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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA Joel Pantoja da Silva Belém-PA 2013

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA

Joel Pantoja da Silva

Belém-PA

2013

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Joel Pantoja da Silva

Dissertação apresentada à Banca examinadora da

Universidade da Amazônia - UNAMA, como

requisito para obtenção do título de Mestre em

Comunicação, Linguagens e Cultura, linha de

pesquisa: Linguagem e Análise Discursiva de

Processos Culturais.

Sob a orientação da Profª. Drª. Ivânia dos Santos

Neves. E co-orientação do Profº. Dr. Agenor Sarraf

Pacheco.

Belém-PA

2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819

306.098115 S586m Silva, Joel Pantoja da . Memórias Tupi em narrativas orais no rio Tajapuru –

Marajó das Florestas - Pa / Joel Pantoja da Silva. – Belém, 2013.

152f. il.. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia,

Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013.

Orientador: Profª. Drª. Ivânia dos Santos Neves.

1. Cultura ribeirinha. 2 Memória narrativa. 3. Sociedade amazônica . 4. Memória Tupi. 5. Linguagens ribeirinhas. I. Neves, Ivânia dos Santos . II. Título.

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Joel Pantoja da Silva

Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura

BANCA EXAMINADORA:

Presidente/orientador: Profª Drª Ivânia dos Santos Neves (UNAMA)

Professor /co-orientador Dr. Agenor Sarraf Pacheco (UFPA)

Professora Drª. Maria do Rosário V. Gregolin (UNESP – Araraquara)

Professor Dr. Nilton Milanez (UESB)

Professor Dr. Marcos André Dantas da Cunha (UFPA)

Belém-PA

2013

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Dedico esta dissertação às crianças, mulheres e homens do rio Tajapuru, município de Melgaço-Pa que a partir deste estudo rompem, em parte, com o silêncio da história oficial à medida que se inscrevem na escrita da história regional da Amazônia Paraense. E aos meus avós (in memória) – Raimundo Xavier e Filomena de Sousa – por serem os narradores de histórias que me embalaram no tempo de menino, obrigado por existirem em minha formação humana.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por conceder a vida e saúde ao longo desta trajetória acadêmica, pela superação dos desafios e vitórias alcançadas em momentos difíceis desta caminhada. Pela oportunidade de conclusão com êxito do Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, da Universidade da Amazônia (UNAMA).

Agradeço o apoio dos meus pais – Luiz Costa da Silva e Maria José Pantoja da Silva, que mesmo de longe, em Melgaço-Pa, no Marajó das Florestas, foram os baluartes destas idas e vindas em viagens do arquipélago do Marajó a cidade de Belém e deram-me aconchego familiar nos momentos em que precisei renovar as energias. Às comunidades do rio Tajapuru, no município de Melgaço onde fui acolhido e aos seus narradores. Sem essa interação seria inviável este estudo que surgiu porque se colocaram a disposição com generosidade para falar, eu diria melhor, em compartilhar suas memórias “coletivas” e “subterrâneas”. Aos homens, mulheres e crianças do rio Tajapuru agradeço com todo meu respeito e com os quais também divido a autoria desta dissertação. Sou Muito grato, queridos narradores, por este estudo que, em parte, tira do silenciamento a historiografia indígena marajoara frente à história regional da Amazônia Paraense. A minha professora e orientadora, Drª. Ivânia Neves – obrigado por me acolher como seu orientando. Agradeço a proposta da pesquisa, as orientações de análises e trocas de experiências acadêmicas tanto em sua disciplina Análise do Discurso quanto nas participações dos eventos acadêmicos. Obrigado pelo exemplo a ser seguido de competência, sabedoria, perseverança e paciência. Penso que esta última qualidade você muito exercitou na batalha de me orientar. Agradeço o seu apoio intelectual em assumir com um jovem marajoara o lugar de co-autoria desta dissertação. Professora, mais que uma mestre para seus alunos e amigos, você é uma pesquisadora que com generosidade abre janelas de saberes e aponta novas direções. Muito obrigado por tudo.

Ao professor Drº. Agenor Sarraf pelo engajamento e incentivo, socializações de experiências em publicações, respeito e amizade. Obrigado pela generosidade e disposição em ser meu co-orientador. Depois pelo entusiasmo, reflexão acadêmica e estímulo a produção bibliográfica. Sou grato pela forma paciente, com que soube lidar com minhas limitações no exercício das leituras na disciplina Cultura e representações do contemporâneo que envolvia conhecimentos do campo dos Estudos Culturais. À leitura reflexiva da professora Drª. Maria Ataíde Malcher, que compôs a banca examinadora de qualificação, contribuiu para ver as muitas fragilidades do texto, sistematizar as análises das imagens fotográficas, reorganizar e aprofundar algumas das ideias dispersas na textualização da dissertação. Agradeço a forma humilde e generosa como leu as entrelinhas desta pesquisa.

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À perspectiva teórico-metodológica em Análise do Discurso que fez o professor Drº. Marcos André Dantas Cunha, ao ler o texto da qualificação, apontar os caminhos de análises e aprofundamento das materialidades discursivas acerca da cerâmica marajoara. Ainda, nesta mesma direção, corroborou para questionar a floresta como espaço de resistência da história indígena e africana. Ao grupo de estudo GEDAI (Discursos, Mediações e Sociedades Amazônicas) que compõe o Núcleo de Pesquisas em Comunicação, Linguagens e Cultura, no qual está agregado o projeto “Nas Fronteiras das Narrativas Orais Tupi na Amazônia Paraense: Performatividade, História e Tradução” sob coordenação da pesquisadora Ivânia Neves. Por fazer parte desse projeto, não deixo de agradecer os sentimentos de amizade, os debates calorosos e socialização de conhecimentos com Maurício Corrêa, Pedro Leal, Raimundo Tocantins, Shirley Penaforte, Adriana Azevedo e Valquíria Lima. A professora Maria do Rosário Gregolin, em primeiro lugar, pela conferência de abertura do 1º Encontro de Análise do Discurso da Amazônia, organizado pelo grupo GEDAI, quando estávamos delineando os caminhos teórico-metodológicos das pesquisas e análises neste campo. Depois, pelo curso Michel Foucault: Poder, Discurso e Identidades, cujas abordagens analíticas do discurso, saber, poder, história e linguagem foram importantes para compreender o pensamento foucaultiano. Obrigado professora pelos incentivos e orientações de estudo. Os meus agradecimentos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/PROSUP, pela concessão de bolsa de estudos; um incentivo importantíssimo para o desenvolvimento da minha pesquisa e diálogo com o projeto maior intitulado “Nas Fronteiras das Narrativas Orais Tupi na Amazônia Paraense: Performatividade, História e Tradução”, sob coordenação da pesquisadora Ivânia Neves, do Núcleo de Pesquisa em Comunicação, Linguagens e Cultura da UNAMA. À Prefeitura Municipal de Melgaço nas pessoas do prefeito Adiel de Souza Moura que não mediu esforços em apoiar um filho de Melgaço nesta empreitada de formação intelectual e tivesse o nível de mestre; oportunidade de formação acadêmica tão à margem dos Marajós. Ao secretário Municipal de Educação, Onilson Carvalho do Nascimento, pela infraestrutura de transporte para que fosse possível o retorno da pesquisa de campo e ao secretário Municipal de Administração Raimundo Odivan Viegas na forma da legalização de tramites, apoio e amizade neste trajeto. Aos vereadores da Câmara Municipal de Melgaço, em especial, José Getúlio Viegas e Elias Sarraf Pacheco que contribuíram com apoio político ao saberem do ingresso no Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da UNAMA. Aos meus irmãos – Luiz Pantoja da Silva, Anne Pantoja da Silva, Luiz do Socorro Pantoja da Silva, Luiza Pantoja da Silva pelo afeto familiar, com destaque especial

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para Luciane do Socorro Pantoja da Silva, que agiu como um braço direito e assumiu os assuntos de interesse legal em Melgaço. A minha família, Rosirene do Socorro Castor e Luiz Gabriel Castor da Silva, por serem os alicerces cotidianos desta jornada. Sou grato à minha esposa, que soube entender as ausências quando estava em pesquisa de campo e isolamentos na tela do computador. Esposa, companheira e mãe. Ao meu filho, força motriz, por animar-me e fazer-me ver esperança, dedicação e força de vontade em gestos inocentes desde os olhares, o riso, no pouco tempo de brincadeiras, nas primeiras palavras que pode ensinar e a reaprender o valor com sua inocência. Amo muito você meu filho, esta é uma vitória sua também, você nasceu no meio desta luta acadêmica diária entre ser seu pai, amigo e acadêmico. A minhas queridas professoras – Raimunda Figueiredo, Jurema Pacheco Viegas e Rosiete Siqueira, precursoras do início do meu processo de alfabetização e letramento, por estarem envolvidos em minha formação, divido esta vitória com todas. Aos meus amigos de Melgaço – Xarles, Manoel Almeida, Marcelo Pacheco, Raimundo Tavares, Zack, David, Sebastião, Sandro Souza, Marlene, Hélio Baia, José Luiz Farias, Lucinaldo, Ítala Barbosa e outros que colaboraram direta ou indiretamente com gestos de amizades e fizeram-me vencer as dificuldades quando recebia solidariedades em forma de sorrisos, abraços e palavras incentivadoras para chegar nesta construção do conhecimento.

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Um acendeu fogo; derreteram o breu que estava fechando a porta do caroço de tucumã. Quando eles abriram, repentinamente noite densa já!

(Couto de Magalhães, 1940)

Neste momento, o socó, anjo da guarda da caçula, dizia: - Primeiro joga o fio para formar o sarazal (traçados de cipó), se a fera passar, joga em seguida o carvão para criar a noite, depois lança a cinza para construir o lago.

(Miguel Vila Real, morador do rio Tajapuru - 2012)

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Resumo: A primeira parte desta dissertação de mestrado está voltada para o nosso

percurso da pesquisa junto às sociedades amazônicas. Nossa pesquisa consistiu de um

extenso levantamento bibliográfico sobre a região e em um trabalho de campo que

aconteceu em duas etapas no Marajó das Florestas, às margens do rio Tajapuru, no

município de Melgaço-Pa. Na segunda parte, as materialidades que analisamos relativas à

história do presente, nesta região, são narrativas registradas em trabalhos pedagógicos e

etnológicos, a segunda parte, produzida no trabalho de campo realizado com uma equipe

do GEDAI, são narrativas orais contadas por moradores ribeirinhos do rio Tajapuru,

coletadas em janeiro de 2012. O objetivo consistiu em analisar como estas narrativas, com

suas dispersões e regularidades, dialogam com uma memória Tupi, que encontrou formas

de resistências no cotidiano das sociedades marajoaras contemporâneas. A posição e o

lugar que assumimos, a partir da orientação teórica da Analise do Discurso, especialmente

os estudos sobre identidade e história, de base foucaultiana, permitiu ser possível, sim,

pensar em uma memória discursiva Tupi, em suas dispersões e regularidades presentes nas

narrativas de narradores ribeirinhos, apesar das relações de poder que implicam a

nomeação do seja ser “ribeirinho” na Amazônia Paraense.

Palavras-chave: Colonialidade; Mediações; Discursos; Melgaço.

Memories Tupi in oral narratives in the Brazilian Amazon, the river Tajapuru

Abstract: The first part of this dissertation describes research on Amazonian societies. We

did a literature search on the travelers and chroniclers who visited the region. We did field

work in two stages in Marajó Forestry, Tajapuru River in the city Melgaço, Brazilian

Amazon. In the second part, we analyze school writings and oral narratives told by

riverside the river Tajapuru, collected in January 2012. The goal was to show how these

narratives, with their dispersions and regularities, dialogue with a memory Tupi. The

indigenous traditions found in everyday forms of resistance marajoaras contemporary

societies. This thesis is based on the ideas of Michel Foucault and discussions about

identity and history. We analyze the meanings of the definition of riverside and Indian

influence in the daily practices of local residents.

Keywords: Colonialism; Mediations; Discourse; Melgaço.

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Quadros

Quadro 01- Funcionamento das dispersões e regularidades 125

Quadro 02- Dispersões e regularidades entre as narrativas analisadas 136

Índice de Figuras

Figura 01 - Cartografia do rio Amazonas – século XVII 22

Figura 02 - Mapa Marajó dos Campos e Marajó das Florestas 26

Figura 03 - Praia do Pesqueiro em Soure 28

Figura 04 - Búfalo na região do Marajó dos Campos 29

Figura 05 - Navio Amazón Star 30

Figura 06 - Frente da praia de Arucara em Portel 30

Figura 07 - Balsa viajando da Zona Franca de Manaus 31

Figura 08 - Pai e filho saem para pescar pelo rio Tajapuru 35

Figura 09 - A concepção de tempo no calendário ocidental 40

Figura 10 - O uso da antena parabólica em uma casa no rio Tajapuru 41

Figura 11 - Antena parabólica, televisão e luz no rio Tajapuru 63

Figura 12 - Balsa da empresa Rincón subindo ao alto Amazonas 66

Figura 13 - Imagem do navio cargueiro, baixando do Amazonas 66

Figura 14 - Barco com antena e gerador de luz 68

Figura 15 - Rádio e televisão no interior do Comércio Porto Capinal 71

Figura 16 - Cronologia da historiografia arqueológica na Amazônia 81

Figura 17 - Cerâmica marajoara na internet 82

Figura 18 - Imagens de sítios arqueológicos em Melgaço 83

Figura 19 - Vaso antropomorfo marajoara 400 a 1400 a.C 85

Figura 20 - Mapa Marajó das Florestas 94

Figura 21 - Frente da igreja de São Miguel Arcanjo 99

Figura 22 - Xilogravura aquarela a mão 22x33 109

Figura 23 - O jabuti e o veado 120

Figura 24 - Mapa de localização do rio Tajapuru 126

Figura 25 - Seu Miguel e dona Rosalina 131

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Sumário

INTRODUÇÃO 12

Capítulo 01 – Correntezas e remansos entre rios e florestas: Os sentidos de escrever a pesquisa

20

1.1. De Marinatambal a Marajó dos Campos e Marajó das Florestas 21

1.2. Além dos trapiches da escola 31

1.3. Entre estar professor e ser pesquisador: minha “Briga de Galo” 37

Capítulo 02 – Identidades em curso pelo Marajó das Florestas 44

2.1. Identidades em movências históricas 45

2.2. A perspectiva de construção da identidade afroindígena 47

2.3. A visão multiperspectívica sobre a identidade ribeirinha 49

2.3.1. Acepções da literatura acadêmica 51

2.3.2. O ponto de vista étnico-religioso 56

2.3.3. Ribeirinhos entre meios de mediações 59

2.3. 3.1. Pela lente da cultura local: tensões entre o moderno e a tradição 65

2.3.3.2. “Muitos conhecem através da televisão, senão existisse a gente só ouvia falar porque o rádio só faz falar”

70

Capítulo 03: Entre a cerâmica marajoara e a memória indígena nas narrativas orais

75

3.1. Administração dos gestos de leitura: história e mito 76

3.2. A presença indígena na linguagem visual 79

3.2. 1. Continuidades e descontinuidades da história: entre cerâmicas e narrativas

84

3.3. Rotas da conquista portuguesa pelo Marajó das Florestas 88

3.3.1. Os caminhos do aldeamento: Do rio Mapuá à aldeia de Guaricuru 98

3.4. A narrativa velha gulosa e os rituais de antropofagia: fios de discursividades Tupi

102

3.4.1. Entre o religioso e o selvagem: o ritual da antropofagia 108

Capítulo 04: Memórias e identidades Tupi no rio Tajapuru 112

4. 1. Existiria uma cultura Tupi ainda hoje? 113

4. 2. Narrativas orais e resistência indígena 116

4.2.1. No caminho do jabuti e do veado: Pelejas da memória Tupi 118

4.3. Pelo rio Tajapuru a presença da memória Tupi 125

4.3.1. A criação da noite contada por Couto de Magalhães 128

4.3.2. Jogou o carvão na floresta e fez surgir a noite 130

4. 3.3. A memória discursiva Tupi 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS 137

Vocabulários 141

Referências 145

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INTRODUÇÃO

Esta produção acadêmica está vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Comunicação,

Linguagens e Cultura, da Universidade da Amazônia (UNAMA), mais especificamente ao

grupo de estudo GEDAI (Discursos, Mediações e Sociedades Amazônicas) que agrega o

projeto “Nas Fronteiras das Narrativas Orais Tupi na Amazônia Paraense”, financiado pela

CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em parceria

com a FIDESA (Fundação para o Desenvolvimento da Pesquisa na Amazônia) nos anos de

2011/2012, coordenado pela pesquisadora Ivânia dos Santos Neves. O objetivo deste grupo

é reunir projetos de pesquisas e de extensão relacionados aos processos de mediação e às

sociedades amazônicas, o qual se filia o nosso subprojeto “Narrativas Orais, Letramento e

Identidades: Discursos e Mediações em Comunidades Ribeirinhas1 do Marajó das

Florestas-Pa”, realizado no rio Tajapuru, município de Melgaço.

Até o momento, três alunos do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura

(UNAMA), que participam do GEDAI, desenvolveram inquirições sobre o uso socialmente

estabelecido da categoria ribeirinha na Amazônia Paraense. Os resultados de duas

pesquisas estão nas dissertações já concluídas intituladas “Entre o rio e a ponte: letras e

identidades às margens do rio Acará, na Amazônia paraense” (FERREIRA, 2012) e

“Memórias, cotidianos e escritas às margens dos Marajós: navegando entre o saber e o

poder” (AMARAL, 2012). A primeira analisa esta identidade forjada institucionalmente,

propalada pelas mídias e propõe reformulações de uso para “aquosociedades, ou seja,

sociedades ribeiras”. A segunda desloca a proposição da categoria ribeirinha para trabalhar

com o termo “escolas das águas” no Marajó das Florestas. Nesta dissertação, propomos o

estudo da presença de uma memória indígena Tupi que se atualiza nas narrativas orais

1 Por ser um termo forjado dentro do campo da antropologia, as pesquisas denominaram institucionalmente

as sociedades do meio rural que residem à margem dos rios de ribeirinhas (WAGLEY, 1977; FILHO, 1997;

RODRIGUES, 2006) cuja classificação se ordena pelas atividades cotidianas como agricultura, caça, pesca,

roça, tirar açaí, etc., pela localização onde habitam e que obscurece questões fundamentais como etnia,

classe, gênero e cultura. Foram pesquisas realizadas que, em parte, os olhares dos pesquisadores não

acompanharam as perspectivas históricas das práticas discursivas e das relações de poder que define o lugar

de onde se fala quem é ribeirinho na Amazônia. Nesta dissertação, não propomos deslocamentos de uso da

referida categoria, o que seria o politicamente correto, mas também não podemos olvidar que estas

populações, assim chamadas de ribeirinha, já constituíram suas histórias, cosmologias, crenças, costumes e

tradições que compõem esta identidade no cenário das sociedades amazônicas. Deste modo, irei manter a

referida denominação, sem perder de vista a constituição histórica destes sujeitos, as redes de memórias que

atualizam as tradições orais de matrizes da cultura Tupi (e até mesmo africana) a qual se filia a perspectiva

deste estudo.

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contadas pelas populações ribeirinhas do rio Tajapuru, mas sem nos esquivar das relações

de poder que implica esta categoria como construção histórica na região amazônica.

Contemporaneamente, um dos grandes desafios do fazer acadêmico é conseguir

produzir pesquisas de caráter interdisciplinar que consigam, de fato, estabelecer um

diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Esta situação é bastante complicada,

porque desde que entramos na escola, somos expostos a metodologias disciplinarizantes e

não é pacífico conseguir mudar esta perspectiva, eu diria mesmo que é difícil, pois nossa

formação não nos prepara para isso.

No programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura que tem uma

proposta interdisciplinar, tivemos a oportunidade de conviver com colegas e professores de

diferentes áreas, o que enriqueceu nossa forma de olhar para as questões acadêmicas.

Tomamos, nesta dissertação, a Análise do Discurso que também se define pela

interdisciplinaridade, como principal referência teórico-metodológica para sistematizar as

análises. Transitamos, portanto, pelas discussões relacionadas à linguística, à história e às

teorias contemporâneas sobre cultura, que envolvem também os estudos sobre

comunicação. Para Gregolin (2003, p. 11):

Quando adotamos o ponto de vista da Análise do Discurso, focalizamos

os acontecimentos discursivos a partir do pressuposto de que há um real

da língua e um real da história, e o trabalho do analista de discurso é

entender a relação entre essas duas ordens, já que o sentido é criado pela

relação entre sujeitos históricos e, por isso, a interpretação nasce da

relação do homem com a língua e com a história.

Para entendermos as relações complexas que envolvem a produção discursiva é

preciso que ocorra a sua materialização que é, ao mesmo tempo, da ordem da linguagem e

da ordem histórica. As interpretações discursivas aparecem nesta relação do homem com a

linguagem que o situa nas tramas das condições da história do seu lugar. Na Amazônia

Paraense, para apreendermos o modo de viver dos sujeitos existe uma tensão discursiva

entre uma posição eurocêntrica construída discursivamente pelo olhar do colonizador sobre

a maneira de ser, viver e conviver na região e a realidade empírica destes sujeitos.

Nesta direção, é válido considerar a reflexão de Gonçalves (2005, p. 18), quando

problematiza de onde se vê a Amazônia, na perspectiva dos jogos de olhares de “fora” e de

“dentro”, marcando universos culturais singulares e plurais.

Para os de fora, a imagem que se tem da Amazônia é mais homogênea

[...]. Para os habitantes da própria região, a “Amazônia” é um termo vago

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que adquiri múltiplos significados correspondentes aos mais diferentes

contextos sócio ecológico-culturais específicos que são os espaços do seu

cotidiano. Assim, enquanto para uns – os de fora, “Amazônia” aparece no

singular, para outros, isto é, para os que nela moram – ela é plural e

multifacetada.

Esta vasta terra cercada de florestas e rios é habitada por indígenas, pescadores,

fazendeiros, mulheres, homossexuais, negros, católicos, evangélicos, afrorreligiosos,

coletores, imigrantes, posseiros, colonos, agricultores rurais, barqueiros, madeireiros,

palmiteiros, açaizeiros, universitários, descendentes de indígenas e africanos entre outros.

Esta heterogeneidade cultural é uma das principais peculiaridades deste espaço, a

variedade e complexidade do seu território são muito extensas, deste modo, para falarmos

sobre a floresta amazônica, é necessário indicar com qual Amazônia estamos nos propondo

a dialogar nesta produção acadêmica.

Nesta dissertação, especificamente, na Amazônia Paraense, centramos nosso

estudo no arquipélago do Marajó, localizado no norte do Pará, que por suas singularidades

geográficas, históricas e culturais, apresenta-se dividido em duas faces: Marajó dos

Campos e Marajó das Florestas (PACHECO, 2006), no capítulo 1, falaremos mais

detalhadamente sobre esta classificação. Nossa pesquisa consistiu de um extenso

levantamento bibliográfico sobre a região e em um trabalho de campo que aconteceu em

duas etapas no Marajó das Florestas, às margens do rio Tajapuru, no município de

Melgaço-Pa. Parte das materialidades que analisamos relativas à história do presente, nesta

região, são narrativas registradas em trabalhos pedagógicos e etnológicos, a segunda parte,

produzida no trabalho de campo realizado com uma equipe do GEDAI, são narrativas orais

contadas por moradores ribeirinhos do rio Tajapuru, coletadas em janeiro de 2012.

Tajapuru é uma terminologia de origem Tupi, “taiá – purú: Tajapuru. Tajá, a cuja

raiz se atribui a propriedade de trazer a felicidade nos amores e de tornar marupiara (feliz

na caça ou na pesca, bem sucedido) quem a traz consigo pelo que se encontra muito

cultivado, especialmente, no baixo Amazonas” (ESTRADELLI, 1929, p. 656). Embora

este rio se constitua como espaço de sorte para as relações sociais e abundante em caça,

pescaria, plantação, colheita, madeira e palmito, nas crônicas do padre João Daniel, a

nomeação varia historicamente ora registrada como Tojipuru, quando mencionada para

relatar os conflitos da guerra entre as nações indígenas e os colonizadores, ora Tajupuru

marcando a localização do aldeamento de Guaricuru após o tratado de paz (DANIEL,

2004b). Hoje, a população melgacense o identifica com a denominação Tajapuru.

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Como braço meridional do rio Amazonas, o rio Tajapuru se localiza entre a

entrada pela foz do rio Amazonas de quem vem de Belém e a saída do estuário amazônico

de quem vem do Amazonas. Em relação à cidade de Melgaço, esse rio se localiza a oeste

do município, se considerar as rotas dos colonizadores portugueses desde o rio Parauaú (no

município de Breves) até o rio Tajapuru nesta região. Por ser um roteiro estratégico de

navegação no cenário amazônico, ocupa importante lugar de destaque na história regional

da Amazônia Paraense. Desta forma, justificamos o porquê de sua escolha nesta

dissertação de mestrado.

A partir da memória construída por viajantes, religiosos e naturalistas a princípio

e atualmente pelos meios massivos de comunicação, o arquipélago do Marajó, constituído

por um conjunto de ilhas, sobretudo para quem não vive na região, sugere uma região

isolada e homogênea. Em sua análise, Foucault (1979, p. 158), assinala como vozes

autorizadas para instalar o saber sobre as construções territoriais estão atravessadas por

relações de poder.

Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região,

de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se

apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e

reproduz os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política

do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente,

quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a

que se referem noções como campo, posição, região, território.

Desde a chegada do colonizador no estado do Pará, os sentidos de ocupação

relacionados ao território impuseram-se pela força bélica e pelas relações de poder que se

estabeleceram sobre os discursos estrangeiros que passaram a circular sobre a região. A

história indígena atesta esta condição geopolítica vivida, em tempos coloniais. As rotas de

conquistas delineiam esta cartografia em territórios marajoaras.

Nesse sentido, a investigação apresentada pauta-se também no levantamento

bibliográfico sobre referências indígenas no Marajó das Florestas e sobre sociedades

indígenas de tradição Tupi, que permitiram selecionar uma série de narrativas que

desenham uma memória discursiva Tupi.

Toda produção discursiva se efetua em determinadas condições

conjunturais de produção e remete, põe em movimento e faz circular

formulações anteriormente já enunciadas, como um efeito de memória na

atualidade de um acontecimento (COURTINE, 1981, p. 21).

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As análises estiveram voltadas para as relações de poder, que atravessam as

diferentes trajetórias históricas de dominação e resistência vividas, em tempos de

colonização, pelas nações indígenas de matrizes Tupi e, atualmente, populações

ribeirinhas2 que vivem no rio Tajapuru. O objetivo foi analisar como estas narrativas, com

suas dispersões e regularidades, dialogam com uma memória Tupi, que encontrou formas

de resistências no cotidiano das sociedades marajoaras contemporâneas.

Daí a idéia de descrever estas dispersões; de pesquisar se entre esses

elementos, que seguramente não se organizam como um edifício

progressivamente dedutivo, nem como um livro sem medida que se

escreveria pouco a pouco através do tempo, nem como a obra de um

sujeito coletivo; não se poderia detectar uma regularidade: uma ordem em

seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade, posições

assinaláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco,

transformações ligadas e hierarquizadas. Tal análise não tentaria isolar,

para descrever sua estrutura interna, pequenas ilhas de coerência; não se

disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes; mas estudaria

forma de repartição (FOUCAULT, 2010a, p. 42).

A partir destas formulações de Michel Foucault, que reconfiguram a forma de

estudar as dispersões históricas e temporais, é possível, sim, pensar em uma memória

discursiva que atravessa as narrativas contadas pelos moradores do Marajó, na atualidade.

Esta definição constrói-se a partir de acontecimentos narrativizados que permitem trazer as

condições de produção da história indígena Tupi no rio Tajapuru. Aqui assumimos como

Neves (2009), as narrativas destes moradores como histórias e não como mito, e utilizamos

o conceito de memória discursiva Tupi para mostrar como a história de sociedades

indígenas, que hoje não existem mais, mantém-se vivas no cotidiano destas populações.

As narrativas constituídas em matrizes culturais de tradição oral no rio Tajapuru

deixam ver uma rede de memórias que encontrou formas de resistência e desde o

colonialismo, até o presente momento. Na contemporaneidade, Gregolin (2000, p. 57) em

suas análises assinala que:

As redes de memória, sob diferentes regimes de materialidade,

possibilitam o retorno de temas e figuras do passado, os colocam

insistentemente na atualidade, provocando sua emergência na memória

do presente. Por estarem inseridos em diálogos interdiscursivos, os

enunciados não são transparentemente legíveis, são atravessados por falas

que vêm de seu exterior – a sua emergência no discurso vem clivada de

pegadas de outros discursos.

2 Embora saibamos que as influências de diferentes matrizes indígenas e africanas façam parte da história da

região, nesta dissertação, o recorte se circunscreveu à matriz indígena Tupi.

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Atualmente, os moradores do Marajó, assim como todas as pessoas que vivem às

margens dos rios da Amazônia são chamadas de “ribeirinhos”, uma espécie de identidade

geral da região. Esta identidade, forjada pela escola, pela mídia, pelas instituições

governamentais silencia um capítulo importante da história do Marajó e interdita uma

memória indígena que ainda é muito forte para a tradição local. Essa análise das narrativas,

que materializam esta presença, na atualidade, pode contribuir para pluralizar as

identidades dos moradores da região, posto que, já não são mais nem indígenas, nem

africanos, nem portugueses, mas não se constituem sujeitos de uma cultura homogênea,

simplificada como ribeirinha.

A primeira parte, no primeiro capítulo desta dissertação, Correntezas e remansos

entre rios e florestas: os sentidos de escrever a pesquisa, apresentamos nossa inserção e

percurso no universo da pesquisa junto às sociedades amazônicas que habitam as margens

do rio Tajapuru, no arquipélago do Marajó. Nesta trajetória, analisamos como a

perspectiva da construção social da definição de Marajó dos Campos e Marajó das

Florestas se contrapõe à constituição do uso da nomenclatura ilha de Marajó que formou

ideologicamente representações históricas, insulando-a na própria dinâmica natural,

cultural e geográfica do Pará e do Brasil.

Ainda neste capítulo, procuramos mostrar como as narrativas orais da cultura

local atravessam as práticas pedagógicas e vão para além da escola. Para finalizar,

apresentamos as condições do “estar lá” e o exercício de estranhamento quando nosso

lugar de fala está muito próximo da cultura de tradição oral que nos propusemos a analisar.

Para marcar estes deslocamentos, tomamos como referências teórico-metodológicas as

formulações de Clifford Geertz (2008) e Cardoso de Oliveira (2006).

O capítulo dois, Identidades em curso pelo Marajó das Florestas, fundamentados

na perspectiva teórica da análise do discurso, particularmente, na acepção de micropoderes

e nas discussões articuladas pelos estudos culturais, buscamos analisar a construção e

reconstrução das identidades na sociedade ribeirinha. Porém, nossas análises percorrem

uma direção pouco estudada na região, a memória indígena Tupi em narrativas orais

contemporâneas no rio Tajapuru, que também constrói as identidades destes sujeitos.

Em seguida, analisamos a construção discursiva da identidade ribeirinha, a partir

do multiperspectivismo proposto por Douglas Kelnner (2001), que convoca para as

análises os diferentes aspectos que envolvem as produções midiáticas, isto é, as práticas

culturais e históricas, as condições econômicas e materiais, as condições de interlocução,

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os processos de recepção, entre outras. Na parte final, esclarecemos como as resistências

indígenas constituem as narrativas orais marajoaras da atualidade.

A segunda parte, no terceiro capítulo, Entre a cerâmica e a memória indígena nas

narrativas orais, discutimos as definições de mito e história em culturas de tradição oral,

explorando a visão das ciências ocidentais sobre as perspectivas das narrativas orais como

mito e história. Neste aspecto, defendemos o lugar das narrativas na história das sociedades

indígenas no Marajó das Florestas. No segundo tópico, apresentamos as colaborações das

pesquisas em arqueologia no arquipélago do Marajó e os desafios de reconstruir uma

historiografia indígena da região a partir dos estilos das cerâmicas marajoaras. Contudo,

nossa perspectiva teórica fundamentada em uma genealogia que se inscreve na percepção

da descontinuidade histórica temporal, busca analisar as narrativas orais contemporâneas,

narradas por ribeirinhos do Marajó das Florestas, que não deixar de atualizar as memórias

que se filiam às práticas culturais das nações indígenas.

No terceiro tópico, elaboramos as análises dos trajetos da conquista portuguesa no

ocidente marajoara, partindo das condições históricas da narrativa “Ilha Encantada”, de seu

Elson de Lima Rodrigues, registrada no rio Tajapuru, assinalando as guerras e as relações

de poder que entrecruzaram a história das sociedades indígenas marajoaras, reafirmada nas

memórias sociais dos moradores da região. Na parte final deste capítulo, analisamos duas

narrativas, a “Velha Gulosa” (ou Ceiuci) registrada por Couto Magalhães (1865/ [1975]) e

“A Velha Gulosa” coletada em Melgaço em 2012, para mostrar a constituição dos fios de

discursividades da cultura de tradição Tupi no Marajó das Florestas.

No quarto capítulo, Memórias e Identidades Tupi no rio Tajapuru, discutimos

como se constitui, na literatura especializada, uma cultura de tradição de Tupi. Neste

percurso, a partir de análises documentais da história regional sobre as batalhas no período

de colonização entre as nações indígenas do Marajó das Florestas e portugueses registrados

por cronistas, viajantes e etnólogos, articula-se a inserção do ocidente marajoara,

particularmente, Melgaço, nesta tradição de matrizes Tupi.

Na história do presente, destes ribeirinhos marajoaras, apresentamos como as

narrativas orais persistiram ao processo de colonização e atualizam-se nas memórias

sociais destes habitantes locais, visibilizando em suas práticas culturais as astúcias dos

saberes indígenas. Para assinalar esta condição de produção histórica analisamos duas

narrativas, “O Jabuti e o Veado”, da sociedade de tradição Tupi do baixo Amazonas e a

narrativa “A Esperteza do Jabuti”, registrada no rio Tajapuru. Objetivamos descrever os

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fios discursivos que elas estabelecem com uma memória Tupi que se atualiza no cotidiano

das sociedades ribeirinhas.

Na parte final deste capítulo, elaboramos as análises que possibilitaram pensar a

memória Tupi, atualizada em narrativas orais da população ribeirinha no rio Tajapuru.

Analisamos a narrativa “Como apareceu a noite (Mai Pituna Oiuquau Ãna)”, de Couto de

Magalhães (1940), a partir dos fios discursivos que estabelecem suas dispersões e

regularidades em relação à narrativa “A criação da noite”, de seu Miguel, morador do rio

Tajapuru, da contemporaneidade.

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Capítulo 01

Correntezas e remansos entre rios e florestas: os sentidos de escrever a pesquisa

Mostrar como o olhar, o ouvir e o escrever podem ser

questionados em si mesmos, embora, em um primeiro

momento, possam nos parecer tão familiares e, por isso,

tão triviais, a ponto de sentirmo-nos dispensados de

problematizá-los; todavia, em segundo momento – marcado

por nossa inserção nas ciências sociais –, essas

“faculdades” ou, melhor dizendo, esses atos cognitivos

delas decorrentes assumem um sentido todo peculiar, de

natureza epistêmica, uma vez que é com tais atos que

logramos construir nosso saber

(Cardoso de Oliveira, 2006)

Neste capítulo, apresentamos nosso percurso no universo da pesquisa, junto a

comunidades amazônicas que margeiam o rio Tajapuru, no arquipélago do Marajó.

Trazemos, no primeiro tópico, as definições de Marajó dos Campos e Marajó das Florestas,

visando estabelecer as diferenças históricas, culturais e geográficas nessas duas

conceituações, mesmo que nosso lugar de fala na escrita desta dissertação de mestrado seja

o Marajó das Florestas.

Ainda nesta direção discutimos a posição histórica de onde se fez instituir

discursivamente o uso do nome Ilha de Marajó. Uma denominação forjada que retoma a

memória do colonizador, que impôs a nomeação de ilha grande de Joanes a ilha dos

Nheengaíba, silenciando as particularidades da cultura local. Nesse sentido, apresentamos

os discursos constituídos pela ótica dos cronistas, colonizadores e viajantes, cujas análises

das rotas de ocupação geopolítica do arquipélago de Marajó possibilitam ler, nessas

representações, olhares eurocêntricos com vista a homogeneizar e insular a região em sua

própria dinâmica geográfica.

Esses desdobramentos da pesquisa trouxeram achados relevantes que nos fizeram

refletir, a partir das narrativas de tradição oral, a respeito da participação do rio Tajapuru,

em Melgaço, nesse roteiro cartográfico da conquista do ocidente marajoara. Deste modo,

delineamos como os estudos das narrativas orais contemporâneas, contadas pelos alunos do

meio rural, em sala de aula, constituíram as nossas práticas pedagógicas e conformaram os

motivos de ir além dos trapiches da escola para encontrar, nelas, a presença de memória

Tupi no rio Tajapuru.

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1.1. De Marinatambal a Marajó dos Campos e Marajó das Florestas

Os discursos constituídos pela historiografia regional e nacional silenciaram, em

grande parte, as peculiaridades históricas locais que compõem os municípios do

arquipélago de Marajó. O lugar de onde se fez estabelecer discursivamente o uso da

nomenclatura ilha do Marajó formou ideologicamente representações históricas que nos

fazem imaginar um lugar paradisíaco isolado das transformações históricas de nosso país.

Nesse sentido, é preciso refletir, contemporaneamente, os lugares de onde e como se fala

sobre este local, para não cair em equívocos e visões homogêneas da região, ou pelo menos

para tentar estabelecer mais uma versão desta história.

O arquipélago do Marajó se localiza no norte do Pará, constituí-se

geograficamente com a maior ilha flúvio-marinha do mundo com aproximadamente 50 mil

quilômetros quadrados em áreas de campos de natureza, praias, manguezais, florestas e

rios. Na história paraense, muitos estudiosos, quando se referem a esta região, usam a

rubrica Ilha de Marajó, já registrada em documentos históricos, ou faz uso da mesma

denominação institucionalizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Essas posições, de onde esta assinatura se fez estabelecer, somente considerou a extensão

territorial e não as perspectivas diferentes das histórias dos dezesseis (16) municípios que

formam o arquipélago.

Em janeiro de 1500, Vicente Yáñez Pizón, experiente viajante espanhol, que

batizou o rio Amazonas de Mar Dulce, ao ser encruzilhado pelo fenômeno da pororoca,

aportou na embocadura do rio e nomeou aquela a região de Ilha Grande de Joanes, que

ficou conhecida com este nome até a primeira metade do século XVII (CRUZ, 1987, p.

22). Nesta época, em função das determinações do Tratado de Tordesilhas, que dividia o

mundo entre espanhóis e portugueses, a Amazônia ainda não era uma colônia lusitana.

O mapa, a seguir, mostra ao longo deste período de contato com o colonizador

europeu, espanhóis e portugueses, como foram se construindo a imagem do rio Amazonas

e, consequentemente, do arquipélago do Marajó, onde se localiza nessa cartografia a Ilha

grande de Joanes. Nele é possível ver, na parte superior, as representações homogêneas

das regiões, não existem distinções geográficas que permitam perceber suas singularidades

históricas e culturais.

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Na segunda metade do século XVII, depois de sufocada a reação dos povos

indígenas Aruã e os Nheengaíba, os portugueses, apoiados pelos Tupinambá, que na época

viviam espalhados pelo litoral paraense, efetivaram a conquista do Marajó. O padre jesuíta

Antônio Viera, responsável por muitos registros escritos sobre a população nativa e sobre a

região, foi um dos principais responsáveis pela “pacificação” dos povos indígenas da

região, processo que poucas décadas depois culminaria na desestruturação social destes

povos. Na carta que o padre enviou a Portugal, depois da conquista, por ser “composta de

um confuso e intricado labirinto de rios” a região foi denominada de Ilha dos Nheengaíba

(VIEIRA, 1970, p. 536).

