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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA NA LEI
Por: Roberta Pereira Rangel
Orientador
Prof. Celso Sanches
Rio de Janeiro
2005
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA NA LEI
Apresentação de monografia à Universidade Candido
Mendes como condição prévia para a conclusão do
Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Psicologia
Jurídica. São os objetivos da monografia perante o
curso e não os objetivos do aluno
Por: Roberta Pereira Rangel
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AGRADECIMENTOS
Às amigas do curso de Psicologia Jurídica que tornaram
esse curso mais interessante:Eva Costa, Mônica Ferreira,
Márcia Navega e Neide Chaves.
À minha divina e amada família: José Roberto,
Terezinha,Leandro,Claudia,Thiago.
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DEDICATÓRIA
Ao Prof. Celso Sanches pela dedicação e esmero em seu
trabalho como orientador.
À Tia Eva Milla pela defesa do trabalho acadêmico.
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RESUMO
Com este trabalho, pretendemos analisar as representações da infância na
lei, através do processo de transição do conceito de infância desde o Império até a
atualidade. Esta análise nos permite perceber como foi realizada a construção de
uma legislação nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que atualmente
qualifica a criança e o adolescente como sujeitos de direitos.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7 CAPÍTULO I CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL 10 CAPÍTULO II
HISTÓRICO DA INFÃNCIA 14
2.1- SURGIMENTO DE LEGISLAÇÕES DA INFÂNCIA NO PERÍODO DO IMPÉRIO 18 CAPÍTULOIII A CRIAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 21 3.1-A CONSTRUÇÃO DO DIREITO DO MENOR 22
3.2-A DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR 25
3.3- A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL 29
CONCLUSÃO 34
BIBLIOGRAFIA 35
FOLHA DE AVALIAÇÃO 37
7
INTRODUÇÃO
Neste presente trabalho, tenho o empenho em avaliar como foi construído o
conceito de infância ao longo dos últimos duzentos anos, e também analisar os
efeitos da evolução desse conceito no âmbito jurídico.Para essa análise,faz-se
necessário explicitar a Teoria das Representações Sociais, que será importante ao
esclarecimento da relação entre indivíduo e sociedade. Esta relação é
fundamental para a compreensão dos fenômenos sociais e psicológicos, pois a
evolução do indivíduo ocorre quando há interação com a sociedade. Um não
existe sem o outro, mantendo uma relação estreita entre si.
A partir daí, fizemos a seguinte pergunta: como a criança adquiriu o status
de sujeitos de direitos? Quais os caminhos foram percorridos durante essa
trajetória? Diante de tantas indagações e inquietações, investigamos todo o
processo histórico que aponta a criança como um ser sem representação social e
que vai conquistando um espaço único, a partir da bandeira dos Direitos
Humanos. Dessa forma, foi adquirindo um lugar e uma representação profunda na
vida de nossas famílias, sendo um personagem importante em nossa estrutura
social. O marco teórico desse trabalho, será a Representação Social de Serge
MOSCOVICI (1987), além de evidenciarmos o aspecto histórico da infância
analisada por ARIES (1983) e por fim como a infância avançou ao longo da
história até chegar à criação de uma legislação nacional, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (1990).
A importância desse estudo nos leva a reflexão sobre a formação do
conceito de infância, sendo este um conceito construído socialmente, fazendo-nos
com que tenhamos uma maior compreensão da criança, fornecendo assim
maiores subsídios para a prática do Psicólogo Jurídico.
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No capítulo I, haverá a conceituação de Representação Social, definida por
MOSCOVICI (1987) que nos mostra como devemos compreender a realidade a
partir dos estudos dos comportamentos e das idéias do momento histórico vigente.
No capítulo II, faremos o relato sobre o histórico da infância tendo como
ponto de partida a transição do Império para a República. Desde esse período, o
conceito de infância vem se remodelando e conquistando espaços cada vez mais
significativos e consolidados em nossa sociedade. Nem sempre foi assim. A
infância é um conceito novo da era moderna, ganhando novos contornos e
adquirindo sentidos e direitos legais em toda esfera pública e privada. Isso ocorre
mediante um processo sócio-histórico lento, dentro da aquisição de novos saberes
(Psicologia, Pedagogia e Pediatria...) com o intuito de auxiliar os pais na estreita
relação com os filhos.
No conceito de infância foi havendo reformulações, de acordo com o
momento histórico vigente. No período do Império, as crianças eram vistas de
modo diferente do período atual e pretendemos demonstrar os efeitos dessa
mudança no ponto de vista sócio-jurídico. Sob essa perspectiva, a criança não era
vista como um ser em desenvolvimento e não possuía nenhum direito na
sociedade, ou seja, ocupava um “não-lugar” sem uma representação social de sua
história.
Com o advento da República e suas respectivas mudanças no cenário
político e na vida familiar, iniciou-se o processo de aburguesamento da classe
média, surgindo assim o conceito de família moderna. Este processo de transição
sócio-político-econômica transformou a noção social de infância atribuindo à
criança, uma série de fases de desenvolvimento emocional e intelectual que
exigem cuidados ministrados por profissionais especializados cuja finalidade era
melhor definir as necessidades da criança e aconselhar os pais sobre como criá-
la. Concomitante a esse processo, o surgimento da Psicologia e da Pedagogia,
tem um papel fundamental. Dessa forma, surge uma nova concepção de infância
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que passa a ser um ser em formação que necessita de cuidados especiais,
materiais e afetivos.
No Capítulo III,será relatado como foi criado o Estatuto da Criança e do
Adolescente, a partir da revogação do Código de Menores que vigorou durante
muitos anos. Analisaremos também, como foi realizada a construção da
representação da criança na sociedade atual, onde permaneceu, por muitos anos,
invisíveis aos olhos de toda a população. Ficaram sem voz por muito tempo e aos
poucos foram se tornando visíveis à luz dos processos sociais vigentes. O ECA
(1990) abriu caminhos para o seu público na conquista de seus direitos e assim,
ocupar um lugar de destaque em nossa sociedade.
10
CAPÍTULO 1
CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL.
Nos últimos anos, o conceito de representação social vem surgindo com
bastante freqüência em trabalhos de diversas áreas, o que leva muitas vezes à
indagação sobre o que será, afinal, algo de que tanto se fala.
