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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES DO ARQUIVO AO NOVO SARA LUÍSA ORSI FERNANDES DISSERTAÇÃO MESTRADO EM DESIGN DE COMUNICAÇÃO E NOVOS MEDIA 2015 IMPACTOS DA TECNOLOGIA DIGITAL NO ARMAZENAMENTO E DISSEMINAÇÃO DA INFORMAÇÃO NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

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UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES

DO ARQUIVO AO NOVO

SARA LUÍSA ORSI FERNANDES

DISSERTAÇÃO

MESTRADO EM DESIGN DE COMUNICAÇÃO E NOVOS MEDIA

2015

IMPACTOS DA TECNOLOGIA DIGITALNO ARMAZENAMENTO E DISSEMINAÇÃO DA INFORMAÇÃO

NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES

DO ARQUIVO AO NOVO

SARA LUÍSA ORSI FERNANDES

DISSERTAÇÃO ORIENTADA PELA PROF. DOUTORA LUÍSA RIBAS

CO-ORIENTADA PELO PROF. DOUTOR JOSÉ GOMES PINTO

MESTRADO EM DESIGN DE COMUNICAÇÃO E NOVOS MEDIA

2015

IMPACTOS DA TECNOLOGIA DIGITALNO ARMAZENAMENTO E DISSEMINAÇÃO DA INFORMAÇÃO

NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

R E S U M O

Ao tomar caminhos do arquivo ao novo, a presente dissertação reflete sobre os impactos

resultantes da massificação e evolução da tecnologia digital na forma como armazenamos

e disseminamos a informação no complexo que compreendemos como cultura. Com este

intuito, procede-se a uma investigação teórica que constrói um corpo conceptual, do qual

se extraem conceitos para se concretizar uma investigação prática.

A investigação teórica abre com um exórdio, no qual se desmonta a concepção de

arquivo para o identificar como dispositivo de poder e se analisar a sua transição de um ob-

jecto técnico analógico para uma tecnologia digital. De seguida, estabelece-se um contexto

histórico a partir da evolução dos exercícios e dos dispositivos de poder e desenvolve-se

uma leitura sobre os impactos da presente mediação tecnológica na experiência, na cons-

trução do conhecimento e nas formas de controlo. Por fim, são lançadas algumas hipóteses

sobre a evolução da tecnologia.

A investigação prática concretiza-se numa plataforma digital que acontece em dois

momentos: um de arquivo e outro de programa. O primeiro momento, de arquivo, trata-se

de um repositório de projectos que abordam o tema da dissertação. O segundo momento,

de programa, configura-se como um programa cultural implementado através de programas

informáticos. Estes, na sua execução, resultam em performances que, a partir da informação

reunida no arquivo, geram uma nova experiência dessa mesma informação. Neste sentido,

foi estruturado um enquadramento para se sistematizarem processos computacionais de

modo que as performances resultem em experiências com potencial de novidade, expressão

e reflexão.

As componentes teórica e prática da investigação procuram abordar a tecnologia

digital não como um fim em si, mas como um factor que afecta a experiência e o compor-

tamento humano.

Palavras chave: arquivo, novo, tecnologia digital, informação, programa.

ABSTRACT

While taking paths from the archive to the new, this dissertation reflects on the resulting

impacts of the introduction, massification and dissemination of digital technology, in the

way we store and deal with information, inside the complex that we understand as culture.

To this end, a theoretical investigation is performed in order to build a conceptual body

from which concepts are drawn in order to effectuate a practical research.

The theoretical research starts with an exordium in which the concept of the archive

is deconstructed in order to identify it as a device of power and to analyse its transition

from a technical analog object into a digital technology. Following this, a historical context

is established, drawing on the evolution of power exercises and apparatuses, and a reading

of the impacts of the present technological mediation on experience, knowledge cons-

truction and forms of control is developed. Finally, some hypotheses on the evolution of

technology are formulated.

The practical research materializes in the form of a digital platform which takes place

in two moments: one of archive, the other of program. The first moment, of archive, con-

sists of a repository of projects dealing with the dissertation’s subject. The second moment,

of program, is configured as a cultural program implemented through computer programs.

These, in their execution, result in performances which, taking from the information col-

lected on the archive generate a new experience of that same information. To this effect,

a framework was structured in order to have computational processes systematized in a

way that the performances result in experiences with a potential for novelty, expression

and reflection.

Both theoretical and practical components of the research seek to address digital

technology not as an end in itself, but as a factor that affects human experience and beha-

viour.

Keywords: archive, new, digital technology, information, program.

A G R A D E C I M E N TO S

A Luísa Ribas, pela incansável, cuidada e desafiante orientação.

A José Gomes Pinto, pela valiosa orientação complementar.

Sem ambos, este trabalho não teria sido possível.

Aos professores do MDCNM,

em particular, a Miguel Cardoso e a Victor Almeida,

pela importante contribuição para a minha formação.

A Francisco Rosa e a Pedro Lagoa.

À gravidade sem peso das amizades de Verão.

Anett, you are an endless sun set.

Meus amigos, ao nosso infinito nós.

Tio, as tuas palavras são inestimáveis.

Aos sempre presentes tios e avós.

À nossa, meus pais.

Í N D I C E

Introdução

1. Investigação Teórica

1.1 [Exórdio] Uma breve história do arquivo

A necessidade do arquivo

Definição de arquivo

O arquivo enquanto espaço

O arquivo enquanto espaço de memória

O arquivo enquanto espaço lacunar

O arquivo enquanto espaço de governação

O arquivo enquanto dispositivo técnico

Do arquivo analógico para o arquivo digital

A nova memória

Os novos dispositivos técnicos

A mnometecnologia

1.2 [Contexto] Exercícios de poder

A biopolítica e a sociedade disciplinar

O Panóptico

A sociedade do controlo

A metáfora da máquina

Os novos espaços de poder

A psicopolítica

Controlo, técnica e paixão

1.3 [Presente] Entre redes e debaixo de nuvens

A metáfora da rede

A metáfora da nuvem

A sociedade tecnologicamente mediada

Uma nova linguagem, uma nova ordem

O algoritmo

“O olho do algoritmo”

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Agência e controlo

O controlo do controlo

1.4 [Futuro] Para lá da linha

A importância de se pensar no futuro

Utopias e distopias

Computação das emoções

Previsão de crimes

Transumanos e pós-humanos

A singularidade

2. Investigação Prática

2.1 Preâmbulo

Propósito

Projectos prévios

Referências

2.2 Arquivo

Conceito

Implementação

Experiência

2.3 Programa

Conceito

Implementação

Experiência

2.4 O novo

O novo novo

Conclusão

Bibliografia

Anexos

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Í N D I C E D E F I G U R A S

Fig. 1: Página de acesso ao projecto [EX]CHANC/GE

Fig. 2: Captura de ecrã de New Old Films: Green Ray, Tacita Dean

Fig. 3: UbuWeb (Goldsmith, 1996)

Fig. 4: P–DPA (Lorusso, 2013)

Fig. 5: Media Art Net (Frieling & Daniels, 2005)

Fig. 6: Hyper Stacks (Bridle, 2015)

Fig. 7: Link Canitet (Cremonesi)

Fig. 8: The Wrong (2015)

Fig. 9: Página de acesso ao backoffice – wordperess.

Fig. 10: Página de acesso ao arquivo.

Fig. 11: Página de acesso ao arquivo: variação da ordem dos projecto.

Fig. 12: Opção de impressão como forma de registar a ordem definida.

Fig. 13: Página dos projectos.

Fig. 14: Sistema de procura.

Fig. 15. Esquema de referências para a formulação do enquadramento.

Fig. 16: Transformação do poema “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade.

Fig. 17: Variações da superfície.

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Introdução 15

I N T R O D U Ç Ã O

Comecemos pela definição de cultura de Edward B. Tylor (1920): “cultura ou civilização

(...) é todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os

costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da

sociedade” (p. 1).1 Com efeito, não nos movemos em espaços abstractos ou não habitamos

lugares de ninguém, vivemos em territórios2 que habitamos enquanto indivíduos integrados

no complexo que se constitui como cultura. Neles, precisamente por se tratarem de terri-

tórios, são exercidas forças físicas e intelectuais de poder e, hoje, estes mesmos territórios

ultrapassam os limites da realidade física, expandindo-se no espaço virtual, espaço que,

embora tenha nascido laico e de ninguém, foi, também ele, apropriado por alguém. Numa

pós-revolução tecnológica, vivemos, então, à mercê dos fluxos das redes descentralizadas,

entre multi-cenários ou multi-paisagens, sob nuvens e sobre interfaces que moldam diaria-

mente a nossa experiência. Com a consequente virtualização do arquivo,3 da experiência e,

até mesmo, dos corpos, muitas foram as alterações que deram origem a uma nova memória,

a uma nova epistemologia e, ainda, a uma nova ontologia. Talvez as alterações tenham sido

demasiado rápidas, com a técnica a tornar-se mais rápida do que a cultura (Stiegler, 1994,

p. 15)4 e com o nosso corpo, sem tempo para a alcançar, a bipolarizar-se entre o conforto e

a angústia da sua nova condição. Perdidos na efemeridade do que havia sido definido como

perene, passámos de um estado de permanência para um estado de trânsito onde, numa

estrutura rizomática, não é mais nos objectos, nas entidades, nos seres, nos nós ou nos pólos

que se encontra a força activa mas, antes, nas possíveis e sempre mutáveis relações entre eles.

Neste contexto, tendo como parábola5 o arquivo – esse lugar onde, por excelência, se abriga

o que se considera de valor para determinada cultura – e a sua virtualização, perguntamos:

quais os impactos da massificação e evolução da tecnologia digital na forma como armaze-

namos e disseminamos a informação no complexo que compreendemos como cultura?

1. Tradução livre de: “Culture or Civilization (...) is that complex whole which includes knowledge, belif, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society.” (Tylor, 1920, p. 1)2. Por território entendemos espaço delimitado pertencente a alguém. 3. Expressão retirada do artigo homónio de José A. Bragança de Miranda (1996) “A Virtualização do Arquivo.”4. Conforme Stiegler (1994, p. 15): “Technics evolves more quickly than culture.” 5. Entendemos por parábola uma narrativa alegórica que contém preceitos sócio-morais.

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APÓS O PÓS: A ANUL AÇÃO DAS TERMINOLOGIAS

Alan Turing, nos primórdios da computação, afirmou que o computador viria a ser o

medium dos media ao simular todos os media numa única máquina. Hoje, sabemos que

esta previsão não apenas se concretizou como, em parte, foi ultrapassada, o que levou a

questão da simulação e a questão da assimilação dos outros media pelo medium digital

para um espaço de debate onde, em territórios com fronteiras difusas, tem-se procurado

respostas entre o real e o virtual, entre a linguagem e o código, entre o corpo e a máquina

e entre o velho e o novo.

Neste debate, com a concretização do computador enquanto medium dos media,

o termo media, inicialmente, foi colocado no epicentro da questão. Mais tarde, com a

revolução digital e a histeria das suas novas possibilidades, o epicentro passou a estar no

termo digital, sendo que, hoje, denominações como pós-media e pós-digital proliferam

nas constatações do momento. Com efeito, este não é um momento de fácil definição,

pois numa história curta, com cerca de meio século, e após o surgimento messiânico do

computador, este disseminou-se rapidamente e o digital banalizou-se deixando de ser

um problema para se transformar num dado adquirido. Estamos, então, num tempo

em que a anulação das terminologias define um presente adjectivado pela ausência e não

pela presença, a mesma ausência que nos coloca num tempo de indefinição construído e

reforçado pelo facto do computador se ter apropriado dos outros media, assimilando-os e

transformando-os, também a eles, em indefinidos. Há, assim, nesta indefinição do medium

uma desmaterialização do objecto, sendo que, actualmente, encontramos media com limites

difusos como a internet, os softwares, as interfaces ou as nuvens. Media estes centrais numa

cultura tecnologicamente mediada e, portanto, igualmente centrais nos recentes estudos

dentro da área do novos media e dos estudos culturais.

Introdução 17

DO ARQUIVO AO NOVO

“being alive” is, in fact, the very same as “being new”. – Boris Groys em “On the new”

Após o modernismo ter tentado apagar os traços da memória a favor de um espaço de acção

atemporal, ao falhar o seu projecto utópico, deu-se a viragem arquivista com as correntes

posteriores a voltarem ao tema do arquivo e da memória. No entanto, esta viragem não ficou

impune às marcas do tempo e o regresso ao arquivo o pôs em causa enquanto monumento

rígido da memória. O espaço do arquivo onde a documentação da memória considerada

de valor era recolhida, categorizada, ordenada e abrigada para permanecer no futuro,

transformou-se, desta feita, num espaço lacunar onde se reconhecem vários exercícios de

poder pondo em causa a integridade da verdade que representa.

Neste regresso, Jacques Derrida (2001) redefiniu o espaço do arquivo, isto é, o

espaço da memória, como hipoamnésico, o que quer dizer, com perturbações de memória,

visto que é vítima da pulsão da morte, uma pulsão destruidora provocada pelo esquecimento

proveniente da morte. Facto que entra em confronto com a aura de eternidade inerente

à concepção de arquivo, trazendo para dentro do seu espaço, contraditoriamente aos seus

alicerces, a noção de lacuna e de finitude. Este carácter de finitude do arquivo é destacado

por Boris Groys (2005), quem considera que os arquivos, também eles, são finitos e que

o efeito de infinitude criado à sua volta é artificial, que não passa de um sonho. Nesta

redefinição, o espaço do arquivo abre-se, então, para a inovação com Derrida (2001) a

assumir a pulsão destruidora como um lugar de reinvestida para outras lógicas e, Groys

(2005), a determinar a perseguição do sonho da infinitude como a força motora para a

necessidade da procura do novo.

Groys (2005) afirma, deste modo, que o novo se encontra no espaço fora do arquivo,

pois uma vez arquivado, perde o seu sentido de novidade. Ou seja, o novo encontra-se no

presente, na realidade, no espaço profano, no espaço onde não estão os objectos de valor.

Desta situação espacio-temporal depreende-se que, ao pertencer ao tempo presente, o novo,

tal como o presente, é inevitável e existe apenas em relação ao antigo, não havendo na sua

acepção nada de oculto, essencial ou verdadeiro. Uma vez que o novo não é uma revelação

do oculto e que não provém de nenhuma verdade, Groys (2005) afirma que:

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(…) tudo está, desde o princípio, aberto, patente, visível e acessível à inovação. A inovação não opera

com as coisas em si, mas com as hierarquias culturais e os valores. A inovação não consiste em que

compareça algo que estava escondido, se não no transmutar de valor de algo visto e conhecido desde

sempre. (p. 19)6

Groys defende, por conseguinte, que para que o novo seja integrado dentro do

arquivo, é necessário que haja uma transmutação de valores e, se a questão diz respeito a

valores, este é um problema de economia. Esta economia cultural, como lhe chama, não se dá

no que toca à realidade, mas sim em relação à tradição ou em relação a um grupo de obras

detentoras de valor cultural. Contudo, se o novo é arquivado no sentido de ser preservado

no tempo futuro, este facto entra em confronto com a natureza inevitavelmente finita

do arquivo. Desta forma, o próprio arquivo combate a sua condição de finitude através,

justamente, da introdução do novo, do qual traz consigo a força sedutora, isto é, o brilho

e a sensação da infinitude, força esta que passado um tempo esmorece, surgindo, no seu

lugar, a necessidade de se encontrar um novo novo.

PROPÓSITO E ESTRUTURA

A presente dissertação tem como propósito investigar os impactos resultantes da evolução

e massificação da tecnologia digital na forma como armazenamos e disseminamos a

informação, no complexo que compreendemos como cultura. Para tal, traçámos caminhos

do arquivo ao novo, caminhos que se estabelecem conceptualmente através de uma

investigação teórica e que se consubstanciam numa investigação prática.

A investigação teórica compõe-se de um corpo construído a partir de literatura

proveniente de várias áreas de estudo, com vista ao estabelecimento de relações significantes

para a estruturação de um discurso onde, perante o mundo “como potencialidade implícita”

– à semelhança das palavras de Italo Calvino (2006, p. 149) – pretendemos “realizar uma

6. Tradução livre de: “Si lo nuevo no es revelación alguna de lo oculto – es decir, no es ningún descubrimento, ninguna creación o ningún engendramiento desde la interioridad – entonces todo está, desde el principio, abier-to, patente, visible y accesible para la innovación. La innovación no opera com las cosas mismas, sino com las jerarquías culturales y los valores. La innovación no consiste en que comparezca algo que estaba escondido, sino en transmutar el valor de algo visto y conocido desde siempre.” (Groys 2005, p. 19)

Introdução 19

operação que nos permita situar-nos neste mundo”,7 no caso, uma operação entre o arquivo

e o novo que reflita sobre como a massificação e a evolução da tecnologia afectam a forma

como lidamos com a informação e, consequentemente, como afectam o complexo que

compreendemos como cultura. Neste sentido, o corpo de investigação teórica divide-se em

quatro partes: a primeira apresenta-se como exórdio,8 a segunda como contexto, a terceira

como presente, e por fim, a quarta como futuro.

Ao começarmos por um exórdio, procuramos estabelecer os princípios sobre os

quais assenta a investigação, para o que tomamos o arquivo como lugar que abriga o que

se considera de valor numa determinada cultura, para desmontarmos a sua concepção

e compreendermos as consequências da sua virtualização. Em seguida, como contexto,

traçamos uma linha histórica que abarca a evolução dos exercícios de poder a partir da

formulação das sociedades e das configurações políticas daí resultantes. Consequentemente,

partimos para uma aproximação ao presente onde estabelecemos uma leitura sobre o modo

como a experiência, a construção do conhecimento, as formas de controlo e os próprios

exercícios de poder têm vindo a ser moldados pela mediação tecnológica. Por fim, e a

partir das questões abordadas, lançamos, dentro da conjuntura, algumas hipóteses sobre a

evolução da tecnologia e as suas possíveis consequências.

A partir da extração de conceitos da investigação teórica, desenvolvemos uma

investigação prática que se concretiza numa plataforma digital, a qual procura criar novas

ordens e abrir a investigação a novas leituras. Para o efeito, esta plataforma divide-se em

dois momentos: o de arquivo e o de programa. O seu primeiro momento, de arquivo,

consiste num repositório, sempre actualizável, de projectos que abordam o propósito deste

trabalho e que foram sistematicamente colectados enquanto fontes complementares da

presente dissertação. No segundo momento, de programa, a plataforma transforma-se

7. Conforme Calvino (2006, p. 149): “Até ao momento anterior àquele em que começamos a escrever, temos à nossa disposição o mundo – o que para cada um de nós constitui o mundo, uma soma de informações, de expe-riências, de valores – o mundo dado em bloco, sem um antes nem um depois, o mundo como memória indivi-dual e como potencialidade implícita; e nós pretendemos extrair desse mundo um discurso, uma narrativa, um sentimento: ou mais exactamente pretendemos realizar uma operação que nos permita situar-nos neste mundo.” 8. Conforme Derrida (2001, p. 17): “Segundo uma convenção consagrada, o exergo se articula com a citação. Citar antes de começar é dar o tom deixando ressoar algumas palavras cujo sentido ou forma deveria dominar a cena. Dito de outra maneira, o exergo consiste em capitalizar numa elipse. Acumular de antemão um capital e preparar a mais-valia de um arquivo. Um exergo estoca por antecipação e pré-arquiva um léxico que, a partir daí, deverá fazer a lei e dar a ordem contentando-se em nomear o problema, isto é, o tema.” No texto original, em francês, Derrida utiliza o termo exergue o qual, traduzido literalmente para português, é exergo, que significa inscrição. No entanto, segundo o modo como o próprio apresenta o termo, a tradução que nos parece mais adequada é exórdio, o quer dizer, princípio ou origem.

num programa cultural construído por uma série de programas informáticos que executam

determinadas regras para a selecção e transformação da informação depositada no

momento de arquivo, com o objectivo de relançar a reflexão inerente a este espaço. Estes

programas informáticos por utilizarem processos computacionais executados em tempo real,

recursos web e informação online resultam em experiências temporais que denominamos

performances online. Para o efeito, estruturou-se um enquadramento para orientar a sua

conceptualização e o seu desenvolvimento, de modo que estas performances online tenham

um potencial de novidade, expressão e reflexão e, assim, possam cumprir o seu objectivo

de gerar novas e significantes reflexões a partir da transformação da informação depositada

no arquivo. Desta forma, procura-se relançar a reflexão, precisamente através da utilização

da tecnologia digital como dispositivo que armazena, dissemina e transforma informação.

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I N V E S T I G A Ç Ã O T E Ó R I C A

[Exórdio] Uma breve história do arquivo 23

1.1 [EXÓRDIO] UMA BREVE HISTÓRIA DO ARQUIVO

“Quem controla o passado,” dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.” – George Orwell em 1984

A NECESSIDADE DO ARQUIVO

Ao discorrer sobre A Condição Humana, Hannah Arendt (2007) designa labor, trabalho e

acção como as três actividades humanas fundamentais, considerando que entre o nascimen-

to e a morte, se dá a existência humana. Esta existência, além da necessidade de sobreviver

– labor – e de produzir artefactos que emprestam uma certa permanência à efemeridade da

vida – trabalho –, tem como condição a acção, pois “na medida em que se empenha em fun-

dar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história”

(pp. 16–17). Em A Revolução Electrónica,1 William S. Burroughs (2005), por sua vez, define

como diferença crucial entre os humanos e os outros animais o facto dos primeiros, através

da escrita, terem a capacidade de tornar a informação disponível para as gerações futuras ou

para animais fora do alcance do seu sistema de comunicação (p. 4).2 Logo, da capacidade

de fazer com que a informação ultrapasse gerações, da necessidade de gerar condições para

a memória e da urgência de construir história nasce a necessidade do arquivo.

1. Tradução livre de: The Electronic Revolution (Burroughs, 2005)2. Conforme The Electronic Revolution (Burroughs, 2005, p. 4): “Animals talk and convey information but they do not write. They cannot make information available to future generations or to animals outside the range of their communication system. This is the crucial distinction between men and other animals. WRITING.”

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DEFINIÇÃO DE ARQUIVO

Michel Foucault (2008), em A Arqueologia do Saber, define o arquivo como “o sistema que

rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”, pelo que “diferencia

os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria” (p. 147).

Charles Merewether (2006), por seu turno, em “Arte e o Arquivo” distingue o arquivo de

uma colecção ou de uma biblioteca “por se constituir como um repositório ou sistema

ordenado de documentos e gravações, verbais e visuais, que é a base na qual a história é

escrita” (p. 10).3 E Jacques Derrida (2001), em Mal De Arquivo: Uma Impressão Freudiana,

salienta que a palavra arquivo tem como raiz o termo grego archê que inscreve em si a noção

de começo e comando, o que consigna para o seu espaço dois princípios: o princípio onto-

lógico, físico ou histórico onde as coisas começam e o princípio nomológico ou o princípio

da lei onde os homens e os deuses comandam (pp. 11–12). Assim, inicialmente, no seu

princípio ontológico ou de começo, o arquivo materializa-se numa localização, num espaço

de abrigo ou no domicílio onde se deposita a história e, no seu princípio nomológico, num

espaço de comando, no qual se encontram os archons, os guardiões do arquivo, os quais

detêm o poder político e o direito de fazer ou representar a lei (p. 12). Segundo Derrida,

então, para se guardar um documento são necessários ao mesmo tempo um guardião e uma

localização (p. 13).

O ARQUIVO ENQUANTO ESPAÇO

Por depender de uma localização, isto é, de uma domiciliação, o arquivo configura-se como

um espaço. Boris Groys (2008) define este espaço como o lugar onde se coleccionam e ze-

lam coisas que são importantes, relevantes ou valiosas para uma determinada cultura e fora

dele – espaço que designa como espaço profano – ficam todas as outras sem importância,

irrelevantes ou sem valor (p. 11).4 Groys acrescenta ainda que o espaço do arquivo tem

3. Tradução livre de “Art and the Archive”: “Created as much by state organizations and institutions as by individuals and groups, the archive, as distinct from a collection or library, constitutes a repository or ordered system of documents and records, both verbal and visual, that is the foundation from which history is written.” (Merewether, 2006, p. 10)4. Conforme Groys (2008, p. 11) em Bajo Sospecha: “En el archivo se coleccionam y custodian cosas que son importantes, relevantes o valiosas para una determinada cultura; todas las demás cosas sin importancia, irrele-vantes o sin valor, quedan fuera del archivo, en el espacio profano.”

[Exórdio] Uma breve história do arquivo 25

como função representar a vida exterior ao próprio espaço, pois quer representar a realidade

e esta não é mais do que a soma de tudo aquilo que não foi reconhecido pelos arquivos (p.

12–13). O espaço do arquivo vive, portanto, destas dualidades interior/exterior e sagrado/

profano, com o seu interior a ser um abrigo ou um espaço de privilégio5 onde se guarda o

que se quer sacralizar, mas que para cumprir a sua função de representar a realidade, precisa

exaustivamente de se alimentar do actual, do que está vivo, do que apenas existe no espaço

exterior a si, ou seja, do que existe no espaço profano.

O ARQUIVO ENQUANTO ESPAÇO DE MEMÓRIA

Na sua função de repositório, o arquivo é um espaço hierarquizado, um sistema “que faz

com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milénios, não tenham surgido

apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias” (Fou-

cault, 1969, p. 146). É ele, então, o espaço que rege a memória – essa “fábrica de produção

de recordações” (Groys, 2008, p. 14) – que, ao ser narrativo, cria condições para que, em

diferentes tempos e em diferentes espaços, o conhecimento que abriga seja significativo.

No entanto, como relembra Foucault (2008), o arquivo “é o sistema geral da formação e da

transformação dos enunciados” e “entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as

regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se mo-

dificarem regularmente” (p. 148). Desta forma, Foucault introduz no espaço da memória o

esquecimento, tomando como princípio que, pela sua enunciabilidade, este não é o espaço

da rigidez, mas da transformação. O próprio, igualmente, assume que o arquivo, apesar da

sua exaustiva ambição de repetição, não tem a capacidade de descrever toda uma época.