A denominação Nheengaíba, que não é uma autodenominação e provavelmente

foi imposta pelo colonizador, a exemplo do que aconteceu com tantos povos indígenas em

todo continente americano, aparece em diversas pesquisas desenvolvidas pela História

Social da Amazônia. Ela significa, na ótica portuguesa, sobretudo, em uma memória que se

filia ao padre Antônio Vieira, povo de língua complicada. Outro religioso, o padre

Salvador Aguirre, possivelmente retomando estes escritos, por ocasião da vista paroquial à

comunidade de Portel, na prelazia de Marajó, assinalou que o termo é “devido a la

dificuldad de los idiomas de las tribus que habitan en las islãs” (AGUIRRE, 1994, p. 325).

Figura 01: Cartografia do rio das Amazonas - século XVII

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/81/Capitanias.jpg. Acesso em fevereiro de 2013.

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Na contramão dessa percepção, o padre João Daniel (2004a, p. 370), missionário

jesuíta que esteve na região amazônica na metade do século XVIII, propõe outra

concepção para a definição. Ele assinalou que não entendia por que se “criou aquele

sentido de má, pois quem dela teve conhecimento sabia ser uma das línguas mais

perfeitas”.

Para Ferreira Penna (1973b, p. 240), viajante, naturalista e geógrafo, que esteve

no arquipélago do Marajó em viagem de reconhecimento geopolítico em meados do século

XIX, esta denominação “formava o povo que os portugueses chamavam indistintamente de

Nheengaíbas”, pois a estratégia dos colonizadores europeus era homogeneizar as práticas

culturais das distintas sociedades indígenas marajoaras. Ainda nestas tensões discursivas

sobre essa qualificação da região acrescenta:

O apelido de Marajó é posterior ao de Joanes; data do tempo em que os

portugueses começaram a frequentar e a formar estabelecimentos nas

margens do rio Marajó-açu, cerca de 20 anos depois de fundada a cidade

do Pará por Francisco Caldeira Castelo Branco, nos últimos dias de

dezembro de 1815 (FERREIRA PENNA 1973b, p. 240).

Geograficamente, o nome Marajó referia-se somente ao rio Marajó-açu

(SERAFIM LEITE, 1943), que desemboca na baia do Marajó, banha o município de Ponta

de Pedras e se comunica fluvialmente com o furo Curral Panema das Laranjeiras. Esse rio

era o lugar estratégico de onde os Aruã atacavam os indígenas Tupinambá, aliados dos

portugueses no período da colonização.

Entre fins do século XVIII e início do século XIX, aos dias atuais, as crônicas do

padre jesuíta João Daniel, deixam ver a propagação do estabelecimento da denominação

ilha do Marajó (DANIEL, 2004b). Em meio aos relatos do cronista, observa-se uma

descrição cartográfica do arquipélago do Marajó onde a “nação nheengaíba habitava, como

em terras, e pátrias sua grande ilha do Marajó” (DANIEL, 2004b, p. 368), aparentemente

isolada em seu próprio território. A designação Marinatambal (RALEIGH, 1595) era a

autodenominação dada pelos povos indígenas marajoaras ao lugar onde viviam, mas na

história contada pelos europeus, como foi bastante recorrente no período da colonização,

ela sofreu a imposição do silenciamento. Neste aspecto, explica Pollak (1989, p. 11).

Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho

especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador,

são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido

social e das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, o

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denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões

entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num

determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social, nenhuma

instituição, por mais estáveis e sólidos que possam parecer, têm sua

perenidade assegurada.

Hoje, essa concepção de Ilha do Marajó precisa ser repensada, principalmente,

pelas pesquisas de história e geografia regionais, visto que se estabeleceu um discurso de

que esta localidade é homogênea e insulada do Pará e do mundo, inclusive para os próprios

moradores do arquipélago. Com a criação da Associação dos Municípios do Marajó

(AMAM), em 1980, são dados os primeiros passos políticos para mudar esta história local

dos municípios (PACHECO, 2009), mas isso não impediu a circulação destes discursos de

insulamento, que criou o estereótipo de uma região “primitiva” e “isolada” da Amazônia

Paraense, conforme Ana Cláudia Cristo (2007, p.15), pesquisadora em educação do campo,

currículo, ribeirinhos e escolas multisseriadas.

Na verdade, o conceito de Marajó que “aprendi” na geografia do mapa do

Pará e que possuía até, então, era equivocado. Um local longínquo, uma

pequena porção de terra, uma ilha localizada muito distante do

continente, separada na parte superior do mapa do Estado. Este era o

conceito de ilha ensinado em muitos livros didáticos, na minha época de

estudante (anos iniciais), estava associado ao estudo das vogais. Era o “i”

da ilha, uma pequena porção de terra, rodeada por um imenso oceano

azul, com um nômade esfarrapado sob um coqueiro, se protegendo de um

sol escaldante.

O isolamento tracejado e deturpado em mapas mostra como as atualizações do

pensamento colonial atravessam a aprendizagem de muitos alunos nas escolas da região. A

partir destas construções geográficas e históricas, herdadas, em grande parte da cartografia

da Companhia de Jesus, é que se constrói uma espécie de identidade homogênea da região

marajoara no Pará. O discurso estabilizado sobre esta região remonta a uma única “ilha”,

segregada da relação com outras regiões do Brasil, onde não existe transito cultural entre

as localidades internas e externas, nem mesmo com outros municípios do estado do Pará.

As peculiaridades regionais foram silenciadas pelo discurso atravessado pelo colonialismo

que vê este lugar longe da civilização e, ainda que hoje lá não existam mais sociedades

indígenas organizadas, os moradores que vivem nesta ilha, estão mergulhados em uma

espécie de “primitivismo”.

Analisando a constituição das cartografias das colônias europeias no Novo Mundo

entre os séculos XVII e XVIII, Black (2005) percebeu que havia lacunas na demarcação

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das fronteiras territoriais que ora isolava, diminuía ou aumentava de forma estratégica a

extensão do domínio político dos colonos sobre os territórios. No arquipélago do Marajó,

esta cartografia desenhou-se nas escritas dos cronistas de onde “é possível detectar um

sentido de história e de lugar convergindo em diários de viagens” (BLACK, 2005, p. 26-

27), que registraram as áreas conquistadas, muitas vezes, no interior da floresta, criando a

impressão de isoladamente destes espaços no período da história regional.

Agenor Pacheco, pesquisador em Historia Social da Amazônia, para se contrapor

ao uso do termo Ilha de Marajó, propôs uma nova construção social para a região e a

dividiu em Marajó dos Campos e Marajó das Florestas. As denominações campos e

florestas, nesta percepção, estão para além das compreensões geográficas e são utilizadas

para marcar diferentes trajetórias e processos de dominações históricas vividas, em tempos

coloniais.

Nesse mesmo contexto, enquanto Jesuítas fundavam, na parte de floresta,

as aldeias Guaricuru (Melgaço), Arucara (Portel) e Araticu (Oeiras),

explorando a coleta das drogas do sertão, o cultivo da cana de açúcar e da

mandioca, no lado dos campos, outros jesuítas, juntamente com

mercedários, carmelitas, franciscanos e colonos portugueses cuidavam de

barganhar concessão de terras junto à Coroa para construir suas inúmeras

fazendas, roças de mandioca e outros gêneros, além de mapear espaços de

pesca, utilizando, inicialmente, mão-de-obra nativa e depois de africanos

recolhidos em diversos portos do continente negro (PACHECO, 2009, p.

244).

Analisa-se nesta relação entre campos e florestas, a perspectiva dos diferentes

caminhos da colonização e resistência vivida pelas nações indígenas durante a conquista e

ampliação da expansão territorial. Na parte de campos, o sistema colonial já estava

efetivado depois da derrota do povo indígena Aruã e instalaram-se as fazendas sob a

gerência das distintas ordens religiosas com mão-de-obra indígena e, posteriormente, negra

em maior quantidade. Já no lado das florestas, a ocupação desse espaço é demarcada pela

configuração dos aldeamentos dos indígenas Nheengaíba após o tratado de paz com os

colonizadores portugueses, em 1659, mediado pelo padre Antônio Vieira e das distintas

atividades de extração e agricultura mais desenvolvidas.

A seguir, apresentamos um mapa geopolítico da conformação do Arquipélago do

Marajó, constituído por essas duas singularidades históricas que permitem outras

abordagens a respeito da historiografia regional da Amazônia Paraense.

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Figura 02: Mapa Marajó dos Campos e Marajó das Florestas – 2012

Fonte: Google/ imagem – programação cartográfica de Pedro Leal

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Conforme a leitura do mapa, na parte do oriente, localiza-se o Marajó dos

Campos, formado por sete municípios que são Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Santa

Cruz do Arari, Ponta de Pedras, Muaná e Chaves. E, na parte do ocidente, situa-se o

Marajó das Florestas, composto por nove municípios: São Sebastião da Boa Vista,

Curralinho, Bagre, Breves, Melgaço, Portel, Anajás, Gurupá e Afuá. Em inícios da

colonização, os Aruã ocuparam funções de destaque pela resistência, no lado oriental, e os

Nheengaíba, no lado ocidental. Em seguida, as interações culturais com as etnias negras

vindas da África e distribuídas de Belém para esta região se intensificaram.

Ainda que Oeiras do Pará (antiga missão de Araticu, ver mapa) componha a

historiografia da época, em documentos oficiais e mesmo na classificação histórica e

cultural, a cidade não consta como um município pertencente ao arquipélago do Marajó.

Além disso, o território onde hoje se localiza a cidade de Bagre, antes pertencia à aldeia de

Araticu, mais tarde esse aldeamento foi denominado vila de Oeiras e, posteriormente,

cidade. É preciso perceber este processo por dentro e por fora do sistema colonial, visto

que constitui uma das formas de compreender a construção discursiva da história regional.

As definições de Marajó dos Campos e Marajó das Florestas ainda se encontram

ancoradas diretamente com o modo que a história paraense pensou as concentrações de

sociedades indígenas e negras nesta região. Esta representação não analisou os circuitos

migratórios destas nações, como esclarece Pacheco (2009, p.245-246):

Aspecto importante para ser contextualizado é a forma esquemática como

a historiografia paraense concebeu os Marajós. Campos de presença

negra e floresta de presença indígena; nessa representação fatal,

pesquisadores interessados pela história regional esqueceram de

acompanhar a constante movimentação interna (do campo para a floresta

e vice-versa) e externa (da região para Belém, Maranhão, Macapá,

Guiana Francesa e também no seu sentido inverso), que nações, com suas

tradições, credos e experiências, empreenderam na luta por sua existência

física e cultural.

Analisar essas formulações de representações na historiografia regional que

negligenciaram os intensos processos de circulação das nações indígenas e populações

negras tanto internas quanto externas constitui outra forma de aplicar os termos Marajó dos

Campos e Marajó das Florestas. Por estas definições históricas, ainda é necessário entendê-

las do ponto de vista das relações de poder as quais estão filiadas estas singularidades das

movimentações físicas e culturais pela localidade, em parte, relacionadas às cidades de

Soure e Salvaterra.

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Para quem deseja realizar uma excursão entre as duas regiões, fica evidente que a

configuração da paisagem natural e cultural local constrói imagens e peculiaridades que

distinguem as duas localidades. Na figura (02), mostramos a praia do Pesqueiro, em Soure,

que é constantemente veiculada nos meios de comunicação, explorando este aspecto

exótico da região marajoara.

No Marajó dos Campos, as políticas de incentivo ao turismo ecológico e

patrimonial, nos anos de 1990 criaram os discursos de uma região “paradisíaca” e

“encantadora”, ao veicular nos meios de comunicação imagens exuberante das praias que

se estendem ao longo da costa do arquipélago, principalmente, em Soure e Salvaterra

(PACHECO, 2006, p. 23). Os turistas são convidados a desbravar este contato com a selva,

a baia de Marajó e oceano.

Em termos hídricos, de janeiro a junho é o período de água doce, constituído por

fortes chuvas entre os meses de fevereiro e maio, época que se vê nesta parte o transbordar

dos rios, igarapés, furos e lagos que contribuem para o desenvolvimento da pesca. Porém,

de julho a dezembro, é o tempo da água salgada e da constante temperatura alta que secam

os rios até os riachos. Poucos são os rios que conseguem ficar com água no seu leito como

o lago Arari, os demais todos baixam o volume de água (CRUZ, 1987).

Embora o local seja banhado pela água doce da baia do Marajó, a água que os

banhistas mergulham nas praias é salgada e barrenta em função das afluências com o

Figura 03: Praia do Pesqueiro em Soure – 2012

Foto: Shirley Penaforte

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oceano Atlântico e das estações climáticas de chuva e estiagem. Na maior parte desta

região, concentram-se muitos campos de natureza a céu aberto, a biodiversidade de fauna,

com destaque para as espécies de guarás, turus que vivem em árvores, ocas e manguezais

de onde são capturados os caranguejos.

Outro aspecto significativo é a cultura da criação, domesticação e produção do

leite de búfala que vem das fazendas as quais compõem atualizações históricas do que

representou o pensamento colonial para a história local. Porém, esta forma de

representação da cultura dos sujeitos locais não deve ser vista como uma prática comum

em todo o arquipélago. É um equivoco pensar estas práticas culturais de modo homogêneo

e enquadrar toda a região numa espécie de “fazenda de búfalos”.

Em contrapartida, no Marajós das Florestas, está a maior concentração de ilhas,

furos, rios e igarapés em meio à densa floresta. Em determinações administrativo-

geográficas do IBGE, esta região ficou conhecida como Mesorregião dos Furos de Breves.

Porém, Ferreira Penna (1973a, p. 112), diferente dessas classificações descreveu outras

características, com destaque para Melgaço e Portel, relacionadas à hidrografia.

Entre as duas vilas [Melgaço e Portel] entra, do lado sul o rio

Acutiperêra, que é o limite com Melgaço; e logo adiante o Arapiúna; e do

lado norte, abaixo de Melgaço o Tajapuru-mirim e o Tajapuru-grande que

trazem do Amazonas águas lodosas e barrentas que nodoam e turvam as

águas cristalinas da baia.

Ferreira Penna traz dados em função das particularidades geográficas que se

definem pelo tipo de água barrenta, no lado norte, que deságua do rio Amazonas na baia de

Figura 04: Búfalo na região do Marajó dos Campos - 2012

Foto: Shirley Penaforte

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Melgaço e as águas cristalinas que desembocam das confluências com a bacia do rio

Tocantins a partir do rio Acutiperêra, município de Portel (figura 05). Particularmente, em

Melgaço (figura 04), veem-se estas distinções do tipo de água e a flora entre os rios com

formato bastante denso em função da mistura do barro com a água, sobretudo, quando se

adentra o rio Tajapuru na fronteira com o município de Breves.

Os espaços de marinha se encontram condicionados por fatores de ordem natural,

desde a Mesorregião dos Furos para o Baixo Amazonas, por bancos de areias, fundura e

largura dos rios por onde há critérios estabelecidos pelos saberes dos práticos3 e cartas

náuticas que orientam os percursos de viagem das navegações. As viagens de navios,

balsas e barcos, muitas vezes, só são possíveis para determinados municípios orientados

pelos ciclos dos fenômenos da maré, quando entra na reponta, ou seja, no momento em que

a água começa a encher no leito dos rios marajoaras.

Histórica e culturalmente, a região de florestas vive os trânsitos da entrada e saída

do estuário amazônica pelo turismo ecológico e patrimonial com destino a Manaus,

Parintins, Macapá e Santarém tendo como entreposto a cidade de Breves. Turistas e

estudantes de várias partes do mundo como Japão, Inglaterra, Espanha, França e outros se

lançam em busca do vale amazônico para explorar a cultura e a história regional. Em

viagens de navios, com itinerários estabelecidos, não é difícil perceber nas mãos dos

excursionistas máquinas fotográficas e filmadoras utilizadas para registrar as excursões.

Os rios, nesta parte do ocidente do arquipélago, também exercem a função de

hidrovia por onde as indústrias montadoras de tecnologias escoam os seus produtos e

articulam as conexões comerciais. Neste cenário, o rio Tajapuru desempenha um relevante

3 Conhecido como comandante ou marinheiro de convés que dirige as navegações pelos rios, furos e baias.

Figura 05: Navio Amazón Star – 2012 Figura 06: Frente da praia de Arucara em Portel – 2012.

Foto: Anne Pantoja Foto: Shirley Penaforte

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papel por sua posição estratégica de navegação e entreposto comercial que liga o norte da

Amazônia ao eixo Centro-Sul do Brasil por intermédio da Zona Franca de Manaus.

As balsas que cortam as águas do rio Amazonas marcam trajetos e especialidades

que são internas e externas à região do Marajó das Florestas. Os contêineres carregados de

televisores, receptores/ parabólicas, eletrodomésticos, celulares montados em Manaus

viajam com o destino ao Centro-Sul que os distribuem no mercado consumidor do país.

Na parte de campos, algumas cidades se interligam, por meio de estradas que só

funcionam no período do verão (PA 153), no inverno ficam impossibilitadas. Já nas áreas

de florestas, os rios delineiam os limites e as integrações entre os nove municípios, ainda

que existam algumas estradas. Por esta lente, observamos alguns fluxos de movimentações

que se fazem nestas duas faces marcadas por diferentes trajetórias culturais e históricas.

1.2. Além dos trapiches da escola

O início do século XXI marcou a história da educação pública na cidade de

Melgaço, em especial, do ensino no meio rural e em 2001, a política de interiorização do

ensino fundamental (5ª a 8ª séries) foi implantada através do projeto “Janelas para o

saber4”. A Secretaria Municipal de Educação, na gestão do professor Agenor Sarraf

Pacheco, colocou em vigor esta proposta de ensino que não só mudou os rumos da

4 Criado em 2001, na Secretaria de Educação, pelo professor Agenor Sarraf Pacheco. A estrutura de ensino

para as turmas de 5ª a 8ª série funcionava em regime modular. Cada roteiro era composto de cinco escolas-

pólo e os professores deveriam passar 40 dias letivos na escola do seu roteiro. O projeto foi extinto em 2010

e, atualmente, foi transformado na Divisão Modular Rural – DIMOR.

Figura 07: Balsa vindo da Zona Franca de Manaus - 2012

Foto: Anne Pantoja

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educação local, em termos de planejamento escolar, práticas pedagógicas e ensino nas

comunidades do município em 2002, mas a maneira de perceber a cultura de tradição oral.

Nossa participação, neste processo, foi decisiva para os contornos desta pesquisa.

A proposta deste projeto municipal de educação consistia em fomentar uma

política educacional de qualidade para os alunos da zona rural e procurou modificar a

realidade em que viviam aquelas comunidades. As escolas só ofereciam as séries iniciais, e

não era possível a promoção serial de 5ª a 8ª séries antes de 2002, o que significava, para

muitos estudantes, repetir vários anos a 4ª série ou se estabelecia uma “ação migratória no

circuito floresta/cidade, ou seja, caminharam do Tajapuru para Breves, Macapá e Melgaço”

(ALBUQUERQUE, 2005, p. 49). Este sentido floresta-cidade da migração proporcionava,

muitas vezes, as expectativas de melhores oportunidades de estudo nas cidades.

É neste cenário que o rio Tajapuru constituiu um dos roteiros onde foram

instaladas as escolas-pólo do projeto. Os roteiros fazem parte de uma divisão geopolítica

criada pela Secretaria de Educação para facilitar o trabalho de acompanhamento técnico-

pedagógico nas escolas do espaço rural. São caracterizados tecnicamente pelas suas

especificidades naturais como área de localização geográfica das escolas, diferença da água

de um local para o outro, tipos de atividades predominantes como agricultura,

extrativismo, pesca e caça, como também apresentam modos de vida peculiares à cultura e

à identidade das comunidades locais.

O rio Tajapuru é o cenário onde começa a se inscrever nossa experiência docente

de seis anos (2004-2010) entre a educação básica e as fronteiras com a cultura de tradição

oral no espaço rural de Melgaço. Os deslocamentos operados em viagens pelos rios e

florestas do município abriram relações constituídas entre uma visão urbana de ensino e a

cultura local, muitas vezes, modificando as atividades no cotidiano escolar em vista das

tensas relações com as práticas culturais dos alunos.

As flexíveis mudanças no planejamento didático nos fizeram conhecer as

peculiaridades da cultura local e reordenar, em consonância com as orientações

pedagógicas, outras atividades em sala de aula que procuravam valorizar a cultura da

região. Deste lugar de fala havia uma ordem discursiva estabelecida pelo jogo de

acontecimentos do planejamento pedagógico, como analisa Foucault (2011, p. 8-9).

Suponho que em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo

tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo

número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e

perigo, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e

temível materialidade.

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Estes procedimentos de ensino eram controlados pela coordenação do projeto e

distribuídos dentro da dinâmica das propostas educacionais. Neste jogo de acontecimentos

discursivos, desenvolvemos práticas de escrita e leitura com os alunos e formulamos

estratégias para que participassem das atividades e ampliassem os níveis de competências

na linguagem. Em 2004, quando fomos ministrar a disciplina Língua Portuguesa,

observávamos em sala de aula que os diálogos das atividades escolares com as narrativas

orais flexibilizava os conteúdos de linguagem e valorizavam os saberes locais dos alunos.

No ano de 2005, trabalhamos com as disciplinas Ensino Religioso, Espanhol e

História, em função da carga horária letiva de 240 horas que regia o projeto. Mas foi no

planejamento dos conteúdos de História, a respeito da tradição oral e memória que surgiu a

primeira possibilidade de registrar e organizar com a turma uma coletânea de histórias

locais. Este enfoque inscreveu um percurso que possibilitou refletir muito além de um

imaginário local. Os traços das narrativas começavam a delinear compreensões das

representações identitárias das populações melgacenses.

A graduação em Letras (UFPA – Campos do Marajó – Breves/PA) trouxe outras

formas pedagógicas de tratar as narrativas orais em 2008, dentre as quais, destacamos a

retextualização das narrativas e produção de uma coletânea de contos da floresta5. O

resultado desta organização tinha uma base teórica pautada na sociolinguística,

especificamente, da variação lexical, que procuramos introduzir na elaboração das

atividades de ensino em sala de aula.

Nesta perspectiva pedagógica, acreditava que os alunos, compreendendo a

modalidade da linguagem oral, exerceriam com mais competência a produção do texto oral

para o texto escrito, considerando a estrutura interna da língua. Para Mussalin (2001, p.

102), esta abordagem de estudo saussureano retira o sujeito da linguagem e deixa as

relações sociais fora de suas análises linguísticas.

Na conjuntura estruturalista, a autonomia relativa da linguagem é

unanimemente reconhecida. Isso porque, devido ao recorte que as teorias

estruturalistas da linguagem fazem de seu objeto de estudo – a língua –

torna-se possível estudá-la a partir de regularidades e, portanto, apreendê-

la na sua totalidade (pelo menos é nisso que crê o estruturalista), já que as

influências externas geradoras de irregularidades, não afetam o sistema

5 A elaboração do registro destas narrativas foi possível através do projeto pedagógico “A língua oral na

sócio-construção do fazer educativo: Reminiscências do Universo Cultura Ribeirinho” (SILVA, 2008),

desenvolvido em todo o período letivo de 2008, no circuito de alunos da 8ª série, inclusive com estudantes do

roteiro do rio Tajapuru em Melgaço.

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por não serem consideradas como parte da estrutura. A língua não é

apreendida na sua relação com o mundo, mas na estrutura interna de um

sistema fechado em si mesmo.

Embora a sociolinguística contribuísse com suas análises, neste procedimento de

produção da escrita, ela mostrava seus limites, quando as narrativas orais permitiam refletir

a partir dos alunos os sentidos da cultura de tradição oral e as suas identidades construídas

em torno delas, no rio Tajapuru. Embora, neste momento ainda não conhecêssemos as

formulações da análise do discurso, não podíamos deixar de perceber que havia uma

repercussão social destas narrativas. A nossa experiência na comunidade em que os alunos

viviam nos levava a considerar a construção histórica destes sujeitos, as suas práticas

sociais que se faziam ver pela linguagem, memória e cultura.

A trajetória de atividades com as narrativas orais é marcada também pelo processo

de formação na pós-graduação (UFPA). No curso de especialização, chamou atenção a

proposta de estudo voltada para ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa a partir de

uma abordagem interacionista. Ela contribuiu para desenvolver, na prática educativa, a

inserção dos gêneros textuais, tanto na sua modalidade escrita quanto oral. E de modo

particular, exploramos as peculiaridades de natureza oral, visto que possibilitava abordar as

interações entre as narrativas e as práticas culturais dos estudantes.

Na esteira de Bakhtin, a definição de signo é ideológica e se inscreve em uma

perspectiva dialógica. Não se trata de analisar uma estrutura fechada. Nas experiências em

sala de aula, era possível perceber que o sentido se constrói numa relação de interação com

o Outro e que o significado não estava preso nas estruturas internas de organização das

palavras. Para o intelectual russo, “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a

algo situado fora de si mesmo. Tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe

ideologia” (BAKHTIN, 2010a, p. 31).

Neste período, passamos a compreender que uma das principais questões sociais

associadas às narrativas é que os efeitos de sentido que produzem estão estreitamente

imbricados com a relação dialógica que se estabelece entre o narrador e seus interlocutores.

Estas narrativas não teriam resistido a tantos processos históricos, se não fizessem sentido

para os moradores da região.

A partir do ingresso no programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e

Cultura (UNAMA - 2011), as instigações sobre as narrativas orais da região do rio

Tajapuru ganhariam novas dimensões. As análises das condições de produção traziam

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perspectivas históricas, em particular, dos acontecimentos, conflitos culturais e ideologias

eurocêntricas que marcavam a atualização da memória daquelas nações indígenas nas

narrativas orais da região e nas práticas culturais das comunidades que se organizam a

partir do rio Tajapuru na contemporaneidade.

Com a análise do discurso, o lugar de prestígio ou desprestígio das narrativas

passava a ser entendido como um espaço em que diferentes tradições culturais se

tencionam, disputam poder e institucionalizam verdades. O universo cultural destas

comunidades melgacenses está atravessado por uma microfisica do poder. Para Gregolin

(2007, p. 17).

Michel Foucault (1978) enxerga, nesses intensos movimentos, uma

microfísica do poder: pulverizados em todo o campo social, os

micropoderes promovem uma contínua luta pelo estabelecimento de

verdades que, sendo históricas, são relativas, instáveis e estão em

permanente reconfiguração. Eles sintetizam e põem em circulação as

vontades de verdade de parcelas da sociedade, em um certo momento de

sua história. As identidades são, pois, construções discursivas: o que é

“ser normal”, “ser louco”, “ser incompetente”, “ser ignorante”... senão

relatividades estabelecidas pelos jogos desses micropoderes?

Os sujeitos de uma sociedade são construídos historicamente, as identidades assim

o são, de forma que, mediadas pela institucionalização de verdades, elas constroem-se

discursivamente. Em relação ao rio Tajapuru, as práticas culturais que a comunidade

manifestava em seus discursos nos faziam pensar a maneira como se formaram e se

reafirmaram as suas identidades, hoje no âmbito das práticas sociais dos sujeitos.

Figura 08: Pai e filho saem para pescar pelo rio Tajapuru - 2012

Foto: Shirley Penaforte

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As relações sociais que os moradores mantêm com o seu lugar e estas formas de

ler os tempos da piracema6; as fases da lua (crescente, cheia, minguante e nova) propícia

para pescar, caçar e plantar. Elas indicam também os ciclos das marés (reponta, enchente

da maré; preamar, vazante da maré; lançante, a água atinge o nível máximo da cheia) e as

interpretações da posição do sol para se localizar na floresta estabeleciam outros caminhos

nesta convivência com a comunidade e os percursos deste estudo.

Acreditamos que deveria ultrapassar não os “muros da escola”, para não nos

referirmos a uma visão urbana de ensino, mas os “trapiches das escolas”. Em outras

palavras, caminhar para além dos limites discursivos impostos à infraestrutura escolar, à

sala de aula que insula o professor em suas práticas de ensino, à linearidade do tempo

letivo, às atividades pedagógicas de escrever e ler a partir dos livros didáticos. Nossos

objetivos passaram a se debruçar sobre os interstícios de discursos que trazem as narrativas

dos moradores da região. Compreender o sujeito não reduzido à condição dos elementos

gramaticais, mas envolvidos nas tramas da história, como assinala Foucault (2010a, p. 54-

55):

[...] gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de

contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o

intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por

meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos

se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as

coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática

discursiva. [...] não mais tratar os discursos como conjunto de signos

(elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações),

mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.

Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que

utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna

irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer

aparecer e que é preciso descrever.

Para Foucault, os discursos não se constituem no campo da arbitrariedade entre as

palavras e as coisas, ou uma realidade entre língua e experiência, ele afirma que os

discursos formam os objetos de que falamos, constituem-se em práticas na sociedade. Os

discursos veiculados nas narrativas orais não só representam as práticas culturais, mas

materializam historicamente aquilo que constitui estes sujeitos históricos. No rio Tajapuru,

as narrativas trazem materialidades constituídas de muitas falas e muitos dizeres, discursos

determinados pelas condições históricas que situam o lugar e a posição de onde as

6 Essa palavra e as demais que aparecem em destaque (itálico) compõem o falar regional. No final da

dissertação organizamos um conjunto de vocabulários com os seus significados na língua Tupi para melhor

compreendê-los.

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populações são atravessadas historicamente pelas relações de poder. No embalo das

“correntezas” e “remansos” 7 – retornamos ao rio Tajapuru, navegando ora pela correnteza

na enchente, ora na vazante e enfrentado os fenômenos de contra e a favor da maré. Neste

novo momento, voltávamos munidos de novas estratégias para olhar e ouvir os narradores

locais e, assim como Felipe, personagem do romance Marajó, de Jurandir (2008),

procurava “uma voz do seu tempo”, que trouxesse “uma voz de remanso”, e materializasse

a presença indígena.

1.3. Entre estar professor e ser pesquisador: minha “Briga de Galo”

Na elaboração do roteiro da pesquisa etnográfica, optamos por fazê-la numa

ordem decrescente, da última comunidade, denominada Porto Arraiolos, na Comunidade

Santa Maria, deslocando-nos à localidade de Santa Rosa, São Francisco e Nazaré. Depois,

dirigimo-nos para o Porto Capinal, na vila Sorriso, finalizando na primeira comunidade

chamada de São Miguel. Em consequência dessa atitude, enfrentamos a contramaré na ida,

mas aproveitamos de sua movimentação a favor na volta. A partir da seleção das

narrativas coletadas, no rio Tajapuru, resolvemos recortar o perímetro da pesquisa,

delimitando-a as comunidades Santa Maria, São Francisco, porto Nazaré e vila Sorriso

neste rio. Nessas comunidades fomos bem acolhidos pelos moradores que aceitaram o

desafio de contribuir com a pesquisa.

Escolhemos esta trajetória, já que a dinâmica do fenômeno das marés nesse rio é

sempre ao contrário, isto é, o remanso – a água só corre baixando e na mesma direção de

quem vem do baixo Amazonas em direção a Melgaço, Breves, Portel, etc., tanto faz se está

na reponta ou preamar, até a localidade do Porto Capinal. A referida opção era evitar,

também, o cansaço extremo da viagem pelo rio e conseguir aproveitar o tempo para fazer a

investigação. Seguimos este itinerário em busca de uma visão da história narrada pela

persistência de uma memória discursiva Tupi presente na região, com base na pesquisa

etnográfica, no sentido proposto por Geertz (2008) e Cardoso de Oliveira (2006).

A experiência docente nos fez conhecer algumas pessoas na região, pela

convivência com elas em muitas visitas que realizamos às comunidades. Essa relação

possibilitou assinalar uma pré-lista flexível de narradores do rio Tajapuru e seus afluentes.

Não foi possível encontrá-los de imediato, pois não havia transporte direto de Melgaço

7 Expressão utilizada pelo principal romancista do arquipélago do Marajó, Dalcídio Jurandir, nas obras Três

casas e um rio (1994) e Marajó (2008), respectivamente, para se referir aos distintos movimentos das águas

no arquipélago do Marajó.

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para essa localidade e a alternativa era navegar para Breves. Não por acaso, a saída do

porto dessa cidade redimensionou aquele olhar de professor que só via aquele espaço

apenas como uma rota de transporte marítimo em direção às escolas-pólos do município de

Melgaço.

Aquela realidade pelos rios Parauaú, Jaburu e Macojubi, até chegar ao rio

Tajapuru, antes tão familiar, por onde muitas vezes viajei, redesenhava uma nova

cartografia da história local entre rios e florestas pela lente que vinha se constituindo em na

pesquisa do mestrado. A mudança na rota desse percurso nos fez revisitar o trajeto que

fizeram os “conquistadores portugueses” para chegar ao estreito do rio Tajapuru.

No decurso da viagem, na parte da tarde, por cerca de meia hora, em vários

momentos, quando singrávamos o rio Tajapuru passamos nos questionar: “Afinal, de que

sujeitos e histórias, nós estávamos pensando? Que posições eles ocupam na história do

município de Melgaço-Pa? Que discursos se materializam sobre o arquipélago do Marajó

em um rio como o Tajapuru? A questão é de que lugar e como se fala do Marajó?” Muita

coisa se diz sobre a região e nós estranhávamos os historiadores não mencionarem este

lugar resguardado ao silêncio da história. Acredito que pouco se sabe nas comunidades a

respeito da trajetória histórica do rio Tajapuru e tantos outros rios da Amazônia Paraense.

Naquele momento, toda aquela paisagem natural e humana configurava-se historicamente

como uma “zona de contado”, como esclarece Pratt (1999, p. 27).

Zona de contato [são] espaços sociais onde culturas díspares se

encontram, se chocam, se entrelaçam uma a outra, freqüentemente em

relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação –

como o colonialismo, o escravismo, ou seus sucedâneos ora praticados

em todo o mundo.

Para Pratt, os olhos dos impérios europeus, em pleno processo de conquista,

mergulhados nas ações dos colonos, subjugavam os povos vencidos pelo escravismo e

dominação. Atualmente, rever os caminhos entrecortados por matas e rios desta política de

subordinação, em tempos de colonização, desde a Capital das Ilhas, denominação da

cidade de Breves pela sua localização estratégica no período colonial, até o rio Tajapuru

em viagem de barco/ motor significou olhar de uma forma nova e diferente o poder do

colonialismo e seus efeitos de sentidos históricos no cotidiano das comunidades na região.

Durante esta trajetória, pensávamos na metáfora construída por Geertz (2008)

sobre a “briga de galo”. Em Bali, colônia inglesa, Geertz e sua mulher foram fazer uma

pesquisa etnográfica a respeito da cultura balinesa. Quando chegaram à comunidade, os

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balineses trataram o casal como “não-pessoas, espetros, criaturas invisíveis” (GEERTZ,

2008, p. 185). A rejeição só se alterou depois que o casal estava vendo uma briga de galo,

prática cultural proibida por lei na Inglaterra, e a polícia chegou atirando. Os balineses,

com medo das retaliações legais, fugiram, inclusive Geertz e sua esposa, que também se

assustaram com a reação da polícia. Como, naquela situação, o casal se encontrava na

mesma situação dos demais, os balineses passaram a aceitá-los.

Embora não tivéssemos passado por nenhum ritual para sermos aceitos na

comunidade onde vivenciamos diversas práticas pedagógicas, era a constituição da

percepção de estar professor, naquele instante que estava em jogo. A visão de professor,

daquele tempo, emergia com as lembranças das experiências de contato com o rio, as

comunidades escolares, os alunos e amigos. E nesta perspectiva nos aproximamos da

condição de Geertz visto que o novo, neste retorno, era marcado pela construção do olhar

de pesquisador e o lugar de escuta das narrativas, ao trazer nelas o sentido dos sujeitos e a

sua história nessa prática de tradição oral.

Seguindo a ordem estabelecida pelo roteiro da pesquisa, passamos a coletar as

narrativas orais do rio Tajapuru, braço meridional do rio Amazonas – como fala o cronista

João Daniel (2004a). Neste deslocamento, percebia a forma como este rio é entrecortado

por florestas e outros rios, furos, igarapés. Ele é um circuito hídrico que representa para os

moradores, como os entrevistados da região que dialogamos – um lugar marcado

historicamente em suas vidas, que produziram este espaço com suas diferentes práticas

sociais pelo trabalho, crenças, costumes, tradições, lazer, festas e lembranças individuais e

coletivas.

Por se um rio onde as formas de vida se ordenam a partir das águas e das florestas,

as populações locais trazem impressas em suas reminiscências também os ciclos

econômicos que viveram e vivem nesta região, geralmente, marcadas pela coleta de folha

de urumã, sementes oleaginosas (de copaíba, ucuúba e andiroba), juta, cortadores de

lenha, agricultores, seringueiros, madeireiros, palmiteiros. Atividades sazonais que, de uma

forma ou de outra, estavam inter-relacionadas ao mercado consumidor nacional e

internacional. Já outros habitantes ocuparam status sociais de seringalistas, políticos,

comerciantes, donos das fábricas de palmito e serrarias.

O rio Tajapuru é um lugar caracterizado ainda pela força do cristianismo

difundido pelo processo de colonização, que hoje está presente nas comunidades em

construções de pequenas capelas, nas nomeações das embarcações de pequeno, médio e

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grande porte ou nos calendários ocidentais sustentados nas paredes das casas (Figura 09).

Esta prática religiosa e letrada adentrou os modos de vida da população, constituída em

códigos de tradições orais, que resistem com seus saberes locais, memória das tradições

indígenas, continuamente reafirmados nas leituras dos tempos da natureza, seja em função

dos ciclos das marés ou das fases das luas para orientar suas atividades cotidianas no rio ou

na mata como pescar, tirar o açaí, caçar, plantar, colher e trabalhar. Estas formas de

compreender essas temporalidades traziam sentidos que se filiavam a uma memória das

sociedades de tradição Tupi, a exemplo dos Tembé, localizados no alto do rio Guamá e

alto rio Gurupi na fronteira do Pará com o Maranhão (CORRÊA, 1999).

Nesse sentido, acreditamos, a exemplo de Geertz (2008, p. 4) que, o homem ao

longo de sua história desenha sua própria cartografia quando assume a cultura como uma

teia de significados e compreendendo-a como uma “ciência interpretativa”. Essa análise

não se sustenta no plano de uma “ciência experimental em busca de leis” sistemáticas,

porém ela traceja encadeamentos históricos de leituras capazes de apreender em diferentes

entendimentos na Amazônia, especialmente, no rio Tajapuru, de práticas culturais que

atualizam uma rede de memória indígena Tupi materializada numa série de práticas

culturais, que trazem muitas palavras Tupi, na fala cotidianas destas pessoas.

A construção das casas de taipa de alguns moradores a partir da madeira de acapu

e o uso de cipós para amarrar as palhas em suas coberturas ainda são muito comuns e

utilizados pelos habitantes locais. Também em contato com rio, uma grande parcela de

Figura 09: A concepção de tempo no calendário ocidental

Foto: Shirley Penaforte

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homens e mulheres, que nem sempre tem malhadeira, pesca de pari, cacuri e matapi em

meio à presença de aturiá, mururés e aningueiras. No tratamento de inflamação da

garganta e hematomas provocados por distensões musculares usam o azeite da semente de

copaíba aliada a práticas de massagens no corpo. Todas estas formas de conduzir a vida na

região amazônica não deixa está filiada a uma memória indígena Tupi.

Ainda é comum na linguagem dos moradores locais o uso de palavras como

tocaiar, bobuiar e moquear para se referirem, respectivamente, às estratégias usadas para

caçar os animais (anta, veado, tatu, capivara, jabuti, tamanduá, etc.) na mata. O modo de

tomar banho nos rios e a prática da culinária para preparar os peixes (traíra, tucunaré,

acará, apapá, aracu, etc.,) ou a carne de caça no calor da brasa para comer com o açaí e

farinha indicavam os caminhos da atualização de uma memória indígena no rio Tajapuru.

Em presença de novos tempos dos processos da modernidade, a cena cotidiana

visualizada na figura cima, exemplifica como as águas barrentas do rio Amazonas que

deságuam no rio Tajapuru, os antigos trapiches de miritizeiro, a horta com plantas

medicinais e legumes, tornaram-se espaços midiatizados pelo uso das antenas parabólicas e

supostamente o mundo através da televisão chegou às casas de algumas famílias, que

possuem gerador de energia elétrica, transformando a paisagem natural.