Entretanto, este conceito atravessa as ciências humanas, mas é na
Psicologia Social que a Teoria das Representações Sociais ganha uma
teorização.
A Teoria das Representações Sociais teve origem na Europa, através da
publicação do trabalho de SERGE MOSCOVICI (2003) , intitulado de
Psychanalise: Son image et son public. O conceito de representação social ou
coletiva nasceu na sociologia e na antropologia, através de DURKHEIM e de
LÉVI-BRUHL(ibid.). Do ponto de vista de DURKHEIM, por exemplo, as
representações sociais ou "representações coletivas", expressam a primazia da
sociedade em relação ao indivíduo. Para ele, é a sociedade que exerce uma ação
coercitiva sobre as consciências individuais. DURKHEIM se opôs à psicologia do
indivíduo, fazendo uma distinção entre a sociologia (estudo das representações
coletivas) e a psicologia (estudo das representações individuais).
MOSCOVICI retoma o conceito de representação coletiva de
DURKHEIM para desenvolver uma teoria das representações sociais no campo da
psicologia social. Esta aborda as representações sociais a partir da relação
indivíduo-sociedade, refletindo como os indivíduos, os grupos, os sujeitos sociais,
constroem seu conhecimento a partir de sua inscrição social, cultural., por um
lado, e por outro como ocorre o conhecimento da sociedade e a construção desse
11
conhecimento sobre os indivíduos, ou seja, como se faz a interação entre sujeitos
e sociedade para a construção da realidade.
A Teoria das Representações Sociais constitui um instrumento para a
análise dos aspectos sociais, pela forma como retratam a realidade. Esta teoria
parte do pressuposto de que existem formas diferentes de conhecer e de se
comunicar, dirigidas por objetivos diversos, fazendo-se a clara distinção entre
senso comum e ciência. O que ocorre é uma clara reabilitação do saber popular,
do conhecimento do cotidiano. Se este saber era considerado confuso,
inconsistente, equivocado, o autor questiona a racionalidade científica e se opõe à
idéia de que as pessoas comuns, da vida diária, pensam irracionalmente.
MOSCOVICI (1986) valoriza o comportamento individual para compreender como
o sujeito, em sua relação com o mundo, constrói e atribui significados às suas
ações, experiências e projetos pessoais. Essa construção não pode ser vista de
um modo isolado, sem conhecer a representatividade dessa mudança dentro da
sociedade. Do ponto de vista sócio-histórico, a representação social nos permite
esclarecer realidades e como ocorre a evolução de diversos conceitos ligados a
fatos sociais.
Segundo MOSCOVICI (1986) as Representações Sociais, determinam a
interpretação dos comportamentos, designa uma forma de pensamento social
onde o conhecimento provém da observação. Nesta perspectiva, as
Representações Sociais da realidade estão sempre vinculadas às experiências, à
cultura assimilada no decorrer de sua vida, à linguagem que utiliza nas relações
sociais, enfim à própria história pessoal e do grupo social com o qual convive e se
relaciona. O conhecimento dessas representações oferece a compreensão de
como os sujeitos sociais apreendem os acontecimentos da vida diária, as
características do meio, as informações que circulam, as relações sociais.
A representação social traz em si a história, na história particular de cada
um. Nas variâncias de sua estrutura estão as particularidades de cada sujeito e
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em suas invariâncias,as marcas do sentido atribuído, por determinados segmentos
ou grupos ou, por sua totalidade, a dado um objeto.
De acordo com MOSCOVICI, o sujeito é ativo e construtor de sua
identidade social e por sua vez amplia a capacidade explicativa do conceito:
"Nos dois mundos, o da experiência individual todos os comportamentos e todas as percepções são compreendidas como resultantes de processos íntimos, às vezes de natureza fisiológica. No outro mundo, o dos grupos, o das relações entre pessoas, tudo é explicado em função de interações, de estruturas, de trocas de poder... Esses dois pontos de vista são claramente errôneos pelo simples motivo de que o conflito entre o individual e o coletivo não é somente do domínio da experiência de cada um, mas é igualmente realidade fundamental da vida social". (MOSCOVICI, 1994: 16).
De acordo com o Dicionário de Sociologia (1977), representação social
significa “Idéias, crenças, recordações comuns e maneiras de representação do
universo e da sociedade.” (FERRE IRA, Luis P.P. 1977).
HERZLICH (1991) comenta que a posição de DURKHEIM parece ser
restritiva, na medida em que reduz as possibilidades de manifestações individuais,
pois o indivíduo encontra as formas coletivas de pensar formadas e conformar-se
a elas.
Segundo WEBER (1974) “ não são as idéias, mas os interesses materiais e
ideais que governam diretamente a conduta do homem”, mesmo assim é
importante que haja pesquisa das idéias como parte da realidade social.
A investigação das idéias nos remete ao profundo conhecimento da
realidade em que vivemos, nos levando a compreender as mudanças sociais e
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com isso lançamos um novo olhar acerca dos fatos sociais. Com esse novo olhar,
há mudança de paradigmas e uma nova ordem s A investigação das idéias nos
remete ao profundo conhecimento da realidade em que vivemos, nos levando a
compreender as mudanças sociais e com isso lançamos um novo olhar acerca
dos fatos sociais. Com esse novo olhar, há mudança de paradigmas e uma nova
ordem se instala com o compromisso de pensar a realidade que nos cerca. A
Representação Social nos permite a revisão de velhos conceitos, sendo possível
que haja a desconstrução dos ideais impostos como verdades reinantes.
Com a Teoria das Representações Sociais, torna-se possível a
compreensão dos fatos sociais produzidos na sociedade. Esta se relaciona com o
mundo através de códigos e estereótipos que internalizamos como “verdades” e
com muito empenho somos capazes de desconstruir alguns mitos, para que
ocorra a evolução dos fatos sociais e humanos. Essa desconstrução caminha
junto com as representações sociais, no sentido de pensar sob determinado
enfoque da realidade social. A realidade é socialmente construída e o saber é
uma construção do sujeito, mas não desligada da sua inscrição social. Assim,
MOSCOVICI propõe uma psicossociologia do conhecimento, com forte apoio
sociológico, mas sem desprezar os processos subjetivos e cognitivos.
