperada

pelas velocidades terrestres, marítimas e aéreas, e dominada pelo vapor e pela

eletricidade". Deste modo, não deveria cair na habitual trama amorosa, nem na

"fotografia psicológica" ou reprodução da realidade quotidiana, muito menos

deveria basear-se em reproduções históricas (BERNARDINI 1980: 54). Deveria,

antes, servir o movimento com temas relacionados com a vida nos grandes centros

urbanos, com a realidade industrial e progresso tecnológico.

As formas do teatro Futurista construíram-se, principalmente, por oposição à

convenção aristotélica. A verosimilhança, a identificação do espectador com as

personagens, o enredo construído de forma lógica e progressiva, com a extensão

suficiente para se observarem os caracteres em ação apresentavam-se como aspetos a

combater. Os Futuristas queriam um teatro breve, repleto de dinamismo e variedade,

com espaço para o absurdo e recursos comuns a outras artes — como a utilização da

montagem cinematográfica ou clowning — bem como para a introdução da máquina

no espaço teatral. Também as personagens eram forjadas por oposição às do teatro

burguês, uma vez que não detinham profundidade psicológica, embora se revelassem

totalmente na ação, podendo "igualmente esgotar-se em simples gestos de valor

absoluto, ou não existirem de todo, permanecendo a ação entregue aos objetos"

(MOLINARI 2010: 357).

Relativamente à cenografia é importante citar o manifesto Cenografia

Futurista, de 1915, escrito por Enrico Prampolini, um dos principais cenógrafos do

movimento, que apresentou como a grande inovação Futurista no campo da

cenografia o distanciamento da bidimensionalidade constituída por panos de fundo

pintados, frequentemente de maneira realista. Prampolini pretendia enfatizar em

pleno o espaço cúbico do edifício teatral, explorando as potencialidades de um

  38  

cenário mecanizado e móvel, afastado da estética realista e complementado pelo

trabalho de luz, que o cobriria de uma diversidade cromática criadora de ambientes

adequados a cada cena. Como tal, Prampolini, no manifesto, declara:

Let's renovate the stage. The absolutely new character that our

innovation will give the theatre is the abolition of the painted stage. The

stage will no longer be a coloured backdrop but a colourless

electromechanical architecture, powerfully vitalised by chromatic

emanations from a luminous source, produced by electric reflectors with

multicoloured pares of glass, arranged, coordinated analogically with the

psyche of each scenic action (DRAIN 2003: 23).

Esta conceção dinâmica da cenografia levaria, segundo Prampolini, a uma

conceção de teatro pós-orgânico — de influência craiguiana — em que o ator seria

um elemento obsoleto, sendo substituído por um espaço completamente tecnológico

onde a luz seria, como já foi sugerido, um elemento crucial25. No entanto, este

projeto cenográfico nunca foi realmente aplicado pelos Futuristas — os

Construtivistas russos foram quem mais se aproximou da teoria de Prampolini —

uma vez que, frequentemente, apresentavam uma cenografia bidimensional baseada

na iconografia Cubista, onde o ator se movimentava como uma figura mecanizada

pelo trabalho do corpo estilizado e desfigurada pelos figurinos que o integravam no

projeto de encenação, impedindo-o, assim, de ser o elemento central.

Após uma breve análise do programa Futurista é clara a tónica posta no

espetáculo, em detrimento do texto, facto reiterado pela utilização do verso livre e

daquilo a que Marinetti chamou parole in libertà. Este recurso literário promovia o

                                                                                                               25 Cf. Matthew Causey, Theatre and Performance in Digital Culture: From Simulation to Embeddedness,

London, Routledge, 2006, 86.

  39  

desrespeito gramatical e a utilização das palavras mais pela sua dimensão sonora e

gráfica do que pela produção de sentido, constituindo, assim, um meio de

desconstrução da linguagem. Note-se, também, o total desrespeito pelos textos

clássicos, que os Futuristas pretendiam encenar em poucos minutos, de forma

condensada ou servindo como base para a criação de novos textos construídos, por

meio da montagem, a partir de retalhos de obras canónicas, profanando a sacralidade

de textos aclamados, algo que então constituía fonte de escândalo, mas que na

atualidade é feito de forma relativamente pacífica. No Futurismo, o texto perde o seu

estatuto central, opção reiterada, também, pela apologia da originalidade absoluta e

improviso, já que os Futuristas admitiam construir os seus espetáculos no teatro.

Os Futuristas manifestaram, tal como muitos homens do teatro de vanguarda,

— como Piscator ou Meyerhold — a necessidade de um espaço próprio, "o grande

edifício metálico revestido por todas as complicações eletromecânicas"

(BERNARDINI 1980: 183), mais apropriado ao teatro que teorizavam. Contudo, como

tantos outros projetos que popularizaram nos seus escritos teóricos, os Futuristas não

chegaram a materializar este espaço por que ansiavam.

Em suma, o programa Futurista pretendia um teatro síntese: breve, ligeiro,

dinâmico, constituído por uma diversidade de formas, tanto originais como

emprestadas, — principalmente do teatro de variedades —, onde haveria lugar para

a participação do espectador, para a máquina e para a luminosidade moderna em

concordância com a sensibilidade das massas operárias. No entanto, apesar de se

situar em estreita relação com o seu tempo, a decadência do movimento Futurista

foi inevitável e fez-se sentir de forma mais marcada a partir de meados da década de

20, embora a Primeira Grande Guerra tivesse já afetado significativamente este

grupo de artistas — que defendia a guerra como um processo de seleção natural —

ao roubar alguns dos seus mais promissores membros. Os sobreviventes acabaram

  40  

por adotar estilos mais tradicionais e Marinetti aliou-se às forças fascistas italianas.

O impacto deste movimento — o primeiro movimento de vanguarda organizado —

no panorama artístico europeu do início do século XX, é impossível de negar, uma

vez que deixou como legado muitas das práticas utilizadas pelos movimentos que o

seguiram, tendo tido fortes repercussões que se fazem sentir ainda hoje. Contudo,

tiveram um impacto mais imediato, sendo inegável alguns pontos de contacto com

um outro Futurismo, que floresceu mais a oriente: o Russo.

IV. O Caso Russo

1) Futurismo Russo

Foi no seguimento da Revolução de 1905 — um movimento anti-governamental

desorganizado que esteve na base das mudanças sociais que só se efetivariam em

1917 — que a Rússia experienciou uma maior abertura do país, bem como uma

vitalidade inovadora do panorama artístico russo que levou à importante

transformação que fez de Moscovo um dos centros artísticos mais fortes do

Ocidente e parte integrante do circuito de intercâmbio cultural. Deste esforço de

renovação surgiu o movimento Futurista Russo — encabeçado pela expressão

pictórica seguida de perto pela expressão literária26 — que se dividiu em duas

formulações: o egofuturismo e o cubofuturismo.

O egofuturismo, fundado por Igor Severianin, em 1911, apresentava-se

como radicalmente diferente do Futurismo Italiano, mas também do seu

compatriota, o cubofuturismo. As criações de Severianin cobriam-se de formas

                                                                                                               26 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,

34.

 

  41  

decadentes e banais presas no século XIX (RIPELLINO 2002: 13). O cubofuturismo

— mais próximo do Futurismo Italiano, ainda que significativamente diferente —

fez-se sentir a partir de 1910, mas efetivou-se apenas em 1912 com o manifesto

Uma Bofetada no Gosto Público onde se apresentou como um acérrimo defensor da

completa renovação da arte russa; renovação, essa, que deveria ter repercussões a

nível social e político, ajudando ao combate, em todas as frentes possíveis, contra o

marasmo burguês.

Foi através do já referido manifesto que Mayakovsky, Khlebnikov, Burlyuk

e Kruchenykh apresentaram o programa básico do cubofuturismo. Nele

denunciavam um passado castrador da criatividade artística e pouco apropriado à

sensibilidade moderna. Estes jovens artistas pretendiam destruir as formas

convencionais de expressão artística e abrir caminho para a construção de novas

formas que levariam à renovação do panorama artístico. Para levarem a cabo esta

empresa renovadora começaram por atacar a linguagem, desconstruindo a

convenção e recusando formas antigas, rígidas e castradoras. É deste esforço de

desconstrução — semelhante à parole in libertà de Marinetti — que surge o ZAUM,

uma linguagem transmental cunhada por Kruchenyhk, baseada na preferência pela

sonoridade e grafia das palavras em detrimento da produção de sentido das mesmas.

Aplicada principalmente na produção poética, a sua presença na expressão

dramática não se fazia sentir de forma tão frequente, já que os Futuristas acabavam

por dar preferência à inteligibilidade do espetáculo. Contudo, um dos registos da sua

aplicação no palco encontra-se na ópera futurista de Kruchenyhk Vitória Sobre o

Sol, de 1913, fator que pode ter contribuído para a receção polémica da produção.

É impossível negar alguma influência do movimento de Marinetti na génese

do cubofuturismo, contudo é importante salientar que apesar da partilha de algumas

preferências — apologia do progresso técnico, colaboração entre artes e mistura de

  42  

expressões artísticas no teatro, preferência por formas menores como o circo e o

music-hall, recusa da convenção artística e valores sociais instituídos aliada a um

esforço de renovação dos mesmos, anti-realismo, etc. — estes movimentos diferiam

radicalmente em vários outros aspetos. As opõçes políticas, a visão da relação do

homem com a máquina, a posição que assumiam perante o fenómeno da guerra e

herança cultural constituíam os grandes pontos de divergência, uma vez que os

Futuristas russos — homens de esquerda e pacifistas — olhavam para um passado

mais distante em busca de inspiração para o seu trabalho hercúleo, não se limitando,

como os Italianos, a uma total e veemente recusa de tudo o que fora antes criado

pela humanidade.

A já referida ópera de Kruchenyh, Vitória Sobre o Sol, constituiu, em

parelha com a tragédia Vladimir Mayakovsky, de Mayakovsky, as primeiras e mais

importantes concretizações do programa teatral do movimento russo, apresentadas,

em São Petersburgo, entre 2 e 4 de Dezembro de 1913. Com libretto de

Kruchenykh, música de Matyushin e figurinos e cenografia de Malevich, Vitória

Sobre o Sol, uma ópera profundamente anti-realista, produto do desejo de

mecanização da sociedade e reveladora de uma forte antipatia pela ordem social

burguesa, surge ainda hoje na memória coletiva mais pela contribuição inovadora de

Malevich do que pelo trabalho dos seus companheiros. Foi nesta produção — alvo

de fortes críticas pelo público — que Malevich deu início à exploração das formas

geométricas puras, características do seu suprematismo futuro, apresentando um

cenário completamente abstrato e de influência cubista, como descrito por

Rudnitsky:

Malevich painted the backdrops utilizing pure geometric forms:

his renowned 'black square' appeared for the first time in one of the

  43  

sketches for this production alongside straight and curved lines, musical

notes, signs resembling question marks. There is no concern for top or

bottom, no allusion whatsoever to any particular place of action: the very

concept of 'place' in his scenery is disregarded. It simply represents a kind

of sombrely abstract background for the actor's performance

(RUDNITSKY 2000: 13).

Este cenário, tal como os figurinos futuristas de dimensões exageradas —

construídos a partir de cartão, mas realçados pelo trabalho de luz — cunharam o

estilo da produção, pois condicionavam os movimentos dos artistas levando a uma

movimentação próxima da marioneta27. As personagens apresentavam-se como

híbridos militarizados — meio máquinas, meio humanas — de carácter grotesco. O

absurdo, qualidade transversal a todos os elementos da produção, encontrava-se

com maior expressão no libretto, caracterizado, por Rudnitsky, não apenas como

pobre e primitivo, mas também desprovido de interesse e pouco refinado, tanto no

sentido como na linguagem, coberto de um energético e ruidoso debitar de discurso

cujo principal objetivo era camuflar o vazio textual (RUDNITSKY 2000: 12).

Também a composição musical, levada a cabo por Matyushin, não se destacava pela

positiva, continuando o registo desinteressante do texto de Kruchenykh.

Já a produção de Mayakovsky teve um sucesso superior, coincidente com a

qualidade do espetáculo, apresentando de forma igualmente anti-realista um texto

muito mais polido que o libretto de Kruchekykh. Esta tragédia, mesclada com

comédia, tinha por base temas muito semelhantes a Vitória Sobre o Sol e

apresentava a figura do poeta Vladimir Mayakovsky como personagem principal,

                                                                                                               27 " (…) in Victory Over the Sun the actors wore papier-mâché heads half as tall again as their bodies, and

performed on a narrow strip of stage using marionette gestures to accompany their 'non-sense' words (…)."

Camilla Gray, The Russian Experiment in Art: 1863-1922, London, Thames & Hudson, 2007, 187.

  44  

sendo as restantes aparentes produções da sua imaginação, que gravitavam à sua

volta em enormes figurinos fantásticos. Estes figurinos, feitos de cartão de um lado

apenas, obrigava os atores a movimentarem-se sempre de lado, no proscénio,

virados para o público, de maneira a ocultar a unilateralidade dos figurinos,

constrastando, assim, com a figura vibrante do poeta que se representava a si

mesmo e se movia livremente sobre o palco, recitando e abordando diretamente o

público, transformando a produção num monodrama assente num grande monólogo

quebrado apenas por modelações no ritmo e entoação do discurso, recurso que

constituiu um dos grandes fatores de inovação da mesma, quebrando barreiras entre

lírica e discurso dramático.

Juntamente com os figurinos, Filonov concebeu uma série de painéis,

iluminados apenas em alguns momentos do espetáculo — prólogo e epílogo —, que

haviam sido pintados com cores vibrantes num estilo pueril e posicionados junto de

um pano de fundo de tecido cru, que serviram de cenário a esta produção mais

acessível à sensibilidade do público do que havia sido a criação de Kruchenykh e

Matyushin.

O teatro futurista russo forjou, assim, espetáculos com intuito renovador,

baseados em recursos que acabaram por ser incluídos, logo após a Revolução de

1917, nas produções dos teatros de vanguarda e no teatro de agitação e propaganda.

Contudo, com o passar dos anos, muitas das características destas primeiras

manifestações futuristas foram lentamente incorporadas nos teatros mais

convencionais28. Entre essas características salientam-se algumas das principais que

marcaram presença nas produções anteriormente referidas, como os temas

apropriados à sensibilidade moderna — centrados no progresso tecnológico, na

                                                                                                               28 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,

121.

 

  45  

industrialização e vida urbana —, o anti-realismo e anti-ilusionismo — recorde-se a

interpelação direta do público por Mayakovsky —, bem como a crítica aos valores e

convenções da sociedade burguesa. De notar é, também, a liberdade de criação

linguística, a recusa do cenário convencional e integração de inovações pictóricas

nos mesmos, o trabalho de ator estilizado — contrário à representação naturalista e

frequentemente inspirado pela marioneta —, o uso de figurinos exagerados e não-

naturalistas, o recurso à máscara, o trabalho de luz como forma de dinamização do

cenário que se apresentava muitas vezes como abstrato, não representando nenhum

lugar particular. A colaboração entre artes e a recusa do convencional enredo

aristotélico são também aspetos caracterizadores destas produções.

A atividade dos Futuristas Russos não se esgotava nos seus espetáculos, uma

vez que tinham uma forte dimensão literária e pictórica, mas também de ação direta.

No entanto, o esforço do movimento não teve, nos seus primeiros anos, a

repercussão esperada pelos seus membros que promoviam, também, soirées

literárias — recorrendo muitas vezes à provocação direta do público — onde

apresentavam as suas produções e recitavam a sua poesia em pequenos cabarés.

Frequentemente incompreendidos, eram marginalizados e olhados com

desconfiança e pouca credibilidade, principalmente pelas suas ações de rua através

das quais tentavam intervir, de forma bastante teatral, na realidade quotidiana para a

qual queriam desesperadamente contribuir. Os Futuristas pretendiam que as suas

criações tivessem repercussões sociais práticas, transformadoras da sociedade e dos

valores, mas essa oportunidade só chegou com a Revolução de Outubro, em 1917,

após a qual, durante os primeiros anos do regime soviético, o futurismo teve a sua

grande oportunidade. Apoiantes entusiastas da nova ordem social que prometia uma

Rússia industrializada e livre dos valores burgueses, os Futuristas obtiveram com a

  46  

mudança política a liberdade de experimentação e criatividade artística por que

tanto ansiavam.

2) Outubro Teatral

A Revolução Bolchevique criou um ambiente de cisão com o passado e constituiu

terreno fértil para a experimentação artística, facto bastante apelativo para a

vanguarda teatral russa. Vsevolod Meyerhold foi um dos primeiros artistas a aderir

esperançosamente e de imediato ao novo regime, enquanto muitos outros se

mantinham numa expectativa desconfiada em relação ao seu sucesso. Para celebrar

o primeiro aniversário da revolução Meyerhold encenou Mistério-Bufo, de

Mayakovsky, que continha em si muitos dos recursos explorados nos estúdios pelos

quais passou. Iniciando a sua carreira como ator no TAM — Teatro de Arte de

Moscovo — em 1898, Meyerhold estreou-se como encenador, depois de abandonar

o palco do TAM, em 1902, com a companhia que fundou, a New Drama Touring

Company. Esta companhia itinerante apresentou, entre 1902 e 1906, espetáculos

com uma forte influência da estética de Stanislavsky, mentor inicial de Meyerhold e

do qual este último se afastou dando origem à dualidade dominante no panorama

teatral russo do século xx, em que o realismo psicológico de Stanislavsky se

encontrava em oposição direta ao teatro da convenção consciente, onde nem ator

nem espectador se perdiam na ilusão (HUBERT 2008a: 264). A estética de

Meyerhold evoluiu gradualmente — passando pelo realismo e simbolismo até

desenvolver o tipo de espetáculo pelo qual é hoje reconhecido — na busca da

"reteatralização" do teatro, estabelecendo as suas bases na realidade física e na

convenção consciente. Este afastamento começou por ser forjado, de forma um

pouco irónica, no ano de 1905, após o convite de Stanislavsky a Meyerhold para

  47  

que este tomasse as rédeas do Teatro-Estúdio do TAM. Neste Estúdio, em que

Stanislavsky pretendia ver uma extensão do TAM, embora com espaço para

experimentação, Meyerhold construiu uma entidade independente (BRAUN 1998:

41) onde deu início ao desenvolvimento de muitas das inovações teatrais que o

acompanhariam até ao fim da sua carreira e que influenciariam as gerações

vindouras de fazedores de teatro, mas que, devido à ausência de apresentações

públicas das produções do Teatro Estúdio, só mais tarde viriam a ser do

conhecimento geral.

Os objetivos deste Teatro-Estúdio foram legitimidados coletivamente desde

os primeiros passos do projeto e anunciados da seguinte forma:

The first meeting of the members of the Theatre-Studio took place on

5 may, and at this very first meeting the following points were made: 1.

Contemporary forms of dramatic art have long since outlived their

usefulness; 2. The modern spectator demands fresh techniques; 3. The Art

Theatre has achieved virtuosity in lifelike naturalism and true simplicity of

performance, but plays have appeared which require new methods of

production and performance; 4. The Theatre-Studio should strive for the

renovation of dramatic art by means of new forms and new methods of

scenic presentation (BRAUN 1998: 41).

Os seus membros — poetas, atores, músicos, encenadores e cenógrafos —

anunciavam, deste modo, que as formas dramáticas do teatro de então estavam

ultrapassadas e que o espectador moderno necessitava de novas técnicas, tendo o

Estúdio a missão da procura dessas novas formas para a renovação da arte

dramática. Neste laboratório experimental Meyerhold encenou La Mort de

Tintagiles, de Maeterlinck, que constituiu o ponto de partida para o

  48  

desenvolvimento da estilização do teatro, transformação que levaria à criação de um

teatro onde a fronteira entre géneros fosse esbatida, unificando-o, tornando-o

universal e festivo e, consequentemente, mais próximo do drama da Antiguidade

Clássica. Para Meyerhold o conceito de estilização29 — profundamente anti-realista

— estava intimamente ligado à ideia de convenção e à quebra da ilusão no palco,

pois tanto atores como espectadores deveriam estar cientes da artificialidade do

evento. Com a estilização não se pretende uma reprodução exata, mas antes a

aplicação de todos os recursos necessários para revelar a essência e as

características principais daquilo que se pretendia encenar. O espetáculo torna-se,

deste modo, mais aberto e simplificado, com repercussões não apenas a nível

cenográfico, mas também ao nível do trabalho do ator, do encenador e do estatuto

do espectador.

Nesta conceção de teatro, o ator torna-se o cerne do espetáculo30, libertando-

se não apenas do cenário complexo das produções realistas, que seriam substituídos

por cenários meramente alusivos, mas também do encenador tipo Meiningen, uma

vez que o encenador do teatro estilizado é mais um guia de trabalho e não um

encenador rígido e controlador31. Relativamente ao espectador a mudança ocorre ao

nível da participação do mesmo no espetáculo — mais ativa — uma vez que o seu

estatuto é elevado ao de co-criador, renegando, assim, o estatuto de simples voyeur.

Esta alteração do papel do espectador foi exponenciada pelas mudanças a nível

espacial. Os esforços de transformação do espaço teatral por Meyerhold levaram à

                                                                                                               29 "With the word 'stylization' I do not imply the exact reproduction of the style of a certain period or of a certain

phenomenon, such as a photographer might achieve. In my opinion the concept of 'stylization' is indivisibly tied

up with the idea of convention, generalization and symbol. To 'stylize' a given period or phenomenon means to

employ every possible means of expression in order to reveal the inner synthesis of that period or phenomenon,

to bring out those hidden features which are to be found deeply embedded in style of any work of art." Edward

Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 43. 30 Cf. ibidem, 62 31 Cf. ibidem  

  49  

desconstrução do palco convencional — à Italiana — e a uma maior aproximação

entre palco e platéia, maximizando a participação do público. Outro aspeto que

contribui para esta alteração prende-se com a cenografia alusiva que convida o

espectador a desenvolver o uso da imaginação para completar o espetáculo de forma

subjetiva. Assim, a estilização do teatro não leva à produção de espetáculos

fechados, pois estes apenas encontram a sua completude no espectador32.

Esta transformação total traduziu-se na teoria do "teatro da linha reta" que

Meyerhold apresentou como oposição ao "teatro triângulo", resumindo, este último,

a composição das produções mais convencionais.

Teatro da Linha Reta Teatro Triângulo

Autor Encenador Ator Espectador

No teatro da linha reta33 — baseado numa partilha coletiva do trabalho — o

encenador assimila a essência da obra de um autor, transmitindo-a depois ao ator

que, com base nessas linhas gerais que atuam como um guia, forja o seu trabalho

baseado no improviso, fazendo uso dos recursos que achar necessários para que a

essência da obra seja transmitida com sucesso. É através deste trabalho que a

mistura da essência do autor com a visão do encenador chega, de forma incompleta,

ao espectador que deverá, por meio da imaginação e capacidade interpretativa

individual, finalizá-lo, tornando-se, assim, no quarto criador. Deste modo, o

espetáculo nasce do encontro de duas sensibilidades — a do arte do ator e a                                                                                                                32 Cf. ibidem, 63 33Cf. Edward Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 51-52  

Ator Autor Espectador

Encenador

  50  

imaginação do espectador — exercidas em liberdade (HUBERT 2008a: 267). Este

papel de co-criador do espectáculo não tem lugar no teatro triângulo que, como se

vê na fig. 2, lhe reserva um lugar exterior de mero observador passivo de uma

produção que lhe é apresentada de forma fixa e completa. Este tipo de teatro é

caracterizado por um esquema triangular34 em que o encenador é o único verdadeiro

criador do espetáculo, constituindo, assim, um sistema mais castrador, em que o

encenador, a partir da obra do autor, concebe uma mise-en-scène detalhada,

elaborada ao pormenor, que o ator deve seguir religiosamente.