O ARQUIVO ENQUANTO ESPAÇO L ACUNAR

Com efeito, o arquivo, pela sua natureza, é um espaço lacunar. Lacunar tanto em termos

de espaço, pois não tem a capacidade de armazenar todos os registos que compreendem

uma realidade, como lacunar em termos de tempo, uma vez que o espaço do arquivo não

5. Conforme Derrida (2001, p. 13): “(...) os documentos, que não são sempre escritos discursivos, não são guar-dados e classificados no arquivo senão em virtude de uma topologia privilegiada. Habitam este lugar particular, este lugar de escolha onde a lei e a singularidade se cruzam no privilégio.”

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se encontra impune às marcas da sua passagem. Como tal, Derrida (2001) põe em causa o

sentido clássico do arquivo enquanto espaço de memória e diferencia verdade material de

verdade histórica, definindo que a verdade material se refere à memória exacta dos aconte-

cimentos, enquanto a verdade histórica se insere num espaço onde os acontecimentos por

recalque ou por repetição adquirem a sua própria verdade (hipoamenese6). Para Derrida

(2001, p. 22), por conseguinte, dentro do espaço do arquivo existe a pulsão de morte,7 uma

pulsão de agressão e de destruição, que leva ao esquecimento, isto é, à aniquilação da me-

mória. Assim, o arquivo configura-se como um espaço hipoamenésico por se tratar de uma

prótese que auxilia a memória e não a memória em si. Neste espaço, os enunciados que

abriga são revelados por repetições performativas, e como resume Derrida (2001):

O arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória.

Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade.

(p. 22).

O ARQUIVO ENQUANTO ESPAÇO DE GOVERNAÇÃO

Nas suas lacunas, o arquivo desvanece enquanto monumento da verdade, transformando-se

num espaço onde se reconhece vários exercícios de força na construção das suas narrativas.

Como afirma Foucault (2008), “o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito” (p. 147) e

Derrida acrescenta que (2001) “a democratização efectiva se mede sempre por este critério

essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação” (p.

16). Desta forma, o espaço do arquivo é um espaço de governação e a lógica arquivista uma

questão de poder, pois “o arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também

nossa experiência política dos meios chamados de informação” (p. 29).

6. Hipomnésia tem como significado: perturbação da memória. No campo da filosofia é tomado com um deslo-camento da memória do corpo para o objecto, um tema que, segundo Bernard Stiegler (2009), foi inicialmente exposto por Platão e que Foucault reactivou como hypomnémata. 7. Conforme Derrida (2001, p. 21): “Ela [pulsão de morte] trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus ‘próprios’ traços – que já não podem desde então chamados ‘pró-prios’. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão, portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (não nos esqueçamos que a pulsão da morte, por mais originária que seja, não é um princípio, como o são o princípio do prazer e o princípio de realidade): a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica, poderíamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, destruidora do arquivo.”

[Exórdio] Uma breve história do arquivo 27

Os exercícios de poder encontram-se, assim, em diversos momentos: começam no

espaço anterior ao arquivo, com o poder reservado ao arquivista para decidir o que é, ou

não, de valor para ser arquivado; passam pelo próprio espaço do arquivo, com a definição

da estrutura do seu sistema; e continuam no espaço posterior com o intérprete a remon-

tar os enunciados. Como tal, perante determinada temporalidade, o princípio nomológico,

representado na subjectividade do arquivista e do intérprete, comanda os seus discursos,

sendo que estes não são apenas construídos a partir da enunciabilidade dos registos, mas

também a partir do projecto de futuro ou da vontade do vir-a-ser dos que o comandam. Ou

seja, a re-montagem dos discursos depende do modo como as figuras no poder ambicionam

que o presente articule o passado com o objectivo de construir um determinado futuro.

O ARQUIVO ENQUANTO DISPOSITIVO TÉCNICO

Tomemos a definição de Deleuze (1990), sobre o que é um dispositivo: “(...) uma espécie

de novelo ou meada, um conjunto multilinear (…) máquinas de ver e fazer falar (…) um

dispositivo que implica linhas de força” (p. 155) ou, como define Giorgio Agamben (2005):

É um conjunto heterogéneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não-linguístico no

mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc.

O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. (p. 9)

Neste sentido, e como relembra José A. Bragança de Miranda (1996), no arquivo,

além de estar em causa a principalidade da experiência, está em causa a materialidade em

que assenta todo o agir (p. 96).8 Derrida (2001) também refere que no arquivo há o “cru-

zamento do topológico e do nomológico, do lugar e da lei, do suporte e da autoridade” (p.

13), e Groys (2006) define o arquivo como “uma máquina que fabrica histórias a partir de

material da realidade que não foi compilado” (p. 14).9 Ou seja, o arquivo é tanto um objecto

técnico, pois é uma fábrica de memórias, mas por “ter uma função estratégica” (Agamben,

8. Conforme Bragança de Miranda (1996, p. 96): “Para além da conservação ou da reprodução de restos ou fragmentos de uma acção já terminada, no arquivo parece estar em causa a ‘principialidade’ da experiência (os primeiros fundamentos do agir), mas também a materialidade em que assenta todo o agir.” 9. Tradução livre de: “El archivo es una máquina de producción de recuerdos, una máquina que fabrica historia a partir del material de la realidad que no há sido recompilado.” (Groys, 2008, p. 14)

28

2005, p. 10) é também um dispositivo; de onde, como conclui Derrida (2001), “a estrutura

técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em

seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro” (p. 29).

DO ARQUIVO ANALÓGICO PARA O ARQUIVO DIGITAL

Com a introdução da tecnologia digital deu-se, segundo Derrida (2001), uma revolução

da técnica arquivista, sobre a qual Bragança de Miranda (1996) afirma que “o novo peso

do ‘arquivo’ deve-se a uma mudança quase imperceptível, orientada pela actual tecnolo-

gização da experiência” (p. 96). Wolfgang Ernst (2013) salienta, ainda, que houve uma

mudança na lógica arquivista correspondente a uma descontinuação técnica. Esta alteração

concretizou-se na transição dos arquivos analógicos para os arquivos digitais, transformando

os arquivos em dispositivos algorítmicos onde os documentos depositados, independente-

mente da sua natureza, ao serem digitalizados, são codificados numa mesma linguagem e

colocados numa estrutura não hierárquica (base de dados). Igualmente, segundo Bragança

de Miranda (1996) “se antes e, desde sempre, o arquivo fora localizado, correspondia a uma

instituição específica, sendo portanto controlado, hoje deslocaliza-se, disseminando-se por

toda a experiência” (p. 97). Perante tais alterações, o impacto desta revolução deu-se tanto

em termos topológicos, com a deslocalização da domiciliação, não sendo mais o arquivo a

casa, mas o território ou o hiperespaço “capaz de abarcar todo o espaço” (p. 98), como em

termos nomológicos, não se tratando mais de uma hierarquia de conhecimento mas sim de

uma colecção dinâmica sempre passível de uma nova hierarquia.

A NOVA MEMÓRIA

Com a conquista do hiperespaço, nunca o arquivo pôde ser tão ambicioso na sua vontade de

duplicar a realidade. Se Derrida (2001) referia a verdade material em contraponto à verdade

histórica, para a virtualização do arquivo, Bragança de Miranda (1996) refere a memória-

-massa dos computadores como um espaço ímpar que aparentemente pode guardar toda

a realidade. No entanto, esse espaço não arquiva a realidade enquanto narrativa, mas sim

como um conjunto de itens fragmentados, e como sugere Lev Manovich (2001):

[Exórdio] Uma breve história do arquivo 29

Após o romance e posteriormente o cinema terem privilegiado a narrativa como a forma fundamental

de expressão cultural da era moderna, a era do computador introduz o seu correspondente – a base de

dados. Muitos objectos de novos media não contam histórias; eles não têm início ou fim; na verdade,

eles não têm qualquer desenvolvimento em termos temáticos, formais ou de um outro modo que orga-

nizaria os seus elementos numa sequência. Em vez disso, são colecções de itens individuais, onde cada

item tem o mesmo significado que qualquer outro. (p. 194)10

A estes itens individuais damos o nome de dados, que se definem como os átomos

da informação. Pela sua natureza fragmentada, são elementos não referenciados e, sem que

sejam processados, não têm qualquer significado. Manovich (2001) define as bases de dados

onde os dados são depositados “como uma colecção de itens em que o utilizador pode execu-

tar várias operações: ver, navegar, procurar” (p. 194).11 Assim, as bases de dados ao contrário

do princípio narrativo do arquivo, ao se constituírem como uma lista não ordenada e não

hierarquizada de elementos, são de leitura descontínua. Neste sentido, afirma Manovich, as

bases de dados e as narrativas são inimigas e, nesta transição entre o analógico e o digital,

são a nova estrutura da memória (p. 199). Ernst (2013), igualmente, acrescenta que “em

vez de serem apenas uma memória de leitura, os novos arquivos são sucessivamente gerados

de acordo com as necessidade actuais” (p. 81).12 Ou seja, como consequência da natureza

processual dos arquivos digitais, vivemos numa cultura de memória dinâmica em constante

actualização (p. 82):

Os espaços de memória guiados para a eternidade foram substituídos por uma série de entradas tem-

poralmente limitadas com datas de validade internas que são tão reconfiguráveis como os mecanismos

retóricos da ars memoriae um dia o foram. (Ernst, 2013, p. 85)13

10. Tradução livre de: “After the novel, and subsequently cinema privileged narrative as the key form of cultural expression of the modern age, the computer age introduces its correlate – database. Many new media objects do not tell stories; they don’t have beginning or end; in fact, they don’t have any development, thematically, formally or otherwise which would organize their elements into a sequence. Instead they are collections of indi-vidual items, where every item has the same significance as any other.”(Manovich, 2001, p. 194)11. Tradução livre de: “They [databases] appear as a collections of items on which the user can perform various operations: view, navigate, search” (Manovich, 2001, p. 194)12. Tradução livre de: “Rather than being a pureyly read-only memory, new archives are successively generated according to current needs” (Ernst, 2013, p. 81)13. Tradução livre de: “The memory spaces geared to eternity are replaced by series of temporally limited entries with internal expiry dates that are as reconfigurable as the rhetorical mechanisms of the ars memoriae once were.” (Ernst, 2013, p. 85)

30

OS NOVOS DISPOSITIVOS TÉCNICOS

A fragmentação da memória e consequente fragmentação da experiência acontece, então,

como resultado dos seus novos dispositivos técnicos, nos quais não são os dados, mas os

metadados que se constituem como elementos do arquivo (Ernst, 2013, p. 92).14 Ou seja,

não é mais a partir dos registos, neste caso dos dados, que se constrói o princípio do que é

dito, uma vez que estes, destituídos de valor, apenas adquirem sentido quando postos em

relação com outros. Desta forma, é no hiato entre os dados ou no modo como se relacio-

nam que se constroem os novos campos de significação:

A nova tarefa do arquivo é ligar diferentes nós de informação de forma significante – uma variável arte de

arquivo. (...) Aqui não é mais uma questão de reactivar objectos, mas de relações. (Ernst, 2013, p. 94)15

Neste contexto, a internet surge como exemplo maior desta nova forma de se cons-

truir arte de arquivo por ser ela própria uma vasta rede de nós interligados. Ao questionar se

a internet é um arquivo ou a sua metáfora, Ernst ressalva que a internet não é um arquivo,

mas sim um novo tipo de transarquivo, que designa por “arquivo dinâmico” ao ter como

essência encontrar-se em permanente actualização (p. 95). Assim, se na sua génese o prin-

cípio do arquivo era assegurar a preservação material dos seus objectos, o arquivo digital

virtualizou esses mesmos objectos, traduzindo-os numa linguagem numérica onde “o logo-

centrismo foi substituído pelo alfanumérico” (Ernst, 2013, p. 88).16 Nesta tradução, cópia

e original, suporte e enunciado confundem-se, sendo que o arquivo não é mais uma fábrica

de cópias, mas, como sugere Bragança de Miranda (1996), “um maquinismo de repetição

com faculdade autopoética” (p. 112). Assim, o poder deste arquivo-fábrica já não reside na

longevidade da sua materialidade mas na capacidade de disseminação da sua imaterialidade:

A força da archivalia digitalizada não reside na sua (altamente vulnerável) migrabilidade para o futuro

tecnológico, mas na sua actual acessibilidade online substancialmente potencializada. A longevidade

14. Conforme Ernst (2013, 92): “it is not the data here, however, but their meta-data that are the archival element”15. Tradução livre de: “The new archive’s task is to meaningfully link up different information nodes — a varia-ble archive art. (…) Here it is no longer a question of reactivating objects, but of relations.” (Ernst 2013, 94)16. Conforme Ernst (2013, 88): “With the digital, physical signals become information. The instrinc value of the documents yields to their media-technological nature, consisting of alphanumerics and hardware. Logocen-trism is replaced by the alphanumeric.”

[Exórdio] Uma breve história do arquivo 31

está enraizada na materialidade da archivalia – discursada nas suas circulações imateriais como infor-

mação. (Ernst, 2013, p. 88)17

A MNEMOTECNOLOGIA

Bernard Stiegler (2009) considera, então, que transitámos das mnemotecnicas – objectos

técnicos portadores de memória – para as mnemotecnologias. Uma passagem com efeitos

semelhantes, segundo o próprio autor, à que ocorreu na antiguidade grega e com o apareci-

mento da imprensa. Como argumento, Stiegler distingue três tipos de memória, a da espé-

cie, a do indivíduo e uma terceira memória apoiada pela técnica (p. 31). Assim, se as duas

primeiras se encontram inscritas no ser, na terceira dá-se a exteriorização, sendo a memória

deslocada para fora do corpo e depositada em próteses que se configuram como tecnologias

cognitivas às quais confiamos uma parte importante da nossa memória, o que nos faz per-

der, cada vez mais, o saber. Stiegler, para ilustrar o processo da perda de saber pela evolução

da técnica dá o exemplo do automóvel que, ao ser aperfeiçoado, menos necessidade há de

o sabermos dirigir. Com efeito, refere que vivemos um aparente paradoxo:

(…) a exteriorização da memória é uma perda de memória e de saber, é o que experimentamos hoje, no

cotidiano, em todos os aspectos de nossa existência e cada vez mais no sentimento de impotência, se-

não de incapacidade – no momento mesmo em que a extraordinária potência mnésica das redes digitais

nos torna igualmente sensíveis à imensidão da memória humana, que parece ter se tornado reativável e

acessível, infinitamente. (Stiegler, 2009, p. 26)

Por conseguinte, as mnemotecnologias ou, como foi referido anteriormente, os ob-

jectos portadores de memória-massa são ao mesmo tempo os que nos capacitam de uma

imensidão de memória sempre reactivável e os que nos retiram capacidades por não mais

carregarmos a memória e o saber dentro do nosso corpo, mas sim nessas próteses exteriores

a nós. Neste sentido, para Stiegler, igualmente, a presente exteriorização da memória é um

17. Tradução livre de: “The strength of digitized archivalia lies not in their (highly vulnerable) migrability into the technological future but in their substantially potentized present online accessibility. Longevity is rooted in the materiality of archivalia – discourse in their immaterial circulation as information.” (Ernst, 2013, p. 88)

32

processo de gramatização18 de todas as formas de saber, na forma de mnemotecnologias cog-

nitivas (p. 27), sendo que esta discretização19 se dá em todos os campos da vida:

A gramatização é a história da exteriorização da memória em todas as suas formas: memória nervosa e

cerebral, memória corporal e muscular, memória biogenética. Assim exteriorizada, a memória pode ser

objecto de controle sociopolítico e biopolítico, através de investimentos económicos de organizações

sociais que reagenciam assim as organizações psíquicas por intermédio dos órgãos mnemotécnicos. (Stie-

gler, 2009, p. 27)

Deste modo, a exteriorização e a digitalização da memória e, consequentemente,

perda do saber, levantam questões políticas. Isto é, levantam questões sobre a possibilidade

da existência de exercícios de poder, na medida em que estes espaços, por se encontrarem

exteriores a nós, estão permeáveis ao controlo por parte de outrem o que, como conclui

Stiegler, “instala, plenamente a questão de uma biopolítica, uma psicopolítica, uma socio-

política e uma tecnopolítica da memória” (p. 27).

18. Conforme Stiegler (2009, p. 27): “a gramatização é o processo pelo qual os fluxos e as continuidades, que tecem as existências, são “discretizadas” (tornados discretos)”.19. Conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: “Tornar discreto ou descontínuo; transformar uma distribuição contínua em unidades individuais.” Em, http://www.priberam.pt/dlpo/discretizar.

[Contexto] Exercícios de poder 33

1.2 [CONTEXTO] EXERCÍCIOS DE PODER

Não vos deixeis seduzir! Regresso não pode haver.– Bertold Brecht em “Canções e Baladas”

A BIOPOLÍTICA E A SOCIEDADE DISCIPLINAR

Para a compreensão de um contexto contemporâneo, no qual as relações de poder sofre-

ram mutações, comecemos pela sociedade denominada, por Michel Foucault, sociedade

disciplinar. Com o apogeu no início do século XX, este modelo, que procede à organização

dos grandes meios de confinamento, começou a desenhar-se na passagem do século XVIII

para o século XIX suplantando a sociedade de soberania, a qual tinha como objectivo “açam-

barcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida”

(Deleuze, 1992, p. 1). A substituição de um modelo por outro teve como força motora o

aparecimento de uma economia focada na produção, passando o governo da sociedade dis-

ciplinar a gerir os corpos enquanto massa e a normalizá-los através da vigilância. Foucault

(1999) chama este exercício de poder de biopolítica, exercício que se foca em dois pólos: o

primeiro, na relação entre o corpo e a máquina, a qual adestra os corpos tornando-os dóceis

e úteis para a produção através de uma vigilância que os disciplina; o segundo, centrado

na vida, preocupa-se com o “suporte dos processos biológicos”, ou seja, com todos os tipos

de índices vitais que permitam a regulação da população (p. 131). Deste modo, a biopolí-

tica, através da disciplina e da regulação dos indivíduos, caracteriza-se por “um poder cuja

função mais elevada não é mais matar, mas investir sobre a vida”; ao deixar sobreviver não

mata, por isso deixa morrer, isto é, “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi

substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (p. 130).

34

O PANÓPTICO

Em Vigiar e Punir, Foucault (1999a) apresenta, como metáfora arquitectónica da sociedade

disciplinar, o Panóptico projectado por Jeremy Bentham, isto é, uma construção circular

dividida em celas que dão para um pátio comum com uma torre ao centro. No cimo da

torre, o vigilante, sem que possa ser observado, observa tudo, inclusive o interior das celas

que, por terem duas entradas de luz cruzadas, não detêm pontos de fuga. Desta forma,

independentemente de o vigilante se encontrar no cimo da torre ou não, os indivíduos

estão sujeitos a uma permanente sensação de vigilância que, através de uma dominação

inconsciente, permite ao dispositivo do Panóptico exercer o seu objectivo disciplinar e ins-

titucional de correcção e regulação.

Enquanto construção celular, o próprio edifício impede a interacção entre os indiví-

duos que o habitam, vivendo estes em estado de isolamento sem que seja permitida a troca

e inibindo, deste modo, a resistência ou revolta:

A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo,

é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é

substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma

solidão sequestrada e olhada. (Foucault, 1999a, p. 166)

Nessa solidão, a subjectividade dos corpos é, assim, silenciosamente oprimida pela

sensação de vigilância inconsciente, o que leva os indivíduos a obedecerem pelo medo de

estarem a ser observados. Na realidade, trata-se de um autocontrolo em que o visado, ao

supor a vigilância, controla-se a si mesmo por medo da punição. A punição por sua vez

deixa de ser necessária, pois o sujeito, pelo medo inerente à sua condição, não sai da norma.

Este sistema de poder visa o controlo de uma multidão por poucos indivíduos, em

que, no limite não é necessário sequer a existência física do vigilante, basta apenas a ideia

da sua existência, pois os indivíduos encontram-se “presos numa situação de poder de que

eles mesmos são portadores” (p. 166). Ou seja, a própria arquitectura do Panóptico permite

um exercício de poder sem intervenção, que por ser um mecanismo automático de efeitos

em cadeia, assegurado pela economia de meios e eficácia preventiva, permite não só exercer

como intensificar qualquer aparelho de poder (p. 170).

[Contexto] Exercícios de poder 35

A SOCIEDADE DO CONTROLO

Com a entrada em crise das instituições de confinamento no século XX, Deleuze (1992)

anuncia que a sociedade disciplinar foi substituída pela sociedade do controlo, o exercício dis-

ciplinar, sobre o indivíduo confinado, pelo controlo deste ao ar livre. Deleuze, que foi bus-

car o termo controlo ao artigo “Os Limites do Controlo” de Williams S. Burroughs (1975),

afirma que “controlo é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro” (De-

leuze, 1992, p. 2), tendo o termo monstro surgido, precisamente, como metáfora de uma

indefinida forma de controlo, uma forma através da qual se torna difícil reconhecer a face.

Deleuze (1992) assegura, assim, que na sociedade do controlo o indivíduo, que deixou

de recomeçar ciclicamente do zero ou de mudar de instituição em instituição, encontra-se,

agora, em permanente modelação, pertencendo a todos os lugares e ao mesmo tempo a

nenhum, numa formação contínua sem que seja possível terminá-la. A fábrica – a máquina

de produção –, onde os indivíduos produziam enquanto massa, com “a dupla vantagem do

patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa

de resistência”, foi substituída pela empresa, “uma alma, um gás”, onde o estímulo à compe-

tição, enquanto “sã emulação”, gera a rivalidade, contrapondo os indivíduos e dividindo as

massas (p. 2). A sociedade do controlo já não é, então, uma massa “regulada por palavras de

ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência)” (p. 2), mas um con-

junto de indivíduos divididos e governados por uma linguagem numérica constituída por

códigos e palavras-passe que permitem o seu acesso ou provocam a sua exclusão.

A METÁFORA DA MÁQUINA

Numa sociedade assim controlada, o indivíduo não mais confinado, interpreta o ar livre1

como liberdade, embora o vigilante não tenha desaparecido, mas sim transformado em

dispositivos tecnológicos que capturam dados a todo tempo e em todos os lugares. Esta

alteração das técnicas de controlo é explicada por uma série de autores, através de uma re-

configuração da noção de Panóptico: Mark Poster refere-se ao Superpanóptico, Thomas Ma-

thiesen ao Sinóptico, Han ao Panóptico Digital, entre outras designações. Na reconfiguração

1. O termo ar livre é utilizado por Deleuze(1992, 2): “Paul Virilio também analisa sem parar as formas ultra-passadas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado”.

36

do Panópitco este deixa de ser um edifício para passar a ser um dispositivo. Com efeito, a

vigilância já não se personifica num suposto observador in loco, mas sim numa vigilância

tecnológica omnipresente onde o controlo se baseia na análise de dados capturados ao su-

jeito vigiado:

O Sinóptico é, por sua natureza, global; o ato de vigiar desprende os vigilantes de sua localidade, trans-

porta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que

fisicamente permaneçam no lugar. Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de

ser os vigiados e passaram a ser os vigilantes, se movam ou fiquem parados. Onde quer que estejam e

onde quer que vão, eles podem ligar-se – e se ligam – na rede extraterritorial que faz muitos vigiarem

poucos. O Panóptico forçava as pessoas à posição em que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa

de coerção – ele seduz as pessoas à vigilância. (Bauman, 1999, p. 52).

Deleuze (1992) utiliza, também, a metáfora da máquina para sugerir que a socie-

dade de soberania manejava máquinas simples, que a sociedade disciplinar, por seu lado,

manobrava máquinas energéticas e que as “sociedades de controlo operam por máquinas

de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores” (p. 3). Estas máquinas

de terceira espécie, fruto da revolução tecnológica, como refere Manuel Castells (2010),

caracterizam-se por, permitirem, pela primeira vez, que a mente humana seja passível de se

constituir enquanto força de produção, e não apenas como mais um elemento do sistema,

condição esta, sine qua non para a mutação de um capitalismo corpóreo, num psico-neoli-

beralismo imperativo nas sociedades contemporâneas.

OS NOVOS ESPAÇOS DE PODER

Perante as novas categorias provenientes da tecnologia evidencia-se o ciberespaço que,

segundo José A. Bragança de Miranda (2001), se traduz em “espaço de controlo”, sendo

que, neste espaço, controlo e virtual encontram-se em tensão. Como distingue, controlo

é “a capacidade de dominar o processo de actualização, i.e., de realização de certas possi-

bilidades” (p. 32) e, virtual, “a potencialidade, servindo apenas para hierarquizar as possi-

bilidades realizáveis” (p. 33). Neste sentido, ressalva não concordar com Deleuze quando

este se refere ao controlo enquanto substituição total das anteriores formas de dominação,

esclarecendo que o problema não está no facto de antes o espaço da realização ser fechado

[Contexto] Exercícios de poder 37

e rigidamente centrado e, agora, encontrar-se aberto e acentrado (p. 37), mas sim na ques-

tão do “carácter mesclado do controlo”, o que acontece não apenas pela “tecnologização

do virtual” mas também pela “sua colonização a partir do arquivo da cultura” (p. 38). Posto

isto, o ciberespaço é esse espaço onde há a possibilidade de tudo ser controlado “pela tradução

generalizada em linguagem digital, seja dos corpos seja das regras seja da posições”, mas que,

no entanto, “depois é preciso um controlo desse controlo” (p. 38).