As representações sociais nos dão uma direção no estudo dos conceitos,
nos fazendo compreender como ocorrem as transformações conceituais de
acordo com a evolução histórica do período vigente. Elas têm uma importância
com relação ao conceito de infância, por este ser um conceito construído
socialmente e ter uma representação essencial para o profundo entendimento da
organização de nossa sociedade.
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CAPÍTULO 2
HISTÓRICO DA INFÂNCIA
A infância durante muitos anos ficou invisível aos olhos da sociedade, sem
alguma representação social. Por vezes, permaneceu escondida, sem lugar
significativo. O que existia era um homenzinho em tamanho reduzido. Isso data do
séc. XII, onde não se tinha uma imagem real da infância, nem mesmo um maior
interesse pela criança. Ao longo da evolução, o conceito de infância foi
perpassando por longos períodos de transição, havendo modificações e
aperfeiçoamento em seu conceito.
A partir das Representações Sociais, podemos pensar em como se
constituiu o conceito de infância desde o Império até a atualidade e qual o
significado da infância dentro da família moderna. Este conceito foi construído em
cada etapa sócio-histórica do momento vigente. A evolução histórica do conceito
de infância, torna-se importante para entendermos melhor o contexto social e
psicológico do desenvolvimento infantil e na compreensão das leis jurídicas
estabelecidas em 1990.
O conceito de infância vem sofrendo modificações desde o Império,onde
nesse período a criança não era vista como sujeito e o que se via era uma visão
estigmatizada e sem valor do ponto de vista social. No Império, a infância não
existia como tal, referia-se às crianças com a expressão “menor”, que significava
crianças nascidas das camadas mais baixas do estrato social. Assim, criaram-se
categorias de crianças de cunho “suspeitas” e “potencialmente perigosas”. Com
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essa nomenclatura estigmatizante marcou-se a diferença preconceituosa entre os
bem-nascidos e os potencialmente perigosos para a sociedade.
A tutela estatal sobre as famílias ocorreu com o advento do capitalismo, sob
as exigências de aumento de um mercado consumidor e uma mão-de-obra
adestrada e dócil. No século XIX, a reserva de mão-de-obra integra o novo
cenário político e social e assim a infância passa a ser definida como objeto de
ação e intervenção públicas em todo Ocidente. Com essa intervenção, a criança é
vista como mão-de-obra importante para a economia, pelo fato de haver a
valorização do trabalho como valor positivo. No período colonial, o trabalho era
visto de forma negativa, sendo associado aos escravos ou a pessoas sem valor
nem peso na escala social.
A mudança de paradigma aconteceu diretamente sobre as famílias, capaz
de transformar a identidade dos sujeitos e a modificação do discurso sobre a
infância. A infância passou a necessitar de cuidados especiais: pediatria,
pedagogia, a puericultura (Azevedo, 1989), com o intuito de normatizar as
condutas ideais referentes à infância. A forma distinta para o ingresso dos
discursos científicos médicos e pedagógicos na esfera familiar foi a defesa da
infância; sob o ponto de vista de que era imprescindível o estabelecimento dos
padrões de “cuidado da infância” , o discurso científico enfatiza que era dever das
famílias “preparar seus filhos para o futuro”, disciplinar e domesticar as crianças
incutindo-lhes bons hábitos e adequar seu comportamento. Assim, os adultos
teriam que ser tornarem bons pais e boas mães de família, fazendo parte do
enredo da trama familiar nuclear.
A partir de então surge a família nuclear composta por pai, mãe e filhos, por
volta do século XVIII. A família se vê permeada por um complexo interjogo de
autoridade e amor parental, mudando o seu contexto e a sua função social,
passando adquirir a responsabilidade sobre os filhos.Primeiro, esse modelo surgiu
nas famílias mais abastadas e somente por volta no século XIX foi adotado pelas
classes trabalhadoras, quando iniciaram diversas transformações na dinâmica e
no funcionamento das famílias e da sociedade.
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Antes do novo modelo imposto, a família tinha como principais funções a
transmissão da vida, a conservação do patrimônio, a prática comum de um ofício,
a cooperação mútua, e a proteção da honra e da vida, ficando em segundo plano
as relações de afetividade.
ARIÈS (1978) mostra também o lugar ocupado pela criança nesse novo tipo
de família e como as mudanças de atitudes com relação à infância contribuíram
para que adquirissem status de indivíduo. Durantes séculos, as crianças
aprendiam devido à convivência com os adultos. Mas, com o novo modelo
familiar, tendo como prioridade a autoridade parental e a dedicação dos filhos,
ocorreram muitas mudanças entre elas, a educação das crianças nas escolas,
havendo uma maior participação dos pais. A família começa a organizar-se ao
redor da prole, e conseqüentemente, os pais começam a pensar sobre a limitação
do número de filhos, para garantir-lhes melhores cuidados. Os casamentos
modificaram a sua ótica, introduzindo a presença da escolha mútua e da
afetividade, como forma de assim existir um “sentimento de família” com maior
valorização dos laços familiares.
“Esse sentimento está muito ligado também ao
sentimento da infância. Ele afasta-se cada vez mais as
preocupações com a honra da linhagem ou com a
integridade de patrimônio, ou com a antiguidade ou
permanência do nome: brota apenas da reunião
incomparável dos pais e filhos.” (ARIÈS, 1978,p. 223).
Dessa forma, a criança passa a ocupar um lugar de destaque nas famílias,
sendo um bem precioso para os pais e posteriormente, também para a sociedade
e do Estado.Como a criança inicia o processo de conquista de seu espaço social,
as políticas públicas passaram a dirigirem-se à saúde e à infância, possibilitando a
inserção da Medicina Pediátrica, a Psicologia, a Puericultura, e uma crescente
quantidade de instituições de ensino. Juntamente com o surgimento dessas novas
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ciências em favor da infância, em meados do século XIX, houve também a
participação dos juristas no campo da infância. Nesse período, a designação da
infância foi modificada, havendo a distinção da do termo “criança” para aqueles
nascidos em famílias mais abastadas e o termo “menor” para os desfavorecidos
socialmente, abandonados ou delinqüentes.