Ainda no Teatro-Estúdio, Meyerhold desenvolveu, também, estudos para

uma profunda transformação no método de representação. Não só libertou o ator da

ditadura da visão do encenador omnipotente e da complexidade de um cenário que

lhe influenciava os movimentos, como referido anteriormente, como também

orientou o trabalho do ator para uma plasticidade de movimentos afastada das

palavras, ou seja, para uma plasticidade estatuária que transmitiria um diálogo

interior. A plasticidade não era um elemento novo, mas a forma como Meyerhold a

abordou cobriu-se de novidade, uma vez que o encenador deveria traduzir em

movimentos e poses as relações e emoções humanas construídas pelo autor criando,

deste modo, imagens que permitiam ao espectador penetrar no diálogo interior do

espetáculo (BRAUN 1998: 56). O ator do velho teatro transmitiria esse diálogo

interior por meio de um exagero expressivo; já o novo ator, o de Meyerhold, não

necessitaria de uma expressão tão marcada, tão dramática, para transmitir a

interioridade de cada personagem, dando preferência a uma expressão assente mais

na dimensão física, caracterizada pela objetividade e economia de movimentos.

Meyerhold começa, então, a basear a sua teoria do ator no físico — do exterior para

                                                                                                               34Cf. ibidem, 51

   

  51  

o interior — contrariamente a Stanislavsky que defendia que se deveria cultivar

primeiro a dimensão psicológica da personagem, para que esta se traduzisse depois

na expressão física da mesma. Surgem, assim, os primeiros sintomas da famosa

biomecânica de Meyerhold que se apresentou em pleno na produção de 1922, Le

Cocu Magnifique, baseada numa farsa de Crommelynck.

Para além do "teatro da linha reta" e dos primeiros passos no

desenvolvimento da biomecânica, Meyerhold desenvolveu, no mesmo Teatro-

Estúdio, uma cenografia arquitectural, livre do jugo das duas dimensões do pano de

fundo pintado de forma realista, bem como da convencional distância entre palco e

platéia, experimentações em que podemos reconhecer o início do construtivismo

cénico pelo qual ficou célebre. Contudo, devido a divergências Meyerhold

abandonou o Teatro-Estúdio, mas não a vontade de inovação. Durante a década de

1910, Meyerhold continuou o trabalho de experimentação, abrindo o seu próprio

Estúdio, em 1913, sob o pseudónimo Dr. Dapertutto. Este novo estúdio contava com

um programa muito completo e diversificado que dava seguimento às descobertas

iniciadas no Teatro-Estúdio do TAM.

A estrutura do Estúdio, com uma divisão em grupos bastante ecléticos,

revela, da mesma forma que o programa, a importância que Meyerhold dava ao

conhecimento da tradição35. Ao contrário dos Futuristas Italianos, que pretendiam

um corte absoluto com o passado, Meyerhold afirmava que na empresa da

construção de um novo teatro era necessário debruçarem-se sobre momentos em

                                                                                                               35 "Those who have performed in accordance with the old conventions before joining the Studio are grouped to

form a separate 'Actor's Class'. (...) they are given the opportunity to practise on the vaudevilles of the 1830's

and 1840's and Spanish drama (...) in order to learn those techniques of the new theatre which are closely related

to the commedia dell'arte and the other truly theatrical ages of the theatre. (…) A Grotesque Group is

developing not only completely new acting devices but also its own plays, composed in the Studio (...). Shortly,

two further groups will be formed: a Classical Group and an Eighteenth-Century Group." Edward Braun,

Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 146

  52  

que o teatro tinha sido realmente teatral, ou seja, direcionado para o espetáculo e

não focado na dimensão literária do teatro, de maneira a selecionar as formas mais

eficazes e transportá-las, de forma adaptada36, para a realidade teatral de então, para

que fosse criado algo realmente novo e apropriado às necessidades daquela altura.

Após análise do programa do estúdio de Meyerhold37 é possível ter uma

noção do nível de exigência do mesmo, já que os atores deveriam dominar áreas

como a dança, a música, a esgrima, bem como apresentar uma excelente forma

física. Este programa era formado por vários domínios, entre eles técnicas de

movimento, técnicas de produção — equipamento de palco, cenografia, luz,

figurinos, acessórios, etc. —, Commedia dell'Arte, análise de peças russas do

séc.XIX, circo, convenções do teatro Hindu, Chinês e Japonês, bem como a análise

das teorias mais comuns de então. Grande destaque era dado à pantomima, ao

movimento e à Commedia, pela sua dimensão de improviso e musicalidade.

Neste Estúdio Meyerhold continuou a formar e aperfeiçoar o seu programa,

que concretizaria em pleno após a Revolução de 1917, cujo primeiro aniversário

comemorou, como já foi referido, com a primeira encenação de Mistério-Bufo, de

Mayakovsky, espetáculo que marcou o início de uma parceria frutífera entre estes

dois homens. Mistério-Bufo foi apresentado como a primeira peça soviética e

revelou-se terreno propício à aplicação dos desenvolvimentos teóricos que

Meyerhold levou a cabo nos seus estúdios. Meyerhold pensou encená-la num dos

teatros imperiais, mas o boicote dos profissionais ainda céticos em relação ao novo

regime obrigou-o a trabalhar com amadores num teatro de dimensões e recursos

mais reduzidos. Esta produção, que recebeu fortes críticas do público em geral e

contou apenas com três representações, foi durante alguns anos o único esforço real

                                                                                                               36 Cf. ibidem, 148 37 Cf. Edward Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 153

  53  

de produção de um espetáculo inteiramente novo e apropriado à nova realidade

russa.

A produção conjunta de Meyerhold e Mayakovsky revelou-se ruidosa, cheia

de energia e carregada de blasfémia, uma vez que consistia numa paródia adaptada à

realidade de então da famosa história de Noé. Mayakovsky havia escolhido o tema

pela sua familiaridade, num esforço de adaptação a um público novo, trazido aos

teatros pela Revolução, composto maioritariamente por operários e camponeses

com pouca ou nenhuma escolaridade. Não seria, portanto, um teatro muito

requintado e complexo, mas antes um teatro baseado em dualidades claras de modo

a serem apreendidas pelo grosso da platéia, de modo a passar eficazmente a

mensagem da produção que, no fundo, consistia em propaganda pelo novo regime.

Num cenário de dilúvio que representava a revolução mundial contam-se

apenas catorze pares de sobreviventes; sete dos quais formavam um grupo

apelidado de "puros" — representativos da velha ordem, composto por personagens

facilmente identificáveis porque caracterizadas com traços essenciais, entre as quais

se encontravam figuras políticas de destaque do mundo ocidental, figuras religiosas,

figuras comuns num sistema capitalista, etc... — e os restantes sete, os "impuros",

que representavam o proletariado internacional, compunham um grupo homogéneo

liderado por uma figura interpretada pelo próprio Mayakovsky, o Homem Simples

que os guiou através de um inferno repleto de demónios — representados num

estilo próximo do clown — até ao paraíso constituído por uma espécie de utopia

socialista mecanizada onde apenas as máquinas eram servas.

A já referida homogeneização do grupo dos "impuros" fora conseguida

através da uniformidade de figurinos — os prozodezhda, uma espécie de fato-

macaco de cor uniforme que permitia liberdade de movimentos — e de uma

estrutura próxima do coro grego, passando a ideia de um herói colectivo cuja forma

  54  

de representação era radicalmente diferente da dos "puros". Enquanto os "puros"

eram apresentados à maneira do teatro popular de feira, de forma satírica, por meio

de uma malévola caricatura teatral da classe opressora, os "impuros" apresentavam-

se como oradores políticos de discurso cuidado, tendo-lhes Mayakovsky reservado

o lirismo que cantava a paixão da Revolução, bem como a tarefa de construir um

novo mundo após o dilúvio.

A ideia de um uniforme idêntico para todas as personagens — os

prozodezhda — fora já explorado num dos estúdios de Meyerhold, tendo feito a sua

primeira aparição em público nesta produção. O seu intuito era o de despir o ator de

qualquer artificialidade em que se pudesse basear, deixando-lhe apenas a ténica da

sua arte como apoio. Este recurso foi parte integrante da estratégia de desconstrução

do teatro que caracterizou a estética de Meyerhold durante um período de tempo

significativo, em que ele o despiu de todos os artifícios de maneira a encontrar a

verdadeira linguagem teatral que acabou por reconhecer ser constituída,

principalmente, pelo trabalho do ator.

Os figurinos da produção — dos "puros" —, bem como o cenário, foram

concebidos por Malevich, que apresentou, contrariamente à prestação em Vitória

Sobre o Sol, um cenário ligeiramente representativo, uma vez que se podia

reconhecer em palco um hemisfério azul de grandes dimensões que representava o

Mundo juntamente com alguns cubos que representavam a arca e um pano de fundo

com motivos geométricos. Num formato alegórico tratado com a rigidez da

propaganda, a dualidade entre "puros" e "impuros" era, como já foi referido,

bastante simples e nela se reconhecia facilmente a movimentação das massas, o

conflito de classes e a luta de ideais. As influências desta produção provinham do

teatro popular de feira, pelo clowning e a acrobacia de circo, tendo como único

  55  

elemento Futurista a apologia de um futuro mecanizado e um certo desdém pelo

passado, incluindo as antigas formas artísticas.

Em Novembro de 1917 todos os teatros russos foram postos ao abrigo do

Estado sob a égide de Anatoly Lunacharsky, o Comissário do Povo para a Eduação

— diretor do Narkompros (Comissariado do Povo para a Educação), uma espécie de

Ministério da Educação e Cultura — que, em 1920, nomeou Meyerhold como

diretor do Departamento Teatral do Narkompros (TEO), encarregando-o de quase

toda a atividade teatral em todo o território soviético. Foi com este cargo que

Meyerhold reforçou a posição dos artistas revolucionários e proclamou o Outubro

Teatral38, um movimento de organização quase militar que anunciou uma enérgica

renovação total da atividade teatral na URSS embora, na prática, não tenha atingido

os seus objetivos radicais. Meyerhold pretendia levar a cabo uma redistribuição

profunda de recursos financeiros e mão-de-obra que visava atingir os antigos teatros

imperiais — que monopolizavam as ajudas estatais por serem considerados dignos

mandatários da tradição teatral russa —, agora denominados teatros académicos,

grupo que compreendia o Bolshoi, o Maly, o TAM e respetivos estúdios, o

Kamerny de Tairov, bem como o Teatro Infantil de Moscovo, que Meyerhold

considerava estagnados na velha ordem e, como tal, castradores da criação de um

novo teatro verdadeiramente soviético.

Contudo, Lunacharksy refreou o poder de Meyerhold, transferindo a

responsabilidade sobre os Teatros Académicos para o Narkompros, impedindo-o de

levar a cabo a remodelação por que tanto ansiava. Ainda assim, Meyerhold assistiu

                                                                                                               38 "The programme 'Theatrical October', advanced by the 'leftists' as its name suggests, presupposed that

theatrical 'revolution' should directly follow the social revolution, that the old art must be destroyed without

delay and a new art created on its ruins. Since the tsarist government had fallen, argued the 'leftists', then all the

old theatres, in their opinion thoroughly 'feudal' and 'bourgeois', should also fall. It seemed to the 'leftists' that

the worker-peasant government was wrong in protecting these theatres hostile to the proletariat." Konstantin

Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 59.

  56  

a uma sovietização gradual, a um ritmo próprio, dos Teatros Académicos e criou

uma rede de teatros — os Teatros R.S.F.S.R, Russian Socialist Federal Soviet

Republic — encabeçando ele próprio o R.S.F.S.R No.1, criado em 1920 e fechado

em junho de 1921, que ocupou o espaço do antigo Teatro Sohn. Foi este R.S.F.S.R

No.1, que Meyerhold pretendeu lançar sob a influência do já referido Outubro

Teatral, movimento que pretendia dar vida a um teatro alinhado com a Revolução e

com uma dimensão política e social mais marcada que as restantes produções que

então se desenvolviam. O programa deste teatro foi apresentado por Meyerhold

como sendo baseado numa abundância de luz, de boa disposição, de grandiosidade e

entusiasmo contagiante, bem como numa criatividade espontânea e na participação

do público no ato coletivo de criação do espetáculo (BRAUN 1998:170). O seu

reportório, que Meyerhold não receava basear em clássicos atualizados, estava

compreendido entre tragédia e farsa de natureza Revolucionárias39 e cada espetáculo

pretendia refletir a luta e aspirações da classe operária. O texto escolhido para a

estreia, em 1920, foi Alvorada (The Dawn), de Emile Verhaeren, um simbolista

Belga que havia escrito, em 1898, este drama em verso épico que retratava a

transformação de uma guerra capitalista num levantamento proletário internacional.

Meyerhold, em colaboração com um assistente, adaptou o texto simbolista aos

eventos políticos russos dos últimos anos (BRAUN 1998: 163), bem como ao público

para o qual concebeu esta produção. Tornando-o mais acessível, Meyerhold

sacrificou a integridade do texto como o autor o produziu, subordinando-o às

necessidades do espetáculo e respetivo público (RUDNITSKY 2000: 60). Neste

sentido, parece seguro afirmar que em Alvorada Meyerhold libertou o teatro do jugo

da literatura, uma vez que o texto não é mais o cerne desta produção, mas antes o

                                                                                                               39 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames &

Hudson, 2000, 60

  57  

espetáculo em si, — como em várias outras que a seguiram — apresentando, assim,

um Teatro Teatral.

A estreia de Alvorada, que contou com a participação dos alunos de

Meyerhold, coincidiu com a terceira celebração do aniversário da Revolução de

Outubro e apresentou-se com contornos marcados de comício político, presentes

não só nos cartazes de propaganda incitativa espalhados pelo teatro, como também

no estilo declamativo da representação. Os atores, quais oradores políticos, atuavam

sem maquilhagem e dirigiam-se diretamente ao público, num estilo de

representação muito pouco dinâmico, uma vez que permaneciam maioritariamente

estáticos. Contudo, nem todos os atores marcavam presença em palco, pois alguns

encontravam-se distribuídos pela plateia de forma a guiar os espectadores — como

uma espécie de coro grego disperso — para que estes participassem ativamente no

espetáculo, incitando-os a reagir e a interagir com os atores em palco. No entanto,

Meyerhold não esperava a fraca participação do público — explicada, em parte,

pela natureza fria, militarizada e plasticidade estatuária que a produção apresentou

— que se fez sentir até à noite em que a cena, inerente ao texto de Verhaeren, onde

o Mensageiro viria dar a notícia da derrota do inimigo, fora substituída pela leitura

real de um telegrama dando conta da vitória na Guerra Civil, do Exército Vermelho

sobre a última grande ameaça do Exército Branco, a sul do território. A reação então

obtida, de celebração e euforia universal, correspondeu às expectativas iniciais de

Meyerhold de tal forma que este decidiu substituir essa mesma cena pela leitura de

telegramas reais da ROSTA — Agência Telegráfica Russa — ao invés de os afixar

pelos corredores do teatro.

O velho teatro Sohn apresentava-se longe do conforto dos grandes teatros

académicos e detentor de uma atmosfera informal, que coincidia com o ambiente

revolucionário que se vivia nas ruas. Estas características da sala assentavam

  58  

perfeitamente na encenação que Meyerhold concebeu para Alvorada40, uma

tentativa de renovação do comício revolucionário que havia surgido na vida real,

dando origem a uma espécie de performance meeting. Obrigado a servir-se de um

palco convencional, Meyerhold decidiu transformá-lo por completo num esforço de

adaptação do mesmo ao seu programa teatral. Para tal, despiu por completo o palco

dos seus elementos e levou a cabo a remoção dos bastidores, expondo as paredes de

tijolo do edifício. Destruiu, também, as luzes de ribalta, para depois ampliar o palco

e diminuir a distância do mesmo em relação à plateia, cobrindo parcialmente o fosso

da orquestra, onde construiu uma escadaria utilizada pelos atores durante a

representação. Esta transformação espacial alargou o proscénio, aproximando o

público da ação que decorria em palco, onde se podia observar um cenário ascético

e austero pelos seus contornos abstratos e formas geométricas militarizadas,

elaborado por Vladimir Dimitriev, que conseguiu forjar um ambiente de prontidão

para a batalha. Iluminando este cenário, encontravam-se dois holofotes de estilo

militar instalados nos camarotes e focados na cara dos atores. Estas luzes

direcionadas acompanhavam as luzes do auditório, que permaneceram ligadas

durante todo o espetáculo, reiterando o esforço de harmonização entre palco e

platéia e reforçando a ideia que Alvorada era um espetáculo de comunhão, com

partilha de ambiente e ritmos pelo auditório.

Para a segunda produção do R.S.F.S.R No.1 Meyerhold escolheu a segunda

versão de Mistério-Bufo, encenada no 1º de Maio de 1921, após a peça ter sido

reescrita pelo próprio Mayakovsky, num esforço de atualização da mesma. Esta

segunda versão foi apresentada pelo próprio Mayakovsky como uma representação

heróica, épica e satírica da sua época e continha no prefácio a manifesta vontade,

                                                                                                               40 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames &

Hudson, 2000, 60

  59  

pela parte do poeta, de atualização dos textos em cada encenação (MAYAKOVSKY

1995: 39). Neste espetáculo, radicalizaram-se as transformações espaciais que se

haviam registado em Alvorada, pois aqui a destruição da barreira entre palco e

público foi completa, vertendo o cenário e a ação para o auditório, por meio de uma

longa rampa, onde se podia ver um hemisfério, que descia até à primeira fila de

cadeiras e era utilizada no último ato do espetáculo — em que os "impuros"

alcançavam o seu paraíso mecanizado — para a maximização da interação entre

público e atores, que convidavam a platéia a misturar-se com a ação em palco. Este

cenário, profundamente anti-realista como seria expectável, era composto por várias

plataformas dispostas em níveis diferentes, assemelhando-se a uma construção

composta por andares assimétricos ligados por degraus, que representavam, de

forma vagamente sugestiva, os vários locais da ação. Esta segunda versão de

Mistério-Bufo apresentou-se como uma revista política — género que dava, então,

os seus primeiros passos — onde os elementos circenses e de teatro popular de feira

que marcavam já presença na primeira versão de Mistério-Bufo (1918) se

encontravam ainda mais acentuados e que integrava em si uma celebração

apaixonada da Revolução enquanto ridicularizava os inimigos da nova ordem social

(RUDNITSKY 2000: 62-63).

O programa do espetáculo dava uma ideia do ambiente informal da

produção, uma vez que continha em si a autorização para abandonar ou entrar na

sala enquanto o espetáculo decorria, bem como o incentivo ao público para se

manifestar como bem entendesse, mesmo que isso significasse interagir com os

atores enquanto estes trabalhavam. Um crítico, Emmanuel Baskin, relembra o

ambiente produzido pela natureza anti-realista do espetáculo cuja natureza

comunitária parecia exigir um espaço amplo e um público de massas:

  60  

There is no stage and no auditorium. There is a monumental

platform projecting halfway into the auditorium. There is the feeling that

there is not enought space for it within these walls. It calls for a city square,

a street. It needs more than these several hundred spectators which the

theatre accommodates. It calls for the masses. It has broken away from all

the machinery on the stage, has elbowed out the wings, the grid, and has

soared up to the very roof of the building. (…) It does not imitate life with its

swaying curtains and idyllic crickets. Actors come and go on the platform-

stage. Before the spectators' very eyes the workers shift, fold, dismantle,

collect, nail together, take away and bring in. The author and director are

here too. The performance ends and some of the actors in costume mingle

with the audience. This is no 'temple' with its great myth of the 'mystery' of

art. This is the new proletarian art… (RUDNITSKY 2000: 63).

Contrariamente à primeira encenação de Mistério-Bufo, que apenas contou

com três representações, esta segunda versão teve muito mais sucesso que a sua

antecessora. Contudo, ambas as produções partilharam figurinos, uma vez que

Meyerhold optou, novamente, pelas prozodezhda, desta vez azuis — tendo

influenciado, com esta opção, o grupo de agit-prop criado em 1923, As Blusas

Azuis, como veremos mais à frente —, que mantinham a sua função de

homogeneização, num quadro vitorioso, dos atores que representavam o

proletariado.

Com o terminar do chamado período do comunismo de guerra veio também

o fim da presença de Meyerhold no TEO, bem como do Outubro Teatral e de

produções como Mistério-Bufo, que bebiam muito do ambiente propagandista

daqueles primeiros anos de instabilidade e conflito que se viveram na infância do

regime socialista. A implementação da NEP — Nova Política Económica —,

  61  

também em 1921, trouxe de volta, embora com algumas limitações, a iniciativa e

propriedade privadas, ao mesmo tempo que impunha uma rígida disciplina

orçamental relativamente aos fundos estatais, o que acabou por afectar o

financiamento de muitos outros teatros (BRAUN 1998: 167). O ressurgimento, com a

NEP, de uma espécie de burguesia — os NEPmen — também influenciou a

transformação de financiamento e funcionamento dos teatros que inspirou o receio

de um retrocesso na liberdade de criação e inovação artísticas, como salientou

Camilla Gray:

Under NEP a new bourgeoisie arose which was soon in a position to

patronize the arts, unlike the penniless government, and naturally enough this

new art patron inclined towards a familiar form, 'pre-Revolutionary' in every

sense of the term. This return of the old enemy to power disgusted the 'leftist'

artists, but it also meant that they had to look for other means of support, and

industry was the obvious solution (GRAY 2007: 245).