São mudanças sutis que se fazem ver na construção em madeira dos portos, a

utilização de rabetas, por uma parcela significativa dos moradores, em percursos distantes

para entregar a produção do palmito, fazer compras, participar das festividades, torneios de

Figura 10: O uso da antena parabólica em uma casa no rio Tajapuru – 2012.

Foto: Shirley Penaforte

Foto: Shirley Penaforte

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futebol e deslocarem-se às cidades de Melgaço e Breves, descentralizaram o uso do casco

na ordem social das atividades do dia a dia.

Estes sentidos da cultura local foram redimensionados, na segunda etapa do

trabalho de campo, visto que não estávamos mais sozinhos, mas em companhia da equipe

do projeto “Nas fronteiras das narrativas orais Tupi na Amazônia Paraense”, composta por

mim, minha orientadora, a pesquisadora Ivânia Neves, e pela fotógrafa Shirley Penaforte,

também aluna do mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura. Novamente refiz os

caminhos da pesquisa e junto com elas saímos à procura dos narradores ribeirinhos do rio

Tajapuru.

No trajeto da viagem, vários registros fotográficos foram feitos dos moradores, da

água, da fauna, da flora, das mediações tecnológicas e dos barcos, rabetas e cascos nesta

região. No contato com os narradores locais, a escuta foi relevante para podermos

visualizar, a partir de suas práticas culturais, como a constituição histórica das narrativas se

inscreve nas suas memórias conformadas por tensas relações sociais. A conversa com eles

tecia a reconstrução de experiências da escuta de narrativas que ouviam dos pais, histórias

ensinadas e transmitidas pela tradição oral que traziam olhares diferentes sobre esse lugar.

Nesse caso, tornava-se indispensável o diálogo com Cardoso de Oliveira (2006, p. 21).

O ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades

totalmente independentes no exercício da investigação. (...) a caminhada

da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpeto de

conhecer que o ouvir, completando o olhar, participa das mesmas

precondições desse último, na medida em que está preparado para

eliminar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não

façam nenhum sentido no corpus teórico.

Na pesquisa, essa posição do etnógrafo em um trabalho de campo colaborava para

considerar a complementaridade entre o ouvir e olhar na construção do texto etnográfico.

Em contato com os narradores, procurávamos ouvir suas narrativas para ver as articulações

com uma cosmologia de natureza Tupi. Esta busca tensa passou a delinear os percursos da

pesquisa no rio Tajapuru sob o risco de não se configurar essa perspectiva levantada.

Nesse sentido, adentrávamos nas histórias deste “rio Tajapuru do presente”

investigando sentidos de uma resistência da memória indígena Tupi. Entrar na procura

dessa memória, neste espaço onde o rio é produzido pela dinâmica do fluxo de circulação

de pessoas, culturas, comércios, mercadorias e tecnologias, era o primeiro passo a ser dado

como pesquisadores para repensar as condições históricas da constituição desta identidade

das populações que viviam às margens deste rio.

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Neste cenário, não poderíamos deixar de mencionar a importância que as

narrativas de tradição oral tiveram para o desenvolvimento desta investigação. A

experiência de escutá-las e olhá-las do ponto de vista da memória indígena na região

delineavam os caminhos da presença da cosmologia Tupi. Deste modo, as narrativas orais

coletadas em entrevistas com os habitantes do rio Tajapuru começava a apresenta

materialidades históricas destas marcas identitárias da cultura Tupi.

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Capítulo 02

Identidades em curso pelo Marajó das Florestas

Marajó8

Sou marajoara /De corpo de barro

Minhas veias são rios/ E meu sangue é doce

Transfigurado em lendas/ De pele queimada

De corpo suado/ Sou dos campos

Moro nas florestas / Sou dos Marajós

Como o bem diz Pacheco/ Sou peixe, búfalo

Açaí, leite e borracha / Filho de Duarte

De Ponta de Pedras/ Sou de Chaves

Soure e Melgaço/ Sou dos lagos

Sou fauna e flora/ Sou margem

Sou Joanes/ Marinatambal

(Itamar de Vasconcelos Júnior)

Nesta pesquisa, não é nosso interesse esgotar os debates sobre a questão da

identidade ribeirinha, tão pouco fazer a tessitura de uma defesa de identidades. Baseando-

nos em discussões da análise do discurso, especificamente, na definição de micropoderes e

nos debates articulados pelos estudos culturais, objetivamos analisar a construção e

reconstrução das identidades na sociedade ribeirinha.

A perspectiva de constituição de uma identidade afroindígena é uma das pesquisas

que tem problematizado as implicações generalizantes do enunciado ribeirinho na região

amazônica. Essa identificação se inscreve na história local e traz nas narrativas orais

materialidades históricas que reafirmam uma memória indígena e africana que encontrou

formas de resistir na paisagem humana, natural e nas práticas culturais. Entretanto, nossas

análises partem numa outra direção pouco inquirida na região, a memória Tupi em

narrativas orais contemporâneas no rio Tajapuru, que também não deixa de construir as

identidades destes sujeitos.

Atualmente, a utilização desta categoria ribeirinha naturalizou-se, escamoteando-

se as condições históricas e as relações de poder que implica sua definição. Deste modo,

propomos olhar para o sujeito ribeirinho a partir de uma concepção multiperspectívica para

ampliarmos os estudos desta identidade que silencia questões fundamentais como etnia,

classe, gênero e práticas culturais das sociedades marajoaras.

Nesse aspecto, fazemos uma discussão trazendo a posição discursiva do sujeito

ribeirinho na literatura especializada. Discutimos os pontos de vista do campo

8 Produção do poeta Itamar de Vasconcelos Júnior, poeta melgacense, que venceu o VII Concurso de Poesias

“Prêmio Dalcídio Jurandir”, realizado pelo CPOEMA – Clube do Poeta e Escritor Marajoara – ano 2009.

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antropológico, lugar institucional que forjou a referida categoria, disseminando-a para

outras áreas de conhecimentos como as pesquisas em história social e cultural amazônica.

Saberes científicos que põem em circulação e autorizam o uso desta categoria, reafirmando

relações de poder e silenciando a cultura de tradição oral. Porém, no cenário amazônico,

especialmente, as pesquisas recentes na perspectiva da educação tem problematizado esta

identidade e construídos novos caminhos de reflexões acadêmicas.

Ainda, nesta mesma trajetória, analisamos a concepção etnocêntrica que arrasta

consigo a categoria ribeirinha. As interpretações étnico-religiosas que constituem este

sujeito têm lugar na história e no pensamento científico. Por serem formados nas matrizes

culturais de tradição oral, os estereótipos construídos pelos colonizadores e aplicados aos

indígenas, hoje são reformulados e atualizam-se, neste termo, caracterizando o modo de

viver dos ribeirinhos como uma cultura inferior e não civilizada.

Na história do presente, com os avanços das fronteiras da modernidade, estes

ribeirinhos marajoaras vivem as tensões, em meio aos rios e florestas amazônicas, entre as

práticas culturais modernas e os saberes de tradição oral. Deste modo, as tecnologias de

comunicação – o rádio, a televisão, parabólica, etc., que compõe o cenário midiático do rio

Tajapuru, ao mesmo tempo em que moderniza as práticas sociais dos moradores, deixa ver

as tensas negociações e resistências com seus saberes locais, constituídos pelas matrizes

culturais indígenas de tradição oral. Nestas tensões, as identidades destes sujeitos se

deslocam e se recriam culturalmente, produzindo novos sentidos sociais.

2.1. Identidades em movências históricas

Hoje, a questão das identidades na sociedade moderna vem produzindo

problematizações sobre distintos ângulos relacionados às diferentes posições dos sujeitos

nas teias dos processos culturais. Nesses questionamentos são revisadas e discutidas a

constituição de suas marcas identitárias, as resistências e transformações. Nesse caso, é

analisado como cada grupo social no seu tempo e espaço particulares, constrói e reconstrói

em tensas relações sociais a identificação de suas práticas culturais.

Por esta ótica, Hall (2006, p. 12), em suas análises a respeito deste processo de

mudanças com a chegada da modernidade na sociedade ocidental, discute a perda da

estabilização das identidades construídas em práticas da cultura tradicional e os trajetos da

reconstrução de novas identidades em contato com as praticas sociais modernas.

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O sujeito previamente vivido tendo uma identidade unificada e estável,

está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.

Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens

sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as

“necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como

resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de

identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Esses processos de mudanças provocadas pelas descentrações do sujeito deixam

ver as transitoriedades das múltiplas identidades constituídas a partir do tratamento da

alteridade, das relações domésticas, pessoais e institucionais que se reordenam direta e

indiretamente em função das práticas culturais modernas. Neste sentido, no Marajó das

Florestas, os moradores locais do rio Tajapuru vivem discursivamente os embates culturais

com os processos de modernidade que chegam por meio das tecnologias de informação,

levando-os a reafirmar a permanência e a continuidade das suas identidades cambiantes

estabelecidas culturalmente em matrizes indígenas e até mesmo africanas.

Nesta mesma interpretação, não podemos esquecer que uma das principais

questões a respeito da identidade ribeirinha se relaciona ao fato de sua discussão passar

ainda por um processo que se desenvolve e se modifica com os acontecimentos históricos

que envolvem estes sujeitos. Nas investigações, em análise do discurso, a identidade é

tomada como construção discursiva, tecida historicamente por uma microfísica do poder

que estabelecem socialmente as vontades de verdades sobre o sujeito (FOUCAULT,

1979). Para os debates contemporâneos, nesta área, as reflexões de Foucault (1979, p. 7)

deram significativas contribuições.

É preciso se livrar do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto

é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na

trama histórica. É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma

de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos

domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele

transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo

sua identidade vazia ao longo da história.

Durante algum tempo, pensou-se a identidade ribeirinha que constituem os

moradores da região amazônica com o sentido poético, discutida com certa neutralidade

nas relações de alteridade e nas produções acadêmicas, forjando com naturalidade o

ribeirinho como sujeito constituinte. Todavia, a memória que retoma essa identidade exige

pensá-lo no âmbito da história regional, desnaturalizando discursivamente essa visão

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convencional, à medida que se discutem as condições históricas e as relações de poder

subjacentes às práticas culturais, que expressam em saberes e cosmologias, as identidades

indígenas atualizadas na trama histórica que o produz contemporaneamente.

Na sociedade que margeia o rio Tajapuru, as relações de poder instalam-se a partir

de práticas discursivas, já impressas em suas experiências cotidianas, por meio da mídia,

da escola e da própria história local que vêem na identidade ribeirinha os sentidos de

subalternização. Foucault (1979) chama a atenção para a análise deste funcionamento do

poder que vai tensamente instalando-se nos micros e íntimos espaços sociais.

Deste modo, a constituição da concepção generalizante que arrasta esta categoria

ribeirinha obscurece questões fundamentais como classe, etnia, sexualidade e gênero

(HALL, 2006). Esses diferentes aspectos discursivos relacionados à construção das

identidades se tencionam constantemente. Para Gregolin (2007, p. 17), estas identificações

conformam-se nos embates culturais demonstrando discursivamente que se os “sujeitos são

sociais e os sentidos são históricos, os discursos se confrontam, se digladiam, envolvem-se

em batalhas, expressando as lutas em torno de dispositivos identitários”.

Mesmo que haja diferentes discursos estabilizados a respeito do que significa se

assumir ou rejeitar ser ribeirinho, é preciso esclarecer que esta identidade foi forjada e

silencia as singularidades históricas das populações marajoaras. Ignora, também, as

diferenças econômicas, uma vez que coloca, por exemplo, grandes fazendeiros e pequenos

pescadores na mesma classificação. A partir deste momento, passo a analisar como ocorre

esta construção da identidade ribeirinha.

2.2. A perspectiva de construção da identidade afroindígena

A constituição dos caminhos de uma identidade afroindígena na Amazônia

Paraense defendida pelo pesquisador Agenor Pacheco no âmbito da História Social partiu

das análises de narrativas dos cronistas, viajantes, literatos, etnólogos e historiadores que

pensaram a historiografia marajoara. Nestes rastros da história regional, Pacheco (2009),

percebeu os intensos conflitos mediados por intercâmbios culturais entre nações indígenas

e africanas em movimentos pelos Marajó dos Campos e Marajó das Florestas.

Particularmente em Melgaço, poucos estudos apontavam para as análises das

etnias negras e suas crenças até o século XXI. Não existiam pesquisas que trouxessem

materialidades de uma cultura e tradição africana presentes em documentos oficiais e nas

narrativas orais da região. Precisava-se analisar a constituição da história local e refletir

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sobre os encontros culturais entre indígenas e negros, para delinear as investigações das

práticas sociais africanas na sociedade melgacense, conforme Pacheco (2009, p. 246).

Se populações negras do período colonial, em parceria com nações

indígenas como Nheengaíba, Mamainase, Chapouna, que trabalharam em

engenhos, roças de mandiocas, construção da igreja de São Miguel em

Melgaço, ou no forte de Gurupá e nordestinos de descendência negra em

seringais da floresta, conseguiram, com maior facilidade, misturarem-se a

portugueses, judeus, turcos, norte-americanos entre outros que para cá se

dirigiram, a escrita da história precisa ultrapassar a cegueira de ver o

Marajó das Florestas como tão somente construído pela identidade

indígena. Este lado da região também se constitui em focos de

mestiçagens e recorrentes contatos culturais.

Essa linha de raciocínio amplia as dimensões de uma história negra silenciada

pelos poderes dominantes que negligenciaram sua presença na conformação da paisagem,

das identidades e dos patrimônios culturais e históricos do Marajó das Florestas. Em parte,

cessam as cegueiras e abrem-se as perspectivas históricas sobre as experiências de

contados compartilhados que traduzem não apenas as relações de sociabilidade entre índios

e negros, mas se expandem entre as descendências de etnias africanas, povos e culturas

continuamente em encontros e assimilações pelo ocidente marajoara.

Nesse cenário, as conceituações de Marajó dos Campos e Marajó das Florestas

estão intrinsecamente relacionadas com a posição de fala desta história paraense que

classificava o oriente de presença negra e o ocidente de presença indígena no arquipélago

do Marajó. Pacheco (2009), analisando que esta tessitura da história regional silenciava a

presença negra, no lado ocidental, constrói a identidade afroindígena nesta localidade para

mostrar contínuas reafirmações da identidade africana materializada nas narrativas orais,

religiosidades e rituais da pajelança cabocla fortemente combatida pela igreja católica.

As perspectivas de análises da cultura africana colocaram em evidência o sujeito

ribeirinho e abriu as frestas históricas para visibilizar em suas práticas sociais saberes e

cosmologias constituídas nas matrizes culturais indígenas e africanas, interpretadas como

identidade afroindígena, segundo Pacheco (2011a, p. 40):

As relações de trocas, empréstimos e sociabilidades estabelecidas entre

nações indígenas e africanas desde seus primeiros contatos no período

colonial, sem negar a maneira como poderes locais cooptaram muitos

destes sujeitos históricos para defender interesses de seus projetos

administrativos, legaram para as culturas locais do presente tradições,

cosmologias, saberes, fazeres e agires, os quais permitem interpretá-los

como afroindígenas.

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As mesclas étnicas indígenas e negras, para além dos traços fisionômicos em

rostos de ribeirinhos na Amazônia Paraense, constituem-se na definição do afroindígena

um modo de vida e de luta cultural que implica contínuas reafirmações das suas marcas

identitárias. Para não silenciar a presença dessas etnias, a perspectiva sociocultural da

identidade afroindígena deve funcionar como umas das identidades do sujeito ribeirinho.

Em Melgaço, um exemplo da identificação afroindígena aparece em uma das

narrativas mais populares da região chamada “Tupinambá” e, apesar da denominação, o

personagem central ora se apresenta como um negro, ora se apresenta como um índio. A

palavra ainda designa uma das mais importantes sociedades indígenas do Brasil, que vivia

espalhada no litoral brasileiro, inclusive na Amazônia, quando os portugueses começaram

o empreendimento de colonização na América do Sul.

Consideramos relevante a perspectiva analítica da identidade afroindígena

cunhada por Pacheco (2009; 2011a), embora o peso dessa abordagem cultural nas

narrativas esteja mais no âmbito das tradições e rituais das religiosidades africanas. Por

esse víeis de interpretação, não podemos negar que ela contribui para analisar as

identidades negras silenciadas pelo termo generalizante que é a categoria ribeirinha. No

entanto, nossas análises caminham para uma proposta pouco investigada na região, a

memória Tupi em narrativas orais contemporâneas no rio Tajapuru, que também não deixa

de constitui a identidade destes sujeitos e por onde queremos avançar neste estudo.

2.3. A visão multiperspectívica sobre a identidade ribeirinha

As narrativas indígenas, africanas e até ribeirinhas continuam a demarcar lugares

de resistências no Marajó. Contudo, pouco se pensou na constituição histórica desse sujeito

desde a década de 70, quando o termo passou a ser amplamente usado, divulgado e

reafirmado institucionalmente em estudos acadêmicos (WAGLEY, 1977; FILHO, 1997;

RODRIGUES, 2006). Essa posição privilegiada, na maior parte, silencia os sentidos

históricos que a utilização desta categoria implica para a história regional, a

heterogeneidade das identidades amazônicas, as práticas culturais que se inscrevem no

cotidiano dos moradores e a construção social da memória dos sujeitos.

É preciso refletir e problematizar a questão da constituição histórica que produziu

quem são os ribeirinhos hoje. As condições históricas empreendidas para automatizar o uso

da referida categoria precisam ser reavaliadas e discutidas para definir as posições de onde

se fala de uma identidade ribeirinha. Nesse caso, compreender a trajetória desta identidade

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que se formou e como funciona significa questionar, conforme Foucault (2010a, p. 24), as

“sínteses acabadas” que naturalizaram discursivamente este termo no estuário amazônico.

É preciso por em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses

agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer

exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso

desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o habito

de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra

onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar

tratar apenas, por questões de cuidado com o método e em primeira

instância, de uma população de acontecimentos dispersos.

Analisar, no jogo das relações de poder, os silêncios existentes nesta construção

discursiva da identidade ribeirinha são imprescindíveis para visibilizar as representações

sociais que compõe a dispersão histórica destes sujeitos. Desarticular por dentro o que vem

a ser esta identidade constitui trazer da “sombra onde reinam” outras identidades

heterogêneas como de pescadores, fazendeiros, mulheres, homossexuais, negros, católicos,

evangélicos, coletores, imigrantes, descendentes, madeireiros, palmiteiros, fazendeiros,

açaizeiros, universitários, entre outros. Há um jogo de poder, agora agenciado pelo

discurso acadêmico, pela mídia e pelas intuições governamentais brasileiras que continua

reeditando os interesses coloniais, pois encapsula, homogeneíza e reduz à categoria

ribeirinho essas identificações cambiantes dos moradores da região, que são ao mesmo

tempo singular e plural.

O efeito de sentido que esta identidade articula atualmente deixa ver que não

existe uma classificação nas noções de classe social, etnia, sexo, práticas culturais, entre

outras, visto que, os referidos sujeitos são colocados numa mesma condição. Para ampliar

as diferentes percepções dos lugares de fala sobre as produções de sentido acerca desta

movimentação cultural que envolve as condições de produção destas narrativas orais, são

válidas as formulações de Kellner (2001, p. 129), quando propõe uma metodologia de

análise multiperspectívica.

Em termos simples, um estudo cultural multiperspectívico utiliza uma

ampla gama de estratégias textuais e críticas para interpretar, criticar e

desconstruir as produções culturais em exame. O conceito inspira-se no

perspectivismo de Nietzsche, segundo o qual toda interpretação é

necessária mediada pela perspectiva de quem a faz, trazendo, portanto,

em seu bojo inevitavelmente, pressupostos, valores, preconceitos e

limitações. Para evitar a unilateralidade e a parcialidade, devemos

aprender “como empregar várias perspectivas e interpretações a serviço

do conhecimento” (Nietzsche, 1969:119). Para Nietzsche, “Só há visão

em perspectiva, só „saber‟ em perspectiva; e quanto mais sentimentos

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deixarmos que falem sobre uma coisa, mais completo serão o nosso

„conceito‟ dessa coisa e a objetividade”.

A visão multiperspectívica consiste em uma forma de estratégia que possibilita

analisar por meio de diferentes ângulos como se materializam as interpretações de uma

perspectiva cultural e histórica em várias direções de análises construindo um mosaico de

interpretações. O ponto de vista multiperspectívico aplicado, em relação à categoria

ribeirinho, consiste em ampliar as acepções desta identidade no âmbito das literaturas

especializadas, dos aspectos étnico-religiosos e midiáticos que estão imbricados com a

forma de objetivação deste sujeito.

Desta maneira, em análise do lugar de onde se fala sobre os ribeirinhos, visamos

destacar a ordem institucional (FOUCAULT, 2011) que sistematiza e autoriza o uso deste

termo na sociedade. Percebemos que, em presença de uma ordem histórica, os discursos

retomam posições ideológicas ocidentais, quando se trata de situar as práticas culturais

destes sujeitos. Não se trata apenas de uma identidade neutra, mas permeada pelas relações

de poder tanto do olhar, de fora e de dentro da região amazônica, mergulhados em

percepções etnocêntricas, quanto dos discursos acadêmicos estabelecidos socialmente.

Ampliamos esta visão eurocêntrica sob o prisma dos termos étnico-religiosos,

discutindo a produção de sentidos da verdade concedida à escrita do padre João Daniel

(2004b), cronista religioso, que documentou a maquinaria do sistema colonial na

Amazônia. Estabelecemos uma análise da escrita de si e do outro (FOUCAULT, 2010b)

que releva os estereótipos construídos pelos colonizadores e reformulados atualmente para

identificar quem é o ribeirinho, o outro, representado pelos meios de comunicação.

Entre meios e mediações, tratamos de pontuar como as populações ribeirinhas,

formadas em matrizes de tradição oral, resistem às práticas culturais modernas, criando

espaços de negociações com os seus saberes tradicionais. A tensão entre moderno e

tradição, nesta realidade do rio Tajapuru, trazem sentidos sociais sobre as tecnologias de

informações, a partir das experiências de contado com a aquisição do rádio, televisão,

antena parabólica e grupo gerador de energia na região.

2.3.1. Acepções da literatura acadêmica

Na literatura antropológica, o lugar demarcado para definir a posição de onde se

constrói o que se entende por ribeirinho e a produção de sentido desta identidade reflete os

contrastes espaciais entre o rural e o urbano na Amazônia brasileira. As diferenças entre

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pequenas cidades que se localizam às margens dos rios e os centros urbanos desenvolvidos

economicamente é uma das mais importantes perspectiva discursiva do que significa ser

ribeirinho. Esta prática discursiva apóia-se nas condições de usos institucionalizados e

atualizados por uma vontade de verdade, como analisa Foucault (2011, p. 17).

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão,

apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e

reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a

pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,

como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje.

Em antropologia, esta relação de espacialidade rural/urbano compõe os sentidos

que constituíram historicamente a alcunha de ribeirinho, destituídos da distribuição de

riquezas exploradas na região, com os grandes projetos na Amazônia, ficaram à margem

dos avanços econômicos. Sob esta perspectiva, afirma Rodrigues (2006, p. 124-125).

O termo ribeirinho, hoje usado amplamente pela mídia local para falar

das populações amazônicas, não aparece na literatura antropológica antes

dos anos setenta, quando Miller (1977) refere-se às “comunidades

ribeirinhas tradicionais”, pequenas cidades localizadas ao longo do rio

Amazonas, não muito próximas aos centros mais desenvolvidos, ainda

não alcançadas pela malha rodoviária, e ignoradas pelos projetos

desenvolvimentistas aplicados à região.

Para marcar este lugar de fala, a descrição antropológica se ancorou na dicotomia

de que as sociedades amazônicas, por estarem localizadas no meio rural, estão fora do

progresso que vive as grandes cidades. Os discursos decorridos desta oposição fundaram

estereotipias que estigmatizaram os sujeitos por estarem à margem do desenvolvimento

econômico que chegava por meio da infraestrutura das malhas rodoviárias. Esta concepção

está bastante atravessada pela memória do discurso colonial, na verdade, ela faz uma

atualização desta memória, que a princípio tratava estes sujeitos, pejorativamente, como

caboclos e, agora os identifica como ribeirinhos.

Em Melgaço, as trajetórias destes sujeitos também são marcadas pelas

singularidades das atividades econômicas regionais. Pacheco (2006, p. 96-97) esclarece

sobre os intensos movimentos migratórios de seringueiros, migrantes e roceiros –

ribeirinhos – em busca de trabalho nos circuitos entre os interiores da floresta e da

floresta/cidade, constituíram na cidade modos de ser do cotidiano rural.

Estar em movência parece ter sido a trajetória vivida por ribeirinhos

melgacenses. Ao mesmo tempo em que possuíam seu barraco na beira de

um rio ou igarapé, construíam outros nas cabeceiras de outros rios e

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igarapés. Parece que a dinâmica de tempo e de trabalho os fazia

andarinhos da floresta, tornando-os ora habitantes, ora visitantes e

passantes. Nesses caminhares empreendidos alguns optaram por fazer, da

vila de São Miguel de Melgaço, percurso a ser encarado. A partir da

década de 50, quando a produção da borracha começou a diminuir em

função do término da Segunda Guerra Mundial, esses ribeirinhos e alguns

daqueles que haviam migrado do interior de outros municípios

marajoaras, para trabalhar no corte da seringa nas matas de Melgaço,

resolveram cortar rios e florestas rumo à vila, a fim de ingressarem na

construção de roças.

Por esta via de leitura, a identidade ribeirinha constitui-se em relação aos espaços

da floresta, rios, atividades braçais e recrutamento para trabalhar em extrações de matéria-

prima que se ordenam pela dinâmica dos ciclos da água ou da lua. Isso não significa que o

fato terem um modo de vida típica do meio rural vivendo na cidade desqualifica estes

sujeitos. A questão é a maneira como eles são posicionados nas práticas discursivas, em

relação à cultura e às tradições, que fazem uma grande diferença dentro de uma lógica

ocidental de cidade e retoma posições ideológicas de desprestígios socioculturais.

Em sua investigação, Ferreira (2012, p. 84-85), analisa como estes discursos sobre

os ribeirinhos se materializam e se posicionam na sociedade amazônica.

As nomeações, no entanto, não são neutras, e são dadas em consonância

com o contexto – tempo/espaço – imbricando em si determinada

ideologia. Justamente, por isso podem ser avaliadas e mexidas sempre

que sua posição for entendida como defectiva em relação ao outro, ou

constituída com significado, historicamente, pejorativo, principalmente,

quando se trata de sociedades. E me parece que toda essa situação está

muito evidente no caso da categoria “ribeirinho”; amplamente usada no

meio acadêmico e social.

Uma outra perspectiva de onde se pode olhar para a realidade das populações

amazônicas que margeiam os rios não tem apenas como dispositivo institucional a posição

da história, mas as pesquisas no âmbito da educação do campo. As pesquisas recentes

nessa área vêm problematizando o lugar político e educacional das condições efetivas deste

ensino, trazendo as peculiaridades naturais, sociais e culturais (CRISTO, 2007; AMARAL,

2012; FERREIRA, 2012) para explicar que este modelo de ensino não dá conta de pensar

em suas diretrizes, com maior consistência, a singularidade e heterogeneidade cultural das

escolas e dos sujeitos que dela fazem parte.

Estas inquirições marcam distintas posições em vista das diferentes condições

geopolíticas, históricas, sociais e econômicas onde estão instaladas as escolas da Amazônia

Paraense, como assinala Cristo (2007, p. 19).

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A partir do conhecimento que possuo sobre a Amazônia considero que a

designação educação do campo não reflete o contexto educacional

amazônico marajoara ao qual descrevo e investigo. A Amazônia

apresenta uma imensa pluralidade econômica, social e cultural, em seu

extenso território. E a população que habita esse espaço, às vezes, recebe

a mesma denominação, são incluídos categoricamente de acordo com sua

localização espacial e/ou com sua produção material de subsistência,

porém essa descrição nominal genérica esconde as singularidades da

realidade vivenciada por esses atores sociais.

A partir desta fala, Cristo defende uma Amazônia rural ribeirinha com base nas

singularidades da região, heterogeneidade humana, história e cultura. Reivindica uma

escola que trabalhe a cultura local ao considerar que se “o rio, as casas, os barcos, morar na

beira do rio são marcas simbólicas do viver ribeirinho, por isso os currículos das escolas

ribeirinhas deveriam incluí-los e fazer a mediação entre valores, conhecimentos populares

e saberes científicos (CRISTO, 2007, p. 131). Contudo, a grande questão é institucionalizar

a condição desta identidade ribeirinha em termos locais e perder de vista as compreensões

da posição histórica que ela assume como o lugar da subalternização.

Embora as apreciações de Cristo tivessem considerado a adequação das práticas

pedagógicas à cultura local, outras investigações propõem reformulações na forma de

pensar o ensino para as populações ribeirinhas, a partir de uma “educação das águas” na

Amazônia, espacialmente no arquipélago do Marajó, segundo Amaral (2012, p. 39).

Ao buscar no dicionário o termo campo, dentre as acepções, a que mais

se destaca está relacionada ao sentido de extensão de terra, terreno,

poucas árvores, destinado às pastagens, plantações, o que está longe de

ser uma identidade de quem mora em meio a águas e florestas. Esta

definição está longe de identificá-los, dificilmente um aluno que estuda

no meio rural no “Marajó das Águas”, dirá que é aluno do campo, já que

a palavra campo, para ele, traz outro significado. Mesmo um professor,

conhecedor da legislação, não utilizará esse conceito, pois é difícil

utilizar um termo quando não há uma identificação com ele.

É evidente que estas reflexões que se fazem, em nível desse sistema de ensino,

não descartam os avanços alcançados pela educação local. Apesar disso, não podemos

deixar de ponderar que a escola marajoara, sobretudo, no Marajó das Florestas, por ser um

espaço constituído naturalmente em meio a densas florestas e rios, seja enquadrada em

uma diretriz de ensino, que do lugar das políticas educacionais, homogeneíza as

peculiaridades regionais. Nessas circunstâncias, a maioria das comunidades escolares da

região não se identifica com essa proposta de educação.

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Este jogo de poderes entre o lugar educacional e a posição da cultura local, nesta

região, procurou deslocar a discussão deste quadro educativo e trabalhar numa perspectiva

da educação das águas. Nessa definição, as construções identitárias da escola e dos alunos

são fundamentalmente associadas ao curso natural da água e seus ciclos. É pela água que

os alunos dirigem-se às escolas, alimentam-se, trabalham, pescam, movimentam as práticas

culturais de tradição oral e aprendem os saberes locais. Esta identidade em movência entre

rios e florestas, de certa forma, desloca as compreensões geográficas sobre a identidade

ribeirinha para uma visão hídrica do modo de vida destas populações marajoaras.

A ativação destes saberes tradicionais peculiares a cultura local não é reconhecida

nas diretrizes das políticas de educação do campo por sua própria conceituação e em

termos de localização das escolas na região amazônica. Nestas condições, a escola vê-se

assumir a posição de instituição reprodutora dos conhecimentos urbanocêntricos que

desqualificam os saberes locais. Instigado por esta realidade, Ferreira (2012), não só

propõe a desconstrução da categoria “ribeirinha” para “ribeiro”, mas situa o lugar histórico

que remete para a sua construção.

[...] proponho a desconstrução da categoria “ribeirinho” porque entendo

que dela decorre um discurso de desqualificação das sociedades

ocupantes de espaços que margeiam os rios e igarapés da Amazônia. Por

sua construção histórica, esta categoria parece materializar uma

classificação colonialista, galgada da dicotomia entre culturas inferiores e

culturas superiores. Talvez fosse possível até afirmar que essa categoria é

produto de uma invenção, de um simulacro já que não resulta de

autodenominação destas sociedades (FERREIRA, 2012, p. 83).

A escola assume a função de inserir nas práticas educativas dos alunos os

conhecimentos científicos. Nesta tessitura sociocultural, a visão perniciosa surge quando o

saber institucionalizado circunscreve-se como referência de aprendizagem, investida de

preconceitos que atualizam percepções ideológicas fundadas pelo eurocentrismo. Por estar

relacionada a uma forma de hierarquização cultural, não compõe uma auto-afirmação

identitária e se faz ver em tensas lutas dicotômicas no espaço escolar e no meio acadêmico.

Desta forma, Foucault (1979, p. 171), ao analisar o poder e o saber na sociedade,

explica como os métodos de produzir o conhecimento das instituições deixam à margem os

saberes locais, destituídos de uma significação científica.

Trata-se de ativar os saberes locais, descontínuos, desqualificados, não

legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los,

ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos

direitos de uma ciência detida por alguns. [...]. Não que se trate da recusa

de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência

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imediata não ainda captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos

saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma

ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os

efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao

funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma

sociedade como a nossa.

Enunciados como “educação das águas” e “ribeiro” são importantes para

refletirmos a condições de mudanças das concepções políticas da academia em pensar o

sujeito nestas tramas históricas, educacionais, mas sem esquivar-nos das condições étnico-

religiosas que envolvem a construção desta identidade na Amazônia Paraense.

2.3.2. O ponto de vista étnico-religioso

A partir destas posições que consideram o aspecto econômico e as tensões que

norteiam as discussões no campo educacional é possível inferir que esta construção social

de uma identidade ribeirinha está alicerçada em uma espécie de geografia das margens dos

rios amazônicos, o que não significa, no entanto, que ela se restrinja a estas duas

perspectivas. É preciso perceber que as condições étnicas sempre estiveram presentes neste

tipo de definição e que são justamente as descendências de sociedades indígenas, africanas

e européias com todas as redes de memórias que se constituíram a partir de suas tradições,

ainda pouco analisadas, que são silenciadas na definição de ribeirinho.

Mesmo que estes enunciados sejam sempre problemáticos – quem é índio, negro,

europeu – não se pode deixar de mensurar que essas presenças étnicas constituem as

complexas relações de mediações culturais que marcaram estes povos desde o período

colonial. Nestes intercâmbios conflituosos, não podemos esquivar-nos de que, grande parte

da materialidade histórica analisada e posta em circulação construiu-se pelos documentos,

crônicas, cartas de religiosos e colonos. As concepções nesses registros sobre cultura,

religião e conhecimento sustentaram a maquinaria do olhar eurocêntrico em relação aos

povos indígenas na Amazônia, de acordo com o cronista Daniel (2004b, p. 263).

Os habitadores e naturais índios do grande Amazonas são gente também

disposta, e proporcionada, como as mais da Europa, menos nas cores, em

que muito se distinguem. Nem pareça supérflua esta advertência, de que

são, porque não obstante a sua boa disposição, e fisionomia, houve

europeus que chegaram a proferir que os índios não eram verdadeiros

homens, mas só um arremedo de gente, e uma semelhança de racionais;

ou uma espécie de monstros, e na realidade geração de macacos com

visos de natureza humana.

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Etnicamente, essa definição da natureza não humana dos indígenas, que também

foi pensada em relação ao africano, em tempos coloniais, saída do bojo do saber científico

e reelaborado pelo catolicismo circula e reformula-se em muitos discursos que hoje

desqualificam a cultura e história que formou as populações ribeirinhas. As materialidades

destes atos são os estereótipos construídos discursivamente para se referir a estas pessoas

como não civilizadas, bárbaras, rústicas e atrasadas.

As retomadas destas estereotipias que versam a negação da história indígena, a

inferioridade de suas cosmologias de tradição oral, a força das relações bélicas e a

dizimação como ocorreu com as sociedades indígenas no arquipélago do Marajó foram

desenvolvidas em função do sentido de verdade que a cultura ocidental atribuía ao papel da

escrita. Nessa direção, são válidas as interpretações de Foucault (2010b, p. 152).

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constitui, um

“corpo” (quicquid lectione collectum este, stilus readigat in corpus). E é

preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim

– segundo a metáfora da digestão, tão freqüentemente evocada – como o

próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou

e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em

forças e em sangue” (in vires, in sanguinem).

Essas tensas situações de interações culturais ainda se encontram mergulhadas no

cotidiano dos moradores ribeirinhos, à medida que o olhar de fora e mesmo grande parte

das pessoas que vivem na região, reproduzem inconscientemente os discursos colonialistas

e de como o “saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido

e de certo modo atribuído” (FOUCAULT, 2011, p. 17). As implicações dessa realidade

refletem uma preconceituosa visão da cultura local e das identidades, entre elas, a

ribeirinha que compõe o universo amazônico.

As intolerâncias religiosas e os equívocos fabricados pelos discursos e narrativas

dos cronistas contribuíram sistematicamente para, em parte, acirrar as dicotomias entre

culturas inferiores e superiores. Para Regina Almeida (1996, p. 147), os reflexos dessas

concepções disseminadas a partir do eurocentrismo católico data do século XVI.

As imagens e representações dos índios do Brasil colonial criadas pelos

europeus tornam-se, nessa perspectiva interdisciplinar, algo mais do que

simples construções irreais, fruto das visões etnocêntricas e

preconceituosas típicas do universalismo cristão do século XVI.

Os conflitos que marcaram as religiosidades, as tradições, os costume que hoje se

atualizam na construção da identidade do ribeirinho na Amazônia Paraense pertence a esta

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historicidade permeada de representações etnocêntricas sustentadas pela visão de

civilização. Nesse caso, trazer à tona os registros dos cronistas consiste em visualizar como

a Companhia de Jesus utilizou de dispositivos discursivos que agenciaram a construção de

uma identidade que se materializa no modo de ser ribeirinho hoje.

Também se faz necessário esclarecer que, mesmo a dizimação indígena realizada

pelo colonialismo acabasse com essas sociedades no arquipélago, é inegável que, parte

destes índios, incorporou-se na sociedade Amazônica da época. Magalhães (1975, p. 30),

em seus trabalhos de etnologia registra a condição histórica deste processo.

Assim como os selvagens ou desapareceram ou subsistem mestiçados,

assim a língua ou desapareceu ou mestiçou-se no rústico falar do nosso

povo, conseguindo introduzir na língua portuguesa do Brasil centenares

de raízes.

Com suas linguagens, saberes, tradições e culturas estes índios e até africanos,

criaram, nestas tensas relações, trocas culturais que, contemporaneamente a história oficial

relegou aos jogos conflituosos entre silenciamento e esquecimento (POLLAK, 1989).

Repensar as condições históricas do processo de desestruturação das sociedades indígenas

compõe uma via de interpretação para chegarmos aos delineamentos de uma identidade

ribeirinha que atualiza acontecimentos discursivos da memória e história destas nações no

Marajó das Florestas.

As atualizações de discursos do colonialismo e das práticas culturais indígenas

estão imbricadas em um jogo entre memória e esquecimento que se inscreve no cotidiano

das sociedades ribeirinhas. Hoje, a construção histórica desta identidade persiste apesar da

condição de silêncio a qual está submetida.

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a

resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de

discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as

lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a

hora da verdade e da redistribuição (POLLAK, 1989, p. 5).

Nesse sentido, existe uma resistência indígena – e até africana também, que se

transferem às populações ribeirinhas e se opõe aos discursos oficiais esperando o momento

de ser comunicada para ser analisada e discutida historicamente. Estas sociedades da beira

de rios que receberam o estigma de uma cultura tradicional à margem da história regional,

hoje lutam para resistir e negociar suas tradições de matrizes orais em pleno processo de

incorporação desigual e heterogênea dos meios de comunicação.

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2.3.3. Ribeirinhos entre meios e mediações

No olhar do outro, os sentidos de ser ribeirinho retoma as posições ideológicas da

cultura ocidental e atualiza discursos que o coloca à margem da “cultura civilizada”,

isolado dos meios de comunicação e sem participação em práticas sociais modernas. Para

descortinar essas estereotipias, objetivamos olhá-lo de dentro da cultura local para

constituir os sentidos da tensa convivência entre as práticas de tradição oral e as

tecnologias de comunicação que trazem do meio urbano para o meio rural amazônico os

modos de vida modernos.

A mediação, na perspectiva de Martín-Barbero, contribuiu para irmos além das

discussões técnicas e funcionais nas quais “o receptor era a „tábua rasa‟, apenas um

recipiente vazio para depositar os conhecimentos originados, ou produzidos, em outro

lugar” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 41). Esta posição epistemológica é redimensionada

aqui e discutida com base nos significados do encontro das tecnologias de informação com

as percepções cosmológicas das narrativas orais, dos saberes locais, crenças, costumes e

religiosidades. Neste caso, as mediações constituem as diferentes atribuições de sentidos

sociais interpretadas, a partir desta relação cultural na Amazônia Paraense.