No período de transição do Império para a República, a Medicina alia-se ao
Estado, passando a intervir nas famílias, formando uma aliança forte com as
mães, no momento em que se inicia a valorização do papel materno,
reconhecendo assim a função educativa, a criança passava a ser mais valorizada
e com há a importância da privacidade do lar para afastar as influências
exteriores.
Segundo DONZELOT (1980) é essa promoção da mulher como mãe como
educadora e auxiliar médica, que servirá como ponto de partida para as principais
correntes feministas do século XIX.
As famílias iniciaram um processo de dependência com os agentes
educativo-terapêuticos, havendo uma invasão da intimidade dos lares. Segundo
COSTA (1983), os especialistas utilizam o mal-estar da família para promoverem
a adaptação de seus membros à ordem social por acreditarem que tem isenção
política de suas práticas profissionais.
“Que a família sofre e precisa ser ajudada, não há
dúvida! Não se trata de negar a desorientação e o sofrimento
emocional que perseguem os indivíduos urbanos às voltas
com seus dilemas familiares. A dúvida consiste em saber se
os remédios propostos, ao invés de sanarem o mal, não irão
perpetuar a doença. O problema começa quando
percebemos que a lucidez científica das terapêuticas
dirigidas às famílias escondem, muitas vezes, uma grave
miopia política”. (COSTA, 1983, P. 17)
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Atualmente devemos pensar a infância como um artefato social e histórico
e não uma simples entidade biológica. .Esse conceito torna-sei ndispensável para
entendermos a infância como um corpo social importante dentro de nossa
sociedade e não apenas um mero conceito sem representação.
Assim,conseguiremos conceber melhor a idéia de como a criança, ao longo dos
150 anos, conquistou seu espaço como sujeito de direitos e também como
cidadão.
2.1 – Surgimento de Legislações da infância no Período do Império. Na passagem do Império para a República, os juristas encontram-se diante
da necessidade de criar uma legislação especial para os menores de idade,
encorajados pela reorganização da sociedade de então - a mudança de regime
político; a força do movimento internacional de reforma do sistema penal,
juntamente com a promulgação de um novo Código Penal (1890) e a polêmica
revisão constitucional de 1891, que substituiu leis produzidas em 1824 e 1830.
Os últimos vinte anos do século XIX foram de intensa transformação no
cenário político do país, gerando mudanças na vida social brasileira. Isto causou
uma espécie de renascimento, libertação, pois, o Brasil estava tentando se firmar
como uma nação independente, livrando-se da dominação da ideologia
colonialista. Destarte, haverá transformações no cenário legislativo, por causa da
mentalidade voltada para o florescimento das idéias de identidade nacional, que
dominarão o país a partir da passagem para o século XX.
É dentro deste contexto que ocorre a possível compreensão do surgimento
de uma crescente preocupação com a infância. Contudo, uma preocupação
diferente da registrada no período Brasil Império. Mesmo havendo um enfoque do
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ponto de vista religioso e caritativo na ação da assistência à criança, o Brasil
República buscará na esfera jurídica o respaldo para a formulação e a solução
para o problema com relação à criança. Dessa forma, o Estado é chamado a
intervir, passando a ter responsabilidade sobre os menores de idade. Mas, a
mudança efetiva só seria concretizada décadas mais tarde, em 1927 com o
Código de Menores.
O final do século XIX, é um período importante que marca um novo ciclo da
legislação sobre a infância. Considerando-se o período anterior,
“uma outra criança ocupa um lugar de destaque na história
que tem início com o advento da abolição da escravatura,
seguido da Proclamação da República – uma criança
descrita como “um magno problema”.
(RIZZINI, 1985)
Nas duas primeiras décadas do século XX, ocorreu um crescente número
de leis para regulamentar a situação da infância, sendo alvo de diversos discursos
defendidos nas Assembléias das Câmaras Estaduais e do Congresso
Federal.(RIZZINI, 1985)
Esses discursos têm como argumentos a defesa incondicional da criança.
Mas,isto revela uma dualidade na defesa da criança (percebida como “em perigo”)
e na defesa da sociedade (contra a criança vista como perigosa).
“um dos principais propósitos das primeiras legislações sobre
a infância no Ocidente moderno foi servir como um poderoso
instrumento de penetração e controle das famílias
(Coimbra,2000:85).Referimo-nos ao controle das
virtualidades , apontado por Foucault como exigência das
sociedades disciplinares, um controle não apenas sobre o
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que se faz ou o que se é, mas sobre o que se pode vir a
fazer ou vir a ser” (Foucault,1996).
Assim, o problema da criança adquire uma dimensão política, imbuída de
intervenção jurídica para serem vistas como cidadãos úteis e produtivos para o
país, tornando-se o elo essencial para a organização moral da sociedade. Através
das leis sobre a infância, o Estado exerce um maior controle dos sujeitos
submetidos a uma nova ordem social.
O estudo da evolução histórica nos permite compreender a construção da
legislação brasileira da infância, passando pelo Código de Menores (1927) até
chegar efetivamente a elaboração e aprovação de uma nova lei, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990). A seguir, será demonstrado como foi realizado a
construção do ECA (1990), fazendo-se uma análise entre o passado e o presente
como forma de abrir novos caminhos para os Psicólogos e a sociedade em geral.
21
CAPÍTULO 3
A CRIAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE.
A história da legislação brasileira sobre a infância vem sofrendo
transformações ao longo dos últimos cem anos atrás, em função das mudanças
sócio-políticas ocorridas em nossa sociedade. Para haver uma mudança efetiva
no âmbito familiar, fez-se necessário haver a criação de uma legislação voltada ao
público infantil, como forma de regularizar as famílias e assim promover um maior
controle social sobre a sociedade. Também foi necessária a intervenção do
Estado sobre a vida privada e familiar dos indivíduos, a fim de fazer o
adestramento dos corpos. Essas premissas foram oriundas da Europa com o
objetivo de haver a preservação e reserva de mão-de-obra. Nesse contexto, a
infância precisa ser mais valorizada e a ser definida como objeto de ação e
intervenção públicas em todo o Ocidente (SANTOS,2004).