Após o fracasso do Outubro Teatral, Meyerhold apercebeu-se da necessidade

de dar um novo rumo ao teatro e preparou esse futuro no seu mais recente estúdio

experimental, aberto em 1922, o State Experimental Theatrical Studio

(GEKTEMAS), que passaria a ser chamado Teatro Meyerhold (TIM) em 1923, onde

deu início ao treino dos atores segundo o seu novo sistema: a Biomecânica. Fruto da

iniciativa de integração do trabalho do ator numa sociedade que dava os primeiros

passos no caminho da industrialização, Meyerhold desenvolveu um sistema de treino

do ator baseado em exercícios físicos que o ajudavam a desenvolver as competências

necessárias ao movimento cénico e que aproximava a sua técnica do trabalho

operário. A biomecânica — que surgiu da necessidade de renovar também o método

de trabalho e não apenas as formas — pretendia revolucionar o estatuto do ator,

  62  

tratando o seu trabalho como um fator essencial na organização do trabalho de toda a

sociedade, proporcionando o lazer necessário. Profundamente ligado ao seu tempo,

este sistema baseava-se numa fusão de Construtivismo, Taylorismo e uma seleção

consciente da tradição, pois Meyerhold defendia que o ator ao serviço da nova ordem

social deveria "rever todos os cânones do passado" (BRAUN 1998: 197). A sua

ligação ao Construtivismo prende-se com uma abordagem científica da arte, em que

esta não se sustenta a si própria mas exige uma utilidade e tem uma aplicação

concreta na realidade social. (BRAUN 1998: 198). É a recusa da "arte pela arte", em

simultâneo com a apologia de uma arte ao serviço da Revolução, construída por meio

de um processo de produção consciente que, no caso do ator, é levado a cabo pelo

trabalho do corpo. Esse corpo, instrumento de trabalho por excelência, deveria ser

cultivado ao máximo, de maneira a que o ator fosse capaz de executar qualquer

movimento que lhe fosse pedido. É com base nesta abordagem científica que

Meyerhold desenvolve a fórmula do trabalho do ator, que se materializou da seguinte

forma:

N = A1 + A2

Nesta fórmula, em que N constitui o ator como um todo, Meyerhold divide-o

em dois, sendo A1 o artista que concebe a ideia e formula as instruções necessárias à

execução da mesma e A2 o executante da ideia. Este ator baseia o seu trabalho, como

já foi referido, na premissa física — da qual nasce o fator psicológico que, salienta-

se, não é anulado por Meyerhold, apenas não constitui a base de todo o sistema,

como acontece com o método de Stanislavsky — e na economia de movimentos e de

Ator Construtor

Executante

  63  

tempo, que surge por influência do Taylorismo. Esta teoria de organização do

trabalho baseava-se na aplicação de princípios científicos testados que tinham por

objetivo a economia de meios, o aumento da produtividade laboral e da eficiência do

trabalhador. Meyerhold, que acreditava num espetáculo pouco prolongado, uma vez

que a atenção do espectador era limitada41, viu nesta teoria a possibilidade de agilizar

o seu teatro, aplicando-a ao trabalho do ator. Tal como um operário, o ator deveria

maximizar o seu tempo — não o desperdiçando na caracterização, ou seja,

trabalhando sem maquilhagem e em figurinos polivalentes que possibilitassem a

execução de qualquer movimento (os prozodezhda) —, aniquilar qualquer

movimento supérfluo que não se traduzisse em significado para o público, ter ritmo,

estabilidade e a completa noção do centro de gravidade do seu corpo (BRAUN 1998:

198). Contudo, todo este domínio físico e rigidez de movimentos deliberados e

essenciais poderiam tornar o ator num mero autómato eficaz, mas ao cruzar-se com a

tradição, inspirando-se no improviso da Commedia dell'Arte, no music-hall, no circo

e até no teatro de marioneta, o ator da biomecânica torna-se completo, expressivo e

dinâmico, como referiu Konstantin Rudnitsky:

(…) biomechanics allows the actor, perfectly controlling his body

and movements, firstly, to be expressive in dialogues; secondly, to be the

master of the theatrical space; and, thirdly, in integrating with the crowd

scene, the grouping, to impart to it his energy and will (RUDNITSKY

2000: 93).

A biomecânica — que se encontrava intimamente ligada com a cenografia

construtivista, uma vez que esta constituía uma plataforma de trabalho adequada ao

                                                                                                               41 Cf. Marie-Claude Hubert, Les Grandes Théories du Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 265.

  64  

dinamismo e virtuosismo do ator42 — veio a público, pela primeira vez, em 1922,

com O Corno Magnífico (Le Cocu Magnifique), uma farsa trágica do expressionista

Belga Fernand Crommelynck, representada pela primeira vez em Paris, em 1920, por

Lugné-Pöe. O protagonista, Bruno, movido pelo ciúme, obriga a sua mulher a

entregar-se a todos os homens da aldeia a fim de encontrar o suposto amante, sem

que isso o esclareça acerca da suposta infidelidade da esposa (MOLINARI 2010: 351).

Nesta produção de Meyerhold, os atores, que envergavam os já familiares

prozodezhda — desta vez azuis e ligeiramente modificados por Lyubov Popova —,

apresentavam-se sem maquilhagem e representavam a um ritmo vertiginoso,

exibindo a sua excelente forma física e competências acrobáticas ao interagirem com

o cenário, fazendo da farsa trágica de Crommelynck uma demonstração alegre de

piruetas e outras acrobacias, originando um trabalho de ator aparentemente sem

esforço, fruto do cruzamento da biomecânica com o improviso estilo Commedia

dell'Arte. Em Le Cocu Magnifique, o ritmo era tudo, uma vez que a ausência de

cenário, figurinos e maquilhagem obrigava o ator a depender apenas do domínio da

sua técnica que, nesta produção, deveria revestir-se de uma subtileza expressiva no

que toca aos movimentos que deveriam ser executados com a destreza de acrobatas e

a suavidade de dançarinos (RUDNITSKY 2000: 94).

O cenário, como já foi referido, esteve ausente desta produção. Por outras

palavras, Le Cocu Magnifique não contou com um cenário bidimensional

convencional, mas antes com uma construção mecânica que fora pensada por

Lyubov Popova a partir dos elementos essenciais para a representação — rampas,

escadas, passadeiras e afins — que foram depois reduzidos às suas formas estilizadas

e apresentadas num palco que Meyerhold despiu por completo, de tal forma que

expôs a parede de tijolos do edifício, como havia feito no velho teatro Sohn,                                                                                                                42 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002, 132.  

  65  

deixando-o sem bastidores nem proscénio. A estrutura mecânica de madeira

concebida por Popova é descrita por Rudnitsky da seguinte maneira:

Two wooden machines, one a little higher than the other, were linked

together by a bridge. Two staircases descended to the stage floor on the left

and right. The entire apparatus, made from planks and beams, looked

deliberately schematic and possessed the clarity of a blueprint. But it had to be

a moving blueprint.

So three rotating wheels of varying sizes, one black, one white, one

red, were placed between the two machines. On the upper left-hand side was

perched an object that resembled a windmill, although its 'sails' were left in a

skeletal state, latticed rather than solid. Finally, a smooth, inclined plank

descended from the machine to the stage floor so that the actors could

suddendly slide down it (RUDNITSKY 2000: 92).

Das três rodas, referidas por Rudnitsky, que constituíam parte da criação de

Popova, uma, a de cor preta, tinha pintadas as letras CR MM LNCK a branco,

representando o nome do autor do texto, Crommelynck. Esta construção

mecanizada movimentava-se, ora lenta, ora rapidamente, umas vezes por inteiro,

outras por partes, acompanhando o ritmo da representação, parecendo ganhar vida,

durante o espetáculo, bem como um papel próprio ao interagir com os atores, que

dela se serviam como um instrumento de trabalho. Todo este aparato constituía uma

estrutura estranha e evocativa de várias coisas, constituindo um cenário

tridimensional e anti-realista, reduzido aos elementos essenciais e baseado apenas

no poder de sugestão. Desta forma, o espectador era estimulado e convidado a

participar completando o cenário com a imaginação. Le Cocu Magnifique

constituiu, assim, a primeira grande aplicação — senão a única verdadeira — dos

  66  

princípios do Construtivismo à cenografia teatral. Apresentando-se como um

espetáculo de uma vivacidade coordenada, coberto de pureza de linhas e dinamismo

comum tanto ao trabalho do ator como à cenografia animada por uma mecanização

rítmica, Le Cocu Magnifique foi a resposta de Meyerhold à necessidade de um novo

rumo para o Teatro (RUDNITSKY 2000: 94).

Tendo sido alvo de críticas pela ausência de conteúdo político de Le Cocu

Magnifique, Meyerhold decidiu encenar, em seguida, A Morte de Tarelkin, de

Aleksandr Sukhovo-Kobylin, texto que integrava uma trilogia de sátiras acerca da

corrupção no sistema judicial russo. Esta produção, de 1922, apresentava claras

influências circenses sem qualquer tipo de censura. Contrariamente a Le Cocu

Magnifique, em A Morte de Tarelkin a ação espalhou-se por todo o palco e decorria

virada para o público, cujo espaço a ação acabaria por invadir, esbatendo barreiras

entre espectador e ator. Os atores representaram, novamente, sem peruca nem

maquilhagem e vestidos com prozodezdhas, desta vez concebidos por Varvara

Stepanova, em tecido azul, assemelhando-se a uniformes de prisioneiros ou batas

hospitalares (RUDNITSKY 2000: 95). Relativamente ao trabalho do ator salienta-se,

como já foi referido, a influência circense — uma vez que gritavam e saltavam em

vez de falarem e andarem —, bem como uma representação marcada por um certo

distanciamento que começou a ser usado no teatro profissional por volta desta

altura e que viria a influenciar as companhias de agit-prop russas, mas também a

estética brechtiana. Deste modo, os atores, em palco, entornavam água entre si,

lutavam com paus e cacetetes e interagiam com o traiçoeiro cenário arquitetado, tal

como os figurinos, por Stepanova. O cenário, de natureza construtivista, era

composto por um conjunto de máquinas semelhantes a adereços de circo, dispersas

pelo palco, que à primeira vista pareciam apenas mobília convencional, pintada de

branco, mas que reagiam à presença dos atores; uns adereços repeliam o ator

  67  

quando se sentava, outros "alvejavam-nos" quando se aproximavam,

proporcionando, assim, um espetáculo recheado de partidas. Relativamente à

iluminação de palco, Meyerhold jogou com o contraste entre a penumbra ao fundo

do palco e uma luz intensa produzida por dois holofotes colocados nas laterais do

palco, que iluminavam o primeiro plano onde os atores se movimentavam, tendo

um impacto imediato na perceção dos espectadores43. Finalizando, recordam-se as

palavras de Vasily Sakhnovsky, citadas por Rudnitsky, que descrevem o conjunto

da produção como um "circo aterrador"44, tornando Meyerhold, juntamente com a

FEKS, pioneiro na fusão entre teatro e circo.

A FEKS — Fábrica do Ator Excêntrico — foi criada em Leninegrado, em

1922, por Grigory Kozintsev e Leonid Trauberg, consistindo num estúdio

experimental de teatro e cinema, que apresentou o seu primeiro espetáculo no

Proletkult de Leninegrado, atualmente São Petersburgo, baseado na comédia de

Gogol, O Casamento. Do texto de Gogol surgiu um espetáculo assente em três atos

que conservou do original apenas alguns episódios desconexos, apresentados sob a

forma de inventário de números de variedades, onde se reconhecia a influência dos

manifestos de Marinetti, bem como a presença do teatro de marionetas, do

clowning, malabarismo e acrobacias circenses, farsa, entre outros elementos,

misturados à maneira do music-hall (RIPELLINO 2002: 154). Nesta produção,

podemos reconhecer traços da conceção de teatro do FEKS que, segundo Angelo

Maria Ripellino, consistia numa sequência vertiginosa de episódios variados

preparados para agitar o espectador, desafiando a lógica:

                                                                                                               43 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 95. 44 Cf. ibidem  

  68  

El credo teatral del Excentrismo se articulaba en una secuela de ideas

fulminantes. Ellos concebían el espectáculo como una 'percusión rítmica sobre

los nervios', una 'acumulación de trucos', un 'cancán sobre las cuerdas de la

lógica y del buen sentido'. Meditando la posibilidad de transformar el teatro en

una síntesis de trifulcas, voceríos, acrobacias, persecuciones, en un juego de

transformaciones incesantes, querían asumir las impetuosas cadencias de la

'chechetka' a base del nuevo ritmo (RIPELLINO 2002: 153-154).

Tal como a FEKS, também Sergei Eisenstein — que havia sido assistente de

encenação de Meyerhold, seu mentor, n'A Morte de Tarelkin — era apologista de

um espetáculo que nascesse da fusão entre o circo e o teatro. Seguindo essa estética,

o então jovem Eisenstein estreou-se como encenador, em 1923, com a comédia de

Ostrovsky Enough Stupidity in Every Wise Man, numa produção conjunta com

Serguei Tretyakov, que teve lugar num espaço mais convencional, o Primeiro

Teatro Operário do Proletkult, embora haja registos de produções, levadas a cabo

por esta dupla em espaços menos ortodoxos, como a encenação, na Fábrica de Gás

de Moscovo, de Máscaras de Gás, um original de Tretyakov, datado de 1924. O

cenário desta produção levou à eliminação completa da dicotomia cena-plateia,

proporcionando um contacto máximo entre atores e público por meio de uma pista

alcatifada de reminiscências circenses onde se encontravam tripés, varões, cordas,

anéis, plataformas e outros adereços de circo. Nesta pista, o trabalho do ator

oscilava entre o clowning, a acrobacia e a representação propriamente dita,

havendo, também, a necessidade de competências musicais e de dança por parte dos

atores. A ação, repartida como um programa de circo, dividia-se entre números

circenses, números musicais, números de dança e representação de trechos do texto

de Ostrovsky, interrompidos por projeção fílmica que, por sua vez, provocava uma

  69  

rutura na linearidade narrativa da ação do espetáculo, recuando no tempo e

mostrando ações passadas que completavam a representação dos atores45. No final

do espetáculo, num tom anti-ilusionista, os atores proclamavam o fim do mesmo e

cumprimentavam o público que, pouco depois, veria rebentar por baixo das suas

cadeiras, um pequeno foguete. Como foi já referido, este espetáculo, que se baseava

no texto de Ostrovsky, retirava dele apenas alguns episódios, o que se traduzia na

ausência de um um respeito absoluto pelo texto, tornando o teatro de Eisenstein

mais direcionado para o espetáculo do que para um teatro mais literário. Nesta

produção, que se revestiu por completo de formas circenses profundamente anti-

realistas ao serviço da sátira política46, era notória a influência dos manifestos de

Marinetti, não apenas na provocação direta do público com fogo de artifício, mas

especialmente na aplicação do que Eisenstein batizou como montagem de atrações.

Desenvolvida no teatro, mas aplicada principalmente na sua carreira como

realizador de cinema, este tipo de montagem, anunciado no terceiro número da

revista LEF, foi primeiramente apresentada ao público na adaptação circense do

texto de Ostrovsky, e tinha como consequência a produção de um espetáculo

cronologicamente não linear com um forte impacto sensorial e psicológico no

público. No artigo publicado na LEF, Eisenstein define atração:

Est attraction (du point de vue du théâtre) tout moment agressif du théâtre,

c'est-à-dire tout élément de celui-ci soumettant le spectateur à une action

sensorielle ou psychologique vérifiée au moyen de l'expérience et calculée

mathématiquement pour produire chez le spectateur certains chocs émotionnels

qui, à leur tour, une fois réunis, conditionnent seuls la possibilité de percevoir

                                                                                                               45  Cf. Serguei Eisenstein, Au-delà des Étoiles, Paris, Union Générale d'Editions, 1974, 122-125.  46  Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 96.  

  70  

l'aspect idéologique du spectacle montré, sa conclusion idéologique finale

(EISENSTEIN 1974: 117).

Tendo por base estas "unidades moleculares do teatro" (BERNARDINI 1980:

26), as atrações, — onde se reconhecem ecos dos "átimos" dos futuristas italianos —

os espetáculos de teatro, para Eisenstein, deveriam nascer de um forte programa

circense, partindo do texto com que se escolheu trabalhar, sendo constituídos por

cadeias de momentos agressivos que visavam produzir no espectador sensações e

estados de espírito que o agitassem e cuja escolha estava diretamente relacionada

com a mensagem que o encenador queria fazer passar.

A ideia de fusão entre circo e teatro, partilhada por Meyerhold, a FEKS e

Eisenstein, rapidamente se esgotou e deu lugar a uma outra fusão, encabeçada por

Nikolai Foregger, entre o teatro e o music-hall. Foregger organizou, em Moscovo, no

ano de 1921, um pequeno teatro, o Mastfor — The Foregger Theatre Workshop —

onde cultivava o escárnio pelos teatros académicos, bem como pelas peças de

agitação e até pelas produções de Meyerhold. As suas ideias eram, em muito,

semelhantes às que moviam a FEKS e Eisenstein, uma vez que, tal como estes

últimos, Foregger ficara fascinado pela tecnologia e era um apologista da utilização

das ténicas circenses nas produções teatrais. A grande diferença reside,

essencialmente, na fortíssima componente musical pela qual os seus espetáculos se

regiam. O cruzamento de acrobacias de circo e dinamismo cinematográfico,

Foregger orientava a sua estética teatral segundo os princípios do music-hall.

Seguindo esta estética de "music-hallização" do teatro, Foregger desenvolveu uma

técnica de trabalho do ator muito próxima da biomecânica meyerholdiana, embora

simplificada, ao defender que toda a ação teatral é revelada por meio de uma

sequência de gestos e de poses criadoras de movimento que deveria obedecer a um

  71  

ritmo próprio da dança (RUDNITSKY 2000: 97). Alguns espetáculos que criava

segundo estes princípios nada tinham de político, apresentando-se como meras

coleções de números de variedades com influência norte-americana; outros eram

encenados como revistas cómicas, com um toque de sátira, focando-se em assuntos

contemporâneos populares, cujo texto não bastava só por si, servindo apenas de

elemento de ligação entre os números de dança que constituíam a maior parte do

espetáculo. O Mastfor chegou ao fim, em 1924, consumido por um incêndio, mas a

ideia que nele se gerou, de fundir o teatro e o music-hall, sobreviveu às chamas,

apelando a encenadores como Meyerhold, que, de certa forma, recorreu a esta

estética em algumas das suas revistas políticas.

A publicação LEF — e mais tarde Novy LEF —, já referida anteriormente a

propósito da colaboração com Eisenstein, apresentou-se como o arauto de um

movimento que, de certa forma, assumiu a posição de sucessor do Outubro Teatral: a

renovação artística ao serviço da Revolução, que havia falhado quase tão

rapidamente quanto Meyerhold a proclamara enquanto diretor do Narkompros. A

Frente Artística de Esquerda (LEF) foi fundada em 1923, juntamente com a

publicação homónima, por Vladimir Mayakovsky, sendo, inicialmente, um

movimento artístico coeso cuja ideologia assentava nas ideias Construtivistas, no

Taylorismo e na estética concebida por Vyacheslav Ivanov, um poeta simbolista,

filósofo e crítico, que havia desenvolvido as suas ideias nos primeiros anos do século

XX. Ivanov, um homem alheio às artes do palco, concebeu uma utopia teatral que,

apesar de nunca ter sido concretizada em pleno, mostrou a sua força ao influenciar

teóricos do teatro, principalmente membros da LEF e do Proletkult, que se deixaram

seduzir pela dimensão coletiva da teoria de Ivanov, embora reticentes em relação à

natureza ritualista da sua estética. Para este homem, aparentemente preso ao passado,

  72  

o teatro era visto, em potência, como a mais poderosa das artes, sendo perfeitamente

capaz de substituir a religião numa sociedade cuja fé decaía significativamente

(RUDNITSKY 2000: 9). De maneira a conseguir cobrir o teatro de uma dimensão

religiosa, Ivanov defendia um regresso às antigas tradições ritualistas, à tragédia ática

e aos mistérios medievais, afastando-se da realidade do teatro burguês, seu

contemporâneo, forjando, assim, uma ideia de teatro de ação coletiva. Ivanov

defendia que o público não procurava mais o espetáculo, que estava saturado da

ilusão, e que era preferível oferecer-lhe ação, ou seja, Ivanov defendia, em palco, a

praxis, não a mimesis. Para levar a cabo esta tarefa transformativa do teatro, Ivanov

propunha, essencialmente, uma mudança radical do espaço teatral, que traria uma

quebra com a noção convencional de palco italiano, bem como com as luzes de

ribalta, de maneira a criar um espaço completamente aberto, semelhante à orchestra

dos anfiteatros gregos. Deste modo, seria abolida, na totalidade, a distância entre

palco e plateia, modificando, consequentemente, a natureza da relação entre público

e atores, levando à partilha da ação entre todos, tornando o espetáculo numa

performance coletiva baseada no improviso, no canto coral e na dança (RUDNITSKY

2000: 10).

Com Mayakovsky à cabeça, a LEF teve um impressionante rol de

colaboradores — entre eles Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Lyubov Popova,

Varvara Stepanova, Alexander Rodchenko, Sergei Tretyakov — reunidos num grupo

ideologicamente coeso que se apresentava como "uma associação livre de todos os

trabalhadores de arte da esquerda revolucionária" (EMÍLIA 1973: 77). A publicação

esteve desde o início intimamente ligada com o Construtivismo, movimento fundado

por Tatlin em 1919, mas cuja grande oportunidade surgiu no teatro com algumas das

produções de Vsevolod Meyerhold, anteriormente enumeradas. Composta por

Construtivistas e Futuristas, a LEF tinha como objetivo primeiro a criação de formas

  73  

estéticas que tivessem repercussões na realidade quotidiana da URSS, como recorda

Ripellino:

El LEF se proponía intervenir activamente en el desarrollo de la

sociedad soviética y erradicar las predilecciones oleográficas, creando un

nuevo hábito, nuevas formas de vida inspiradas en la técnica y en el

industrialismo. 'El LEF luchará por un arte que sea construcción de la vida'

se lee en el primer número de la revista homónima (RIPELLINO 2002:

130).

Esta opção revela a estética Construtivista do grupo, uma vez que os membros

da LEF defendiam uma arte utilitária, transformadora da vida e propagandista

relativamente à nova realidade social russa. Outros pontos de contacto com o

Construtivismo, partilhados, também, com o Futurismo, prendem-se com a fixação

pela máquina e pelo progresso técnico aliada a uma forte repulsa por tudo o que

restava da velha ordem, principalmente formas artísticas. Relativamente ao teatro, a

LEF mantinha uma posição de desconfiança, mesmo quando se tratava de teatro

vanguardista ou revolucionário, sempre que este se baseasse em ficção, uma vez que

segundo a teoria do movimento, todas as formas de ficção corporizavam resquícios

de um passado a eliminar. O que lhes interessava realmente era a exploração de

novas formas ligadas ao jornalismo; interessava mais o facto, o documento, do que a

fantasia, pois pretendiam registar o momento em que viviam e não conservar a velha

ordem47. O pouco entusiasmo nutrido pelo teatro foi reiterado na preferência pelas

novas formas de comunicação de massas, como a rádio, o cinema ou a imprensa, não

reconhecendo no teatro, que acreditavam sobreviver por inércia, uma dimensão

                                                                                                               47  Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002, 130.  

  74  

social significativa. Apesar da importância menor atribuída ao teatro, muitos dos seus

membros colaboraram, com sucesso, em produções revolucionárias da época —

Mayakovsky, Popova, Stepanova, Eisenstein, etc... — para desagrado de alguns dos

seus camaradas. A LEF, à semelhança das fusões do teatro com outras artes que

foram já aqui referidas, esgotou-se de forma relativamente rápida, entrando em

decadência por meio da fragmentação, havendo, no final, apenas um grande

denominador comum a todos os seus membros: o desdém pelas formas artísticas e

valores sociais do passado, o que impossibilitou uma decisão concertada sobre o

rumo a tomar na construção de uma nova cultura socialista (RUDNITSKY: 91).