É preciso rever e discutir o lugar institucional que se fala sobre os ribeirinhos,

quando analisamos a sua relação cultural com os meios de comunicação na Amazônia.

Nestes termos, o texto intitulado As falas da Amazônia, de Neves (2012, p. 7), publicado

no jornal o Comunicado da Universidade da Amazônia, em setembro de 2012, apresenta

uma relevante reflexão a respeito da produção acadêmica em relação à heterogeneidade

dos processos de mediações no espaço amazônico.

Muito pouco, no entanto, se produziu de conhecimento acadêmico, em

universidades da própria região, sobre a realidade da Amazônia em

relação aos processos de mediação. Penso que um dos maiores desafios

para nossos atuais e futuros pesquisadores é conseguir estabelecer

parâmetros, sem estereótipos, que marquem um lugar de fala local em

diálogo com este mundo globalizado em que vivemos.

Para Neves, constitui-se em grande desafio os pesquisadores locais colocarem em

questão de que lugar e com qual lente olhamos, nesta conjuntura entre local e global, a

representação dos ribeirinhos, indígenas e remanescentes de quilombolas nos meios de

comunicação. Ainda, nessa mesma direção, podemos elucidar quais os discursos ocidentais

com que se “veste” estes sujeitos de estereótipos reforçados pelas mídias. Este lugar de fala

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esta associado, muitas vezes, às concepções que atualizam discursos dicotômicos entre

tradição oral/novas tecnologias, rural/urbano, hegemônico/subalterno, deixando nas bordas

das discussões teóricas as interpretações constitutivas destes entrelaçamentos.

Em nível regional, os lugares de onde se enunciam esta categoria – o ribeirinho,

compõem concepções exógenas do sul e sudeste, regiões cujos estereótipos remetem ao

“alto desenvolvimento” do Brasil pela produção de tecnologias modernas e com grande

potencial econômico, não importando, para isto o grau de miséria de uma parte da

população e a degradação do meio ambiente. Nas suas análises, Ferreira (2012, p. 86),

corrobora para situar como se constroem os discursos sobre estas populações e o lugar

marginal que ocupam na região diante dos avanços tecnológicos e dos processos de

modernidade.

Como uma construção discursiva herdada da categoria “caboclo”,

predominante em anos anteriores à década de 1970, o “ribeirinho” arrasta

consigo os sentidos de inferioridade, aquele que está fora dos avanços

modernos e que pensa a partir do outro. Apresenta-se distante da

identidade nacional, já que está, formalizada em ideia de subalternização,

tem seu paradigma nas matrizes culturais das regiões mais desenvolvidas

técnica e economicamente – Sul e Sudeste – enquanto as demais regiões

apresentam apenas traços regionalistas, isto é, não constituem a

identidade do Brasil.

Por essa ótica, além do ribeirinho ser inferiorizado culturalmente, parece que as

tecnologias de comunicação estão fora do seu alcance na região amazônica. Ser ribeirinho

como uma forma de vida relegada à beira dos rios amazônicos, em casa de taipa, trabalhar

com atividade extrativista, praticar a agricultura, a pesca, a caça e compreender o mundo

em sua volta com base em saberes tradicionais, constitui modos de agir e pensar atrasados

e separados dos ideais de progresso da sociedade industrial que vê nas regiões sul e sudeste

os modelos de seu epicentro.

É significativo apreender tanto os acontecimentos históricos quanto as relações

culturais que traçam as significações discursivas de modernidade atribuídas unicamente

aos centros urbanos. Por exemplo, em São Paulo, à beira do rio Tietê não existe o uso do

termo ribeirinho para seus habitantes, muito menos “tietezinho(s)”, eles aparentemente não

estão à margem da modernidade e do acesso aos meios de comunicação. Estas formas de

representação destes moradores, no âmbito da cultura regional e do tecido social, não

podem ser entendidas fora das relações de poder e seus encadeamentos como esclarece

Foucault (1979, p. 182).

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Não se trata de analisar as formas regulamentares e legítimas do poder

em seu centro, no que possam ser seus mecanismos gerais e seus efeitos

constantes. Trata-se, ao contrário, de captar o poder em suas

extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde se torna capilar;

captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais.

As palavras de Foucault, por um lado, contribuem para compreendermos que a

construção discursiva da identidade ribeirinha, em circulação no norte e nordeste do Brasil,

não se restringe apenas a um jogo de poder do eixo centro-sul. Por outro, permite analisar

como estas redes de poderes articulam-se e materializam-se, em cidades como Belém, cuja

população ribeirinha habita os espaços rurais e urbanos. Nas periferias urbanas, residem

em casas de palafitas à beira dos braços do rio Guamá e da baia de Guajará. No meio rural,

habitam nas comunidades afastadas da sede do município. Ainda que a cidade se localize

na foz do rio Amazonas, rodeada por ilhas e rios, há uma resistência em vê-la como

ribeirinha. Para muitos belenenses, em função destes micropoderes, os ribeirinhos são os

que moram nos interiores da municipalidade ou do estado.

Nas hierarquizações discursivas que se preceituam a partir da lógica ocidental “as

culturas urbanas acabam aparecendo como o paradigma de civilidade e realização”

(FERREIRA, 2012, p.85). Estas compreensões apresentam acentuadas dissidências, por se

considerar no meio rural amazônico a formação da cultura tradicional e na cidade o modo

de vida centrado em processos de modernidade que se instalam pelas mídias. Nesse

aspecto, Ferreira (2012, p. 79), apresenta como focos de análises a constituição de uma

memória que retoma posições ideológicas etnocêntricas.

O certo é que “ribeirinho” dá vazão ao estado de “supremacia” de um

discurso eurocêntrico e étnico, atualmente reproduzido, com frequência,

pela mídia. Normalmente, aparece em classificações que se ordenam a

partir de uma ótica “urbanocêntrica”, capitalista, tecnologicista e

academicista, cujos traços aparecem bem talhados em duas esferas quase

sagradas das sociedades contemporâneas: a formação acadêmica e o nível

do poder aquisitivo.

A autoridade acadêmica, posição de reconhecimento científico, contribuiu para

conhecermos, por um lado, os desníveis estruturais em âmbito social e regional. Por outro,

retoma atualizações discursivas que colocam os pólos urbanos como o lugar da cultura

superior e civilizada. Deste modo, a identidade ribeirinha arrasta consigo encadeamentos

em rede das relações de poder e se concentra, por sua ordem histórica, em comunidades

das pequenas cidades da Amazônia, situadas à margem dos seus rios e vistas longe das

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modernas práticas culturais, cujas acepções de civilização tomam como princípios

norteadores o uso das tecnologias de comunicação.

Olhando o Marajó das Florestas, a partir dos estudos de mediação, percebemos

que algumas pesquisas realizadas em comunidades ribeirinhas pouco perceberam os

sentidos das mediações dos meios de comunicação com as práticas de tradição oral. Em

sua maioria, as inquirições construíram discursos de que “devido ao tipo de energia

disponível e o baixo poder aquisitivo de consumo não há aparelhos ou utensílios

domésticos mais sofisticados nas residências da população do meio rural” (CRISTO, 2005,

p. 53). Deixaram de ver que uma parcela significativa das comunidades marajoaras no final

do século XX, passou a comprar antena parabólica, televisão, gerador de luz, aparelho

celular, antena de telefonia celular e ter acesso a telefone público no meio rural (SILVA,

NEVES e PACHECO, 2011).

Neste cenário das pesquisas sobre os meios de comunicação, Ronaldo Rodrigues,

pesquisador da mídia televisiva no arquipélago do Marajó, corrobora ao analisar os usos e

apropriações dos conteúdos da TV aberta na região, especialmente, centrando seus estudos

de mediações no Marajó das Florestas. Nas análises recentes deste pesquisador as “antenas

parabólicas se fazem tão presentes nas casas dos marajoaras quanto as TVs. Na zona rural,

como não há recebimento de sinal da emissora sem antena parabólica, salvo raras

exceções, ela torna-se item obrigatório entre os elementos básicos para a vida cotidiana”

(RODRIGUES, 2012, p. 93).

Em Melgaço, mais precisamente no rio Tajapuru, o cotidiano das populações

ribeirinhas, as paisagens dos rios, matas, igarapés, vilas, furos, começou a sofrer

interferências das práticas sociais modernas do meio urbano. Práticas do viver moderno

que chegam através de uma conjuntura tecnológica. Ou seja, os modos de vida modernos

incorporam-se às comunidades, formadas em matrizes de tradição oral, pelo acesso as

tecnologias de informação, em circunstâncias desiguais de oportunidades. O encontro com

as práticas culturais modernas revelam o nível de conexão local com o global, provocam

deslocamentos geográficos e temporais. Estas novas tecnologias estruturam-se de forma

agrupada, por exemplo, antena parabólica, televisão e gerador de energia (figura 14),

reorganizam a dinâmica social e cultural.

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Estes meios de comunicação, na figura acima, antena parabólica – a esquerda do

trapiche; a televisão ligada, no lado esquerdo da casa, ao fundo da janela, e a luz elétrica

em frente à casa compõem esta conjuntura tecnológica em contato com práticas culturais,

como se reunir à tarde no trapiche para roer açaí com farinha, despescar a malhadeira,

contar histórias, causos e piadas. Estes meios de informação, que não se restringe só à

televisão e antena parabólica, criaram espaços de resistências e apropriações entre a cultura

de tradição oral e a presença das novas tecnologias. Para entender este tecido cultural é

preciso estabelecer leituras “fora de lugar”, como discute Martín-Barbero, (2004, p. 19).

Apropriação, ao contrário, se define pelo direito e capacidade de fazer os

nossos modelos e as teorias, venham de onde venham, geográfica e

ideologicamente. Isso implica não só a tarefa de ligar, mas também a

mais ariscada e fecunda de redesenhar os modelos para que caibam

nossas realidades, com a conseqüente e inapelável necessidade de fazer

leituras oblíquas desses modelos, leituras “fora de lugar”, a partir de um

lugar diferente, a partir de um lugar diferente daquele no qual foram

escritos.

As tecnologias de comunicação delinearam novos sentidos com a modernização

das práticas sociais no meio rural. Esta incorporação nada pacífica que implica

enlaçamento dos saberes locais com as práticas culturais modernas, nesse cotidiano, define

diferentes processos de apropriação que possibilita a elaboração de compreensões oblíquas

para as comunidades marajoaras. Analisando as relações entre identidades, mídias e

discursos, explica Gregolin (2007, p. 11):

Figura 11: Antena parabólica, televisão e luz no rio Tajapuru – 2012.

Foto: Shirley Penaforte

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Seria redutor entender que há apenas passividade diante do agenciamento

coletivo da subjetividade; pelo contrário, há pontos de fuga, de

resistência, de singularização. Não há, nos discursos da mídia, apenas

reprodução de modelos – ela também os reconstrói, propõe novas

identidades.

A partir desta interpretação, ao mesmo tempo em que ocorrem essas

ressignificações do modo pensar os estilos de vida urbana, vestir-se e alimentar-se, cuidar

de si, usarem produtos cosméticos, (re) criam-se nestas tensões culturais, outros momentos

para narrativizar a vida na floresta e conviver com as atividades da caça, pesca, plantio,

colocar o matapi, despescar o pari, tirar o açaí, cortar madeira, etc. São formas de

singularização negociadas neste cenário de contato com as práticas culturais modernas.

A presença do global tornou-se cada vez mais constante na cultura local e

acelerou a “incorporação das sociedades particulares em grupos cada vez maiores”

(MATTELART, 2000, p. 11). Contemporaneamente, interpretar os sentidos atribuídos aos

meios de comunicação, por estes moradores da floresta, significa adentrar em áreas

estratégicas da região. A partir deste momento, é possível analisar os deslocamentos dos

“meios” para as “mediações”, neste caso, dessa forma de viver em meio aos rios e

florestas, com as tecnologias de comunicação, conforme Martín-Barbero (2001, p. 270).

[A] comunicação está se convertendo num espaço estratégico a partir do

qual se pode pensar os bloqueios e as contradições que dinamizam essas

sociedades-encruzilhadas, a meio caminho entre um subdesenvolvimento

acelerado e uma modernização compulsiva. Assim, o eixo do debate deve

se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre

prática de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes

temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais.

Entendemos que as práticas de tradição oral, por si só, sustentam diferentes

processos de mediações em comunidades ribeirinhas da Amazônia. Em Melgaço, como

nos demais municípios marajoaras, elas constituem um dos focos das mediações culturais à

medida que são narradas de geração a geração, socializadas discursivamente em distintos

lugares e transformadas de acordo com as perspectivas históricas da sociedade. Contudo, a

estabilidade da rede de tradição oral hoje, encontra-se em tensos combates socioculturais

com as práticas culturais modernas que se materializam através da entrada dos meios de

informação, impulsionados pela luz elétrica, na paisagem urbana e rural dos melgacenses.

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2.3.3.1. Pela lente da cultura local: tensões entre o moderno e a tradição

Quando percorremos o rio Tajapuru, passamos por várias experiências em contato

com este rio. Em particular, chamou-nos a atenção, por um lado, a intensa movimentação

de balsas, navios e barcos navegando-o em varias direções no estuário amazônico. Por

outro, o consumo de conjugado de luz (motor e grupo gerador), eletrodomésticos (fogão a

gás, geladeira, freezer, etc.), antenas parabólicas, televisão, antena de telefone (fixo e

celular) em distintas comunidades.

No aspecto dos transportes, as embarcações transformaram a paisagem natural à

medida que alargavam as margens do rio, obrigando muitas populações ribeirinhas a

recuarem suas casas, vilas ou comunidades para dentro da floresta. Mudanças físicas na

paisagem do rio provocada pelas maresias dos intensos itinerários marítimos. Confirma-se

este trafego na percepção de seu Waldemir Peixoto Rodrigues, morador há 46 anos do

local, agricultor e madeireiro que destaca o surgimento destas transformações, a partir da

década de 70, com aumento da navegação de balsas, pelos rios Tajapuru e Limão.

Nesse período de 70, o movimento era pouco aí de lá, eu já tava rapaz e o

movimento que tinha era barco, hoje é muita balsa pra cima e pra baixo

tanto no rio Tajapuru como ali no rio Limão. [...] Tem umas balsas que

transportam combustível, mercadoria, eletrodoméstico e quando me

entendi o meio de transporte era a vela, no faio [alfaia], meu pai cansou

de ir pra Breves e Melgaço remando na alfaia. E hoje já está muito

evoluído.9

Na fala de Waldemir, notamos deslocamentos em sua memória ligando o presente

ao passado. Ele faz um contraponto com o passado indicando os transportes à vela,

movimentada pelo vento e remo-alfaia, que deslocava o pai para Breves e Melgaço. Essa

memória retoma acontecimentos das expedições ultramarinas quando o rio Tajapuru, por

fazer parte da história colonial, era navegado através de caravelas movidas a vento e remo-

alfaias, que traziam as notícias, as mercadorias e a cultura letrada, em longas viagens,

inaugurando os processos de globalização, a partir de um “novo sistema mundial e também

da modernidade/colonialidade” (MIGNOLO, 2003, p. 79).

É significativo destacar que entendemos esse processo de globalização, conforme

Mignolo (2003, p. 82), quando, no século XVI, a conexão do mediterrâneo com o atlântico

através de um novo circuito comercial “lança as fundações tanto da modernidade como da

colonialidade. O novo circuito comercial também cria condições para um novo imaginário

9 Entrevista realizada com seu Waldemir Peixoto Rodrigues, na comunidade São Francisco, às margens do

rio Tajapuru, dia 09 de janeiro de 2012.

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global construído ao redor do fato de que as novas terras „descobertas‟ foram batizadas

com India Occidentales”. Nesta mesma perspectiva colabora Ortiz (2000, p. 15), se

“entendemos por globalização da tecnologia e da economia a internacionalização das

trocas, de produtos e de conhecimento, evidentemente não estamos diante de um fato

original”. Desta forma, hoje o rio Tajapuru produz novos significados como hidrovia onde

circulam óleo diesel, produtos (alimentos, construção, ferragem, etc.) e tecnologias de uso

doméstico. Alguns moradores mantêm relações comerciais com essas balsas comprando

óleo, gasolina e mercadorias.

Se por um lado, no porto das casas de uma pequena parcela dos habitantes,

observam-se navegações como rabetas, voadeiras e barcos de pequeno, médio e grande

porte, que modernizaram a forma de estar no rio e transporta-se, por outro, vemos

modernas navegações como balsas, navios, princesas10

, lanchas que singram os rios da

Amazônia pelo Tajapuru em diferentes trajetos marítimos. Esta é uma transformação que

não se realiza apenas, em nível da navegação, mas no aspecto da circulação de bens

tecnológicos, serviços e transportes guiados, muitas vezes, com modernos aparelhos como

GPS (Global Positioning System) e o sonar11

desde as indústrias montadoras da Zona

Franca de Manaus ao Sul do Brasil e vice-versa.

Neste mesmo período, em termos de uso da energia elétrica, no meio rural, a sua

distribuição estava restrita aos pólos comerciais das indústrias de extração do palmito ou

da madeira, e mesmo pela condição social, nem todos os ribeirinhos podiam ter

eletrodomésticos, televisores, parabólicas, grupo gerador de luz. No entanto, a partir dos

10

São interpretados com o nome de Princesa pelos moradores do rio Tajapuru, os navios transatlânticos que

cortam a região em viagem turística ou excursão. 11

Aparelho tecnológico que mede a fundura dos rios por onde a navegam balsas, navios e barcos

sofisticados.

Foto: Anne Pantoja. Foto: Joel Silva

Figura 13: Imagem do navio cargueiro, baixando do Amazonas – 2010.

Figura 12: Balsa da empresa Rincón subindo rumo ao

alto Amazonas – 2012.

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anos 80, alguns palmiteiros, madeireiros, comerciantes, fazendeiros e agricultores,

localizados em vilas estratégicas no rio Tajapuru, começaram a comprar conjugados e as

novas tecnologias com o ganho deste capital.

No município, lugar de onde fala Durval Moreira Rodrigues, morador do rio

Tajapuru há 71 anos, que viveu, no cotidiano da floresta, os períodos dos ciclos

econômicos locais como coletor das folhas de urumã, cortador de lenha, seringueiro,

madeireiro e palmiteiro. Na vida pública, foi vereador pelo mandato Tampão (1971-1973).

Na região, apesar de exerceu atividade comercial, atualmente se diz agricultor. Seu Durval,

palmiteiro entre os anos 80 e 90, deixa na sua narrativa o registro desta experiência.

Acontece, assim, nós trabalhávamos numa fábrica com tudo certo,

encravadeira, luz elétrica tudo certinho, mas depois que veio o plano real,

lá fora eles não quiseram mais financiar pra cá pro Brasil. E o dólar ficou

igual ao real e real acima do dólar, aí não existiu mais interesse em

comprar conserva lá. Aí a nossa firma com que nós trabalhávamos disse:

“Ó se vocês tiverem capital, vocês continuam a trabalhar, senão nós

vamos parar”, isso porque não tem preferência lá fora, porque o interesse

deles era comprar e estocar pra ganhar dinheiro. E isso acontecia porque

o real passou acima do dólar.12

A produção da conserva de palmito encontrou o seu auge até finais da década de

90, quando o choque com o dólar, a partir do plano real, elevou o preço da moeda nacional,

mas acabou cortando o financiamento da produção. Sem capital, para arrendar a extração

do palmito, muitas empresas faliram ou deixaram de trabalhar neste comércio. No caso de

seu Durval, ele resolveu não produzir mais a conserva. Situações como essa foram

acompanhadas através da programação televisiva na época, o que comprova a forma de

lidar com o mercado nacional e internacional – “o interesse deles era comprar e estocar pra

ganhar dinheiro”, como fala seu Durval, mas sem financiar o arrendamento do palmito até

a entrega final da produção.

Hoje, com a chegada de grupos geradores de energia, em distintas comunidades, o

uso de novas tecnologias domésticas, da televisão e antena parabólica popularizou-se. Esse

consumo instituído em circunstâncias financeiras diversas através de empréstimos,

remuneração (de aposentados, professores, barqueiros escolar); produção extrativista

sazonal (de açaizeiros, palmiteiros, madeireiros, agricultores); renda de estaleiros

(calafates, construtores de barco) e venda de gado (fazendeiros) representa a inserção

12

Entrevista com seu Durval Moreira Rodrigues, na comunidade São Francisco, às margens do rio Tajapuru,

dia 13 de janeiro de 2012.

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destes sujeitos no sistema capitalista e consumir é o meio para aquisição de tecnologias da

informação. E não é apenas “uma reprodução de forças, mas também de sentidos: lugar de

uma luta que não se restringe à posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente

pelos usos que lhe dão forma” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 302).

Nesta cena cotidiana, na figura 14, o barco, antena parabólica, televisão,

conjugado de luz, constrói para estes sujeitos um processo de globalização da informação

que ocorre pelos rios e florestas melgacense, transformando-os com a configuração de

rearranjos diferentes e novos ordenamentos comunicacionais, culturais e sociais.

Nesse ponto de vista, o rio não é somente produzido como espaço dos saberes

locais, tradições, dos ciclos sazonais, circulação do comércio, fonte de alimentação e do

regime das águas. Mas o local constituído pela materialização das informações que se

movimentam de maneira instantânea, nesta nova cartografia da globalização, no cotidiano

das comunidades do rio Tajapuru, que encurta a relação com o espaço e o tempo entre

local e global. Uma nova noção de tempo se instala na cultura local e reorganiza novos

modos de experiências e práticas culturais modernas na região com o consumo destas

tecnologias. Para Ronsini (2010, p. 2):

Vale observar que, apesar da divisão existente entre a perspectiva do

consumo, filiada à Néstor García Canclini, e a dos usos sociais, filiada à

Figura 14: Barco com antena parabólica e grupo gerador de luz – 2010.

Foto: Joel Silva

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Martín-Barbero, os termos recepção e consumo são utilizados

freqüentemente como sinônimo para indicar o conjunto dos processos

sociais de apropriação dos produtos da mídia.

Essa relação de apropriação compõe um ponto relevante de análise dos processos

de recepção, com base nos usos da mídia televisiva, em comunidades que margeiam o rio

Tajapuru. Se por um lado, a leitura desta realidade revela de modo singular e heterogêneo

o consumo das mídias nas comunidades deste rio. Por outro, abrem-se as perspectivas

históricas das mediações entre os ribeirinhos e os sentidos destas tecnologias que assume

importância local ao conectá-los ao mundo da informação.

Nesse sentido, é preciso refletir a respeito da nova ancoragem da tradição oral,

fato que remete diretamente às formulações discursivas de debates do assunto, à medida

que envolve as percepções “apocalípticas”, quando se fala que o acesso aos meios

midiáticos destruiria a cultura tradicional e as concepções “integradas” que mostram como

as tecnologias podem ser úteis ao funcionamento da sociedade (ECO, 1987). Adotamos

aqui, um meio termo em relação às comunidades que compõem o rio Tajapuru. Para

Thompson (2008, p. 160):

[...] as tradições transmitidas oralmente continuaram a desempenhar um

papel importante na vida cotidiana de muitos indivíduos. E mais, as

tradições mesmas foram transformadas à medida que seu conteúdo

simbólico foi sendo assumido pelos novos meios de comunicação. A

mediatização da tradição dotou-lhe de uma nova vida: a tradição se

libertou das limitações da interação face a face e se revestiu de novas

características. A tradição se desritualizou; perdeu sua ancoragem nos

contextos práticos da vida cotidiana. Mas o desenraizamento das

tradições não as privou dos meios de subsistência. Pelo contrário,

preparou-lhes o caminho para que se expandissem, se renovassem, se

enxertassem em novos contextos e se ancorassem em unidades espaciais

muito além dos limites das interações face a face.

Nas residências dos moradores, há alguns que possuem o rádio à pilha, rádio

amador (VHF), televisão, parabólica, celular, máquina de lavar roupa, freezer, fogão a gás,

rabetas que estão lado a lado com as redes de comunicação oral, o giral na cabeça do

trapiche onde se lavam as roupas, o pote que resfria a água naturalmente, o fogão a lenha

no final da cozinha e o transporte pelo rio de canoa. Nestas relações entre o moderno e a

tradição dos moradores, vão reafirmando-se ou negociando antigos costumes com estas

novas tecnologias (ALMEIDA, 2009).

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2.3.3.2. “Muitos conhecem através da televisão, senão existisse a gente só ouvia falar

porque o rádio só faz falar”

O cotidiano das populações das distintas comunidades do rio Tajapuru, na vila

Bom Jardim, não viveram de forma pacífica, em tempos da extração da borracha, a relação

social com quem detinha o controle da escuta dos meios de comunicação, em particular o

rádio à pilha. A posse desse meio de comunicação concedia status sociais aos seringalistas

na região. Seu Durval, nessa época, relembra um acontecimento discursivo que marcou a

sua memória de seringueiro – “pobre não tinha vez escutar nada”, fala de Ernesto Maia,

comprador de látex e dono de Barracões.

O rádio, na vila Bom Jardim, era do Ernesto Maia só que ele não deixava

a gente escutar nada, só ele mesmo escutava porque era preconceito,

pobre não tinha vez de escutar nada. Depois o Waldemar Peixoto

comprou um rádio na década de 70, aí foram comprando, aí a gente

conseguiu também e assim foi se espalhando o rádio. Nesse tempo, se

escutava as rádios de Belém, a rádio Clube. Isso era com antena e era à

pilha.13

Esta é uma questão particular da região, mas que explica como o poder de quem

detinha o rádio, como meio de comunicação, definia quem tinha o direito de escutá-lo. Não

era uma situação restrita, só entre patrão e seringueiros, mas uma relação de discriminação

social que se estabelecia ainda no nível de domínio das informações. O rádio funcionava

como um mecanismo de controle articulado com os interesses econômicos e culturais do

seringalista Ernesto Maia. Contudo, após a década de 70, o rádio passou por um processo

de popularização no rio Tajapuru, abriu-se o consumo do produto, em função de outras

atividades econômicas regionais, sobretudo a madeira e o palmito, possibilitando ouvir as

programações das emissoras de rádios da capital e outras localidades.

Na década de 80, com o auge da extração de madeira e produção das conservas de

palmito na região, outros meios de comunicação, além do rádio, como a televisão e a

antena parabólica passaram a compor o dia a dia das comunidades. Nesse período,

Cipriano Marquês Corrêa, de 61 anos, residente no Porto Arraiolos, às margens do rio

Tajapuru, que extraiu leite de seringa e cortou madeira, relata esta nova convivência –

“muitos conhecem através da televisão, senão existisse a gente só ouvia falar porque o

rádio só faz falar”.

13

Entrevista com seu Durval Moreira Rodrigues, na comunidade São Francisco, às margens do rio Tajapuru,

dia 09 de janeiro de 2012.

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O espaço na cena cima, composto por dois rádios (no lado esquerdo) e uma

televisão (no lado direito) em cima do balcão, no Comércio Porto Capinal, materializa

discursivamente a fala de seu Cipriano e explica como muitas comunidades melgacenses,

na Amazônia Paraense, compreendem a realidade regional e nacional. Ainda, é possível

perceber que, os deslocamentos de sentido social tanto das crianças, ao verem os desenhos

animados, quanto dos adultos ao assistirem cenas da vida real na telenovela e o futebol

refletem as oportunidades de olhar o mundo produzido pela televisão, mas com o ouvido

fincado no rádio. Em sua apreciação, Kellner (2001, p. 9), aponta como são tecidos na

mídia os produtos da indústria e os processos de sua reorganização na cultura.

Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos

ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer,

modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o

material com que as pessoas forjam sua identidade. O rádio, a televisão,

antena parabólica, aparelho de DVD, DVD filme, e outros produtos da

indústria cultural fornecendo os modelos daquilo que significa ser homem

ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso e impotente. A cultura

da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o

seu senso de classe, de etnia e raça, de racionalidade, de sexualidade, de

“nós” e “eles” (com grifos nossos).

A construção de significados entre o ouvir por meio do rádio e ver o mundo

através da televisão, assistir filmes em aparelho de DVD em casa, construiu uma dinâmica

Figura 15: Rádio e Televisão no interior do Comércio Porto Capinal – 2009.

Foto: Joel Silva

“A televisão trouxe uma evolução, né? Sobretudo tanto faz pra os menores como pra os

adultos, porque as crianças gostam de assistir, sobretudo desenho e aquilo é construtivo

pra eles. Os adultos gostam muito de novela, futebol também é construtivo porque hoje

eles vêem, a gente vê o mundo, até o Brasil aonde a gente nunca teve a oportunidade e

nunca pensou e nunca vai passar também. Muitos conhecem através da televisão, senão

existisse a gente só ouvia falar porque o rádio só faz falar né? A gente não está vendo e a

televisão mostra essa evolução que nós temos.”

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social no modo de compreender, em sua própria cultura, a noção de classe, etnia e

sexualidade. Por exemplo, em janeiro de 2005, o Jornal Nacional da Rede Globo, através

da reportagem “Às margens da Pobreza” como parte da série “Povos das Águas”, feita pelo

repórter Marcelo Canelas14

, divulgou para todo Brasil como as meninas atracam as canoas

nas balsas para se prostituir no rio Tajapuru. Embora o telejornal denunciasse a exploração

sexual na região, os títulos das matérias estabelecem uma ordem discursiva social e étnica

sobre toda a população. No conteúdo da reportagem, ficou o estereótipo da mulher

balseira, ou seja, aquelas que agarram as balsas e trocam sexo por óleo diesel, alimentos,

roupas, calçados e perfumes.

Envolver-se em uma cultura da imagem e da escuta, na percepção de seu

Cipriano, também formam interpretações que evidenciam sucessões tecnológicas entre

esses meios de comunicação, sem perdas da importância do papel que desempenham na

sociedade contemporânea. Ele relata ser um dos primeiros a adquirir a antena parabólica e

aparelho de televisão na localidade.

Olha! Eu vejo como uma evolução muito grande porque eu daqui da

região, eu fui o primeiro a conseguiu colocar uma parabólica. E muitas

vezes, eu estava com cento e tantas pessoas aqui para assistir um jogo,

vinha gente até do Mucambo e eu dando a oportunidade que nesse tempo

não existia. De lá pra cá, de 30 anos pra cá veio evoluindo que hoje tem

vezes que eu assisto só eu, tem uma casa ali que também tem. Facilitou

muito e o povo gosta da televisão que é um meio de comunicação que é

instrutivo.15

A experiência de seu Cipriano constrói diferentes significados da televisão na

região. Numa primeira leitura, situa uma posição de evolução não só dos meios de

informação, mas do próprio local, por seus moradores conseguiram adquirir esta mídia. Na

segunda, apresenta as vindas e idas realizadas geograficamente para assistir ao jogo de

futebol transmitido na televisão. Apesar de ser o único a tê-la, revela inicialmente o

aspecto coletivo que este meio se traduzia naquele momento, quando recebia um público

grande em sua casa.

Em análise desta maneira de olhar de seu Cipriano, observamos uma reflexão

indireta sobre a facilidade da compra do aparelho que deixou de ser compartilhado e

constituiu um modo de uso individualista. Essa forma de entender o mercado consumidor,

14

Povos das águas: as margens da pobreza. Disponível em: http://jornalnacional.globo.com/jornalismo/JN.

Acesso em fevereiro de 2011. 15

Entrevista com seu Cipriano Marques Corrêa, na comunidade Santa Maria, localizada às margens do rio

Tajapuru, no dia 09 de janeiro de 2012.

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na perspectiva de Garcia-Canclini (2010, p. 14), é um “espaço que serve para pensar, e no

qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas

sociedades”. Para Garcia-Canclini (2010), o consumo é a posição de onde é possível

organizar as formas de refletir sobre a aquisição de produtos da indústria cultural. Na

narrativa de seu Cipriano, a televisão produz sentido por ser “um meio de comunicação

que é instrutivo”, ou melhor, meio que estabelece aprendizagens e conhecimentos de

outros lugares. Nesse sentido macro, esclarece Ortiz (2000, p. 34-35):

A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com

que os lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre,

revela o mundo, já que os pontos desta malha abrangente são susceptíveis

de intercomunicação. Neste sentido o mundo teria se tornado menor, mais

denso, manifestando sua imanência em todos os lugares.

Com o uso dos meios de comunicação, em particular o rádio, a televisão mais

antena parabólica, os ribeirinhos poderam conhecer outras regiões do planeta sem sair do

seu local, ter acesso instantâneo as notícias do país e do mundo. As malhas intercambiáveis

da cultura moderna, que para além das circulações de notícias, tornam-se mais presente

ainda na cultura local, a partir de modernas práticas sociais, cujo acesso chega pelos vídeos

gameis portáteis (com energia a bateria), aparelhos de DVD, multimídia dos aparelhos de

celular, programas televisivos (telejornais, telenovelas, desenhos, etc.) e pela audiência

popular das emissoras de rádio, com formato de leitura informativas dos sites e blogs.

Nesta mesma perspectiva, Gregolin (2007, p. 13), analisando as mídias como

práticas discursivas, permite interpretar como os enunciados estabelecem relações com a

memória e a história dos sujeitos em diferentes posições na sociedade em que vive.

Pensando a mídia como prática discursiva, produto de linguagem e

processo histórico, para poder apreender o seu funcionamento é

necessário analisar a circulação dos enunciados, as posições de sujeitos aí

assinaladas, as materialidades que dão corpo aos sentidos e as

articulações que esses enunciados estabelecem com a história e a

memória. Trata-se, portanto, de procurar acompanhar trajetos históricos

de sentidos materializados nas formas discursivas da mídia.

O lugar de onde olha seu Durval, expresso neste enunciado – a “televisão foi uma

coisa muito importante que a gente achou aqui no interior porque a gente não sabia o que

se passava, não conhecia a realidade”, assinala uma interpretação de um sujeito que se

posiciona em relação à televisão, com a bagagem cultural formada em saberes de tradição

oral, que são deslocados e ampliados, a partir dos conhecimentos transmitidos pela

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televisão. Em sua fala, através de programas televisivos como Globo Rural e da revista

Globo Rural, mostra como pode ser aplicada as técnicas modernas utilizadas para plantar.

Tem muita coisa que só depende de uma consciência das pessoas, de cada

morador, porque tem uns que tem a terra pra plantar aí não custa você

pegar a televisão e escutar todo domingo o Globo Rural que informa tudo

sobre como é pra fazer e tem também umas revistas que sempre chega do

Globo Rural pra mim, aí muito importante pra gente tratar qualquer uma

planta, tudo certinho, porque tudo dá, só depende de procurar a época

certa. O mês de maio aqui pra nós é muito importante, daí pra frente.16

Contemporaneamente, já é uma realidade para algumas pessoas do rio Tajapuru

assistir programações como Globo Rural e ter acesso à circulação da revista Globo Rural.

Estes meios comunicativos convivem com as práticas de saberes locais cujo lugar

marcado, nesta narrativa, baseia-se na agricultura rudimentar e leitura das estações da

natureza para plantar, mas negociado com as práticas modernas da agricultura que

orientam os lavradores a usar o adubo inorgânico no solo antes da terra ser cultivada,

pesticidas para determinados tipos de insetos, orientações técnicas que ajudam na

plantação e colheita do produto.

Assim, procuramos analisar a partir da categoria ribeirinha a constituição de

múltiplas identidades desde o afroindígena, mas nos centrando em particular numa

proposta pouco investigada na região, a memória Tupi em narrativas orais contemporâneas

no rio Tajapuru, que não deixa de constituir uma das identidades destes sujeitos.

Interpretamos por meio de uma concepção multiperspectívica como se forjou na literatura

especializada as acepções sobre esta identificação, que percepções étnico-religiosas

arrastam consigo as marcas identitárias desta categoria. E por fim, analisamos como as

tecnologias de comunicação modernizam as práticas sociais, construindo novas identidades

na região, mas também estabelecem diferenças econômicas entre as populações ribeirinhas,

sobretudo, entre os proprietários destes meios e os demais moradores locais.

16

Entrevista com seu Durval Moreira Rodrigues, na comunidade São Francisco, às margens do rio Tajapuru,

dia 13 de janeiro de 2012.

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Capítulo 03

Entre a cerâmica e a memória indígena nas narrativas orais

Apresentamos, neste capítulo, uma discussão sobre as reflexões produzidas no

âmbito da história e mito, entre pesquisadores ocidentais, a partir do século XIX quando

iniciaram a demarcação das posições acadêmicas na Europa de que a sociedade ocidental

teria história e à sociedade “primitiva” caberiam às manifestações do mito. Ainda neste

ponto, defendemos a posição de que, longe de serem compreendidas como mito, as

narrativas orais contam a história dos povos indígenas do Marajó das Florestas.

No primeiro momento, pontuamos as relações históricas e teóricas para apresentar

como a administração dos gestos de leitura foi organizada, selecionada e distribuída

institucionalmente nas academias quando se tratava de estudar as culturas de tradição oral

dos povos indígenas. A partir desta administração, propomos rever a maneira de olhar para

as histórias das sociedades indígenas, principalmente, as narrativas de tradição oral sem

aquela classificação entre cultura superior e inferior.

Durante este percurso de análises, procuramos destacar que depois das guerras

entre as sociedades indígenas no arquipélago do Marajó, a dizimação empreendida pelo

sistema colonial, o recrutamento para trabalhos compulsórios na província e as doenças

transmitidas pelos colonos portugueses levaram estas nações a uma depopulação e,

consequentemente, a sua desestruturação como sociedades organizadas, em finais do

século XVIII. Entretanto, no cenário marajoara as práticas culturais destas nações ainda

hoje se fazem ver no cotidiano das sociedades ribeirinhas, materializadas nas narrativas

orais, saberes locais e práticas sociais relacionadas às leituras dos tempos da natureza.

Deste modo, analisamos como na metade do século XIX, introduzem-se em

territórios das populações ribeirinhas as investigações em arqueologia e os desafios de

construir uma historiografia arqueológica dos povos indígenas entre campos e florestas.

Objetivamos mostrar o deslocamento dessa história contínua para o estudo da

materialidade discursiva da cerâmica marajoara cujo talhar dos desenhos (cobras, jabutis,

veados etc.) se ressignificam numa dispersão histórica nas narrativas orais ribeirinhas,

constituindo uma rede de memórias que se filiam às matrizes culturais indígenas.

A partir desta leitura, entendemos que, para além de uma análise estética, utilitária

e artística, a cerâmica materializa a presença da tradição oral marcada, em suas inscrições,

por uma linguagem visual. Nesta interpretação, fundamentados na percepção de uma

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genealogia que se inscreve na perspectiva da descontinuidade histórica e temporal,

buscamos analisar as narrativas orais contemporâneas, contadas por ribeirinhos do Marajó

das Florestas, que não deixam de retomar e atualizar as memórias das sociedades indígenas

na floresta amazônica.

Ainda elaboramos as análises dos trajetos da conquista portuguesa no Marajó das

Florestas, a partir das condições históricas da narrativa “Ilha Encantada”, de seu Elson de

Lima Rodrigues, registrada no rio Tajapuru, apontando as guerras e as relações de poder

que entrecruzaram a história das nações indígenas marajoaras, reafirmada nas memórias

sociais dos ribeirinhos da região. Partindo dessa compreensão, a referida narrativa de

tradição oral materializa os sentidos da história local, por muito tempo, silenciada pela

história oficial constituída na escrita de documentos públicos, dos cronistas e viajantes

naturalistas que estiveram na Amazônia Paraense.

No último tópico deste capítulo, destacamos as experiências de escutas que

marcam posições dos narradores tomando como análises o comentário e a autoria a partir

da narrativa coletada “A Velha Gulosa”. Finalizamos com as análises da manifestação do

ritual antropofágico, constituindo os fios de discursividades Tupi no Marajó das Florestas.

3.1. Administração dos gestos de leitura: História e Mito

Para as ciências ocidentais, não é comum aceitar as histórias indígenas, africanas e

ribeirinhas como produção de conhecimento. Historicamente, as narrativas orais destas

sociedades ficaram vistas como a manifestação do exótico, da religião ou da arte.

Particularmente, o conhecimento ocidental institucionalizou e demarcou uma posição de

cultura inferior para estas sociedades constituídas na tradição oral em relação à cultura

civilizada e letrada do ocidente.

Seria muito ingênuo não perceber que, neste percurso do colonialismo na

Amazônia Paraense, essas formas de representação da cultura e história indígena não

tenham passado ainda pelo processo de administração destes jogos discursivos entre

verdade (história ocidental) e mentira (narrativas orais). Em relação à história indígena no

Marajó das Florestas, constituída a partir da percepção do colonizador, precisa-se refletir

sobre a construção administrativa dos gestos de leitura que fundamentam os arquivos desta

história oficial, nesse sentido, dialogamos com as análises de Pêcheux (1996, p. 57).

Seria do maior interesse reconstruir a história deste sistema diferencial

dos gestos de leitura subjacentes, na construção do arquivo, no acesso aos

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documentos e a maneira de apreendê-los, nas práticas silenciosas da

leitura “espontânea” reconstituíveis, a partir de seus efeitos na escritura:

consistiria em marcar e reconhecer as evidências práticas que organizam

estas leituras, mergulhando a “leitura literal” (enquanto apreensão-do-

documento) numa “leitura interpretativa” – que já é uma escritura. Assim

começaria a se construir um espaço polêmico das maneiras de ler, uma

descrição do “trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele-

mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em

perpétuo confronto consigo mesma”.

Desta forma, é preciso compreender como se estruturam os discursos cujos

arquivos foram constituídos pela memória histórica para demarcar as posições de uma

cultura superior e inferior. No arquipélago do Marajó, o sistema colonial se ocupou de

administrar estes gestos de leituras que tinha na escrita dos cronistas e viajantes sua

materialidade mais relevante, já que as narrativas orais de sociedades indígenas e africanas

eram inferiorizadas. Contemporaneamente, esta visão ocidental compõe também a forma

de interpretar as histórias de sujeitos “ribeirinhos” do rio Tajapuru, à medida que são

classificadas e reguladas como exóticas, sem memória e a-históricas.

Há uma ordem histórica sustentada pelas concepções de muitos pesquisadores que

institucionalizados pelas universidades, centros de pesquisas e investidos de autoridade

acadêmica reforçam o estudo da cultura indígena como mito. Neste lugar de fala, são

significativas as interpretações de Detienne (1992, p. 16).

Como se instaura o saber que quer falar dos mitos e que, a partir do

século XIX, pretende fundar uma ciência dos mitos, “enfim considerados

em si mesmos”? Essas questões podem ser formuladas de maneira

diversa: quem empresta voz à mitologia-ciência? E de onde ela fala?

Como, através de quais práticas esse saber demarcou seu território?

Depois de que rupturas ele tomou forma?

Detienne desconstrói o sentido histórico de mito como uma categoria “natural”

das narrativas orais datada do século XIX nas cátedras da Europa e suas formulações

evidenciam como as ciências, Mitologia Comparada e a Antropologia, definiram os seus

lugares de fala sobre as narrativas. Nesses campos de saberes, a linguagem foi utilizada

como estratégia para associar a verdade ao poder da escrita e nesta divisão, caberia aos

historiadores a história europeia, colonizada, com os rituais da palavra escrita. O saber que

se institui como verdade e como poder.

O jesuíta João Daniel (2004b, p. 265-266), em registro sobre a origem dos índios

do Amazonas apresenta um olhar de onde vieram estas sociedades e como ficaram

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conhecidas historicamente no período colonial. Esta memória histórica instituiu os gestos

de leituras para compreender ainda as nações indígenas na Amazônia Paraense.

Há muitas opiniões sobre a origem dos índios, de quem descendem,

donde e quando foram para a América. O padre Gumilha na sua História

do Orinoco ilustrada e outros escritores são de parecer que eles são

descendentes de Cã, ou Canaã filho, ou neto de Noé, a quem este deitou a

maldição pela falta de modéstia, e reverência devida ao tal bom velho

Noé, pai do mesmo Cã. E trazem para corroborar esta sua opinião muitos

e vários fundamentos dos quais o principal é: porque nos índios da

América se têm observado os efeitos da maldição de Noé, que são o

serem servos e escravos dos mesmos escravos, que deu ao seu neto

Canaã, filho de Cã, disse que seria servo dos servos de seus irmãos –

maledictus Chanaan servus servorum erit fratibus suis (o maldito Canaã

será servo dos seus para seus irmãos).

A grande preocupação sobre a origem indígena na América enveredou pela

regulação de leituras filosóficas dentro do campo da religião. A gênese do homem,

estabelecida pelo cristianismo, universalizou valores religiosos e etnocêntricos dissidentes

das concepções indígenas que recepcionavam estas mediações culturais. Na Amazônia

Paraense, com o eurocentrismo do processo de colonização, as transferências de maldições

e castigos semearam também formas desumanas e preconceituosas de ver a cultura do

outro. E mais, produziram uma história em que o sistema religioso cristão funcionava

como poderoso dispositivo discursivo dos gestos de leitura, que classificava a natureza

humana da origem entre aqueles que poderiam ser servos, escravos e servidos.

As histórias construídas a partir dos registros dos cronistas e apoiados pelo Estado

português apontavam apenas a visão do colonizador europeu. Os portugueses pela

catequese e o sistema colonial impuseram o controle dos gestos de leitura da história e

cultura com base em princípios do mundo ocidental, como esclarece Neves (2009, p. 64).

Durante séculos, a Igreja Católica e o Estado português, seguido pelo

brasileiro administraram nossos “gestos de leitura” em relação à

catequese e à colonização. Colocaram em circulação suas próprias

versões da história, que, ainda hoje, sem muita dificuldade, pode ser

verificada nos livros, ou, para ser mais contemporânea, em qualquer

busca no Google.

Na palavra escrita ocidental se materializou a verdade sobre muitas histórias dos

povos conquistados na Amazônia Paraense. Em muitas, foi deixada à margem do saber a

tradição oral de nações indígenas ditos “ágrafos” consideradas de pouca relevância

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histórica, cultural e social. A civilização letrada que se implantou, com o colonialismo,

desprestigiou as narrativas orais, os costumes e as crenças.

Aqui, fundamentado em Neves (2009, p. 100), defendo a posição de que as

narrativas orais não são mitos, mas constituem a história dos povos indígenas ou

acontecimentos históricos que eles tiveram como experiência.

Para as ciências ocidentais, as sociedades indígenas são a-históricas e

devem ser compreendidas apenas em suas manifestações culturais.

Embora rotuladas como mito, as narrativas orais indígenas são o

conhecimento histórico destas sociedades, a forma como narrativizam

suas experiências, organizam seus conceitos.

Na história ocidental, as narrativas indígenas foram classificadas como mito e

manifestações exóticas da arte e religião esvaziada de sentido histórico para o europeu,

mas cheia de significação para as culturas de tradição oral. É nestes rastros dos gestos de

leitura da história que elas materializam que procuramos fazer nossas análises.

3.2. A presença indígena marajoara na linguagem visual

Na Amazônia Paraense, o cenário das pesquisas sobre a cerâmica aprofundou-se

com as análises de Denise Schaan, pesquisadora que se dedica nas áreas de investigação

relacionadas à arqueologia da paisagem, cultura material, patrimônio cultural e arqueologia

pública. No arquipélago do Marajó, os tesos, a cerâmica marajoara e as localizações de

sítios arqueológicos fomentam o desenvolvimento das interpretações da história indígena

local na concepção desta arqueóloga (SCHAAN, 1996; 2009; 2010).

Neste cenário marajoara, as descobertas de sítios arqueológicos evidenciam como

a “arqueologia na Amazônia nasce com a descoberta dos cemitérios indígenas do Marajó

dos Campos, onde colinas de terra com até 12 metros de altura abrigavam os vestígios”

(SCHAAN, 2010, p. 8). No Marajó das Florestas, a cidade de Melgaço e o rio Tajapuru

fizeram parte também dos circuitos destas pesquisas arqueológicas entre julho de 2008 e

fevereiro de 2009, mesmo que os pesquisadores encontrassem objetos indígenas, no final

do século XIX, na parte oriental do arquipélago, inicialmente, no Lago Arari. Isso explica

os motivos dessas investigações entrarem na paisagem natural dos campos e florestas em

busca de utensílios da cultura indígena da localidade.

As análises construídas a partir do estudo da cultura material indígena, tanto na

região dos campos quanto na região de florestas, possibilitou contribuições históricas em

diferentes interfaces culturais e permitiu reconstituir e relatar antes do contato com povos

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do ocidente como a “cultura marajoara que florescia nos diversos cacicados que

competiam por poder e prestígio, atingiu um dos mais notáveis desenvolvimentos culturais

das Américas” (SCHAAN, 2009, p. 8). Para Schaan (2009, p. 34-35), o modo como cada

povo inscreveu sua história e cultura nestes artefatos definiu uma linha cronológica.

As diferenças entre os estilos cerâmicos produzidos por este povos

levaram os arqueólogos Betty Meggers e Clifford Evans, a classificá-las

como pertencentes a diferenças “fases cerâmicas”. As populações foram

então referidas como pertencentes às fases Ananatuba, Mangueiras,

Formiga, Marajoara, Acauã (não datada) e Aruã, algumas das quais foram

contemporâneas, conforme a linha cronológica (...) que vai de 1.500 antes

de cristo até o século XVIII.

Nesse sentido, a partir desta concepção epistemológica da arqueologia, que é

majoritária nos estudos sobre os Marajós, há uma concepção, de certa forma, linear da

história, uma vez que ela se ocupa em classificar as peças a partir de um tempo

cronológico e considerando apenas os estilos das cerâmicas (figura 16).

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Figura 16: Cronologia da historiografia arqueológica na Amazônia

Revista Amazônia Viva, março – 2012

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Essa continuidade histórica que organiza e classifica os modos de vida e a cultura

das sociedades conforme o tempo em dada época se inscreve na cerâmica. Mesmo que o

estabelecimento desta ordem temporal e historiográfica seja hoje a principal referência de

conhecimento a respeito das diferentes nações indígenas no arquipélago do Marajó, ela

possibilita ainda interpretar a cerâmica como suporte das narrativas de matrizes culturais

de tradição oral. Deste modo, os discursos colocados em circulação entre as sociedades

indígenas e a cerâmica marajoara são tão fortes, que em sites de busca como Google, ela

passou a ser vista como a identidade e a história indígena regional.

As circulações das imagens da cerâmica marajoara nos meios de comunicação -

sites, blogs, redes sociais, reforçam ainda mais a ordem discursiva de que a única fonte

desta cultura se inscreve na identificação dos sítios arqueológicos no Marajó. Deste lugar

de onde fala as pesquisas arqueológicas é provável que estes artefatos permitam chegar às

origens da história destes povos, de acordo com Schaan (2009, p. 38).

A cerâmica marajoara tornou-se um símbolo do estado do Pará, porque

representa a cultura nativa da região. Os remanescentes arqueológicos são

importantes justamente porque, através deles, podemos conhecer o

passado e buscar as origens de nossa cultura.

Em Melgaço, a descoberta de objetos pré-coloniais reordenou novos olhares

arqueológicos sobre a cultura material produzida por povos indígenas que habitaram a

Figura 17: Cerâmica marajoara na internet

Fonte: Google/imagem - 2011

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região anterior e posterior ao contato, quando foram encontrados sítios arqueológicos,

sambaquis, vasilhas, garrafas, moedas referentes às relações sociais com o ocidente.

Inclusive, no final de 2012, ocorreu uma escavação na cidade onde iria ser erguida a antena

de telefonia celular da Vivo. Provavelmente, neste local, pode ser construído o primeiro

Museu de Arqueologia do Marajó.

As descobertas possibilitaram desenhar o inventário de uma cartografia

arqueológica no século XXI no Marajó das Florestas. De fato, no campo arqueológico, os

utensílios encontrados são achados minuciosos que permitem a reconstituição em termos

culturais, sociais, político e religioso dos povos que habitavam a região marajoara

(MEGGERS e EVANS, 1957; FERREIRA PENNA, 1973b; SCHAAN, 1996; MARTINS

et. al. 2010).

Nossa perspectiva, no entanto, vai se interessar por outras representações que

materializam a presença indígena, no Marajó das Florestas, deste início de século, nas

narrativas orais contemporâneas, contadas pelas populações ribeirinhas.

Figura 18: Imagens de sítios arqueológicos em Melgaço.

Fonte: Schaan e Martins (2010, p. 98)

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3.2.1. Continuidades e descontinuidades da história: entre cerâmicas e narrativas

Como já explicitado no primeiro capítulo, nossa relação com a região na condição

de melgacense, de professor e pesquisador nos coloca em outra perspectiva teórica, pois

entendemos que as narrativas contemporâneas retomam e reatualizam, a partir de uma

cosmologia que está mais próxima das tradições indígenas, uma série de acontecimentos

históricos, hoje, presente nas práticas culturais dos ribeirinhos. Nesse cenário, são

inegáveis as contribuições da arqueologia à historiografia marajoara, mas as análises

arqueológicas têm mostrado seus limites quando restringe desde o século XIX ao século

XXI a presença indígena à cerâmica marajoara e aos inventários de sítios arqueológicos na

região. Neste campo do conhecimento, “gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se

encontravam em estado de perfeição” (FOUCAULT, 1979, p. 18), no qual as análises

arqueológicas reconstroem um princípio, meio e fim, ou seja, uma história que remonta à

origem de uma sociedade em dada época.

Baseando-nos em Foucault (2010, p. 14), entendemos que há uma crítica quando

esta genealogia arqueológica envereda para interpretações da “história das continuidades”.

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do

sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a

certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma

unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a

forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas

coisas mantidas a distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre

elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise

histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito

originário de todo o devir e de toda prática são duas faces de um mesmo

sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de

totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência.

Trata-se de determinar um tempo contínuo na perspectiva ocidental em que se

coloca na ordem discursiva a instituição das fases cronológicas da história. Em particular, a

temporalidade das etapas da cerâmica marajoara marca a “origem desse povo e a razão de

seu desaparecimento” (SCHAAN, 1996, p. 9). Aqui, o estudo da presença indígena Tupi

nas narrativas orais apresenta uma descontinuidade em relação a esta cronologia linear. A

constituição histórica das narrativas que atravessam a memória dos moradores se

desamarra dos laços da “história contínua”, que administra o sentido do tempo restrito à

produção da cultura material e à história indígena inscrita nela.

Nesse aspecto, Foucault, em sua análise em Nietzsche, a Genealogia e a História

(1979, p. 34-35), propõem uma nova perspectiva para pensar a constituição da história.

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A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as

raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela

não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa

primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela

pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessaram.

Foucault, a partir das reflexões nietzschianas, não pensa a genealogia como um

método de estudo das origens históricas, mas utiliza esta perspectiva para trazer os saberes

locais, destituídos ou deixados às margens das análises científicas. Em relação aos estilos

da cerâmica marajoara, a referência de estudo não é mostrar que os resíduos do passado

ainda estão lá, nestes artefatos, objetos utilitários e estéticos, conservados pela consistência

da sofisticação técnica, método já aplicado pela arqueologia. Trata-se de compreender,

nesta descontinuidade histórica e temporal, como os desenhos observados na cerâmica

ressignificam-se na memória social dos sujeitos e produzem sentidos com dissidentes

versões de histórias relacionadas às matrizes culturais de tradição oral.

Nas inscrições da cerâmica aparecem incisões iconográficas de cobras, jabutis,

jacarés, corujas, águias, urubu-rei, tartarugas, antas, macacos e pássaros. Estes seres da

natureza compõem a linguagem visual e permitem leituras de figuras antropomórficas,

zoomórficas e geomórficas que retomam fios de memórias que atualizam cosmologias dos

povos indígenas da região. Particularmente, voltamo-nos para os sentidos cosmológicos

atribuídos a cobra dentro desta concepção indígena marajoara. A imagem da cerâmica

(figura 19), a seguir, é um vaso antropomorfo de 21 cm, datado entre 400 a 1400 a.C.

Figura 19: Vaso antropomorfo marajoara 400 a 1400 a.C.

Fonte:

www.museunacional.ufrj.br/MuseuNacional/arqueologia/ARQUEOBRA/CULTMARAJO.ht

mn. Acesso em 25/01/2013.

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Essa peça é de uso cerimonial elaborada em forma de relevo, o tema da cerâmica

são duas cobras, réptil bastante recorrente na iconografia marajoara. As incisões permitem

leituras que compõem uma face humana. Na interpretação da peça, as duas cabeças

representam os olhos. O corpo é talhado em típicas sobrancelhas com o formato da letra V.

A presença de um botão justaposto as duas caudas, deixa ver a imagem de um nariz. No

bojo da cerâmica, parte superior, é banhada em branco e decorada com formas geométricas

incisas. Quando deixamos de analisar apenas os aspectos estéticos e abrimos nosso olhar

para os sentidos históricos dos desenhos talhados por meio de incisões17

percebemos que

estas linguagens visuais estão encharcadas de narrativas de “tradições orais” e a cerâmica

marajoara não pode “subsistir sem elas”, como explica Zumthor (2010, p. 8).

Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenharam,

na história da humanidade, as tradições orais. As civilizações arcaicas e

muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm graças a elas. E ainda

é mais difícil pensá-las em termos a-históricos, e especialmente nos

convencer de que nossa própria cultura delas se impregna, não podendo

subsistir sem elas.

Esta análise de Zumthor corrobora para situar as tradições orais como o embrião

que movimenta a constituição da cultura em uma sociedade, cuja importância não pode

ficar destituída do caráter histórico e das redes de memórias articuladas pelas relações

socioculturais que os sujeitos mantêm em seu cotidiano. Assim, a cerâmica marajoara, é

antes de tudo, produto da cultura de tradições orais indígenas que gestaram uma forma

própria de narrar e registrar suas histórias, que hoje se reafirmam e recriam-se nas

atualizações das narrativas orais em diferentes versões entre os vários rios amazônicos.

João Daniel, em seu escrito “Das cobras do Amazonas” (2004a, p. 255), relata

vários episódios relacionados a estes ofídios, pontuando desde as espécies aos sentidos

cosmológicos para a religiosidade indígena. Estas observações se localizam na região

meridional do arquipélago do Marajó, entre os rios que deságuam e se comunicam por

meio do rio Tajapuru com o lado oriental do arquipélago.

Cobras da água. São de muitas espécies, como são as referidas surucuju, e

a visguenta, mas as de que agora quero falar são principalmente as que

chamam mãe-d‟água, e mãe do peixe. A mãe do peixe é uma cobra que

vive em baias, e lagos; é cobra muito grande, e capaz de investir a

qualquer canoa. Chamam-lhe mãe do peixe porque só anda onde há

peixe, de que ela se sustenta; e na verdade para sustentar tal monstro é

17

A incisão é “técnica de gravação de peças ainda crua, não queimada utiliza-se instrumento contra a

superfície para produzir linhas ou desenhos em baixo-relevo que podem ter largura, comprimento e

profundidade diversos” (AMORIN, 2010, p. 91).

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necessário um mar de pescado; e talvez por isso não acometa as canoas, e

navegantes. A mãe d‟água é outra cobra grande que vive nos lagos

profundos e talvez por isso a chamam os índios mãe d‟água.

Neste registro do cronista, em termos da cosmologia representada, nestes répteis,

as duas cobras chamadas de mãe dos peixes e mãe das águas constituíam religiosidades

distintas na concepção indígena. A primeira cercada de peixes dos quais se alimenta e

deixa alimentarem-se; a segunda que vivia nas profundezes dos lagos e, por esta razão,

autodenominavam-na mãe das águas. Para este cronista, a religiosidade indígena,

sustentada pela autoridade dos pajés, era instituída também em função destas cobras, fontes

e domínios de seus poderes (DANIEL, p. 2004a, p. 339).

No arquipélago do Marajó, Dalcídio Jurandir no romance Três casas e um rio

(1994), retoma memórias sobre a presença da cobra, a partir do registro da narrativa de um

índio Sacaca, que conta a cosmologia da criação das curvas dos rios do arquipélago,

quando deixava o leito do rio, que chorava dizendo “não me abandones, mea cobra, me

amamenta nos teus peitos” (JURANDIR, 1994, p. 134).

No rio Tajapuru, dona Lucila Ramos da Glória, moradora local e agricultora,

conhecida também como dona Lúcia, narra um episódio em que a cobra grande encantou

uma criança no porto de uma casa.

Certa vez uma criança que estava brincando sobre a ponte, nesta

nossa época, que acontecia isso de cobras encantarem pessoas. E o

porquê ter essas coisas. É porque, nesse nosso tempo antigo, o rio

Tajapuru não tinha movimento que temos hoje, o grande movimento de

embarcações, era um subúrbio, naquele tempo. Esta criança foi encantada

por uma cobra, né? Esta cobra, ela encantou esta criança e os pais

pensavam que ele tivesse caído na água e morrido. Mas a mãe certa noite

teve um sonho, que essa visão veio dizer que a criança não estava morta.

Ela foi encantada.

Agora, se eles tivessem coragem pra desencantar o menino. Ele se

desencantava, mas marcando o horário de meio dia, uma hora...

Hoje em dia, a construção dos nossos trapiches é feito de madeira,

naquele tempo, não tinha isso. O porto era feito de miritizeiro. Então essa

visão disse que ia passar esta cobra tipo um miritizeiro e se ela tivesse

coragem de cortar a sua cauda, ela desencantaria o seu filho. Agora, só

tinha uma coisa que no desencantamento a criança ia sair assim tipo uma

escama dela né? Ai a criança ia se tornar normal, mas ela não teve

coragem de desencantar o filho. Mas por quê? Porque, nestes tempos, as

crianças viviam brincando pela beira do rio, por cima do miritizeiro e no

rio não passava tanta embarcação. Hoje em dia, passa navegando

voadeiras, navios grandes.18

18

Entrevista realizada com Lucila Ramos da Glória, 62 anos de idade, no Porto Capinal, vila Sorriso, dia 13

de janeiro de 2012, às margens do rio Tajapuru, Melgaço-Pa.

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Não tentamos buscar associações ou comparações nesta relação entre a cerâmica

marajoara e esta história de dona Lúcia, mas analisarmos as iconografias, na peça, como

portadoras de sentidos históricos dessa narrativa retomada pela memória da narradora.

Como a peça é de uso cerimonial, este ofídio representa uma intrínseca relação com o rio e

as fontes de alimentação, reprodução e fertilidade, motivo que levou os moradores locais

serem nomeados como os filhos da serpente (SCHAAN, 2007). Na narrativa de dona

Lúcia, apesar do rio Tajapuru sofrer mudanças na sua dinâmica fluvial, natural e cultural, a

cobra manifesta-se dentro de uma cosmologia indígena que materializa não apenas na

cerâmica, esta relação antropomórfica, porém a própria constituição do encantado produz

os novos sentidos desta aglutinação entre homem e natureza, tempo e espaço.

Por esta ótica, é inegável a particularidade histórica da cobra nas sociedades

indígenas de tradição Tupi. Na narrativa “Como apareceu a noite”, registrada por

Magalhães (1975), das profundezas do rio amazônico, espaço escuro, ela envia a noite para

sua filha, casada com um índio, possibilitando a divisão do dia e da noite. Na leitura dos

índios Aikewára sobre as constelações, a cobra aparece no céu sul, que nas estações do

ano, está relacionada ao período da colheita das plantações e dos frutos (CORRÊA, 2004).

Práticas sociais como ler na natureza os tempos de plantar e colher, obedecer aos

ciclos da água, pescar, caçar conformam as frestas discursivas desta cosmologia indígena,

atualmente resistindo e negociando espaços com os serviços de transportes, o sistema

capitalista de produção e processos de globalização da informação como conta dona Lúcia.

Este saber de tradição oral apreendido na convivência entre o homem, a floresta, os

animais e os rios amazônicos se arrasta por séculos, entrecruzando-se com as práticas

culturais das populações marajoaras reconhecidas institucionalmente como ribeirinhas.

3.3. Rotas da conquista portuguesa pelo Marajó das Florestas

Embora a história narrada desde a colonização sobre o Marajó das Florestas

tivesse como um dos seus principais narradores o colonizador, os caminhos desta

investigação a respeito das narrativas orais apontavam outra forma de olhar estes

acontecimentos discursivos, visto a partir das perspectivas históricas, em particular, dos

sentidos sociais, conflitos culturais e ideologias eurocêntricas que marcavam a história

indígena atualizada nas narrativas dos moradores da região. Estas narrativas traziam as

memórias daquelas nações indígenas marajoaras que viveram as tensas relações culturais

em tempos coloniais no arquipélago do Marajó.

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Nesse sentido, começamos uma busca em registros de atividades pedagógicas,

diários de campo e relatórios entre os anos de 2004 a 2010 sobre as narrativas de distintas

comunidades de Melgaço. Um destes materiais mais significativo, para esta pesquisa, foi

uma hemeroteca19

elaborada com sessenta e uma (61) narrativas registradas entre os

narradores das Comunidades Nª. Srª. do Perpetuo Socorro (rio Tajapuru), São Francisco

(rio Tajapuru), Ilha da Salvação (rio Ipiranga), Divino Espírito Santo (rio Anapu) e Santa

Maria (rio Laguna) em 2008. Nessa procura, passamos a investir nelas outras análises que

se construíam com vista na afirmação identitária local, que materializasse uma memória

capaz de pensar esse lugar constituído pela história indígena.

Durante este percurso, não imaginávamos aparecer nas histórias registradas

sentidos sociais que nos fizessem repensar o rio Tajapuru como parte da história na

colonização do Marajó das Florestas. Era preciso analisar a constituição histórica das

narrativas, para entender as distintas posições dos sujeitos, porque elas revelavam

sutilmente enunciados em seus discursos, que fugiam de uma memória unicamente

individual, segundo Foucault (2010a, p. 62).

O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente

desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao

contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do

sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de

exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos.

Nesta perspectiva, a pesquisa começou a provocar reflexões sobre os discursos

colocados em circulação nas narrativas e suas relações com o processo histórico dos

sujeitos locais. Entender os fios dispersos e desconexos que ligava a memória das

sociedades indígenas à história do rio Tajapuru se transformou na configuração de redes de

memórias que se estruturam nas práticas sociais das comunidades deste lugar. A narrativa

registrada a seguir, do seu Elson de Lima Rodrigues, no rio Tajapuru, retoma a memória de

alguns acontecimentos que envolveram a população local e o sistema colonial português.

A Ilha Encantada

Era uma vez, numa festa lá no Canta Galo, na festividade Santíssima

Trindade. Na primeira noite deu muita gente. Quando estavam festejando,

lá veio um rapaz, um jovem muito bonito. Isso era lá no rio Mapuá. Olha

foi verdade isso, esse rapaz gostou da filha do dono da festa.

Ela gostou dele também e começou a indagar:

- Como é seu nome?

19

Contos da Floresta: A construção de uma hemeroteca nas vozes de alunos e ribeirinhos de Melgaço,

organizado por Silva (2008).

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Ele disse que era Raimundo Honorato. Ela começou a dançar com

ele, mas já passava de umas 11 horas para meia noite, Honorato queria

dormi. O rapaz tinha os olhos azuis. A jovem perguntou por que ele já ia

dormi. O moço respondeu que iria viajar e não podia, não podia passar da

hora, porque a viagem era longe.

O jovem tinha que está acordado mais ou menos 1 hora da

madrugada. Ele foi dirigiu-se ao local para dormi, quando ela falou:

- Por que tu não dormes aqui em terra, aqui em casa?

Ele disse que não, podia não acordar na hora certa. Eles se

cumprimentaram, a jovem atraída pelo rapaz falou que ele não se

preocupasse, pois ela chamava-o na hora certa. Ele caminhou para o

melhor quarto da casa e mandou que a moça trancasse a porta pelo lado

de fora, ela assim fez.

Quando deu a hora marcada a moça veio chamar o jovem, mas a

porta estava trancada pelo lado de dentro. Ela olhou por cima do

parapeito do quarto. De repente, ela percebeu que o quarto estava cheio

de cobra. Ela deu o alarme, na casa que estava tendo a festa, dizendo que

o quarto estava cheio de cobra.

A Cobra Grande se acordou com o alarme da moça, já era

madrugada e o galo cantava. A cobra colocou tudo no fundo e encantou

todo mundo.

Todos os anos quando chega o tempo da festa esse lugar que, foi

para o fundo, aparecia. O homem tinha encantado aquele lugar. Terminou

a história (RODRIGUES, 2008, p. 19).

Para entender os processos discursivos desta narrativa, é necessário conhecer

alguns acontecimentos históricos que constituíram o processo de colonização desta região.

No arquipélago do Marajó, a relação com o ocidente, como já referido, inicia entre os anos

de 1499 a 1500, com o navegante Vicente Yañes Pizón, que já conhecia a América desde a

viagem em companhia de Cristovão Colombo. Viajando pelo cabo que chamou de Santa

Maria de la Consolación, ancora na região noroeste do arquipélago, parte do oriente, hoje

cidade de Salvaterra, lugar onde entrou em “contato com os silvícolas e de onde leva vários

documentos da indústria indígena: utensílios domésticos de barro, fibras, além de armas e

instrumentos de músicas” (MIRANDA NETO, 1976, p. 45).

Quando a união ibérica, entre Portugal e Espanha, terminou em 1640, o

arquipélago do Marajó, chamado pelos espanhóis de Ilha Grande de Joanes, já constava

em suas cartografias náuticas de navegação. O lugar continuou com essa nomenclatura, até

meados do século XVII, quando os portugueses reivindicaram a posse de suas terras aos

colonos espanhóis, fortalecendo as fronteiras de entrada e saída do vale amazônico com

construção de fortes, conforme Miranda Neto (1976, p. 47).

Do século XVII ao século XVIII, a defesa da costa atlântica na barra de

Belém e na foz do Amazonas estava estrategicamente defendida pelo

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forte do Presépio, em Belém, construído em 1616, origem da cidade; pela

fortaleza de Santo Antônio (de origem holandesa, antiga Mariocai), em

Gurupá, construída 1623 e reconstruída em 1760, em outro local, numa

elevação que dominava a boca do rio Xingu; e finalmente, como outro

ponto deste tripé defensivo, pelo forte de São José (antigo Cumaú, de

primitiva construção inglesa), origem de Macapá, que se chamava Santo

Antônio quando existia em outro local próximo.

As rotas das conquistas portuguesas iniciaram a partir de 1616, quando fundaram

o forte do Presépio, hoje a cidade de Belém. Essa visão geopolítica do território buscava

proteger as rotas entre o Maranhão e o Grão-Pará.

Nessa faixa litorânea localizavam-se os índios Tupinambás, em grande

número. Era preciso, de um lado, garantir a navegação e seu controle

entre São Luís e Belém, assim como um caminho fluvial-terrestre, pelo

interior; e, de outro, ocupar a faixa litorânea, submetendo e/ou

pacificando os índios, pela força e pelos métodos persuasivos disponíveis

(MAUÉS, 1995, p. 39).

Montada as estratégias de ocupação, os conquistadores se prepararam para

colonizar as nações indígenas da região marajoara que resistissem ao processo de

civilização europeia. Dali a expansão ultramar entrou em outros caminhos para explorar as

riquezas, a mão-de-obra indígena e vigiar a entrada e a saída da foz do rio Amazonas. Estes

colonizadores, todavia, encontraram obstáculos para percorrer os rios do arquipélago do

Marajó visto que, na parte oriental, encontrava-se a concentração das nações dos Aruã,

Mundim, Maruanaz, Sacaca, Arari e Muaná (CRUZ, 1987) que não aceitaram

passivamente tomarem suas terras, riquezas naturais e torná-los escravos.

Já, na parte ocidental, a partir de análises da narrativa “A ilha encantada”, de seu

Rodrigues, morador do rio Tajapuru, é possível que, a perspectiva histórica do enunciado –

“Mapuá”, nome do rio onde se localiza a comunidade Canta Galo, onde se passam as ações

da narrativa, retome e atualize acontecimentos históricos que envolveram as nações

indígenas do Marajó das Florestas. Esse “enunciado, de um lado é um gesto; de outro liga-

se a uma memória, tem uma materialidade; é único mas está aberto à repetição e se liga ao

passado e ao futuro” (FOUCAULT, 2010a, p. 32).

Partindo deste entendimento, é possível que Mapuá atualize a memória, nessa

região do arquipélago, que materializa como os colonizadores portugueses enfrentaram as

resistências das sociedades indígenas Mapuá, Guajará, Aramá, Juruna, Amanajá,

Mamaianá, Anajá, Mocoões, Chapouna, Pacajá, Oriquena, Guaianase e Nheengaíba

(FERREIRA PENNA, 1973a; DANIEL, 2004a). Essas nações indígenas derrotavam os

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portugueses que tentavam dominá-los em seus territórios e incorporá-los a sua cultura

ocidental (ver figura 20).

Versões da história deste acontecimento foram registradas pelos padres cronistas

dos séculos XVII e XVIII, como Antônio Vieira e João Daniel, que em cartas e diários

relataram suas concepções sobre as nações indígenas marajoaras mergulhadas no sistema

colonial. Neste aspecto, as práticas discursivas de Vieira (1970, p. 536) construíram as

muitas representações históricas de como foi imaginado o arquipélago do Marajó e esta

batalha com as sociedades indígenas denominadas de “Nhengaíbas”.

É a ilha toda composta de um confuso e intricado labirinto de rios e

bosques espessos; aqueles, com infinitas entradas e saídas, estes, sem

entrada e nem saída alguma, onde não é possível cercar, nem achar, nem

seguir, nem ainda ver o inimigo, estando ele, no mesmo tempo, debaixo

da trincheira das árvores, apontando e empregando as suas flechas. E,

porque deste modo de guerra volante e invisível não tivesse o estorvo

natural da casa, mulheres e filhos, a primeira cousa que fizeram os

Nhengaíbas, tanto que se resolveram à guerra com Portugueses, foi

desfazer e como desatar as povoações em que viviam, dividindo as casas

pela terra dentro as grandes distâncias, para que, em qualquer perigo,

pudesse uma avisar às outras, e nunca ser acometidos juntos. Desta sorte,

ficaram habitando toda a ilha, sem habitarem nenhuma parte dela,

servindo-lhe, porém, em todas, os bosques de muros, os rios de fosso, as

casas de atalaia, e cada nhengaíba de sentinela, e as suas trombetas de

rebate.

No período dessa guerra, Vieira fez de seus relatos uma descrição da região sem

conhecer as dimensões geográficas e silenciou as características regionais, ao trazer do seu

mundo ocidental a representação dos “bosques”. Ele resumiu a região em “ilhas” e “rios”

como um labirinto. Seria ingênuo pensar que as fronteiras entre as regiões de florestas e

campos somente se romperam com guerra. Nesse caso, desconsiderar-se-iam os contatos

culturais anteriores com outras nações indígenas neste circuito. Porém, não se pode negar

que estas movimentações se intensificaram com os conflitos pelo interior do arquipélago,

que favorecia os indígenas.

Nestas expedições pela conquista da região marajoara, os portugueses sabiam

estrategicamente que era “princípio corrente que – quem tivesse a seu lado os Aruãs e

Nheengaíba, tinha também a chave do Amazonas” (FERREIRA PENNA, 1973b, p. 246).

Esta história dos roteiros da colonização portuguesa, porque compõem a historiografia

ocidental, constituídas dos escritos de cronistas e viajantes, tornaram-se os documentos oficiais

para marcar as representações da cultura colonizada.

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Em suas análises, Neves (2009, p. 32), mostra como a construção discursiva dos

registros da cultura indígena pelos cronistas e viajantes não só inventou a representação da

tradição indígena aos moldes da visão ocidental, mas “desde 1500, é contada apenas pelo foco

narrativo de quem estava no poder. Do início da colonização europeia até nossos dias, a

história viveu e vive sob a ditadura da palavra escrita ocidental, europeia, branca”. O olhar do

narrador ocidental institucionalizou na palavra o que deveria ser dito como história,

silenciando a versão indígena destes acontecimentos.

A narrativa de seu Rodrigues, morador do rio Tajapuru, é outra versão para contar

esta história, formada em cosmologia de matrizes indígenas, coloca em evidencia os sentidos

do colonialismo, a partir do catolicismo devocional, atualizando as práticas culturais da

doutrina dos missionários jesuítas e colonos. A catequese constituiu um dos grandes

dispositivos para inserir as nações indígenas na cultura ocidental cristã. Na história deste

morador local, os efeitos discursivos da presença da cobra possibilitam interpretar diferentes

concepções de mundo, se a consideramos na visão do colonizador este réptil representa a

constituição do pecado. Já, na perspectiva da cosmologia indígena, o ofídio se refere aos

tempos férteis da caça, pescaria, plantação e colheita (PACHECO, 2011b).

Contudo, os empreendimentos da colonização portuguesa estavam agenciados por

estratégias militares e religiosas que estruturavam o processo de civilização, cristianização e a

forma de exploração das riquezas naturais dos povos conquistados. Para Neves (2009, p. 32),

isso compunha os dispositivos impostos ao modo de vida das nações indígenas.

Para alcançar seus objetivos, estas instituições ocidentais criaram uma

série de estratégias de dominação, dispositivos que agenciavam a

exploração de riquezas florestais e minerais, mas que se estruturavam na

construção de cidades, na imposição de línguas oficiais, e que também

estabeleceram os processos de sujeição impostos às sociedades indígenas.

No rio Mapuá foi construído um dos primeiros aldeamentos da sociedade indígena de

mesmo nome, os Mapuá (hoje município de Breves), depois aldeia de Guaricuru (atual cidade

de Melgaço) e missão de Arucara (hoje cidade de Portel). Não é estranho observar, nesse caso,

que a maioria das cidades do Marajó das Florestas e até Marajó dos Campos, é de

denominação homônima a de cidades portuguesas. Heranças históricas desse período colonial

que redimensionaram a cultura indígena pela imposição da língua, construção de aldeamentos

e nomeações de origem portuguesa a partir das políticas pombalinas. Uma conquista nada

pacífica articulada, através de um jogo de força que inicialmente exerciam as resistências

indígenas já que tinham o conhecimento da geografia e floresta local.

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Figura 20 - Mapa Marajó das Florestas

Fonte: Google/ mapa – programação cartográfica Pedro Leal

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Mesmo que resistissem aos conflitos armados com os portugueses, os Aruã foram

uma das primeiras nações indígenas do oriente marajoara a serem colonizados. Dessa

região, seguiram, conforme o mapa, para o ocidente marajoara à medida que navegavam

pela baia do Guajará rumo ao rio Pará tomando posse de sua extensão em meio às muitas

guerras com as sociedades indígenas locais. Eles viajaram pelas águas da bacia do

Tocantins até chegar à Baia das Bocas, na Mesorregião dos Furos de Breves, onde se

localizam atualmente as cidades de São Sebastião da Boa Vista, Curralinho e Breves; e na

parte noroeste, na Microrregião de Cametá, onde hoje é a cidade de Oeiras do Pará.

Os portugueses vieram nesta investida colonial e viveram quase sempre uma

verdadeira encruzilhada na região, mesmo apoiados pela nação Tupinambá. Como as

nações indígenas Mapuá, Guajará, Aramá, Juruna, Amanajá, Mamaianá, Anajá, Mocoões,

Chapouna, Pacajá, Oriquena, Guaianase e Nheengaíba eram numerosas, “impediam o

trânsito para o Amazonas com tal atrevimento e coragem” que o Governador do Pará

“organizou uma tropa e mandou bater os selvagens”, mas eles com “destreza e astúcia se

portaram que a expedição voltou derrotada ao Pará” sob o comando do Capitão Pedro

Teixeira (FERREIRA PENNA, 1973b, p. 246).

A partir destes acontecimentos discursivos da narrativa contada por seu

Rodrigues, é significativo pensar que a história da colonização não foi um acontecimento

homogêneo em todo o território brasileiro, embora apresente alguns traços semelhantes

como os projetos de civilização e catequização das nações indígenas. Na Amazônia

Paraense, especialmente, no Marajó das Florestas, interessava ao colonialismo português

articular e integrar a livre passagem da entrada do rio Amazonas pelo forte do Presépio até

o estuário Amazônico por meio do rio Tajapuru.

A obstrução deste circuito que possibilitava explorar as matérias-primas da região

amazônica como madeira, cacau, tabaco e a produção de açúcar (ACUÑA, 1994) viajando

pelo Marajó das Florestas, na parte ocidental, significaram um grande obstáculo para o

projeto de colonização. Para Mignolo (2003, p. 99) os “projetos globais, em outras

palavras, são fermentados, por assim dizer, nas histórias locais dos países metropolitanos;

são implementados, exportados e encenados de maneira diferente em locais particulares”.

As sociedades indígenas resistiram criando táticas de combates para impedir a integração

destas fronteiras comerciais na Amazônia. .

Nas leituras das crônicas a respeito das nações indígenas, mais precisamente no

rio Tajapuru, destacam-se os registros do cronista João Daniel (2004b, p. 368-369). No

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relato do cronista, atestam-se os intensos combates bélicos portugueses, aliados a nação

Tupinambá, contra os arcos, flechas e taquaras das nações indígenas que dominaram esse

território no Marajó das Florestas. Essas sucessivas batalhas, se tomada com referência a

interpretação deste padre jesuíta, apontam que estes povos foram desde o século XVII,

gradativamente, desestruturada pelo colonialismo português.

Expediam-se tropas contra eles, mas os nheengaíbas, quais os muras, de

quem já falamos, zombavam das tropas, escondendo-se por um labirinto

de ilhas, e de quando em quando dando furiosas investidas, já em ligeiras

canoinhas, que com a mesma ligeireza com que de repente acometiam,

com a mesma se retiravam, e por entre as ilhas se escondiam as balas, e já

de terra encobertos com as árvores, donde despediam chuveiros de

frechas e taquaras sobre os passageiros e navegantes, que além do risco

da vida, se viam impedido de navegar o Amazonas, para onde não tinham

outro caminho, senão pelo perigoso furo de Tojipuru [Tajapuru].

Nessa trajetória histórica do rio Tajapuru, o colonialismo situa-se no âmbito da

interioridade de sua formação e expansão para consolidar um projeto de colonialidade/

modernidade (MIGNOLO, 2003) apoiada por prerrogativas eurocêntricas. Contudo,

Mignolo permite analisá-lo ainda do ponto de vista exterior e marginal na constituição das

tensões culturais. Estas conquistas globais em culturas locais podem ser explicadas pela

condição histórica da narrativa, visto que se trata de uma história do contato com a cultura

ocidental. Nesta perspectiva, as descrições do jovem de “olhos azuis” retomam posições

ideológicas de uma ótica etnocêntrica que coloca no epicentro da cultura o modelo de

civilização do homem europeu.

No cenário destas constantes guerras o colonialismo, não só representou o

processo de civilização e dominação pela língua como fizeram posteriormente os jesuítas,

porém a coerção pelas armas de fogo (NEVES, 2009). As nações indígenas resistiram à

força das arcabuzes portuguesas o quanto poderam e não abriram passivamente este

circuito amazônico pelo rio Tajapuru ao domínio comercial português. Nessas relações de

poder estabelecidas pela diferença colonial na Amazônia Paraense é válido acompanhar

conceituações dessa determinação “belicosa” na ótica foucaultiana.

A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não

linguística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem

“sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao

contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em menores detalhes,

mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas

(FOUCAULT, 1979, p. 5).

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A resistência que fez parte da história colonial, no Marajó das Florestas, longe de

ser entendida apenas como mitos ou lendas, pelas relações de poder está diretamente

relacionadas às distintas lutas de enfrentamento. As “estratégias” coloniais determinadas

pelas hostilidades da guerra desvelam como funcionaram as “táticas” indígenas que se

opuseram à visão eurocêntrica que se instalava pelas armas. Nesse caso, as estratégias dos

colonizadores são vista aqui como “lugar suscetível de ser circunscrita como algo próprio e

ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos e ameaças”

para dominar as nações indígenas. Já as táticas indígenas constituem ações calculadas

“dentro do campo de visão do inimigo” (CERTEAU, 2002, p. 99-100) cujo objetivo volta-

se para a resistência e o conflito resultante da estratégia portuguesa.

As guerras duraram duas décadas (1639-1659) e seus efeitos de sentidos são

retomados, contemporaneamente, na narrativa do seu Rodrigues, à medida que permite

pensar a constituição histórica do rio Mapuá no Marajó das Florestas. Esse lugar foi o

cenário onde ocorreu o tratado de paz entre as nações indígenas e os colonizadores deixa

ver a sua singularidade histórica na Amazônia Paraense. Este processo de paz registrado na

carta de padre Antônio Vieira (VIEIRA, 1970), dirigida a Dom João VI, umas das

principais fontes documentais, resultou na fabricação discursiva do começo da “invenção

do índio”, como analisa Neves (2009), também forjada no Marajó das Florestas.

Na versão da história ocidental, a carta de Vieira, os registros de João Daniel e

Ferreira Penna são vistos como documentos históricos na região. A escrita desta época

constitui a memória histórica. Para Halbwachs (1990, p. 100),

A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na

memória dos homens. No entanto, lido nos livros, ensinados e aprendidos

nas escolas, os acontecimentos passados são selecionados, comparados e

classificados segundo necessidades ou regras que se impunham aos

círculos dos homens por muito tempo foram seu repositório vivo.

A constituição da história oficial, na visão do colonizador, compõe-se da sucessão

e síntese dos acontecimentos mais relevantes na vida de uma sociedade. O narrador registra

e distribui os fatos conforme critérios de continuidade dos registros. No período colonial,

pela lente do colonizador, escrever a história era uma lógica imposta à escrita, à

colonização e às expedições realizadas. Na ótica do narrador português, deturpava-se a

imagem dos indígenas, que foram classificados como não civilizados e sem escrita, suas

narrativas foram vistas como mitos e não como história.

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Os acontecimentos que retoma esta narrativa constituem outra maneira de olhar

para a versão da história ocidental institucionalizada na palavra escrita. Deste modo, o

dizer um enunciado de um momento histórico - “Olha foi verdade isso”, desestabiliza o

sentido de verdade atribuído unicamente à escrita ao atualizar, a partir das tradições orais

de matrizes indígenas, os efeitos históricos dos conflitos vividos em contado com a cultura

ocidental. Esta memória posta em circulação, no cotidiano do rio Tajapuru, reafirma ainda

o circuito da movimentação de uma parcela dos índios Mapuá (município de Breves) para

a missão de Guaricuru (atual cidade de Melgaço).

3.3.1. Os caminhos do aldeamento: Do rio Mapuá à aldeia de Guaricuru

O município de Melgaço se configura como um dos territórios onde habitavam a

antiga aldeia de Guaricuru, transformada em vila em 1759. Muito índios viviam na área

periférica da aldeia, por não aceitarem a política catequética dos religiosos. As diretrizes

do sistema colonial permitem entender a posição da sociedade ocidental em pleno processo

de ocupação e imposição de valores culturais quando passou a delinear a memória oficial e

a silenciar as populações indígenas de matrizes Tupi.

No decorrer da leitura dos escritos do padre João Daniel, nesta pesquisa, ficava

evidente que o deslocamento da missão do rio Mapuá para a Ilha de Guaricuru

concretizava o avanço das fronteiras coloniais. Essa mudança consistia na abertura da

navegação pelos estreitos de Breves e a expansão do catolicismo nas entranhas da floresta,

para conquistar almas nativas entre as nações indígenas locais. Essa posição particularizava

a participação de Melgaço na história regional da Amazônia, que se entrecruzava pelos rios

e florestas, entre Mapuá (no município de Breves-Pa) e ilha de Guaricuru (no município de

Melgaço-Pa). O padre jesuíta quando esteve na Amazônia, registrou estas memórias.

Muito contente os recebeu aquele zeloso missionário [refere-se ao padre

Vieira] e depois de os animar e confirmar os aldeou no sítio chamado

Mapau [atualmente Mapuá, município de Breves], em que lhe pôs

missionário. Depois se mudou esta missão para ilha de Guaricuru,

dedicada com uma boa igreja ao Glorioso São Miguel; e ficou expedida a

passagem, e navegação do rio Amazonas, e franca a porta para a extração

dos seus muitos haveres, e riquezas, com que tanto se enriquecem os

portugueses. Mostraram-se estes muito agradecidos ao grande Vieira, por

ter alcançado só o que eles nunca puderam acabar com as armas, e com as

mortes (DANIEL, 2004a, p. 370).

O aldeamento de Guaricuru construído no lado direito da igreja de São Miguel,

marca historicamente o início do culto ao padroeiro hoje de Melgaço (figura 22), mas

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traduz os discursos que assinalam a inserção do município na histórica conquista do rio

Amazonas, e os muitos silêncios dessa singularidade histórica na região. Nessa ótica, a

Companhia de Jesus instalou o seu poder para dominar os indígenas arredios à catequese e

começou a construir sobre a história local uma memória sacra da missão de Vieira, a partir

de agosto de 1659, com o tratado de paz, no Marajó das Florestas. Contudo, não se pode

esquecer que a bravura do “grande Vieira” escondia nas bordas dessa conquista, os

interesses econômicos e religiosos do sistema colonial português.

A fotografia mostra a histórica igreja de São Miguel Arcanjo e no lado direito

onde aparecem algumas casas populares, era o local onde ficava a missão de Guaricuru,

aldeamento dos Mamaianase, Chapouna, Nheengaíba e uma parte dos indígenas da nação

Mapuá que vieram constitui a nova missão naquele tempo. Essa visão geopolítica da região

ampliava as estratégias de dominação e poder com a aldeia de Guaricuru em vista do fim

da guerra entre as nações indígenas e colonizadores em 1659. Isso refletia na livre

circulação da produção de extração das drogas do sertão, cultivo de mandioca e cana-de-

açúcar. A mão-de-obra que produzia estas fortunas eram os indígenas deste aldeamento,

como expõe o padre Daniel (2004b, p. 392-393).

Acima cousa de dia e meio ou dous dias de viagem, está a vila de

Melgaço da parte de oeste sobre uma grande baia, que do nome da vila,

Figura 21: Frente da igreja de São Miguel Arcanjo - 2012

Foto: Shirley Penaforte

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quando missão, se chamava a baia de Guaricuru. Tem uma bizarra igreja,

e uma bela galeria para a residência do seu pároco. Compõe-se esta vila

de índios nheengaíbas e mamaianases, e alguns poucos chapounas. O seu

terreno é uma ilha que tem em frente a dita baia, e um furo para o

Tajupuru; pelo norte tem outro bastantemente largo e fundo para a banda

de oeste, que a divide do mais terreno, e vai sair pela parte do sul nas

mesmas cabeceiras da sua baia. É muito farta, e muito sadia, porque

muito lavada dos ventos.

Mesmo que os índios Mapuá e os Chapounas sejam citados para mostrar a

quantidade destas nações que sobreviveram às constantes guerras de 1639 a 1659, não

podemos esquecer-nos de que os Mamaianase, Nheengaíba e Chapouna dominavam toda a

extensão oeste e parte do sul de Melgaço. Essa localização da cidade, quando aldeia de

Guaricuru, coloca em destaque a importância histórica que sempre teve o rio Tajapuru para

o rio Amazonas e Marajó das Florestas. Na região oeste de Melgaço, no rio Tajapuru,

concentravam-se parte destas nações que se uniram na guerra contra os portugueses.

Na parte oeste do município, entre as diversas e diferentes nações indígenas

apenas os Nheengaíba e os Mamaianase são sociedades particularizadas, por suas

habilidades nas guerras contra os portugueses e as resistências aos modos de vida dos

colonizadores depois que foram aldeados na missão de Guaricuru, de acordo com os

relatos do cronista Daniel (2004a, p. 371).

Aliados dos nheengaíbas, e [viz]inhos das mesmas terras, e depois

companheiros na mesma missão, são os índios mamainases, insignes

nadadores, e muito amigos da caça. Como aliados dos nheengaíbas, e

vizinhos nas mesmas ilhas, os ajudaram muito nas prolongadas guerras

contra os portugueses; mas finalmente com eles se acomodaram e

aldearam. [...] Como no seu modo de remar dobram os corpos quando

lhes parece o dobram de modo que mergulham, indo de cabeça abaixo, o

remo nas mãos, e vão surgir abaixo a uma boa distância; depois ou se

encostam à terra, onde fazem uma ligeira jangada, ou, servindo-se do

remo do barco, navegam para sua aldeia. Também quando lhes parece

desertam da aldeia, e se vão meter e esconder nos matos, principalmente

quando se temem de alguma tropa, ou serviço maior, que muitas vezes se

oferece. [...] São excelentes caçadores, e fura-mato, e os melhores

pescadores, quando querem; porém não querendo, se escondem, e fazem

jejuar os missionários.

Embora a memória que retoma o enunciado nheengaíba esteja articulada aos

discursos de uma língua vista como complicada e termo usado para homogeneizar as

distintas nações indígenas marajoaras, neste relato, a construção discursiva do cronista

Daniel deixar ver as peculiaridades das práticas culturais dos Mamaianase. Os indígenas

desta nação tinham destrezas físicas para nadar, pescar, caçar, construir jangadas e eram

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exímios conhecedores dos trajetos dos rios e florestas. Estas habilidades, constituídas em

contato com a natureza, favoreciam as resistências no aldeamento fossem para trazer os

alimentos dos jesuítas ou para trabalhar compulsoriamente com os portugueses.

Neste cenário, não podemos olvidar que as guerras bélicas trouxeram a dizimação

e as doenças transmitidas pelos colonizadores como fortes armas de extermínio desses

indígenas na condição de sociedade organizada. Em finais do século XVIII, o padre Daniel

(2004a, p. 368) descreve o fim do aldeamento de Guaricuru e Arucara.

A nação nheengaíba habitava, como em terras, e pátrias sua grande ilha

do Marajó, e mais ilhas adjacentes para a parte do Sul desde a baia de

Parau [atualmente Parauaú, município de Breves] até o estreito do rio

Tajupuru [atualmente, Tajapuru, município de Melgaço]. É muito

estendida e populosa esta nação, ainda que já hoje apenas existem as suas

relíquias nas missões de Guaricuru, e Arucara, onde se aldearam

(DANIEL, 2004a, p. 368).

Os relatos do padre João Daniel desloca-se para o passado ao mostrar a extensão

que dominava os Chapouna, Mamaianase e Nheengaíba, no Marajó das Florestas,

especialmente da baia de Parauaú até o território no estreito do rio Tajapuru que

impulsionaram as ambições portuguesas pela conquista do local. Por outro, ele apresenta

no presente, do seu tempo (1760-1780), a desestruturação dessas nações indígenas das

aldeias de Guaricuru e Arucara (cidade de Portel) onde habitavam os Pacajá, Mamaianase,

Oriquena e Guaianase ao mencionar as relíquias que restaram na região.

Em sua viagem pelo Marajó das Florestas em meados do século XIX, Ferreira

Penna (1973a, p. 107), ainda encontrar as ruínas desta missão de Guaricuru e faz uma

descrição física da composição do aldeamento.

Anexas à igreja e a seu lado direito estão ainda as ruínas do velho

convento ou colégio dos missionários, mas já desabado em sua maior

parte. Era todo construído de madeiras, inclusive as paredes que eram

embarreadas. Do colégio passava-se ao convento por duas portas, uma

das quais parece que era secreta. Os dois altares laterais da igreja foram

recentemente pintados de novo com tintas vermelhas, amarela e verde,

tintas que segundo se me informou, foram adotadas para robustecer mais

a fé em certa classe de habitantes pouco civilizada (tapuia) e atraí-la

assim a igreja. Os tapuios (índios) têm com efeito grande predileção pelas

cores vivas.

Contemporaneamente, o cenário espacial de Melgaço é bem diferente daquele

onde se estabeleceu o colonialismo português. A cidade se encontra transformada em sua

paisagem natural pela incorporação dos meios de comunicação, o aumento da densidade

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populacional e mudanças físicas operadas pelo planejamento urbano. Porém, a igreja de

São Miguel Arcanjo, Patrimônio Cultural de Melgaço, deixa ver como a Companhia de

Jesus, com todo o seu poder, regulava a conduta espiritual dos indígenas na região, por

meio das práticas de confissão e das disciplinas catequéticas tentava “civilizá-los”, a partir

das ordens discursivas estabelecidas como verdade nas práticas culturais do Ocidente.

Ainda que estas sociedades não existam mais, por conta do colonialismo na região, a

memória indígena é muito forte nas práticas culturais dos moradores do município.

3.4. A Velha Gulosa e os rituais de antropofagia: fios de discursividades Tupi

É uma prática cultural recorrente entre as famílias marajoaras a avó contar

histórias, assumir este lugar de narradora entre filhos e netos. Quem conta história está

autorizado a partir de uma saber, que lhe confere poder. O nosso pecurso histórico, nessa

região da Amazônia Paraense, dialoga em alguns pontos com aquilo que Michel Foucault

chamou de “procedimentos externos” e “procedimentos internos” no livro a Ordem do

discurso (2011) e pelos quais queremos avançar neste percurso de análise das narrativas.

Quando menino, viajávamos para o rio Campinas, em Melgaço, onde residiam

meus avôs, Raimundo e Filomena20

. Nas muitas idas e vindas dessas viagens, várias vezes,

ficamos na casa deles. Lá, em sua companhia, estivemos imersos na escuta das narrativas

de tradição oral. Em sua casa, dona Filomena era a mais autorizada para narrar histórias,

nela havia toda uma performance na forma de narrativizar.

Se é importante o lugar de onde se conta, acreditamos também ser relevante a

posição de onde se escuta. É do lugar desta experiência do ouvir que procuramos produzir

a escrita do funcionamento social dessa prática cultural. E nesse ponto, o segundo aspecto

que lista os princípios de controle do discurso nos quais estão inseridos os que Foucault

(2011) denominou de “procedimentos internos” passaram a nos interessar somente o

“comentário” e a “autoria”. Foucault (2011, p. 25-26), na aula inaugural, no Collège de

France, faz destaques para a definição de comentário.

Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama

globalmente um comentário, o nível entre texto primeiro e texto segundo

desempenha dois papeis que são solidários. Por um lado, permite

construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro

pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre

reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por ser detentor,

20

Ambos já faleceram, Raimundo Xavier Contente em 28 de outubro de 2010 e Filomena Contente de Souza

no dia 18 de julho de 2005, em Melgaço-Pa.

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a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda

uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não

tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de

dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro.

Deve-se, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não

escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido

dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais

sido dito.

O comentário consiste em colocar na ordem discursiva a circulação de diferentes

discursos, ele permite trazer do silêncio aquilo que estava explicitamente no texto primeiro

operando entre dizer o “já dito” e repetir o que “não havia sido dito”. Assim, o comentário

agencia uma volta ao texto antigo e tece o novo pela sua repetição. Por ocasião do

levantamento bibliográfico das narrativas, visitamos a Fundação Centro Cultural Tancredo

Neves (CENTUR) e encontramos no acervo da Biblioteca de Obras Raras do Pará, o

registro da narrativa “Velha Gulosa” (Ceiuci) na obra O Selvagem (s.d [1975]), do General

Couto de Magalhães.

A história da Velha Gulosa nos chamou a atenção por ser uma das narrativas orais

que mais ouvíamos na infância contada pela minha avó no município de Melgaço. Neste

cenário, o comentário permitiu caminhar para a produção do primeiro texto que data do

século XIX. Nele, o etnólogo Couto de Magalhães (1975, p. 131-132) produziu, dentro de

uma perspectiva acentuadamente evolucionista, muitos registros das sociedades indígenas

brasileiras, sobretudo, esta história em solo da Amazônia Paraense.

Velha Gulosa (Ceiuci)

Contam que um moço estava pescando peixe, de cima de um mutá. A

velha gulosa veio pescando com tarrafa pelo igarapé. Ela avistou no

fundo a sombra do menino e cobriu com a rede, não apanhou o moço. O

moço quando viu aquilo, riu-se de cima do mutá.

A velha disse:

- Aí é que estas? Desce para o chão, meu neto.

O moço respondeu:

- Eu não.

A velha disse:

- Olha que eu mandarei lá moribundos!

Ela mandou-os. O moço quebrou o pequeno ramo e matou os

moribundos.

A velha disse:

- Desce meu neto; se não eu mando tucandiras.

O moço não desceu; Ela mandou tucandiras; estas o puseram n‟água;

a velha jogou a tarrafa sobre ele, envolveu-o perfeitamente e levou-o para

sua casa. Quando lá chegou, deixou o moço no terreiro e foi fazer lenha.

Atrás dela veio a filha e disse-lhe:

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- Esta minha mãe, quando vem da caçada, conta qual é a caça que Ela

matou; hoje não contou... Deixe-me olhar ainda o que é. Então

desembrulhou a redes e viu o moço. O moço disse:

- Esconde-me.

A moça escondeu-o; untou um pilão com cera, embrulhou-o com a

tarrafa e deitou-o no mesmo lugar.

Então, a velha saiu do mato e acendeu fogo em baixo do muquem.

Esquentando-se o pilão, a cera derreteu-se; a velha aparou. O fogo

queimou a tarrafa; apareceu o pilão. Então, a velha disse a sua filha:

- Si tu não mostrais a minha caça, eu te matarei!

A moça ficou com medo, mandou o moço cortar palmas de naçaby,

para fazer cestos, para estes cestos se virarem todos em animais. A velha

foi atrás; quando chegou, o moço mandou os cestos virarem-se em antas,

veados, porcos em todas as caças; viraram-se. A velha gulosa comeu

todos [...].

Entre os trabalhos de Magalhães, essa história foi a primeira que ele coletou em

1865, na região das cachoeiras de Itaboca, rio Tocantins onde o navio em que viajava

naufragou e morreram alguns de seus companheiros. As primeiras análises do texto

trouxeram a produção de saberes indígenas ancorados na maneira de ler o tempo. Por

exemplo, na etnoastronomia esta história de Ceiuci, estrela que aparece à noite no céu,

encadeia recorrências em que o “já dito” são estudos que apontam explicações para o

funcionamento das práticas culturais de como a nação Tupi interpreta o céu e marca a

contagem do tempo em contato com a natureza (LIMA & FIGUEIRÔA, 2010).

Conforme Magalhães (1975, p. 131), a palavra “ceiuci significa a constelação das

Plêiades, a que nosso povo chama sete estrelas, e significa também – velha gulosa, ou uma

fada indígena que vivia perseguida por eterna fome”. Percebíamos que os comentadores,

na área da etnoastronomia, repetiam mais o primeiro significado da narrativa, nas suas

produções de conhecimento acadêmico. Já o segundo significado quase não aparece em

análises das pesquisas antropológicas. É nesse aspecto, o “novo não está no que é dito, mas

no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, 2011, p. 26), mostrando outras

compreensões diferentes desta perspectiva etnológica de onde fala Magalhães (1975, p.

131), quando propõe uma lógica linear e contínua no modo de compreendê-la.

A história da velha gulosa é talvez um fragmento desse poema entre os

selvagens da América, poema de que nos chega apenas um eco remoto,

conservado pela tradição grosseiras dos avós e das amas de leite. A lenda

supõe um moço perseguido pela insaciável velha que o quer devorar. A

princípio, o amor o salva; depois, ele começa uma longa peregrinação

sem descanso, porque, quando quer repousar, ouve nos ares um canto que

lhe indica a aproximação do voraz inimigo e, nessa luta, sempre fugindo,

ele transpõe toda a sua vida, de modo que, quando novo se recolhe a casa

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paterna, está já coberto de cãs. Não será no fundo um símbolo como

Hércules ou Ulysses, degradados pela tradição de povos grosseiros?

O conhecimento ocidental criou dispositivos científicos para inferiorizar as

histórias de povos “primitivos”, indígenas e africanos, interpretando-as em nível dos mitos

entendidos como a-históricos e comparando-as à mitologia da antiguidade clássica. Não é

difícil identificar na fala de Magalhães o tema dessas concepções em suas análises. Ainda

que a pessoa mais autorizada para contar a história da Velha Gulosa fosse o tuxaua dos

Anambés, é do lugar da etnologia e mitologia que ele se posiciona para universalizar a

constituição da narrativa. Ele silencia as singularidades culturais de avós e amas de leite na

forma de narrativizar, recriar e atualizar práticas culturas a partir da história.

Para Neves, essas “definições desconsideram os percursos históricos das

narrativas” (NEVES, 2009, p. 107). Nesta análise, consideramos as narrativas das

sociedades indígenas Tupi como histórias e acontecimentos que apresentam relações com o

seu modo de vida e suas formas de luta cotidiana. Começamos a apreender o quanto a

perspectiva do comentário estabelecia uma relação com a autoria dos textos. E acreditamos

ser fundamental considerá-lo para interpretar os sentidos das narrativas e os lugares de

autoria, conforme propõe Foucault (2011, p. 28).

[...] eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que respondam) de onde

vêm, quem os escreveu, pede-se que o autor preste contas da unidade de

texto posta sob seu nome; pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o

sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida

pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer.

Não pretendemos fazer aqui uma espécie de inventário da autoria, mas

compreendê-la considerando as condições de possibilidade que tem os sujeitos de escrever

uma história, mesmo que haja críticas a respeito do que se diz e como se diz a partir dos

lugares distintos desta autoria que nem sempre são meus. Encontrar a história da Velha

Gulosa nos acervos do CENTUR foi uma “irrupção de acontecimentos” (FOUCAULT,

2010), pois ela compunha a trajetória histórica do nosso primeiro contato com as narrativas

orais de tradição Tupi. Ela lembrava o lugar de autoria que teve a minha avó, dona

Filomena de Souza, ao narrá-la repetidas vezes para mim.

Quando voltamos do CENTUR, procuramos entrar em contado com os familiares

em Melgaço e solicitamos que nos ajudassem a pesquisar a história da Velha Gulosa visto

que lembrávamos apenas fragmentos dispersos e desconexos naquele momento. Antônia

Contente, uma das filhas de Filomena e nossa tia, foi a que mais contribuiu conosco nessa

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empreitada. A narrativa coletada visibilizava alguns sentidos distintos de outras regiões da

Amazônia Paraense, mas tornava-se neste encontro um novo acontecimento, delineando os

fios discursivos que sinalizavam as materialidades de contato com as histórias de

sociedades indigenas de tradição Tupi.

Lembrávamos que, no fim da tarde e entrada da noite, depois de toda a jornada de

atividades21

, não podiam faltar as histórias geralmente narradas por dona Filomena. E

todos gostavam das suas histórias. Em função de seu falecimento, hoje quem assume a

autoria dessa narrativa é dona Antônia. A história é composta de três longos episódios

como o abandono de João e Maria na mata, a captura de João e Maria pela Velha Gulosa e

a luta de João com o Gigante, aqui apresento apenas o segundo episódio da narrativa.

Velha Gulosa

[...]

João subiu e avistou longe a fumaça e gritou:

- Maria, ali está a nossa casa. Vamos embora fazer um pique que eu

enxerguei a fumaça da casa da mamãe.

Ele desceu rapidamente da árvore e andaram, chegaram à casa da

Velha Gulosa. Ela estava fritando bolinho e João falou baixinho:

- Maria fica aqui, eu vou fazer uma zagainha, vou roubar bolo dela. A

velha é cega de um lado.

Quando a velha tirava o bolo do prato, João zagaiava e a velha gritava:

- Chape gato quando eu comer te darei.

João tornou zagaiar outro bolo para Maria e assim fizeram até matar a

fome do período daquelas horas perdidos na floresta. E se escondiam no

mato. Um dia Maria deixou vê-la, ela viu os dois e perguntou:

- O que vocês estão fazendo por aí meus netinhos? Venham para

morar aqui em casa.

João não queria entrar e brigou com a Maria e disse:

- Esta velha vai comer nós, ela é a Velha Gulosa.

Acabou que eles entraram na casa e ela os trancou dentro de um

quarto e falou:

- Vou tratar de vocês meus netinhos, estão tão magrinhos!

A Velha passou a cuidar deles, quando foi um dia, João pegou um

largato. Passou tempo a Velha Gulosa resolveu visitá-los para ver se seus

netinhos já estavam gordinhos e disse:

- Colocam o dedo para ver se já estão gordos.

João colocou o rabo do largato, a velha cortou e argumentou:

- Uh! Está muito magrinho.

Depois disso, cuidou logo de tratá-los. Novamente, passou tempo ela

resolveu ver se os seus netinhos estavam gordinhos e ordenou:

- Coloquem os dedinhos para fora.

Nesse momento aumentou a tensão porque Maria tinha jogado o rabo

do largato para fora. E João irritado falou:

- Agora tu vais botar o teu dedo danada.

Maria disse:

21

Tarefas como tirar açaí, pescar, despescar a malhadeira e cortar lenha.

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- Eu não coloco, põe o teu.

João replicou:

- Eu não dou o meu dedo, colocas o teu.

Maria deu o seu dedo e a Velhinha cortou e falou:

- Uh! Está muito gordinho, saiam que vamos fazer uma festa.

João ficou triste e falou para Maria:

- Ela vai mandar fazer uma fogueira e vai botar um tacho quando a

água tiver fervendo a velha vai mandar nós dançarmos em cima da tábua.

Mas nós vamos dizer para ela que não sabemos dançar. Vamos pedir que

ela nos ensine primeiro. Quando ela estiver dançando nós vamos puxar a

tábua.

Dito e certo, a Velha foi em cima da tábua ensinar a dança. Ela dançou

pirixitatá, pirixitatá, pirixitatá. João chamou Maria e disse:

- Está na hora, vamos puxar a tábua para ela cair dentro do tacho.

Em seguida, a Velha Gulosa começou a pedi:

- Água meu netinho!

E Santo Antônio, padrinho de João, respondia:

- Azeite minha avó!

A Velha morreu, mas antes ferveu, ferveu, ferveu na água e Santo

Antônio falou:

- Tire-a do tacho e a bote numa fogueira para queimar com três dias22

[...]

A história da Velha Gulosa, documentada por Magalhães narra uma saga de uma

mulher indígena que movida por uma eterna fome procura a todo custo comer um menino

que pescava no rio de cima do mutá. Capturado pela Velha Gulosa que mandou tucandiras

jogá-lo de cima da árvore, ela o leva para sua casa a fim de comê-lo, mas ele foge com a

ajuda da filha de Ceiuci. Deste momento em diante, ele se esconde e foge constantemente

do alcance da velha faminta. No final da narrativa, o menino, já envelhecido em função do

tempo de perseguição empreendido pela Velha Gulosa, reencontra a sua mãe.

No município de Melgaço, a narrativa “Velha Gulosa” apresenta outro movimento

histórico distinto do que aparece na narrativa registrada por Couto de Magalhães (1975).

Como se trata de uma narrativa do contato com o ocidente, ve-se elementos pertinentes ao

processo de colonização no Marajó das Florestas. Na região, os fios discursivos desta

dispersão histórica a fez ser conhecida também como a história de “João e Maria”. Nela

existe um tenso conflito deles com uma Velha Gulosa que frita bolinhos para matar sua

fome e é cega de um dos olhos. Quando ela encontra os dois irmãos e os tranca no quarto

de sua casa, procura engordá-los para poder comê-los.

22

Narrativa coletada em entrevista com Antônia Contente Cardoso, moradora de Melgaço, de 52 anos de

idade, no dia 22 de maio de 2012.

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3.4.1. Entre o religioso e o selvagem: O ritual da antropofagia

A narrativa Velha Gulosa, contada por dona Antônia, retoma as condições de

produção em que viveu a sociedade indígena Tupinambá, quando apresenta nessa história a

construção discursiva do ritual antropofágico produzido pelos sentidos da dança da Velha

Gulosa. Historicamente, essa nação dominava quase toda a extensão litorânea do território

brasileiro no início da colonização portuguesa. Apesar de serem de matrizes culturais

diferentes, constituiam povos de tradição Tupi, que habitaram as terras do Rio de Janeiro e

Bahia. Na parte norte, estabeleceram-se no Pará e Maranhão. Em razão destas ocupações

territoriais, foram denominados de Os Senhores do Litoral (1994), por Mário Maestri.

Em suas análises, Maestri (1994, p. 43), assinala que “no início dos Quinhentos,

comunidades tupinambás ocupavam, com diversos nomes, a maior parte da faixa litorânea

que ia da foz do rio Amazonas à ilha de Cananéia, no litoral paulista”. Para Fernandes

(1969, p.16-17), estes grupos indígenas Tupinambá, consideradas algumas diferenças,

tinham uma língua comum e partilhavam de uma cultura muito semelhante.

Sabe-se atualmente que de fato eles constituíam grupos tribais distintos,

espacialmente segregados e solidariamente diferenciados. Mas todos

faziam parte de um grupo étnico básico, revelando em seu sistema sócio-

cultural os mesmos traços fundamentais. Doutro lado, localizavam-se nas

áreas em que os contatos com os brancos foram mais intensos e regulares,

desde o início da colonização. Os colonos franceses, portugueses,

alemães, holandeses etc. distinguiam-nos assim de outros grupos Tupi

(Tupina, Tupiniquim, Potiguar, Caeté etc.).

Em termos de práticas culturais comuns, as sociedades Tupinambá, organizavam-

se com o matrimônio aberto a prática da poligamia, viviam em condições nômades, eram

habilidosos guerreiros em combates e desenvolviam os rituais de antropofagia. Os traços

singulares dessas nações constituem-se em vista das condições históricas regionais que

viveram em tensos contatos com a cultura ocidental. Na Amazônia Paraense, o contingente

da nação Tupinambá combateu a dominação portuguesa com suas habilidades e táticas de

guerras desde a extensão do litoral ao interior da floresta amazônica (NEVES, 2009).

Culturalmente, merecem destaque aqui, as destrezas das habilidades dos

guerreiros Tupinambá e a prática dos rituais antropofágicos como o ápice das batalhas

contra os inimigos capturados nas guerras. As batalhas fossem com outras sociedades

indígenas ou com os colonos europeus, os prisioneiros caputados eram submetidos a

cosmologia do canibalismo. Esta prática cultural tecida como um “fio rubro da vingança

percorria a vida e a morte dos homens e mulheres Tupinambá. Ao nascer, um menino

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recebia um pequeno arco e flecha e um colar de garras de jaguar e de harpia” (CASTRO,

2002, p. 226-227).

Apesar de resistirem à dominação bélica, territorial e cultural, foram colonizados

e aldeados, na foz do rio Amazonas, a partir da construção do forte do Presépio em 1616,

hoje cidade de Belém. O contato com esta experiência do cerimonial antropofágico

perturbou a lógica racional dos colonizadores. Os motivos dessas tensões culturais são as

imposições do cristianismo para combater os rituais de antropofagia que realizava esta

sociedade indígena, a poligamia e a pajelança. Aos poucos, os jesuitas foram tentando

acabar com essa religiosidade indígena por meio da catequização.

O antropofagismo indígena era visto como o estado de barbárie destas sociedades

não civilizadas. A imagem apresentada, a seguir, é uma xilogravura de Johan Froschauer

que ficou conhecida como “Imagem do Novo Mundo”. Ela compõe a ilustração da carta

“Mundus Novus”, que trata da primeira viagem de Américo Vespúcio à América. Nesta

imagem, Froschauer representou na perspectiva ocidental o ritual da antropofagia.

Na análise da imagem os indígenas são barbudos, a caracterização fisica

assemelha-se a do “selvagem” europeu, as indumentarias masculinas parecem com folhas e

as femininas são feitas de folhas (NEVES, 2009). Todos estes traços descaracterizam o que

poderia ser o índio Tupinambá. Ainda se nos voltarmos para a tela, veremos de forma

incoerente a representação do ritual antropofágico no qual o guerreiro se apossa das

virtudes do outro guerreiro. Sobre isso, não há indicios peculiares desta religiosidade

praticada pelos Tupinambá do modo como representaram na xilogravura. Este ritual

Figura 22: Xilogravura aquarela à mão 22X33

Fonte: www.google.com/imagem

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religioso e outras práticas culturais por serem diferente da civilização ocidental foi

considerado selvagem pelos colonizadores e as instituições religiosas.

No arquipelago do Marajó, mais precisamente no Marajó das Florestas, depois

que os Tupinambá se aliaram aos portugeses, tiveram uma relevante participação, na parte

oriental, em combates contra os Aruã; no lado ocidental, enfrentaram as taquaras e flechas

das nações Nheengaíba a partir de 1639. Após, os conquistadores aldearem na missão de

Guaricuru, hoje cidade de Melgaço, a oeste a nação Mamaianá, Chapouna e Nheengaíba; e

a sul a nação Pacajá, na missão de Arucará, atual cidade de Portel, os Tupinambá

navegaram subindo o rio Pacajá, com as expedições militares dos portugueses, em busca

de recrutar e descer as nações indígenas que encontrassem neste percurso.

As fronteiras das expedições coloniais alcançaram os Anambé, sociedade indígena

de tradição Tupi, que vivia na região a oeste da bacia do rio Tocantins, localizados mais

exatamente nas cabeceiras do rio Pacajá, que desemboca no rio Pará, comunicando-se com

o braço do estuário amazônico na parte sul do arquipélago de Marajó, próximo da missão

de Arucara. A hostilidade deste contado com os portugueses e os Tupinambá, deslocaram

uma parte destes índios para o aldeamento de Arucara e outra parte fugiu para o final do

rio Cururuí, afluente do Pacajá, formando a aldeia de Tauá (ARNAUD, 1969).

Até o final do século XIX, a sociedade indígena Anambé oscilou entre o rio

Pacajá (município de Portel) e bacia do rio Tocantins, nas cachoeiras de Itaboca, ali onde

Magalhães (1975) naufragou e na ocasião registrou do tuxaua dos Anambé a primeira

versão da narrativa Velha Gulosa (ou Ceiuci); e também para o lado oriental do rio Moju.

Neste ponto, a história registrada por Magalhães compõem uma rede de memórias, ligadas

às sociedades indígenas do Marajó das Florestas, atualizando-se hoje na narrativa coletada

de dona Antônia e que permite estabelecer relações com os sentidos históricos dos ritos de

antropofagia praticada pela sociedade Tupinambá.

Na narrativa contada por dona Antônia, a presença de João e Maria, não se limita

apenas às significações de personagens de uma história ocidental, mas atualiza os sentidos

dos conquistadores portugueses que movidos pela busca de riqueza e terras saíram de sua

terra natal, vieram se envolver em guerras tanto pela parte litorânea como pelo interior da

floresta amazônica. Eles viveram quase sempre a encruzilhada de combates contra

sociedade Tupinambá, quando eram capturados “os europeus eram depilados e pintados à

moda da casa” (CASTRO, 2002, p. 232) e viviam a tensão do ritual antropofágico. Depois,

aliaram-se aos Tupinambá contra as nações indígenas marajoaras.

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Os fios discursivos que permitem analisar a prática antropofágica, nesta narrativa

de dona Antônia, refere-se ao rito introdutório da dança que é organizada dentro do

universo cosmologico dos Tupinambá. A dança é ensinada na perspectiva da língua Tupi,

constituida por processos de repetição da palavra “pirixitata”, que significa “a mãe dança

com o pé no fogo”, ou seja, a velha gulosa que ocupava o lugar de mãe naquele instante

ensinava os supostos filhos como dançarem antes de serem comidos. Em outras palavras, a

velha gulosa assume a posição do devorador naquele momento e ensina os cativos, João e

Maria, a entrarem no ritual antropofagico através da dança.

Deste modo, a representação da velha gulosa ressignifica as compreensões

históricas em relação à sociedade Tupinambá e delineia os acontecimentos discursivos da

produção de sentido da antropofagia no Marajó das Florestas. Esta posição histórica do

canibalismo é retomada ideologicamente a partir da dança encenada em cima de uma

tábua, sobreposta a um tacho, atualizando a memória Tupinambá quando “os cativos

deveriam dançar, comer e beber com seus captores”, conforme Castro (2002, p. 232).

A figura de Santo Antônio, padrinho de João, materializa um discurso religioso

oposto a religiosidade indígena nesse ritual. A posição do catolicismo, em combater e gerar

o discurso do selvagem é pertinente, na medida que a Velha Gulosa, depois fervida na

água, é queimada durante três dias.

Normalmente atribuem-se estes rituais aos índios Tupinambá. Na

bibliografia sobre o século XVI, no Brasil, estes índios aparecem

bastante. Foram eles o primeiro interesse dos jesuítas, portanto, sua

língua e sua cosmologia receberam muita atenção da parte dos europeus.

Estas imagens sobre antropofagia, embora não tenham uma

especificação, normalmente, ainda hoje, são associadas a eles (NEVES,

2009, p. 78).

Na concepção ocidental, as imagens desse ritual assumiram contornos de uma

ferrocidade das sociedades indígenas Tupinambá, tornando-as incompreensíveis a

sociedade civilizada da época. Por essas singularidades históricas que permeiaram esta

cultura de tradição Tupi, as cosmologias e as religiosidade dos Tupinambá mereceram

maior atenção dos jesuitas. A invenção discursiva da antropofagia, hoje, atravessa outras

produções que se filiam ao universo cultural dos Tupinambá.

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Capítulo 04

Memórias e Identidades Tupi no rio Tajapuru

No início da pesquisa, como eram grupos de língua e

tradição Tupi, acreditava que encontraria um fio condutor

entre as narrativas que atravessaria as cosmologias de

todos os grupos. A pesquisa me mostrou, porém, que

existem vários fios dialógicos constituindo estas narrativas.

Alguns atravessam algumas narrativas, outros atravessam

outras, fazendo a tecitura de uma memória discursiva Tupi.

Para passar de um fio a outro, precisei ficar atenta às

novas discursividades que eles inauguravam e colocavam

em circulação. Também entendi logo que era necessário

despir-me de qualquer idéia de linearidade ou de sistemas

fechados.

(Ivânia Neves, 2009)

Neste capítulo, as reflexões se voltarão para tratar da existência, em tempos

contemporâneos, da presença das narrativas de tradição Tupi no Marajó das Florestas,

especificamente, no rio Tajapuru, município de Melgaço-Pa. Com base nas pesquisas de

Ivânia Neves (2009), pesquisadora que desenvolve projetos com sociedades indígenas de

tradição Tupi na Amazônia Paraense, procuramos mostrar como o funcionamento de uma

memória discursiva Tupi, nas narrativas analisadas nesta dissertação, a partir de suas

dispersões e regularidades, continua se atualizando em comunidades amazônicas.

Em seguida, definimos o que vem a ser uma cultura Tupi na literatura

especializada sobre sociedades indígenas. Nesta trajetória, a partir de análises documentais

da história regional sobre as guerras no período colonial entre as nações Nheengaíba e

colonos portugueses registradas por cronistas (DANIEL, 2004a), viajantes naturalistas

(FERREIRA PENNA, 1973b) e etnólogos (MAGALHÃES, 1975), articula-se a inserção

do Marajó das Florestas, particularmente, Melgaço, nesta tradição de matrizes Tupi.

Na história do presente, destes ribeirinhos marajoaras, em meio aos rios e florestas

amazônicas, apresentamos como as narrativas orais resistiram ao processo de colonização e

reafirmam-se nas memórias sociais destes moradores locais, tornando visíveis as práticas

culturais e as astúcias dos saberes indígenas. Para mostrar esta condição de produção

histórica analisamos duas narrativas orais, “O Jabuti e o Veado”, da sociedade indígena de

tradição Tupi do baixo Amazonas e a narrativa “A Esperteza do Jabuti”, registrada no rio

Tajapuru. Objetivamos delinear os fios discursivos que elas estabelecem dentro de uma

memória Tupi que se atualiza na forma de narrativizar as histórias locais.

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Em seguida, apresentamos as análises que permitiram pensar a presença da

memória Tupi, atualizada em narrativas da população ribeirinha no rio Tajapuru. Na

sequência, delineamos os caminhos de análise da narrativa “Como apareceu a noite”, de

Couto de Magalhães (1975). Em seguida, estabelecemos as relações discursivas com a

narrativa “A criação noite”, coletada em pesquisa etnográfica, no rio Tajapuru, em 2012. O

objetivo é mostrar as filiações desta tradição e as narrativas orais como meio de resistência

desta memória na localidade.

4.1. Existiria uma cultura Tupi ainda hoje?

A perspectiva de nossa pesquisa, nesta dissertação de mestrado, parte das

reflexões teóricas de Ivânia Neves, pesquisadora que desenvolve estudos na área das

mediações, discursos e sociedades amazônicas, com destaque para as inquirições voltadas

sobre sociedades indígenas de tradição Tupi. Em suas analises, Neves (2009, p. 24),

discute que, apesar da desestruturação das sociedades indígenas provocadas pelo

empreendimento do sistema colonial, muitos indígenas se incorporaram à cultura local e de

outras regiões do Brasil. Para esta pesquisadora, eles estabeleceram novas trocas culturais e

atualizam sua história e cultura nas narrativas orais, memórias, artefatos, saberes locais e

discursos dos sujeitos contemporâneos.

O trabalho de catequese dos jesuítas, as guerras contra os portugueses e

outros grupos indígenas inimigos e as doenças são algumas das razões

que levaram ao desaparecimento destes grupos. Muitos deles foram

exterminados, muitos se converteram ao cristianismo e ao sistema

colonial, passando a viver nas missões e outros ainda migraram para o

interior do país, onde provavelmente deram origem a outros grupos. No

final do século XVIII não se ouviam mais notícias de sociedades

Tupinambá. Mas, em grande medida, minha pesquisa mostrou que os

Tupinambá sobrevivem como memória e muitos dos seus discursos

aparecem nas representações Tupi das sociedades indígenas

contemporâneas [com grifos nossos].

De uma forma geral, a presença indígena na Amazônia Paraense, embora já haja

alguns trabalhos nesta área, ainda é bastante silenciada e pouco conhecida pelos

historiadores. Em relação aos povos indígenas do Marajó das Florestas, não é muito

diferente. Como foram dizimados na condição de sociedades organizadas, ignora-se que

uma grande parte destes indígenas de tradição Tupi foi assimilada pela população humilde

da região, e que, portanto, passou a constituir os processos de diferentes identidades que

atravessaram, desde então, as sociedades que construíram suas histórias na localidade.

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Ainda que na literatura especializada seja difícil definir o que é uma “cultura

Tupi”, segundo Melatti (2007, p. 61), existem pelo menos três concepções sobre o que seja

“Tupi”. A primeira de cunho estrito é o “nome da língua falada pelos indígenas do litoral,

quando chegaram os europeus”. A segunda, o nome Tupi é “agregado ao nome guarani,

para denominar uma família linguística, a tupi-guarani, da qual faz parte a referida língua

litorânea”. A terceira refere-se ao “tronco linguístico, além de outras mais”. É preciso ter

cuidado quando se usa a denominação “Tupi”, para não cair em generalizações de sentido.

No percurso deste texto, vou tomar Tupi como todas as sociedades que pertenceram ou

pertencem a esta última percepção.

A esse respeito Ferreira Penna ao referir-se a obra O Selvagem (1975) de

Magalhães, ressalta a proporção do uso da Língua Geral falada na Amazônia Paraense,

também conhecida como Nheengatu, pertencente ao tronco linguístico Tupi. Ele destaca

em tom depreciativo que “nenhuma língua primitiva do mundo (diz o Dr. Couto de

Magalhães) nem o sânscrito, ocupou tão grande extensão geográfica como o Tupi e seus

dialetos” (PENNA, 1973b, p. 173).

Entretanto, é preciso rever e problematizar o registro intitulado “Índios do

Marajó” (1885), de Ferreira Penna, que viajando pelo arquipélago do Marajó, em meados

do século XIX, demarcou os limites geográficos onde se falava a língua Tupi, baseando-se

em estudos feitos em 1785 pelo Tenente-Coronel Martel. Para o naturalista e geógrafo os

“antigos marajoaras, como aqui chamam aos moradores de Marajó, do mesmo modo que

cametauara, parauara, etc., significa habitantes de Cametá, habitantes do Pará etc. não

pertenciam à raça Tupi, e que esta se limitou a apossar-se do País somente até Santarém e

Monte Alegre” (FERREIRA PENNA, 1973b, p. 245). Nesta cartografia dos espaços de uso

desta língua Tupi para se comunicar, o arquipélago ficou à margem.

O general Couto de Magalhães (1975, p. 30), também no século XIX, deu ênfase

em documentar as pesquisas etnográficas de sua época sobre os indígenas do Brasil e não

deixou de fora de suas análises o lugar cultural de significação que teve, em tempos da

colonização, o Nheengatu ou Tupi vivo. Ainda que sua abordagem seja numa perspectiva

evolucionista, precisamos analisar como o Marajó das Florestas, na parte ocidental do

arquipélago, entra nesta descrição da cultura indígena Tupi.

A língua viva atual é falada hoje em alguns lugares da Província do Pará,

entre eles Santarém e Portel, no Rio Capim, entre os descendentes de

índios ou entre as populações mestiças ou pretas que pertenceram aos

grandes estabelecimentos das ordens religiosas. De Manaus para cima ela

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é a língua preponderante no Rio Negro, e muito mais vulgar do que o

português.

O registro de Magalhães ganha destaque num momento em que poucas pesquisas

destacaram a presença Tupi no Marajó das Florestas. Quando ele destaca a cidade de

Portel, antiga aldeia de Arucara, como o local onde se falava a língua Tupi, abre-se uma

brecha na história local para se pensar a presença dessa tradição no município de Melgaço.

As duas nações Nheengaíba e Mamaianase, pertenciam às duas missões, que

mantinham contatos e trocas culturais, usavam a língua de contato para se comunicarem

nas batalhas travadas contra os portugueses. Os relatos de Daniel (2004a, p. 393)

colaboram para entender esta relação, anterior à formação dos aldeamentos nesta região.

[...] está situada da parte do sul a grande missão de Arucara, hoje vila de

[em branco no manuscrito]. É a mais populosa de todas as que tinham a

seu cargo os missionários jesuítas, com uma bela igreja não só no

material, mas também no formal de bons ornamentos. Compõe-se nas

nações nheengaíbas, mamaianases, oriquenas e pacajases. Estes

nheengaíbas e mamaianases destas duas missões, hoje vilas, são os que

fizeram guerras aos portugueses.

Se na aldeia de Arucara falava-se o Tupi, como destaca Magalhães (1975), pode-

se dizer que, em Melgaço, antiga aldeia de Guaricuru, falava-se também o Tupi. Este

último aldeamento é anterior à formação da aldeia de Arucara e existiam contatos

constantes no período da guerra entre essas duas sociedades indígenas. Os fluxos de

circulação entre as nações indígenas tanto da missão de Arucara quanto de Guaricuru só

poderia dar-se por meio de uma língua de contato, o Tupi.

É nesta dispersão temporal que podemos falar de uma descontinuidade histórica, a

partir de Foucault (1979, p. 9-10), que contribui para interpretarmos a presença da cultura

Tupi no arquipélago do Marajó, sobretudo, no ocidente marajoara.

[A] noção de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas

históricas. Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao

mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a

natureza dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas,

descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido,

apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A

descontinuidade era o estigma da dispersão temporal.

O estudo do viajante naturalista e geógrafo preocupado em elaborar análises

mediante a “similitude de vida e costumes de dois povos selvagens que referi e a do Mura

com o Mojo” (FERREIRA PENNA, 1973b, p. 245), comparando-os com as práticas

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culturais dos índios marajoaras, a partir da produção da cerâmica encontrada em sitos

arqueológicos da região, com os da bacia Amazônica e das regiões circunvizinhas, tinha

interesse em mostrar a origem das nações indígenas do Marajó advinda destas duas etnias.

Esta concepção, baseada na continuidade histórica desses povos (Mura e Mojo), silenciou

por muito tempo as compreensões historiográficas e culturais da presença da cosmologia

indígena de tradição Tupi no arquipélago, especialmente, no Marajó das Florestas.

4.2. Narrativas orais e resistência indígena

As condições de produção do apagamento da memória Tupi como constitutiva da

perspectiva histórica do Marajó das Floretas permitiu repensar os posicionamentos e

reposicionamentos dos sujeitos no discurso da história regional. Além disso, desvelam as

identidades e culturas em encontros e confrontos durante o processo de colonização da

Amazônia. No rio Tajapuru, esta relação instituiu na história oficial uma condição de

produção investida de termos ideologicamente depreciativos, que ainda hoje se atualiza

também. Para refletir sobre esta situação, esclarece Althusser (1985, p. 53).

Como diria Marx, até uma criança sabe que uma formação social que

reproduz as condição de produção ao mesmo tempo que produza, não

sobreviverá nem por um ano. Portanto, a condição última da produção é a

reprodução das condições de produção.

Estes contatos das nações indígenas marajoaras com a sociedade letrada e colonial

geraram a incorporação de discursos atualizados na sociedade contemporânea, por meio do

uso e da materialidade de linguagens, às vezes, em termos pejorativos como não

civilizados, primitivos, selvagens, bárbaros, antropófagos e o próprio significado corrente

na palavra índio. Esta memória, inconscientemente colonial, intolerante e etnicamente

preconceituosa, atribui termos designativos de uniformização e desqualifica o discurso do

outro no sentido proposto por Bakhtin (2010a).

As distintas trajetórias e processos das condições de produção das dominações

históricas vividos pelos municípios do Marajó dos Campos e do Marajó das Florestas

articulam como a história oficial narrada pela escrita ocidental negligenciou as concepções,

cosmologias e as memórias das sociedades indígenas Tupi. E, simultaneamente, inventou o

índio cuja “falsificação forjada pelas relações de poder do sistema colonial, que instituiu

um índio genérico, antropófago, sem roupa, sem conhecimento e de mentalidade

primitiva”. (NEVES, 2009, p. 28).

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Assim, era preciso civilizá-los e torná-los cristãos para isso colonos e religiosos, a

partir das instituições ocidentais, criaram formas de poder sobre o corpo e a alma que,

constituem os dispositivos. Como analisa Foucault (1979, p. 244), os dispositivos

conformam as condições institucionais das práticas discursivas.

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,

instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulares, leis,

medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

morais, filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são os elementos do

dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes

elementos.

Nesse sentido, articularam uma rede de relações onde os discursos de civilização e

fé funcionava para inserir uma ideologia de submissão do sujeito ao sistema colonial. Além

de disciplinar as formas de resistências, embora as nações indígenas, com seus saberes e

percepções de mundo diferentes, burlassem estas práticas opressoras e manipuladoras. É

sob estas condições históricas entre a tradição oral e a cultura dominante que se deve

repensar o sentido das narrativas orais, em grande parte, guardiã da memória e da história

dos moradores do rio Tajapuru.

Nos livros didáticos, em diferentes mídias, no discurso acadêmico, são recorrentes

expressões como “folclore”, “história popular”, “literatura popular”, “cultura popular”,

“cultura artesanal”, para se referirem às práticas culturais de sociedades ribeirinhas. Estas

formulações colocam em circulação, em sua nova edição, o sistema colonial e reproduzem,

inconscientemente, regimes de verdade (FOUCAULT, 1979) da racionalidade eurocêntrica

na tentativa de escamotear o conhecimento Tupi. Além desse aspecto, hierarquiza as

práticas sociais ribeirinhas em patamares de inferioridade e exclui as resistências de

identidades de populações herdeiras destes saberes ancestrais. Nesses termos, é válido

acompanhar conceituações desse regime de verdade na ótica foucaultiana.

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas

coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade

tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os

tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os

mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados

verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as

tendências e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da

verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona

como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12).

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Nos embates culturais para resistir a estes processos de recolonização pelos

discursos hegemônicos contemporâneos, os grupos sociais que compõem o rio Tajapuru

criam e recriam artimanhas representadas na arte de contar, as quais interferem, conduzem

e ditam as leis do que funciona como verdadeiro no seu espaço-tempo histórico. As

narrativas além de fundamentarem concepções distintas de mundo, constituem o estatuto

da forma mais local e regional de poder que a linguagem oral assume para estas

comunidades do rio Tajapuru.

O processo de colonização e intercâmbios entre culturas indígenas, europeias e

africanas no rio Tajapuru gestou diferentes relações de empréstimos, adaptações, perdas e

conflitos. Contudo, neste território, as táticas empreendidas pelos sujeitos no discurso que

elaboraram para expressar e transmitir saberes e tradições constituintes de seus modos de

vida ganha visibilidade na região. Um olhar mais atento às narrativas orais, sem muita

dificuldade vai perceber a recorrência com a qual os ribeirinhos, em geral, operam com a

tradição oral para comunicar suas posições de mundo e relatos de vida e estas

representações, com muita frequência, se filiam a uma rede de memória que as liga a uma

memória Tupi.

As narrativas contadas por estes moradores, constituídas na cultura de tradição

oral retratam sua percepção de mundo e as interações da vida dos ribeirinhos com a

floresta, os animais, a voz, o corpo, o andar que continuamente recompõem uma memória

Tupi. Também exploram discursos sobre a condição humana, suas pelejas, habilidades,

contradições e limites.

Desse modo, emergem de seus conteúdos quem é mais veloz, lento, corajoso,

trabalhador e caçador, em particular, para enfatizar feitos subjacentes à lógica da cultura

marajoara. São sujeitos de histórias que valorizam, via movimento de rememorações, nos

atos de socializar experiências de vida, códigos da linguagem social para entender os

fenômenos culturais que os cercam.

4.2.1. No caminho do jabuti e do veado: Pelejas da memória Tupi

No rio Tajapuru, as tradições orais desta matriz cultural Tupi ainda hoje se

mantêm viva e materializam-se em pelejas da memória coletiva (HALBWACHS, 2006) da

região, apesar do poder colonizador ter tentado instituir uma língua europeia para

descredenciar os falares da região. Essas histórias colocam em circulação uma memória

discursiva que, quando comparadas a narrativas de sociedades indígenas Tupi apresentam

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algumas regularidades e muitas dispersões (FOUCAULT, 2010a). A seguir, selecionei

duas histórias que possibilitam ver este funcionamento. A primeira foi registrada por

Baldus (1960), em um livro sobre narrativas orais Tupi, e a segunda por um professor de

Melgaço, em 2010

O Jabuti e o Veado

O Jabuti foi visitar os parentes e no caminho topou com o Veado. Este

perguntou-lhe:

- Aonde vais com tanta pressa?

- Vou chamar meus parentes, para virem ajudar-me a procurar a anta

que matei.

O Veado falou:

- Então tu mataste a anta? Vai, pois, chamar teus companheiros.

Quanto a mim, fico por aqui. Não quero a tua parentalha.

O Jabuti não gostou da conversa.

- Pronto! Já não vou mais! Volto daqui mesmo! Esperarei que a anta

apodreça, para tirar um osso e fazer minha flauta. Até à vista...

O veado, porém, não o deixou partir:

- Tu mataste a anta mas não me vencerás numa corrida.

- Vamos apostar. Eu de um lado, tu de outro lado do rio pequeno.

Agora, vou ver o meu caminho.

O jabuti chegou à outra banda do rio, convocou os parentes e

destacou-os de espaço a espaço, pela margem do rio pequeno, para

responderem aos gritos do veado. E de lá perguntou:

- Já estás pronto, veado?

- Já.

- Posso partir?

- Podes.

O veado estava tranquilo, pois confiava nas suas pernas. E a corrida

começou, um de cada banda do rio pequeno. Dali a pouco, o sócio do

jabuti gritou pelo veado e este respondeu:

- Já estou aqui, seu moleirão!

E correu, correu, correu até que gritou:

- Jabuti!

O parente do jabuti respondeu, sempre adiante. E o veado correu,

correu, de novo. Quando pensou que já tinha ganho, gritou mais uma vez:

- Jabuti!

Um jabuti respondeu, sempre adiante.

Dali a pouco o veado avisou:

- Espera amigo, que eu vou beber água!

E calou-se.

O jabuti chamou diversas vezes, mas nada de resposta. Então disse:

- Quer ver que já morreu? Deixem que eu vá ver.

E gabou-se para seus companheiros.

- Eu vou vê-lo, bem devagarinho. Nesta corrida nem se quer suei!

Os companheiros descobriram o veado e anunciaram:

- O veado está morto!

O jabuti gritou:

- Então vamos nós tirar o seu osso.

Os outros perguntaram:

- Para que queres esse osso?

O jabuti respondeu:

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- Para fazer minha flauta e tocar nas horas vagas. Agora vou-me

embora daqui. Até algum dia.

(BALDUS, 1960, p. 89-90)

Nesta narrativa, aparecem três personagens: o jabuti, o veado e a anta que está

morta; as ações acontecem em um caminho e o jabuti fala em construir uma flauta com os

ossos da anta. Em uma outra narrativa, do povo Aikewára, que vive no sul do Pará,

também de tradição Tupi, o veado não acompanha a morte da anta, ele representa uma

constelação do céu norte, na cosmologia desta sociedade, e está no Caminho da Anta

(NEVES, 2009, p. 128).

A narrativa seguinte, registrada em Melgaço, já no século XXI, apresenta

acontecimentos e personagens semelhantes.

A esperteza do Jabuti

Um certo dia, o compadre Veado estava alimentando-se de frutos da

floresta, quando o compadre Jabuti apareceu no local, aproveitando a

ocasião o compadre Veado convidou o compadre Jabuti para uma corrida.

- Compadre Jabuti, o senhor aceita um desafio de corrida?

O compadre Jabuti respondeu:

- Não compadre Veado, agora eu não estou com vontade, talvez com

um ano o senhor e eu possamos competir.

- Então, está bem compadre Jabuti, irei esperar.

[...] (CORRÊA, 2010).

Bastante recorrente entre os

narradores de Melgaço, a história

retoma um universo de sentidos

bastante familiares às cosmologias

Tupi, postos em circulação no rio

Tajapuru. A partir de Foucault (2010a),

é possível se perguntar por que

surgiram estes enunciados, que trazem

estes animais e não outros?

Os acontecimentos trazem características ambivalentes do Jabuti, animal lento,

sem grande agilidade, mas astucioso e estratégico que consegue vencer uma corrida numa

competição com o veado, animal ágil. Embora o jabuti e o veado façam parte na cultura

Figura 23: O jabuti e o veado

Fonte: Miguel Arlon de Souza Corrêa

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Tupi e de uma cosmologia relacionada às constelações no céu Norte (CORRÊA, 2004), o

encontro entre eles é marcado pelo caminho na floresta: “Um certo dia, o compadre Veado

estava alimentando-se de frutos da floresta, quando o compadre Jabuti apareceu no local”.

As ações narrativizadas acontecem em um tempo indeterminado e constituem algumas das

regularidades na trama da corrida.

Esta narrativa representa um dos fios discursivos que permite pensar na presença

de uma memória discursiva Tupi no Marajó das Florestas, pois ela atualiza discursos entre

passado e presente e deixa na “sociedade de hoje muitos vestígios, às vezes visíveis, e que

também percebemos na expressão das imagens, no aspecto dos lugares e até nos modos de

pensar e de sentir, inconscientemente conservados, e reproduzidos por tais pessoas e em

tais ambientes” (HALBWACHS, 2006, p. 87).

Esta peleja, vista no âmbito da memória coletiva fortalece uma memória histórica

em que as enunciações de resistências culturais e as lutas entre identidades diferentes e

individuais de uma sociedade são amplamente negadas. Assim, “Halbwachs, longe de ver

nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência

simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum” (POLLAK,

1989, p. 3). A partir desta perspectiva, mais crítica em relação à memória coletiva, é

possível pensar como estas narrativas deixam ver os silêncios da história oficial do Marajó.

Destarte, percebemos o aparecimento de “memórias clandestinas e inaudíveis” – como

esclarece Pollak (1989, p. 9).

O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e

inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam

aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-

dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial

é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização.

Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referência

que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de

organização é indispensável para superar a simples “montagem"

ideológica, por definição precária e frágil.

Estas relações de poder, no campo da heterogeneidade cultural amazônica,

constituída na égide do domínio português e vista na literatura nacional com um olhar, em

grande parte, pacífico, sofreu as resistências de nações indígenas Tupi em tempos

coloniais. Embora tenha havido esse contato hostil na Amazônia Paraense, os saberes de

tradição Tupi se enredaram na memória social e na construção da cultura local. A

explicação para esta condição de produção está relacionada com as práticas sociais, as

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experiências e os modos de representação identitária destes conhecimentos sobre as

narrativas, a floresta e os fenômenos naturais.

Nesse sentido, na história “A esperteza do Jabuti”, contemporânea, do rio

Tajapuru, o jabuti e o veado se apresentam em um cenário no meio da floresta, mas a

relação de prática social sofre a incorporação de terminologias da Língua Portuguesa, com

destaque para as expressões “compadre”, “senhor” e “parentes”. As representações

identitárias são marcadas pela cosmologia que envolve os animais, a floresta, o caminho e

a noção circunstancial de um tempo indeterminado na narrativa.

Apesar de Bakhtin não estudar o tempo nas narrativas orais, ele contribui

concisamente ao propor as análises do cronotopo nos romances. Para ele, o cronotopo é

uma forma de evidenciar que a definição de tempo está estreitamente ligada com as

condições históricas em que os discursos são produzidos (BAKHTIN, 2010b). A partir

dessa reflexão teórica, Neves (2009, p. 182) mostra como o funcionamento do tempo-

espaço é relevante para compreender que as experiências e as ideologias estão inscritas nas

diferentes narrativas das sociedades indígenas de tradição Tupi.

Nas narrativas orais dos índios Tupi podemos observar como os

cronotopos também passam por processos de transformação. As

sociedades indígenas vivem realidades bem heterogêneas relacionadas ao

tempo de contato com o não-índio, ao número de índios, à extensão da

terra indígena, às fronteiras econômicas a que foram submetidas, só para

falar de alguns aspectos de diferenciação. Naturalmente que todas essas

variáveis se traduzem nas narrativas, compõem as suas condições de

produção. Os cronotopos constituem estas condições de produção.

A circunstância de tempo na narrativa, expressa em “um certo dia” constitui uma

das funções do universo simbólico Tupi que a racionalidade ocidental não consegue

explicar. Esta condição de produção que estabelece outra concepção de tempo-espaço,

onde os fatos, as experiências e ações acontecem nas narrativas indígenas constituem o

cronotopo.

E nesta perspectiva histórica o tempo na narrativa marca um conflito que só pode

ser resolvido numa competição. O veado desafia o jabuti para uma corrida na floresta:

“Compadre Jabuti, o senhor aceita um desafio de corrida?”. Mas o jabuti pede um tempo

para se preparar e organizar a estratégia para burlar, de forma astuciosa a corrida já que se

sentia em desvantagem física.

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[...] No decorrer desse período o compadre Jabuti saiu à procura de outros

jabutis parecidos com ele, com o objetivo de colocar em cada curva do

caminho um jabuti. Passou tempo e o compadre Veado encontrou o

compadre Jabuti. Então, o Veado perguntou:

- Você está preparado para a corrida?

O compadre Jabuti disse:

- Sim compadre, agora estou preparado para a corrida. O senhor

compadre irá pelo caminho e eu irei pela mata.

De repente, o compadre Veado começou a rir e o jabuti sem saber do

se tratava indagou:

- Por que o motivo do senhor compadre está sorrindo?

O Veado falou:

- O senhor compadre Jabuti não me ganha nem pelo caminho, imagine

pela mata!

O jabuti bravo respondeu:

- Apesar de ser lento, saberemos...

O Veado gritou:

- Quando for à hora eu grito.

Depois que se posicionaram, eles deram a partida. Quando o Veado

passou pela primeira curva do caminho, ele gritou:

- Hei compadre Jabuti!

O Jabuti respondeu lá na frente:

- Hei compadre Veado!

Ao perceber que estava atrás do Jabuti, resolveu correr com mais

velocidade. Quando ele passou pela segunda vez, o Veado gritou:

- Hei compadre Jabuti!

O compadre Jabuti respondeu lá na frente:

- Hei compadre Veado!

(CORRÊA, 2010)

A corrida é outro traço que permite identificar o ambiente onde a competição

acontecerá. Embora na narrativa “A esperteza do Jabuti” seja recorrente o termo caminho,

está também presente duas trajetórias: o caminho e a mata. Isso explica que “as sociedades

Tupi organizam sua cosmologia a partir dos caminhos. Talvez a relação com a floresta

contribua para a construção destes caminhos” (NEVES, 2009, p. 189).

Para as populações indígenas que conformam as nações indígenas Tupi da

Amazônia, os reinos animal, vegetal e mineral não são apartados entre si. Tal compreensão

se aproxima das interpretações elaboradas por Antonacci (2005) quando explica que as

culturas de tradição oral não foram fatiadas pelo conhecimento cartesiano. Nesta mesma

direção Pacheco (2011b, p. 08), com base nas análises de figuras geomórficas talhadas em

urna funerária marajoara pré-colombiana, explica que nesses desenhos, semelhantes às

pinturas rupestres, tornam-se visíveis “a relação cultura e natureza, terra, água e céu,

revelando concepções de equilíbrio e respeito entre homem e o meio ambiente. São

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ensinamentos deixados pelas primeiras comunidades humanas que viveram na Amazônia

antes do contato com o mundo europeu”.

Outro aspecto importante, nessa análise do enredo da história, mostra que o

caminho onde acontece a corrida é marcado pelo grito, sinal de comunicação entre o veado

e o jabuti, indicando a posição de quem está na frente ou atrás na competição. O jabuti

escolhe, entre as duas trajetórias da corrida, a mata e deixa o caminho para o veado: “Sim

compadre, agora estou preparado para a corrida. O senhor compadre irá pelo caminho e eu

irei pela mata”.

Em seguida, pensando que a vitória já estava garantida, o veado em tom irônico

enfatiza: “O senhor compadre Jabuti não me ganha nem pelo caminho, imagine pela

mata!”. Esta recorrência entre as narrativas revela uma desigual relação de poder que toma

como base, por parte do veado, o desempenho das condições físicas da perna, sem perceber

que para expressar outra forma de poder, por parte do jabuti, este desestabiliza as

habilidades do veado com astúcias.

Na esteira de Foucault (1979), podemos inferir que a hegemonia inicial exercida

pelo veado movimenta-se para o jabuti em perspectivas diferenciadas. Enquanto o primeiro

sustenta seu discurso na performance ágil de seu corpo, o segundo opera com competência

performática cognitiva. Não por acaso, a estratégia do jabuti para burlar o sistema de poder

instituído pelo veado na competição funcionou tão bem que na narrativa do rio Tajapuru, o

veado continuou correndo atrás do jabuti até a sua vantagem física ceder ao cansaço.

“Neste momento o compadre veado tornou-se mais veloz e correu, correu, correu a ponto

de não aguentar, cair de cansado e sempre o compadre Jabuti respondia na sua frente”.

Versões dessa história emergiram em outras partes da Amazônia, revelando a

capacidade das populações locais de recriá-las à luz de suas especificidades culturais e, ao

mesmo tempo, indica elementos de regularidades e dispersões. Na narrativa da nação Tupi

do Amazonas, por exemplo, a anta morreu e o jabuti utilizou o osso para fazer uma flauta

(BALDUS, 1960). A simbologia acerca das “flautas estão relacionadas à cobra e à

fertilização. Por sua morfologia semelhante, os objetos são associados ao pênis, o que

naturalmente lhes associa à figura masculina” (NEVES, 2009, p. 190).

O quadro 01, a seguir demonstra o funcionamento das dispersões e regularidades

entre as narrativas o Jabuti e o veado (sociedade indígena do baixo Amazonas) e a

Esperteza do Jabuti (sociedade ribeirinha do rio Tajapuru).

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Quadro 01: Funcionamento das dispersões e regularidades

Narrativas

O Jabuti e o veado

(sociedade indígena Tupi do

Baixo rio Amazonas)

A esperteza do Jabuti

(rio Tajapuru)

Dispersões

Jabuti, o veado e anta Jabuti e o veado

O jabuti está na floresta e vai

chamar os parentes para procurar a

anta que matou.

O jabuti está se alimentando na

floresta.

A corrida ocorre entre as duas

margens de um pequeno rio.

A corrida ocorre no caminho (jabuti) e

na mata (veado).

O veado morre antes de terminar a

competição.

O veado sempre está atrás do jabuti na

competição e se cansa. Na narrativa

esta ordem não se altera.

O osso do veado é utilizado para

fazer uma flauta para o jabuti. Não há presença de flauta.

Regularidades

A competição é uma corrida. A competição é uma corrida.

O grito comunica que o jabuti está

sempre à frente.

O grito comunica que o jabuti está

sempre à frente.

O tempo (algum dia). O tempo (um certo dia).

Fonte: Silva - 2013

A perspectiva histórica que envolve estas cosmovisões Tupi captadas em

narrativas orais contadas ainda hoje por populações marajoaras torna possível identificar

representações em simbiose do universo natural e cultural regional como o caminho, a

floresta, os animais e o tempo. Igualmente, há apropriações de códigos e suportes materiais

da cultura letrada eurocêntrica pelos marajoaras para reafirmar suas cosmologias, saberes,

fazeres e agires. Em outras palavras, a cultura local gerencia os canais de difusão da língua

e conhecimento português para disseminar e atualizar a memória Tupi em suas dispersões

e regularidades entre as duas narrativas analisadas.

4.3. Pelo rio Tajapuru a presença da memória Tupi

É instigado por uma memória Tupi, que se atualiza nas narrativas orais, hoje

contadas por moradores da região, que analisamos a presença desta tradição cosmológica

no rio Tajapuru, localizado na parte norte de Melgaço, fica aproximadamente uma hora

distante da sede do município, em barco de médio porte, delimita as fronteiras geográficas

à direita com os territórios de Breves-Pa. Este rio se destaca na região pela sua posição

estratégica de navegação e acesso ao vale Amazônico, Manaus, Macapá, Guiana Francesa,

Suriname, Óbitos, Acre, etc. Na historiografia local e na história regional da Amazônia

Paraense pouca pesquisa se fez neste local.

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Figura 24: Mapa de Localização do rio Tajapuru, em Melgaço – 2012.

Fonte: Google/ imagem – programação cartográfica Pedro Leal.

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O rio Tajapuru vive uma fase na historiografia contemporânea que reclama os

muitos silêncios no campo da produção do conhecimento sobre as sociedades indígenas

que viviam lá e pouco se sabe que a estabilização da conquista do ocidente marajoara

aconteceu nessa região. Na esteira de Pollak (1989, p. 4), por se tratar de uma história

silenciada de narradores excluídos da história oficial, as narrativas locais trouxeram a

“importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas

minoritárias e dominadas, se opõem à „memória oficial‟, no caso a memória nacional”.

Pensar esta memória subterrânea em relação às sociedades indígenas do Marajó

das Florestas que, mesmo dizimadas historicamente na condição de sociedade, significa

analisar sua história vivendo incorporada nas práticas culturais dos sujeitos ribeirinhos. A

partir desta leitura, objetivamos mostrar como a narrativa oral “A criação da noite”,

coletada no rio Tajapuru, dialoga com a narrativa registrada por Magalhães, constituindo

dispersões e regularidades (FOUCAULT, 2010a), que se articula com uma rede de

memória Tupi, que encontrou formas de resistências e ainda hoje está presente na história

do presente de sociedades marajoaras.

Neste capítulo, para mostrar o funcionamento de uma memória discursiva Tupi,

analisarei duas narrativas, registradas na Amazônia, em diferentes períodos históricos.

Primeiro, apresento a narrativa “Como apareceu a noite (Mai Pituna Oiuquau Ãna)”, de

Magalhães (1940) e depois estabeleço os fios discursivos em sua dispersão e regularidade

em relação à narrativa “A criação da noite”, de seu Miguel Vila Real, morador do rio

Tajapuru, um dos principais narradores de minha pesquisa. Esta narrativa deixa ver como

existe uma rede de memória que a liga a uma tradição Tupi, que continua se atualizando

nas narrativas orais contemporâneas dos ribeirinhos da região, apesar da experiência do

colonialismo.

As reflexões contemporâneas de Le Goff (2003, p. 470) sobre memória e história

têm mostrado que a constituição da memória é permeada pelas condições de exercício das

relações de poder entre grupos sociais. Esta concepção amplia-se quando considerarmos

que não deixa de fora as perspectivas colonialistas de poder estabelecidas pelos embates

bélicos e culturais em solo amazônico entre portugueses e sociedades indígenas.

[A] memória coletiva é não somente uma conquista, é também um

instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social

é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de construir uma memória

coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela

dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

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A luta dessas sociedades de universos culturais distintas reflete em questões

cruciais cujo jogo de poderes se institucionalizaram em uma memória tanto escrita quanto

de tradição oral que sustentam as lembranças em tempos de dominação e resistência. Nesta

análise, as narrativas orais e registradas mostram que é possível pensar em uma memória

discursiva Tupi que as atravessa historicamente pelas relações de poder.

A partir das leituras sobre memória desde as sociedades clássicas, ocidentais (LE

GOFF, 2003) e posteriormente da “memória discursiva” de Courtine (1981), pode-se com

Neves (2009, p. 141), aplicar a definição analítica de memória discursiva Tupi para falar

de narrativas como história. Para esta pesquisadora, as histórias de tradição indígena Tupi

apresentam-se ancoradas nas dispersões e regularidades.

A definição de memória discursiva Tupi com que trabalho se constitui a

partir das muitas dispersões históricas vividas pelos grupos e por algumas

regularidades, que vão além da semelhança linguística. Também não

representa somente um conjunto de recorrências entre as narrativas, não

se trata de uma análise de mitemas, já que as narrativas não são

classificadas como mitos a-históricos e não se situa apenas nos limites de

uma memória social ou coletiva. As narrativas e as outras representações

indígenas são entendidas, aqui, como a história dos índios, a forma que

eles próprios encontraram de narrativizar sua experiência com e os

acontecimentos históricos vividos por eles. Uma história que tem

emoção, toque e cheiro.

Essa ferramenta de análise redimensiona a forma de estudar as muitas dispersões

históricas e temporais vividas pelos grupos e algumas regularidades, que não se

concentram numa abordagem de descrição da língua indígena. Esta definição constrói-se a

partir de acontecimentos narrativizados que permitem trazer as condições da história

indígena Tupi, sobretudo do rio Tajapuru. Aqui assumo como Neves, o conceito de

memória discursiva Tupi em minhas análises no presente texto.

4.3.1. A criação da noite contada por Couto de Magalhães

No século XIX, o General Couto de Magalhães elaborou muitos registros e

estudos sobre as nações indígenas brasileiras no âmbito de uma perspectiva da evolução da

raça. O trabalho de etnologia de Magalhães consistia em delinear, a partir das sociedades

indígenas do Brasil, em especial da Amazônia Paraense, a construção de uma identidade

nacional. Em sua análise de O selvagem (1940), Henrique (2003, p. 2), apresenta a

condição histórica e política que o livro foi lançado, deixando ver o objetivo de mostrar o

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indígena como cidadão civilizado e sua organização com destaque para as narrativas

registradas da cultura de tradição Tupi na região amazônica.

A obra O Selvagem foi encomendada pelo imperador Pedro II e exposta

na Exposição Universal da Filadélfia, nos Estados Unidos, em 1876. [...].

Nestes ventos, o imperador procurava mostrar o Brasil como um país

“novo”, “civilizado” O selvagem compreendia duas partes: a primeira,

com o curso da língua geral segundo Ollendorf23

, compreendendo o texto

original de 23 lendas em Tupi e traduzidas para o português; e a segunda

tratando das “origens, costumes, região selvagem, método para amansá-

los por intermédio de colônias militares e do interprete militar”. Mas a

grande contribuição da obra foi mesmo a publicação dos contos e lendas

tupi na própria língua geral em que Couto de Magalhães ouviu nas

narrações dos indígenas, fato inédito até então.

Ainda que as histórias indígenas apareçam como a-históricas, lugar ocupado pelos

contos e lendas, olhar envolvido na percepção da cultura ocidental, não podemos deixar de

mensurar a relevância da originalidade destes registros na própria língua Tupi. Entre as

muitas aptidões que descreve nesta obra, Magalhães registra na versão do Tupi a narrativa

“Mai Pituna Oiuquau Ãna” que, em nossas análises, estabelecemos no movimento da

história uma rede de memória, apresentando-se numa “dispersão temporal que lhe permite

ser repetido, sabido, esquecido, transformado” (FOUCAULT, 2010a, p. 28), conforme as

relações discursivas que se estabelecem com a memória Tupi.

Em contato com os códigos culturais do ocidente, a trama da história a seguir

enfatiza o casamento da moça, filha da Cobra Grande, com um jovem índio. Ela rejeitava

dormir com o esposo se ele não trouxesse a noite do rio. Na referida narrativa três

indígenas são enviados à Cobra Grande que lhes entrega a noite fechada no caroço de

tucumã, ela adverte de que não devem abri-lo e os três no curso da viagem pelo rio não

resistiram a curiosidade de abrir o caroço e surge a noite.