A infância teve uma longa trajetória no percurso histórico, até ser vista
como sujeito de direitos. A seguir, faremos análise dessa construção sócio-jurídica
problematizada pela nomenclatura “menor” , desvalida, até chegar a ser um
cidadão pleno em nossa sociedade, imbuído de direitos e deveres.
Iniciarei este capítulo comentando os Códigos de Menores de 1927 e o de
1979, ressaltando o tratamento diferenciado reservado à família desestruturada e
precária, os instrumentos pelos quais legitimou-se a figura do juiz como o fiel
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regulador das famílias e assim intermediar as relações destes pais e de seus
filhos com o Estado.
Haverá uma explanação do Estatuto da Criança e do Adolescente, tido
como uma das mais avançadas legislações de proteção à criança, e darei ênfase
à fundamentação que ele recebeu das convenções e dos tratados internacionais,
já na perspectiva de proteção dos direitos humanos, constituindo-se em um
instrumento pelo qual pode se dar a transição, gradativamente, da tutela da
criança e da família em situação de risco pessoal e social, da figura do juiz para o
educador social.
Apresentarei também um breve panorama do estágio atual de implantação
do ECA no país, relatando as principais conquistas e as principais dificuldades na
sua efetivação.
3.1-A Construção do Direito do Menor
Desde 1916 o Brasil possui, ainda em pleno vigor, um Código Civil, que
basicamente regula os direitos individuais, o direito de propriedade e o Direito de
Família.
Na parte referente ao Direito de Família estão elencadas as obrigações dos
pais em relação aos seus filhos, desde o nascimento até a idade de 21 anos.
Dentre tais obrigações estão o direito de filiação, a sucessão no nome e na
herança, a alimentação, a educação e a saúde, entrando o Estado apenas a título
complementar, se faltar à proteção familiar.
O Código de Menores de 1927, que consolidou toda a legislação sobre
crianças até então emanada por Portugal, pelo Império e pela República,
consagrou um sistema dual no atendimento à criança, atuando especificamente
sobre os chamados efeitos da ausência, que atribui ao Estado a tutela sobre o
órfão, o abandonado e os pais presumidos como ausentes, tornando disponível os
seus direitos de pátrio poder. Os chamados direitos civis, interpretados como os
direitos pertinentes à criança inserida em uma família padrão, em moldes
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socialmente aceitáveis, continuou merecendo a proteção do Código Civil
Brasileiro, sem alterações substanciais.
O descumprimento de quaisquer das obrigações estipuladas aos pais pelo
Código Civil, bem como a “conduta anti-social” por parte da criança passou a
justificar a transferência da sua tutela dos pais para o Juiz, e conseqüentemente,
do Código Civil para o Código de Menores.
O Código de Menores de 1927 destinava-se a legislar sobre as crianças de
0 a 18 anos, em estado de abandono, quando não possuíssem moradia certa,
tivessem os pais falecidos, fossem ignorados ou desaparecidos, tivessem sido
declarados incapazes, estivessem presos há mais de dois anos, fossem
qualificados como vagabundos, mendigos, de maus costumes. O Código
denominou estas crianças de “expostos” (as menores de 7 anos), “abandonados”
(as menores de 18 anos), “vadios” (os atuais meninos de rua), “mendigos” (os que
pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e “libertinos” (que freqüentam
prostíbulos).
O mesmo Código estabeleceu que os processos de internação destas
crianças e o processo de destituição do pátrio poder seriam gratuitos e deveriam
correr em segredo de justiça, sem possibilidades de veiculação pública de seus
dados, de suas fotos ou de acesso aos seus processos por parte de terceiros.
O Código de Menores também instituiu o intervencionismo oficial no âmbito
da família, dando poderes aos Juizes e aos Comissários de Menores, pelo Artigo
131, para vistoriarem suas casas e quaisquer instituições que se ocupassem das
crianças já caracterizadas como “menores”.
Como resultado das negociações para acabar com o Sistema da Roda e a
Casa dos Expostos, garantiu-se também o segredo de justiça, reservando-se às
entidades de acolhimento de menores e aos cartórios de registro de pessoas
naturais o sigilo em relação aos genitores que quisessem abandonar os seus
filhos, garantindo-se em particular o sigilo da mãe quanto ao seu estado civil e as
condições em que a criança foi gerada.
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Pelo seu Artigo 55, o Código de 27 dava também ao Juiz plenos poderes
para devolver a criança aos pais, colocá-la sob guarda de outra família,
determinar-lhe a internação até os 18 anos de idade e determinar qualquer outra
medida que achasse conveniente.
Apenas no Artigo 68, o Código ocupou-se do já então denominado “menor
delinqüente”, já fazendo a diferenciação entre os menores de 14 anos e os de 14
completos a 18 anos incompletos, sempre deixando clara a competência do Juiz
para determinar todos os procedimentos em relação a eles e aos seus pais.
Estabeleceu-se também a obrigatoriedade da separação dos “menores
delinqüentes” dos condenados adultos, mas em 1940 foi promulgado o Código
Penal Brasileiro (Decreto-lei n° 2.848/40), consagrando a inimputabilidade criminal
do menor de 18 anos de idade, depois regulamentada pelo Decreto-lei n°3.914/41
e até hoje em vigor.
Aos delinqüentes maiores de 16 anos instituiu-se a possibilidade da
“liberdade vigiada”, pela qual a família ou os tutores deveria ter responsabilidade
pelo processo de regeneração do menor, com as obrigações de reparação dos
danos causados e de apresentação mensal do menor em juízo.
O Código de Menores estendeu a autoridade do Juiz sobre os jovens de 18
a 21 anos de idade, concedendo-lhes atenuantes frente ao Código Penal, mas
determinando o recolhimento em Colônias Correcionais dos vadios e dos
jogadores de capoeira pelo prazo de um até cinco anos.
O Código de 27 estabeleceu como impedimento para o recebimento ou
manutenção destas crianças em casa o fato de qualquer pessoa da família ter
sido condenada pelos Artigos 285 a 293, 298, 300 a 302 do Código Penal, por ser
perigosa ou anti-higiênica, se o número de habitantes fosse excessivo, e se, por
negligência, ignorância, embriaguez, imoralidade ou maus costumes, fosse
incapaz de se encarregar da criança.