Em concordância com os princípios da LEF estava Meyerhold e os seus dois

teatros, que se encontravam no ativo em simultâneo, — o TIM, já aqui referido, e o

Teatro da Revolução —, um experimental, e o outro, o da Revolução, um teatro de

massas, onde a preocupação da rentabilidade económica fomentada pela NEP exercia

a sua influência, uma vez que nele apenas tinham lugar espetáculos cujas práticas de

construção fossem de eficácia comprovada.48 Em parceria com dois membros da

LEF — Lyubov Popova e Sergei Tretyakov — Meyerhold construiu um novo

espetáculo, A Terra em Tumulto (The Earth in Turmoil), em 1923, onde regressava à

revista política, género que utilizou pela primeira vez na segunda versão de Mistério-

Bufo. O texto, baseado no melodrama La Nuit, do dramaturgo francês Marcel

Martinet, de 1921, surgiu pela mão de Sergei Tretyakov, que criou uma versão

bastante alterada do texto original. Foi esta última versão, a de Tretyakov, que serviu

de base para a criação de Meyerhold que se apresentou sob a forma de uma revista

política dedicada à I Grande Guerra e ao dealbar da Revolução de Outubro. Esta

produção, fragmentada em episódios individuais praticamente independentes entre si,

que se apresentavam, alternadamente, de forma trágica ou em estilo de farsa,                                                                                                                48  Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 102.  

  75  

construiu-se através da montagem, característica que, juntamente com a existência de

uma tela para projeções, demonstrava uma influência cinematográfica. Para além da

influência do cinema era possível reconhecer, no cenário de Popova, ecos

construtivistas, uma vez que a sua criação, em estilo de colagem, combinava a

presença em palco de uma estrutura mecânica semelhante a uma grua, que Popova

apelidou de 'máquina-foto-placard', com objetos reais de natureza militar — macas,

armas, veículos —, slogans luminosos e, como já foi referido, a projeção fílmica49.

Salienta-se, também, relativamente ao cenário, a não existência de uma cortina e de o

palco se apresentar como uma plataforma ampla e aberta, iluminada por holofotes. A

presença dos atores não se limitava ao palco construtivista, pois, durante o

espetáculo, acabavam por invadir a plateia pelo corredor central do teatro. Meyerhold

continuou a trabalhar no registo da revista política apresentando, em 1924, no TIM,

um espetáculo baseado no clássico de Ostrovsky, escrito em 1870, A Floresta.

Tal como em The Earth in Turmoil, Meyerhold recorreu à montagem para a

construção deste espetáculo, mais especificamente à montagem paralela, um recurso

versado no cinema mudo da altura, mas até então inédita na arte do palco. Dividida

em trinta e três episódios que não obedeciam à linearidade cronológica da comédia

de Ostrovsky, esta produção nasceu de uma adaptação do texto clássico à época da

encenação, tendo sido introduzidas no espetáculo questões da atualidade russa50,

embora mantendo grande parte da integridade do texto original. Para além da

presença da linguagem cinematográfica, Meyerhold recorreu, também, a formas

circenses e ao teatro popular de feira, apresentando um espetáculo alegre que

combinava um lirismo elevado com uma pitada satírica. Contrastante com as suas

produções anteriores, A Floresta fugiu à austeridade visual de espetáculos como Le

                                                                                                               49  Cf. ibidem, 138.  50  Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 178-179.  

  76  

Cocu Magnifique, principalmente devido à conspícua ausência dos prozodezhda a

que Meyerhold havia habituado o seu público, apresentando, desta vez, os seus atores

em figurinos e perucas coloridas prontos a encarnarem máscaras sociais num palco

que começava vazio e se enchia gradualmente de um festival de cores berrantes.

Apesar de fragmentada, esta produção de sucesso era coesa, apresentando unidade

interior, pois todos os seus elementos, mesmo contrastando entre si, tinham em

comum um certo exagero. O exagero era transversal ao lirismo, à sátira e aos

figurinos, tendo sido o grande aglomerador do espetáculo.

Ainda em 1924, Meyerhold voltou a fazer uso da montagem textual com D.E.

(Give Us Europe), cruzando o romance Trust D.E. de Ilya Ehrenberg, com excertos

do romance Der Tunnel, de Bernhard Kellerman e algumas obras de Pierre Hamp e

Upton Sinclair51. O contexto desta produção está intimamente ligado com as

transformações que se fizeram sentir no tecido social moscovita, frutos da

implementação da NEP. O ambiente cultural e social da cidade, altamente permeável

às influências de uma Europa ocidental, era composto por uma dualidade flagrante:

de um lado, aqueles que se alinhavam culturalmente com a Europa, encarada como

decadente; do outro, a juventude soviética que era vista, no contexto da nova ordem

social, como o saudável exemplo a seguir (RUDNITSKY 2000: 103). Foi neste

contexto que surgiu esta revista política em três atos, composta por quinze episódios,

cada um com um estilo de representação próprio e independentes entre si, mas todos

com algum tipo de ligação com o tema central que assegurava a coesão do

espetáculo, construído em redor de uma dualidade muito marcada e reiterada por

todos os elementos que o compunham — desde o cenário à música, passando pelos

figurinos e trabalho de ator — feita da oposição entre representações satíricas de uma

Europa decadente e de representações mais realistas da sociedade soviética. O enredo                                                                                                                51 Cf. Llewellyn H. Hedgbeth, "Meyerhold's "D. E." in The Drama Review: TDR, Vol. 19, No. 2 (Jun., 1975), Cambridge, Massachussets, MIT Press, 24.

  77  

desta produção permitia uma forte componente de propaganda soviética, uma vez

que o proletariado saía vencedor de um combate direto com o Ocidente, deitando por

terra o plano de domínio mundial de uma organização capitalista formada por

milionários americanos, a D.E, cujo propósito consistia em travar as ideias

socialistas52.

O cenário, da autoria de Ilya Shlepyanov, foi um dos elementos mais

importantes e inovadores desta produção, apresentando-se com contornos

construtivistas, mas desta vez muito mais dinâmico, já que permitia a célere

transformação do mesmo nos mais diversos lugares necessários à encenação. A

construção de Shlepyanov era composta por cerca de dez painéis de madeira pintados

de um vermelho tijolo forte que se assemelhavam a paredes móveis distribuídas pelo

palco como necessário, pois eram suportadas por rodas que o público não via. Aliado

aos painéis de Shlepyanov encontravam-se várias telas para projeção, uma central de

grandes dimensões e duas laterais de tamanho mais reduzido. Na tela central eram

projetados os títulos dos episódios, o local em que estes tinham lugar, as personagens

envolvidas em cada um, bem como a atitude do encenador perante a ação que

decorria em palco. As duas telas laterais eram usadas para projetar informação sobre

as duas forças que se opunham, bem como slogans de propaganda, retratos de líderes

do partido e citações de discursos de Lenine. Assim, as telas contribuíam para

produzir um sentido mais amplo, complementando o trabalho dos atores, mais uma

vez assente na biomecânica, bem como numa forte utilização da pantomima, já que

vários episódios eram caracterizados por uma quase total ausência de diálogo, dando

espaço ao movimento.

Como anteriormente referido, o trabalho do ator era um dos recursos que

ajudavam a construir a dicotomia Ocidente/URSS por meio de um contraste entre

                                                                                                               52 Cf. ibidem.  

  78  

personagens. As personagens representativas de uma Europa decadente eram

interpretadas de forma grotesca, como máscaras sociais, ao passo que estava

reservada uma interpretação mais realista e séria aos atores cujo papel estava ligado

ao universo soviético. Os figurinos por eles envergados perpetuavam o já referido

contraste, na medida em que as personagens ocidentais apresentavam-se vestidas de

forma exagerada, mais próxima do clown, tendo sido construídos com grande

atenção ao detalhe e cores berrantes. Regista-se, contudo, uma fraca utilização dos

prozodezhda, reservados apenas aos ajudantes de palco.

Na feitura deste espetáculo construído, como se pode notar, a partir de

contrastes, Meyerhold viu na música mais um elemento para reforçar essa natureza

dupla, contando com a presença de uma banda jazz e uma orquestra que marcaram o

ritmo dos diferentes episódios. Aos episódios dedicados ao ocidente correspondia

uma banda sonora ocidental, plena de temas e géneros musicais populares na altura,

como o fox-trot, e àqueles episódios relativos ao universo soviético correspondiam

temas mais adequados ao contexto, como a Internacional. Tal como a música,

também a iluminação ajudava a marcar o ritmo quase cinematográfico da produção.

A iluminação não criava ambientes nem caracterizava estados de alma, mas servia

antes para acompanhar a ação que se desenrolava por todo o palco consoante os

episódios, tanto podendo ser estática como criar grande dinamismo ao piscar

freneticamente.

Em 1926, Meyerhold regressou a Gogol, encenando um dos grandes marcos

da sua carreira, O Revisor (The Government Inspector), no TIM, onde apresentou

uma nova mudança na sua estética, aproximando-se, aparentemente, da conceção

teatral do TAM. Nesta produção, que suscitou algumas críticas negativas pela forma

como foi abordado o clássico de Gogol, Meyerhold aliou uma dimensão psicológica

subtil à sátira mordaz, equilibrando a produção entre os limites do autêntico e do

  79  

exagero. Num tom sombrio, Meyerhold pôs a descoberto tudo aquilo que

considerava errado no país e que condenava veementemente, tendo contrariado a

abordagem convencional que transformava o texto em uma comédia estilo vaudeville

e obscurecia a sua dimensão social. Encarando o texto como uma síntese de realismo,

hipérbole e fantasia, embora reconhecesse, também, a presença de uma dimensão

cómica, Meyerhold escolheu enaltecer o seu efeito perturbador decidindo não se

cingir apenas ao texto original. Desta abordagem nasceu uma montagem textual

diferente das que até então havia feito com base nos clássicos, uma vez que estas

últimas assentavam, em grande parte, no respeito pela integridade do texto original.

Contudo, com O Revisor, Meyerhold trabalhou o texto a partir de vários textos de

Gogol, incluindo a primeira versão da peça, datada de 1835, à qual juntou linhas

isoladas de The Gamblers, Marriage e Vladimir of the Third Degree, adicionando,

também, pedaços das Histórias de Petersburgo, criando um texto bem mais extenso

que o original. Dividido em 15 episódios individuais, aos quais Meyerhold atribuiu

um título próprio e uma organização cronológica coincidente com o original de

Gogol, este texto constituiu a base de um espetáculo mais extenso que fora depois

aumentado, também, pela forte utilização de pantomima e de tableaux vivants. Esta

intervenção ao nível do texto marcou mais uma mudança no seu processo criativo,

cimentando o seu papel como autor da produção — chegando até a apresentar-se

como tal no material promocional do espetáculo — contribuindo, uma vez mais, para

a autonomia do papel de encenador. Nas alterações ao texto, Meyerhold pretendeu

não apenas evitar os traços mais cómicos, dando-lhe o já referido tom sombrio, de

maneira a exacerbar a dimensão trágica do mesmo, mas também eliminar o

provincianismo do texto, passando a ação de uma pequena localidade para a cidade

grande. Estas alterações almejavam a recriação, à sua maneira, não apenas do texto

de Gogol, mas de toda a sua época e de todo o passado que a Revolução havia

  80  

anulado, de maneira a introduzir o tema — transversal a toda a produção — do

passado cinzento e sem vida que culminou na cena final, em que Meyerhold

substituiu as personagens por manequins estáticos.

O cenário, de Viktor Kiselyov, pretendia evocar, de forma complexa, a

atmosfera da década de 1830, mantendo, contudo, a fidelidade aos princípios

tayloristas da economia de tempo, tendo, para tal, construído um cenário que

combatia a elaborada e morosa mudança de cenário. A cenografia foi, em O Revisor,

encarada de forma diferente, não havendo sinais de um construtivismo marcado que

pusesse a nu as paredes do edifício teatral, desta vez ocultas por um semicírculo feito

de imitação de mogno polido e composto por onze portas duplas, cuja secção central

se abria para deixar passar um palco móvel, de dimensões reduzidas, que parava a

sua marcha no centro do palco onde se encontravam três luzes verdes suspensas. Este

truck-stage chegava silenciosamente para encarar o auditório de frente já com os

atores e o cenário preparados. Cada cena neste palco móvel, que surgia da penumbra

como se trouxesse para o presente um passado abafado, era executada com a maior

exatidão e economia de meios, visto que o reduzido espaço para representação e o

elevado número de atores num palco tão pequeno tornava difícil a interpretração.

Dos atores exigia-se, assim, um domínio absoluto das técnicas da biomecânica, as

únicas que permitiam a execução dos movimentos estritamente necessários, com

precisão e integração no trabalho coletivo do elenco, bem como uma perceção aguda

de todos os elementos em palco e respetivos movimentos.

A recriação minuciosa, por parte de Meyerhold, do majestoso estilo imperial

russo, com todo o bronze, a seda, os brocados e a porcelana que isso implicava,

causou alguma perplexidade entre o público, uma vez que aproximava o defensor do

teatro da convenção do estética do TAM, de uma forma mais marcada que a

observada na sua produção anterior, O Mandato. Contudo, esta aproximação era

  81  

apenas aparente, visto que todos os objetos de época em palco tinham um subtil

toque de exagero, fugindo a um realismo estrito, que acentuava o trabalho do ator e

causava maior impacto visual. Esta opção estética marcou mais uma viragem no

trabalho de Meyerhold em direção a um novo realismo; um realismo seu e, como já

foi salientado, distinto daquele praticado pelo TAM, uma vez que se caracterizava

por uma transformação e adequação de uma certa noção do real para o palco e não

uma mera — embora minuciosa — reprodução da realidade que procurava a criação

da ilusão perfeita, forjando, assim, uma nova tradição teatral. Tal como em D.E., a

banda sonora teve um papel importante neste espetáculo, uma vez que a poderosa

atmosfera de época que Meyerhold recriou era sustentada, em parte, pela partitura

complexa que fora concebida para a produção (BRAUN 1998:217). Outro recurso que

Meyerhold voltou a aplicar em O Revisor prende-se com o cinema e a influência que

a linguagem própria deste meio artístico exerceu nas cenas de maior relevância,

orquestradas como um grande plano cinematográfico, de maneira a explorarem ao

máximo o potencial expressivo da representação (RUDNITSKY 2000: 191).

Meyerhold, num esforço de convergência com o programa do poder dedicou-

se à encenação dos clássicos — ainda que de uma maneira muito sua —, produzindo,

também, espetáculos que incidiam sobre a realidade então vivida, como se constata

nas produções que criticavam os malefícios da NEP ou os problemas da sociedade

russa, como a burocracia, fortemente atacada em um dos espetáculos que nasceram

da última parceria entre Meyerhold e o seu poeta de eleição, Vladimir Mayakovsky,

O Percevejo e Os Banhos.

Após O Revisor, Meyerhold começou a pensar no próximo projeto do TIM,

Eu Quero Uma Criança (I Want a Child), baseado no texto de Sergei Tretyakov.

Chegou até a ensaiar a produção, em 1928, mas a censura impediu-o de o apresentar

ao público devido ao forte conteúdo do texto, que constituía, em grande parte, o

  82  

motivo pelo qual Meyerhold tanto ambicionava criar este espetáculo. O texto, com

forte conteúdo sexual, centrava-se na polémica questão da eugenia, muito em voga

na Rússia soviética, expressada através da protagonista, a jovem comunista Milda,

que regia a sua vida amorosa por esse mesmo princípio. Devido à natureza

controversa do tema Meyerhold idealizou o espetáculo de uma forma distinta dos

anteriores, transformando o seu teatro numa espécie de arena que seria rodeada de

público por todos os lados. A conceção cénica de El Lissitzky maximizava não

apenas o espaço do velho teatro, mas principalmente a participação dos espectadores,

integrando-os mais na ação, elaborando, assim, uma espécie de performance-debate,

aberta a todos os presentes. Contudo, havia, dispersos pelo auditório, oradores

selecionados para liderar a discussão, uma vez que teriam uma opinião mais 'correta',

promovendo um debate mais 'produtivo' (RUDNITSKY 2000:198).

Ao ver os seus planos para a única produção que verdadeiramente lhe

interessava caírem por terra, Meyerhold regressa aos clássicos e decide levar à cena,

nesse mesmo ano, Woe to Wit, um espetáculo que assinou como autor da produção,

construído a partir da comédia satírica de Alexander Griboedov, Woe From Wit, de

1824, transformado, a partir da primeira versão do original, num drama romântico. O

enredo centra-se no herói, Chatsky, e na sua incursão pelas teias da sociedade

burguesa, meio que acaba por abandonar, desiludido e desconfiado, jurando nunca

mais voltar, após sofrer um desgosto de amor e de ter sido engolido pela

superficialidade, interesses e intrigas da pequena burguesia moscovita. Já em

produções anteriores, como em O Revisor, se havia notado uma certa aproximação

ao naturalismo do TAM, aqui reiterada não apenas pela ausência dos prozodezhda,

mas também pela apresentação dos figurinos, da autoria de N. Ulyanov,

extremamente detalhados e de época. Todavia, estavam longe do naturalismo do

TAM, apenas parecendo participar da estética do teatro de Stanislavsky a um olhar

  83  

desatento e incapaz de reconhecer neles a mistura de épocas e a proveniência

francesa, já que Ulyanov os concebeu com base numa colagem de estilos tão

diversos como o directório, o primeiro império ou o da restauração, que

demonstravam o excesso de ornamentação e completa falta de gosto na

caracterização dos personagens representativos da sociedade moscovita do velho

regime.

O cenário, de Viktor Shestakov, foi construído, novamente, de acordo com

princípios construtivistas e dinamizado pela ajuda de plataformas e painéis móveis

revestidos de cores intensas, que, tal como em O Mandato, permitiam uma rápida

mudança de cenário, fomentando, assim, a economia de tempo, sempre presente nas

produções de Meyerhold. Em Woe to Wit não houve, mais uma vez, preocupação

alguma em ocultar as paredes do edifício teatral. Não havia pano de boca, bastidores

ou luzes de ribalta. O som de um gongo assinalava o final de cada episódio; este

recurso tão simples contribuía para a manutenção da quebra da ilusão atenuando

qualquer realismo aparente. Os adereços, presentes em número reduzido, constituíam

apenas o essencial necessário à caracterização dos espaços recriados no jogo cénico,

servindo, também, para a criação de efeitos cómicos, como a mesa de banquete de

dimensões excessivas utilizada numa das cenas finais.

A música, como em quase todas as criações meyerholdianas, marcou presença,

em Woe to Wit de forma muito importante, servindo, nesta produção, de ajuda à

recriação da época do texto. A sua importância transparece através da intenção de

Meyerhold em integrar a música na encenação de uma maneira tão marcada ao ponto

de a sua ausência constituir uma grave lacuna no conjunto da produção. De resto, a

música e a musicalidade foram sempre aspetos cruciais na sua arte. A importância da

componente musical para Meyerhold é definida por Law do seguinte modo:

  84  

(…) music was a vital tool of communication in the theatre, equally

as important as speech, gesture and movement. He believed music could

convey an emotional tonality or psychological coloration far more

effectively than by any other means. Meyerhold also liked music for its

ability to impose and maintain form in a production. (…) Music forced the

performer to keep within well-defined limits. Even in scenes where no

music was used, Meyerhold wanted the performer to feel time on the stage

the way a musician does'. This is one reason why he advocated a return to

the ancient system of chronométrage, the exact timing of each

performance, as a means of controlling form and tempo (LAW 1974:91).

Meyerhold encenou em 1929, com absoluto respeito pelo texto de

Mayakovsky, O Percevejo; espetáculo que veio resolver o problema de reportório em

que o teatro de Meyerhold se encontrava. Estreada a 13 de Fevereiro, esta comédia

satírica de sucesso fora dividida em duas partes distintas: a primeira, passada na

contemporaneidade; a segunda, projetada no futuro, mais precisamente, em 1979.

Para a cenografia da primeira parte, Meyerhold solicitou a colaboração de um jovem,

mas conhecido coletivo de artistas, os Kurkyniksy. A conceção cénica da segunda

parte ficou a cargo de Alexander Rodchenko, que criou um ambiente fantástico,

assético e desprovido de humor, repleto de luzes e gadgets prateados que

caracterizavam um futuro soviético completamente mecanizado, completado por

figurinos híbridos que sugeriam uma mistura de homem com robô, concebidos

também por Rodchenko, semelhantes aos de Malevich para Vitória Sobre o Sol, mas

com uma natureza militar muito mais marcada. Já os figurinos da primeira parte

foram adquiridos diretamente em lojas moscovitas para demonstrar ao público quão

feia e pretensiosa era a moda de então. Relativamente ao trabalho do ator salienta-se

a utilização de pantomima complementar ao texto de Mayakovsky, bem como uma

  85  

diferença de interpretação de uma parte do espetáculo para a outra. Na primeira

parte, que culminava nas núpcias de Ivan Prisypkin e de Elzevir Renaissance, o

trabalho do ator revestia-se de uma qualidade caricatural ao representar os vícios e

costumes da pequena-burguesia, seguindo a linha de um vaudeville grotesco (BRAUN

1998: 236).

A composição musical ficou a cargo de Dmitri Shostakovich, que havia

concebido um interlúdio para a conclusão da primeira parte do espetáculo, num tom

grotesco e tempestuoso, após o qual a ação era transportada cinquenta anos para o

futuro, bem como o protagonista, Prisypkin, descongelado como uma prova

arquelógica do passado e tratado como um animal de laboratório. A sátira, desta vez,

não se focava num passado pré-revolucionário, mas concentrava-se antes, de forma

muito mordaz, nos problemas do Estado soviético, focando não apenas os resquícios

da velha ordem que teimavam em prevalecer, mas também a conduta de alguns

camaradas que se deixavam fascinar por um estilo de vida pequeno-burguês. A

comédia foi igualmente criticada por considerarem que Mayakovsky exacerbou o

perigo de uma pequena-burguesia ainda prevalecente, mas principalmente por

assumir os contornos de uma sátira, género que deixou de ser bem recebido no

ambiente cultural soviético, sendo os principais críticos a Associação Russa de

Escritores Proletários — a RAPP. Esta associação cultural, fundada em 1925, tinha

por missão a construção de uma nova cultura soviética, em consonância com as

linhas do partido e baseada na supremacia da arte proletária, que deveria assentar no

materialismo dialético e, consequentemente, numa estética realista, facto que

esclarece a crítica feita a O Percevejo. Este espetáculo não integra a lista dos

trabalhos mais inovadores de Meyerhold, todavia, constitui um esforço de

convergência com a necessidade de espetáculos focados numa dimensão mais

contemporânea, bem como um dos resultados da procura de formas mais complexas

  86  

de teatro com peso político, numa altura em que, com o consolidar do poder

soviético e a transformação do público, as antigas formas mais rudes e simples de

agitação estilo placard, como as registadas em Mistério-Bufo, não tinham mais lugar.