Antonio Negri e Michael Hardt, por sua vez, desenvolveram a concepção de sociedade

de controlo para sociedade imperial do controlo como resposta ao que defendem ser uma des-

centralização do poder, onde as novas tecnologias e em particular a internet, constituem-se

como uma arquitectura descentralizada composta por uma potencial rede ilimitada que

une vários nós, mas sem um ponto central de controlo2 (Galloway, 2001, p. 83). Para

Alex Galloway (p. 83) é precisamente esta arquitectura descentralizada que permite um fá-

cil controlo protocológico, definindo protocolo como um tipo de conhecimento-de-espécie

para codificar formas de vida (p. 88).3 Assim sendo, segundo estes autores, as novas tecno-

logias e a internet vieram reconfigurar o exercício do controlo e as topologias do poder, não

apenas através de uma aparente desmaterialização dos dispositivos de controlo como de

uma descentralização, sendo precisamente, nessa relação entre as partes que se constroem

as novas e codificadas hierarquias de poder.

2. Conforme Gallaway (2001, p. 83): “Although Hardt and Negri flirt with this gee-whiz position on new tech-nologies, writing that, within the Internet, “[a]n indeterminate and potentially unlimited number of intercon-nected nodes communicate with no central point of control,” and that this decentralized architecture is “what makes control of the network so difficult”, the attentive reader will notice that here they actually mean modern control and not imperial control. What they say elsewhere about Empire should also be true of new media. A decentralized architecture is precisely that which makes protocological/imperial control of the network so easy. In fact, the various Internet protocols mandate that control may only be derived from such a distributed archi-tecture. Hardt and Negri confirm this position by writing elsewhere that “the passage to the society of control does not in any way mean the end of discipline. In fact, the immanent exercise of discipline… is extended even more generally in the society of control” .3. Conforme Gallaway (2001, p. 88): “The key here is not the eluding or the breaking or the non communi-cation, but simply that Deleuze had the foresight to situate resistive action within the protocological ield . In the same way that biopower is a species-level knowledge, protocol is a type of species-knowledge for coded life forms. The connection to Marx’s “species-being” is crucial here, for this is its redemptive quality. I am not suggesting that we should learn to love our various apparatuses of control, but rather that, for all its misgivings, protocological control is still an improvement over other modes of social control. It is through protocol that we must guide our efforts, not against it.

38

A PSICOPOLÍTICA

No aparente distanciamento do vigilante, surge então a sedução tecnológica, onde as redes

do Panóptico Digital são alimentadas pela vontade de exibicionismo e voyeurismo (Han,

2014, p. 88) e onde há um fornecimento de informações pessoais na expectativa de algum

benefício (Bauman, 1999, p. 61). Byung-Chul Han (2013), ao definir as várias sociedades

integrantes da sociedade da transparência, desenvolve a noção de sociedade da exposição na

qual as coisas foram transformadas em mercadoria e em que há que se expor para ser, de-

saparecendo, assim, o valor cultural – a favor do valor da exposição (pp. 25-26).4 O indiví-

duo é, deste modo, o próprio objecto de publicidade (p. 29),5 expondo-se como forma de

adquirir valor e, seduzido pelo Sinóptico, alimenta por sua iniciativa as bases de dados da

actual sociedade dos metadados.6 Uma mesma sedução psicológica que Han caracteriza como

exercício da psicopolítica, um exercício que já não se ocupa em moldar os corpos para a pro-

dução, mas sim em seduzir as psiques a se explorarem de forma “voluntária e apaixonada”.

Como o próprio afirma:

Dirigimos-nos para a época da psicopolítica digital. Avança desde uma vigilânica passiva até um con-

trolo activo. Precipita-nos a uma crise de liberdade com maior alcance, pois agora afecta também a livre

vontade. O Big Data é um instrumento psicopolítico muito eficiente que permite adquirir um conhe-

cimento integral da dinâmica inerente à sociedade da comunicação. Trata-se de um conhecimento de

dominação que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo. (Han, 2014, p. 12)7

A psicopolítica é, então, uma forma refinada de poder, “uma política inteligente que

procura agradar no lugar de submeter” (Han, 2014, p. 25) e que o incorpóreo neoliberalis-

mo utiliza como forma de se apoderar do momento anterior ao pensamento, esse momento

4. Conforme Han (2013, pp. 25-26) em La Sociedad de la Transparência: En la sociedad positiva, las cosas, convertidas en mercancía, han de exponerse para ser, y desaparece así su valor cultual – el que tienen las cosas por existir – a favor del valor de exposición – el que tienen por ser vistas (Benjamin)” 5. Conforme Han (2013, p. 29): “En la sociedad expuesta, cada sujeto es su propio objeto de publicidad. Todo se mide en su valor de exposición. La sociedad expuesta es una sociedad pornográfica.” 6. Designação utilizada por Matteo Pasquinelli e abordada na capítulo seguinte da presente dissertação.7. Tradução livre de:“Nos dirigimos a la época de la psicopolítica digital. Avanza desde una vigilancia pasiva hacia un control activo. Nos precipita a una crisis de la libertad con mayor alcance, pues ahora afecta a la mismo voluntad libre. El Big Data es un instrumento psicopolítico muy eficiente que permite adquiri un conocimiento integral de la dinámica inherente a la sociedade de la comunicación. Se trata de un conocimiento de dominación que permite intervenir en la psique y condicionarla a un nivel prerreflexivo.” (Han, 2014, p. 12)

[Contexto] Exercícios de poder 39

que Han chama de pré-reflexivo ou semi-inconsciente, no qual o indivíduo é atingido, por

meio da apropriação das emoções.

CONTROLO, TÉCNICA E PAIXÃO

No campo das emoções, no seu artigo “Controlo e Paixão”, Bragança de Miranda (2001)

refere a relação entre controlo, técnica e paixão. Neste sentido, afirma que “a essência da

técnica é o controlo”, que “a técnica para se realizar precisa da paixão” (p. 31) e, “paradoxal-

mente, o controlo que precisava da economia capitalista para se libertar da teologia, e desta

última para se libertar da magia mítica, precisa da ‘paixão’ para se libertar do humano” (p.

35). Perante esta relação de ideias, arriscamo-nos na construção do seguinte silogismo: se

“a essência da técnica é o controlo”, se o controlo “precisa da ‘paixão’ para se libertar do hu-

mano”, logo a técnica que se realiza através da paixão liberta-se do humano. Aliás, o próprio

autor afirma, na abertura do seu artigo, que “a tecnologia enquanto domínio do mundo

humano sobre a ‘técnica’ está a chegar ao fim, a um ponto de não retorno” (p. 31).8 Por fim,

como nos disse Bertold Brecht em “Canções e Baladas”, “não vos deixes seduzir! Regresso

não pode haver” e, como conclui Bragança de Miranda (2001):

Daí a necessidade de lutar contra a ‘manipulação da afectividade’ (sic). Trata-se de modular a intensi-

dade de paixão que está contida em cada figura. Cada um terá de o fazer, ou todos serão modulados

pelo controlo. (p. 41)

8. A questão da perda do domínio humano sobre a técnica foi desenvolvida no artigo “Que(m) são os algorti-mos?”, que se encontra em anexo.

40

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 41

1.3 [PRESENTE] ENTRE REDES E DEBAIXO DE NUVENS

Hitler formed the S.S. to protect him from the S.A. If he had lived long enough, the question of protection from the S.S. would have poded itself.– William S. Burroughs em “The Limits of Control”

A METÁFORA DA REDE

Se pensarmos no termo rede, hoje, rapidamente nos vem à cabeça a interligação de redes

comummente designada por internet ou, como já tanto se abrevia, net. A internet, segundo

a sua “própria” enciclopédia Wikipédia, configura-se como um “sistema global de redes de

computadores interligadas que utilizam um conjunto próprio de protocolos com o propó-

sito de servir progressivamente utilizadores no mundo inteiro.”1 Esta descrição conduz a

uma acepção de rede no sentido de malha que liga. Porém, se nos lembrarmos da rede de

pesca, a mesma malha já não é a que liga, mas a que apanha ou colhe peixes ao mar. Igual-

mente, se pensarmos na rede de um campo de ténis, esta já se transforma num dispositivo

de separação, a fronteira entre o território de cada jogador. Logo, a rede pode ser uma

ligação, uma relação, uma malha, mas também um sistema, um aparelho, um dispositivo

ou uma teia. Neste complexo de significados, pode ser ainda uma grelha e, conforme re-

fere Hannah B. Higging2 (2009), “a qualidade de cada evolução da grelha para a próxima,

vincula-as às histórias políticas, sociais, económicas e religiosas, e cada grelha alinha com um

esquema diferente para universalizar” (p. 8).3

1. Definição retirada da Wikipédia, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Internet.2. Em The Grid Book, Hannah B. Higgins (2009) faz uma leitura da grelha enquanto elemento preponderante da modernidade traçando a sua evolução histórica e as suas várias acepções.3. Tradução livre de: “the quality of each grid progressing to the next ties them to political, social, economic, and

42

A METÁFORA DA NUVEM

Ao apresentar, na Fundação Serralves, a exposição “Sob as nuvens: Da paranóia ao sublime

digital”, João Ribas (2015), curador, refere a dupla imagem proveniente dos acontecimen-

tos históricos da segunda metade do século XX: a nuvem em forma de cogumelo da bomba

atómica que representa o aniquilamento potencial da civilização humana e a nuvem4 das

redes de informação que representa o diáfano das suas circunstâncias saturadas (p. 28).

Considerando ambas as imagens, os seus efeitos têm vindo a configurar a paisagem con-

temporânea:

Estas duas nuvens interrelacionadas têm formatado a vida quotidiana, enraizaram-se nela, e os seus efei-

tos sentem-se tanto no mundo como nas nossas mentes, tanto na matéria como no nosso metabolismo.

(…) A singular imagem da nuvem, invisível mas flutuante por cima de nós, simboliza tudo, desde as

abstracções do sistema financeiro até ao carácter crescentemente mediado das nossas relações sociais.

(Ribas, 2015, p. 28)

Inefáveis estas nuvens são, portanto, onde “reside a natureza fantasmagórica do sublime

contemporâneo” (p. 30), um sublime dinâmico que reflecte a nossa impotência em relação

à força da natureza. Contudo, como Ribas ressalva utilizando palavras de Immanuel Kant,

“podemos considerar um objecto temível sem o recearmos” (Kant apud Ribas, 2015, p. 30).

A SOCIEDADE TECNOLOGICAMENTE MEDIADA

No “Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no Final do Século

XX”, Donna Haraway (2000) refere que “uma mudança, ligeiramente perversa de pers-

pectiva pode nos capacitar, de uma forma melhor, para a luta por outros significados, bem

como para outras formas de poder e prazer em sociedades tecnologicamente mediadas” (p.

45). Pois, a terminologia sociedade tecnologicamente mediada parece ser a perfeita tradução

do momento presente, em que as tecnologias digitais se encontram embebidas nas nossas

estruturas sociais, económicas, políticas e afectivas e com os corpos, nas suas configurações

religious histories, each grid aligning with a different universalizing scheme” (Higgins, 2009, p. 8)4. Comummente designada por cloud.

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 43

físicas e psicológicas, não mais a habitarem apenas sobre a terra e sob o céu, como uma vez

mediados tecnologicamente, entre “redes”e debaixo de “nuvens”. Deste modo e conforme foi

referido na apresentação da edição de 2015 da Transmediale, “o valor pode ser agora po-

tencialmente extraído de tudo, e a medição da produtividade pode ser aplicada a todos os

aspectos da vida”,5 sendo que, amiúde, vamos compreendendo que nos encontramos num

limbo entre o conforto e a angústia da nossa nova condição.

Nesta sociedade – que Matteo Pasquinelli (2015) ademais denomina sociedade dos

metadados – a partir dos dispositivos tecnológicos, dos nossos comportamentos, são retira-

dos inúmeros dados, uns fornecidos voluntariamente por nós e outros involuntariamente

capturados.6 A big data, construída pela vastidão dos dados resultantes dessas capturas

compõe-se como fonte a partir da qual se torna possível quantificar e correlacionar tudo.7

Para tal, são utilizados modelos de dados performados por computadores que, através do seu

funcionamento algorítmico, se encontram constantemente a transformar os dados em nova

informação. Escreve Pasquinelli:

Nos últimos anos a sociedade em rede teve uma mudança topológica radical: debaixo da superfície da

web, centros de dados gigantes têm vindo a transformarem-se em monopólios de dados colectivos. Se as

networks são sobre o abrir dos fluxos da informação (como Manuel Castells costuma dizer), os centros

de dados são sobre a acumulação de informação sobre informação, que são os metadados. (…) Especi-

ficamente, os metadados revelam a dimensão da inteligência social que está encarnada em qualquer peça

de informação. (Pasquinelli 2015, 3)8

A big data e os metadados compõem-se, assim, como o novo “Ovo de Colombo” pela

eficiência da sua forma de controlo que, por possuírem uma visão de 360º, afirma Byung-

5. Tradução livre de: “Value can now potentially be extracted from everything, productivity measurement can be applied to all aspects of life” (Transmediale, 2015, p. 6)6. Em “Surveillance and Capture: Two Models of Privacy” Paul Agre (1994) distingue controlo e captura: “Two models of privacy issues are contrasted. The surveillance model employs visual metaphors (e.g., “Big Brother is watching”) and derives from historical experiences of secret police surveillance. The less familiar capture model employs linguistic metaphors and has deep roots in the practices of applied computing through which human activities are systematically reorganized to allow computers to track them in real time.”7. O termo tudo ou em inglês all é bastante utilizado para descrever a capacidade exaustiva que a tecnologia digital tem.8. Tradução livre de: “In the last few years the network society has radicalised a topological shift: beneath the surface of the web, gigantic datacenters have been turned into monopolies of collective data. If networks were about open flows of information (as Manuel Castells used to say), datacenters are about the accumulation of information about information, that is metadata. (…) Specifically metadata disclose the dimension of social intelligence that is incarnated in any piece of information.”(Pasquinelli 2015, 3)

44

-Chul Han (2014, p. 35), não detêm ângulos mortos. Por conseguinte, e à semelhança dos

cartógrafos9 de Jorge Luis Borges (1982) – capazes de desenhar um mapa que, ao ocupar

a cidade inteira, deixou de ser uma representação da própria cidade para se transformar

numa inútil duplicação da mesma – a digitalização de todos os aspectos da vida caminha,

também ela, para uma duplicação da realidade física numa realidade virtual. No entanto,

não inútil, pois ambas as realidades convivem em simultâneo, sendo que os nossos corpos,

agora ubíquos, configuram-se na rede como selfs ou avatares, os quais constroem a noção

contemporânea de indivíduo na intercepção da subjectividade e do fluxo de dados (Tras-

mediale, 2015).10 Incorporados nestas novas acepções de indivíduo, não apenas passeamos

ou navegamos, como agimos e interagimos em contexto digital, com consequências tanto

na realidade virtual como na realidade física, conforme expõe Daphne Dragona (2011):

As redes tornaram-se as novas casas, os novos ambientes de intimidade e de pertença, localizados em

nenhum lugar e em todos os lugares ao mesmo tempo. Dispersos e entrelaçados, sem um aqui ou ali,

sem um dentro ou fora, a realidade das redes tornou-se na nova realidade comum que o mundo co-

nectado partilha. Heterogénea, polifónica e multicultural, esta atractiva condição da rede é baseada em

dois elementos fundamentais: por um lado, na crescente riqueza de dados que estão a ser fornecidos,

controlados e trocados e, por outro, na multidão de utilizadores que contribuem com os dados.11

Perdidos, então, entre todos os lugares e nenhum, encontramo-nos perante a seduto-

ra posição de utilizadores das tecnologias digitais e somos, inversamente, por elas utilizados

9. Conforme Jorge Luís Borges (1982) em “Sobre o Rigor na Ciência”: “(…)Naquele império, a arte da carto-grafia conseguiu tal perfeição que o mapa de uma só província ocupava uma cidade inteira e o mapa do império, uma província inteira. Com tempo, esses mapas desmesurados não os satisfizeram e os colégios de cartógrafos ergueram um mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia, ponto por ponto, com ele. Menos fervorosos do estudo da cartografia, as gerações seguintes entenderam que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste, perduram as dilace-radas ruínas do mapa, habitadas por animais e mendigos, em todo o país não existe outra relíquia das disciplinas geográficas”10. Conforme a Transmediale (2015): “(…) the ‘self ’ has become the contemporary notion of an individual at the interception of subjectivity and data flows.”11. Tradução livre de: “Networks have become the new homes, the new environments of intimacy and belon-ging, which are located nowhere and everywhere at the same time. Dispersed and interweaved, with no here or there, no inside or outside, the reality of the networks became the new common reality the connected world shares. Heterogeneous, polyphonic and multicultural, this charming networked condition is based on two fun-damental elements: on the growing wealth of data being provided, controlled and exchanged on one hand and on the multitude of users contributing this data on the other.” (Dragona, 2011)

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 45

ou, consoante questiona Lucas D. Introna (2013), “somos nós ‘os utilizadores’ ou os ‘utili-

zados’ neste nexus sociomaterial?” (p. 16).12

UMA NOVA LINGUAGEM, UMA NOVA ORDEM

Num momento em que a digitalização de todos os aspectos da vida permite que política,

economia, emoções, trabalho e família passem a existir numa mesma linguagem, Bragança

de Miranda (2001) adianta que “a técnica aparece como língua pura e geral, capaz de tradu-

zir todos os aspectos do mundo em informação” (p. 31), sendo que agora “tudo é traduzível

nesse espaço cibernético” (p. 38). Para que seja possível esta tradução, é necessário que a

informação seja discretizada13 em dados, os quais, Antoinette Rouvroy (2013) em “Gover-

nação Algorítmica e o Fim da Crítica”14 vem ressalvar que, em bruto, são destituídos de

qualquer significado, na medida que são sinais sem significação. Ou seja, os dados em bruto

são informação sem contexto, ou como afirma Han (2014), “os dados e os números não

são narrativos, senão aditivos” (p. 36).15 Rouvroy (2013) acrescenta, ainda, que os dados

por não terem significado tornam-se calculáveis16 e que, consequentemente, deu-se uma

mudança de paradigma no conhecimento produzido a partir da análise de dados. Desta

forma, a produção de conhecimento abandonou o princípio de que o mesmo provém dos

dados (outrora registos) para dar lugar à noção de que o conhecimento é imanente aos

próprios dados e que se torna visível ou é revelado pela tradução algorítmica. Por isso alerta

que, actualmente, partimos da ideia de que o conhecimento já pré-existe e que se encontra

12. Tradução livre de: “Are we “the user” or “the used” in this sociomaterial nexus?” (Introna, 2013, p.16)13. Conforme o Dicionário Priberam de Língua Portuguesa, em http://www.priberam.pt/dlpo/discretizar: “Discretizar: verbo trasitivo [Matemática] Tornar discreto ou descontínuo; transformar uma distribuição contí-nua em unidades individuais.” 14. Tradução livre de: “Algorithmic Governmentality and the End(s) of Critique” (Rouvroy, 2013)15. Tradução livre de: “Los dados y los numeros no son narrativos, sino aditivos.” (Han, 2014, p. 36)16. Rouvroy sobre os dados em bruto: “What kind of object is raw data? It does not function as a sign because it’s does not reassemble the reality, it pretends to represent it. It even does not pretend to represent any reality of the physical world any more. So it does not function as icon. It does not function either as a trace it does not hold the remembers in its physical shape of it is meant to represent and does not represent. So it does not function as an indice either. It does not function as a symbol, because it is not conventional, it is not that we have colective decided that that raw data will mean something to us (…). It does not function in any of the semiotic categories we have been used work with. And that is it because it is meaningless, because it is signal wi-thout signification, that it becomes calculable. Umberto Eco speaks of that, he says a signal is not a sign because is not meaningful, it does need to be interpreted, it is because even interpreted it will not mean anything. But despite the lack of significance, the lack of meaning, it is calculable and it is not is only despite, it is because it is meaningless it becomes calculable.” (Rouvroy, 2013)

46

codificado no mundo através de uma linguagem que apenas os algoritmos conseguem ler

directamente:

(...) como seres humanos só temos acesso ao mundo através de muita mediação, e a primeira mediação

é a linguagem, mas a ideologia da big data é que poderíamos em última instância aceder ao mundo sem

qualquer tipo de mediação, directamente numa linguagem que não é uma linguagem, que é o grau zero

da escrita, uma linguagem de 1 e 0.

E remata:

O objectivo da governação algorítmica é dispensar-nos da discussão. (Rouvroy, 2013)17

Através da noção aparente de uma obsoleta mediação, abre-se, assim, o espaço para

um “dispensar da discussão” que encontra as suas fundações no sentido acrítico herdado do

pensamento iluminista, o qual toma como princípio que a ciência existe enquanto única

linguagem (ou o seu grau zero) capaz de revelar o mundo tal como é e que, por ser exacta,

não deixa margem para a dúvida humana.

Ribas (2015), ao referir-se também aos novos modelos de formulação de conheci-

mento, toma o slogan do Gmail em 2004, “Não classifiques, procura!” (p. 40), como pre-

monitório para o modelo epistemológico da nuvem. Refere, por isso, que com o processo

de digitalização, houve uma viragem epistemológica ao ser substituído o princípio meto-

dológico clássico para a produção de conhecimento de classificar pelo gesto de procurar, e

segundo o próprio:

A procura implementa uma violência epistemológica através da criação de padrões de contiguidade e

formas alógicas de organização do discurso, simultaneamente libertadores e, porém, crescentemente

controladas por corações e abstracções. (Ribas, 2015, p. 40)

17. Tradução livre de: “(…) as humans beings we only have access to the world through a lot of mediation, and the first mediation is language, but the ideology of the big data is that we could at least access the world without any kind of mediation, directly in a language that is not a language with is the degree zero of the write, a lan-guage of 1 and 0. The goal of the algorithm governmentalitly is to dispense us from the discussion.” (Rouvroy, 2013)

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 47

Desta forma, Ribas levanta a questão da subjectividade a partir dos “corações e abs-

tracções”, pondo em causa a objectividade da organização destes discursos. Com efeito,

num mundo em que tudo pode coexistir lado a lado, sem ordem determinada de impor-

tância ou “numa ontologia plana de acesso e simultaneidade”, como conclui, é “o algoritmo

que reconfigura literalmente a ordem das coisas” (p. 40).

O ALGORITMO

De acordo com Introna (2014), “no seu nível mais básico um algoritmo é um conjunto

de instruções colocadas numa máquina para resolver problemas bem definidos” (p. 1)18 e,

segundo Andrew Goffey (2008), “os algoritmos fazem coisas, e a sua sintaxe compreende

uma estrutura de comando que possibilita que tal aconteça” (p. 17).19 Neste sentido, os

algoritmos definem-se por uma série de procedimentos que necessitam de ser executados

para se atingir determinado fim. Ao tomar a fórmula de Robert Kowalski, “Algoritmo =

Lógica + Controlo”, Goffey (2009) esclarece:

Certamente a qualidade formal do algoritmo como construção lógica consistente traz consigo um

enorme poder – particularmente num contexto tecno-científico – mas há equívocos suficientes sobre a

natureza puramente formal desta construção que nos permite compreender que o algoritmo é algo mais

do que uma forma lógica consistente. (p. 19)20

Portanto, um algoritmo compõe-se, à semelhança do arquivo, por uma forma lógica

que corresponde à materialidade do seu princípio ontológico que se configura, não só como

a dimensão mecânica do seu comportamento, mas também pela imaterialidade do seu

princípio nomológico ou princípio de comando que controla a sua acção. Deste modo, como

conclui Goffey (2008), “ao mesmo tempo teóricos e práticos, ideológicos e materiais” os

algoritmos são “uma abstracção que tem uma existência independente da que os cientistas

18. Tradução livre de: “At its most basic level an algorithm is merely the set of instructions fed into the machine to solve a well-defined problem.” (Introna, 2014, p. 1)19. Tradução livre de: “Algorithms do things, and their syntax embodies a command structure to enable this to happen.” (Goffey, 2008, p. 17)20. Tradução livre de: “Certainly the formal quality of the algorithm as a logically consistent construction bears with it an enormous power – particularly in a techno-scientific universe – but there is sufficient equivocation about the purely formal nature of this construct to allow us to understand that there is more to the algorithm than logically consistent form.” (Goffey, 2008, p. 19)

48

gostam de referir como ‘detalhes de implementação’” (p. 15).21 Em igual sentido, Introna

(2013) enquanto discorre sobre o suposto poder dos algoritmos levanta as seguintes questões:

Os algoritmos (implementados como software) são tidos poderosos e perigosos, porque operam sob a

superfície ou no background. Não podemos inspeccioná-los directamente (como objecto código) ou,

em muitos casos, entendê-los como código-fonte (...). As decisões de design, codificadas e encapsuladas

em ninhos complexos de declarações de lógica e de controlo – regras dentro de regras dentro de regras

– ditam (em milhões de linhas de código-fonte) as nossas supostas escolhas com base em condições

relacionais complexas que, após muitas iterações de correcções de bugs e ajustes, até mesmo os progra-

madores já não entendem. (p. 3)22

Introna instaura, assim, a dúvida sobre o rigor algorítmico adiantando que os algo-

ritmos operam num lugar de acesso reservado, sendo difícil verificar o seu comportamento

efectivo enquanto performam por este se desenrolar em tempo real e, baseado nas ideias de

Ellen Ulmann, admite ainda que a acção dos algoritmos pode extrapolar a sua estrutura

lógica inicial, isto é, que a sua acção pode não ser expectável ou mesmo que pode fugir ao

controlo de quem os programou (p. 3).23 Deste modo, Goffey e Introna assumem que o

comportamento dos algoritmos ultrapassa, por um lado, os “detalhes de implementação”,

isto é a dimensão mecânica do seu princípio ontológico e, por outro, a vontade de quem os

criou, o princípio nomológico que o controla.