O Artigo 48 estabeleceu que passados trinta dias após a notificação do
recolhimento da criança,sem que haja a manifestação dos pais, qualquer pessoa
idônea poderia requerer diante do juiz os direitos de pátrio poder sobre a criança.
25
No caso de crianças encaminhadas a famílias substitutas, foi concedida a
possibilidade da legitimação adotiva por cônjuges casados há mais de cinco anos,
por casais que não pudessem ter filhos ou por viúvos e viúvas, ocasião em que a
criança passaria a ter todos os direitos de filho legítimo e passaria então a reger-
se a sua tutela pelo Código Civil e não mais pelo Código de Menores, isto é, a
inclusão em uma família legalmente constituída e julgada moralmente capaz tinha
o poder de fazer cessar sobre ela a jurisdição do juiz.
O Código Penal, que data de 1940 e também está ainda em vigor,
estabeleceu penas de detenção de seis meses a três anos ao genitor que
abandonasse crianças, aumentou-a para pena de reclusão de um a cinco anos, se
do abandono resultassem lesões corporais de natureza grave, e se o abandono
causasse a morte da criança, a pena era de quatro a doze anos, agravada se o
abandono ocorresse em lugar deserto onde não fosse possível o socorro à
criança.
A situação acima retratada foi chamada de “Doutrina do Direito do Menor”,
ao mesmo tempo uma derivação do Direito de Família e uma nova especialização
dentro das ciências jurídicas, que até 1990 chamou-se Direito do Menor e tanto se
constituiu em cadeiras específicas nos cursos de direito como orientou a
organização da magistratura brasileira, com a criação do Juízo Privativo de
Menores (Lei n° 2.059/25), do Conselho de Assistência e Proteção do Menor
(Decreto 3.228/25), do Serviço Social de Menores (1938) do Serviço de Colocação
Familiar (Lei n° 560/49), da figura do Juiz de Menores, do Comissariado de
Menores, do Serviço de Assistência ao Menor, sendo que os procedimentos de
internação foram disciplinados por provimentos dos Conselhos Superiores da
Magistratura em cada Estado brasileiro.
3.2-A doutrina da Situação Irregular.
26
A Doutrina da Situação Irregular, que substituiu a Doutrina do Direito do
Menor, ao ser aprovado o Código de Menores de 1979, é uma construção
doutrinária oriunda do Instituto Interamericano del Niño, órgão da OEA, do qual o
Brasil participa, juntamente com os Estados Unidos, Canadá e os demais países
das Américas. O maior propagador no Brasil o Juiz de Menores do Rio de Janeiro,
Alyrio Cavallieri.
A Associação Brasileira de Juizes de Menores incorporou tal conceito a
partir do seu XIV Congresso, realizado no Chile em 1973, sob a justificativa de
que se adequava à tradição legislativa brasileira, a problemática da criança só
existia se ela estivesse em “situação irregular” junto à família. As alterações
promovidas no Código de 27 ao longo dos anos, foram todas no sentido de
especificar a natureza do tratamento necessário ao “menor infrator”, distinguindo-o
do órfão e do abandonado, ainda que todos fossem caracterizados como em
“situação irregular”.
Alyrio Cavallieri propôs e fez aprovar no Código de Menores de 79 a
substituição das diferentes terminologias pelas quais se designava a criança,
exposto, abandonado, delinqüente, transviado, infrator, vadio, libertino, etc.,
reunindo-os todos sob a mesma condição de “situação irregular”.
A transição entre os Códigos de 27 e de 79 ocorreu efetivamente com a
criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em dezembro de 1964,
que modelou a criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, ainda
hoje existente em alguns estados brasileiros.
A criação da Funabem implicou na formulação de uma Política Nacional do
Bem-Estar do Menor. Assim, todas as entidades públicas e particulares que
prestavam atendimento à criança e ao adolescente, tiveram que ficar
subordinadas à essa política para seu pleno funcionamento.
Como a Funabem tinha autonomia administrativa e financeira, ela
incorporou toda a estrutura do Serviço de Assistência ao Menor existente nos
estados, incluindo o atendimento aos carentes e abandonados, como também aos
infratores.
27
É necessário entender que a Funabem e as Febens estaduais foram
concebidas no bojo de uma ampla reforma, entendida como conquista da
Revolução de 64, que incluiu a outorga de uma nova Constituição em setembro do
mesmo ano, a decretação de vários atos institucionais, como o AI-5, e por
orientação do governo e das agências americanas, a reforma do sistema
educacional brasileiro a partir dos acordos MEC/USAID, e posteriormente, a
reforma do ensino universitário em 1968, com o objetivo deliberado de constituir
barreiras ideológicas, culturais e institucionais à expansão da ideologia marxista,
que então estava em voga em todo o continente sul-americano.
A concepção arquitetônica e pedagógica das unidades da Funabem e das
Febens inspirou-se, no modelo americano desenvolvido, dentre outros, por Donald
W. Winnicott, para atendimento de crianças evacuadas ou tornadas órfãs em
virtude da Segunda Guerra Mundial.
Segundo este psiquiatra e psicanalista americano
“essas crianças [nossos menores] em tempos de paz,
podem ser classificadas em duas amplas categorias:
crianças cujos lares não existem ou cujos pais não
conseguem estabelecer uma base para o desenvolvimento
delas, e crianças que têm um lar mas, nele, um pai ou uma
mãe mentalmente doente. Crianças como essas apresentam-
se em nossas clínicas em tempos de paz, e verificamos que
necessitam justamente do que precisavam as crianças que,
durante a guerra, eram difíceis de alojar. Seu ambiente
familiar as frustrara. Digamos que o que essas crianças
precisam é de estabilidade ambiental, cuidados individuais e
continuidade desses cuidados. Estamos pressupondo um
padrão comum de cuidados físicos” (WINNICOTT. 1980).