Meyerhold decide encenar uma segunda comédia satírica, também de

Mayakovsky, Os Banhos, no TIM, em 1930. Com estreia a 16 de março, este "drama

em seis atos com circo e fogo-de-artifício" (BRAUN 1998: 238), não escapou à

censura do partido que viu no texto de Mayakovsky uma sátira demasiado

provocadora, opinião formada, segundo Edward Braun53, pela influência de críticos

com um peso partidário que viam na sátira um género nocivo à nova ordem social e

preferiam uma abordagem artística mais realista, sintomas que deixavam a

descoberto o aparecimento do Realismo Socialista. Ora foi exatamente esta atitude

que constituiu, juntamente com a burocracia, o principal alvo da sátira em Os

Banhos. Em algumas cenas era utilizado um grande painel, semelhante a persianas

venezianas, coberto de slogans críticos concebidos em rima por Mayakovsky que

foram igualmente distribuídos pelas paredes do auditório.

O palco, desta vez como nas primeiras produções pós-revolução de

Meyerhold, apresentava-se completamente despido, revelando a parede traseira do

edificio e toda a zona dos bastidores. O cenário, a cargo de Sergei Vahktangov,

arquiteto e filho do encenador, era composto pelos já referidos elementos de

propaganda, bem como por uma estrutura semelhante a um andaime de altura

elevada, composto por uma série de plataformas e escadarias desniveladas.

Desde o cenário, aos figurinos, passando pelo trabalho do ator, tudo se movia

entre dois pólos opostos. A nível do cenário, o pesado conforto do escritório de

Pobedonossikov, repleto de um mobiliário bruto de escritório, como uma grande

cadeira de cabedal e uma série de telefones, contrastava com a construção de

                                                                                                               53 Cf. ibidem

  87  

Vahktangov, utilizada para "ascender" rumo ao futuro. Em relação aos figurinos, o

contraste encontrava-se ao nível da diferença entre a contemporaneidade da

indumentária dos burocratas e os prozodezhda futuristas dos inventores, que

marcavam o seu regresso ao teatro de Meyerhold, após a total ausência em alguns

dos seus espetáculos. O trabalho do ator era também contrastante, novamente à

semelhança de Mistério-Bufo, construindo uma dualidade entre "puros" e "impuros",

formando dois grupos coesos, mas distintos, por meio do trabalho especifico da

linguagem — uma prosa contemporânea para os burocratas e uma poesia fantástica

para o futuro — e movimentos.

A doutrina do Realismo Socialista irrompeu pelo panorama artístico russo, por

volta de 1934, homogeneizando-o e purgando-o de todos os artistas que não se

conformavam em produzir de acordo com as orientações do Realismo Socialista,

tendo sido perseguidos e executados por não se vergarem perante a nova estética — a

única admitida — como foi o caso de Meyerhold que, em Junho de 1939, foi preso e,

a 2 de Fevereiro de 1940, executado.

3) Agit-prop e auto-ativismo

A pesada mão do Realismo Socialista não se fez sentir apenas nos teatros

profissionais, tendo sido, também, o derradeiro golpe num fenómeno que surgiu

durante os anos de Guerra Civil, logo após a Revolução de Outubro, quando, por

todo o país, se alastrou uma febre teatral de iniciativa própria e propagandista. O

teatro de agitação e propaganda54 levado a cabo por coletivos amadores operários e

estudantis, mas também por soldados do Exército Vermelho mobilizados para as

                                                                                                               54 O teatro de agitação e propaganda pode definir-se como uma forma radicalizada de teatro político cujo intuito primeiro é a transmissão de uma mensagem específica com uma ligação estreita com o contexto em que os espetáculos se inserem.

  88  

frentes de guerra, desenvolveu-se em paralelo com a vanguarda teatral russa,

movimento com o qual acabou por trocar impressões, mantendo um diálogo de

formas e conteúdo entre o mundo profissional e a dimensão amadora do teatro

russo. Salienta-se que nem todo o auto-ativismo era agit-prop, uma vez que uma

parte significativa dos coletivos amadores não tinham uma veia militante marcada e

as formas teatrais com as quais construíam os seus espetáculos estavam longe da

inovação trazida pela vanguarda ou que alguns coletivos como As Blusas Azuis

integravam nos seus espetáculos. Contudo, o inverso também se aplica — nem todo

o agit-prop era auto-ativismo — como pudemos constatar com as produções

profissionais de Meyerhold. Na enciclopédia dirigida por Dennis Kennedy55 o agit-

prop vem caracterizado do seguinte modo:

A form of political theatre which presents urgent social issues

from a partisan viewpoint by means of bold rhetorical techniques.

Agitprop aims to inform and mobilize its audience. (…) Agitprop

presentations were structured as a series of punchy and fast-moving

sketches containing references to topical and local news. Intelligibility

was ensured by sloganistic banners, songs, mass chants, heroic tableaux,

stereotyped or satirical characterizations, emblematic props and

costumes, direct address, and audience participation (KENNEDY 2003a:

38).

Este teatro, muitas vezes amador, mas sempre militante, cresceu à margem

das instituições oficiais embora, durante alguns anos, tenha sido apoiado pelo

Partido devido à dimensão didática dos espetáculos e à importância dos mesmos na

                                                                                                               55  Dennis Kennedy (ed.), The Oxford Encyclopedia of Theatre and Performance, vol.I, A-L, Oxford, Oxford University Press, 2004, p.38.  

  89  

divulgação da ideologia comunista pelas localidades mais remotas do país. Era um

teatro também fortemente anti-literário, pelo que se focava totalmente na dimensão

do espetáculo, afastado da realidade dos Teatros Académicos. Outro aspeto que o

diferenciava do trabalho de uma instituição profissional convencional era a

dimensão completamente coletiva de criação dos espetáculos, uma vez que a

seleção de temas a serem abordados em palco era feita por todos os membros tendo

em conta as necessidades de um público que se confundia com os próprios artistas

amadores. Esta prática era também alargada a todas as outras áreas que interferiam

na produção do espetáculo. Os textos, quando originais, eram redigidos

coletivamente ou por um comité criado para o efeito, e o mesmo processo era

repetido relativamente aos figurinos, música e cenografia ou qualquer outra área

necessária à feitura do espetáculo.

A prática teatral destes coletivos era condicionada por uma série de fatores,

principalmente de natureza económica, devido aos reduzidos recursos financeiros

que possuíam, obrigando à escolha de formas teatrais práticas, mas eficazes na

transmissão da mensagem, e cenários com uma forte mobilidade — já que estes

coletivos raramente tinham um sítio físico próprio, podendo atuar ao ar livre, em

quartéis, nas fábricas, em escolas, cafés, clubes de operários e em qualquer espaço

que lhes disponibilizassem — muitas vezes simples e reduzidos a uma tela com

formas geométricas pintadas ou alusivo à representação, mas raramente realista,

complementada com alguns adereços, como posters de propaganda ou objetos que

ajudassem a caracterizar o espaço cénico ou os atores em personagem.

O seu caráter amador estava presente também no estilo de representação,

que, regra geral, não se apresentava de forma convencional ou marcada, baseando-

se frequentemente no improviso. O trabalho do ator, que tinha muitas vezes uma

dimensão física acentuada — o que explica a influência que a biomecânica teve em

  90  

alguns dos coletivos — pretendia despertar no espectador uma atitude crítica e não

tanto apelar ao seu lado mais emocional, o que nos recorda, em parte, o estilo de

representação brechtiano que viria a ser desenvolvido poucos anos depois. As

produções eram feitas de modo a chegar ao máximo de pessoas possível, o que

implicou uma adequação a um público que, nos primeiros anos do regime, era muito

pouco letrado ou até mesmo analfabeto, originando espetáculos simples, curtos,

construídos a partir de rudes dicotomias e com linguagem acessível e clara. Os

temas abordados brotavam do contexto social e político do seu tempo e eram quase

sempre fruto das necessidades da população, ou do Partido, na construção da nova

ordem social, pelo que se centravam sempre em assuntos com aplicação prática — o

que demonstra também na dimensão amadora uma queda para uma arte utilitária —

da mais variada natureza e em consonância com o novo regime. Salientam-se, aqui,

apenas alguns dos temas normalmente abordados, como boas práticas de higiene,

práticas de agricultura, assuntos de política interna e internacional, a emancipação

da mulher, mobilização da população por uma causa, luta anti-religiosa,

consolidação da imagem do Exército Vermelho, as cooperativas, o alcoolismo, a

importância da alfabetização, etc...

O desenvolvimento do agit-prop compreendeu três fases distintas: uma

primeira, de 1917 a 1921, que correspondeu à sua aparição de forma espontânea

numa época de grande convulsão social; uma segunda fase, a intermediária, de 1922

a 1926, caracterizada por uma reorganização do género e inserção do mesmo no

aparelho cultural institucional; e uma terceira, e última, fase, de 1927 a 1932, em

que se regista uma decadência progressiva, pela sua natureza contrária ao Realismo

Socialista (BABLET 1977: 15-16). Na primeira fase, vivida nos anos do comunismo

de guerra, a proliferação de coletivos amadores foi, como já aqui se referiu, muito

intensa, pelo que a sua abundância impossibilita um levantamento exaustivo dos

  91  

mesmas, de maneira que apenas se salientaram alguns, escolhidos pela sua

importância, alcance e influência na criação de mais círculos auto-ativos e de

agitação e propaganda, bem como pelas suas formas inovadoras. São eles, o TRAM

e As Blusas Azuis.

O TRAM — ou o Teatro da Juventude Operária — surgiu, oficialmente, em

1925, na cidade de Leninegrado, como fruto de um clube dramático de sucesso,

criado em 1919 pela mão de jovens ansiosos por participarem ativamente na

construção e consolidação do então recente regime soviético, mas cuja idade os

impedia de combater nas frentes da Guerra Civil. Muitos dos seus membros

integravam o Komsomol — a juventude comunista —, mas outros tantos eram

apenas simpatizantes, embora todos desejassem ser mais agitadores do que artistas.

O TRAM foi, desde os seus primeiros passos até ao seu desaparecimento, passando

por um processo de profissionalização, sempre liderado pela visão artística de

Mikhail Sokolovsky. Num primeiro momento o TRAM focava-se essencialmente

em temas de agitação política, passando, a partir de 1926, a dedicar-se quase

exclusivamente à agitação dos costumes, influenciando a forma de viver da

juventude de Leninegrado. Apesar de ter sido fundado com um espírito de auto-

ativismo exclusivamente amador e inteiramente dedicado à juventude, como

salientou Rudnitsky:

[t]he theatre's programme presupposed that only productions

dedicated to the lives of young workers would be produced on its stage,

and that only the young workers themselves would collectively create

these productions, writing the plays and performing them as well.

TRAM's stage categorically renounced the desire to have anything in

common with 'real' theatres: the plays of professional dramatists and the

  92  

skills of professional actors were both rejected (RUDNITSKY 2000:

203).

O TRAM acabou por se profissionalizar, em 1928, sob a égide de

Sokolovsky, recebendo o estatuto de Teatro de Estado, com todos os benefícios e

aspetos negativos que isso implicava. Por um lado, o apoio financeiro era maior e

conquistaram um espaço físico próprio, por outro, o seu reportório começou a ser

condicionado, principalmente a partir de 1934, com a imposição das diretrizes do

Realismo Socialista, que levou a uma reestruturação do coletivo. Para que este

encaixasse melhor no novo programa estético do regime o TRAM de Leninegrado

viu-se obrigado não apenas a encenar os clássicos e autores soviéticos consagrados

em vez de continuar a produzir os seus próprios textos, bem como a criar

espetáculos realistas com um trabalho de ator em concordância, mais

individualizado e com uma marca psicológica forte. A sua natureza e missão

originais foram, deste modo, postas em causa, e o TRAM, já em declínio, foi, em

outubro de 1936, fundido com o Teatro Vermelho, dando origem ao Teatro de

Estado da Juventude Comunista Leninista.

O TRAM organizava-se em "grupos" especializados em cada uma das áreas

que intervinham na concepção e produção dos espetáculos sempre com o objetivo

comum de propaganda. Para além do grupo dramático e do grupo literário, havia

também uma secção de artes plásticas, onde a pintura convencional de cavalete,

embora tivesse o seu lugar era relegada para segundo plano, pois era dada

preferência a formas mais inovadoras e práticas de expressão plástica que serviam,

após concretização, não apenas para a decoração de clubes locais e espaços

públicos, mas também para a feitura dos próprios espetáculos. Tarefa semelhante

estava guardada para o setor da dança e música, sendo esta última utilizada de

  93  

forma diversa nos espetáculos, podendo ser mero acompanhamento, mas também

completar a caracterização de personagens e fazer a ligação entre episódios. O teatro

não era, como podemos constatar, a única atividade deste coletivo, uma vez que

tinha, também, por objetivo a dinamização da vida social e cultural da cidade, tendo

igualmente preocupações ao nível da educação cívica e política, da qual constituem

bons exemplos os debates públicos promovidos em torno dos temas mais

significativos para a juventude soviética.

Foi da criatividade dos seus membros que nasceram os textos encenados

pelo TRAM desde a sua estreia, que aconteceu, mais precisamente, a 21 de

novembro de 1925, com um original de Arkadi Gorbenko, um jovem de raízes

operárias, Sachka, A Peste, uma peça de costumes que retrata a história de um

jovem rebelde e indisciplinado, a quem o estudo pouco ou nada diz e cujas

companhias são apresentadas como prejudiciais. Seguiram-se muitas outras peças,

entre as quais se salientam Tempestade na Fábrica, de 1926, de Dmitri Tolmatchev,

uma peça de agitação construída a partir da habitual dicotomia proletariado versus

inimigos de classe; A Rotina Quotidiana, do mesmo ano — apresentada mais de

duzentas vezes, número demonstrativo do seu sucesso — que aborda a dificuldade

de adaptação à realidade de um trabalho quotidiano monótono vivida por um jovem

que inicia a sua vida ativa já no período da NEP, fruto de uma parceria entre Moura

Kachevnik e Pavel Marintchik. Também de 1926, Uma Pequena Burguesa de Pavel

Marintchik — onde são abordados temas como a emancipação da mulher e a sua

relação com o novo regime, a igualdade entre os sexos e a boa conduta no

matrimónio — e uma segunda contribuição de Gorbenko, em 1927, intitulada O

Padrinho ou Sachka, A Peste no Campo, onde é resgatada a figura do jovem

rebelde.

  94  

Os temas destes, como de todos os textos apresentados pelo TRAM de

Leninegrado, brotavam, não da inspiração dos seus autores, mas das discussões

promovidas entre os seus membros. Uma vez aceite, pela coletividade, como um

tema útil e representativo dos interesses dos jovens, era iniciado um processo de

construção do espetáculo — sempre em grupo — partindo da busca de formas

cénicas, bem como de uma linha a seguir no desenvolvimento do raciocínio que

culminaria na transmissão da mensagem principal ao público (BABLET 1977a: 113).

Nestas discussões coletivas, todos os membros participavam, desde os autores aos

atores, passando pelos músicos, cenógrafos e técnicos de palco. Os assuntos

tratados, sempre ligados, como já foi referido, à vivência da juventude, dividiam-se

entre os costumes e os temas de propaganda política e industrial. Todos estes temas

eram trabalhados de forma aberta, dando origem a espetáculos, de certa forma,

incompletos, o que pressupunha uma participação ativa e crítica dos espectadores,

ou seja, um espetáculo do TRAM nunca se apresentava como fonte hermética de

soluções, mas antes como um espaço de problematização de questões essenciais à

vida, de maneira a fomentar o debate público, que, de resto, acompanhava quase

sempre as suas produções, tendo lugar no final da representação.

Os personagens que habitavam o reportório do TRAM eram, quase sempre,

jovens comunistas de proveniência operária, alguns divididos entre hábitos antigos e

novos costumes, gerados com base nas contradições da nova sociedade soviética,

espelhando conflitos profissionais, familiares e amorosos. Estas personagens

esquemáticas, com pouca consistência dramática, nem sempre se apresentavam

donas de uma conduta exemplar; característica propositada, uma vez que assumiam

uma função didática, fazendo crítica de costumes em palco, onde ostentavam

atitudes contraditórias, embora adequadas ao meio social em que se inseriam.

Contudo, nunca assumiam uma dimensão psicológica nem apresentavam traços de

  95  

individualização, sendo mais semelhantes a máscaras sociais, como constatou

Amiard-Chevrel:

Les auteurs ne cherchent d'ailleurs pas du tout à montrer les

variations subjectives d'un être complexe dans une situation donnée, mais à

soumettre au jugement collectif des comportements caractéristiques de leur

groupe social, mis en situation. Ces personnages 'dialectiques' selon le terme

des animateurs sont l'une des originalités du TRAM et ont prête le flanc aux

attaques de ses ennemis (BABLET 1977a: 115).

A marca da diferença do TRAM, ou seja, a sua qualidade auto-ativa

demarcada da dimesão profissional do teatro, revelou-se, também, na atitude do

coletivo em relação aos seus intérpretes. A palavra "executante" era preferida em

detrimento de "ator", o que, de certa forma, também distanciava o trabalho do

jovem coletivo do teatro do passado, posição demonstrativa da aversão por tudo o

que era reminiscente da velha ordem. O trabalho do executante não assentava numa

dimensão psicológica e individualizada, mas antes no trabalho do corpo — à

maneira meyerholdiana — : dinâmico, ritmado e exigente. Inicialmente os

executantes eram amadores pouco versáteis, mas competentes para o estilo de

representação que surgiu naturalmente nos espetáculos do TRAM. As exigências

feitas ao executante ideal constituem uma boa caracterização do trabalho de

representação feito nos espetáculos do coletivo:

Un interprète tramiste doit savoir parler, discuter, convaincre, sur

scène et dans la vie, avec un texte préparé avec ses propres phrases: il doit

savoir chanter, pratiquer les jeux de masse et la danse populaire, et

organiser des ensembles auto-actifs en ce sens, et toujours le faire bien, en

  96  

bon ouvrier de choc. Il doit posséder son corps et ses mouvements par un

entraînement gymnique et acrobatique (BABLET 1977a: 120).

Todavia, a profissionalização do coletivo trouxe novas exigências e pôs a

descoberto as fraquezas dos intérpretes, notórias fora do estilo habitual. Até então

haviam sido operários de dia e executantes de noite, mas depois de 1925 foi-lhes

exigida não apenas uma dedicação exclusiva ao TRAM, passando a ser

remunerados pelo trabalho de interpretação, mas também um maior domínio da sua

técnica. A incapacidade para a representação naturalista levou à criação de um

programa de ensino, com uma duração de três anos, cujo programa incidia

principalmente no treino de voz e elocução, embora abordasse também história do

Teatro, desporto e cultura física, dança, música e algumas técnicas particulares

como o improviso, a pantomima, caracterização do ator, etc.

As produções do TRAM, apesar de se revestirem, frequentemente, de

características próprias das peças de costumes, não se encaixavam nos tradicionais

moldes cénicos utilizados para encenar peças daquela natureza, uma vez que

constituíam não apenas uma síntese do trabalho de cada um dos grupos do coletivo

— que concertavam os seus esforços de forma específica para cada espetáculo

encenado, embora as formas de que se revestiam não sofressem muitas alterações de

espetáculo para espetáculo — mas também pela sua natureza híbrida de teatro de

agitação e teatro de vanguarda. De forma sucinta, pode-se dizer que a técnica —

cenografia, iluminação, sonoplastia e trabalho de ator — utilizada pelo TRAM

nascia do contacto com a vanguarda profissional, mas o seu espírito e missão era

comum ao teatro de agitação e propaganda. Nos espetáculos do jovem coletivo,

eram introduzidas peças musicais cantadas e comentários ao diálogo, bem como

momentos de dança e de exibição física que afastavam as produções do TRAM das

  97  

tradicionais peças de costumes. Outro aspecto característico dos seus espetáculos

prende-se com a interrupção do diálogo de maneira a dar-se uma comunicação

direta entre executantes e público a quem era explicada ou evidenciada uma questão

importante, como faria um conferencista. Outros espetáculos apresentavam-se mais

na linha do jornal vivo de A Blusa, abordada com maior pormenor mais à frente56,

sendo constituídos por uma sucessão rápida de episódios, comunicados e paradas

coletivas (BABLET 1977a: 116). Em alguns espetáculos faziam uso dos novos meios

de comunicação, seguindo as experimentações dos teatros profissionais de

vanguarda com linguagem e ritmos cinematográficos e atribuindo também à rádio

um papel de destaque.

Apesar da diversidade de formas, todos estes espetáculos partilhavam uma

disrupção da linearidade cronológica, sendo constituídos, por meio da sucessão de

episódios de duração díspar que misturavam espaço e tempo, através de um

processo de montagem. As cenas, apesar de fragmentadas, não apresentavam

validade individual como episódios independentes, uma vez que só quando

articuladas entre si é que faziam sentido. Desta maneira, os espetáculos do TRAM,

fruto, como já foi referido, da fusão do teatro de agitação e da experimentação dos

teatros profissionais de vanguarda, apresentavam-se como debates — fazendo

lembrar o estilo de The Dawn57. Este estilo é caracterizado por Amiard-Chevrel da

seguinte forma:

[l]a fable traditionnelle est brisée au profit d'une construction

'dialetique'; les personnages ne sont pas des 'caractères', psychologiquement

justifiés, dont le destin attire le public; chaque personnage est une 'unité

                                                                                                               56  Vid. p.99.  57  Vid. p.57.

  98  

dialectique de contradictions' qui aide le public à comprendre et à résoudre un

problème politique le concernant (BABLET 1977a: 117).

Ao conseguir um espaço próprio, em 1925, após o processo de

institucionalização, a necessidade de mobilidade deixou de condicionar as

produções do TRAM, principalmente a nível cénico. A cenografia do TRAM

baseou-se, num primeiro momento, na apresentação de um mínimo essencial de

acessórios em palco que ajudavam à caracterização dos lugares cénicos, à frente de

um simples pano de fundo meramente sugestivo. No entanto, o cenário

complexificou-se com a estabilização num local próprio, passando a apresentar

elementos simples de inspiração construtivista, como uma escadaria, utilizada no

espetáculo Tempestade na Fábrica, que serviu de base para a dimensão física do

trabalho do executante, mas também estruturas mais intrincadas como a utilizada

em Pierrot la Cloche Réfléchit composta por escadarias que ligavam plataformas

desniveladas e semi-cilindros de metal rebitado que tanto eram apresentados do seu

lado côncavo como do convexo assinalando interiores e exteriores.

O TRAM de Leninegrado foi um verdadeiro sucesso, constituindo não

apenas um marco importantíssimo no auto-ativismo, mas também uma forte

influência na juventudo facto constatado pela criação de vários TRAMs por toda a

Rússia soviética. Tal como o TRAM, também A Blusa Azul de Moscovo deu

origem a imensos coletivos semelhantes por todo o território russo.

As Blusas Azuis foram coletivos artísticos ambulantes, abertamente

políticos, direcionados para espetáculos de agitação e propaganda que, durante os

anos vinte, surgiram por toda a União Soviética, sendo a moscovita a primeira,

constituindo o modelo seguido por todas as outras que foram posteriormente

instituídas. Criada em outubro de 1923, por Boris Yuzhanin, o seu nome deriva dos

  99  

figurinos usados em palco por todos os seus membros, que tiveram origem nas

prozodezhda de Meyerhold. Eram fatos de trabalho, de cor azul, que substituíam os

figurinos convencionais, uniformizando o coletivo em palco e permitindo, também,

mobilidade total e economia de tempo na caracterização. Este coletivo deu os seus

primeiros passos em atuações que tinham lugar em clubes operários e cantinas

fabris. Ligada, desde a sua fundação, ao Instituto de Jornalismo de Moscovo, —

embora tutelada, a partir de 1924 pela União dos Sindicatos de Moscovo —, A

Blusa moscovita organizou um periódico próprio que contou com oitenta fascículos

onde constam reproduções dos melhores sketches apresentados em palco, bem como

fotografias e indicações cénicas.