21. Tradução livre de: “An algorithm is an abstraction, having an autonomous existence independent of what computer scientists like to refer to as ‘implementation details,’ that is, its embodiment in a particular program-ming language for a particular machine architecture (which particularities are thus considered irrelevant).” “In short, both theoretically and practically, ideally and materially, algorithms have a crucial role in software.”(Go-ffey, 2008, p. 15)22. Tradução livre de: “Algorithms (implemented as software) are said powerful, and dangerous, because they operate under the surface, or in the background. We cannot directly inspect them (as object code) or, in many cases, understand them as source code (…). Design decisions, encoded and encapsulated in complex nests of logic and control statements — rules within rules within rules — enact (in millions of lines of source code) our supposed choice bases in complex relational conditions, which after many iterations of ‘bug fixing’ and ‘tweaking’ even the programmers no longer understand.” (Introna 2014, 3)23. Conforme Ullman em Introna (2014, p. 3): “As Ullman (1997a, pp. 116–177) observes: ‘The longer the sys-tem has been running, the greater the number of programmers who have worked on it, the less any one person understands it. As years pass and untold numbers of programmers and analysts come and go, the system takes on a life of its own. It runs. That is its claim to existence: it does useful work. However badly, however buggy, however obsolete – it runs. And no one individual completely understands how’ (emphasis added).”

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 49

“O OLHO DO ALGORITMO”

Consideremos a definição de inteligência de Linda S. Gottfredson (1994), segundo

a qual, “a capacidade mental que, entre outras coisas, envolve a habilidade de raciocinar,

planear, resolver problemas, pensar de forma abstracta, compreender ideias complexas,

aprender rapidamente e aprender a partir da experiência” (p. 1).24 Perante tal definição,

depreendemos que as tecnologias que operam através de instruções algorítmicas, embora

não tenham atingido a singularidade – momento no qual as formas de inteligência artifi-

cial serão tão ou mais capazes do que a inteligência humana – já se concebem como certas

formas de inteligência. Neste sentido, assumimos que os algoritmos se configuram como

agentes25 com a capacidade autónoma de resolver problemas segundo regras criadas, no li-

mite, pelo seu próprio comportamento e com uma acção que, pela sua complexidade pode,

então, ultrapassar o controlo de quem os programou. No entanto, como afirma Pasquinelli

(2014):

O olho do algoritmo, de facto, emerge como forma de inteligência no centro das redes de computação.

A visão algorítmica concerne o entendimento de uma vasta quantidade de dados de acordo com um

vector específico (...). O olho do algoritmo é sempre meio cego, no entanto produz efeitos políticos

significantes com a sua cegueira a ser tomada como verdade. O olho do algoritmo é desmembrado,

como o olho de um infeliz semi-deus.26

Assim e à semelhança dos poderes exercidos nos arquivos, na informação governada

pelos algoritmos e em muito utilizada para efeitos políticos, há exercícios exteriores a estas

“formas de inteligência”. Em “Cativos da Nuvem: Parte I”, os Metahaven (2015) levantam

esta questão afirmando que “somos prisioneiros voluntários da nuvem; somos governados

por governos que não elegemos” (p. 191), e Pasquinelli (2014) alerta para o facto de que

“as tecno-elites estão a começar a explicitamente reclamar a governação do cérebro mun-

24. Tradução livre de: “Intelligence is a very general mental capability that, among other things, involves the ability to reason, plan, solve problems, think abstractly, comprehend complex ideas, learn quickly and learn from experience.” (Gottfredson, 1994, p. 1)25. No sentido de entidade que opera.26. Tradução livre de: “The eye of the algorithm, in fact, emerges as a form of intelligence at the center of the networks of computation. Algorithmic vision is about the understanding of vast amount of data according to a specifc vector (…). The eye of the algorithm is always half blind, yet it produces significant political effects as its blindness is taken for truth. The eye of the algorithm is dismenbered, like the eye of an unfortunate demigod.” (Pasquinelli, 2014)

50

dial”(p. 2).27 Cérebro mundial este, ou mais precisamente os computadores, que nasceram

com a promessa de um outro futuro,28 um futuro de harmonia, graça e beleza, um futuro

no qual iriam libertar os humanos da burocracia, da alienação e do trabalho,29 no qual, do-

tados de uma super-inteligência, iriam calcular a resolução dos problemas da humanidade

e, ainda, de se constituírem enquanto enciclopédia universal aberta a todos num espaço

laico e sem dono. Entretanto, esse futuro de harmonia, graça e beleza não se tem revelado,

pois cada vez mais se sente que este cérebro mundial caminha num outro sentido, no sen-

tido do controlo e do comando, e que mais uma vez nos encontramos perante um objecto

técnico a ser utilizado para potenciar o controlo.30 Felix Stalder, na abertura da conferência

“All Watch Over by Algorithms”, ao parafrasear Rosa Von Praunheim,31 sugere, então, que

“não é o algoritmo que é perverso mas a situação em que ele vive”.

AGÊNCIA E CONTROLO

Uma, entre várias leituras sobre o significado da aparição dos monólitos no filme 2001

Odisseia no Espaço, refere-se a este objecto como um marco que assinala duas importantes

transições relativas à evolução da técnica: a primeira, a sua descoberta e, a segunda, quando

esta ultrapassa o seu criador. Assim, com o primeiro monólito surge a descoberta da arma

através da utilização do osso como ferramenta para matar e, com o segundo, a criação da

inteligência artificial personificada no HAL 9000, o computador da nave espacial “Disco-

very One”. Estas duas transições são bastante elucidativas quando nos referimos aos modos

de existência da técnica, uma vez que na primeira transição encontramos a ferramenta

27. Tradução livre de: “Techno-elites are starting to explicitly reclaim the governance of the world brain.” (Pas-quinelli, 2012, p. 2)28. Conforme Richard Brautigan (1967): “I like to think (and / the sooner the better!) / of a cybernetic meadow / where mammals and / computers / live together in mutually / programming harmony / like pure water / tou-ching clear sky. // I like to think / (right now, please!) / of a cybernetic forest / filled with pines and / electronics / where deer stroll peacefully / past computers / as if they were flowers / with / spinning blossoms. // I like to think / (it has to be!) / of a cybernetic ecology / where we are free / of our labors / and joined back to nature, / returned to our mammal / brothers and sisters, / and all watched over / by machines of loving grace.”29. Conforme Felix Stalder (1995): “(…) technology was not about efficiency, not about control and command but a necessary means of create a new society, one that will liberate people from bureaucracy and alienation, from labor. Offering new vitals on a better society, a society of harmony, grace and beauty.”30. Como concluímos no capítulo anterior com palavras de Bragança de Miranda (2001, p. 31): “a essência da técnica é o controlo”.31. Rosa Von Praunheim lançou em 1971 o filme intitulado: “It Is Not the Homosexual Who Is Perverse, But the Society in Which He Lives”.

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 51

enquanto objecto que através da vontade humana exerce uma acção. Ou seja, a intenção

de matar não provém do osso mas de quem o maneja. Na segunda transição, o HAL 9000

– a inteligência artificial “infalível e incapaz de erro” que, embora tenha sido programada

algoritmicamente pelo humano enquanto ferramenta para responder às suas necessidades,

insurge-se contra o seu criador. Ora, o HAL 9000, por estar incorporado na nave espacial

habitada é, também, contexto, pois os habitantes da nave vivem dentro de seu corpo que

não se configura enquanto objecto mas sim enquanto sujeito. Perante esta sinopse lança-se,

então, o grande jogo de poder que preenche parte do enredo: quem controla a “Discovery

One”? A equipa de humanos destinada a manejá-la ou o seu cérebro algorítmico?

Igualmente, encontramo-nos debaixo de nuvens que distribuem a informação para

redes que fisgam os nossos corpos, isto é, encontramo-nos num tecno-contexto no qual os

algoritmos se constituem como entidades a quem confiamos decisões das mais diversas

ordens, muitas vezes, como foi referido, de forma totalmente acrítica. Neste sentido, a

ecologia do poder transformou-se num complexo território no qual é difícil identificar

quem controla quem, e como Bernard Stiegler ou Bruno Latour têm vindo a defender, pre-

cisamos de considerar contextos nos quais entidades humanas e não humanas deliberam.

A bom rigor, a consciência da falência do domínio absoluto do humano sobre a tecnologia

não é nova. Já autores como Martin Heidegger e Gilbert Simondon tinham posto em causa

a neutralidade dos dispositivos enquanto agentes de mediação e Donna Haraway (2000)

veio afirmar que “a maquinaria moderna é um deus irreverente e ascendente, arremedando

a ubiquidade e a espiritualidade do Pai” (p. 43). No caminho da libertação, estes algoritmos

têm cada vez mais um papel preponderante no acto de governar o que, segundo Barocas et

al. (2013), em “Algoritmos de Governação: Uma Peça Provocativa”,32 levanta uma série de

questões sobre agência33 e controlo:

Quem são os árbitros destes (potenciais) admiráveis novos algoritmos? Se os engenheiros da Goo-

gle desenham um algoritmo de procura de determinada forma, não estarão eles a exercer autoridade

para além do algoritmo? Serão os engenheiros árbitros dos algoritmos? Serão os algoritmos árbitros de

32. Tradução livre de: “Governing Algorithms: A Provocation Piece” (Barocas et al., 2013)33. O termo agência surge como tradução do inglês agency que em filosofia consiste na capacidade de umaentidade agir em determinado contexto.

52

como a informação flui dentro das esferas públicas? E podendo a propriedade transitiva aplicar-se, por

exemplo, isto faz dos engenheiros de algoritmos outra vez árbitros? Ou alguns dos algoritmos têm uma

espécie de autonomia? (p. 5)34

O CONTROLO DO CONTROLO

Vemo-nos, então, perante uma situação em que nos é difícil identificar quem realmente

governa ou, por outras palavras, quem são os agentes e quem de facto exerce o controlo.

Sabemos que quem possui os dados, hoje, configura-se como o archon35 contemporâneo,

portanto, aquele que detém o poder de governar não mais a partir dos registos de arquivo,

mas sim a partir dos dados capturados. Recentemente, com as revelações de Edward Snow-

den, veio a público uma série de programas de vigilância através dos quais são feitas cap-

turas massivas de dados dos cidadãos sem que estes estejam cientes da situação. Um desses

programas pertence à NSA, que se defende como estando ao serviço da segurança nacional

e atesta que se um indivíduo “nada tem a esconder, não tem nada que temer”.36 No entanto,

como sugere Eleonor Saitta (2013):

Os políticos limpos não ganham eleições. Os políticos limpos não estão autorizados a ganhar eleições.

Mas também, não há pessoas totalmente limpas no mundo. Todos temos algo suficientemente cons-

trangedor para arruinar a carreira e se a NSA decidir, pode com isso arruinar a carreira de alguém.37

Deste modo, com a informação que a NSA detém, o seu poder pode ultrapassar

o campo da segurança e chegar à matéria do controlo, pode “avançar de uma vigilância

passiva a um controlo activo” (Han 2014, p. 12).38 Aliás, além das entidades tidas como

34. Tradução livre de: “Who are the arbiters of these (potentially) brave new algorithms? If Google engineers design a search algorithm in a certain way, do they thereby assert authority over more than the algorithm? Are engineers arbiters of algorithms? Are algorithms arbiters of how information flows within public spheres? And might the transitive property apply, i.e. does that make engineers of algorithms the arbiters again? Or do some algorithms have a species of autonomy?” (Barocas et al., 2013, p. 5)35. Na parte 1 “Uma Breve História do Arquivo” referimos que um arquivo depende do seu princípio nomológico representado na subjectividade do arquivista. Este tem o poder de determinar os discursos a partir do seu projecto de futuro ou da sua vontade do vir-a-ser.36. Tradução livre de: “If you have nothing to hide, you have nothing to fear”37. Tradução livre de: “Clean politicians don’t win elections. Clean politicians aren’t allowed to win elections. But also, there aren’t just clean people in the world. Everybody has something that’s embarrassing enough to ruin their career if the NSA decides they want to ruin someone’s career over it. “(Saitta, 2013)38. Confome Han (2014, p. 12): “Nos dirigimos a la época de la psicopolítica digital. Avanza desde una vigilan-

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 53

públicas como a NSA, empresas privadas, tais como o Google, Facebook, Apple entre ou-

tras, são donas de enormes colecções de dados e metadados dos seus utilizadores e clientes

que não só lhes pertencem como estão sob a jurisdição da Lei Patriótica, a qual permite

ao estado Norte Americano, alegadamente para fins de segurança nacional, o acesso legal

às informações dos clientes sem as previstas barreiras jurídicas (Metahaven 2012). Assim,

com este livre acesso, o estado Norte Americano, como os seus aliados, detém nas suas

mãos informação que põe em causa, não apenas questões de privacidade, transparência

e de possível abuso de poder, como também a questão da utilização subjectiva e vectorial

dos dados para fins governamentais. Igualmente, empresas como o Facebook ou o Google,

que são tidas como prestadoras de serviços gratuitos, vêem os seus lucros crescerem expo-

nencialmente a partir da publicidade embebida nos seus serviços, uma vez que, a big data

que geram e gerem é utilizada para efeitos de microtargeting. Esta estratégia de marketing

consiste em campanhas publicitárias focadas no indivíduo a partir da análise do seu perfil

de utilizador digital, respondendo de forma bastante directa às suas necessidades.

Num sentido contrário, questionamos não apenas o papel das entidades humanas na

agência e controlo da informação governada algoritmicamente como, e também, o modo

como agem, neste contexto, as entidades algorítmicas. Para o efeito, tomamos o exemplo

do voto electrónico, conforme descreve Introna (2013):

Por exemplo, se quisermos verificar se um software de um sistema de votos electrónicos de facto aloca os

votos correctamente, o que iremos verificamos? Iremos observar o algoritmo, o código-fonte ou objecto

código (se o conseguirmos ler)? Ou iremos verificar a sua operação? Se pudéssemos verificar a operação,

como é que poderíamos saber se o objecto-código que agora corre (enquanto testamos) é o mesmo que

vai correr na noite das eleições – não podemos inspeccioná-lo directamente, especialmente,não em ope-

ração? Mesmo se pudéssemos ler o código-fonte, seríamos capazes de localizar um erro quando temos

50 milhões de linhas de código-fonte para inspecionar (aparentemente o Windows Vista consiste em

50 milhões de linhas de código-fonte). O problema de onde está o algoritmo (na sua actualidade) e de

saber o que ele faz torna-se mais complexo com o advento dos algoritmos de machine learning basea-

dos em redes neuronais. Estes algoritmos adaptam-se através da experiência (expostos a um conjunto

específico de dados). (…) De muitas formas os algoritmos são uma caixa negra a qual, quando aberta,

cia pasiva hacia un control activo. Nos precipita a una crisis de la libertad con mayor alcance, pues ahora afecta a la misma voluntad libre.”

54

apenas introduz simplesmente mais caixas negras e, quando subsequentemente abertas, simplesmente

introduz mais caixas negras e assim sucessivamente. (p. 2)39

Neste sentido, os algoritmos, que na sua génese advieram com uma aura de transpa-

rência, parecem configurar-se como entidades obscuras ou caixas pretas, como refere Intro-

na (2013). Ao tomarem formas como machine learning, algoritmos genéticos, ou algoritmos

evolutivos, torna-se cada vez mais difícil escrutinar o seu comportamento e, tal como as

palavras de William S. Burroughs (1975), em Os Limites do Controlo, o controlo necessita

de tempo, de oposição, de concessão e, no limite, de ser controlado. Assim, as entidades

humanas criam algoritmos – entidades não humanas – para controlar os seus comporta-

mentos que, por sua vez, necessitam do controlo humano que, por sua vez, necessita do

controlo algorítmico e que, num ciclo sem fim constroem consecutivas camadas de contro-

lo. Uma sobreposição de camadas que se configura como uma rede que protege e alimenta

quem age de facto sobre a informação, os quais, por se encontrem escondidos em lugar de

acesso reservado, permitem que, na sua aparente ausência, continuemos a não os recear.40

39. Tradução livre de: “For example if we want to verify that the software in an electronic voting system does indeed allocated votes correctly. What will we verify? Will we look at the algorithm, the source code or the ob-ject code (if we can read it)? Or will we verify its operation? If we can verify the operation, how will we know that the object code running now (when we test it) is the same object code that will be running on the night of the election – we cannot inspect it directly, especially not in operation? Even if we can read the source code, will we be able to spot an error when we have 50 millions lines of source code to inspect (apparently Windows Vista consist on 50 million lines of source code). This problem of where the algorithm is (in its actuality) and how to know what it does is made even more complex with the advent of machine learning algorithms based on neural nets. These algorithms adapt themselves throught experience (exposure to a specific data set). (…) In many ways the algorithm is a black box, which when opened simply introduces more black boxes, which when subsequently opened simply introduces more black boxes, and so forth.” (Introna, 2013, p. 2)40. A questão do papel dos algoritmos no controlo foi desenvolvida no artigo “Que(m) são os algoritmos?” que se encontra em anexo.

[Presente] Entre redes e debaixo de nuvens 55

1.4 [FUTURO] PARA L Á DA LINHA

Until now, we have violated the movie camera and forced it to copy the work of our eye. And the better the copy, the better the shooting was thought to be. Starting today we are liberating the camera and making it work in the opposite direction – away from copying. – Vertov em WE: Variant of a Manifesto

Saber o que os ciborgues serão é uma questão radical; respondê-la é uma questão de sobrevivência.– Donna Haraway em Manifesto Ciborgue

A IMPORTÂNCIA DE SE PENSAR NO FUTURO

A acção humana desenvolve-se tendo como premissa a promessa de futuro sem a qual não

teríamos a capacidade de nos projectar para além da linha do presente e toda a acção seria,

então, inconsequente. Pensar no futuro é, por isto, inerente à nossa condição, consistindo

este acto numa reflexão ficcional a partir da experiência do passado, que mapeia as ten-

dências do presente, desenvolvendo-as em possíveis cenários futuros. Recordamos Aldous

Huxley ao ser entrevistado por Mike Wallace, quando discorria sobre a evolução dos dis-

positivos de propaganda:

O que fortemente sinto é que não devemos ser apanhados de surpresa pelos nossos próprios avanços

tecnológicos. Isto aconteceu repetidas vezes na história com a tecnologia a avançar e a mudar as condi-

56

ções sociais e, de repente, as pessoas vêem-se numa situação que elas não previram e a fazerem uma série

de coisas que na realidade não queriam fazer. (Huxley, 1958)1

Deste modo, se em muitos casos pensar no futuro é um puro exercício de entreteni-

mento, em outros pode ser uma questão de liberdade futura e, no limite, pode ser mesmo

uma questão de sobrevivência.

UTOPIAS E DISTOPIAS

No campo da literatura, entre os vários géneros onde se encaixam as ficções2 sobre o futuro,

destacamos a dualidade utopia e distopia. Nos dicionários, encontramos como definição

de utopia a “ideia ou descrição de um país ou de uma sociedade imaginários em que tudo

está organizado de uma forma superior e perfeita”3, em contraponto com a definição de

distopia, ou seja, a “ideia ou descrição de um país ou de uma sociedade imaginários em que

tudo está organizado de uma forma opressiva, assustadora ou totalitária”4. Neste campo de-

paramo-nos com duas afamadas obras da primeira metade do século XX, Admirável Mundo

Novo, de Aldous Huxley (1979), e 1984, de George Orwell (1955) que, no seu tempo,

descreveram premonitórias sociedades tecnocráticas.

Assim, Huxley (1979), em 1932, no seu Admirável Mundo Novo, anunciou uma di-

tadura científica, prevista por ele para daqui a seiscentos anos, sob a qual a sociedade seria

controlada pela manipulação da mente e pela administração de substâncias. Segundo o

próprio, “o tema de Admirável Mundo Novo não é o avanço da ciência em si mesmo; é esse

avanço na medida em que afecta os seres humanos” (p. 4). Assim, Huxley dá a conhecer

um governo em que a “sua meta não é a anarquia, e sim a estabilidade social” e, como tal,

este governo está preocupado com “o problema da felicidade”, ou seja, com “o problema de

fazer com que as pessoas amem a sua própria servidão” (p. 5).

1. Tradução livre de: “what I feel very strongly is that we mustn’t be caught by surprise by our own advancing technology. This has happened again and again in history with technology’s advance and this changes social condition, and suddenly people have found themselves in a situation which they didn’t foresee and doing all sorts of things they really didn’t want to do.” (Huxley, 1958)2. Conforme Álvaro Ribeiro no prefácio de 1984, ficção é um “artifício estranho à realidade”.3. Conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, em http://www.priberam.pt/dlpo/utopia.4. Conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, em http://www.priberam.pt/dlpo/distopia.

[Futuro] Para lá da linha 57

Já em 1984, começado em 1948, Orwell (1955) descreve uma sociedade em que

os cidadãos se encontram em permanente estado de vigilância. Num sistema totalitário,

permitido pela utilização de uma série de aparatos tecnológicos, o Partido, força de poder,

controla a sociedade através da mecanização da vida, o que provoca uma alienação da cons-

ciência humana, que se torna inerte mesmo sabendo da sua condição de oprimida.5 Orwell,

como se tratasse de uma profecia, anuncia, entre outras previsões, a vigilância através de sis-

temas de câmaras, o detector de mentiras, o controlo da realidade (informação) pelas forças

do poder e os crimes de pensamento. Álvaro Ribeiro, no prefácio da edição portuguesa de

1955, escreve:

A tese central deste livro é, pois, a de que a humanidade, enredada pelos erros da sua metafísica, da sua

ciência e da sua técnica, não se salva a si própria, apesar das utopias devidas ao intelecto e à vontade dos

homens superiores. (Ribeiro, 1955)

Neste sentido, ambas as ficções são utopias, pois narram a criação de sociedades onde

a ordem prevalece, mas são também distópicas, exactamente pela forma como essa ordem

é alcançada. Menos de cem anos volvidos, e não daqui a seiscentos anos, vemos algumas

das profecias tornarem-se senso comum e outras na iminência de serem possibilitadas pelos

avanços tecnológicos. Igualmente, hoje, imaginamos e projectamos utopias onde os avan-

ços tecnológicos serão instrumentos superiores para se alcançar a ordem e a perfeição. No

entanto, dentro delas desenham-se as distopias onde os avanços ultrapassam as linhas que

hoje pensamos intransponíveis, tal como a linha do presente ou mesmo a linha que delimi-

ta o nosso corpo.

COMPUTAÇÃO DAS EMOÇÕES

Nos anos sessenta, consciente de que a face é um órgão emotivo, Paul Eckman, psicólogo,

começou a traduzir as expressões faciais em emoções, o que culminou no sistema de taxo-

nomia de expressões faciais FACS (Sistema de Código de Acções Faciais6). Por conseguinte,

5. Conforme Ribeiro (1955) sobre 1984: “É um romance, exactamente porque narra a mutação sentimental de um carácter humano; mas é também uma tragédia, porque descreve a frustação da liberdade em luta inglória com o destino.”6. Tradução livre de: “Facial Action Coding System”

58

actualmente, este sistema é capaz de traduzir praticamente todas as expressões faciais em

emoções, permitindo que seja revelada a conjuntura emocional de um qualquer indivíduo

apenas a partir da observação da sua face. Anos mais tarde, tendo como base o artigo de

Rosalind Picard (1995), “Computação Afectiva”,7 surgiu a área de estudo homónima, pre-

cisamente para o desenvolvimento de sistemas e dispositivos computacionais capazes de, a

partir da face e das suas expressões, reconhecer, interpretar, processar e simular não apenas

emoções como, também, afectos humanos. Desta forma, em potência, um dispositivo rela-

tivamente simples como um smartphone pode deter um sistema automatizado, tratando-se,

literalmente, de uma interface que permite ver através da face.

Dentro dos vários tipos possíveis de leitura das faces, um ramo crescente é a leitura

biométrica que, como o próprio nome indica, corresponde a um sistema que mede (mé-

trica) a vida (bio), isto é, um sistema que reconhece e identifica determinado indivíduo a

partir do cruzamento de informação proveniente de características genéticas com modelos

pré-estabelecidos. Assim, tomando os estudos de Eckman e da computação afectiva, actual-

mente, existe um forte ramo, na qual, a biometria facial se encontra dotada de um mapa

de expressões bastante detalhado possibilitando, não apenas a identificação ou o reconheci-

mento de um indivíduo a partir da sua face, como também é capaz de revelar, por exemplo,

em tempo real, quando um sujeito falta à verdade.

Actualmente estes sistemas ainda não se encontram disponíveis ao público em geral,

apesar de o MIT já ter desenvolvido uma versão teste de um detector de mentiras biométri-

co. Prevê-se, no entanto, que muito em breve sejam distribuídos e nesse momento, quiçá,

os limites da intimidade terão de ser redesenhados.8

PREVISÃO DE CRIMES

Em Minority Report, de Steven Spielberg, inspirado no conto homónimo de Philip K. Dick,

o programa de antecipações de crimes – Precrime – que conseguiu a utópica ideia de acabar

com os assassinatos, utiliza três precogs os quais, em conjunto, antecipam crimes a partir

de visões, permitindo que o criminoso seja apanhado antes de cometer o delito. O que em

2002 parecia uma total ficção científica, hoje, detectar um potencial criminoso antes do

7. Tradução livre de: “Affective Computing” (Picarp, 1995)8. Este ponto foi desenvolvido no artigo “Os Limites da Face” que se encontra em anexo.

[Futuro] Para lá da linha 59

crime ser cometido, não é uma ideia tão longe da realidade. Para tal, a IBM tem vindo a

desenvolver um software chamado de CRUSH (Redução Criminal Utilizando Estatística

Histórica9), o qual já é utilizado pelo departamento da polícia de Memphis que, através

da análise estatística de dados efectuada por algoritmos, permite identificar os locais onde

há mais probabilidade de virem a acontecer crimes, permitindo, assim, distribuir de forma

mais eficiente os recursos policiais. Anne Altman, directora-geral do Sector Público da

IBM, atesta que:

O Departamento da Polícia de Memphis está a mudar a face da aplicação da lei. Ao analisar os padrões

comportamentais criminosos passados e, em seguida, mapear a sua ocorrência futura antecipada, os

departamentos de polícia são capazes de fornecer informação crítica em tempo real, permitindo a mo-

bilização adequada de forças. Ao tornar-se mais inteligente através da utilização da análise preditiva,

Memphis é agora uma comunidade mais segura e serve melhor as necessidades dos seus cidadãos.10

Como plano para o futuro, a IBM quer que este programa não identifique apenas

potenciais locais, como ainda potenciais criminosos, monotorizando-os, em tempo real,

através de um controlo algorítmico, antes de cometerem o crime.

TRANSUMANOS E PÓS-HUMANOS

“Should we ‘play God’?”,11 pergunta Max More (1994) ao começar a discorrer sobre

transumanismo e o pós-humanismo. Naturalmente, com a presente evolução da tecnologia,

um dos seus maiores empreendimentos assenta no corpo humano, a partir da utilização e do

desenvolvimento da tecnologia com o intuito de aperfeiçoar e superar as suas características

físicas e psicológicas. Este empreendimento deu origem a uma área da filosofia designada

Transumanismo definida por um dos seus principais mentores, como:

9. Tradução livre de: Criminal Reduction Utilizing Statistical History10. Tradução livre de: “The Memphis Police Department is changing the face of law enforcement. By analyzing past criminal behavior patterns and then mapping their anticipated future occurrence, police departments are able to deliver critical real-time information to the field, allowing for appropriate deployment of forces. In be-coming smarter through its use predictive analytics, Memphis is now a safer community and better addresses the needs of its citizens.” Em http://www-03.ibm.com/press/us/en/pressrelease/32169.wss11. Não existe uma tradução que abarque os dois sentidos da pergunta pois, play tem aqui uma dupla tradução: brincar e actuar. Seria assim: “Deveríamos brincar aos Deuses?” ou “Deveríamos actuar como Deus?”

60

O movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de melhorar fundamental-

mente a condição humana através da razão aplicada, especialmente pelo desenvolvimento e por tornar

amplamente disponíveis, as tecnologias para eliminar o envelhecimento e para aumentar consideravel-

mente a capacidade intelectual, física e psicológica humana. (More, 2013, p. 4)12

Desta forma, trata-se de um estudo que envolve diversas tecnologias como a bio-

tecnologia, neurotecnologia, nanotecnologia e que abrange as ramificações, promessas,

potenciais perigos, bem como as questões éticas implicadas no ultrapassar das limitações

humanas através destas tecnologias (More, 2013, p. 4).13

Sterlac, um dos primeiros artistas a trabalhar a questão da superação dos limites do

corpo, em 198o apresentou o “Third Hand”, uma mão mecânica que acoplada ao corpo

funciona como uma mão adicional. Se neste caso a superação dos limites ainda foi pro-

tésica e altamente robótica, com os avanços tecnológicos e científicos, esta superação tor-

na-se cada vez mais incorporada e biológica. Falemos do 24/7: Capitalismo Tardio e o Fim

do Sono14, acerca das investigações para a insónia com o objectivo de descobrir formas de

permitir que os indivíduos, sem dormirem, funcionem de um modo produtivo e eficiente.

Nesta obra, Jonathan Crary (2013) escreve sobre uma série de métodos para se atingirem as

almejadas 24 horas sobre 7 dias despertas e produtivas:

24/7 é um momento de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inade-

quação e dentro do qual o sono não tem necessidade ou inevitabilidade. Em relação ao trabalho, torna

plausível, mesmo normal, a ideia de trabalhar sem pausas, sem limites. (p. 9)15

Assim, no momento em que vivemos, a demanda pela eficiência é um dos principais

alimentos para estas investigações que tem muitas vezes, como objectivo tornar, o corpo

numa máquina melhor para a produção. Salvaguarda-se porém, que se por um lado há um

12. Tradução livre de: “The intellectual and cultural movement that affirms the possibility and desirability of fundamentally improving the human condition through applied reason, especially by developing and making widely available technologies to eliminate aging and to greatly enhance human intellectual, physical, and psy-chological capacities.” (More, 2013)13. Conforme More (2013): “The study of the ramifications, promises, and potential dangers of technologies that will enable us to overcome fundamental human limitations, and the related study of the ethical matters involved in developing and using such technologies.”14. Tradução livre de: 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep (Crary, 2013)15. Tradução livre de: “24/7 is a time of indifference, against which the fragility of human life is increasingly inadequated and within which sleep has no necessity or inevitability. In relation to labor, it renders plausible, even normal, the idea of working without pause, without limits.” (Crary, 2013, p. 9)

[Futuro] Para lá da linha 61

investimento na superação no sentido da eficiência produtiva, por outro, neste processo de

mecanização do corpo encontramos investigações que caminham no sentido de melhorar

as condições de vida ou mesmo salvar vidas como no caso do pacemaker “um dispositivo

implantado que regula electronicamente os batimentos cardíacos”,16 permitindo que um

coração corrompido, funcione. Deste modo, estas investigações que procuram superar a

natural falência do corpo, têm como objectivo máximo o atingir da tão desejada imortali-

dade. E, uma vez atingida, será que ainda seremos humanos?

Levanta-se, por conseguinte, a questão sobre o limite que define o humano enquanto

humano. Ou seja, até quando ou até onde poderemos ser considerados homo sapiens sa-

piens? Em termos de campo de estudo, esse limite é o que separa o transumanismo, no qual

o humano ainda segue enquanto humano, do pós-humanismo, quando já não poderemos

ser classificados como humanos:

A transição de humano para o pós-humano pode ser definida fisicamente ou mimeticamente. Fisica-

mente, tornamo-nos pós-humanos somente quando fizermos modificações fundamentais e radicais à

nossa genética herdada, à fisiologia, à neurofisiologia e à neuroquímica, de modo que já não podemos

ser utilmente classificados com Homo Sapiens. Mimeticamente, podemos esperar que os pós-humanos

tenham uma estrutura motivacional diferente dos seres humanos, ou pelo menos a capacidade de faze-

rem modificações se eles quiserem. Por exemplo: transformar ou controlar a orientação, intensidade e

tempo sexual ou o completo controlo sobre as respostas emocionais através da manipulação da neuro-

química. (More ,1994)17

Em Como nos Tornamos Pós-Humanos,18 Katherine Hayles (1999, p. 5) conta a histó-

ria de Hans Moravec que quis provar que a identidade humana é, acima de tudo, um pa-

drão de informação e, para o demonstrar, sugeriu fazer o download da consciência humana

num computador.19 Uma ideia semelhante à de More (1994) que prevê a possibilidade de

16. Descrição que se encontra no Portal da Saúde: http://www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/enciclope-dia+da+saude/harvard/Cora%C3%A7%C3%A3o/pacemaker+que.htm17. Tradução livre de: “The transition from human to posthuman can be defined physically or memetically. Physically, we will have become posthuman only when we have made such fundamental and sweeping modifica-tions to our inherited genetics, physiology, neurophysiology and neurochemistry, that we can no longer be use-fully classified with Homo Sapiens. Memetically, we might expect posthumans to have a different motivational structure from humans, or at least the ability to make modifications if they choose. For example: transforming or controlling sexual orientation, intensity, and timing, or complete control over emotional responses through manipulation of neurochemistry.” (More, 1994)18. Tradução livre de: How we Become Posthumans (Hayles, 1999)19. Conforme Hayles (1999, p. 5): “Hans Moravec proposed that human identity is essentially an informational

62

fazermos o upload do eu do nosso corpo biológico para cérebros sintéticos, o que incluiria

a nossa psicologia, memórias, respostas emocionais, valores e sentimentos.20 Face a tal pos-

sibilidade, estamos perante uma tecnologia que tem uma vocação ontológica, isto é uma

tecnologia que carrega o “ser enquanto ser”. Não mais uma prótese, não mais incorporada,

no tempo dos pós-humanos a tecnologia passará a ser o próprio corpo, físico e intelectual,

e não necessariamente mimético ao corpo humano.

A S INGUL ARIDADE

Se, por um lado, o corpo humano se transforma cada vez mais num objecto tecnológico,

por outro, as máquinas são cada vez mais orgânicas, autónomas e inteligentes. Em termos

matemáticos, singularidade define-se como o momento de viragem em que algo passa a

tender para o infinito. No caso da tecnologia, é comummente utilizada para designar a

transição do domínio do humano para o domínio da máquina ou, como sugere Ray Kur-

zweil (2005):

É um período futuro durante o qual o ritmo da mudança tecnológica será tão rápido e o seu impacto

tão profundo, que a vida humana vai ser transformada de forma irreversível. Apesar de nem utópica

nem distópica, esta época irá transformar as concepções em que confiamos para dar significado à nossa

vida, desde os modelos de negócios até ao ciclo da vida humana, incluindo a própria morte. (Kurzweil

2005, p. 22)21

Podemos, então, definir a singularidade como o momento de viragem em que as en-

tidades tecnológicas passem a tender para o infinito, no sentido de infinito do ser, isto é,

conscientes do seu eu e infinitas nas suas possibilidades. Partindo da perspectiva da história

pattern rather than embodied enaction. The proposition can be demonstrated, he suggested, by downloading human consciousness into a computer, and he imagined a scenario designed to show that this was in principle possible. (…) The Movarec test was designed to show that machines can become the repository of human cons-ciousness – that machines can, for all practical purposes, become human beings.” 20. Conforme More (1994): “We may be able to “upload” our selves (our psychology, memories, emotional responses, values, feelings) from our biological brains into synthetic brains.”21. Tradução livre de: “It’s a future period during which the pace of technological change will be so rapid, its impact so deep, that humans life will be irreversibly transformed. Although neither utopian nor dystopian, this epoch will transform the concepts that we rely on to give meaning to our lives, from our business models to the cycle of human life, including death itself.” (Kurzweil, 2005, p. 22)

[Futuro] Para lá da linha 63

da humanidade se a passagem da idade da pedra para idade do ferro, e sucessivamente, foi

um processo bastante lento, já a evolução das tecnologias, particularmente no que respeita

à comunicação, se tem mostram num ápice, pois em menos de cem anos vimos passar de

uma quase inexistente mediação, para a mediação praticamente absoluta de todos os cam-

pos da vida.

Conforme Kurzweil (2005), a “singularidade está perto”, prevendo que uma máquina

passe o teste de Turing, isto é, que uma máquina atinja uma inteligência artificial superior,

em 2029 (p. 165), e a singularidade, momento que “representará o culminar da fusão do

nosso pensamento e existência biológica com a nossa tecnologia”, em 2045 (p. 22).22 Segun-

do o próprio, esse culminar será tão revolucionário quanto o aparecimento da inteligência

na Terra.

Se tomarmos, então, o todo da história da humanidade desde há 150 mil anos, 30

anos são segundos; isto é, encontramo-nos na iminência da revolução. Depois, no tempo

da pós-singularidade, pode ser que venha a haver uma fusão entre o biológico e o tecnoló-

gico e que os humanos e as máquinas venham a possuir uma mesma natureza ou que surja

uma nova espécie ou novas espécies que viverão em harmonia com a nossa espécie ou quiçá,

daqui a 30 anos, a humanidade venha apenas a ser uma obsoleta e desnecessária espécie,

diante de seres com capacidades que nos ultrapassam e que não mais reconhecem o seu

criador. Sabemos que uma previsão não é uma concretização e que esta, talvez, como tantas

outras antecipações do futuro, venha a falhar. No entanto, de volta a Huxley, se quisermos

para daqui a 30, 40, 100 ou 200 anos, ou seja, se quisermos para um futuro próximo ou dis-

tante uma “raça de indivíduos livres” que não seja aniquilada pelas suas próprias invenções

tecnológicas, pensar sobre o que é e o que poderá vir a ser a tecnologia, não como um fim

em si, mas como nos afecta, configura-se, portanto, determinante para a liberdade futura e

“radical” enquanto questão de sobrevivência.

Ainda é escolher.

2015

22. Conforme Kurzweil (2005, p. 22) “The Singularity will represent the culmination of the merger of our biological thinking and existence with our technology.”

2

I N V E S T I G A Ç Ã O P R ÁT I C A

Preâmbulo 67

2.1 PREÂMBULO

(...) nothing that has ever happened should be regarded as lost for history.– Walter Benjamin em “On the Concept of History”

PROPÓSITO

No momento em que a tecnologia e a cultura são cada vez mais convergentes, e ao tomar

a investigação teórica enquanto enquadramento conceptual, a presente investigação prática

tem como propósito, a partir de uma plataforma online, ampliar a reflexão sobre os impactos

da tecnologia digital no armazenamento e disseminação da informação. A esta plataforma

atribuímos o nome de A – P (Arquivo – Programa), precisamente por se desenvolver em dois

momentos: o de arquivo e o de programa.

No momento de arquivo temos como objectivo construir um repositório de projectos

cuja informação se encontre disponível online e que abordem os temas desenvolvidos na

investigação teórica. Deste modo, este espaço estabelece-se como o lugar onde projectos são

sistematicamente colectados enquanto fontes de referência para o enquadramento concep-

tual da presente dissertação.

No momento de programa, por sua vez, temos como propósito relançar a reflexão

transversal a esta plataforma ao se constituir com um programa cultural implementado a

partir de programas informáticos que, ao utilizarem processos computacionais executados

em tempo real, recursos web e a informação online, resultam em performances online. Estas

performances ao serem executadas transformam a informação depositada no arquivo, numa

nova informação. Para o efeito estruturámos um enquadramento que sistematiza processos

para que estas resultem em experiências com potencial de novidade, expressão e reflexão e,

assim, possam cumprir o objectivo de gerar novas reflexões significantes sobre o tema.

68

Igualmente, esta plataforma, pelo modo como é desenvolvida, procura questionar a

própria tecnologia digital a partir de como se acede, navega, procura e se transforma infor-

mação. Ou seja, procura questionar o propósito desta dissertação, precisamente, através da

utilização da tecnologia digital enquanto dispositivo de armazenamento e de disseminação

de informação, dentro de um determinado contexto. Segue-se a apresentação da plataforma:

Nome da plataforma

• A – P (Arquivo – Projecto)

Link para a plataforma

• http://saraorsi.com/a-p/

PROJECTOS PRÉVIOS

Projectos elaborados anteriormente e que serviram como base para o desenvolvimento da

plataforma A – P.

[EX]CHANC/GE (2013)

Fig. 1: Página de acesso ao projecto [EX]CHANC/GE

Preâmbulo 69

Como projecto final da disciplina de Projecto 2 do Mestrado em Design de Comunicação

e Novos Media, tendo como mote “como desejas utilizar as tuas desing skills para uma mu-

dança positiva?”1, foi desenvolvido o [EX]CHANC/GE, apresentado com o seguinte texto:

À sua maneira este livro é muitos livros, mas sobretudo é dois livros (Cortázar), um de memórias e ou-

tro de ficções. O primeiro consiste numa recolha de memórias de um determinado tempo. O segundo,

numa série de ficções construídas a partir das memórias recolhidas. Embora o segundo não nasça sem

que o primeiro exista, uma vez ambos gerados, cada um passa a ter vida própria, mas é no encontro

dos dois, no confronto entre a memória descrita e a ficção construída que o ciclo do título da obra se

completa: acaso, troca e mudança. E estes livros são livros sem ordem, sem uma entrada única e sem

uma saída única. Pelo meio, outras viagens surgem, onde caminhos que se bifurcam nos levam a outros

lugares, a outras pessoas e/ou a outras ideias. No fim, não há final, há apenas um continuar que se pro-

longa pela vida, quando então, novas memórias serão recolhidas e novas ficções serão construídas. [Ex]

chanc/ge é, assim, um projecto que se desenvolve em quatro passos, em quatro gestos consequentes que

nos levam do real ao imaginário, da memória à ficção.

[EX]CHANC/GE consiste, então, numa fórmula que combina as palavras change

(mudança), exchange (troca) e chance (acaso) e que, a partir de quatro passos consecutivos,

tem como propósito transformar uma memória pessoal numa ficção. Para o efeito, este pro-

jecto constitui-se por dois livros separados que, por se encontrarem em ambiente digital,

ao utilizador é permitido uma fácil navegação de um para o outro. Desde modo, espera-se

que, embora válidas separadamente, seja no confronto entre a memória registada e a ficção

construída que se possa gerar novos sentidos. Em termos de processos de transformação das

memória em ficções, ainda que tenham sido utilizadas ferramentas digitais, os mecanismos

de mudança não foram executados por processos computacionais autónomos.

Ponto a continuar

• Um projecto que se constrói em dois tempos, um primeiro e um segundo con-

sequentes e, ainda que válidos de forma independente, é no confronto entre ambos que

surgem os novos campos de significação.

1. Tradução livre de: “How do you wish to use your design skills for a positive change?”

70

Ponto a reformular

• Utilizar processos computacionais autónomos para executar as transformações en-

tre o primeiro e o segundo momento.

Link para o projecto

• http://saraorsi.com/projectos/exchance.html

NEW OLD FILMS (2014)

Fig. 2: Captura de ecrã de New Old Films: Green Ray, Tacita Dean

Tendo como motivação a leitura de Uncreative Writing de Kenneth Goldsmith (2011) e a

ideia de Walter Benjamin (1974), segundo a qual, “nada que alguma vez aconteceu deve ser

considerado como história perdida”,2 New Old Films procura, através de poucas linhas de

código, dar uma nova vida a filmes existentes que se encontram disponíveis online. Estes fil-

mes configuram-se como as primeiras experiências das agora intituladas performances online.

2. Tradução livre de: “nothing that has ever happened should be regarded as lost for history.” (Benjamin, 1974)

Preâmbulo 71

Ponto a continuar

• Utilizar algo existente e disponível online para gerar uma nova experiência através

da utilização de processos computacionais.

Ponto a reformular

• Criar uma enquadramento de modo que as várias experiências construam um corpo

de trabalho consistente e não representem apenas experiências isoladas.

Links para o projecto

• http://saraorsi.com/projectos/noftacita.html

• http://saraorsi.com/projectos/nofmarker.html

REFERÊNCIAS

Lista de projectos que serviu como principal referência para o desenvolvimento do A – P.

UBUWEB (1996)

Fig. 3: UbuWeb (Goldsmith, 1996)

72

Criada por Kenneth Goldsmith, em 1996, a UbuWeb começou por ser um repositório e

distribuidor marginal de poesia visual, concreta e, posteriormente, sonora. Ao longo dos

anos da sua existência, tem vindo a alargar as suas áreas de interesse e, hoje, transformou-se

numa enorme plataforma educacional de material avant-garde disponível para todos. En-

quanto filosofia de acção, não tem fins comerciais, opera segundo uma economia de oferta e

“é tanto sobre as ramificações legais e sociais da sua distribuição auto-criada e do sistema de

arquivo como é sobre o conteúdo hospedado no site”.3 Assim, a UbuWeb é bastante rígida

na sua política de distribuição, uma vez que apenas contém obras que já não se encontram

distribuídas em forma impressa ou cujo preço seja absurdamente elevado, caso contrário,

não publicam na plataforma.4

Pontos de interesse

• O seu princípio de colecta fluido, disponível à novidade e exaustivo, mas também

flexível, o que permite a surpresa.

• O compromisso com a sua rígida política de distribuição que define critérios de

selecção da obras publicadas na plataforma

Link

• http://www.ubuweb.com/

3. Tradução livre de: “Ubu Web is as much about the legal and social ramifications of its self-created distribution and archiving system as it is about the content hosted on the site”4. Conforme Ubuweb (Goldsmith, 1996): “If it’s out of print, we feel it’s fair game. Or if something is in print, yet absurdly priced or insanely hard to procure, we’ll take a chance on it. But if it’s in print and available to all, we won’t touch it.”

Preâmbulo 73

P —DPA (2013)

Fig. 4: P–DPA (Lorusso, 2013)

O P—DPA (Post-Digital Publishing Archive) compõe-se de um arquivo online onde Silvio

Lorusso (2013) deposita e classifica, segundo determinada indexação, “projectos e objectos

de arte sobre a intercepção entre publicar e a tecnologia digital” (p. 1).5 Por se tratar de uma

plataforma digital, permite que “o arquivo aja como um espaço no qual os projectos colec-

tados são confrontados e justapostos com o objectivo de evidenciar caminhos relevantes,

temas mútuos, perspectivas comuns, inter-relações, mas também oposições e idiossincra-

sias” (Lorusso, 2013a).6

Pontos de interesse

• O exemplo de arquivo online, onde é claro o seu princípio de comando, isto é, o seu

propósito, e onde este mesmo princípio torna-se no elemento que proporciona a coesão

conceptual do projecto.

5. Conforme Lorusso (2013, p. 1): “Projects and artworks at the intersection of publishing and digital techno-logy.”6. Tradução livre de: “The archive acts as a space in which the collected projects are confronted and juxtaposed in order to highlight relevant paths, mutual themes, common perspectives, interrelations, but also oppositions and idiosyncrasies.” (Lorusso 2013a)

74

• O modo conforme utiliza o suporte digital como ferramenta para potenciar a sua

ambição de confrontar e justapor os projectos colectados.

Link para o projecto

• http://p-dpa.net/

MEDIA ART NET (2005)

Fig. 5: Media Art Net (Frieling & Daniels, 2005)

Media Art Net é um projecto desenvolvido pelo Goethe Institute e pelo Zentrum für Kunst

und Medientechnologie Karlsruhe (ZKM), sob a direcção de Rudolph Frieling e Dieter

Daniels. Na apresentação do projecto, media art é definida como arte “multimédia, time-

-based ou process-oriented – que não pode ser eficazmente mediada na forma de um livro,”7

Dentro da media art, este projecto tem como objectivo “estabelecer uma estrutura na in-

ternet que ofereça conteúdo altamente qualificado garantindo um acesso livre ao mesmo

tempo.”8 Numa primeira fase, foi criado um programa cultural onde foram definidos oito

7. Tradução livre de: “Media art – by definition multimedia, time-based or process-oriented – cannot be suffi-ciently mediated in book form.” (Media Art Net, 2005) 8. Tradução livre de: “Media Art Net thus aims at establishing an Internet structure that offers highly qualified

Preâmbulo 75

tópicos temáticos sobre media art, a partir dos quais diversos curadores desenvolveram

aproximações históricas e contextuais. Tendo estas investigações como base, numa segunda

fase, foi gerado um arquivo online que funciona como repositório catalogado para os ob-

jectos artísticos abordados.

Pontos de interesse

• Um projecto que funciona em dois momentos: um primeiro, de investigação por

parte dos curadores e, um segundo, que se constitui como repositório de objectos artísticos

que foram abordados no primeiro.

• Uma primeira e clara definição do seu objecto de estudo que, posteriormente, se

desmultiplica em diversas abordagens e aproximações.

Link

• http://www.mediaartnet.org/

HYPER STACKS (2015)

Fig. 6: Hyper Stacks (Bridle, 2015)

content by granting free access at the same time.” (Media Art Net, 2005)

76

Desenvolvido por James Bridle, Hyper Stacks (2015) é um projecto que, a partir dos dados di-

gitais do V&A, utiliza uma análise semântica e pequenas formas de inteligência artificial para

explorar conexões entre os diferentes objectos da colecção. Os stacks configuram-se como

pilhas de objectos construídas por um sistema que cria relações não pelo que os objectos são

de facto, mas pelas tags que lhes são associadas. Estas tags, por sua vez, são metadados, sendo

que essas relações encontram-se estabelecidas a partir de informação sobre a informação.

Pontos de interesse

• Repensar e remontar uma determinada colecção já existente e catalogada a partir

das novas possibilidades permitidas pelos processos digitais para relacionar informação.

• Procurar novas relações não a partir dos objectos em si, mas a partir da informação

sobre eles.

Link

• http://hyper-stacks.com/

LINK CABINET

Fig. 7: Link Canitet (Cremonesi)

Preâmbulo 77

Ao tomar a internet como espaço expositivo, Matteo Cremonesi criou o Link Cabinet que

se forma como uma página online ou webpage única, onde são apresentadas obras site-speci-

fic únicas durante determinado tempo. Neste sentido – e como é descrito –, o seu espaço é

uma página em branco (blank page) que vai ao encontro da ideia do cubo branco, um espa-

ço disponível a ser transformado pelo artista, no entanto, agora virtualizado numa webpage.

Uma vez terminado o tempo da exposição, a obra não pode ser mais acedida directamente,

apenas ficam acessíveis os seus registos como videos ou imagens estáticas.

Pontos de interesse

• A webpage como espaço expositivo de obras site-specific.

• A impossibilidade de voltar a uma obra após o seu tempo de exposição, a não ser

através de registos.

Link

• http://linkcabinet.eu/

THE WRONG (2015)

Fig. 8: The Wrong (2015)

78

Tendo começado em Novembro de 2013, a The Wrong (2015) auto-considera-se como “a

maior e mais completa bienal de arte digital dos dias de hoje”. Desenvolvida em ambiente

digital, tem como missão criar, promover e difundir a arte digital ao maior número de au-

diência possível, a partir de uma bienal que, segundo os próprios autores, “junta a melhor

selecção pelos melhores, enquanto abarca os jovens talentos mais excitantes da cena da arte

digital.9 Na sua edição de 2015, o evento foi reconfigurado dividindo-se em localizações

online espalhadas pelo mundo. Desta forma, e à semelhança das bienais em ambientes reais,

estas localizações assumem-se como pavilhões e embaixadas onde, em cada um, uma equipa

de curadores é responsável pela escolha das obras.

Pontos de interesse

• Um evento que se organiza por vários eventos independentes permitindo diferentes

abordagens e perspectivas sobre o que é ou pode ser a arte digital.

• Tomar a internet como um espaço com vários pavilhões, isto é, tomar a internet

como espaço, também ele, com localizações, sendo que cada localização corresponde a um

território, portanto, a um espaço próprio de influência.

Link

• http://thewrong.org/

9. Conforme The Wrong (2015): “The Wrong is the largest and most comprehensive digital art biennale today. Its mission is to create, promote and push positive forward-thinking contemporary digital art to a wider audien-ce worldwide through a biennial event that gathers the best art selected by the best, while embraces the young talents of today’s exciting digital art scene.”

Arquivo 79

1.2 ARQUIVO

CONCEITO

No seu primeiro momento, este espaço é um arquivo que tem, como princípio nomológico

ou de comando, a reflexão sobre os impactos da massificação e evolução da tecnologia digi-

tal na forma como armazenamos e disseminanos a informação na cultura contemporânea e,

como princípio ontológico ou de começo, a materialização numa plataforma digital. Enquan-

to arquivo, cumpre a função de domiciliação para a documentação de projectos disponíveis

online que, pelos temas que abordam, se inscrevem no princípio nomológico deste esepaço.

Por se tratar de um arquivo digital, é sempre actualizável e a sua informação não se compõe

segundo uma narrativa linear, uma vez que se encontra fragmentada num espaço não hierár-

quico onde a sua ordem é sempre passível de mudança. No seu princípio ontológico, a plata-

forma digital permite ao intérprete performar uma série de acções, tais como ver, navegar e

procurar e, à semelhança de um jardim de caminhos bifurcados, também nesta plataforma os

caminhos se bifurcam e se multiplicam sem que haja um de saída única ou um sem saída.

IMPLEMENTAÇÃO

Suporte

A plataforma digital foi criada em Wordrpress, um sistema de gestão de conteúdo open

source que, por ter o código aberto, permitiu que desenvolvêssemos um tema original para

responder às necessidades específicas de backoffice e de font-end do A – P. Uma vez vazia a

base de dados, o tema pode ser utilizado para construir um qualquer arquivo que responda

a diferentes princípios nomológicos e ontológicos.

80

Link para o backoffice do arquivo

• http://saraorsi.com/archive/wp-admin

• username: demo / password: doarquivoaonovo

Fig. 9: Página de acesso ao backoffice – wordperess.

Estrutura

Este arquivo divide-se em duas pastas, a pasta de projectos e a pasta de entidades, e tem as

suas informações registadas numa base de dados sempre passível de ser actualizada.

Critérios de inclusão

Na pasta de projectos são incluídas obras que, de alguma forma, reflitam os impactos da

massificação e evolução da tecnologia digital na forma como armazenamos e dissemina-

mos a informação na cultura contemporânea. Isto é, projectos que pelos seus princípios

temáticos, pela forma como são concebidos, pelo seu contexto ou, ainda, por outro motivo

que se considere válido, se constituam como informação relevante dentro dos propósitos

deste espaço. Para tal, não há qualquer limitação em relação a formatos, áreas de acção ou

períodos temporais, desde que a sua documentação se encontre disponível online. Na pasta

de entidades, são colocados todos aqueles que sejam autores ou participantes dos projectos

incluídos. Cada pasta, por sua vez, encontra-se preparada com campos pré-determinados

para se inserir a informação referente ao projecto ou à entidade.

Arquivo 81

Campos para se inserir a informação dos itens pertencentes à pasta dos projectos

a) Título (da obra);

b) Descrição (da obra escrita por nós);

c) Sub-título (da obra);

d) Url da imagem (deste modo, não há nenhuma imagem que se encontre no nosso servi-

dor, pois todas são apresentadas a partir de links de imagens que estão disponíveis online);

e) Video (caso haja, substitui a imagem);

f ) Autor (nome);

g) Data (ano);

h) Suporte (descrição do suporte caso seja relevante);

i) Dimensões (caso haja informação);

j) Depoimento (descrição da obra pelo autor ou, se não existir, por outra entidade);

k) Origem do depoimento (créditos do depoimento);

l) Url (endereço online directamente do projecto ou com informações relevantes);

m) Duração (caso haja informação);

n) Evento (caso esteja inserido num evento);

o) Participantes (caso haja informação);

p) Projectos relacionados (escolhidos por nós, caso se verifique a pertinência);

q) Localização (caso haja informação);

r) Categorias (informação ontológica);

s) Tags (informação nomológica).

Informação gerada automaticamente a partir dos dados dos projectos

a) Id (único e que identifica o projecto na base de dados);

b) Projectos relacionados por tags (que partilhem pelo menos uma tag);

c) Recomendações (geradas pelo plugin “Kindred Post”,1 o qual aprende como os visitantes

utilizam o arquivo e recomenda projectos segundo os seus interesses).

Campos para se inserir a informação dos itens pertencentes à pasta das entidades

a) Nome (da entidade);

b) Biografia (oficial, se houver; caso não haja, escrita por nós);

1. No site do plugin “Kindred Post” encontra-se a seguinte descrição: “Kindred Posts uses artificial intelligence to learn how your website visitors use your site and recommends content based on their interests.” Em: https://wordpress.org/plugins/kindred-posts/

82

b) Origem da Biografia (créditos da biografia);

h) Url (oficial, se houver; caso não haja, outro relevante);

c) Local de nascimento (caso haja informação);

d) Data de nascimento (caso haja informação);

e) Local de morte (caso haja informação);

f ) Data de morte (caso haja informação);

g) Local em que vive (caso haja informação).

Informação gerada automaticamente a partir dos dados das entidades

a) Id (único e que identifica a entidade na base de dados);

b) Lista de obras enquanto autor (informação que se encontra nos projectos);

c) Lista de obras enquanto participante (informação que se encontra nos projectos).

EXPERIÊNCIA

Acesso

Fig. 10: Página de acesso ao arquivo.

Uma vez acedido o arquivo, ao utilizador é apresentada a base de dados dos projectos co-

lectados. Ou seja, os projectos aparecem listados sem uma ordem fixa e são identificados

Arquivo 83

pelo id, imagem, título, autor e data. Desta forma, quando se acede a este arquivo digital, a

ordem dos projectos é sempre alterada. Igualmente, através de arrastamento, a sua ordem é

passível de mudança, sendo que apenas pode ser fixada no caso de se carregar no botão para

imprimir, o que se encontra no rodapé.

Fig. 11: Página de acesso ao arquivo: variação da ordem dos projecto.

Fig. 12: Opção de impressão como forma de registar a ordem definida.

84

Navegação

Fig. 13: Página dos projectos com a respectiva informação ao centro e, em ambos os lados, as sidebars que permitem diferentes opções de navegação.

Após se entrar em determinado projecto, ao centro é que é disponibilizada toda a infor-

mação inserida e gerada, bem como se estabelecem todas as ligações internas e externas ao

arquivo relativas ao projecto acedido. Em ambos os lado, existem sidebars onde se encontra

a informação referente ao restante do arquivo e onde são catalogados todos os projectos e en-

tidades utilizando diferentes critérios e permitindo diferentes opções de navegação. Desde

modo, na sidebar da esquerda, encontra-se a lista de projectos que se relacionam por tags,

a lista dos projectos recomendados automaticamente pelo Kindred Post, a lista de todos os

projectos e a lista de todas as entidades. Na sidebar da direita, por seu lado, encontram-se

a lista das categorias dos projectos, a lista das categorias das entidades e, por fim, a lista de

todos as tags utilizadas.

Arquivo 85

Procura

Fig. 14: Sistema de procura.

Caso o utilizador saiba exactamente o que procura, no rodapé encontra-se um sistema de

procura por palavras-chave que o redirecciona para os projectos ou entidades que as conte-

nham na sua informação.

86

Programa 87

1.3 PROGRAMA

CONCEITO

Num segundo momento, a partir de programas informáticos, é construído um programa cul-

tural com o objectivo de se relançar a reflexão sobre os impactos da massificação e evolução

da tecnologia digital na forma como armazenamos e disseminamos a informação. Enten-

demos como programa cultural a selecção de projectos por parte de determinada entidade

de modo a representar um fim temático ou conceptual e, como programa informático, um

conjunto de instruções que descrevem uma tarefa a ser executada por um computador. Ao

se tomar a ideia de Kenneth Goldsmith (2011), segundo a qual o desafio se tornou não no

acrescentar mas no negociar a quantidade sem precedentes de informação disponível, como

forma de “mover informação” e, ainda, seguindo estratégias de “databasing, reciclagem,

apropriação” e “intensive programming”,1 estes programas são orientados para a explora-

ção do potencial da novidade, a partir da informação depositada no arquivo. Assim, este

programa cultural é formado por um conjunto de programas informáticos que executam

determinadas regras para a selecção e transformação da informação de projectos dispo-

níveis no arquivo digital, com o fim de responder, em termos conceptuais, ao propósito

desta dissertação. Por utilizar processos computacionais executados em tempo real, recurso

web2 e informação online estes programas informáticos resultam no que denominamos per-

formanances online. Para tal, concebemos um enquadramento com o objectivo de orientar a

1. Conforme Goldsmith (2011, pp. 2–3): “The literary critic Marjorie Perloff has recently begun using the term unoriginal genius to describe this tendency emerging in literature. (…) She posits that today’s writer resembles more a programmer than a tortured genius, brilliantly, conceptualizing, constructing, executing, and main-taining a writing machine.”2. Entendemos por recursos web, linguagem, navegadores e servidores que permitem que a informação online seja acessível.

88

conceptualização destas perfomances, de modo que tenham um potencial de novidade, ex-

pressão e reflexão. Assim sendo, utilizamos processos criativos que envolvem a articulação

da subjectividade das decisões humanas com a capacidade de processamento das máquinas

computacionais para a potencial criação de novas experiências e, consequentemente, de

novas reflexões.

IMPLEMENTAÇÃO

Performances online

Estas características digitais implicam que o poema [digital] deixe de existir como um objecto auto-su-

ficiente para, no seu lugar, transformar-se num processo, num evento que acontece quando o programa

corre no software apropriado, carregado no hardware certo. O poema é “eventualizado”, sendo mais

um evento e menos um objecto autónomo discretizado com fronteiras definidas no espaço e no tempo

(Hayles, 2006, pp. 181-182)3

Em meados do século XX, assistimos ao aparecimento de dois paradigmas – a ideia

enquanto máquina que executa a arte4 e o artefacto enquanto evento –, basilares no universo

da produção computacional, visto que, como afirma Noah Wardrip-Fruin (2006), “estamos

cada vez mais a experienciar media que não apenas diz coisas e mostra coisas – mas que tam-

bém opera” (p. 2).5 Neste contexto, distinguimos as várias acepções do termo performance.

Enquanto prática artística, a performance art, no seu sentido mais lato, corresponde a um

género no qual o corpo funciona enquanto medium que executa uma série de acções, dentro

de um determinado tempo e espaço, o que geralmente reflete a relação entre o performer e a

audiência. Enquanto execução, performance consiste na operação de uma série de acções com

o fim de se completar uma tarefa. Katherine N. Hayles, no campo da literatura digital, tam-

bém denomina de performance o tempo de produção, ou seja, o tempo que dura o processo

3. Tradução livre de: “These digital characteristics imply that the poem ceases to exist as a self-contained object and instead becomes a process, an event brought into existence when the program runs on the appropriate software loaded onto the right hardware. The poem is ‘eventilized,’ made more an event and less a discrete, self-contained object with clear boundaries in space and time.” (Hayles, 2006, pp. 181-182)4. Conforme Sol Lewitt: “The idea becomes a machine that makes the art.”5. Tradução livre de: “we are increasingly experiencing media that not only say things and show things – but also operate.” (Wardrip-Fruin, 2006, p. 2)

Programa 89

que permite que uma obra seja materialmente acessível ao leitor. E, no campo dos novos

media, Lev Manovich refere-se às software performances, defendendo esta utilização do termo

ao argumentar que “o que experienciamos é construído por um software em tempo real...

como o output dinâmico de uma computação em tempo real” (Manovich apud Ribas, 2014,

p. 55).6 Por conseguinte, definimos performances online como processos computacionais que

executam uma série de acções com fim de responder a um determinado propósito, utilizan-

do recursos web e informação disponível online. Por decorrerem em tempo real, o resultado

destas performances corresponde a uma experiência temporal, ou seja, a um evento.

ENQUADRAMENTO

Assumindo esta definição de performance online, estruturámos um enquadramento com o

objectivo de orientar a sua conceptualização e o seu desenvolvimento, de modo que estas

tenham um potencial de novidade, expressão e reflexão. Com efeito, o seguinte enquadra-

mento é orientado para a acção, tanto enquanto método criativo, com ênfase nas actividades,

processos ou operações definidos a partir do propósito da performance, como é orientado

para a performance da máquina em si. Para tal, e tomando a noção de processos expressivos

utilizado por Wardrip-Fruin (2006, p- 16) – “processos que claramente formam o signifi-

cado das obras”7 –, este enquadramento procura estruturar e sistematizar processos de modo

que possam contribuir para que uma performance online seja mais evidente em termos de

expressão, de significado e de experiência.

Tomando como matriz as dimensões definidas por Luísa Ribas (2014) – dimensão

conceptual, dimensão mecânica e dimensão da experiência – na proposta de análise de sistemas

digitais computacionais como artefactos estéticos e, ainda, tendo como referência o “MDA”

de Hunicke et al. (2004), o “Model of Digital Media” de Wardrip-Fruin (2006), o “A Fra-

mework for Understanding Generative Art” de Dorin et al. (2012) e as dimensões temporais

de Hayles (2006), estruturámos o seguinte enquadramento:

6. Tradução livre de: “what we are experiencing is constructed by software in real time… as the dynamic outputs of a real-time computation” (Manivich em Ribas, 2014, p. 55)7. Tradução livre de: “These are processes that clearly shape the meaning of works.” (Wardrip-Fruin, 2006, p.16)

90

Fig. 15. Esquema de referências para a formulação do enquadramento.

Programa 91

1. DIMENSÃO CONCEPTUAL

O que diz respeito às suas motivações, princípios ou temas, ou o que a obra aborda como assunto.

(Ribas, 2014, p. 61)8

(Definição dos) Temas e princípios

Dimensão na qual o autor, que segundo Wardrip-Fruin (2006) é “aquele que selecciona e

cria os dados e os processos do trabalho”,9 estabelece as fronteiras conceptuais, isto é, deli-

mita o território intelectual a partir da clarificação dos temas e princípios ideológicos que

vão comandar toda a performance.

2. DIMENSÃO MECÂNICA

Aborda a forma como estes aspectos [conceitos inerentes à obra] são computacionalmente implemen-

tados (ao nível da mecânica, i.e., dos dados e processos). (Ribas, 2014, p. 61)10

(Definição das) Unidades

Uma unidade é o que “pode ser considerado individualmente”11 e, à semelhança da noção

de entidade de Dorian et al. (2012), trata-se de “constituintes que são (conceptualmente)

unitários e indivisíveis, cujas relações funcionais não são tipicamente expressas em termos

de mecanismos internos”.12 No entanto, como os mesmos salvaguardam, estas “podem exis-

tir em estruturas ou em relações hierárquicas entre si, levando à criação de uma nova enti-

dade composta” (p. 244).13 Assim sendo, várias unidades podem compor um nova unidade

que, uma vez postas em relação, variam quanto à escala: no caso de um texto, por exemplo,

uma palavra seria uma unidade de micro-escala e uma frase de macro-escala. As unidades

8. Tradução livre de: “Regarding their motivations, principles or themes, or what they address as subject matter” (Ribas, 2014, p. 61)9. Tradução livre de: “who selects and creates the work’s data and processes” (Wardrip-Fruin, 2006) 10. Tradução livre de: “to address these aspects [the conceptual dimension] as they are computationally imple-mented (as their mechanics, data and processes).” (Ribas, 2014, p. 61)11. Definição retirada do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa em: http://www.priberam.pt/dlpo/unidade12. Tradução livre de: “Entities are constituents that are (conceptually) unitary and indivisible, and whose functional relationships are not typically expressed in terms of internal mechanisms.” (Dorin et al. 2012, p. 244)13. Tradução livre de: “(...) entities may exist in structured or hierarchial relationhips with one another, leading to the creation of new composite entities.” (Dorin et al. 2012, p. 244)

92

podem também variar quanto à diversidade, sendo homogéneas ou heterogéneas; quanto

à quantidade, sendo singulares ou múltiplas; e, quanto à significação, consoante possuam

valor semântico ou não.

(Definição da) Estrutura de Processos

A estrutura de processos compõe-se por uma sequência de instruções não processadas, de

acordo com as quais as unidades vão performar. Dorin el al. (2012) definem estas estruturas

enquanto características básicas dos processos, as quais incluem as “condições iniciais – o

estado e a configuração das entidades antes do processo começar – ou os processos de ini-

cialização – as acções ou condições necessárias para o processo começar” (p. 245).14 Hayles,

por sua vez, afirma que “na versão impressa, escrita e código normalmente coincidem e

virtualmente se tornam na mesma actividade (…). Com o poema electrónico, por contras-

te, escrita e código se distinguem e frequentemente são eventos separados no tempo” (pp.

182–183).15 Isto é, segundo Hayles (2006), quando se refere à dimensão temporal para as

operações das máquinas-poemas, a estrutura de processos corresponde ao “tempo de código”,

aquele em que se estabelecem e se dão as decisões de comportamento.

3. DIMENSÃO DA EXPERIÊNCIA

Abordar os elementos da experiência – considerando não apenas a superfície do sistema, mas também

a sua dinâmica ou o comportamento variável ligado às suas qualidades processuais e performativas.

(Ribas, 2014, p. 61)16

Processo enquanto performance

O processo, enquanto performance dinâmica, consiste no comportamento em tempo real da

mecânica em acção (Hunicke et al., 2004, p. 2) isto é, consiste no tempo em que as unidades

se comportam de forma autónoma, de acordo com as estruturas de processos. Wardrip-Fruin

14. Tradução livre de: “These include initial conditions – the state and configuration of the entities before the process begins – or initialisation procedures – the actions or conditions necessary to start the process.” (Dorin et al., 2012, p. 245)15. Tradução livre de: “With print, writing and coding often coincide and become virtually the same activity from the autor’s point of view, partculary (…). With electronic poetry, by contrast, writing and coding become distinct and often temporally separated events.” (Hayles, 2006, pp. 182–183)16. Tradução livre de: “to address the elements of their experience – concerning not only their surface but also their dynamics, or the variable behavior tied to their processual and performative qualities.” (Ribas, 2014, p. 61)

Programa 93

(2006, p. 139) divide os processos em três categorias: processos realizados pelo autor, pro-

cessos realizados pela audiência e, processos, como referimos neste caso, realizados pela

obra automaticamente executados pelo computador. Segundo Dorian et al. (2012, p. 245),

os processos podem ou não ser directamente evidentes ao espectador, ou seja, podem ser ou

não observáveis.

Superfície

A superfície consiste no que o sistema apresenta ao exterior. A superfície pode ser estática,

se não for temporalmente variável; pode interactiva, se a audiência puder modificar o seu

estado ou pode ser generativa, se o sistema estiver programado com algum grau de auto-

nomia para produzir resultados potencialmente novos ou não completamente previsíveis

(Galanter 2003 em Dorin, 2012, p. 239). É a partir da superfície que a audiência tem a

“experiência estética” e que são provocadas as “respostas emocionais desejáveis” (Hunicke

et al., 2004, p. 2).

EXPERIÊNCIA

Com o objectivo de se cumprir os propósitos do momento de programa – constituído por

uma série programas informáticos os quais resultam em performances online que, a partir da

da informação disponível no arquivo, geram experiências com um potencial de novidade,

expressão e reflexão – procuramos obter novas relações utilizando a informação existente

para se produzir novos sentidos a partir das mesmas. Este espaço pretende ser alimentado

por mais performances as quais poderão ser desenvolvidas por nós, em parcerias ou por ou-

tros, desde que cumpram os pré-requisitos, portanto, que utilizem o enquadramento, os re-

cursos web e a informação online disponível no momento de arquivo. A título de exemplo,

desenvolvemos a performance intitulada “I am simply removing the selfs”17 que se insere no

enquadramento estruturado, da seguinte forma:

17. Disponível em: http://saraorsi.com/a-p/2015/11/12/i-am-simply-removing-the-selfs/

94

1. DIMENSÃO CONCEPTUAL

(Definição dos) Temas e princípios

“Eu não estava a eliminar a possibilidade de vigilância, eu estava simplesmente a remo-

ver-me da equação.”18 Foram estas as palavras proferidas por Ladar Levison (2013) ao des-

crever o seu serviço de encriptação de mails Lavabit no EuroParl, conferência que se pode

encontrar no momento de arquivo (id = #85). Entre outras acções para proteger a troca de

mails dos programas de vigilânica, o Lavabit torna a vigilância inútil ao remover o IP não

permitindo que fiquem registos no servidor e ao remover o utilizador, não disponibilizan-

do o acesso dos mails directamente no disco. Deste modo, além de outras encriptações, a

informação trocada não tem registos do remetente nem do receptor.

Ao tomar a ideia de apagar o utilizador do Lavabit, “I am simply removing the selfs”

tem como princípio remover os sujeitos dos discursos, de modo que a informação, embora

perceptível, se torne difusa. Como primeira experiência, utilizámos o poema “Quadrilha”,

de Carlos Drummond de Andrade, para executarmos a operação manualmente. Posterior-

mente, ao criarmos esta performance, automatizámos o processo.

Fig. 16: Transformação do poema “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade

18. Tradução livre de: “I wasn’t eliminating the possibility of surveillance, I was simply removing myself from that equation.” (Levison, 2013)

Programa 95

2. DIMENSÃO MECÂNICA

(Definição das) Unidades

As unidades utilizadas para esta performance consistem em todos os depoimentos de pro-

jectos que tenham, como tag, “vigilância” e “encriptação”. Deste modo, temos o caso de

unidades heterogéneas, múltiplas e com valor semântico.

(Definição da) Estrutura de Processos

As instruções definidas são as seguintes:

1. Mostrar o depoimento de todos os projectos com a tag de “vigilância” ou de “encriptação”

por ordem aleatória;

2. Colocar um sublinhado (highlight) negro sempre que aparecer o título de um projecto

utilizado ou o nome de uma entidade relacionada, de modo a esconder a palavra;

3. Colocar em cada depoimento a ligação à página do projecto a que se refere;

4. Apagar os sublinhados quando se carrega no título.

3. DIMENSÃO DA EXPERIÊNCIA

Processo enquanto performance

Durante o comportamento em tempo real e de acordo com a estrutura de processos, os

depoimentos são colocados por ordem aleatória e os títulos dos projectos, bem como os

nomes das entidades, ocultados. Neste caso, o processo não é directamente evidente ao

espectador e, por isso, não é observável.

Superfície

Como materialização do processo enquanto performance, a superfície é variável e resulta num

objecto em forma de texto com palavras rasuradas que, a cada vez que é acedido, se apre-

senta com uma ordem diferente. Igualmente, à medida que o arquivo é alimentado com

projectos relacionados com “vigilância” e “encriptação”, o texto apresentado aumenta. Por

fim, o utilizador, ao carregar no título, a superfície muda com o rasurado a desaparecer.

96

Fig. 17: Variações da superfície.

O novo 97

1.4 O NOVO

(…) o sabor da maçã não está na própria maçã – a maçã não se saboreia a si própria – nem na boca de quem come. Requer o contacto entre as duas.– Jorge Luis Borges em “Este Ofício de Poeta”

O NOVO NOVO

Conforme expusemos na introdução deste trabalho, o novo consiste na transmutação de

valores e existe sempre em relação ao antigo, sendo que não se trata de algo isolado e sem

nada de oculto ou de verdadeiro. Com o desenvolvimento da plataforma online A – P procu-

rámos, precisamente, através de processos computacionais, transmutar o valor das informa-

ções recolhidas no momento de arquivo para que, no momento de programa, adquiram um

novo valor. Com efeito, procurámos, além de relançar as reflexões inerentes ao propósito da

presente dissertação, constituirmo-nos, também nós, como agentes de controlo ao deter-

mos o poder de armazenar e disseminar informação e o poder de utilizar a tecnologia digital

para transformar essa mesma informação através de mecanismos de mudança, performados

por computadores que, embora respondam às nossas intenções, são também eles capazes

de nos surpreender.

Por fim, à semelhança do sabor da maçã, de Jorge Luís Borges, espera-se que, embora

o momento de arquivo e o momento de programa sejam potencialmente válidos por si só,

uma vez estes dois momentos em confronto, possam estabelecer-se novas relações e, assim,

possa surgir um novo novo.

Conclusão 99

C O N C LU S Ã O

SUMÁRIO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Ao traçar caminhos do arquivo ao novo e, tendo como propósito, investigar os impactos

resultantes da massificação e evolução da tecnologia digital no modo como armazenamos

e disseminamos a informação no complexo que compreendemos como cultura, a presente

dissertação efectivou-se numa investigação teórica, que se constitui como corpo concep-

tual, do qual se extraíram conceitos para o desenvolvimento de uma investigação prática

formalizada numa plataforma digital que nos leva, precisamente, do arquivo ao novo.

No contexto da investigação teórica, começámos por um exórdio onde desmontámos

o conceito de arquivo e compreendemos a sua transição de um objecto-técnico-analógico

para um objecto-técnico-digital, enquanto ilustração das consequências que a revolução

tecnológica tem no modo como lidamos com a informação. Igualmente, investigámos a

concepção de arquivo como dispositivo onde a história é construída a partir de diversos

exercícios de poder, sendo que hoje o arquivo se configura como uma mnenotecnologia,

isto é, como um objecto tecnológico que rege a nossa memória e que, por se localizar exte-

riormente a nós, se encontra permeável a agências de controlo por parte de outrem.

Perante esta possibilidade, analisámos a evolução dos exercícios de poder começando

pelo conceito de biopolítica, de Michel Foucault, focado no corpo, e pela sua tradução ar-

quitectónica, o Panóptico. Transitámos, depois, para a sua evolução proveniente, segundo

Gilles Deleuze, do surgimento de máquinas de informática e de computadores, o que deu

origem à sociedade do controlo. Nesta sociedade, o Panóptico transformou-se, entre outras

designações, em Sinóptico, um dispositivo que seduz os indivíduos à vigilância. Tal trans-

formação efectivou uma passagem de uma biopolítica para uma psicopolítica, a qual se carac-

teriza por um exercício de poder que não mais procura adestrar os corpos para a produção,

mas antes seduzir as psiques a se explorarem. O ciberespaço surge, então, como o território

lapidado para um controlo através da sedução e onde potencialmente tudo pode ser con-

trolado, sendo que, depois, como em todos os tipos de controlo, é necessário um controlo

desse controlo.

100

Ao tomarmos a metáfora da rede e da nuvem, desenvolvemos uma leitura do momento

presente em que, justamente, entre redes e debaixo de nuvens vivemos numa sociedade tec-

nologicamente mediada, que se caracteriza pelo facto de a tecnologia se encontrar embebida

em todos os campos da vida. Nesta mediação, torna-se possível traduzir tudo numa lingua-

gem numérica que, por não ser logocêntrica, permite que os vários aspectos da vida possam

ser potencialmente calculados e passíveis de se lhe poder extrair valor.

Com esta nova linguagem deu-se, então, uma viragem epistemológica onde, na au-

sência de hierarquias e pela possibilidade da coexistência simultânea, é o algoritmo que

estabelece a ordem das coisas. Perante tal realidade, definimos algoritmo enquanto uma série

de procedimentos a serem executados para se atingir determinado fim e que, à semelhança

dos arquivos, tem um princípio ontológico, referente à sua dimensão mecânica, e um princí-

pio nomológico, que controla a sua acção. No entanto, salvaguardamos que, se o algoritmo

por um lado responde à vontade de quem o criou e pode ser uma ferramenta de controlo,

por outro, devido à sua evolução, pode configurar-se como uma forma de inteligência, que,

embora ainda não consciente, é capaz de executar acções que podem ultrapassar as regras de

quem o criou, o que levanta questões de agência e do seu controlo.

A partir de uma série de exemplos sobre a actual possibilidade de utilização dos dados,

procedemos a uma aproximação à realidade, de modo a explicitar a existência de forças polí-

ticas e económicas que existem por detrás de muitos algoritmos que utilizamos no quotidia-

no. Igualmente, realizámos uma leitura em sentido contrário explicitando que, por não ser

possível verificar o comportamento dos algoritmos enquanto estão a ser processados, e pela

sua complexidade, estes configuram-se como caixas negras dentro de caixas negras, o que

torna difícil o seu escrutínio. Concluímos, portanto, que construímos algoritmos para nos

controlar, os quais necessitam, por sua vez, de ser controlados por nós e, assim, sucessiva-

mente, construindo-se camadas sobre camadas que encobrem o lugar reservado às entidades

que beneficiam do controlo.

Face a esta evolução e ao crescente domínio da tecnologia, lançámo-nos numa leitura

de tendências e possíveis cenários futuros, tendo, enquanto imagem, linhas que dávamos

como intransponíveis e que, actualmente, verificamos encontrarem-se susceptíveis de se-

rem ultrapassadas. Para o efeito, destacámos a computação das emoções, o que, a partir de

leituras biométricas, possibilita não apenas identificar um indivíduo como ler o seu estado

emocional, ultrapassando a linha definida, até hoje, pela superfície da pele, quer dizer, a

superfície da intimidade. Destacámos, também, os programas de previsão de crimes que

Conclusão 101

caminham no sentido de identificar um criminoso antes mesmo que o crime seja cometido,

um exemplo, entre vários de programas de previsão, que cruza técnicas de estatísticas e de

probabilidades com modelos pré-estabelecidos com o objectivo de ultrapassar a linha defini-

da pelo tempo presente.

Numa aproximação à evolução humana evidenciámos o transumanismo e o pós-hu-

manismo enquanto áreas de estudo que abordam a tecnologização do corpo e que têm como

fronteira entre ambas, precisamente, a linha que separa o humano enquanto humano do que

já não poder ser considerado humano. Tendo em conta que não apenas o humano é cada vez

mais tecnológico mas, também, que as máquinas são, inversamente, cada vez mais biológi-

cas, levantámos o tema da singularidade, momento em que uma entidade tecnológica passa

a ser consciente do seu eu e infinita nas suas possibilidades o que, segundo Ray Kurzweil,

estará para bastante breve. Por fim, concluímos que pensar sobre o futuro, no sentido de

como a tecnologia nos afecta enquanto seres humanos, configura-se num exercício vital para

a construção de uma sociedade de indivíduos livres sendo que, potencialmente se trata-se-á

de uma questão de transmutação ou de sobrevivência da espécie.

Ao extrairmos conceitos da investigação teórica, desenvolvemos a investigação prática,

que se concretizou numa plataforma online dividida em dois momentos: arquivo e programa.

O momento de arquivo foi construído com o objectivo de se erguer um repositório de pro-

jectos que tem, como unidade conceptual, a reflexão inerente a esta dissertação. Pelo modo

como foi arquitectado, o arquivo procura questionar a virtualização do seu dispositivo, sen-

do que o seu modo de acesso, de navegação e de procura são consequentes do ambiente

digital em que se encontra. No segundo momento, de programa, procura-se, justamente, a

partir de programas informáticos, construir um programa cultural. Com este objectivo, defi-

nimos o nosso entendimento de performance online e estruturámos um enquadramento que

sistematiza processos computacionais para que, a partir da informação do arquivo, possamos

gerar novas experiências que relançem novas reflexões sobre o tema.

Concluindo, com a investigação teórica procurámos compreender, a partir de diferen-

tes perspectivas provenientes de diferentes áreas, como a tecnologia, ao ter mudado o modo

como lidamos com a informação e por ter invadido praticamente todos os aspectos da vida,

tem vindo a alterar o complexo que compreendemos como cultura, isto é, tem vindo a alte-

rar “o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e

capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (Tylor, 1920, p. 1). Com

102

a investigação prática, por sua vez, procurámos relançar a reflexão utilizando, precisamente,

um suporte tecnológico enquanto dispositivo de armazenamento e de disseminação de in-

formação, o qual tem como unidade conceptual o propósito da presente dissertação. Para o

efeito, construímos um arquivo digital e desenvolvemos programas informáticos que resultam

em performances online, as quais, a partir da informação armazenada no arquivo e utilizando

processos computacionais, procuram gerar novas reflexões sobre o tema. Por fim, potencial-

mente, no confronto entre a informação do arquivo e as novas informações geradas, novas

relações poderão ser estabelecidas surgindo, deste modo, a possibilidade um novo novo.

L IMITAÇÕES

Reconhecemos que pela abrangência do tema proposto, naturalmente não houve a possibi-

lidade de se abarcar e desenvolver todas as suas perspectivas e ramificações. Procurámos, por

isso, extrair uma narrativa suficientemente circunscrita.

Outra dificuldade inerente ao tema é sua actualidade, o que tornou difícil fixar a biblio-

grafia, pois o volume de obras que têm sido publicadas nos últimos tempos e, em particular

no último ano, foi imensa tanto em quantidade como quanto às divergências de perspectiva.

Neste sentido, reconhecemos a dificuldade em, também, se consolidar alguns conceitos, cujas

acepções encontram-se em permanente actualização.

Na investigação prática, no momento de programa, o facto de existir apenas uma única

performance online não permite dar a amplitude do potencial do enquadramento desenvol-

vido, configurando-se assim, o exemplo dado, como ponto de partida para a criação de um

corpo consistente e justificativo de performances com potencial para gerar a novidade.

INVESTIGAÇÃO FUTURA

Para o futuro, pretendemos aprofundar alguns dos pontos abordados na investigação teórica

sendo que, neste âmbito temos como intenção desenvolver uma arqueologia do controlo –

enquanto aprofundamento dos exercícios de poder –, analisar se existe e em que consiste o

comum num tempo em que tudo é passível de mudança e, ainda, continuar a desenvolver a

noção de tecnologia enquanto espécie em evolução e explorar a consequente possibilidade

de vir a existir novo sentido ontológico.

Conclusão 103

A nível da investigação prática, procuraremos continuar a alimentar o arquivo com o

objectivo de que venha a ser uma ferramenta cada vez mais completa e útil para todos aque-

les que procurem informação dentro do tema.

Por fim, temos como ambição desenvolver o momento de programa, ao se criar mais

performances online, a partir da informação disponível no arquivo, de modo que o potencial

de novidade e expressão do enquadramento seja explicitado e que novas reflexões sobre o

tema possam ser geradas.

Como último registo, e à semelhança das palavras de Huxley, este trabalho procura

sensibilizar para os estudos sobre a evolução da tecnologia, não tendo como fim a tecnologia

em si, mas o modo como esta, cada vez mais, se tem tornado numa entidade preponderante

no mundo em que vivemos e como a sua existência e o seu comportamento afectam o que

compreendemos como cultura.

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A N E X O S

Os textos em anexo correspondem a artigos desenvolvidos para outras entidades, durante a

elaboração da presente dissertação, e se constituem como extensões da investigação.

Anexo 1: Que(m) são os algoritmos?

Anexo 2: Os Limites da Face

Anexos 113

ANEXO 1

Artigo apresentado no II Congresso Internacional de Net-Activismo que decorreu no Porto,

durante os dias 06-07 de Novembro de 2015.

Autor: Sara Orsi

Co-Autor: Luísa Ribas

Filiação Institucional: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Área Temática: Actividade em rede e política

Título: Que(m) são os algoritmos?

Palavras-chave: algoritmos, existência, governação

Abstract

No tempo em que a tecnologia digital se encontra embebida nas nossas estruturas sociais, eco-

nómicas, políticas e também afectivas, vivemos no que Donna Haraway denomina “socieda-

de tecnologicamente mediada” (Haraway, 1991:45). Neste contexto, por trás das superfícies,

a governação algorítmica é gradativamente mais ampla e, devido à crescente complexificação

das suas estruturas, a sua acção foge cada vez mais ao nosso controlo. Recorrendo ao conceito

de “individuação”, de Gilbert Simondon, e à investigação “Evolving Virtual Creatures”, de

Karl Sims, no campo da neurociência e da computação, verificamos que o crescimento dos

algoritmos pode assemelhar-se à evolução biológica das espécies, tendo em conta que esta

tecno-espécie encontra-se em exponencial evolução e as suas entidades potencialmente cami-

nham para um novo modo de existência. Com tal prognóstico, questionar apenas “o que são”

os algoritmos ou “o que fazem” os algoritmos parece tornar-se cada vez mais redutor, ante a

necessidade de se considerar “quem são” os algoritmos.

114

QUE(M) SÃO OS ALGORITMOS?

As nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes. (Haraway, 1991:42)

1. Introdução: A ascensão dos algoritmos

No tempo em que a tecnologia digital se encontra embebida nas nossas estruturas sociais,

económicas, políticas e também afectivas, vivemos no que Donna Haraway denomina “so-

ciedade tecnologicamente mediada” (Haraway, 1991:45).1 Nesta sociedade, imersa numa

complexa rede de ligações e numa infindável paisagem de dados capturados, mas também

livremente fornecidos, a cibernética surge enquanto arte de controlar sistemas através de

algoritmos, sejam eles corpos, máquinas, mentes ou os próprios ambientes. Por trás das super-

fícies, a governação algorítmica torna-se, então, gradativamente mais ampla e se em tempos

houve o que se designou por “idade da pedra”, hoje, como refere Matteo Pasquinelli, estamos

perante a “idade dos algoritmos” (Pasquinelli, 2015:2).2 Esta noção é reforçada pela progres-

siva tradução do real num código numérico que normaliza diferentes matérias numa mesma

linguagem passível de ser algoritmicamente manipulada. Sons, imagens, textos tal como o

capital, o trabalho, o lazer e até mesmo as emoções passam, assim, a estar fragmentados em

unidades da mesma espécie e a co-habitarem nas mesmas não hierarquizadas bases de dados.

Na consequente ausência de ordem pré-estipulada, “os algoritmos são invocados como pode-

rosas entidades que governam, julgam, organizam, regulam, classificam, ou de outra forma

disciplinam o mundo” (Barocas et al., 2013:3).3 Perante tal invocação, cabe aos algoritmos o

ambíguo papel de se encontrarem ao serviço de quem “disciplina o mundo” e de serem, eles

próprios, “disciplinadores do mundo”.

1. Na sociedade tecnologicamente mediada, o exercício vigilante sobre o indivíduo confinado da sociedade disciplinar foi substituído pelo controlo deste ao “ar livre” (Deleuze, 1990). Não mais confinado o indivíduo interpreta este “ar livre” como liberdade, alienado de que a disciplina não desapareceu mas, antes, que se conver-teu num controlo omnipresente através de dispositivos tecnológicos ou panópticos digitais que “capturam tudo” (Transmediale, 2015) a todo tempo e em todo o lugar. Dentro desta lógica de captação total, “o valor pode ser agora potencialmente extraído de tudo e a medição da produtividade pode ser aplicada a todos os aspectos da vida” (Transmediale, 2015).2. Matteo Pasquinelli apresenta esta noção na introdução do artigo “Anomaly Detection: The Mathematization of the Abnormal in the Metadata Society” (Pasquinelli, 2015:2) para definir o contexto actual.3. T. L.: “There is a puzzling tension at the heart of much current reasoning about algorithms. On the one hand, algorithms are invoked as powerful entities that govern, judge, sort, regulate, classify, influence, or otherwise discipline the world.” (Barocas et al., 2013:3)

Anexos 115

2. O que são os algoritmos?

Num contexto contemporâneo os algoritmos são fundamentais e incontornáveis uma vez que

são eles que permitem a toda e qualquer tecnologia digital funcionar. Na enciclopédia encon-

tramos como definição de algoritmo “qualquer conjunto de símbolos e processo de cálculo

matemático” (Chorão, 1998:7). Já Lucas D. Introna refere que “no seu nível mais básico um

algoritmo é o conjunto de instruções colocadas numa máquina para resolver problemas bem

definidos“ (Introna, 2014:1)4 e Andrew Goffey, por seu lado, que os “algoritmos fazem coisas,

e que a sua sintaxe compreende uma estrutura de comando que possibilita que tal aconteça“

(Goffey, 2008:17).5 Neste sentido, eles são como designam Dorin et al., “mecanismos de

mudanças” (Dorin, 2012:245) definidos por uma série de procedimentos que necessitam de

ser executados para se atingir determinado fim. No entanto, para além da sua composição

material, os algoritmos detêm, ainda, uma dimensão imaterial. Goffey, a partir da fórmula

de Rober Kowalski, “Algoritmo = Lógica + Controlo” (Kowalski, 1979:1), argumenta que:

Certamente a qualidade formal do algoritmo como construção lógica consistente traz consigo um

enorme poder – particularmente num contexto tecno-científico – mas há equívocos suficientes sobre a

natureza puramente formal desta construção que nos permite compreender que o algoritmo é algo mais

do que uma forma lógica consistente. (Goffey, 2008:19).6

Deste modo, um algoritmo compõe-se quer pela sua estrutura lógica que corresponde

à sua materialidade ou à dimensão mecânica do seu comportamento, quer pelo seu princípio

imaterial nomológico ou ideológico que controla a sua acção, sendo “ao mesmo tempo teó-

ricos e práticos, ideológicos e materiais” e, também, “uma abstração que tem uma existência

independente do que os cientistas gostam de referir como ‘detalhes de implementação’” (Go-

ffey, 2008:15).7 Goffey defende, por isto, que os algoritmos são statements (declarações), e

baseado na concepção de Michel Foucault, define que “statements (declarações) são um tipo

4. T. L.: “At its most basic level an algorithm is merely the set of instructions fed into the machine to solve a well-defined problem.” (Introna, 2014:1)5. T. L.: “Algorithms do things, and their syntax embodies a command structure to enable this to happen.” (Goffey, 2008:17)6. T. L.: “Certainly the formal quality of the algorithm as a logically consistent construction bears with it an enormous power—particularly in a techno- scientific universe—but there is sufficient equivocation about the purely formal nature of this construct to allow us to understand that there is more to the algorithm than logi-cally consistent form.” (Goffey, 2008:19)7. T. L.: “both theoretically and practically, ideally and materia (…) “An algorithm is an abstraction, having an autonomous existence independent of what computer scientists like to refer to as ‘implementation details,’ (…) ” (Goffey, 2008:15)

116

de linha diagonal traçada em função da existência da linguagem, que é um excesso das suas

propriedades sintáticas e semânticas” (Goffey, 2008:17).8 Para além desta dupla dimensão sin-

tática e semântica, Barocas et al. afirmam ainda que os algoritmos estão envolvidos em duas

formas de automatização em que, numa primeira instância, automatizam processos de análise

impossíveis de serem executados manualmente e, numa segunda instância que, os resultados

destas análises ajudam a automatizar tomadas de decisões (Barocas et al., 2013:5).9 Esta au-

tomatização dos processos da própria automatização lança para a discussão, por conseguinte,

questões de agenciamento e controlo:

Quem são os árbitros destes (potenciais) admiráveis novos algoritmos? Se os engenheiros da Google

desenham um algoritmo de procura de determinada forma, não estarão eles a exercer autoridade para

além do algoritmo? Serão os engenheiros árbitros dos algoritmos? Serão os algoritmos árbitros de como

a informação flui dentro das esferas públicas? E poderá a propriedade transitiva aplicar-se, por exemplo,

isto faz dos engenheiros de algoritmos outra vez árbitros? Ou alguns dos algoritmos têm uma espécie de

autonomia? (Barocas et al., 2013:5)10

3. O que fazem os algoritmos?

Para um entendimento destas questões lançadas por Barocas et al., mas anterior a todas elas,

impõe-se interrogar: o que fazem os algoritmos? Ao formular a mesma pergunta, Introna

refere que com a crescente complexidade computacional muitas das decisões algorítmicas

encontram-se codificadas e encapsuladas em complexos ninhos de argumentos, regras dentro

de regras, as quais, depois de muitos ajustes, nem os próprios programadores compreendem

mais (Introna, 2014:3).11 Ou seja, Introna, baseado nas ideias de Ellen Ulmann, admite que

8. T. L.: “the statement is a sort of diagonal line tracing out a function of the existence of language, which is in excess of its syntactic and semantic properties.” (Goffey, 2008:17)9. T. L.: “Algorithms seem to involve two related, but very different forms of automation. In the first instance, they automate the process of subjecting data to analysis, undertaking tasks that would be impossible to perform manually. But the results of these analyses help to automate a second and very different set of operations: deci-sion-making.” (Barocas et al., 2013:5)10. T. L.: “Who are the arbiters of these (potentially) brave new algorithms? If Google engineers design a search algorithm in a certain way, do they thereby assert authority over more than the algorithm? Are engineers arbiters of algorithms? Are algorithms arbiters of how information flows within public spheres? And might the transitive property apply, i.e. does that make engineers of algorithms the arbiters again? Or do some algorithms have a species of autonomy?” (Barocas et al., 2013:5)11. Cf: “Design decisions, encoded and encapsulated in complex nests of logic and control statements — rules within rules within rules — enact (in millions of lines of source code) our supposed choice bases in complex relational conditions, which after many iterations of ‘bug fixing’ and ‘tweaking’ even the programmers no longer

Anexos 117

a acção dos algoritmos pode extrapolar a sua estrutura lógica inicial, noção esta que se reforça

se pensarmos no emergir de formas como “machine learning”, “algoritmos evolutivos” ou

“algoritmos genéticos”, os quais detêm autonomia no sentido de independência de execução

e criação de regras. Se tomarmos como inteligência a “capacidade mental de, entre outras

coisas, raciocinar, planear, resolver problemas, pensar de forma abstracta, compreender ideias

complexas, aprender rapidamente e aprender a partir da experiência” (Gottfredson, 1994:1),12

compreendemos que estes algoritmos também eles são, parcialmente, formas de inteligência.

Assumimos, no entanto, que a tecnologia ainda não atingiu a singularidade, momento no

qual a inteligência artificial será tão ou, muito provavelmente, mais capaz do que a inteligên-

cia humana. E assumimos, também, que por não ter atingido essa singularidade, a tecnologia

por enquanto não tem a capacidade de se auto-educar nem de gerar a partir de uma vontade

própria. Contudo, os algoritmos que a permitem funcionar não deixam de ter a capacidade

autónoma de resolver problemas segundo regras criadas, no limite, pelo seu próprio compor-

tamento, com uma acção que, pela sua complexidade, pode ultrapassar o controlo de quem

os programou (Ulmann, 1997; Introna, 2014:3).13

No campo da filosofia, como resposta a estes objectos técnicos cada vez mais com

comportamentos cada vez mais autónomos, surgiu uma série de correntes que veio defender

uma ontologia da técnica e autores, como Bernard Stiegler e Bruno Latour, que vieram alegar

a importância de se ultrapassar uma abordagem antropocêntrica para que, antes, seja consi-

derado um contexto no qual tanto entidades humanas como não humanas deliberam. Neste

contexto, como Stiegler afirma, “a técnica tornou-se mais rápida que a cultura” (Stiegler,

1994:15),14 ou seja, a evolução tecnológica encontra-se a uma velocidade que a capacidade de

assimilação humana não consegue acompanhar. Consequentemente, e segundo Bragança de

Miranda, “a técnica funcionava como auxiliar do processo de realização. Com a libertação da

técnica que ocorreu na modernidade, a técnica acabaria por pôr em causa o próprio espaço

onde funcionava, dominando-o crescentemente“ (Miranda, 1997:2). Assim, a técnica mo-

understand.” (Introna, 2014:3)12. T. L.: “Intelligence is a very general mental capability that, among other things, involves the ability to rea-son, plan, solve problems, think abstractly, comprehend complex ideas, learn quickly and learn from experien-ce.” (Gottfredson, 1994:113. Cf: “As Ullman (1997a, 116–177) observes: ‘The longer the system has been running, the greater the num-ber of programmers who have worked on it, the less any one person understands it. As years pass and untold numbers of programmers and analysts come and go, the system takes on a life of its own. It runs. That is its claim to existence: it does useful work. However badly, however buggy, however obsolete - it runs. And no one individual completely understands how’ (emphasis added).” (Introna, 2014:3)14. T. L.: “Technics evolves more quickly than culture.” (Stiegler, 1994:15)

118

derna tem vindo a revolucionar os sistemas de dominação, num processo em que o humano

gradativamente abdica do seu papel central no controlo artificial dos acontecimentos e da

natureza, sendo que, cada vez mais, em vários tipos e níveis de decisões “as racionais regras

algorítmicas têm vindo a substituir o sentido crítico de julgamento da razão” (Daston, 2013;

Barocas, 2013:2).15 Perante tal substituição “o pensamento moderno está crescentemente de-

sarmado” (Miranda, 2001)16 e, como adverte Gilbert Simondon:

A mais forte causa de alienação no mundo contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina,

que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não-conhecimento de sua natureza e de sua es-

sência, pela sua ausência do mundo das significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos

que participam da cultura. (Simondon, 1958)

4. Quem são os algoritmos?

Parece, em tal caso, como sugere Haraway, que “a maquinaria moderna é um deus irreverente

e ascendente, arremedando a ubiquidade e a espiritualidade do Pai” (Haraway, 1991:43) ou

que a tecnologia digital tornou-se omnipresente e que potencialmente caminha no sentido

de se libertar do seu criador. Esta noção crescente da perda do domínio do humano sobre a

tecnologia não é de agora pois, em 1958, Simondon tinha lançado o mote:

(…) a tomada de consciência dos modos de existência dos objectos técnicos deve ser efectuada pelo

pensamento filosófico, que deve cumprir aqui um dever análogo àquele que desempenhou na abolição

da escravatura e na afirmação do valor da pessoa humana (Simondon, 1958)

Simondon, para defender a sua tese, alargou o conceito de individuação para os ob-

jectos técnicos ao tomar individuação não como um resultado, mas como um processo

contínuo através do qual se dá “uma operação física biológica, mental, social, para os quais

uma actividade propaga passo a passo (a partir de uma pré-individualização) dentro de um

domínio” (Simondon, 1958). Para tal, esclarece que um objecto técnico para se tornar num

15. T. L.: “‘[i]n the models of game theory, decision theory,vartificial intelligence, and military strategy, the algorithmic rules of rationality replaced the selfcritical judgments of reason’ (Daston, 2013).” (Barocas, 2013:2)16. “A tecnologia enquanto domínio da mundo humano sobre a “técnica” está a chegar ao fim, a um ponto de não retorno. Tal como o mito não impediu a teologia, e esta a tecnologia. A técnica aparece como uma língua pura e geral, capaz de traduzir todos os aspectos do mundo da informação. Essa “tradução” é algo de novo e perante ela o pensamento moderno está crescentemente desarmado.” (Miranda, 2001)

Anexos 119

indivíduo necessita de atingir a concretização, ou seja, necessita de um processo de passagem

de “um estado de artificialidade e desarticulação para uma sinergia complexa dos componen-

tes internos do objecto” (Campos, 2008:5). Desta forma, Simondon aproxima os objectos

técnicos das noções biológicas da evolução das espécies dando, como exemplo, a evolução

de um motor automóvel para um motor de avião em que este último, por aperfeiçoamento,

já não necessita de um sistema de refrigeração, tornando-se num objecto mais autónomo,

por isso mais concreto e, portanto, mais individual. Como resumem Campo e Chagas,

“quanto mais um objecto técnico evolui por essência (concretização ou superdeterminação

funcional), mais ele se torna indivisível, plurifuncional e próximo da individualidade em seu

sentido biológico” (Campos, 2008:6).

Nesta abordagem, Simondon faz uma aproximação não antropocêntrica aos modos

de existência da técnica, mas uma aproximação biológica, na qual esta existência não se con-

cebe a partir da vontade humana de encontrar o seu semelhante, mas a partir da possibili-

dade dos objectos técnicos serem uma nova espécie que, embora artificial, não deixa de ter

uma evolução com características biológicas. No entanto, se de um modo comum se define

como artificial um objecto que é construído a partir da acção humana e, como natural, um

objecto que nasce de forma independente à nossa vontade, com a presente evolução, os ob-

jectos técnicos têm vindo a perder o seu carácter artificial, pois cada vez menos é necessária a

intervenção humana para que ele se constitua. Logo, se Simondon conseguiu defender o seu

argumento a partir do exemplo de máquinas puramente mecânicas, com a tecnologia digital

as suas reflexões encontram um exponencial potencial de aplicação.

Tomemos, então, como exemplo as experiências no campo da neurociência de Karl

Sims que, em 1994, desenvolveu o programa “Evolved Virtual Creature” onde, a partir de

algoritmos genéticos, concebeu uma série de criaturas com características evolutivas capazes

de se “adaptarem“ ao ambiente em que são colocadas. Tendo assumido, como referência, a

teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, esta população de entidades virtuais foi

criada de modo que “aquelas que são mais fortes sobrevivem e as que os seus genes virtuais

contenham instruções codificadas para o seu crescimento, são copiadas, combinadas e mu-

tadas para criar uma descendência de nova população“ (Sims, 1994b).17 Sims define, então,

17. T. L.: “[Evolved Virtual Creatures is a] research project involving simulated Darwinian evolutions of virtual block creatures. A population of several hundred creatures is created within a supercomputer, and each creature is tested for their ability to perform a given task, such the ability to swim in a simulated water environment.

120

“algoritmos genéticos“ enquanto “método de optimização” que “permite entidades virtuais

serem criadas sem se requerer a compreensão dos procedimentos ou parâmetros utilizados

para a sua criação”, sacrificado o controlo do utilizador (Sims, 1994:1). Após esta primeira

experiência, Sims avançou para uma segunda experiência, “Evolving 3D Morphology and

Behavior by Competition”, em que pôs estas criaturas em interação umas com as outras

colocando num cenário competitivo e onde, num duelo, tinham como objectivo apanhar

e controlar um cubo ao centro antes do seu adversário. Se a maioria das criaturas dirigiu-se

directamente para o cubo, como o próprio afirma:

Os resultados mais interessantes muitas vezes ocorreram quando ambas as espécies descobriram métodos

para alcançar o cubo e ainda mais quando evoluíram para estratégias para contrariar o adversário. Algu-

mas criaturas empurraram o seu oponente para longe do cubo, algumas moveram o cubo afastando-o da

sua posição inicial e depois seguiram-no, outras simplesmente cobriram o cubo para bloquear o acesso

ao seu oponente. (Sims, 1994a:36)18

Desta forma, estas criaturas, mesmo que se possa argumentar que são desprovidas do

que possamos chamar de livre arbítrio, desenvolvem comportamentos como mover objectos

ou, no limite, empurrar outras criaturas para atingirem o seu fim. Tais comportamentos, que

têm impacto directo no seu meio envolvente, não são pré-programados, ou melhor, não são

pré-definidos, eles consistem no resultado de uma série de ilações embrenhadas na comple-

xidade do “código genético” destas criaturas surpreendendo, inclusive, o seu próprio criador.

Por conseguinte, o sentido clássico da artificialidade do seu comportamento, bem como da

sua evolução, é posto em causa, quando ambos os sistemas, comportamental e evolutivo,

não mais dependem da acção humana para serem iniciados, controlados ou mantidos. Estes

objectos perdem, assim, o seu carácter puramente mecânico e artificial pelo modo como

existem, ou seja, pela sua individuação no sentido biológico, o que acontece precisamente

pela concretização proveniente da sua evolução. Evolução esta que os torna mais indivisíveis,

mais plurifuncionais, mais autónomos, mais complexos e por isso menos controláveis.

Those that are most successful survive, and their virtual genes containing coded instructions for their growth, are copied, combined, and mutated to make offspring for a new population. The new creatures are again tested, and some may be improvements on their parents. As this cycle of variation and selection continues, creatures with more and more successful behaviors can emerge.” (Sims, 1994b)18. T. L.: “The most interesting results often occurred when both species discovered methods for reaching the cube and then further evolved strategies to counter the opponent’s behavior. Some creatures pushed their oppo-nent away from the cube, some moved the cube away from its initial location and then followed it, and others simply covered up the cube to block the opponent’s access.” (Sims, 1994a:36)

Anexos 121

5. Prognósticos e (in)definições

Se tomarmos em conta a evolução exponencial desta nova tecno-espécie, provavelmente, e em

breve, um comportamento de facto inteligente pode vir a ser gerado por uma entidade não

humana. Perante este prognóstico, urgem questões como porque não regular ou mesmo pa-

rar a evolução desta espécie de modo que a supremacia humana não seja abalada? Simondon

afirmou que, “o desejo de poder consagra a máquina como meio de supremacia” (Simondon,

1958), o que significa que numa tecnocracia quem tiver a melhor máquina ou, no caso da

sociedade tecnologicamente mediada, quem tiver o algoritmo mais eficiente deterá o poder.

Facto este que transforma o nosso desejo de poder no alimento para a evolução destas entida-

des, pois o galgar das entidades humanas nas suas hierarquias de poder é literalmente “maqui-

nado” por entidades não humanas que, por sua vez, perante o investimento na sua evolução,

tendem a tornar-se mais autónomas.

Hoje, estas entidades, cada vez mais autónomas, estão embrenhadas nos nossos am-

bientes, nos nossos sistemas e também nas nossas decisões ou, por outras palavras, estão em-

brenhadas tanto na governação das nossas vidas como na nossa liberdade de escolha. Aliás, se

observarmos o nosso quotidiano, verificamos que o modo como procuramos a informação

é guiado pelo algoritmo do Google, as nossas relações sociais, pelo algoritmo do Facebook,

temos algoritmos que reconhecem as nossas faces através de qualquer captor de imagem, e

podemos ir mais longe, temos entidades como bots que decidem mais rápido do que nós,

por exemplo, quais acções comprar nas bolsas condicionando o nosso sistema económico,

e emergem, também, sistemas como o CRUSH desenvolvido para identificar, através de

estatísticas e probabilidades, futuros criminosos. Perguntamos então, se estes algoritmos a

que(m) tanto confiamos tanto, apesar de serem estruturas matemáticas, agem de um modo

neutro ou imparcial?19 Ou, ainda, se são escravos do seu criador ou se, porventura, com a

sua crescente evolução, caminham para uma moral própria alheia à moral humana? Relem-

bramos que a tecnologia digital nasceu com a promessa de vir a ser um cérebro mundial que

traria um futuro de harmonia, graça e beleza, um futuro que iria libertar os humanos da

burocracia, da alienação e do trabalho, um futuro dotado de uma super-inteligência que iria

calcular a resolução dos problemas da humanidade e, ainda, se constituir enquanto enciclo-

19. Cf: “Is there such a thing as algorithmic neutrality or impartiality? Or is such neutrality necessarily illusory? Why might the public desire “neutral” or “impartial” algorithms? What values animate the urge for such neu-trality? Fairness? Justice?” (Barocas et al., 2013:7)

122

pédia universal aberta a todos, num espaço laico e sem dono.20 Enfim, o retorno ao velho

sonho iluminista em que a ciência nos traria o fim da dúvida e não mais necessitaríamos de

uma mediação entre nós e o mundo, pois este revelar-se-ia pela linguagem exacta da mate-

mática. Despertos deste sonho falido, percebemos que estas entidades têm um carácter ob-

jectivo proveniente da lógica, mas também um carácter subjectivo proveniente do controlo,

sendo que é cada vez mais indefinido quem, de facto, define a sua moral, se somos nós ou,

eventualmente, elas próprias. Aliás como perguntam Barocas et al., “será que vamos perder

a nossa moralidade ao dispormos dos algoritmos?” (Barocas et al., 2013:7).21

Aldous Huxley ao ser entrevistado por Mike Wallace, em 1958, referiu que “toda a

tecnologia é em si moral e neutra”. Quando foram proferidas estas palavras, apesar de visio-

nário, Huxley referia-se à possibilidade do uso indevido da tecnologia. No entanto, abordar

a tecnologia como um objecto totalmente artificial que responde exclusivamente à vontade

humana parece, então, constituir-se como um pensamento obsoleto. Não questionamos que

na sua génese estes mecanismos foram criados como dispositivos para tornar uma acção mais

eficiente fosse ela moral ou imoral e que, também, muitos destes mecanismos estão, de facto,

ao serviço dos “disciplinadores do mundo”. Contudo, com o caminhar dos objectos técnicos

para um modo de existência vemo-nos obrigados a abandonar um olhar antropocêntrico

de modo a assimilarmos uma evolução que embora se dê a partir de sistemas artificiais, tem

vindo a adquirir características biológicas e que pode vir a originar formas avançadas de inte-

ligência diferenciada da humana, bem como, a gerar formas de moral alheias à nossa. Embora

possa parecer algo prematuro falar-se de inteligência avançada ou de outras formas de moral,

por ser do senso comum que os algoritmos ainda não detêm consciência, como alerta Huxley,

na mesma entrevista, ao desenvolver a sua leitura sobre os avanços tecnológicos:

O que fortemente sinto é que não devemos ser apanhados de surpresa pelos nossos próprios avanços

tecnológicos. Isto aconteceu repetidas vezes na história com a tecnologia a avançar e a mudar as condi-

ções sociais e de repente as pessoas vêem-se numa situação que elas não previram e a fazer uma série de

coisas que na realidade não queriam fazer. (Huxley, 1958)22

20. Conforme o poema de Richard Brautigan (Brautigan, 1967).21. T. L.: But in predicting more and more of our interests, will algorithms start to change them? Will we lose control of our own morality by relying on algorithms? (Barocas et al., 2013:7)22. Tradução livre de: “what I feel very strongly is that we mustn’t be caught by surprise by our own advancing technology. This has happened again and again in history with technology’s advance and this changes social condition, and suddenly people have found themselves in a situation which they didn’t foresee and doing all

Anexos 123

Por conseguinte, numa sociedade tecnologicamente mediada, manter a reflexão ape-

nas no plano do “que são” ou “o que fazem” os algoritmos parece tornar-se cada vez mais insu-

ficiente, perante a necessidade de se questionar, de facto, “quem são” os algoritmos. Ou seja,

torna-se urgente uma tomada de consciência dos modos de existência desta tecno-espécie que

se encontra embrenhada em praticamente todos os nossos sistemas governamentais e com

comportamentos que, cada vez mais, fogem ao nosso controlo. Como refere Sims, “é muitas

vezes difícil construir entidades virtuais interessantes ou realísticas e ainda manter o controlo

sobre elas” (Sims, 1994:1),23 e se o caminho parece ser em direcção a entidades algorítmicas,

que nos governam, cada vez mais interessantes e realísticas, como declara Haraway, “saber o

que os ciborgues serão é uma questão radical; respondê-la é uma questão de sobrevivência”

(Haraway, 1991:43).

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Anexos 125

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Stiegler, Bernard. 1994. Technics and Time, 1: The Fault of Epimetheus. Translated by Ri-

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126

Anexos 127

ANEXO 2

Artigo desenvolvido para a exposição “Streaming Egos” a decorrer no Goethe-Institut com

curadoria de Sandra Vieira Jürgens.

– http://blog.goethe.de/streamingegos/archives/143-A-Face,-por-Sara-Orsi.html

OS LIMITES DA FACE

Inasmuch as it is nothing but pure communicability, every human face, even the most noble and beautiful, is always suspended on the edge of an abyss.

— Giorgio Agamben em “The Face”

A Face

Na arquitectura tradicional japonesa existe um espaço designado de engawa, uma plataforma

de madeira elevada e coberta ao longo da fachada que, segundo Tadao Ando, une o interior

e o exterior, tratando-se de um espaço tão psicológico quanto físico. Neste lugar do vazio, a

soleira1 prolonga-se e abandona o seu carácter de passagem para se transformar num lugar de

paragem.2 Ao falarmos de casas, a relação interior/exterior parece tão clara pelas paredes que

as separam e, no entanto, Gaston Bachelard (2008) ao alargar-se sobre esta dialética, lança

uma série de outras relações que ultrapassa a comum imagem do dentro e fora, estendendo-se

1. Na arquitectura ocidental este espaço de transição é a soleira da porta.2. Cf. Tadao Ando em Conversas com Michael Auping.

128

ao ser e não ser, ao aberto e fechado ou ao aquém e além.3 Nas várias relações, refere a porta

enquanto um cosmos do entreaberto (225), uma relação que podemos estender à janela – uma

janela que se abre é uma paisagem que se enquadra, como também uma intimidade que se

revela. O desenho de uma fachada é, à vista disto, um preciso exercício de revelar e esconder,

sintetizado numa superfície que se constitui enquanto o rosto com que a casa se apresenta ao

mundo. Um rosto que ao ser habitado abandona a sua dimensão plana de superfície para se

transformar numa densa relação.

Em “The Face”, Giorgio Agamben (2000) distingue face de rosto,4 por se constituir

ao mesmo tempo como a irreparável exposição dos seres humanos e como a própria abertura

na qual se escondem e ficam escondidos (91).5 Se nos lembrarmos do filme de Ingmar Berg-

man (1966), Persona,6 entre complexas máscaras, Elizabeth, uma atriz que caiu num silêncio

profundo, e Alma, a enfermeira, desenvolvem uma relação, em espiral crescente, que culmina

na fusão materializada numa imagem de uma face construída com ambas as faces. Alma, em

negação, diz “não! Não sou como tu. Não sinto o que tu sentes. Eu sou a irmã Alma e estou

aqui para te ajudar. Não sou Elizabeth Vogler. Tu és Elizabeth Vogler” e as duas voltam a fun-

dir-se. A imagem de ambas reverbera, então, num tenso efeito sonoro e ficamos num suspen-

so sem que consigamos escolher a face dominante. Uma sensação semelhante às palavras de

Agamben quando nos diz que a face não é um simulacro no sentido de dissimular ou esconder

a verdade, a face é a simultas, isto é, o estar conjunto dos múltiplos rostos que a constituem,

não havendo um rosto mais verdadeiro do que o outro (Agamben, 2000: 99).7

a Exposição

Ao definir as várias sociedades integrantes da sociedade da transparência, Byung-Chul Han

(2013) desenvolve a noção de sociedade da exposição. Nesta sociedade, que advém também

da sociedade positiva, em que as coisas foram transformadas em mercadoria, há que se expor

para ser desaparecendo, assim, o seu valor cultural – a favor do valor da exposição (25-26).8

3. Cf. Gaston Bachelard em A Poética do Espaço no capítulo “A dialéctica do exterior e interior”.4. Cf.: “The face does not coincide with the visage.” (Agamben, 2000: 92)5. Cf.: “The face is at once the irreparable being-exposed of humans and the very opening in which they hide and stay hidden” (Agamben, 2000: 91)6. Termo latim para as máscara utilizadas no teatro.7. T.L.: “The face is not a simulacrum, in the sense that it is something dissimulating or hiding the truth: the face is the simultas, the being-together of the manifold visages constituting it, in which none of the visages is trues than any of the others.” (Agamben, 2000: 99)8. T.L.: “En la sociedad positiva, las cosas, convertidas en mercancía, han de exponerse para ser, y desaparece así su valor cultual –el que tienen las cosas por existir– a favor del valor de exposición – el que tienen por ser vistas (Benjamin)” (Han, 2013: 25-26)

Anexos 129

O indivíduo passa, deste modo, a ser o próprio objecto de publicidade (29),9 expondo-se

como forma de adquirir valor. Por sua vez, o valor da exposição depende sobretudo do aspecto

belo (30),10 constituindo-se numa exposição do aparente visível. Neste espaço de sedução à

exposição, o indivíduo não mais confinado aos muros disciplinares, interpreta o fim do con-

finamento como liberdade para, munido dos dispositivos tecnológicos certos, construir o seu

próprio retrato com base numa encenação perfeita. O ser auto-retrata-se, assim, nas profile

pictures ou nas selfies, sendo o chamamento a que se refere André Lepecki (2015), “come and

express yourselfies to the World!”, difícil de resistir. Expressão e exposição convergem, portanto,

através de artifícios linguísticos, para uma mesma materialização, e nos plateaus digitais, a

aparente liberdade de expressão explora-se a partir de uma exposição apoiada no desejo do ser

de possuir a sua própria aparência (Agamben, 2013:93).11

a Captação

Do outro lado dessa exposição, encontram-se as tecnologias de captura que a todo o momen-

to e em todos os lugares recolhem os mais diversos dados a fim de construírem os seus pró-

prios retratos. No artigo “Os Limites do Controlo”, que serviu de referência a Gilles Deleuze

para a definição de sociedade de controlo, Williams S. Burroughs defende que todo o controlo

necessita de tempo, de oposição e, também, de concessão. E é precisamente na aparente con-

cessão da liberdade, que a vigilância já não se personifica num suposto observador in loco, mas

sim numa vigilância tecnológica omnipresente onde o controlo se baseia na análise de dados

capturados do sujeito vigiado. Em “Surveillance and Capture: Two Models of Privacy”, Philip

Agre (1994) define:

Two models of privacy issues are contrasted. The surveillance model employs visual metaphors (e.g.,

“Big Brother is watching”) and derives from historical experiences of secret police surveillance. The

less familiar capture model employs linguistic metaphors and has deep roots in the practices of applied

computing through which human activities are systematically reorganized to allow computers to track

them in real time. (Agre, 1994)

9. Cf. Han em La Sociedad de la Transparência: “En la sociedad expuesta, cada sujeto es su propio objeto de publicidad. Todo se mide en su valor de exposición. La sociedad expuesta es una sociedad pornográfica.” (Han, 2013: 25-26)10. Cf.: “El valor de exposición depende sobre todo del aspecto bello.” (Han, 2013:30)11. Cf. Agamben em “The Face”: “That is why they are not interested in mirrors, in the image as image. Human beings, on the other hand, separate images from things and give them a name precisely because they want to recognize themselves, that is, they want to take possession of their own very appearance.” (Agamben, 2000:93)

130

Neste sentido, captura é o termo que Agre utiliza para descrever um modo de controlo no

qual, através de dispositivos tecnológicos e em tempo real, os nossos comportamentos são

monitorizados e analisados por modelos pré-estabelecidos. Dentro do universo da captação,

as tecnologias de identificação surgem como emergentes dispositivos que não apenas reconhe-

cem o objecto-corpo tanto quanto têm a capacidade de identificar um indivíduo e, através de

determinadas leituras, tais como biométricas, procuram romper o limite definido pela pele,

entrando num território que, até então, pertencia exclusivamente ao espaço da intimidade.

a Revelação

“A face humana é uma paisagem em movimento de nuances tremendas e complexidade”,12

diz Raffi Khatchadourian (2015) no artigo “We Know How You Feel” e Agamben (2000)

refere que “a revelação da face é a revelação da linguagem em si” (92).13 Nos anos sessenta,

consciente de que a face é um órgão emotivo, Paul Eckman, psicólogo, começou a desenvol-

ver uma investigação que intercepta emoções e expressões faciais. A investigação tem como

argumento principal o facto de existirem seis emoções humanas que são expressas de igual

forma em todas as faces, independentemente de género, de raça ou cultura14 e culminou

no sistema de taxonomia de expressões faciais FACS (Facial Action Coding System). Sendo

assim, praticamente todas as expressões faciais encontram-se traduzidas em emoções e, por

conseguinte, através da identificação dessas expressões, é possível revelar a conjuntura emo-

cional de um sujeito, tal como acontece na série “Lie to Me” (2009) em que Cal Lightman,

por meio da leitura das expressões faciais, procura revelar a verdade por detrás da mentira.

Com a introdução da computação e das consequentes técnicas de captura nesta equa-

ção, o potencial das leituras faciais adquiriu um novo alcance, e se antes a leitura se consti-

tuía num estudo que a desfasava do momento da expressão, agora esta leitura é executada

em tempo real. Em consequência e tendo como base o artigo de Rosalind Picard (1995),

“Affective Computing”,15 surgiu uma área homónima de estudo, precisamente para o de-

senvolvimento de sistemas computacionais e dispositivos capazes de reconhecer, interpretar,

processar e simular não apenas emoções como, também, afectos humanos. Desta forma, em

potência, um dispositivo relativamente simples como um smartphone pode deter um sistema

12. T. L: “The human face is a moving landscape of tremendous nuance and complexity.” (Khatchadourian, 2015)13. T. L: “The face’s revelation is revelation of language itself.” (Agamben, 2000: 92)14. Cf. Raffi Khatchadourian em “We Know How You Feel”.15. Artigo disponível em: http://affect.media.mit.edu/pdfs/95.picard.pdf

Anexos 131

automatizado ou, literalmente, um interface que revele as emoções e os afectos a partir de

uma qualquer expressão facial.

a Interpretação

Derivada da evolução dos estudos em Affective Computing, nasceu a Affectiva, uma empresa

que tem como mote tornar melhor as experiências, a partir do conhecimento das reações

emocionais da audiência. Para tal, foi desenvolvida uma tecnologia que utiliza algoritmos

sofisticados para a captação e identificação de emoções.16 Argumentando que construíram o

maior repositório de dados de emoções, a Affectiva defende que as suas interpretações são al-

tamente precisas e que “a face humana é uma janela para as nossas emoções”.17 Parece, então,

que a relação entreaberta tornou-se numa janela aberta, quiçá escancarada, a partir da qual é

possível a uma entidade exterior afirmar as nossas verdades. Se voltarmos à noção de Agam-

ben acerca da face enquanto revelação da linguagem e se pensarmos na ascensão do termo

verdade enquanto consenso entre partes, compreendemos que este é um espaço de mediação,

pois estas leituras, embora sejam executadas por algoritmos, não deixam de ser traduções e,

como tal, encontram-se no campo da interpretação. Conforme Matteo Pasquinelli:

The opposition between knowledge and image, thinking and seeing appears to collapse, not because all

images are digitalised, that is to say all images are turned into data, but because a computational and

algorithmic logic is found at the very source of general perception. The regime of visibility collapses

into the regime of the computational rationality. Algorithmic vision is not optical, it is about a general

perception of reality via statistics, metadata, modelling, mathematics. Whereas the digital image is just

the surface of digital capitalism, its everyday interface and spectacular dimension, algorithmic vision is

its computational core and invisible power. (Pasquinelli, 2015:8)

Por este motivo e após toda uma crença positivista em que os algoritmos seriam os

reveladores da verdade ao traduzirem o mundo através de uma infalível linguagem matemá-

tica, muitos são os que têm vindo a pôr em causa a precisão destas traduções, argumentando,

como Zach Blas (2014), que estas não deixam de ser técnicas de normalização e indexação da

16. Cf. a descrição que se encontra no website da Affectiva: “Our technology employs sophisticated computer vision algorithms to capture and identify emotion reactions to visual stimulus.” Disponível em: http://www.affectiva.com/.17. T. L.: “The human face is a window into our emotions. By reading the face and its many expressions, we interpret emotions and naturally and spontaneously connect and communicate.” Disponível em: http://www.affectiva.com/.

132

actividade e identidade humanas através de modelos comuns que operam para a regulação, a

gestão e a governação.18

a Ofuscação

Encontramo-nos, então, perante um caminho bifurcado em que de um lado emergem as

técnicas de captação cada vez mais acuradas e consistentes e, de outro, surge a crescente cons-

ciência de que estas leituras algorítmicas são altamente interpretativas e susceptíveis de se con-

cretizarem, também, em exercícios de poder. As vozes críticas à demanda pela transparência

têm, por isto, proliferado e, não por acaso, as formas de resistência em muitos casos partem,

exactamente, de actos que ofuscam as faces, que vão desde a conhecida máscara de protesto

dos Anonimous, que transforma os seus membros numa colectividade de rosto único (fig.3)

passando pelas máscaras desenvolvidas por Blas no seu projecto “Facial Weaponization Suite”,

às técnicas com o objectivo de confundir as tecnologias de captação, como a maquilhagem de

Adam Harvey, “CV Dazzle”. Destacamos, neste contexto, o projecto “URME Survaillance”,

de Leo Selvaggio (2014), que tem como divisa “proteger o público da vigilância e criar um

espaço seguro para explorar a identidade digital”.19 Selvaggio desenvolveu, para o efeito, uma

máscara com o seu próprio rosto a partir da qual propõe aos seus utilizadores que, em vez de

esconderem as faces das câmeras, as mostrem mas com a identidade trocada (fig.4). Assim,

quem utilizar a máscara, será identificado como Leo Selvaggio, sendo que, pela abundância

de Selvaggios, o sistema, por excesso e sem conseguir identificar o verdadeiro, ficará ofuscado.

Todas estas acções são, portanto, formas de recusa da visibilidade política que utilizam a face

como suporte de protesto. Um protesto que se materializa na criação de gestos ofuscantes

como modo de devolver a opacidade aos corpos.

Como nunca, a face constitui-se num lugar político que é apropriado para se construir iden-

tidades computacionalmente reveladas. No entanto e em consonância com as personagens de

Bergman e as palavras de Agamben, carregamos connosco, simultaneamente, muitas personas

sem que nenhuma seja mais verdadeira do que a outra, bem como, sabemos ainda que em

nós o mundo é profundo20 e as camadas da intimidade são múltiplas. Consequentemente,

18. T. L.: “normalizing techniques for indexing human activity and identity, which then operate as common templates for regulation, management, and governance” (Blas, 2014)19. T. L : “URME is dedicated to protecting the public from surveillance and creating a safe space to explore our digital identities.” (Selvaggio, 2014)20. C.f. Rainer Maria Rilke “O mundo é grande, mas em nós ele profundo como o mar” em Bachelard (2008).

Anexos 133

perguntamos: serão estes construtores de identidades capazes de identificar todas essas perso-

nas e todas essas verdades? Igualmente, serão eles capazes de tornar as múltiplas e profundas

camadas da intimidade transparentes? E, porventura, se possuírem essa capacidade teremos

a possibilidade de encontrar, neste mundo, um lugar de intimidade? Talvez, por fim, apenas

caminhamos para o tempo da pós-privacidade em que a intimidade não será mais do que um

velho termo para designar algo que em tempos existiu, e onde nós, por não mais a reconhe-

cermos, não sentiremos a sua falta.

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