28
Orientado por esse pensamento, foi instituído o sistema de internação de
carentes e abandonados até os 18 anos e no tratamento dos infratores substituiu-
se a “política dos portões abertos” pela “política dos muros retentores”, sob a
justificativa, apresentada pelo Grupo de Trabalho do Tribunal de Justiça de são
Paulo, que propôs a criação das unidades de infratores, de que era necessário
tranqüilidade para o trabalho dos técnicos e dos especialistas das várias
modalidades profissionais. Para possibilitar isso, o mesmo GT recomendou que
para essas unidades fossem contratados inspetores de alunos, monitores ou
atendentes jovens e vigorosos (com um mínimo de escolaridade), a presença de
guarda permanente (reedição do sistema penitenciário),relacionamento policial
perfeito (o mesmo tratamento para menores e adultos), que houvesse
compreensão política (para justificar a necessidade de isolamento das instituições
totais) e, sobretudo, confiança social (para que não houvesse ingerência no que
acontecia dentro dos muros das instituições).
Ao mesmo tempo que o sistema educacional brasileiro foi afetado pela
Doutrina da Segurança Nacional, com a introdução de elementos curriculares que
reforçassem os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a educação das
crianças e adolescentes sob a tutela da Funabem/Febem passou a ser feita
segundo os preceitos do militarismo, com ênfase na segurança, na disciplina e na
obediência.
É necessário ressaltar que os princípios da Declaração de Genebra
sobre os Direitos da Criança (1924), não teve nenhuma repercussão na redação
final do Código de Menores de 1927. Da mesma forma, os legisladores brasileiros
não foram sensíveis aos princípios já consagrados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, de 1948 e no Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que obrigou os
países signatários a adotarem em seu direito interno os princípios da Convenção,
figurando ali a proteção à família e os direitos da criança, assim como a
Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro
29
de 1959, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais acima citados, ambos
de 1966, não tiveram nenhuma influência significativa na redação final do Código
de Menores de 1979, ainda que o Brasil fosse sensível à agenda de discussões da
Organização dos Estados Americanos, como ficou patente na adoção da doutrina
da Proteção Integral.
Entre as décadas de 20 e 70 formava-se no Brasil, sobretudo dentro do
Poder Judiciário, uma “escola menorista”, que dialogava com os países sul-
americanos e mostrava-se sensível apenas às discussões travadas no âmbito da
Organização dos Estados Americanos.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro
de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, portando depois da
aprovação do ECA, é o mais completo tratado internacional sobre os direitos da
criança, colocando-a, ao longo de seus 54 artigos, em posição de absoluta
prioridade na formulação de políticas sociais e na destinação de recursos públicos.
3.3- A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL
A Doutrina da Proteção Integral do Menor foi enunciada inicialmente na
Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8° Congresso da Associação
Internacional de Juizes de Menores, (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido de
que não era função do Poder Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos
como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao
tratamento médico dos deficientes.
A posição majoritária, defendida por Alyrio Cavallieri, e que redundou na
adoção da Doutrina da Situação Irregular, era no sentido de a Justiça de Menores
limitar-se à aplicação do Direito do Menor, relegando os Direitos da Criança para a
competência do Poder Executivo.
30
Nas décadas de 60 e 70 Juizados de Menores como o de São Paulo
atuaram hegemonicamente na área da criança, legislando, normatizando e criando
as estruturas de atendimento. No Rio de Janeiro o Juizado não assumia as funções
executivas e em todos os estados brasileiros havia esta indefinição quanto ao que
era da competência do Direito da Criança e do Direito do Menor, misturando-se nos
juizados as funções executivas e judiciárias.
Continuava indefinida a competência quanto aos Direitos da Criança e aos
Direitos do Menor, sem o que não seria possível a adoção da Doutrina da Proteção
Integral.
O grande movimento pela democratização do país colocou na ordem do dia à
pauta dos direitos humanos, que basicamente significava um veemente repúdio a
tudo o que advinha do Regime Militar.
O reordenamento jurídico do país deu-se pelo Movimento Nacional
Constituinte e pela promulgação de uma Constituição Federal em 1988. A marca do
reordenamento jurídico foi a “remoção do entulho autoritário” e a preocupação que
norteou os constituintes e as pressões dos movimentos populares e da sociedade
organizada foi no sentido de assegurar a inclusão, aprovação e manutenção de
diversos dispositivos que colocassem o cidadão a salvo das arbitrariedades do
Estado e dos Governos.
Nos últimos duzentos anos, houve uma longa construção para que as
questões da infância carente e em situação de risco tivessem espaço privilegiado
nas discussões políticas e nas legislações dos diversos países.(MARCÍLIO, 1998)
Somente com a “Declaração Universal dos Direitos da Criança”, promulgada pelas
Nações Unidas em 1959, a criança passa a ser considerada sujeito de direito.
Nos anos oitenta, ocorreram dois fatos marcantes: uma convenção realizada
em Beijing, estabeleceu as bases para a formulação das ”Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Justiça Juvenil” ou “Regras de Beijing”. Depois em 1989 a
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou a “Convenção
Internacional dos Direitos da Criança”.
31
O texto dessa convenção foi aprovado no Brasil pelo Congresso Nacional em
1990 e como Estado signatário, o país passava a adotar e ratificar todas as
recomendações ali expostas. Nesse mesmo ano, o Estatuto da Criança e do
Adolescente entra em vigor em 13/07/1990.
“Ao contrário de outros países, no Brasil as disposições
locais precederam a normativa internacional. É que o projeto
de Convenção serviu de fonte ao Direito interno”. (Amaral e
Silva, 1999, p.48)
Assim, a “Convenção Internacional dos Direitos da Criança” teve a finalidade
de limitar o poder dos Estados nas diferentes situações, antes os direitos e as
políticas de atendimento aos menores eram tratados como questões específicas de
cada país. Isso resultou em novas políticas de atendimento e de proteção à infância
carente e também em novas medidas corretivas e educacionais para os casos de
delinqüência juvenil.
Todo esse processo migrou para o possível reconhecimento da criança e do
adolescente como sujeitos de direitos. Destarte,ficaram consagrados os direitos
fundamentais referentes à infância, deixando de centrar-se nas crianças ditas em
“situação irregular” , e assegurar a todas as crianças e adolescentes os direitos
pertinentes à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, proteção e convivência
familiar e comunitária.