Mai Pituna Oiuquau Ãna (Como a Noite Apareceu) 24

Os vassalos foram-se, ouviram barulho dentro do caroço de tucumã: ten,

ten, ten; ten, ten, ten. Era o barulho dos grilos, e dos sapinhos com eles,

que cantam durante a noite. Quando os vassalos estavam já longe, um

deles disse aos seus companheiros: „O que é este barulho? Vamos ver?‟ O

piloto disse: „Não; do contrário nos perderemos. Remai, vamos embora‟.

23

Na segunda metade do século XIX, as línguas como o “alemão, francês, inglês, italiano, espanhol e latim

foram adaptadas ao método do filosofo Alemão Heinrich Gottfried Ollendorff (1803-1865). Atendendo ao a

sugestão do conselheiro José Agostinho Moreira Guimarães, Couto de Magalhães resolveu aplicar o mesmo

método à língua geral ou Nheengatu. O método Ollendorf garantiria ensinar a ler, escrever e falar qualquer

língua em seis meses (HENRIQUE, 2003, p. 5-6). 24

Versão do tupi da obra O Selvagem (1940), de Couto de Magalhães. Esta tradução é interlinear e compõe

um dos trabalhos de tradução do italiano Ungaretti estudado por W A T A G H I N (1998).

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Eles se foram. Eles estavam ouvindo o barulho; não sabiam o que era

aquele barulho. Eles estavam já muitíssimo longe quando ajuntaram-se

no meio da canôa para abrir o caroço de tucumã, para ver o que estava

dentro dele. Um acendeu fogo; derreteram o breu que estava fechando a

porta do caroço do tucumã. Quando eles abriram, repentinamente noite

densa já! Então o piloto disse: „Nos perdemos!… A moça, em sua casa, já

sabe que nós abrimos este caroço de tucumã‟. Seguiram viagem. A moça,

em sua casa, disse a seu marido: „Eles soltaram a noite. Agora vamos

esperar a manhã‟. Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo

bosque metamorfosearam-se em animaes, em pássaros. Todas as coisas

que estavam espalhadas pelo rio metamorfosearam-se em patos, em

peixes; o paneiro virou-se em onça. O pescador virou-se, com sua canôa,

em pato; sua cabeça em cabeça de pato; seu remo virou em pernas de

pato; a canôa em corpo de pato. Quando a filha da Cobra Grande viu a

estrela Vênus, disse a seu marido: „Manhã está vindo; eu vou dividir a

noite do dia‟ (W A T A G H I N, 1998, p. 173).

A história coletada traz elementos posteriores ao contato como o colonialismo e a

cristianização na Amazônia Paraense. As palavras como “vassalos”, “companheiros”,

“piloto”, “moça” e “marido” marcam acontecimentos históricos numa linguagem ocidental

que traz os efeitos de sentidos desse período colonial vivido pela sociedade indígena Tupi.

Esses fios discursivos ainda desvelam a dispersão destes saberes e cosmologias

entre as duas culturas diferentes, ocidental e indígena, se tomarmos como referência a

analogia com a história bíblica de Adão e Eva. É possível também analisar as recorrências

em várias sociedades indígenas, do mesmo tronco Tupi, espalhadas pela Amazônia

Paraense, especialmente pelo Marajó das Florestas, mais precisamente, no rio Tajapuru.

Nesse sentido, traçamos um fio discursivo – a criação da noite, comum entre as

duas narrativas, para apontar, as regularidades e nas dispersões, as particularidades

culturais que constituíram estas sociedades, interpretadas como construção da memória

discursiva Tupi (NEVES, 2009) que permite discuti-la no jogo de sua instância histórica

(FOUCAULT, 2010a). As próprias narrativas vão, aos poucos, delineando esta memória

que se formou na colonização da Amazônia Paraense em função do intenso processo de

civilização e cristianização empreendido com as nações indígenas.

4.3.2. Jogou o carvão na floresta e fez surgir a noite

Esta memória discursiva começava a desenhar-se, em contado com o seu Miguel

Vila Real e dona Rosalina Moura Rodrigues, moradores do rio Tajapuru. Seu Miguel tem

oitenta anos, trabalha como agricultor e açaizeiro na região. Dona Rosalina toma conta da

casa, pesca e faz farinha de mandioca. Ele é um eximo conhecedor dos animais, das

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espécies de peixes e dos caminhos na floresta que entrecortam este rio. A história de vida

de ambos é marcada pela experiência com os ciclos sazonais.

Quando chegamos à casa de seu Miguel, naquela tarde de janeiro de 2012, caiu

uma grande chuva, mas ele e sua esposa, dona Rosalina, estavam esperando por nós.

Particularmente, chamava a atenção o modo como o narrador estava vestido, pois ele sabia

que gravaríamos a entrevista em audiovisual, aproveitou para se preparar e receber-nos.

Ele usava uma camisa amarela da seleção brasileira de futebol, no meio em cor azul e

branco o nome “Brasil”. Depois, elencou uma seleção de histórias e as narrou começando

pela narrativa “O Menino e a mãe da cural”, “O Jacaré e a raposa, “O Tamanduá e a

Criação da noite”. Nesta análise, ficamos com esta última, pela peculiaridade histórica de

atualização da memória indígena Tupi nela enredada. Sobre esta condição da memória

indígena na narrativa, assinala Neves (2009, p. 153).

Como pensar a memória a partir das narrativas indígenas? Os grupos

indígenas, como qualquer sociedade, administram sua memória coletiva.

Inclusive, muitos delimitam o que é da ordem do individual e o que é da

ordem do coletivo. As narrativas orais que falam das tradições históricas,

religiosas, artísticas, como narrativas que explicam a criação do universo,

o encontro com os antepassados, só podem ser contadas por pajés. Já a

trajetória pessoal ou familiar, estas podem ser contadas por qualquer

pessoa. Mas de grupo para grupo todas estas regulações podem variar.

Figura 25: Seu Miguel e dona Rosalina no rio Tajapuru – 2012.

Foto: Shirley Penaforte

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Neste grupo familiar, no rio Tajapuru, a autoridade para narrar constituía-se pela

ordem coletiva entre seu Miguel e dona Rosalina. O lugar de narradores da história era

compartilhado pela experiência e memória de forma complementar, ou seja, cada um

narrava um pouco e socializava comentários acerca da narrativa. As tramas desta

narratividade eram acompanhadas pela sintonia entre os movimentos corporais e voz,

mostrando que “as solenidades da oralidade são de outra ordem, podem estar relacionadas

ao corpo do narrador, aos adereços” (NEVES, 2009, p.114). Na história que eles contaram

existia uma jovem, que para se livrar da perseguição de um monstro que queria devorá-la,

joga o carvão na floresta e faz surgir a noite.

No percurso da narrativa sobre o surgimento da noite, o narrador deixa ver as

trajetórias do movimento da história, ao atualizar em pleno século XXI, a constituição de

uma memória Tupi em suas dispersões históricas e temporais no Marajó das Florestas. A

história não se constituía apenas em função da narratividade, mas revelava “os corpos dos

narradores e as onomatopéias que eles usam, entre outros elementos, constituem a história”

(NEVES, 2009, p. 108), trazendo o cotidiano da floresta, a experiência dos caminhos no

mato, saberes, costumes, cosmologias e religiosidades que se filiava a uma memória

discursiva Tupi muito presente no rio Tajapuru.

4.3.3. A memória discursiva Tupi no rio Tajapuru

A história se movimenta na sociedade indígena e nem sempre se apresenta do

mesmo modo em vista das adaptações e transformações culturais. Por exemplo, em estudo

de Mindlin (1999, p. 61), conta Awünaru Odete Aruá, narrador da história “A noite”, da

sociedade indígena Aruá de tradição Tupi, do estado de Rondônia, que antes não havia

noite e nem o sono. Paricot, personagem da narrativa, decidiu primeiro buscar a noite.

Nambu Preto, chamado Wãiãpeb, era o primeiro pajé e concedeu inicialmente uma noite

curta, depois deu uma noite longa dentro da taquara. Mas faltou o sono e ele dirigiu-se à

casa do Pai do Sono e conseguiu remelo, visto que já tinha buscado a noite e precisava de

sono para descansar.

O enredo da narrativa “Mai Pituna Oiuquau Ãna” que registrou Magalhães, em

suas viagens pela Amazônia Paraense, constitui-se por três vassalos (indígenas), o índio

(marido), a filha da Cobra Grande (esposa do índio). As ações da história acontecem no

rio, quando retornam em viagem de canoa com a noite dentro do caroço de tucumã. Eles

não aguentam a curiosidade, derreteram o breu da entrada do caroço de tucumã e surge a

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noite. Neste momento, o espaço da narrativa é tomado por uma grande metamorfose, visto

que as coisas se transformaram em patos, animais e peixes compondo as dispersões

históricas e as recorrências no sentido criarem a noite dentro destas cosmologias Tupi.

No rio Tajapuru, a narrativa do surgimento da noite, inicialmente, aponta muitas

dispersões e algumas regularidades da memória discursiva Tupi. Ela apresenta três

aspectos significativos, o primeiro relacionado ao incesto, o segundo reflete os sentidos

históricos da caveira e o terceiro a criação da noite, como se lê a seguir:

A criação da noite 25

Um bicho fingiu ser uma pessoa da família e levou três meninas. As

três moças já eram grandes. A primeira era mais velha, a segunda mais

nova e a terceira era a caçula. Ele as levou como se fosse o pai ou a mãe.

Mas estava mais perto de ser o pai do que a mãe. Caminhou com as

moças para muito dentro da floresta onde ficava a sua casa. Elas

pensavam que era uma pessoa, um cristão.

Na história “A criação da noite”, de seu Miguel, a trama da narrativa compõe-se

da presença de três mulheres, com destaque para a caçula; uma fera que tomou a forma do

pai; e o socó, anjo da guarda da menina caçula. O lugar do conflito na história ocorre

dentro de uma casa, localizada no meio da floresta para onde a fera levou as três meninas,

estendendo-se pela mata, quando a caçula foge do monstro. Ludibriadas pelo monstro que

parecia ter a imagem familiar do pai. Na narrativa este enunciado – um cristão – marca

acontecimentos históricos que particularizam o rio Tajapuru no processo de colonização e

trazem os efeitos de sentidos da cristianização empreendida pelo Marajó das Florestas.

Por se tratar de uma narrativa do contato com a sociedade envolvente, percebe-se

no começo a administração regulada da noite e do dia na perspectiva cronológica do

ocidente. Nessa cronologia, as duas noites seguintes, constituem as condições históricas do

incesto, já que a fera tomou a forma do pai. Curiosas as meninas queriam saber o que tinha

acontecido à noite com a irmã mais velha e pela brecha da fechadura do quarto vêem que a

fera a transformou numa caveira.

[...]

Quando começou a escurecer, ele falou que a mais velha iria dormir

no quarto na companhia dele. Amanheceu o dia, o bicho disse para a mais

nova e a caçula que não mexessem com a irmã mais velha porque estava

dormindo. Em seguida, saiu no rumo da floresta, foi embora dá um tempo

e só voltava mais tarde.

25

Narrativa contada pelo senhor Miguel Vila Real, morador do rio Tajapuru, perímetro Nazaré, município de

Melgaço, em 13 de janeiro de 2012.

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As duas foram brechar e viram só a caveira da irmã mais velha.

Naquele momento pensavam no que elas podiam fazer. Porém, não

sabiam o caminho na floresta de volta para casa. Na segunda noite,

anunciou que queria dormir com mais uma. A notícia chegou entre elas e

uma dizia para a outra:

- Vai fulana! Não vai tu.

Nessa história a mais nova foi e a caçula ficou. Na manhã seguinte, o

bicho tornou a dizer que não fosse mexer a irmã dela que estava

dormindo, mas a caçula já sabia o que tinha acontecido. A fera saiu para

o mato.

[...]

O incesto não é uma característica apenas das sociedades indígenas, existe

também na sociedade ocidental. Porém, os sentidos históricos que assumem são peculiares

e interpretados conforme as práticas culturais da nação indígena. Nas sociedades de

tradição Tupi existem várias narrativas que retratam esta questão do incesto. A memória

Tupi sobre a lua (sahy, zahy, jahy, jaci) entre os Tembé e Macurap deixa ver que o “incesto

e o jenipapo são fios discursivos que ligam estas narrativas a uma memória Tupi”

(NEVES, 2009, p. 161).

Na narrativa coletada por Magalhães não há incesto, existe a relação matrimonial

entre os casais de índios, mas isso não quer dizer a inexistência de uma memória Tupi, pelo

contrário constituem-se as dispersões históricas. Quando a noite aparece, ou melhor, sai do

caroço de tucumã, nesta ocasião, ela é o lugar que regula metamorfoses dos indígenas,

canoas e paneiros, transformados em patos, peixes e onças como se fosse aquele momento

no livro do gênese sobre a criação do mundo. Já, a história de seu Miguel apresenta esta

materialidade do incesto que é penalizada com a transformação das meninas em caveira em

uma dispersão histórica diferenciada pelo funcionamento de sentido da cultura.

No arquipélago do Marajó este enunciado – caveira – isto é, deixar o corpo ficar

só os ossos tem um sentido cultural particular. Os grupos indígenas de matrizes étnicas

diferentes do Marajó acreditavam que “a alma do morto está na verdade contida nos seus

ossos, razão pela qual a carne era desprezada e os ossos eram cultuados” (SCHAAN, 2009,

p. 37). Esperava-se o corpo putrefar, limpavam-se os ossos e guardava-os nas urnas

funerárias que eram continuamente visitadas e cultuadas.

Deste modo, podemos entender o motivo destas dispersões, quando a fera dizia

que as duas meninas “dormiam”, ela se referia à presença de suas almas contidas ali,

naquelas caveiras. Nesse sentido, a narrativa de seu Miguel retoma posições históricas e

atualiza uma memória de cultuar os mortos diferentes da perspectiva ocidental, constituída

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pelo cristianismo, em tempos coloniais, que revela o sentido da morte com a perda do

sopro da vida e visão de que a alma não está no corpo, mas sobe ao céu.

Contudo, é nesta situação tensa que viveram as diferentes sociedades indígenas

marajoaras que percebemos no universo da história a presença do Socó, anjo da guarda da

menina, retomar a presença do cristianismo. E para enfrentar o monstro, as cosmologias

indígenas relacionadas aos saberes a respeito dos cipós, o carvão e a cinza entram em cena

na narrativa.

[...]

No intervalo dessa saída apareceu um animal tipo um socó, era o anjo

da guarda da menina e disse:

- Olha tu arrumas um pouco de carvão, bolo de fio e cinza.

Ainda tinha mais uma coisa, o fio formava o sarazal26

, o carvão

formava a noite e a cinza era para formar o lago. Depois destas palavras

ela se arrumou o mais rápido possível e correu, correu, correu, quando ela

cansava pulava na costa do Socó. Ao aproximarem-se da beira para

atravessarem, o bicho retornou da mata e viu que a menina havia fugido

não tinha outra opção senão procurá-la em direção a beira da floresta.

Neste momento, o socó, anjo da guarda da caçula, dizia:

- Primeiro joga o fio para formar o sarazal, se a fera passar joga em

seguida o carvão para criar a noite, depois lança a cinza para constituir o

lago.

Antes da fuga pela floresta, a moça caçula, aprende do Socó, Anjo da guarda, os

saberes e os obstáculos que cada elemento (cipó, carvão, cinza) impõe ao monstro. Entre

estes elementos, a função do carvão atualiza uma memória discursiva Tupi à medida que

ao ser jogado na floresta faz surgir a noite. A criação da noite, nessa perspectiva, constitui

“enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se

referem a um único e mesmo objeto” (FOUCAULT, 2010a, p. 36).

Nesse caso, o quadro 02, a seguir, apresenta a construção das dispersões e

regularidades entre as duas narrativas, Mai Pituna Oiuquau Ãna (Como apareceu a noite),

registrada por Magalhães (1940) e a criação da noite, de seu Miguel, coletada em 2012.

26

Trançado de cipós que impediam a movimentação pela floresta da fera.

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Quadro 02: Dispersões e regularidades entre as narrativas analisadas

Narrativas Mai Pituna Oiuquau Ãna

(Como apareceu a noite)

A criação da noite

(rio Tajapuru)

Dispersões

A relação matrimonial entre o índio

e a filha da Cobra Grande.

A fera fingiu ser uma pessoa da

família (o pai).

Três vassalos (índios). Três mulheres (a caçula, uma

jovem e a mais velha).

Os vassalos violam o caroço de

tucumã (onde noite está presa). Os

vassalos não são punidos ao soltar a

noite.

O Socó orienta o uso do carvão,

bolo de fio e cinza como obstáculo

para impedir a fera de comer a

menina.

A noite surge e os objetos e o

pescador são transformados em

peixes, animais e pássaros.

À noite, a fera dorme com as

meninas (a jovem e a mais velha) e

as transforma em caveira (o

incesto).

Regularidades

Quando eles abriram o caroço de

tucumã noite densa já (criação da

noite)

Quando a moça caçula joga o

carvão na floresta e surge a noite

como obstáculo para a fera

(criação da noite) Fonte: Joel Silva - 2013

Assim, a narrativa do surgimento da noite, do seu Miguel, no rio Tajapuru, entre

as muitas dispersões, possibilita a construção de regularidades que se formam quando é

possível estabelecer nas dispersões um conjunto de fios discursivos os quais apresentam

em determinados circunstâncias algumas das poucas regularidades – a criação da noite,

marcando o sentido de uma memória discursiva Tupi.

A história do surgimento da noite é uma das narrativas orais mais recorrentes

entre sociedades de tradição Tupi. Seu Miguel apresenta ao contar esta narrativa a

atualização de uma memória Tupi do passado no presente. O lugar social deste narrador

desestabiliza uma ordem histórica que não vê nas narrativas orais a presença indígena em

uma localidade que ficou no silêncio da história escrita em documentos oficias. Ele abre

uma fissura discursiva na colonialidade do saber sobre a conquista da Amazônia Paraense.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa história como apresentamos, no primeiro capítulo desta dissertação, na

condição de melgacense, professor e pesquisador, começou no espaço sociocultural do rio

Tajapuru, em Melgaço – Marajó das Florestas. Estranhar a própria realidade sociocultural,

antes tão familiar, não foi uma tarefa fácil em vista do envolvimento com a cultura local

das comunidades Santa Maria, São Francisco, porto Nazaré e vila Sorriso neste rio. Esse

exercício de estranhamento para enxergar na trama histórica os saberes e cosmologias de

tradição Tupi constitui um olhar investigativo permeado por desafios.

Nesse cenário entre rios florestas, as discussões do grupo de estudo GEDAI

(Discursos, Mediações e Sociedades Amazônicas) aliadas à experiência docente nas

escolas rurais do município foram fundamentais para desenvolver esta pesquisa em função

dos temas relacionados às sociedades indígenas de tradição Tupi, às mídias e às análises

das narrativas, a partir da perspectiva teórico-metodológica da análise do discurso.

No percurso das investigações, as análises da pesquisadora Ivânia Neves muito

contribuíram, tornando-se o ponto de partida para pensarmos a memória Tupi no Marajó

das Florestas. Nessa trajetória, o objetivo principal era analisar como as narrativas orais,

contadas por moradores ribeirinhos do rio Tajapuru, com suas dispersões e regularidades,

atualizam uma memória de tradição Tupi na contemporaneidade.

Sabemos que, nesta dissertação, não analisamos toda a cultura indígena no

arquipélago do Marajó, especialmente, na região do Marajó das Florestas, sem negar

também a relevância do Marajó dos Campos, na Amazônia Paraense. Seria muita pretensão

de nossa parte chegar a esta conclusão. A elaboração desta produção acadêmica, construída

das análises de narrativas orais, sem olvidar a presença africana, aproxima-se mais das

matrizes indígenas de tradição Tupi, constituindo uma das versões da história do ocidente

marajoara em contato com a cultura europeia. Esta memória atualizada em narrativas,

contadas pelo sujeito ribeirinho, é outra forma de olhar para a história local.

Nesta investigação, elaboramos o levantamento bibliográfico sobre referências

indígenas no Marajó das Florestas e sobre sociedades indígenas de tradição Tupi. Durante

o processo de análises das narrativas escritas dos cronistas, viajantes e naturalistas, versões

da história ocidental, mergulhadas em olhares da cultura eurocêntrica, que deixava ver uma

construção histórica homogênea da região. Na perspectiva ocidental, o arquipélago do

Marajó é conformado por apenas uma “ilha” isolada em sua própria natureza geográfica.

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Os registros desta época ainda mostravam que os colonizadores denominaram os povos

indígenas única e pejorativamente como “Nheengaíba”, silenciando as particularidades das

práticas culturais de diversas e distintas nações marajoaras.

Ao trazer para as análises a concepção que se formou em torno do sentido da

nomeação ilha de Marajó, verificamos se tratar de uma memória que retoma os efeitos

históricos de segregação sócio-espacial e cultural construída pelo olhar do colonizador que

ainda hoje se vê atualizar pelo discurso dos meios de comunicação, institucionais e pelas

relações de alteridade dos moradores locais. Estes discursos postos em circulação retomam

posições eurocêntricas e colonialistas desconsiderando os aspectos históricos e culturais

das sociedades do Marajó das Florestas e até mesmo do Marajó dos Campos.

Nesse sentido, as representações ideológicas etnocêntricas que atualiza a memória

ilha do Marajó, tanto para quem é de fora como para os que habitam a região, fizeram-nos

deslocar nossos olhares buscando compreender a dinâmica natural da biodiversidade e

pluralidade da cultura local entre alguns municípios que conformam o arquipélago do

Marajó. Nas análises das definições de Marajó dos Campos e Marajó das Florestas ficavam

evidentes as condições históricas e culturais dos circuitos de movimentação que existe

entre campos e florestas com Belém, Macapá, Santana, Santarém, Manaus.

Outro aspecto que aparece na construção discursiva da história regional da

Amazônia, é que em finais do século XVIII, no Marajó dos Campos, os Aruã, Mundim,

Maruanaz, Sacaca, Arari e Muaná e no lado do Marajós das Florestas, os Mapuá, Guajará,

Aramá, Juruna, Amanajá, Mamaianase, Anajá, Mocoões, Chapouna, Pacajá, Oriquena,

Guaianase e Nheengaíba estavam exterminadas na condição de sociedade organizada. Essa

representação histórica reafirmada por muitos historiadores da região silencia que uma

parcela significativa destes indígenas incorporou-se a população local e suas práticas

culturais (re) criaram e (re) constituíram antigos e novos sentidos de suas cosmologias,

saberes, crenças e religiosidades a partir das matrizes indígenas marajoaras.

E nesse aspecto, a pesquisa dialoga com os trabalhos de alguns pesquisadores da

região. São posições históricas e institucionais que colocaram em questão o estudo da

categoria ribeirinha. No campo da história social, consideramos relevante a perspectiva da

identidade afroindígena que investigando as práticas culturais dos ribeirinhos possibilitou

ler em suas narrativas orais as contínuas reafirmações das identidades indígenas e negras,

mas concentrando suas análises para as identidades africanas no arquipélago do Marajó.

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Entretanto, nossas inquirições permitiram outros olhares sobre a cultura local com vista na

atualização de cosmologias, saberes, religiosidades que constroem a memória Tupi em

narrativas orais contemporâneas narradas por ribeirinhos do Marajó das Florestas.

No percurso destas análises, outro fato interessante é como a partir dos séculos

XIX e XX a presença indígena passou a ser incorporada ao cenário das pesquisas

arqueológicas e associadas à cerâmica marajoara no arquipélago do Marajó. Pela lente da

arqueologia a possibilidade de construção da historiografia da cultura indígena marajoara

contribuiu para refletirmos a importância deste estudo na região. Mas hoje, precisamos ir

além, pois a memória indígena se apresenta na perspectiva de uma descontinuidade

histórica materializada em nossas práticas culturais, em nossas narrativas, em nossas

cambiantes identidades, como explica Neves (2009, p. 206).

Esta memória Tupi, vista por muitos apenas como fragmentos sem

conexão, não está aí apenas com o objetivo de nos lembrar que existem

diferenças culturais. Ela sobrevive porque, apesar do celular, da internet,

das igrejas e das escolas esta memória constitui os índios de tradição

Tupi. Ela se inventa e se reinventa através de suas práticas sociais e

discursivas.

Por sua própria natureza, as narrativas analisadas nesta investigação, narradas por

ribeirinhos do rio Tajapuru, mesmo que permitam atualizar acontecimentos históricos da

cultura indígena no arquipélago do Marajó, expressas no cotidiano das práticas culturais,

saberes e cosmologias, atualmente, reafirmadas em suas memórias, não consegue traduzir

toda a profundidade das diferentes sociedades indígenas do Marajó das Florestas. Todavia,

sua singularidade histórica não deixa de inscrever-se na constituição de um capítulo

importante das pelejas culturais de tradição Tupi na região.

A pesquisa etnográfica conforme Geertz (2008) e Cardoso de Oliveira (2006)

colaboraram com as condições viáveis para registrar as complexas teias das práticas

culturais de tradição oral das populações ribeirinhas. Além disso, mostrou que esta

identidade generalizante silencia aspectos sociais relevantes da cultura local e interdita

uma memória indígena que se materializa nas tradições, cosmologia, saberes e

religiosidades que se filiam a uma rede de memória indígena de tradição Tupi.

Fundamentados na perspectiva teórica da análise do discurso, especificamente, na

definição de micropoderes e nas discussões elaboradas pelos estudos culturais analisamos a

constituição e reconstrução das identidades na sociedade ribeirinha. Por estas leituras,

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conhecemos as implicações históricas e a relações de poder que produzem esta identidade

que é forjada pela escola, pela mídia e pelas instituições governamentais.

Nesta direção, a concepção multiperspectívica sobre a identidade ribeirinha

ampliou os debates culturais revelando pontos que essa categoria escamoteia relacionados

à etnia, gênero, classe e sexualidade na região amazônica. Essa percepção contribuiu para

pluralizar as identidades da cultura local, perceber as relações de poder e as implicações de

uso desta categoria socialmente estabelecidas pelas instituições acadêmicas.

Nesses rastros das práticas sociais, no cotidiano das sociedades do rio Tajapuru,

possibilitou coletar as narrativas de matrizes indígenas de tradição Tupi como A Velha

gulosa”, “Esperteza do jabuti” e “A Criação da noite”, analisadas nesta dissertação que

“mostram como esta memória Tupi resistiu ao sistema colonial e como ainda hoje está viva

na oralidade” (NEVES, 2009, p. 205) com suas dispersões e recorrências, constituindo uma

memória discursiva Tupi, na Amazônia Paraense.

Na história do presente, os moradores do rio Tajapuru vivem os embates culturais

e os descentramentos em relação a suas práticas culturais e às novas tecnologias que se

instalam na paisagem natural das comunidades. As tecnologias de comunicação – o rádio,

a televisão, parabólica, etc., que compõe o cenário midiático do Marajó das Florestas deixa

ver as constantes resistências, negociações e tensões culturais entre a tradição Tupi e

práticas modernas deslocando os sujeitos e criando novos sentidos sociais.

O desenvolvimento desta pesquisa nos faz entender que a presença indígena,

embora já existam alguns estudos nesta área, é pouco conhecida por uma parcela

significativa dos historiadores. A forma homogênea como são pensadas estas sociedades na

Amazônia silencia as particularidades históricas, culturais e geopolíticas. Em relação aos

ribeirinhos, não é muito diferente essa condição de objetivação destes sujeitos. Contudo,

nossa análise ao trazer as perspectivas históricas que produziu o rio Tajapuru, no Marajó

das Florestas, possibilitou a escuta das memórias subterrâneas da região, que atualizam em

narrativas orais acontecimentos da cultura de tradição Tupi.

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Vocabulários

Acapu: No trabalho de Assis (1992, p. 10), é uma “arvore da família das Laguminosas

Ceasalpiniáceas. Alta, casca cinzenta escura com depressões. A madeira é muito explorada

em assoalhos, portas e janelas”. Estradelli (1929, p. 359), afirma ser “arvore “casta de

árvores de terra firme e vargem alta. Madeira de fibra longa, escura e muito resistente ao

tempo aos cupins, muito usada nas construções civis para viga, soalho portões e nas

construções de taipa para estojos”.

Acará: “Casta de peixe fluvial e marinho” (ESTRADELLI, 1929, p. 360).

Andiroba: Na língua Tupi chama-se de “andiráua-yua: andirobeira. Grande árvore de terra

firme do gênero Carapa. Andiráua – fruto da andirobeira, de onde se extrai um azeite

amargo, que se emprega desde muito tempo na confecção de um sabão de inferior

qualidade (ESTRADELLI, 1929, p. 369). Segundo Assis (1992, p. 15), é “planta da família

das Meliáceas; arvore grande, casas cinzenta e grossa; o azeite extraído do fruto da árvore

do mesmo nome, é usado como excelente remédio na medicina popular, para fricções,

contusões, baques em geral, madeira de lei usada em marcenaria e carpintaria”. No rio

Tajapuru, “deu-se o nome de igarapé Andiroba porque havia uma árvore de andirobeira

que dava muitos frutos em sua entrada” (SILVA, 2011, p. 9).

Aninga, aningal ou aningueiras: Para Miranda, existe “uma tendência em reservar o

nome indígena puro às frutas, e em conhecer as arvores acrescentando-se a esse nome o

prefixo português - eiro ou - eira. Assim ninguém já diz uma bacaba, um açaí, um abio,

um ingá, uma mangaba, uma pupunha falando das arvores” (1905, p. 6). Na pesquisa de

Estradelli (1929, p. 359), é uma “planta que cresce nos lugares alagados da costa; muito

comum na baia de Marajó. Para Assis (1992, p. 16-17), designa “planta das Aráceas; planta

herbácea, abundante nas margens pantanosas dos lagos, rios e depressões de várzeas, é

muito comum às ilhas da Amazônia. As flores e os frutos servem para isca na pescaria, e,

segundo o povo, é medicinal”. Aningal também é o “nome de um rio que entrecorta o rio

Tajapuru” em Melgaço (SILVA, 2011, p.9).

Apapá: “Designação comum a várias famílias de sardinhas de água doce da Amazônia”

(ASSIS, 1992, p. 17).

Aracu: “Nome genérico de várias espécies de peixes da família dos corimbatae, muito

apreciado apesar das muitas espinhas” (ESTRADELLI, 1929, p. 374). Na região marajoara

é conhecido ainda como “piaba” (ASSIS, 1992, p. 18). Em Melgaço, o nome deste peixe

foi utilizado nomear um igarapé de “Aracu devido o mesmo ter grande variedade de peixes

e se destacar por possui bastante aracu” (SILVA, 2011, p. 10).

Aturiá: Nome “dado a certa planta da região amazônica, pertencente à família das

Leguminosas” (ASSIS, 1992, p. 21). Na paisagem natural da floresta amazônica constitui a

“casta de arvoredo alto porte, comum na vargem ao longo dos rios e dos igarapés do baixo

Amazonas, que fornece uma madeira clara e leve, de muito pouco uso” (ESTRADELLI,

1929, p. 382). Conforme Silva (2011, p. 11), “é um igarapé e recebe a denominação

Aturiazinho porque ele era cheio de aturiá na boca”.

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Bobuiar: No livro O selvagem, de Magalhães (1975, p. 64), o etnólogo, ao analisar os

verbos em Português de origem Tupi destaca-o com o sentido de “flutuar sobre a água”.

Nas análises de Assis (1992, p. 36), encontramos sobre a forma de bubuiar, com o mesmo

sentido anterior, significando “boiara, flutuar na superfície d´água. Usa-se em geral em

forma de locução de bubuia”.

Cacuri: “Este nome é dado a instrumentos de pesca diferentes. No alto e baixo Amazonas

é sinônimo de matapi. No rio Capim é uma tapagem em igarapés feita de duas paredes de

paris ou varas, a certa distância uma da outra, perpendicularmente ao curso da água. É uma

espécie de “armadilha para pegar peixes” (MIRANDA, 1905, p. 17). Outra significação diz

que consiste numa “barragem construída nos lugares de maior correnteza, geralmente

apoiada a margem, com a qual forma ângulo e destinada a obrigar o peixe que vem

subindo, arrostando a correnteza, a entrar num curral, de que a barragem é um lado, onde

fica preso” (ESTRADELLI, 1929, p. 389). Em Melgaço, este nome refere-se ao “rego do

Cacuri porque no tempo do pescado, no começo do inverno, os peixes subiam o rego para

desovar e algumas pessoas faziam cacuri, instrumento de tala de arumã, para pegá-los”

(SILVA, 2011, p. 16).

Cipó: Na região, por ser resistente, é utilizado para trançar as palhas nas cobertas das casas

de taipa. Conforme Assis (1992, p. 56) é um “tipo de vegetação trepadeira, parecida com

cordas e que se trança nas arvores”. É classificada também com o “nome genérico de

plantas sarmentosas, pertencentes as mais diversas famílias vegetais, que vivem apoiando-

se e agarrando-se as outras plantas, com suportes para poder-se elevar, sem que com tudo

vivam dela, ao menos no geral (ESTRADELLI, 1929, p. 418).

Copaíba: Denomina-se em Tupi “copayua – árvore das famílias das Terebinthaceas,

gênero Copaitera, que fornece o óleo medicinal conhecido como o mesmo nome e uma boa

madeira para obras internas (ESTRANDELLI, 1929, p. 421).

Palha: Conforme Miranda (1905, p. 70) “chama-se palma das palmeiras”, utilizada em

diferentes lugares da Amazônia para cobrir casas de taipa, taperi e outros alojamentos.

Pari: Instrumento de pesca “tecido de talas, de varas finas, ou de jussara, com a qual se

fazem diferentes tapagens para pescar em cacuri, curral, igarapés, furos e rios”

(MIRANDA, 1905, p. 72, com grifos meus).

Purú: “ornado, enfeitado” (ESTRADELLI, 1929, p. 622).

Matapi: Instrumento de pesca utilizado para pegar camarão e peixe. “É um covo oblíquo,

feito de jacitara com abertura na base” (ASSIS, 1992, p. 116). Miranda (1905, p. 61),

assinala que é também um “instrumento de pesca de forma cilindro-cônico, fabricação de

talas, tendo na extremidade mais fina uma tampa por onde se retira o peixe, e na outra

extremidade, a boca, um dispositivo especial, como o dois orifícios de entrada das

ratoeiras, que permite ao peixe o ingresso, mas venda-lhe a saída”.

Miriti ou Miritizeiro: “palmeira muito alta própria de lugares alagados. Suas folhas

servem para construção de telhados, é usado também no artesanato na confecção de cobras,

sombrinhas, barcos etc.” (ASSIS, 1992, p. 199-120).

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Moquear ou Muquiar: Em tupi diz-se “mocaeu – moquém, moqueado. Carnes secas ao

calor brando do fogo; o ato de secar ao calor brando do fogo as carnes para conservá-las”

(ESTRADELLI, 1929, p. 528). Para Miranda (1905, p. 67), consiste em “assar lentamente

a certa altura das chamas, sobre o muquem produzindo um pouco de fumaça. É operação

diferente da de assar, que é feita ao calor das brasas, sem chamas nem fumaça”. Ou

significado desse autor refere-se a um “pequeno girau a 30 ou 40 centímetros do solo,

sobre o qual se coloca o peixe ou a caça a muquear”.

Murupiara: “feliz na caça ou na pesca, bem sucedido, afortunado” (ESTRADELLI, 1929,

p. 517).

Mururé: Designação em “Tupi murerú – casta de planta aquática que cresce estendendo-se

sobre a superfície das águas paradas, e que quando começa a vazante se aglomeram na

boca dos lagos, rios, igarapés, furos em grande quantidade, obstruindo a passagem e

dificultando a navegação, até de pequenas canoas” (ESTRADELLI, 1929, p. 558, com

grifo meus). Para Assis (1992, p. 125), espécie de “erva flutuante com folhas arredondadas

e flores violáceas com centro amarelo”.

Mutá: “Girau. Estrado feito a certa altura da terra e dissimulado com folhagem, onde o

caçador se posta à espera da caça que deve vir beber água nalguma fonte ou poça próxima,

comer as frutas caídas ou lamber terra, nos lugares onde há afloramento de sais”

(ESTRADELLI, 1929, p. 562).

Remanso: “Correnteza na margem oposta à do canal do rio, formando um verdadeiro

funil. É também chamada de redemoinho” (ASSIS, 1992, p. 161).

Sarazal: Trançado de cipós de diferentes espécies que impedem a passagem pelo meio da

floresta, impondo obstáculos ao percurso e a movimentação livre.

Socó: “nome genérico de uma casta de pernaltas, de pescoço muito comprido e

desproporcional com o corpo, e bico forte e acerado” (ESTRADELLI, 1929, p. 647).

Taja: “nome comum a muitas plantas que se distinguem pelas largas folhas, formando

toiça, muitas vezes elegantes e caprichosamente manchadas” (ESTRADELLI, 1929, p.

656).

Traíra: Diz-se em Tupi “taraíra (trahira/ Traíra). Casta de peixe de escama. Erithrynus e

afins, que pela potência da dentadura vem logo depois da piranha, pelo que alguns

indígenas se servem também desta para serra e até preferem. Embora muito espinhenta, sua

carne é muito apreciada e seja na subida, quando vão desovar nas cabeceiras, seja quando

descem prenunciando a vazante, as piracemas das taraíras são objetos da ativa

perseguição” (ESTRADELLI, 1929, p. 666-667). Segundo Assis (1992, p. 191), além de

ser um peixe de escama tem a “carne dura, encontrado tanto em água doce, como em água

salgada; peixe essencialmente carnívoro”.

Tocaiar: “Ficar a espera da caça perto da toca ou no lugar que se sabe por ela

frequentado” (ESTRADELLI, 1929, p. 678).

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Tocandiras: Na obra O selvagem, do etnólogo Magalhães (1975, p. 132), é “espécie de

formiga cuja ferroada é doloridíssima e pode produzir febre; no sul damos-lhe o nome de

caracutinga”. Para Assis (1992, p. 189), no vocabulário regional do Marajó, aparece com o

de “tocandeira, espécie de formiga agressiva, cuja picada provoca ardume”.

Piracema: “cardume de peixes que em certas épocas do ano sobem ou descem os rios a

procura de novos pontos ou mais comumente a desova e de volta dela” (ESTRADELLI,

1929, p. 602; MIRANDA, 1905, p. 77).

Tucumã: “Na Amazônia é uma fruta comestível de uma palmeira. Um coquinho

extremamente duro, coberto de uma massa oleosa, adocicada, mais ou menos perfumada,

segundo as qualidades. A massa oleosa dá um excelente azeite, e no rio Negro, ao tempo

da antiga Capitania, a extração de azeite de tucumã foi uma indústria florescente, a

qualidade era tal, que servia até para a iluminação pública e privada” (ESTRADELLI,

1929, p. 682). Para Assis (1992, p. 192), “das fibras do tucumanzeiro podem-se fazer

redes de pesca e, até mesmo, redes de dormir. Seu nome popular é tucum”.

Tucunaré: Conforme Assis (1992, p. 193) é “um peixe teleósteo da Amazônia, apresenta

coloração prateada com barras escuras transversais sobre um fundo marron-amarelado”.

Na culinária amazônica é um dos “melhores peixes dos nossos rios, comum em todo o

vale, de carnes rijas e saborosas e limpas de espinha, que se distingue por um olho de

pavão na cauda e manchas transversais de cores alternadas, variáveis de espécie a espécie,

mas muito regulares e decrescentes da cabeça à cauda” (ESTRADELLI, 1929, p. 682).

Ucuúba: popularmente conhecida entre os madeireiros como árvore de virola. Madeira

leve utilizada para fabricar cabo de vassouras, arremates internos de sofá e sustentar lajes

em construção civil de alvenaria. “Árvore da família das Miristáceas cujos frutos contêm

sementes oleaginosas. Habita nos igapós; ramificações irregulares, verticalizadas, quase

horizontal; folhas estreitas, madeira branca” (ASSIS, 1992, p. 196).

Urumã ou Arumã: “Planta da família das Mirantáceas, que serve para confecção de

balaios, cestos, paneiros, etc. Há várias espécies” (ASSIS, 1992, p. 21).

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FONTES DE PESQUISA

Cronistas, viajantes, escritores, etnólogos e documentos escritos

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