A história do coletivo pode ser esboçada com o foco em três fases distintas,

descritas por Claudine Amiard-Chevrel58, pelas quais A Blusa passou. A primeira,

compreendida entre 1923 e 1926, é a verdadeira fase do jornal vivo, em que este foi,

juntamente com o sketch de agitação política, a forma exclusiva de espetáculo

utilizada pel'A Blusa. O conteúdo destes espetáculos, compostos por uma espécie de

resumo das questões atuais, seguido de um número especial dedicado a um aspeto

particular, era essencialmente político e inspirado nas questões contextuais, sempre

ligadas à vida dos operários locais. Apesar do seu nome, jornal vivo, na prática, o

espetáculo não assumia a forma de um verdadeiro jornal impresso, embora

oferecesse alguma variedade de 'artigos'. Durante este primeiro período o processo

de construção dos espetáculos era verdadeiramente coletivo, uma vez que tinha

início no círculo dos correspondentes que recolhiam a informação — ou

diretamente do meio local em que a Blusa se inseria ou a partir de telegramas da

ROSTA — e que, em seguida, a facultavam ao círculo literário que procedia a uma

                                                                                                               58 Cf. Claudine Amiard-Chevrel, "La Blouse Bleue" in Théâtre Années Vingt, Le Théâtre d'Agit-Prop de 1917 -

1932, Tome I: L'URSS - Recherches, Denis Bablet et. al. (dir), Lausanne, La Cité, 1977, pp.99-109.

 

  100  

seleção de temas que depois trabalhava de forma cénica. O círculo dramático e o

musical ficavam, posteriormente, encarregues da representação e interpretação do

espetáculo, sempre em estreita colaboração com o círculo de artes plásticas, cuja

principal função era a cenografia.

A segunda fase, que compreende os anos 1927 e 1928, apresentou uma

transformação dos métodos e tom utilizados pela Blusa nos seus espetáculos, que já

não se encontravam limitados apenas ao jornal vivo e peças de agitação política. O

aparecimento de géneros mais diversos aplicados à realidade soviética, como a

revista, o vaudeville, operetas, melodramas e comédias ligeiras, números

humorísticos de variedades, etc., foi motivada por um reconhecimento, pela parte do

poder, do esgotamento do simples trabalho de agitação que animava A Blusa na sua

primeira fase. Esta intervenção implica uma quebra na iniciativa própria do

coletivo, bem como uma maior exigência artística, que se acentuou na terceira e

ultíma fase da vida deste coletivo, que teve lugar entre 1928 e 1930, durante a qual

o peso do controlo da União dos Sindicatos de Moscovo, organismo que tutelava a

Blusa desde 1924, aumentou consideravelmente.

No entanto, durante a sua fase de maior atividade independente, As Blusas

pretendiam combater tanto a preocupação estética pura, como a agitação desprovida

de formas cénicas e literárias apropriadas, procurando construir espetáculos

equilibrados, que fossem simultaneamente plenos de conteúdo e completos no que

toca à dimensão cénica e performativa, optando, deste modo, por recorrer a técnicas

desenvolvidas pela vanguarda, passando, também, pela herança do teatro popular

russo, bem como por formas próprias como o living newspaper, ou "jornal vivo".

Esta forma, uma espécie de teatro documento, surgiu por necessidade, nos círculos

operários e clubes de província, dado que o grosso da população russa era iletrada e,

consequentemente, impossibilitada de se manter atualizada em relação aos

  101  

acontecimentos importantes do seu tempo. Perante esta incapacidade surgiram

leituras públicas dos periódicos diários que foram tornadas mais complexas

progressivamente, tendo sido introduzidos elementos que captassem melhor a

atenção dos ouvintes, tornando as leituras mais dinâmicas e mais próximas dos

espetáculos de A Blusa, que, normalmente, combinavam a representação dos

assuntos noticiosos, divididos em episódios de curta duração e auxiliados por

elementos pictóricos como posters e slogans que integravam os cenários, com

acrobacias e números de dança musicados.

Contudo, A Blusa Azul não se pautou apenas por formas por ela criada,

como já foi referido, buscando na tradição popular uma série de formas menores

que integrou nos seus espetáculos de maneira adaptada, tendo uma atitude próxima

de Meyerhold, com quem partilhavam um olhar crítico sobre a herança cultural,

selecionando o que nela encontravam de mais apelativo para depois adaptar à nova

realidade soviética. Nessa incursão pelo passado, A Blusa recuperou géneros como

o melodrama, a opereta, o guignol e o vaudeville, bem como algumas ténicas

circenses e personagens típicas do imaginário popular russo. Todavia, essas

pequenas formas, que substituíram gradualmente o jornal vivo, não foram apenas

fruto de um trabalho de recuperação, uma vez que também nasceram de uma atitude

inovadora, como é o caso do cabaret rouge, processo de agitação, peças alegóricas,

entre outras.

Os espetáculos de A Blusa, nos primeiros anos da sua existência, em que o

jornal vivo era o cerne, apresentavam uma estrutura fixa, cujo início era marcado

por uma entrada coletiva dos atores em palco — acontecimento semelhante a uma

parada militar — ao som de uma marcha, constituindo, assim, o primeiro de muitos

momentos musicais que surgiam ao longo do espetáculo, visto que todos os temas

principais eram, muitas vezes, apresentados em forma de canção. Um resumo do

  102  

tema principal era apresentado, após a entrada em cena dos atores, em jeito de

editorial de um jornal, que, por sua vez, era seguido da exposição dos temas

secundários, feita de forma breve. Em seguida, passavam pelo palco crónicas

diversas, artigos críticos, telegramas e um ponto de situação da política

internacional, bem como monólogos ritmados, tanto em prosa como em verso, que

abordavam hábitos e costumes. Havia também uma rubrica humoristica que

antecedia o final do espetáculo, assinalado por uma parada semelhante à inicial, por

meio da qual todo o elenco abandonava o palco.

Os personagens que animavam os espetáculos de A Blusa eram máscaras

sociais e personificações da mais variada natureza, não havendo lugar para qualquer

caracterização individual, geralmente divididas numa simples dicotomia de

revolucionários e inimigos de classe. Os temas que estas personagens apresentavam

variaram consideravelmente ao longo dos anos, visto que eram fruto de um

contexto específico, selecionados em função da situação internacional, bem como

da realidade social e política russa. Não divergiam muito do que foi já

anteriormente referido como temas comuns aos coletivos de agit-prop. Num

primeiro momento, em que o jornal vivo era a forma eleita de espetáculo, os temas

tinham um forte cunho político, mas, a partir de 1927-1928, essa dimensão política

perde força e A Blusa segue um novo rumo, mais focada nos costumes, chegando,

por vezes, a abandonar por completo os temas de agitação. Tal como Meyerhold,

também A Blusa acedeu ao apelo anti-burocrático do Partido, tendo-se dedicado, de

forma semelhante, aos problemas de industrialização a partir de 1929-1930. No

âmbito deste último tópico, abordavam temas concretos e práticos, como técnicas

de trabalho e produção fabris, ritmos de produção, a presença das mulheres nas

unidades fabris e toda uma panóplia de assuntos relativos à indústria. No processo

evolutivo dos temas abordados pelo coletivo operário é notória uma inversão da

  103  

forma de tratamento dos temas, uma vez que, inicialmente, lutavam por alcançar

objetivos, promovendo assuntos, ao passo que, nos seus últimos anos de atividade,

A Blusa optou por um método mais combativo, batendo-se contra um assunto

específico, usado esporadicamente por entre números de divertimento puro.

No que toca à composição dos textos, salienta-se a brevidade, a clareza e a

linguagem simplificada — embora muitas vezes sob a forma de verso adaptado à

voz coletiva — que os revestiam de uma qualidade próxima do cartaz de

propaganda política. Estes textos eram frequentemente baseados na dicotomia

inimigos da classe / proletariado russo e seus aliados, que seria depois adaptada

consoante as necessidades trazidas pelo tema abordado, fosse ele um evento

político nacional ou internacional. Os diálogos que constituíam os textos eram

construídos sobre a premissa de personagens apresentadas como máscaras sociais, o

que implicava resumirem-se, muitas vezes, a uma síntese pré-concebida das

posições de cada um dos tipos sociais consoante o tema do episódio em questão.

Relativamente à representação destes espetáculos, salienta-se a importância

capital do trabalho do ator, que se regia por uma recusa do apelo ao lado emotivo

dos espectadores — recusa, essa, reiterada pelo conteúdo do texto — e foco na

racionalidade crítica do público. O ator de A Blusa, completamente afastado de uma

atitude criadora da ilusão, não deveria ser um ator versado na expressão do

psicológico, como preferiria Stanislavksy, mas antes, de uma maneira mais próxima

à conceção meyerholdiana, um intérprete com uma capacidade física e domínio

corporal excelente, complementadas por uma versatilidade absoluta. Todavia, o

intérprete ideal de A Blusa não deveria ser apenas um agitador puro, versátil e capaz

de se integrar na coletividade, pois havia, também, a preocupação da existência de

convicções políticas marcadas aliada a uma conduta moral irrepreensivel à luz da

ética proletária e costumes soviéticos, mesmo fora do palco. O palco, esse, era

  104  

regido por uma necessidade de mobilidade e adaptabilidade, bem como por recursos

financeiros escassos, restrições que se traduziam na ausência de qualquer

construção cénica. Amiard-Chevrel recorda o habitual cenário de A Blusa da

seguinte maneira:

Sur un fond de rideaux, des affiches, des placards, des panneaux

légers surgissent au moment opportun, posés ici ou là, accrochés à un

costume, tenus par un acteur. Quelques accessoires symboliques en carton

peint, des bancs ou des chaises dont les combinaisons permettent des effets

infinis — tels sont les seuls éléments de décor. Les placards et les calicots

portent des inscriptions, des chiffres, des diagrammes, un drapeau national

pour iindiquer un pays, le nom du personnage que l'acteur incarne.

(BABLET 1977a: 106)

A Blusa não se preocupava com movimentos ou correntes estéticas, pelo que

os seus espetáculos eram feitos com recurso às mais variadas formas sem qualquer

tipo de restrição, havendo, no coletivo, uma predileção especial pela voz, pelo

movimento, assim como pelo recurso à tradição popular (BABLET 1977a: 106). A

voz mantinha uma presença marcada devido às origens do jornal vvo, que deixou

nos espetáculos de A Blusa a marca da recitação, levada a cabo de forma alternada,

por um intérprete individual e pela voz coletiva. No entanto, a voz não se esgotava

na palavra falada, visto que os espetáculos tinham, também, números musicais. As

"leituras" quer corais, quer individuais, eram marcadas por uma elocução dinâmica,

que dividia o texto consoante o sentido do mesmo, ritmando-o de maneira a

destacar-lhe as principais ideias, com a ajuda, também, de pausas enfatizantes e

entoações apropriadas. A declamação era frequentemente acompanhada de música

  105  

— elemento também importante para o coletivo que tinha uma secção encarregada

apenas dessa tarefa —, criada por um piano e um acordeão ou, ocasionalmente, por

uma pequena orquestra, que pautava o ritmo da produção.

O movimento era um dos componentes mais importantes do jornal vivo — o

que reforça a tónica posta no trabalho do ator pela ausência de uma cenografia

elaborada — e organizava-se pelo sentido global do texto representado e não tanto

pelo conteúdo de cada segmento. A movimentação dos atores tomava as mais

variadas formas, gravitando entre a dança e a acrobacia, com ritmos diversos,

chegando até à mímica — do movimento das máquinas fabris, por exemplo —

passando pelo clown. Deste modo, compreende-se melhor a aproximação do

trabalho do ator de A Blusa à teoria da biomecânica, bem como a estética

profundamente anti-realista dos espetáculos deste coletivo.

V. DADA

O movimento Dada surgiu, oficialmente, em 1916, no ambiente neutro de

Zurique, pela mão de um casal alemão, Hugo Ball e Emmy Hennings, que havia

abandonado o seu país de origem motivado pela conjuntura política e social de uma

Europa em plena Grande Guerra. O entretenimento noturno oferecido pelos cabarés

era já popular na Munique que abandonaram, cuja vida era caracterizada, em parte,

por um meio artístico bastante boémio, realidade estranha à cidade em que

posteriormente se instalaram e onde criaram o Cabaret Voltaire, marco

importantíssimo na história do movimento, que se revestiu de traços partilhados

com a filosofia iluminista e com a espontaneidade do cabaré (DACHY 2005: 11).

  106  

Originado sob a influência do cruzamento do abstracionismo pictórico e da

vanguarda poética, Dada proclamava uma insurreição total, pretendendo obter

repercussões a nível social e político, mas também na mentalidade das pessoas,

através da renovação completa do conteúdo, das formas e dos processos de criação

artística. Dada foi, da mesma forma, um fruto do grito de revolta de uma juventude

profundamente afetada pelas consequências devastadoras da I Grande Guerra e que

apresentava como objetivo primeiro fazer tábua rasa dos valores sociais e políticos

que haviam conduzido o velho continente ao estado de devastação e sofrimento em

que se encontrava. A expressão dessa revolta tomou como suas formas elementares,

produzindo uma arte que se apresentava revestida de uma certa ingenuidade pueril,

aspeto que se reflete, desde logo, no batismo de um movimento59 que pretendia,

também, dar origem a uma crise no seio da própria Arte. Todavia, a tomada de

posição destes artistas estava longe da ingenuidade que caracterizava as suas

criações, uma vez que constituíam uma arte radicalmente nova cujo caráter

revolucionário extravasava a dimensão estética atingindo o domínio do político.

Recorrendo, como tantos outros movimentos de vanguarda, ao manifesto

para expôr as linhas mestras do seu programa, o DADA fez uso para o efeito, da

mão de Hugo Ball em 1916 e, posteriormente, em 1918, da de Tristan Tzara. No

manifesto de 1916 a incidência sobre a palavra e a linguagem é bastante clara,

demonstrando uma preocupação mais literária, embora se apresente Dada, logo nas

primeiras linhas, como uma nova tendência artística que se tornaria, por certo,

rapidamente popular. Ao longo do texto constata-se frequentemente a importância

                                                                                                               59  Apesar de haver várias versões acerca da génese do nome do movimento, que variam consoante a fonte do

testemunho, é geralmente aceite a ideia que tem por base o acaso, tendo sido o nome retirado de um Larousse de

forma aleatória, tendo apenas por critério uma sonoridade que assentasse bem na grande maioria das línguas e

que não fosse uma palavra corrente com um significado fixo. Assim, Dada foi o termo escolhido "parce qu'il

représentait ce sentiment de naïveté, ce sens de pureté, d'art naturel, d'art intuitif" (DACHY 2005: 15-16).  

  107  

da simplicidade como uma das principais características do movimento que se

mostrou, também, como a solução para a cisão com a racionalidade ocidental; para

a rutura com o jornalismo banalizador da linguagem e com a ordem e moral

burguesas. Relacionada com a banalização da palavra encontramos outra questão

essencial no manifesto de 1916: a desconstrução da linguagem como veículo de

inovação. Ball foi uma das figuras capitais no processo, por meio dos seus poemas

sonoros, apresentados da seguinte forma no já referido manifesto:

I shall be reading poems that are meant to dispense with conventional

language, no less, and to have done with it. (…) I don't want words that other

people have invented. All the words are other people's inventions. I want my

own stuff, my own rhythm, and vowels and consonants too, matching the

rhythm and all my own.60

Já o manifesto de Tzara, de 1918, consideravelmente mais longo e ilustrado,

contém informação um pouco mais objetiva acerca deste novo sintoma. Nele, Tzara

expressa também o desejo de rutura lado a lado com a necessidade de uma

transformação completa da sociedade em que se inseriam, assim como uma crítica à

moral e valores burgueses. Digno de nota é, também, a descrição que faz do novo

artista; do artista DADA:

The new painter creates a world whose elements are also its

means, a sober, definitive, irrefutable work. The new artist protests: he

no longer paints (symbolic and illusionistic reproduction) but creates

directly in stone, wood, iron, tin, rocks, or locomotive structures

                                                                                                               60  Vid. http://www.ubu.com/papers/ball_dada-manifesto.html

  108  

capable of being spun in all directions by the limpid wind of the

momentary sensation.61

Contudo, Tzara não se cinge ao artista, uma vez que aborda, muito

brevemente, a questão do espectador, do recetor da obra de arte, que, apesar de

pouco desenvolvida, permite já notar uma certa vontade de mudança em relação ao

tradicional estatuto passivo, mostrando uma atitude que pretende torná-lo mais

autónomo, mais ativo.62 Ao longo do texto de 1918 há, também, um reforçar quase

constante da importância da subjetividade e do individuo, preferido em detrimento

da comunidade em relação à qual mantinham uma atitude de desconfiança. A

apologia da liberdade, da simplicidade, da espontaneidade e da sensibilidade está

também presente, bem como uma revolta contra a estética realista, a psicologia e a

lógica. Num testemunho separado do manifesto, mas igualmente significativo,

Tzara caracteriza Dada como detendor de

(…) un but humain, un but éthique extrêmement prononcé! L'écrivain

ne faisait aucune concession à la situation, à l'opinion, à l'argent. (…) Dada

n'était seulement l'absurde, pas seulement une blague, Dada était l'expression

d'une très forte douleur des adolescents, née pendant la guerre de 1914 et

pendant la souffrance. Ce que nou voulions, c'était faire table rase des valeurs

en cours, mais, au profit, justement, des valeurs humaines les plus hautes...

(DACHY 2005: 34).

Em termos práticos o Dada expressava-se através de novas formas de

produção artística, sendo a colagem e o acaso as mais significativas. A colagem era

                                                                                                               61  Vid. http://www.ubu.com/papers/tzara_dada-manifesto.html  62  "This world is neither specified nor defined in the work, it belongs, in its innumerable variations, to the spectator", ibidem.

  109  

utilizada muito frequentemente, tanto a nível das artes plásticas, como também de

produção de texto, sendo um bom exemplo desta última aplicação os poemas que

Tzara foi convencido a construir através de recortes de palavras, em vez de

caligrafados. O acaso era, do mesmo modo, um processo legítimo de produção

artística, utilizado, alguns anos mais tarde, de forma sistemática, por Marcel

Duchamp.

Ball e Hennings, apesar de fundadores do Cabaret Voltaire, não foram os

únicos impulsionadores deste movimento que, após um período de forte

internacionalização — o Dada marcou presença também em Berlim, Paris, Nova

Iorque e até em Tóquio — conheceu o início do seu declínio em 1922 — na

"Conferência sobre Dada" em que Tristan Tzara proclamou a morte do movimento

— que viria a acentuar-se no ano seguinte. Juntamente com Tristan Tzara, Jean Arp,

Richard Huelsenbeck, Sophie Taeuber e Marcel Janco, Ball e Hennings criaram e

dinamizaram um espaço de expressão artística livre e subjetiva, mais literária e

pictórica que teatral, embora com uma componente performativa muito grande,

ligado à tradição do cabaré.

O Cabaret Voltaire, cuja atividade tinha como objetivo assinalar a existência

de uma realidade alternativa ao conflito bélico e patriotismo que inundavam a

Europa daquela época, bem como às convenções artísticas burguesas, fora decorado

com os contributos dos artistas que acudiram ao anúncio de Ball, formando um

coletivo de indivíduos independentes, que pretendiam reger a sua vivência por

novos ideais. O Voltaire não se limitava a ser um espaço de mostra da aplicação

prática do Dada às artes plásticas, uma vez que constituiu, também, palco para as

soirées de leitura performativa que rapidamente agitaram a vida cultural de Zurique.

A noite de estreia, a 5 de fevereiro de 1916, marcou o início de uma curta vida — o

  110  

cabaré, contrariamente ao movimento, durou apenas cinco meses —, que atraiu uma

multidão para a sua pequena sala, foi publicitada da seguinte maneira:

Cabaret Voltaire. Under this name a group of young artists and writers

has been formed whose aim is to create a centre for artistic entertainment.

The idea of the cabaret will be that guest artists will come and give musical

performances and readings at the daily meetings. The young artists of

Zurich, whatever their orientation, are invited to come along with

suggestions and contributions of all kinds (GOLDBERG 2010: 56).

Esse primeiro espetáculo aconteceu com a presença de uma pequena

orquestra de balalaikas que entoavam canções populares russas, acompanhadas de

números de dança tradicional, ao qual se seguiu um número musical em francês

oferecido por Emmy Hennings e leitura de poemas originais por parte de Tzara,

escritos em romeno, a sua língua materna. Muitas noites semelhantes à primeira se

seguiram, por vezes dedicadas a uma nacionalidade específica — como noites

russas ou francesas — em que foram recitados poemas de Kandinsky, Blaise

Cendrars, Laforgue, entre outros, alternados com números musicais. Salienta-se,

também, a leitura de Ubu Roi de Jarry, por Jean Arp, a 14 de março de 1916, no

âmbito de uma noite francesa.

O material para estas soirées era recolhido do trabalho individual de cada

um dos artistas de um coletivo que se forçava constantemente a inovar a sua

produção. Foi sob a égide deste esforço que surgiram, pela primeira vez, a 30 de

março de 1916 a leitura simultânea de versos de Henri Barzun e Fernand Divoire,

juntamente com um poema composto por Tzara, Huelsenbeck e Janco. Ball

descreveu o conceito de poema simultâneo como um recitativo contrapontual no

  111  

qual pelo menos três vozes falavam, cantavam, assobiavam e produziam barulhos

da mais variada natureza em simultâneo, de tal forma que nem sempre o discurso

era produzido de forma clara o bastante para se lhe assimilar o significado, havendo

um maior efeito sonoro que literário (GOLDBERG 2010: 58). Outro aspeto original

destas noites foram os já referidos poemas sonoros de Ball, próximos da parole in

libertà de Marinetti e do Zaum, cuja leitura de 23 de junho de 1916 foi registada no

seu diário com alguns pormenores referentes ao figurino por ele utilizado:

(…) on his head he wore 'a high, blue-and-white-striped witch

doctor's hat'; and his legs were covered in blue cardboard tubes 'which came

up to my hips so that I looked like an obelisk'; and he wore a huge cardboard

collar, scarlet inside and gold outside, which he raised and lowered like

wings. He had to be carried onto the stage in the dark and, reading from

music stands placed on the three sides of the stage, he began 'slowly and

solemnly': gaji beri bimba/ glandridi lauli lonni cadori/ gadjama bim beri

glassala (…) (GOLDBERG 2010: 61).

Para além do figurino extravagante, que lhe condicionava em muito os

movimentos, obrigando a uma postura essencialmente estática, Ball trabalhava a

voz de uma forma que aproximava o seu tom dos cânticos religiosos da igreja

católica, adotando a cadência ancestral das lamentações sacerdotais (DACHY 2005:

27). Todavia, não foram apenas Ball e Tzara, com as suas inovações poéticas, que

dinamizaram a atividade inédita do Cabaret, uma vez que digna de registo é,

também, a contribuição feita por Marcel Janco ao trazer para o espaço máscaras da

sua autoria, que parecem ter sido ponto de partida para um novo ambiente mais

arrojado e performativo. As máscara, feitas de cartão, corda e tinta, sob a influência

de um certo primitivismo tribal, eram demonstrativas da influência de culturas

  112  

alheias à ocidental — como aconteceria também, embora com maior relevância, na

estética artaudiana — mas também bastante moderna. Estes acessórios não só

pareciam pedir figurinos à altura, como todo um novo trabalho de corpo nas

performances dadaístas que se revelaram mais exageradas e influenciadas por uma

certa loucura.

Foi também Marcel Janco quem pintou uma representação destas soirées,

mas foi Jean Arp que a traduziu em texto:

On the stage of a gaudy, motley, overcrowded tavern there are several

weird and peculiar figures representing Tzara, Janco, Ball, Huelsenbeck,

Madame Hennings, and your humble servant. Total pandemonium. The people

around us are shouting, laughing, and gesticulating. Our replies are sighs of

love, volleys of hiccups, poems, moos, and miaowing of medieval Bruitists.

Tzara is wiggling his behind lie the belly of an oriental dancer. Janco is playing

an invisible violin and bowing and scraping. Madame Hennings, with a

Madonna face, is doing the splits. Huelsenbeck is banging away nonstop on the

great drum, with Ball accompanying him, on the piano, pale as a chalky ghost

(GOLDBERG 2010: 60).

Após este primeiro momento vivido no Cabaret Voltaire o movimento

tornou-se mais popular, mais público e, de certa forma, também mais "oficial",

incorporando um maior planeamento nas suas atividades. A sua essência ingénua e

espontânea havia sido posta em causa, pelo que Ball afastou-se, tendo Tzara

ocupado a cabeça do movimento. Sob a liderança de Tzara salienta-se o

aparecimento de uma revista, a Dada, bem como de eventos de maior dimensão, as

grandes noites Dada, que eram, em muito, semelhantes às serate futuristas,

  113  

animadas por uma variedade de números de poesia, música, dança e performance,

cujo intuito principal era o choque do e com o público.

O Dada desenvolveu-se numa total liberdade de fusão artística, através da

qual foi possível conjugar sob um só tecto dança, máscaras e figurinos

extravagantes, happenings, manifestos, poesia sonora e simultânea, o cruzamento de

culturas; tudo. Com Dada tudo era possível. Estes artistas opuseram à pesada

herança cultural que não podiam mais abraçar, uma originalidade e inventividade

constantes, bem como uma relação direta e subjetiva entre o artista e a sua arte,

combatendo, deste modo, uma submissão do mesmo às convenções estéticas em

vigor. Contudo, o Dada foi perdendo, gradualmente, a sua força, de forma

proporcional ao aumento da sua popularidade e alcance tornando-se um movimento

cada vez mais exausto à medida que se tornava maior, mais público, mais difundido,

mais oficial.

VI. Antonin Artaud

Figura carismática da história do teatro, ligada brevemente ao movimento

surrealista, Antonin Artaud foi mais homem de teoria que de prática, embora tenha

fundado o Teatro Alfred Jarry (1926-1928), juntamente com Roger Vitrac, tendo

encenado um número reduzido de peças de entre as quais a adaptação da obra de

Shelley Les Cenci, de 1935, é recordado como a mais significativa. O seu

misticismo e linguagem fantástica um tanto vaga fascinou durante décadas muitos

praticantes das artes de palco que encontraram nos seus escritos uma liberdade

criativa muito distante da visão aristotélica do teatro.

Tal como todas as expressões de vanguarda anteriormente referidas, Artaud

opunha-se à tradição ocidental e respetiva cultura empedernida que, na sua ótica, era

  114  

contrária à verdadeira cultura que deveria ser primitiva e espontânea. Esta cultura

ocidental consagrada era a grande influência na base do teatro que então se fazia e

que Artaud desprezava, uma vez que o considerava vazio de espírito, embora

demasiado carregado no que tocava à configuração cénica e espacial, opinião que se

destaca, desde já, como uma crítica da estética realista e convenções de teatro

burguês. Contudo, Artaud refere a necessidade e o seu desejo pessoal de recuperar

um certo ambiente sombrio presente nas tragédias gregas — uma importante parcela

da tradição cultural ocidental — para formar o seu novo teatro. Este teatro

procurado por Artaud fazia uso de todos os recursos possíveis de se utilizar em

palco — gestos, sons, luzes, barulhos (ARTAUD 1994: 12) —, bem como de uma

radical desconstrução da linguagem e consequente afastamento das formas

aristotélicas que eram, como referido no primeiro capítulo, centradas em textos com

um enredo logicamente encadeado e discurso racional.

O seu esforço de edificação de uma nova estética teatral pretendeu traduzir-

se em um teatro que tivesse um efeito semelhante ao de uma praga quando esta

contagiava uma localidade. Por outras palavras, Artaud pretendia que o espetáculo

se repercutisse em um efeito caótico de destruição da ordem de tal forma que levaria

à libertação e purificação dos vivos. O seu teatro pretendia, deste modo, ser um

veículo para a desintegração da ordem social vigente; a burguesa, que, tal como

acontecia com o teatro que dela brotava, Artaud pretendia ver destruída. A praga, tal

como o seu teatro, poria a descoberto a desordem latente, levando-a ao extremo e

libertando tanto conflitos como o inconsciente reprimido, manifestando-se como

uma crise total após a qual nada resiste para além da morte ou purificação extrema

(ARTAUD 1994: 31). Outra consequência a advir deste espetáculo praga prende-se

com a revelação ao homem da sua dimensão mais sombria e mais escondida,

facultando-lhe uma noção mais verdadeira de si mesmo que o convidaria a agir, face

  115  

ao destino, de forma superior e heróica, como aconteceria, talvez, com a tragédia

clássica.

A apologia da cultura oriental em detrimento da ocidental constitui um dos

leitmotiv da obra artaudiana. No teatro ocidental que, então, era regido

exclusivamente pela ditadura do discurso não havia o devido lugar para os

elementos que ele considerava essenciais à teatralidade, como a linguagem do gesto,

a mímica, a pantomima, as posturas, atitudes, entoações objetivas, em suma, tudo o

que era especifico da teatralidade (ARTAUD 1994: 40). Artaud encontrou todos estes

elementos conjugados de forma equitativa, bem como a distância necessária perante

o drama psicológico, no teatro oriental, em especial no de Bali, situado no extremo

oposto do teatro burguês e que Artaud descreve da seguinte forma:

In the Oriental theater of metaphysical tendencies, as opposed to the

Occidental theater of psychological tendencies, this whole complex of

gestures, signs, postures, and sonorities which constitute the language of stage

performance, this language which develops all its physical and poetic effects

on every level of consciousness and in all the senses, necessarily induces

thought to adopt profound attitudes which could be called metaphysics-in-

action (ARTAUD 1994: 44).

Não era apenas o distanciamento do texto dado pela linguagem cénica do

teatro de Bali que Artaud admirava, uma vez que apreciava, de forma semelhante, a

dimensão ritualística em que aquele se baseava por ter preservado uma tradição

milenar que continha em si os segredos da verdadeira teatralidade expressados

através de uma mistura de dança, música e pantomima. Contudo, o teatro de Bali

não descurava a dimensão mais próxima do teatro ocidental, dando alguma

  116  

importância, também, ao enredo. É com as palavras de Artaud, espectador atento e

fascinado, que aqui se esboça uma caracterização deste teatro:

[It] begins with an entrance of phantoms; the male and female

characters who will develop a dramatic but familiar subject appear to us first

in their spectral aspect and are seen in that hallucinatory perspective

appropriate to every theatrical character, before the situations in this kind of

symbolic sketch are allowed to develop. (…) mechanically rolling eyes,

pouting lips, and muscular spasms, all producing methodically calculated

effects which forbid any recourse to spontaneous improvisation, these

horizontally moving heads that seem to glide from one shoulder to the other

as if on rollers, everything that might correspond to immediate psychological

necessities, corresponds as well to a sort of spiritual architecture (…)

(ARTAUD 1994: 53-55).

Outro aspeto que seduziu profundamente Artaud e que é, de certa forma,

referido na citação anterior, relaciona-se com a preponderância absoluta do papel do

encenador cujo poder criativo neutralizava o poder do texto. Era esse o nível de

controlo do espetáculo que Artaud pretendia alcançar, não deixando margem para

improviso. Esta presença dominadora do encenador implicaria uma curtíssima

margem de manobra para o ator que, apesar de essencial ao espetáculo, seria apenas

um títere, estatuto que, certamente, encheria de orgulho Gordon Craig.

Os temas do teatro de Bali eram vagos, abstratos e muito gerais, ganhando

vida apenas por meio dos artificios de palco, que se impunham perante os sentidos

através de uma utilização diferente do gesto e da voz, e contribuiam para um

afastamento da função de lazer, tão comum no teatro ocidental. O teatro balinense

  117  

estava longe de ser um divertimento, revestindo-se de uma qualidade cerimonial que

pretendia criar estados espirituais afastados da realidade quotidiana.

Para Artaud, o ocidente havia prostituido a ideia de teatro (ARTAUD 1994:

37), facto que encarava como consequência de este revolver essencialmente em

redor da dimensão literária, oferendo ao texto o lugar de topo na hierarquia dos seus

constituintes, uma realidade que se esbateu desde então, mas que durante séculos

regeu a convenção teatral no ocidente. A desilusão de Artaud com esta supremacia

do texto no teatro vem do facto de ele não o considerar como um elemento

característico do palco, mas antes como algo exclusivamente literário que pertencia

a uma esfera artística completamente diferente. O teatro precisava de procurar a sua

própria linguagem; uma linguagem concreta e física, construída por tudo o que

pudesse ocupar o palco e que tivesse por alvo primeiro os sentidos, em vez de

encarar a razão como filtro primário, como sucedia com o discurso. Esta linguagem

direcionada para os sentidos deveria, acima de tudo, satisfazê-los; preenchê-los, por

meio de uma poesia do espaço distinta da da palavra, que materializaria a nova

linguagem necessária ao teatro que Artaud idealizava e que tinha por objetivo a

produção de imagens materiais equivalentes às palavras, isto é, teria por objetivo a

criação dos hiéroglifos referidos, por várias vezes, nos seus textos críticos. Esta

poesia espacial foi definida por Artaud da seguinte forma:

(…) this poetry in space capable of creating kinds of material

images equivalent to word images. (…) This very difficult and complex

poetry assumes many aspects: especially the aspects of all the means of

expression utilizable on the stage, such as music, dance, plastic art,

pantomime, mimicry, gesticulation, intonation, architecture, lighting, and

scenery (ARTAUD 1994: 38-39).

  118  

Para que esta linguagem pura, de valor ideográfico, fosse eficaz necessitava

de ser concreta, ou seja, de produzir significado de forma objetiva através da sua

presença ativa em palco. Por conseguinte, Artaud não admitia a presença em palco

de elementos meramente superficiais e decorativos, alheios à produção de

significado que poderia ser criado por meio de combinações de linhas, formas,

cores, objetos no seu estado natural, mas também através de uma linguagem do

gesto.

Tal como a praga e o teatro oriental, a crueldade constitui outro conceito

central na sua obra, que o próprio Artaud sente necessidade de clarificar por não

coincidir com a noção convencional do termo. A palavra crueldade deveria ser

tomada num sentido mais amplo e não na sua dimensão de agressividade física, uma

vez que, para ele, significava rigor, intenção e decisão implacáveis, irreversibilidade

e determinição absoluta perante o espectador (ARTAUD 1994: 101). O teatro da

crueldade deveria ser, acima de tudo, um veículo de agitação dos sentidos e dos

nervos do espectador, que era, literalmente, o elemento central à volta do qual o

espetáculo acontecia. Este espetáculo total fazia-se por meio dos mais variados

recursos, desde som, a luz, objetos modificados, gestos, movimentos, cores, etc. O

trabalho sonoro seria constante e estimularia o público por meio de sons, barulhos e

gritos orquestrados não apenas pelo que representariam, mas também pela sua

capacidade de ativação e agressão dos sentidos. A luz seria trabalhada de forma

semelhante ao estímulo sonoro, salientando a sua capacidade sugestiva e poder de

invasão dos sentidos. Lado a lado com o jogo de luz e sonoplastia surgiria o

dinamismo da ação, que não pretendia ser mera reprodução da vida quotiana, mas

antes comunicação de forças em estado puro. Artaud propôs, assim, um teatro feito

de imagens violentas que agrediam e hipnotizavam os sentidos do espectador, longe

  119  

da psicologia, do realismo e do discurso racional como elemento central; um teatro

que encenasse forças naturais e que provocasse no espectador um transe sensorial.

O ator da crueldade seria, como já foi referido, um instrumento do

encenador, envergando figurinos geométricos, distintos da indumentária moderna,

de reminiscências ritualistas, que o fariam parecer um hieróglifo animado. O

trabalho deste ator era baseado numa certa objetividade e economia do gesto, bem

como num domínio fortíssimo da mímica, levado a cabo num espaço radicalmente

diferente do espaço teatral convencional, que revolucionaria a relação entre palco e

auditório. O espetáculo total que Artaud defendia deveria ter lugar num espaço

amplo, com um lugar central reservado ao núcleo da ação — mas que não era

efetivamente um palco — e que permitisse rodear o espectador por todos os lados,

destruindo qualquer barreira entre público e atores, maximizando a comunicação

entre ambos, de formar a tornar o espectador mais ativo. A arquitetura ideal para um

espetáculo total é descrita por Artaud como um espaço aberto,

(…) enclosed by four walls, without any kind of ornament, and the

public will be seated in the middle of the room, on the ground floor, on

mobile chairs will allow them to follow the spectacle which will take place

all around them. In effect, the absence of a stage in the usual sense of the

word will provide for the deployment of the action in the four corners of the

room. Particular positions will be reserved for actors and actions at the four

cardinal points of the room. The scenes will be played in front of

whitewashed wall-backgrounds designed to absorb the light. In addition,

galleries overhead will run around the periphery of the hall as in certain

primitive paintings. These galleries will permit the actors, whenever the

action makes it necessary, to be pursued from one point in the room to

  120  

another, and the action to be deployed on all levels and in all perspectives of

height and depth (ARTAUD 1994: 96-97).

Os temas do teatro da crueldade eram escolhidos com o espetáculo em

mente, sendo constituídos por matérias universais ou históricas, do conhecimento

geral, para que o público não se perdesse na dimensão racional do espetáculo ao

focar a sua atenção na compreensão do enredo. Este espetáculo incluiria música,

dança, pantomima e mímica, fazendo uso de movimento, harmonia e ritmo sem

obedecer a qualquer hierarquia.

Em suma, o teatro que Artaud procurava deveria ser altamente estimulante a

nível sensorial e cuidadosamente planeado de uma ponta à outra. A sua natureza

surpreendente seria composta por súplicas, gritos, aparições, figurinos de inspiração

ritualista, que se encontrava também no trabalho da voz, harmonia, ritmo, música,

objetos de dimensões peculiares, cores, movimentos, elementos de uma extrema

diversidade que se conjugaria para a produção de uma linguagem teatral pura,

formando hieróglifos produtores de sentido, como alternativa à forte presença do

texto. Todavia, apesar do manifesto desgosto em relação à autoridade do texto no

teatro ocidental, Artaud não pretendia bani-lo por completo do seu espetáculo ideal,

mas antes desconstruir a linguagem de uma forma reminiscente da teoria surrealista,

concedendo-lhe apenas a importância que lhe é reservada no onírico. O teatro por

ele defendido materializava-se, desta forma, num espetáculo primitivo e intemporal,

dotado de uma universalidade próxima da da tragédia ática.

  121  

Capítulo III

Novas Dramaturgias

O teatro dramático assenta num domínio absoluto do texto, que constitui o

topo de uma estrutura fortemente hierarquizada, onde os elementos verdadeiramente

teatrais — como a cenografia, o trabalho de luz e de som, os figurinos, etc. — são

relegados para segundo plano, como salientado no primeiro capítulo, concebidos

segundo as necessidades de um enredo logicamente construído com base numa

linearidade cronológica. Neste teatro, regido pela unidade de tempo, de ação e de

lugar, a dominância da comunicação intra-cénica é notória, bem como a exclusão de

qualquer elemento ou fenómeno exteriores ao cosmos fictício criado. Ao espectador

do teatro dramático é oferecido o desenrolar de um enredo de forma lógica e de

compreensão relativamente fácil, havendo uma comunicação de significado através

de signos teatrais que são normalmente apresentados de forma enfatizada e

ordenada, sendo-lhe reservado um papel de observação relativamente passiva, uma

vez que o espetáculo assume uma forma acabada que transmite o significado fixo

pelo texto, limitando-se o espectador a preencher as lacunas previsíveis. O estatuto

  122  

do ator no teatro dramático resume-se a um veículo de produção de sentido, por

meio da mimesis, que deverá encarnar personagens bem delimitadas, de carácter e

dimensão psicológica convenientemente desenvolvidos. O espaço do teatro

dramático é um lugar fechado sobre a ficção, que pressupõe uma barreira entre o

palco e a plateia, havendo uma distinção clara entre onde uma começa e a outra

acaba.

Com a vanguarda chegaram a recusa das formas convencionais e a

desconstrução da linguagem — recorde-se a parole in libertà de Marinetti, o Zaum

de Khlebnikov ou as aventuras linguísticas do movimento Dada — e o teatro entrou

na era da experimentação, enveredando por um caminho de recusa do texto como o

seu cerne e de maior preocupação com os elementos que tinham um carácter mais

teatral, tal como desejou Artaud. Isto implicou não apenas uma nova liberdade

concedida às artes de palco, mas também a perda de referências consagradas em

termos de construção e receção de espetáculo. Foi necessário, então, uma procura

por novas formas, mais adequadas a uma teatralidade marcada. Contudo, muito do

que foi feito pela vanguarda não constituiu uma rutura tão radical assim, uma vez

que alguns espetáculos ainda mantinham certos traços dramáticos, como a

representação mimética ou a conceção assente na representação de mundos fictícios

provenientes de textos literários, como foi o caso do teatro de Meyerhold.

Foi a partir dessa nova liberdade, trazida pelo esforço de distanciação da

vanguarda em relação à tradição cultural e artística, que se forjaram muitos dos

traços que caracterizam hoje as novas dramaturgias e que contribuíram para dar ao

teatro uma nova direção, libertando-o do jugo da literatura, desconstruindo a sua

ligação com o drama. Essa desconstrução atingiu um nível de maior intensidade a

partir das décadas de sessenta e setenta do século XX, momento do verdadeiro

  123  

aparecimento das formas pós-dramáticas. A partir deste marco, o teatro como mera

produção mimética de sentido sintético torna-se, em grande parte, uma miragem.

O espectador do teatro dramático é geralmente encarado como um mero

voyeur63, alguém que se limita a observar a ação em palco — embora nunca de

forma totalmente passiva, porque a ela reage, acabando sempre por influenciar o

texto performativo, como nos lembra Erika Fischer-Lichte — e que não goza de um

papel especialmente ativo. Esta realidade foi desafiada por Vsevolod Meyerhold ao

propor uma alternativa ao que ele chamava de teatro triângulo64, que reservava ao

espectador um local exterior à estrutura triangular de criação do espetáculo,

limitando-se a observar e receber um significado acabado. A alternativa

materializou-se na conceção do teatro como uma cadeia em linha reta, que contava

com o espectador como co-produtor do espetáculo, integrando-o na estrutura

criativa, visto ser necessário um esforço de síntese da sua parte para ultrapassar o

desafio apresentado pela desconstrução da linearidade cronológica e unidade

espacial que, muitas vezes, marcavam os espetáculos do encenador revolucionário.

Também os Futuristas Italianos pretendiam um espectador mais ativo, e até

participante, usando, para o efeito, a provocação direta e a agressividade, de

maneira a forçá-lo a sair da anestesia da observação. Artaud pensou, de forma

semelhante, um novo papel para o espectador do teatro da crueldade, visto que, tal

como muitas outras figuras de vanguarda, criticava o papel passivo reservado ao

espectador no teatro ocidental. Com a estimulação extrema dos sentidos e a

transmissão de significado através de uma escrita hieroglífica construída por meio

da utilização livre dos elementos teatrais, Artaud forçava o espectador a uma

produção crítica e sintética de sentido, integrando-o no centro do espetáculo,

                                                                                                               63 Recorde-se as posições dos Futuristas Italianos e de Antonin Artaud sobre o espectador do teatro dramático, expostas no segundo capítulo desta dissertação. 64 Vid. p.49.

  124  

tornando, por conseguinte, o seu papel muito mais significativo no produto teatral

final. É este papel ativo, integrado no espetáculo — por vezes literalmente, como no

caso do Teatro Invisível de Augusto Boal ou do espetáculo de Christoph

Schlingensief, Bitte liebt Österreich (Por Favor Amem a Aústria), de 200065 — que

é reservado ao espectador das novas dramaturgias. A fragmentação e a

simultaneidade da escrita cénica levam-no à dispersão da sua atenção pelos vários

signos apresentados em palco, processo que o obriga a uma seleção dos elementos

que mais o cativam e que este julga serem mais significativos para retirar do

espetáculo a(s) ideia(s) nele presentes para serem colhidas. Não há mais um

significado finito, fruto da visão autor ou do encenador, como acontece no

dramático, ou até no teatro de Meyerhold, que apesar de reservar alguma liberdade

ao espectador que deseja ativo, baseava-se frequentemente numa interpretação do

texto literário a ser aplicada ao palco. Nas novas dramaturgias o espectador

emancipa-se, como afirma Rancière66, tornando-se intérprete ativo, e a receção do

espetáculo faz-se através do recém-descoberto poder de associação e dissociação,

tratando-se "de ligar o que se sabe com o que se ignora; trata-se de os sujeitos serem

ao mesmo tempo performers que põem em jogo as suas competências e

espectadores que observam o que estas competências podem produzir num contexto

novo, junto de outros espectadores" (RANCIÈRE 2010: 28).

Também o ator vê o seu papel tradicional posto em causa. O seu trabalho

deixa de ter como fundamento exclusivo o princípio mimético devido à diminuição

da importância do texto dramático que, por sua vez, provoca uma desconstrução do

antropocentrismo, relegando a ação humana para segundo plano. De nota são,

também, espetáculos como os do coletivo Rimini Protokoll, em que não há a

                                                                                                               65  Vid. http://www.schlingensief.com/index_eng.html  66 Cf. O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, Lisboa, Orfeu Negro, 2010.

  125  

utilização do ator profissional, mas antes o que o coletivo apelida de "especialistas

do quotidiano", pessoas convencionais, sem formação artística, que sobem ao palco

para dar ao auditório testemunhos de base real.

Nas novas dramaturgias a fisicalidade é frequentemente acentuada67, porque

o corpo do ator não se limita ao estatuto de mero signo produtor de sentido e passa a

valer por si mesmo, como signo teatral, não precisando de obedecer a uma

representação de estilo naturalista, como salientou Lehmann:

The body becomes the centre of attention, not as a carrier of

meaning but in its physicality and gesticulation. The central theatrical

sign, the actor's body, refuses to serve signification. Postdramatic

theatre often presents itself as an auto-sufficient physicality, which is

exhibited in its intensity, gestic potential, auratic 'presence' and

internally, as well as externally, transmited tensions (LEHMANN

2009: 95).

Esta fisicalidade das novas dramaturgias manifesta-se de várias formas,

oferecendo-se, muitas vezes, de maneira chocante e provocatória, criando corpos

violentados, deformados ou incapacitados, que se desviam da norma provocando no

espectador um fascínio, mas que também problematizam o seu papel enquanto

responsável pelo espetáculo, especialmente nos casos em que o limiar da dor é

transgredido perante um olhar permissivo da plateia. O afastar do corpo da

dimensão significante põe fim à leitura e interpretação dos seus movimentos como

um texto complementar ao enredo e o corpo passa a demonstrar-se apenas a si

próprio por meio dos gestos, movimentos e ritmo que produz. O ator pode ser,

                                                                                                               67 Podemos aqui estabelecer um ponto de contacto com a biomecânica de Meyerhold, que dava aos seus espetáculos uma forte dimensão física, embora o princípio pelo qual se regessem os seus atores fosse ainda mimético.  

  126  

também, um mero porta-voz, como acontece no teatro de Elfriede Jelinek, onde a

desconstrução das personagens é levada ao extremo, tornando o ator mero veículo

de transmissão dos seus textos fragmentados (LEMOS 2009: 4). Por último,

salientam-se aqueles casos em que o ator se apresenta a si mesmo sem qualquer

esforço de construção de uma ilusão — recurso que dificulta a distinção do real e do

fictício — como em Entrelinhas, de Tiago Rodrigues, em que Albano Jerónimo se

apresenta como ele próprio.

A fronteira entre o ator e o espectador pode ser também esbatida através da

incorporação direta do público no espetáculo e não somente através do seu estatuto

de intérprete ativo, anteriormente abordado através do conceito de espectador

emancipado. O espectador é, frequentemente, forçado a interagir com os atores e a

definir, em primeira mão, o rumo do texto performativo. Um exemplo prático deste

tipo de espetáculo materializou-se em Chegadas68(2011), concebido pelo Teatro do

Vestido, em que as atrizes abordavam o espectador, questionavam-no, conduzindo-o

entre os vários espaços onde o espetáculo decorreu, e tornaram-no personagem ao

implicá-lo diretamente na ação. Esta fusão de papeis69 só foi possível devido a uma

transformação a nível do espaço — radicalmente distinto do espaço convencional,

uma vez que o local onde ocorreu o espetáculo foi o apartamento lisboeta que

funciona como sede do coletivo — que, por meio da sua dimensão reduzida, fez do

espetáculo um acontecimento intimista, proporcionando uma relação estreita entre

atrizes e público, ambos colocados no mesmo plano, destruindo o cosmos fictício

essencial ao teatro dramático.

A transformação do espaço constitui outro fenómeno presente nas novas

dramaturgias, cuja génese remonta à vanguarda histórica. O desenvolvimento de

novas formas de espetáculo trouxe consigo a necessidade de novos espaços teatrais                                                                                                                68 Vid. http://teatrodovestido.org/blog/?page_id=4261 69 Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, p.124.

  127  

que pudessem ser palco mais adequado para as experimentações em curso. Como

constatado no segundo capítulo, Meyerhold começou por modificar radicalmente a

arquitetura do espaço convencional posto à sua disposição, que despiu por completo

para melhor o adaptar à estética das suas encenações, projetando, nos últimos anos

da sua vida, a construção de um edifício teatral que suprisse todas as suas

necessidades enquanto encenador. As atividades levadas a cabo pelo TRAM em

espaços públicos são também representativas da necessidade de libertação do teatro

relativamente ao espaço que lhe era convencionalmente reservado. Não podemos

deixar de salientar, também, os espetáculos nos clubes operários postos em cena

pela Blusa Azul, nem as representações excêntricas de Eisenstein e Tretyakov

levadas a cabo em fábricas moscovitas. Por último, mas não menos importante,

relembramos, aqui, a detalhada descrição que Artaud fez do espaço adequado ao seu

Teatro da Crueldade70. Em todas estas alterações espaciais desejadas pela vanguarda

um dos pontos comuns consistia na necessidade de alteração do espaço do teatro

para um maior contacto do público com o espetáculo, destruindo a barreira entre

palco e auditório, obstáculo à verdadeira comunhão. Semelhante necessidade surgiu

com as novas dramaturgias, para as quais a disposição do espaço do teatro à italiana

não fazia mais sentido, uma vez que este se organizou com base nas necessidades de

um teatro dramático. O teatro passou, então, a procurar espaços novos — muitas

vezes espaços com uma função primária que em nada ligada ao teatro, e que ao

serem utilizados como sala de espetáculo permitem que o público os veja com um

novo olhar estético — ora amplos e de grande escala, ora de dimensões mais

reduzidas, criando um espaço mais íntimo, mas sempre fora da norma do espaço

convencional. A procura de espaços públicos, presente já na vanguarda histórica,

mantém-se nas novas dramaturgias, da qual o já referido Bitte liebt Österreich de

                                                                                                               70 Vid. p.118

  128  

Schlingensief é um ótimo exemplo, encenado no espaço em frente à Ópera de

Viena, com a qual o cenário contrastava profundamente, visto ser composto por um

aglomerado de contentores de transporte de mercadorias vedado de forma

semelhante a um estaleiro de construção civil. O espaço enquanto edifício teatral

alcança, com as novas dramaturgias, um papel que ultrapassa o da mera moldura da

ação dramática, passando a apresentar-se a si próprio. Chega, também, a ser co-

produtor de espetáculos que se moldam à sua arquitetura, tomando para si um lugar

central em muito distinto do papel secundário que o teatro dramático lhe atribui.

Este elemento do espetáculo teatral ganha um novo fôlego, também, num teatro que

Lehmann apelida de "teatro da voz", em que a importância do espaço é capital, uma

vez que é o veículo principal do som, por ele definido da seguinte maneira:

The postdramatic theatre here is a theatre of the voice, the

voice being a reverberation of past events. (…) The condition for the

theatre of the voice is an architectural space which through its

dimensions enters into a relationship with individual human speech,

with the imaginary space of this voice. (…) [T]he space equally

becomes a player in its own right (…). Intrigue, story or drama are

hardly present; instead distance, emptiness and in between space are

turned into autonomous protagonists. The actual dialogue takes place

between sound and sound space, not between interlocutors. The

figures each speak on their own. (LEHMANN 2009: 76).

O espaço cénico das novas dramaturgias não é constituído, como o do teatro

dramático, pela norma da unidade de lugar, em que reina a via intermédia71, situada

                                                                                                               71 "The renunciation of conventionalized form (unity, self-identity, symmetrical structuring, formal logic, readability or surveyability (…) the refusal of the normalized form of the image, is often realized by way of recourse to extremes." Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, p.90

  129  

algures entre um espaço saturado de signos e um espaço minimalista. Esta nova

conceção do espaço opta por um desses extremos, preferindo ou a pletora72 —

presente no espetáculo de 2010, Uma Família Portuguesa, em cena no Teatro

Aberto — ou a privação quase total de signos representados em palco. Ambos os

extremos exigem mais do espectador do que o espaço cénico convencional, uma vez

que através da saturação de signos é exigido ao espectador uma observação crítica

com poder de síntese, e a ausência deles pressupõem um colmatar de lacunas com o

auxílio da imaginação de cada espectador, recurso frequentemente utilizado nos

espetáculos da Cornucópia.

Com o desaparecimento de uma dramaturgia regulada pelo texto literário o

espaço cénico abre-se para uma dramaturgia visual, o que não implica que seja

organizada em termos exclusivamente visuais, apenas que se rege por uma lógica

própria e não se molda às necessidades do texto. A ausência de hierarquia dos meios

teatrais potenciou uma forma de conceção de espetáculo que não só poderá

incorporar formas de arte exteriores ao Teatro — criadas autonomamente para um

espetáculo para o qual todas convergem, método usado já na conceção dos

espetáculos do auto-ativismo russo —, como ter por base os mais variados recursos

de linguagem cénica. Entre essa panóplia imensa de recursos destacamos a recusa

da síntese de sentido, construída, em parte, por meio da fragmentação do texto

literário (quando há), bem como do texto cénico. Esta fragmentação destruidora das

unidades dramáticas é, muitas vezes acompanhada da heterogeneidade e

simultaneidade de signos com valor equivalente — a parataxis referida por

Lehmann73 —, bem como de processos de montagem e colagem textual, que

trazem para o palco textos de natureza não-dramática, que tanto podem ser criados

diretamente com a cena em mente, como parte da produção textual de Elfriede                                                                                                                72 Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, pp.90-91 73 Cf. ibidem, p. 86

  130  

Jelinek, ou adaptações de obras com teor filosófico, por exemplo, que dão origem a

uma vertente das novas dramaturgias que Lehmann apelida de "ensaio cénico"74 e

que define como sendo espetáculos que oferecem uma refleção pública sobre temas

particulares e não uma ação dramática (LEHMANN 2009: 112). Tanto a

simultaneidade, como a montagem, a colagem e a fragmentação podem ser

identificadas em várias produções da vanguarda histórica: nos trabalhos mais

esteticamente revolucionários de Meyerhold, no ritmo frenético dos Futuristas

Italianos, nas experimentações de Dada com a linguagem. As novas dramaturgias

assumem, assim, em termos cénicos, uma concretização semelhante à de uma

paisagem, que se apresenta perante o olhar atento do espectador, como um todo a

ser contemplado de forma subjetiva.

A musicalização da cena, presente já na conceção teatral e marcação cénica

meyerholdianas, constitui também uma característica das novas dramaturgias. Esta

musicalização não implica que a música como tal tenha um papel absolutamente

central no espetáculo, mas sim a aplicação à cena dos princípios da musicalidade. O

palco das novas dramaturgias apresenta-se, assim, como um espaço de polifonia, de

multiplicidade de vozes onde a sonoplastia ganha, também, uma preponderância

para além da produção de sentido, podendo forjar ambientes e realidades sensíveis.

O esbatimento de fronteiras é, como constatado a propósito do ator e do

espectador, uma característica notória das novas dramaturgias. Uma das mais

importantes manifestações desse fenómeno ocorre entre a delimitação do real e a do

cosmos fictício que, para o teatro dramático, deveria ser bem clara, mas que, no

contexto das novas dramaturgias é constantemente desafiada. Para ilustrar a

irrupção do real no teatro75 salientamos as produções do já referido coletivo Rimini

                                                                                                               74  Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, pp.112-114  75 Cf. ibidem, pp.99-104

  131  

Protokoll e a utilização de "especialistas do quotidiano", bem como Entrelinhas de

Tiago Rodrigues, referido anteriormente a propósito do estatuto do ator. Contudo,

esta intrusão do real na ficção é mais eficaz quando a sua autenticidade se mantém

indecifrável, questionando a posição do espectador, como nos recorda Lehmann:

(…) when the real asserts itself against the staged on stage, then this is

mirrored in the auditorium. When the staging practie forces the spectators to

wonder whether they should react to the events on stage as fiction (…) or as

reality (…), theatre's treading of the borderline of the real unsettles this

crucial predisposition of the spectators: the unreflected certainty and security

in which they experience being spectators as un unproblematic social

behaviour (LEHMANN 2009: 104).

Tal como todos os outros elementos teatrais a linguagem também se

autonomiza com o desaparecimento das estruturas dramáticas, fenómeno já presente

nas experimentações da vanguarda histórica através de um esforço de desconstrução

da linguagem. O seu papel deixa de se resumir ao diálogo produtor de sentido

passando a ser utilizada da forma mais variada. Um exemplo desta libertação é a

ideia de superficies de linguagem justapostas de Jelinek, que joga com a montagem

textual e decomposição da língua alemã, como nos recorda Vera San Payo de

Lemos:

Essas superfícies de texto ou superfícies de linguagem, termos cunhados

por Jelinek como elementos característicos do seu teatro, são tecidas com

base na intertextualidade, na montagem ou composição de citações de textos

de vários autores e várias proveniências, da cultura erudita e popular, do

                                                                                                                 

  132  

sublime ao trivial, retiradas da publicidade, política, filosofia, música,

literatura, fotografia, televisão e internet e depois reelaboradas em jogos de

linguagem, de ritmos e de sonoridades, associações de palavras, inversão de

sílabas, num processo musical, como uma fuga e as suas variações, um

concerto de vozes, em que se reflecte a formação de pianista e organista da

autora (LEMOS 2009: 4-5).

O texto, como já foi referido, perdeu o seu estatuto hegemónico, tornando-se

apenas mais um dos constituintes da cena, e não um elemento independente e todo-

poderoso, que, quando marca presença, é sempre de forma desfigurada e

desmembrada (LEHMANN 1997: 57). Com as novas dramaturgias surge uma noção

mais ampla de texto, sendo possível a identificação de três tipos de texto: o texto

linguístico, o texto cénico e o texto performativo. O texto performativo, por

oposição ao texto dramático, não necessita do diálogo para subsistir, uma vez que é

construído em conjunto entre palco e auditório, e contém em si o material

linguístico e a dimensão cenográfica que interagem com a situação teatral criada no

momento (LEHMANN 2009: 85). Outro aspeto importante relativo ao texto

linguístico das novas dramaturgias prende-se com a intertextualidade e

possibilidade de criação de novos textos a partir de fragmentos de textos pre-

existentes, incluindo clássicos consagrados submetidos a um processo de

desfiguração, iniciado por algumas expressões da vanguarda histórica.

O contexto da sociedade atual, caracterizada pelo aparecimento de novas

tecnologias e meios de comunicação de massa é essencial para a compreensão deste

novo teatro, uma vez que em estreita relação com esta realidade surge outro aspeto

das novas dramaturgias, partilhado com as vanguardas históricas: a utilização da

tecnologia em palco, que tanto pode ser pontual, como constituir a base do

  133  

espetáculo, definindo fundamentalmente a conceção teatral. Contudo, há outra

forma de intermedialidade que se manifesta apenas pela incorporação de linguagens

de outros meios de comunicação no espetáculo teatral. No que toca à primeira forma

de intermedialidade, a pontual, salienta-se como exemplo Radio Muezzin, dos

Rimini Protokoll, cuja projeção vídeo não dominava por completo o espetáculo,

embora tivesse um papel fundamental na abertura espacial do mesmo, uma vez que

através deles o espectador viajava até ao Cairo, experienciando o quotidiano de cada

uma das figuras que se apresentavam em palco materialmente e cuja presença

acabava por ser dominante. Em relação à forte utilização de novos meios de

comunicação tomamos como exemplo a presença de tecnologia vídeo em tempo

real, apresentada em simultâneo com a figura do ator, em Agamémnon ou vim do

supermercado e dei porrada ao meu filho, do Coletivo 84, apresentado em 2011 no

Teatro Municipal S.Luiz. A terceira forma de cruzamento entre teatro e novas

tecnologias, aquela em que apenas a linguagem dos meios de comunicação é

incorporada no espetáculo, pode dar origem a um teatro dito "cinematográfico" —

noção bastante próxima das experimentações da vanguarda russa, principalmente à

estética de Eisenstein — através da utilização de processos de montagem temporal e

espacial, semelhantes aos utilizados no cinema, que impõem ao teatro um ritmo

parecido com o do grande ecrã, afetando o tempo como o teatro dramático o

conhecia. O tempo dramático é, por natureza, homogéneo, de maneira a contribuir

para a construção de um enredo lógico e coerente. Nas novas dramaturgias foi

desenvolvido um tempo próprio — que combate a unidade e a ilusão —, inerente ao

texto performativo, que surge como um tempo partilhado composto pelo tempo real

e o tempo da situação encenada.

Em suma, as inúmeras manifestações teatrais que caracterizam as novas

dramaturgias surgem a partir do momento em que o texto perde o seu estatuto

  134  

central e a estrutura dramática, fortemente hierarquizada segundo uma lógica

coerente, se desfaz, possibilitando a concretização de um espetáculo

verdadeiramente teatral, onde todos os elementos que o constituem se encontram no

mesmo plano de valorização.

  135  

Conclusão

A vanguarda histórica constituiu um momento artístico heterogéneo movido por um

objetivo comum: o combate contra uma pesada tradição cultural e respetivas formas

artísticas que não se adequavam como formas de expressão das novas gerações que

haviam crescido no tumulto social e político do início do século XX. As suas

experimentações, que se fizeram sentir em todos os campos artísticos, foram

levadas a cabo através de processos de desconstrução das formas antigas originando

uma liberdade artística significativa.

Ao teatro, as vanguardas trouxeram modificações relativas ao espaço

convencional, esbatendo, ou até eliminando, a fronteira entre palco e público, o que

resultou numa alteração do papel do espectador que, no teatro convencional,

baseava-se essencialmente na observação. O ator também viu o seu estatuto

transformado por teorias assentes na premissa física — e não tanto numa dimensão

mais convencional de psicologismo e individualização —, como a biomecânica de

Meyerhold. Novas formas de conceção cénica, como o construtivismo e a

  136  

estilização tomaram o lugar de cenografias realistas, cujo principal objetivo era a

criação de uma ilusão que servisse de moldura a um teatro fortemente dramático. As

experiências com a desconstrução da linguagem, bem como os exercícios de

reinterpretação dos clássicos abriram caminho a uma nova atitude em relação ao

texto e, consequentemente, em relação ao espetáculo enquanto tal, dando maior

importância aos elementos mais específicos da teatralidade. A fragmentação cénica

e textual, bem como a montagem e colagem, entre outros aspetos presentes nas

novas dramaturgias, podem ser reportadas, também, às inovações da vanguarda

histórica que, apesar de se anunciarem de forma radical, nunca se separaram

completamente de uma matriz dramática.

Nos diversos movimentos de vanguarda — e aqui Artaud destaca-se — há,

quase sempre, um desejo de retorno ao primeiro momento do teatro, em que este

possuía ainda uma dimensão ritualística acentuada, apresentando-se

maioritariamente como espetáculo. Num esforço de reteatralização, quase todas as

expressões da vanguarda se direcionaram para as origens do teatro, canalizando

algum primitivismo, ou buscaram inspiração em estéticas mais direcionadas para o

espetáculo, como a Commedia dell'Arte. Apenas os Futuristas Italianos parecem

constituir, de certo modo, a exceção, pela sua forte aversão ao cânone e a tudo o que

se revestia de formas antigas, às quais opunham uma vigorosa apologia de tudo o

que era novo, especialmente quando produto do avanço tecnológico.

A matriz dramática baseia-se, essencialmente, numa estrutura fixa,

fortemente hierarquizada, composta pelos elementos teatrais que se encontram

subjugados pelo domínio absoluto do texto literário. Este último constitui veículo,

por excelência, de um enredo construído de forma lógica e coerente, assente na

unidade da ação, bem como na unidade de lugar e de tempo. É precisamente quando

se inicia a desconstrução da trindade drama — mimesis — ação, que se abre espaço

  137  

para o nascimento das novas dramaturgias, cuja concretização poderá ser levada a

cabo da mais variada forma, sendo a recusa da síntese, o jogo com a densidade de

signos, a intertextualidade, intermedialidade, heterogeneidade, simultaneidade; a

montagem, a colagem e a fragmentação apenas algumas características mais

preponderantes. Esta fragmentação, encontrada no lugar da unidade coerente do

teatro dramático, apresenta uma noção estilhaçada do real, o que não implica que o

teatro se tenha demitido completamente de uma função representativa, mas antes

que a leva a cabo de uma nova forma, mais próxima da experiência humana que não

se faz por meio de uma compreensão total e absoluta do real, visto que o ser

humano perceciona o mundo através de cinco sentidos distintos. Apesar das

diferenças claras, não há uma divisão bem demarcada e intransponível entre o teatro

dramático e as novas dramaturgias, quando estes conceitos se aplicam à realidade. A

convivência de elementos das duas vertentes num mesmo espetáculo é possível,

pelo que alguns recursos teatrais que constituem, regra geral, marca acentuada de

uma nova dramaturgia — por desconstruírem os pressupostos aristotélicos presentes

no teatro dramático — marcam também presença no teatro mais convencional.

Com as novas dramaturgias, após a libertação da tirania do texto, o teatro

iniciou uma busca por um lugar seu, de significação para além do logos; um lugar

que Lehmann abordou com o auxílio de um exemplo trabalhado por Julia Kristeva,

a partir de um termo platónico: chôra. Este termo, cunhado em Timeu para designar

“o espaço, que não acolhe a destruição e fornece o lugar a todas as coisas que têm

geração, [e que] é captável por meio de um certo raciocínio bastardo, não

acompanhado de sensação e dificilmente credível (...)” (PLATÃO 2004: 99), é aqui

utilizado para definir um novo espaço para o teatro, situado no limite da lógica e da

razão (LEHMANN 1997: 56). Para este novo espaço, “olhemos como num sonho”

(PLATÃO 2004: 99), tal como Artaud pretendia olhar o Teatro através da

  138  

Crueldade, visão nunca plenamente concretizada, mas que acabou por contribuir

para a fogueira onde ardeu grande parte do logocentrismo do palco ocidental. Esta

nova noção de teatro, em que ele é encarado como um espaço aberto a infinitas

possibilidades de criação, implica uma linguagem definida por uma multiplicidade

de vozes e desconstrução de um sentido fixo, devolvendo, assim, ao teatro o seu

acentuado estatuto de espetáculo. Ocorreu, também a redescoberta do seu potencial

comunicativo, ao ser transferido o foco que outrora incidia sobre o diálogo interno –

feito no palco, entre personagens – para um diálogo externo; para uma comunicação

com um espectador ativo que constrói, em si, a síntese do espetáculo de uma forma

subjetiva e livre de um pensamento conduzido. Este processo de síntese faz-se,

frequentemente, através de um teatro paisagem; uma noção ampla e aberta que nos

remete para um tipo de teatro que não conduz o olhar do espectador para a única

fonte de sentido em cena, deixando-o livre para observar o palco e assimilar

significados como bem entender, tal como faria quando confrontado com uma

paisagem natural. Neste teatro a dramaturgia visual é um elemento de extrema

importância, embora isso não signifique que seja um espectáculo completamente

livre da palavra, mas antes um espectáculo livre da hierarquia dependente da razão.

Como referido na introdução, a presente dissertação não pretendeu prestar-se

a um estudo exaustivo que abarcasse todas as expressões possíveis das novas

dramaturgias, mas antes contribuir para uma compreensão sumária do que constitui

este novo rumo dado ao teatro e de onde ele partiu para chegar até nós, em parte,

como uma vanguarda amadurecida e em paz consigo mesma, sem necessidade de

uma demarcação agressiva em relação às formas antigas, comas quais é hoje capaz

de conviver. O teatro encontrou-se a si próprio e à sua especificidade, regressando a

si mesmo para apreciar o seu verdadeiro papel enquanto espetáculo.

  139  

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