O Artigo 227 da Constituição Federal do Brasil (1998), por exigir uma lei
específica que o regulamentasse, foi o precursor do Estatuto da Criança e do
Adolescente, finalmente aprovado em 13 de julho de 1990, estabelecendo como
obrigação da família, da sociedade e do Estado, assegurar, com absoluta
prioridade, os direitos da criança e do adolescente.
32
A partir de então,ocorrem mudanças na diferenciação de idades. Criança, até
12 anos, e adolescente, até 18, sendo portanto, definidos como “pessoas em fase
de desenvolvimento”, eliminando-se a rotulação de “menor”, “infrator”, “carente”,
“abandonado”, etc., e passar a classifica-los como crianças e adolescentes em
situação de risco.
A legislação específica (ECA, 1990), depois regulamentou a atuação do Poder
Judiciário na defesa destes direitos, atribuiu ao Ministério Público e aos Conselhos
Tutelares a promoção e a fiscalização dos mesmos direitos e aos Conselhos
Nacional, Estaduais e Municipais a atribuição de formularem as políticas nacional,
estaduais e municipais para a criança e o adolescente.
Mesmo no ECA, a Justiça da Infância e da Juventude e o juiz continuaram com
a possibilidade de intervenção junto à família e à criança nos casos típicos de
Direito Processual Civil e Direito Processual Penal, como a guarda, tutela, adoção,
investigação de paternidade e maus-tratos.
O juiz passou a ser obrigatoriamente assessorado por uma equipe
interprofissional, que no Código de 79 ficava ao seu arbítrio consultar ou não. A
equipe técnica (normalmente composta por um psicólogo e um assistente social, no
mínimo), tem o mesmo status científico, pois tanto o juiz quanto o psicólogo e o
assistente social são bacharéis, mas o ECA(1990) ainda fez uma concessão ao
Poder Judiciário, atribuindo maior autoridade ao juiz, quando eu entendo que ali
está configurado um conselho de sentença que impediria definitivamente que as
decisões relativas à criança fossem tomadas por uma única pessoa.
O ECA (1990) inaugurou uma nova ordem jurídica e institucional para o trato
das questões da criança e do adolescente, estabelecendo limites à ação do Estado,
do Juiz, da Polícia, das Empresas, dos adultos e mesmo dos pais, mas não foi
capaz ainda de alterar significativamente a realidade da criança e do adolescente. A
mudança de nomenclatura, substituindo os rótulos pejorativos de “menor”, “infrator”,
“abandonado” e etc., estabeleceu a cultura do “politicamente correto”, mas quem
estava nas ruas ou nas instituições antes do ECA (1990), hoje, se adulto, está no
33
Sistema Penitenciário ou continua sendo portador das marcas e dos estigmas
incorporados durante a infância.
A construção do Estatuto da Criança e do Adolescente possibilitou a seu
público o acesso à justiça, o reconhecimento de seus direitos e assim adquiriram
voz e ganharam representação social dentro de nossa sociedade . A Doutrina da
Proteção Integral apregoa a necessidade de se garantir todos os direitos
fundamentais da criança e do adolescente.
A criança e o adolescente venceram uma longa batalha, sem vencer a guerra,
conquistaram um lugar na sociedade, passando a serem vistos, como sujeitos de
direitos. Mas muitas das vezes, eles não têm a possibilidade de terem esses direitos
serem cumpridos. Os operadores do Direito têm esse compromisso de se fazer
cumprir a lei e assim promover a esperança na vida desses atores sociais.
34
CONCLUSÃO
Com este trabalho acadêmico, pretendi fazer a reflexão sobre o surgimento
do conceito de infância da atualidade. Este conceito, da forma como é visto
atualmente, foi construído socialmente através das representações que retratam a
realidade dentro de um contexto histórico. A análise histórica nos permite repensar
algumas práticas referentes à infância e nos conduzir a um novo pensar e a um
novo agir, dentro de uma prática jurídica e psicológica, fazendo dessa forma uma
nova construção social da infância.
Desde o Império, a infância foi se remodelando dentro de uma perspectiva
sócio-jurídica, com o intuito de estabelecer uma nova ordem social e desconstruir
alguns preconceitos pré-existentes como o termo “menor”. Ao longo dos anos,
esse termo ficou ligado a crianças abandonadas, pertencente à classe social
inferior e assim ficarem estigmatizadas dentro de nossa sociedade.
O conceito de infância fez sua trajetória no contexto jurídico, com o advento
do Código de Menores. Este vigorou durante muitos anos em nossa sociedade,
fazendo a criança ficar presa à situação irregular, sendo privada de direitos.
Atualmente, a criança saiu de um “não-lugar” e aos poucos foi
conquistando um espaço na sociedade, passando a ser vista como cidadã e
conseqüentemente, adquire o status de sujeito de direitos, através de
promulgação de uma legislação nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Essa lei possibilitou uma nova luz na vida sócio-jurídica da infância, que antes
andava na escuridão.
Portanto, podemos rever a nossa prática através do conhecimento das
representações da infância na lei, para contextualizar a defesa dos reais direitos
da criança e assim encaminhá-las a um mundo de esperança.
35
BIBLIOGRAFIA
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36
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crianças órfãs e abandonadas São Paulo, Ed.Àtica, 1997.
WINNICOTT, Donald W. Privação e Delinqüência, São Paulo, Martins Fontes, 1987.
37
ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO 2
AGRADECIMENTO 3
DEDICATÓRIA 4
RESUMO 5
SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I
CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL 10
CAPÍTULO II
HISTÓRICO DA INFÃNCIA 14
2.1 SURGIMENTO DE LEGISLAÇÕES DA INFÂNCIA NO PERÍODO DO IMPÉRIO. 18 CAPÍTULO III A CRIAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 21 3.1-A CONSTRUÇÃO DO DIREITO DO MENOR 22
3.2-A DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR 25
3.3- A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL 29
38
CONCLUSÃO 34
BIBLIOGRAFIA 35
ÍNDICE 37
39
FOLHA DE AVALIAÇÃO
Nome da Instituição: UNIVERSIDADE CÃNDIDO MENDES
Título da Monografia: REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA NA LEI.
Autor: ROBERTA PEREIRA RANGEL
Data da entrega: 23/07/2005
Avaliado por: Conceito: