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A Cultura Chinesa na visão do Ocidente

Shaw Yu Ming

Os admiradores ocidentais da cultura chinesa foram numerosos já desde os tempos de Marco Pólo.

Como se sabe, os jesuítas foram o primeiro grupo de ocidentais a empreender um exame sistemático

da cultura chinesa. Desde fins do século XVI até o século XVIII foram eles os grandes transmissores

de cultura entre a China e o Ocidente. Para a China, além do cristianismo, exportaram os jesuítas as

ciências ocidentais e algumas invenções tecnológicas; no Ocidente introduziram a cultura chinesa

através de publicações e traduções de clássicos chineses. Neste ensaio sobre a obra realizada pelos

jesuítas na China limitar-nos-emos a examinar suas atividades culturais e religiosas.

O problema fundamental com que se defrontaram os jesuítas em seu trabalho de proselitismo foi:

como tornar o cristianismo compreensível e atraente aos chineses, povo que não apenas tinha muitas

religiões próprias mas também um bem desenvolvido sistema espiritual, o neoconfucionismo. A

estratégia dos jesuítas continha, em resumo, o seguinte: Primeiramente, sabendo que os funcionários

- letrados chineses dominavam a população em geral, decidiram concentrar seu trabalho primeiro

nesta particular classe social. Segundo, a fim de conquistar esta classe, dedicaram-se a um sério

estudo dos clássicos chineses e da cultura chinesa para tomar-se os pares intelectuais dos letrados

chineses. Terceiro, por considerações ao mesmo tempo religiosas e práticas, uniram-se aos letrados

chineses - quase todos seguidores do confucionismo - no desprezo de religiões chinesas, tais como o

budismo e o daoísmo. Quarto, julgaram os jesuítas que o neoconfucionismo desse tempo incorporara

demasiadas influências budistas e daoístas e que o confucionismo primitivo (isto é, o confucionismo

anterior ou até o tempo de Confúcio) continha muitas noções religiosas compatíveis com o

cristianismo. Por isso resolveram aceitar o confucionismo primitivo como base para desenvolver um

diálogo espiritual com os letrados chineses (1). Antes de analisarmos esse último ponto, devemos

acentuar que a adoção da estratégia supramencionada não deve ser considerada como brotando de

pura conveniência ou oportunismo; ela nasceu tanto de convicções religiosas genuínas como de

considerações práticas (2).

Para convencer os letrados chineses da compatibilidade entre cristianismo e o confucionismo

primitivo continha a formulação teórica dos jesuítas diversos pontos essenciais. Primeiro, os conceitos

chineses de Shang-di (Senhor – nas - Alturas) e Tian (céu) mencionados nos antigos clássicos

confucianos são equivalentes ao Deus cristão, enquanto que tai-ji (Último Supremo) do

neoconfucionismo é apenas um princípio materialista e não o guardião do universo. Segundo, existia

já na antiga China a crença na imortalidade da alma humana e o conceito de céu e inferno. Terceiro,

o confucionismo após a dinastia Han (isto é, após o século III a.C.), incluindo o neoconfucionismo, era

uma corruptela do antigo confucionismo e, portanto, não podia ser aceito como compatível com as

doutrinas do cristianismo. Por isso, o confucionismo pós-Han precisava do cristianismo para restaurar

sua vitalidade original. Essa necessidade do cristianismo tomava-se também imperiosa porque muitos

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dos antigos clássicos confucianos haviam sido queimados ou perdidos durante a dinastia Ch'in (221-

207 a.C.). Além de aceitar o confucionismo primitivo como sistema religioso compatível,

estabeleceram os jesuítas também compromissos com o culto chinês aos ancestrais e a Confúcio,

considerando que essas práticas chinesas tinham implicações apenas sociais e não religiosas (3).

O resultado do trabalho religioso dos jesuítas na China é verdadeiramente impressionante. Não

apenas desenvolveram um significativo diálogo intelectual com um importante segmento dos letrados

chineses, mas também conseguiram conquistar 200.000 a 300.000 convertidos chineses em inícios

do século XVIII(4). Mas seu trabalho sofreu afinal um devastador golpe desfechado pelos papas no

século XVIII. Numa série de decretos em 1704, 1715 e 1742 rejeitaram os papas sua acomodação

teológica com o confucionismo primitivo e retiraram a permissão dada pelos jesuítas aos convertidos

chineses de venerarem os ancestrais e Confúcio. Como resultado, essa proibição papal reduziu a

influência católica na China principalmente às camadas inferiores, e empurrou o catolicismo para as

margens das correntes políticas e culturais da China nos séculos seguintes. Não conseguiu o

catolicismo voltar a ser uma importante força religiosa até o século XX, quando finalmente o papado

ab-rogou em 1939 os antigos decretos (5). Como essa história é bem conhecida, não a exporemos

aqui.

Além dos jesuítas, outro grupo de europeus a tratarem a cultura e a religião chinesas com respeito e

mesmo com admiração foi o dos sinófilos dos séculos XVII e XVIII. Entre eles, um dos representantes

mais destacados foi G. W. Freiherr von Leibniz.

Impregnado de cosmopolitismo cultural e religioso e admirador do pensamento racionalista do

confucionismo, elaborou Leibniz uma teoria sincrética para conseguir uma harmonia entre

cristianismo e confucionismo. Concordou com os jesuítas em reconhecer a natureza religiosa do

confucionismo e apoiou a posição dos jesuítas no tocante ao culto chinês aos ancestrais e a

Confúcio. Entregou-se também ao estudo do confucionismo. Num recente estudo sobre Leibniz,

descobriu o professor David E. Mungello que esse filósofo acreditava haver vários paralelos entre a

cultura ocidental e a chinesa. Mungello descreve algumas dessas correspondências da maneira

seguinte: Primeiro, o li (Principio) do neoconfucionismo e as mônadas possuem "cada qual uma

variedade particular e uma variedade universal, esta última designada por tai-ji e Deus,

respectivamente". Segundo, "shang-di, tian e li são quase-equivalentes do conceito cristão de Deus; e

tai-ji, li, e qi (força material), tomados juntos, correspondem à Trindade cristã". Terceiro, "os chineses

têm a noção de uma alma etérea distinta duma alma material, e esta alma etérea, às vezes

denominada ling-hun, aproxima-se da noção de alma espiritual do cristianismo Quarto, "os chineses

têm uma doutrina sobre recompensa e castigo após a morte em que shang-di é o dispensador da

justiça e isto implica os conceitos cristãos de imortalidade da alma e de justiça divina" (6).

Do que foi exposto podemos ver que a posição de Leibniz concordava no essencial com a dos

jesuítas, com a exceção de que ele empregou termos usados nos escritos neoconfucianos para

sustentar seus argumentos (7).

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No século XIX o número de simpatizantes e admiradores ocidentais da cultura chinesa reduziu-se

drasticamente. Ainda assim houve alguns poucos herdeiros. Por exemplo, James Legge, o grande

tradutor dos clássicos chineses e missionário britânico na China, defendeu a posição jesuítica que

igualava o Shang-di chinês com Deus, e julgava que o confucionismo era apenas "defectivo" mas não

"antagônico" ao cristianismo (8). Também Timothy Richard, outro missionário britânico na China,

alimentou um vivido interesse pela cultura chinesa. Embora acentuasse a superioridade do

cristianismo como sistema espiritual, admitia que a "verdade" podia encontrar-se no confucionismo,

daoísmo e budismo (9). Elogiou também o conceito confuciano de governo moral (10). Além de ser

um relativista cultural, era também um praticante do evangelho social. Despendeu muitos esforços

para difundir os conhecimentos científicos do Ocidente e contribuiu de certa forma para o

desenvolvimento do movimento chinês de reforma do final da década de 1890 (11).

Mas Legge e Richard não passaram de minoria na mais ampla comunidade missionária, que se

compunha em grande parte de fundamentalistas protestantes. Este grupo maior de missionários (que

recusavam-se a reconhecer quaisquer valores de redenção na cultura e nas religiões chinesas)

ridicularizaram e denunciaram Legge e Richard(12).

No século XX a discussão ou debate do Ocidente sobre a China como entidade cultural e religiosa

girou ao redor de duas questões: a natureza da cultura chinesa com a questão correlata do legado

das conquistas científicas da China, e o conteúdo religioso do confucionismo e maoísmo chineses.

Abordaremos essas questões, cada uma por sua vez, nas páginas seguintes.

Quanto à questão da natureza da cultura ou tradição chinesa, a avaliação do Ocidente começou com

algumas apreciações esparsas e moderadas nas primeiras décadas do século, mas nos anos mais

recentes transformou-se em profunda compreensão e até mesmo grande admiração.

Na década de 1920 Lord Bertrand Russell foi um visitante popular na China e emitiu comentários

extensos sobre a mesma. Para ele era a China nos anos 1920 ainda um país de "tranqüilo

racionalismo característico do século XVIII" e "uma nação artista". Acreditava ele que o chinês

possuía "uma civilização e um temperamento nacional superiores, de vários modos, aos do homem

branco". Mas Lord Russell tinha também alguns sentimentos ambivalentes acerca da China e do povo

chinês. Herdeiro de alguns dos tradicionais temores europeus diante dum Oriente imprevisível,

descreveu certa vez o que ele chamou de "outro lado" do povo chinês:

"São capazes de selvagem excitamento, muitas vezes de

índole coletiva... É este elemento de seu caráter que os torna

incalculáveis, e torna impossível até mesmo conjeturar acerca

de seu futuro. Podemos imaginar uma parte deles tomando-se

fanaticamente bolchevistas, ou antijaponeses, ou cristãos, ou

devotados a algum líder que poderá eventualmente declarar-se

Imperador" (14).

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Falando isso já na década de 1920, a visão de Russell poderia ser considerada verdadeiramente

profética.

Se estas análises dos relativos méritos e deméritos da cultura chinesa nas primeiras décadas foram

um tanto esporádicas, verificou-se uma avaliação mais séria a partir de meados do século. Desde

então publicaram-se muitos estudos eruditos sobre a cultura chinesa e levantaram-se muitas

questões novas. A profundeza intelectual dessa nova avaliação alcançou um nível nunca antes

atingido.

O mais admirável exemplo de estudos recentes sobre a cultura chinesa feitos por ocidentais é um

ensaio do professor Thomas A. Metzger sobre o neoconfucionismo. Trata da situação espiritual das

elites cultas no período Ming-Qing (1368-1911) e da evolução da cultura política da China. A tese de

Metzger sobre a cultura tradicional da China e seus problemas contrapõe-se sobretudo às teses de

Max Weber, Richard Solomon, Joseph Levenson e William Theodore de Bary.

É bem conhecida a interpretação que Max Weber faz da natureza do confucionismo chinês. Em sua

opinião falta ao confucionismo ou ao neoconfucionismo um dinamismo espiritual impulsor, e por

causa dessa lacuna não poderia proporcionar suficiente tensão ou força para produzir a

modernização e o capitalismo na China. Acreditava Weber que esta era a razão essencial para o

atraso da China nos tempos modernos.

Metzger aceita a teoria geral de Weber de acentuar a relação entre modernização e ethos indígena,

mas discorda de sua interpretação da natureza do confucionismo ou neoconfucionismo. Metzger

acredita haver no neoconfucionismo um ethos de interdependência que não impede a modernização.

Descreve Metzger esse ethos em seis tópicos:

"uma ontologia da imanência elusiva; uma epistemologia que

acentua a cognoscibilidade da verdade moral universal como

objeto de cognição e raciocínio; uma tendência ao 'totalismo'

que afeta a visão ontológica, epistemológica, ética e social;

normas sociais que envolvem uma tensão entre as noções de

interdependência e autoridade; e um senso moral-psicológico

de viver numa perigosa linha divisória entre sucesso moral e

fracasso moral".

Baseando-se nisto considera Metzger que não é exagero afirmar que "este ethos importa numa 'fé

religiosa' compreensiva, permanente" (14). Portanto, é "errôneo" Weber pretender que não há tensão

ou orientações transformadoras no sistema confuciano ou neoconfuciano. O que prejudicou a marcha

da China rumo à modernização foi a existência dum senso de "fatalismo do fracasso moral" no

neoconfucionismo e também o engajamento dos intelectuais chineses em atividades intelectuais

menos transformadoras, como os estudos filosóficos, fonológicos e textuais no período Qing (1644-

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1911)." Em outras palavras, o próprio confucionismo continha orientações transformadoras, embora

trouxesse em si também alguns elementos ou tendências que não impeliam totalmente à

modernização. E mais. Devido à existência de tais orientações transformadoras no ethos indígena

chinês, explica-se por que teve a China maior êxito em modernizar-se do que a maioria das nações

do Terceiro Mundo. Em outras palavras, enquanto Weber preocupava-se em explicar o fracasso da

China em modernizar-se em face do Ocidente, Metzger interessa-se em explicar seu sucesso em

face de outras nações do Terceiro Mundo".

Metzger também não pode aceitar a tese de Solomon de que existe na cultura confuciana uma

"orientação social de dependência". Descreve Solomon a cultura confuciana como incluindo as

seguintes atitudes: aversão ao comportamento agressivo; falta de "auto-estima" e de confiança nos

próprios impulsos e julgamentos; colocação dos interesses coletivos acima dos individuais; e

sentimentos de deferência, impotência, angústia, frustração e irritação em face da autoridade, mas

não a noção de legítimo protesto contra os que estão em posição de autoridade (19). Ao contrário da

ênfase de Solomon sobre a dependência e o autoritarismo, Metzger fala dos "atos independentes de

auto-afirmação moral" no ethos confuciano de interdependência."

Quanto à famosa interpretação de Levenson - de que a moderna cultura chinesa foi em grande parte

condicionada pela intrusão do Ocidente com suas idéias e valores e de que a insistência chinesa no

alto valor de sua cultura tradicional foi um esforço de aplacar o próprio orgulho cultural ferido (21) - a

posição de Metzger situa-se, ao invés, no lado oposto. Após examinar as orientações culturais

incorporadas no neoconfucionismo, crê Metzger que tais orientações continuaram a dominar o

conteúdo do pensamento intelectual chinês até o maoísmo de hoje, e que os esforços dos intelectuais

chineses por preservar tais orientações não constituíram uma tentativa de aplacar seu ferido orgulho,

mas uma demonstração de sua genuína crença nas mesmas (22).

O estudo de Metzger sobre o neoconfucionismo também difere metodologicamente do estudo do

professor William de Bary. Para de Bary, a tradição neoconfuciana, "mais que um código moral ou

sistema filosófico estabelecido, era um estilo de vida, uma atitude de espírito, uma espécie de

formação do caráter e ideal espiritual que se esquiva a uma definição precisa". Além disso, trouxe à

China imperial tardia "uma visão ampliada e mais expansiva do que significa ser humano" (23).

Enquanto de Bary acentua as intuições e valores universais do neoconfucionismo, Metzger ao

contrário concentra-se na sua "superestrutura metafísica". Acredita ele que, estudando a "gramática"

neoconfuciana como "um conjunto verbalizado e culturalmente condicionado de percepções e

pretensões" (24), podemos descobrir as orientações culturais peculiares dos chineses e equilibrar a

tendência até aqui exclusiva, no estudo do neoconfucionismo, a procurar intuir o valor espiritual

universal da existência humana. Somente através dum tal estudo das percepções e pretensões do

neoconfucionismo - afirma Metzger -podemos compreender "a relação entre suas metas e sua

percepção do mundo dado", seu senso do dilema e o sentido de suas asserções sobre como fugir a

tal dilema.

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O estudo de Metzger sobre o ethos e o dilema do neoconfucionismo conseguiu realmente demonstrar

que houve uma notável continuidade nas preocupações culturais da cultura chinesa, desde o

pensamento neoconfuciano medieval até o atual pensamento de Mao Zedong, que ele também define

como um esforço por "transpor o abismo entre a procura interior da verdade e o processo

transformador externo" (26). Em termos de amplidão de alcance e sofisticação de análise, o estudo

de Metzger pode ser considerado um marco na compreensão ocidental da cultura chinesa.

A questão correlata do legado do desenvolvimento científico chinês transformou-se em controvérsia

nos últimos anos. Esta controvérsia começou com a publicação de Science and Civilization in China

de Joseph Needham, obra em vários volumes, o primeiro dos quais apareceu em 1954. A obra de

Needham investe em duas direções. Primeiro, documentando a rica herança científica chinesa

procura Needham refutar o clichê da estagnação da China tradicional (27). Em segundo lugar,

acentuando que a ciência chinesa possui "uma filosofia orgânica" que se opõe à ciência ocidental

como materialismo mecânico, espera desenvolver um conceito de ciência universal em que entram

como partes integrantes tanto o organicismo chinês como o mecanicismo ocidental (28). Em geral os

críticos de Needham estão dispostos a reconhecer a rica tradição científica chinesa, mas não a

aceitar a ciência tradicional chinesa como contendo os mesmos elementos decisivos que tornaram

possível a ciência moderna.

Ao citar as contribuições científicas da China ao mundo, foi Needham além da lista tradicionalmente

reconhecida: fabricação de papel, tipografia, pólvora e bússola magnética. Sua nova lista das

contribuições da China divide-se em quatro áreas principais: a) química dos explosivos ou

protoquímica; b) física magnética e a bússola de navio; c) coordenadas e instrumentos astronômicos,

relógio mecânico, e a cosmologia "aberta"; d) descobertas tecnológicas abarcando o uso da força

animal com as invenções do estribo, arreios eqüinos eficientes e carrinho de mão; o emprego da força

hidráulica, com inventos associados, tais como a correia propulsora, a transmissão por cadeia, a

manivela e a morfologia da máquina a vapor; tecnologia de ferro e aço, construção de pontes, e

perfuração profunda; inventos náuticos como o leme de popa, navegação de popa a proa, o pedal e

os compartimentos estanques (29).

Mas por que não conseguiu a ciência chinesa desenvolver-se em escala tão avançada como a do

Ocidente moderno? Needham aduz várias explicações importantes. Uma é que o confucionismo

estava por demais preocupado com questões humanas a ponto de ignorar o estudo do mundo

natural. Outra explicação é que, embora tenham os daoístas desenvolvido a ciência e feito multas

invenções, seus feitos científicos não puderam manter-se numa sociedade e num Estado dominados

pelo confucionismo. Um burocratismo feudal confuciano suprimiu não só a classe dos cientistas, mas

também a democracia mercantil que sempre servira de base social para o desenvolvimento científico.

Além disso, segundo Needham, os fundadores da ciência moderna - como Kepler e Newton -

acreditavam todos num Deus pessoal e tinham uma paixão pela busca da lei natural ordenada por

Deus; por isso, a falta duma tal fé no pensamento chinês impediu a busca do conhecimento da lei

natural. Uma quarta explicação foi que o conceito chinês de "lei da natureza" foi entendido pelos

neoconfucianos em sentido whiteheadiano, ou organísmico, e não em sentido newtoniano. E o

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fracasso dum ulterior desenvolvimento da "lei natural" pelos chineses deveu-se ao fato de que eles

conceberam "uma grande aversão pela lei codificada abstratamente, por causa de suas más

experiências com os juristas"(30).

Muitos cientistas e historiadores da ciência criticaram as conclusões e explicações de Needham. As

críticas podem dividir-se em duas categorias: uma se ocupa com a definição que Needham dá de

ciência ou de desenvolvimento científico moderno, e a outra com as explicações que Needham

fornece para o fracasso da China em desenvolver a ciência nos tempos modernos.

Para Nathan Sivin, os conceitos e a atitude arraigados nas tradicionais disciplinas científicas da China

eram muito diferentes dos do Ocidente em "fim, enfoque e organização" e desconheciam "a noção de

demonstração rigorosa ou prova" (31). Shigeru Nakayama critica Needham por subestimar o papel

desempenhado pela matemática no estabelecimento dum conceito matemático-mecanicista de

Natureza, que era sinônimo da Revolução Científica no século XVIII. Nakayama também acha que a

China tradicional não criou "um conceito unificado e uma abordagem unificada da Natureza" e por

isso "a ciência e tecnologia chinesas permaneceram um amontoado não-organizado de

conhecimentos empíricos fragmentários, carentes de um núcleo, até os começos da

ocidentalização"(32).

Entre os críticos que refutaram as explicações de Needham para o fracasso da China em desenvolver

a ciência nos tempos modernos, a critica mais ampla é provavelmente a de Lewis S. Feuer. Feuer

não concorda com a interpretação de Needham de que a preocupação do confucionismo pelo homem

foi a causa do retardamento do desenvolvimento científico da China. Mostra que a preocupação

humana ou social de Voltaire, Hume e Benjamin Franklin não os desviou do interesse pelas ciências

naturais. O que foi prejudicial ao desenvolvimento científico foi a repressão psicológica dos desejos

humanos no confucionismo. Também a democracia não foi necessariamente um pré-requisito para o

desenvolvimento científico. Há provas de que nas cidades européias onde floresceu a ciência havia

mais oligarquias ou aristocracias do que democracias.

A falta de fé num Deus pessoal no pensamento chinês tampouco constituiu-se em fator que

impedisse a China de desenvolver a ciência moderna. Sustenta Feuer que a imagem de Deus em

Kepler e Newton era "uma razão impessoal do século XVII", e esta não era certamente uma divindade

pessoal. Por isso, não era realmente importante as elites chinesas terem ou não um Deus pessoal.

Feuer opõe-se ainda aos que invocam a aversão dos chineses por um código sistemático de leis

como um motivo de seu fracasso em desenvolver um conceito de lei natural. Mostra que a ciência fez

grandes progressos na Inglaterra onde o direito consuetudinário inglês nutria uma aversão tão grande

aos sistemas e códigos como os chineses (33).

Concluindo, apresenta Feuer sua própria teoria para explicar o fracasso dos chineses em

desenvolverem a ciência moderna: a teoria do individualismo hedonista e libertário. Em sua opinião,

tal individualismo hedonista e libertário foi o motivo primário que levou ao desenvolvimento científico

do Ocidente; mas na China o sistema ético chinês reprimiu as energias emocionais e frustrou a

direção natural da sexualidade, e por isso o movimento científico não podia manter-se (34).

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Passemos agora à questão da avaliação, pelo Ocidente, do conteúdo religioso do confucionismo,

neoconfucionismo e maoísmo na China no século XX. Tanto nos tempos medievais quanto no

presente concordam os observadores ocidentais em que budismo e daoísmo são, ambos, religiões

genuínas. O que se discutiu foi se o confucionismo ou neoconfucionismo pode ser considerado uma

religião. Nas primeiras décadas do século XX muitos estudiosos europeus deram seqüência à

interpretação do século XVIII, segundo a qual o neoconfucionismo não continha nenhum elemento

transcendente, mas apenas racionalismo ou máximas morais (35). Como esse exame da questão foi

um tanto limitado e superficial, não nos deteremos nele. Mas nos últimos anos foi avançada uma nova

interpretação que afirma conter o sistema confuciano uma tal religiosidade. Além disso, esta

afirmação contemporânea reveste uma característica nova. Enquanto os simpatizantes ocidentais da

cultura chinesa como Ricci aceitaram semelhante religiosidade apenas no confucionismo primitivo, os

novos admiradores vão além do confucionismo primitivo e incluem o neoconfucionismo como

contendo genuína essência religiosa. Dois representantes desta nova interpretação são Ninian Smart

e Huston Smith.

Para Smart, Confúcio não foi certamente um agnóstico, mas um reformador religioso e moral.

Confúcio acreditava verdadeiramente num ser providencial supremo, embora não num determinismo

divino ou fatalismo naturalista. Quanto a Zhu Xi e Wang Yang-ming, os dois maiores neoconfucianos

da China Medieval, continuaram a preocupação ética de Confúcio, mas adotaram também alguns

conceitos e práticas budistas e daoístas para enriquecer o antigo confucionismo. Mostra Smart que a

idéia de Zhu Xi do Grande (Supremo) Último (Tai-ji) aproximava-se das idéias daoístas e que seu

conceito de li "refletia noções budistas da natureza de Buda residindo nos seres vivos". Quanto à

filosofia de Wang Yang-ming, seu método de apoiar-se nas técnicas meditativas para chegar ao li

"trazia algo das marcas da Meditação budista". Tudo somado, conclui Smart que, devido à estreita

relação entre confucionismo e antigos cultos chineses e à posterior incorporação de muitos conceitos

e práticas budistas e daoístas, o confucionismo "faz parte da estrutura religiosa da China" (36).

A contribuição do professor Smith ao estudo dos aspectos religiosos da cultura chinesa consiste em

sua sucinta análise do elemento de transcendência no pensamento chinês tradicional. Também ele

afirma a religiosidade no homem Confúcio e no corpo de filosofia chamado confucionismo. O seguinte

trecho capta a essência da tese de Smith:

"Confúcio conservou cuidadosamente vivo o numinoso, em

sua exortação a 'respeitar os seres espirituais', em sua atenção

estrita às cerimônias sacrificais, em sua vigilância com relação

ao Céu e seus decretos. O confucionismo formalizado sobre o

qual às vezes lemos, o confucionismo que é todo exterior sem

qualquer sensibilidade para a interioridade e o mistério

escondido para o qual descem invisivelmente, em última

análise, todas as raízes da vida - este é um confucionismo

fossilizado, se é que é confucionismo. O li que constituía o

âmago do confucionismo vivo era uma raiz-mestra fixada no

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mistério do Tao que, onde não se achava cortada pelo

egoísmo, conservava tanto os indivíduos quanto a sociedade

em contato vivo com a majestosa vontade do Céu (37)".

Smith descobre cinco pontos importantes na metafísica dos letrados chineses. Primeiro, homens e

céu são reais tanto no âmbito fenomenal quanto no âmbito numenal. Segundo, a relação essencial

entre homens e céu é a unidade ou não-dualidade. Assim, os muitos termos chineses como li, minq

(normas), dao, te (força) e yang-yin "aplicam-se igualmente ao Céu e ao homem"; e outros termos

como di (Deus), qi, tai-ji e wu-xi (não-polaridade) "referem-se primariamente ao Céu mas são

manifestos e funcionam também no homem". Terceiro, no pensamento chinês o tema da mútua

reciprocidade "é na maioria dos casos entre desiguais, as relações que unem homem e natureza não

são simétricas". Quarto, embora a perspectiva chinesa seja humanista, coloca o homem contra um

"pano de fundo numenal". E quinto, embora no pensamento chinês antigo o numinoso fosse um

numinoso personificado, tornou-se mais tarde empanado e os letrados chineses procuraram alcançá-

lo através da alusão e dos sentidos". Crê o professor Smith que os benefícios psicológicos

decorrentes do conceito confuciano de transcendência reforçaram o comportamento social dos

chineses (39).

Se o confucionismo contém realmente uma dimensão religiosa, que dizer do maoísmo ou do

pensamento de Mao Zedong? Sobre esta questão emitiram-se opiniões divergentes e assim criou-se

outra controvérsia. Começaremos por abordar primeiro aquelas opiniões que afirmam a religiosidade

do maoísmo ou pensamento maoísta.

Num estudo apresentado na conferência ecumênica sobre China e Ocidente realizada em 1977(40),

Raymond L. Whitehead - diretor do Programa Canadense para a China do Conselho Canadense de

Igrejas - fez algumas afirmações, provavelmente as mais francas e positivas, acerca dos elementos

religiosos do maoísmo ou cultura maoísta. Baseando-se em sua avaliação muito favorável das

conquistas da revolução comunista chinesa, que ele considera como tendo sido "um movimento em

prol de genuína libertação, maior justiça e moralidade comum revitalizada", apresenta Whitehead sete

proposições para se considerar a natureza do maoísmo ou da China maoísta. Para nosso objetivo

mencionaremos apenas três. Primeira: uma vez que na revolução maoísta "em grande parte faz-se

justiça e curam-se as enfermidades", deve-se reconhecer que atua na China a "salvação" ou a "força

salvífica de Deus". Outra proposição: apesar de o povo chinês ser hoje na quase totalidade não-

cristão, não falta nele a realidade espiritual da fé, esperança, amor, luta e sacrifício. Por fim uma

terceira proposição: embora "a salvação não seja completa no maoísmo", tampouco é completa na

Igreja cristã. Pode-se, portanto, desenvolver um frutuoso diálogo entre maoísmo e Igreja. Nesse

diálogo deveremos certamente prestar atenção ao que fazem e dizem os maoístas, mas deveríamos

também considerar seriamente a acusação de imperialismo cultural lançada pela China contra as

missões ocidentais, reavaliar a identificação do cristianismo com o individualismo burguês e aprender

as lições das reformas médicas e educacionais realizadas na China nos últimos anos (41).

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Mas provavelmente ninguém poderá superar o entusiasmo de Joseph Needham em afirmar a

existência duma intensa religiosidade no maoísmo ou cultura maoísta.

Em sua opinião, a China maoísta é não apenas religiosa, mas também semelhante ao cristianismo,

pois a sociedade chinesa está "mais perto, mais adiantada no caminho para a verdadeira sociedade

humana - o Reino de Deus se se preferir - do que nossa sociedade", e a China como um todo "é hoje

o único país verdadeiramente cristão do mundo, apesar de rejeitar absolutamente toda religião".

Quais as provas? Para responder a esta pergunta, cita Needham a lista elaborada por Lancelot

Andrewes das ações e atributos divinos, como realidades que aconteceram na China Continental:

"Abrir os olhos aos cegos, vestir os nus, sustentar os que

caem, reunir os proscritos, dar alimento aos famintos, abater os

soberbos, libertar os cativos, soltar os prisioneiros, soerguer os

rebaixados, curar os doentes, confirmar os vivos e reanimar os

mortos, elevar os humildes e prestar auxílio nos tempos de

calamidade".

Para Needham, encontrar Cristo é descobrir "onde estão os bons e onde se realizam coisas boas"; já

que acredita que todas essas coisas boas arroladas por Andrewes já aconteceram na China, é ela,

portanto, certamente o único país cristão por excelência (42).

Também um padre jesuíta do Colégio Santa Cruz em Massachusetts (USA) juntou-se a Whitehead e

Needham para entoar sublimes elogios à China maoísta. O Rev. William van Etten Casey elaborou

em 1975 um comovente relato sobre a vida na China:

"Ao contemplar o povo levantando e deitando cedo, gozando

seus poucos e simples prazeres, confiando uns nos outros para

ajuda e encorajamento, convencendo-se uns aos outros acerca

de metas e meios, vivendo uma vida ascética na sociedade

espartana separada do resto do mundo, não pude deixar de

pensar na Nova China como um imenso noviciado jesuíta dos

anos 1930, onde as pessoas, como noviços jesuítas,

trabalhavam diligentemente, com atenção e às vezes

desajeitadamente, por desenvolver suas virtudes (42)".

De modo que a China de hoje é uma comunidade ou reino religioso!

A perspectiva religiosa otimista, descrita acima, não pode evidentemente escapar a discussão por

parte dos sinólogos cristãos conservadores ou "ortodoxos"; e realmente surgiram questionamentos de

várias partes.

O professor Charles C. West, do Seminário Teológico de Princeton, apresentou uma detalhada critica

dessa perspectiva, baseando-se na compreensão tradicional (ou "ortodoxa") da fé cristã. Para West,

apontar o maoísmo ou a revolução maoísta como a verdadeira expressão da salvação divina e não

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lembrar-se que os comunistas suprimiram a Igreja cristã e o evangelho na China é "idolatria" e "culto

prestado a objetos humanos em nome de Deus" (44). Acredita West que a Bíblia apresenta um

modelo de interação entre a salvação divina e a luta humana. Na concepção bíblica, a salvação cristã

dependia da força de Deus e foi realizada segundo o plano de Deus, não por esforço humano. A luta

do homem pela libertação social vem depois que Deus chamou o homem a uma aliança com ele e é

"controlada por Deus tanto em seu método quanto em suas metas". D'outro modo não se poderá

conquistar nenhuma libertação, mas a substituição da antiga tirania por uma nova. Além disso, uma

vez que na Bíblia Deus chamou seu povo ao arrependimento e autotransformação, "o teste de

fidedignidade de qualquer poder terreno, conservador ou revolucionário" consiste em ver se "está

efetivamente presente esta abertura ao arrependimento e reforma". Por fim, mostra West que o tema

dominante da história é que, através da graça de Deus, o homem é reconciliado com Deus e se

realiza a paz como a meta do reino de Deus. Por isso, a luta humana pela libertação, concebida em

ideologias humanas, não pode ser equacionada com a salvação de Deus. Revolução pela força

coercitiva não é um canal da graça (45).

Baseando-se nestes critérios, sugere West que nós como cristãos deveríamos olhar para a China de

hoje da seguinte maneira. Primeiro, embora a radicalidade da China possa ser considerada como "a

mais drástica resposta do mundo a dois mil anos de missão cristã", o fato de ela humanizar o poder

de Deus no poder do Partido não é um "veículo adequado", pois tal poder "é moral e espiritualmente

ambíguo". Segundo, deveríamos reconhecer que os acontecimentos na China do século XX são um

julgamento de Deus sobre a Igreja missionária ocidental que não conseguiu produzir "uma eficaz

crítica cristã do poder e um movimento social cristão". Terceiro, mesmo admitindo o tremendo

progresso material verificado na China maoísta, deveríamos continuar esperando que ocorra maior

"abertura" na China e a restauração da "liberdade de religião, liberdade de relacionar-se com o

passado e liberdade de comunicar-se com pessoas de outras ideologias e sociedades". Quarto,

deveríamos remeter à experiência e julgamento dos cristãos chineses a procura e verificação do

sentido do maoísmo para a história (46).

Também o professor Creighton Lacy, da Universidade de Duke, discorda da interpretação eufórica do

maoísmo ou da China maoísta, especialmente da interpretação avançada por Whitehead. As críticas

de Lacy visaram principalmente os conceitos de salvação e de maoísmo de Whitehead. Lacy contesta

a identificação de Whitehead entre libertação maoísta e salvação, pois esta última depende dum

conhecimento e lealdade a Jesus de Nazaré e é muito mais englobante e completa. No tocante ao

maoísmo, Lacy não apenas levanta a questão do custo humano resultante do principio maoísta da

luta, mas também questiona sua interpretação unilateral e pretensão exclusiva à verdade (47).

Mas o mais hostil crítico da interpretação religiosa do maoísmo ou da China maoísta é provavelmente

o professor Donald W. Treadgold, ilustre historiador da Universidade de Washington. Também

Treadgold elaborou sua lista de sete proposições, que ele qualifica de "erros" cometidos por alguns

cristãos ao avaliar a relação entre China e cristianismo ao longo dos últimos séculos. Um de seus

erros principais é considerarem que "a República Popular da China representa algo como a marcha

de Deus na história".

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A perspectiva de Treadgold é realmente a dum historiador ao comparar os sinófilos religiosos de hoje

com os que acumularam elogios à Rússia Soviética após a revolução bolchevista. Para Treadgold,

identificar a China maoísta com a salvação no sentido cristão é simplesmente cometer o que Eric

Voegelin chamou "o erro de confundir história salva e história profana, divinizar acontecimentos

humanos, inclusive as ações mais calamitosas e brutais do homem". Treadgold cita muitas ações

calamitosas e brutais cometidas na China maoísta. Além da repressão à liberdade de pensamento e

de religião, o regime comunista chinês causou a morte de ao menos 30 milhões de pessoas e

aprisionou cerca de 40 milhões em campos de concentração (Para que não apareça quem discorde

dessas estimativas, lembra que estimativas semelhantes feitas para as perseguições estalinistas

foram eventualmente comprovadas). Previne também os ocidentais de que não creiam na imagem do

"homem novo" criado na China maoísta; e cita como prova o testemunho de um cristão chinês: "Nos

últimos anos alguns estudiosos ocidentais tenderam a descrever as pessoas na China comunista

como uma espécie de 'homem novo', com recém - adquiridas qualidades de serviço devotado e auto -

sacrifício, seguindo fielmente as exortações morais do Presidente Mao em busca de elevadas metas

sociais. Mas isso é principalmente a opinião de iludidos observadores de fora". No final de sua critica

lança Treadgold um apelo aos cristãos a que se inspirem em seu "ideal de libertação do temor da

opressão" e se coloquem do lado do povo chinês sofredor" (48).

2a Parte

O levantamento que apresentamos sobre como o Ocidente entendeu a cultura chinesa mostra que,

com exceção do século XIX, a percepção do Ocidente tem sido favorável. O confucionismo como

sistema espiritual significa coisas diferentes para críticos ocidentais diferentes. É considerado uma

filosofia racionalista, ou uma ética social, ou mesmo uma religião autêntica. Seja o que for, é o

confucionismo reconhecido como valiosa parte da herança cultural do homem.

Devemos, no entanto, observar que esta avaliação favorável da cultura chinesa por parte do Ocidente

não se estende a outros aspectos da civilização chinesa. Por exemplo, o sistema político chinês nem

sempre foi visto numa luz muito positiva. O conceito de despotismo oriental foi aceito por muitos

ocidentais como denominador comum do desenvolvimento político da China ao longo de toda sua

história." (49) Como entidade política, a China tem sido considerada pelo Ocidente qual ameaça a ser

temida (os conceitos de Perigo Amarelo e Terror Vermelho) ou corrupção a ser desprezada (as

imagens dos detestáveis mandarins no século XIX e dos sanguinários chefes militares da primeira

metade do século XX). Eis outro lado da visão da China pelo Ocidente que dever-se-ia reter em

mente como contraste com sua avaliação favorável da cultura chinesa.

Mas por que desenvolveu o Ocidente esta avaliação favorável da cultura chinesa? A resposta a esta

pergunta não é, evidentemente, fácil. Além do valor intrínseco da cultura chinesa, a outra causa pode

ser encontrada na psicologia do próprio homem ocidental. Henri Baudet, em seu esclarecedor tratado

sobre as imagens européias do homem não - europeu, afirmou que a relação do homem europeu

com o não - europeu foi influenciada mais intensa e compulsivamente por "um impulso interior"

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oriundo da "nostalgia pela harmonia profunda, ideal, última, ainda acalentada como sendo o

verdadeiro fim da Criação". Buscando esta harmonia, procurou-a o homem ocidental ou em seu

passado histórico ou num mundo fora do Ocidente. Por isso, no século XVIII, "com uma atitude de

protesto contra toda a história" o homem ocidental "sentiu-se tão fortemente atraído para o outro

mundo". E no século XIX sentiu-se mais satisfeito com suas conquistas e "orientou-se para a

história", de modo que não tentou "buscar o Paraíso além do horizonte"." (50)

Se aceitarmos esta análise - e o autor do presente artigo inclina-se a aceitá-la - tornar-se-á claro para

nós o que expusemos neste apanhado histórico. A avaliação favorável da cultura chinesa pelos

sinófilos do Iluminismo resultou de seu desapontamento com as manifestações religiosas, sociais e

políticas de seu próprio continente. A seus olhos, a existência duma religião ou teologia supersticiosa

e sufocante, os privilégios sociais desfrutados pelo clero e pelas classes aristocráticas, e as

constantes disputas e guerras entre os Estados europeus, tudo isso contrastava vivamente com o que

a China oferecia ao mundo: uma filosofia racionalista e ética, um reconhecimento social baseado na

conquista através dum correto sistema de exame, e acima de tudo um sistema político unificado que

mantivera a lei e a ordem no império chinês (51). Até mesmo as artes chinesas e os estilos de vida

chineses eram considerados superiores ao do Ocidente; e assim vimos emergir no Ocidente o estilo e

moda rococó, que se chamou chinoiserie (52).

Durante o século XIX e primeiros decênios do século XX o Ocidente dominou o mundo em quase

todas as esferas de atividade humana e estava extremamente confiante em si, tanto em questões

materiais como espirituais. Contudo, nos últimos tempos testemunhamos uma renovação da primitiva

euforia acerca da China e da cultura chinesa. Não apenas a revolução maoísta é considerada por

alguns uma grande libertação e mesmo salvação do homem, mas também o maoísmo e a cultura

chinesa têm sido muito bem recebidos. Sejam quais forem os méritos ou deméritos da China maoísta

e da cultura chinesa, o pano de fundo desta nova euforia é certamente o desenvolvimento da dúvida

e desapontamento com o que está acontecendo na sociedade ocidental contemporânea. Simon Leys

(Pierre Ryckmans), sinólogo e admirador da tradição humanista chinesa, cuja sinofilia tem base e

perspectiva diferentes das de Joseph Needham, emitiu os seguintes comentários:

"Os ideólogos ocidentais usam hoje a China maoísta

exatamente como os filósofos do século XVIII usaram a China

confuciana: como um mito, uma projeção ideal abstrata, uma

utopia que lhes permite denunciar tudo que é mau no Ocidente

sem dar-se ao trabalho de pensar por si mesmos. Sufocamo-

nos no miasma da civilização industrial, nossas cidades

apodrecem, nossas ruas e estradas estão bloqueadas pela

insana proliferação de carros etc. Por isso apressam-se em

celebrar a República Popular, onde não existem poluição,

delinqüência e problemas de tráfego. Poder-se-ia igualmente

elogiar um mutilado porque seus pés não estão sujos" (53).

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E Leys ainda cita Lu Xün, o grande "psiquiatra cultural" moderno da China, para indicar o modo

correto de um ocidental reagir à China de hoje:

"Assim, se fosse possível hoje encontrar um estrangeiro que,

embora admitido ao banquete chinês, não hesitasse em

arengar em nosso nome contra o atual estado da China, a este

eu chamaria um homem verdadeiramente honesto, um homem

verdadeiramente admirável" (54).

Não precisamos aceitar o juízo de Leys ou o que ele denomina seu "sarcasmo estéril" (55) como base

para considerar a China maoísta ou a cultura maoísta. Nesse assunto pode Leys ter tantos

preconceitos como qualquer outra pessoa. Por isso, uma maneira de superar ou desviar todos os

estereótipos na avaliação ocidental da China e de sua cultura, passada e presente, consiste em ouvir

o que o atual povo chinês do Continente tem dito acerca das mesmas. O que eles têm dito pode

servir, se para nada mais, ao menos como ponto de referência para nós. Neste caso, alguns recentes

jornais murais aparecidos na Praça Tiananmen (paz celestial) em Pequim podem derramar alguns

raios de luz sobre nós. Um "Manifesto" redigido por um grupo chamado Qi-menq She (Sociedade

Iluminada) e afixado a 24 - 11 - 1978 declarou seus 12 artigos de fé como linhas-mestras para realizar

a "democracia e os direitos humanos" na China. Transcrevemos apenas dois deles:

"Passaram para sempre a sociedade feudal e o país ditatorial

do Qin Shi Huang-di (o primeiro Imperador da dinastia Qin,

221-207 a.C.). A cega veneração do Oriente deve ser rejeitada;

e como já não somos mais 'manequins', devemos lançar um

ataque em grande escala contra os restos do fascismo

ditatorial".

E também:

"Existem atualmente duas Grandes Muralhas. Uma foi

construída para impedir a invasão (da China) pelos inimigos de

fora. A outra é a Grande Muralha espiritual levantada pelos

filhos e netos do Qin Shi Huang-di para proteger seu sistema

ditatorial... Quanto a esta, deve ser demolida" (56).

Como verdadeiros herdeiros da tradição e cultura chinesas, a voz destes descendentes dos Han no

século XX deve, a meu ver, ser tomada a sério por qualquer observador ocidental da China,

prescindindo de suas próprias inclinações em relação à China e à cultura chinesa.

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Por último, diremos também algumas palavras acerca da discussão pelo Ocidente acerca do legado

do desenvolvimento científico chinês. A meu ver, as interpretações ocidentais acerca do fracasso da

China em desenvolver a ciência, a modernização ou o capitalismo são todas explicações úteis. Mas

nenhuma das interpretações dá uma resposta cabal a esse fracasso. Acredito que a permanente

preocupação dos letrados chineses em procurar carreira e fortuna no oficialismo chinês passando

pelos exames públicos para o serviço civil pode ter exaurido as melhores energias desta classe. Além

do mais, seu engajamento diário no que Metzger chamou de fins menos transformadores - tais como

shi (poesia), shu (estudo científico dos assuntos filosóficos, fonológicos e textuais), qin (música), hua

(pintura) - consumiram também o resto de suas energias. Essa dupla busca diária dos letrados

chineses provavelmente retardou, mais que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da ciência,

modernização e capitalismo na China. Na minha opinião, essa dupla busca deveria merecer muito

maior atenção do que a que recebeu seja na teoria de Weber sobre a ética protestante ou na

ilustração de Metzger sobre o "dilema" confuciano como meio de explicar por que a China não

conseguiu igualar-se ao Ocidente no desenvolvimento da ciência, modernização e capitalismo.

Notas:

1. Os melhores estudos sobre a obra dos jesuítas na China, em língua inglesa, são: A. H.

Rowbotham, Missionary and Mandarin, Berkeley - Los Angeles 1942; G. H. Dunne, Generation of

Giants, Notre Dame, Indiana 1962; D.W. Treadgold, The West in Russian and China, vol. 2; China,

1582-1949, Nova lorque 1973, p. 1-34. Entre o material em chinês, cf. Fang Hao liu-shih tzu-ting kao

(Obras completas de Fang Hao, rev. e edit. pelo autor por ocasião de seu 60o aniv.), Taipei 1969.

2. Ch' en Shou-i, Ming-mo Qing-ch'u Yeh-ssu hui shih ti ju-chiao kuan chi ch'i fan-ying (As idéias dos

jesuítas sobre Confúcio no fim do período Ming e começo do período Qing e suas repercussões), em

Kuo-li Pei-ching ta-hsüeh kuo-hsüeh chi-k'an (Publicação trimestral de estudos chineses da

Universidade Nacional de Pequim), vol. 5, fasc. 2, p. 1-10.

3. Ibid., p. 14-31.

4. W. Franke, China and the West, Nova Iorque 1967, p. 48.

5. Fang Hao, op. cit., p.205-206; D. W. Treadgold, op. cit., p. 30-34.

6. D. E. Mungello, Leibintz and Confucianism: The Search for Accord, Honolulu 1977, p. 116-117.

7. Ibid., p. 72-75.

8. D. W. Treadgold, op. cit., p. 43.

9. Ibid., p. 61.

10. P.R. Bohr, Famine in China and the Missionary, Cambridge, Mass. 1972, p. 158.

11. D. W. Treadgold, op. cit., p. 56-65.

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12. Ibid., p. 43, 60-62.

13. Ibid., p. 230, 138.

14. N. Cameron, Barbarians and Mandarins, Chicago 1970, p. 408.

15. M. Weber, The Religion of China, Nova lorque 1977; cf. especialmente a Introdução de C. K. Yang

a esta reimpressão.

16. T. A. Metzger, Escape from Predicament, Nova lorque 1977, p. 197.

17. Ibid., p. 204, 127-134, 161-165.

18. Ibid., p. 234-235.

19. Ibid., p. 239.

20. Ibid., p. 15.

21. Ibid., p. 6, 7, 11, 30, 221-222.

22. Ibid.

23. Ibid., p. 54-55.

24. Ibid., p. 54.

25. Ibid., p 59-60.

26. Ibid., p. 231.

27. R. Dawson (ed.), The Legacy of China, Londres 1964, p. 234-241.

28. S. Nakayama e N. Sivin (ed.), Chinese Science, Cambridge, Mass. 1973, p.39-40.

29. R. Dawson, op. cit., p. 257.

30. L. S. Feuer, The Scientific Intellectual, Nova lorque 1963, p. 240-242.

31. Nakayama e Sivin, op. cit., p. XXVII, 62.

32. Ibid., p. 33-34.

33. L. S. Feuer, op. cit., p. 243-252.

34. Ibid., p. 252-253.

35. Chang Ch'in - shih (ed.), Kuo-nei chin-shih-nien-lai chih tsung-chiao ssu-ch'ao (A corrente de

pensamento religioso na China durante a década passada), Pequim 1927, p. 147-154.

36. N. Smart, The Religious Experience of Mankind, Nova lorque 1969, p. 151-152, 186-190.

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37. H. Smith, “Transcendence in Traditional China”, em Religious Studies 2 (1967), fasc. 1-2, p. 187-

188.

38. Ibid., p. 188-191.

39. Ibid., p. 192.

40. R. L. Whitehead, Christ, Salvation, and Maoism (ensaio apresentado na Conferência de Notre

Dame sobre "China e Ocidente: A Dimensão Religiosa", 29-6 a 2-7 de 1977).

41. Ibid., p. 1-14.

42. J. Needham, Christian Hope and Social Evolution, em China Notes 12, fasc. 2 (primavera de

1974), p. 13-20.

43. W. van Etten Casey, S.J., “Mao's China, em Holy Cross” em Quarterly 7, fasc. 1-4 (1975), p. 10.

44. C. C. West, “Some Theological Reflections on China”, em China Notes 14, fasc. 4 (outono 1976),

p. 39.

45. West, Theological Reflections on China, II (ensaio difundido na Conferência de Notre Dame sobre

"China e Ocidente"), p. 2-4.

46. Ibid., p. 4-7.

47. C. Lacy, “A Response to "Christ, Salvation, and Maoism", em China Notes 15, fase. 4 (outono

1977), p. 7-10.

48. D.W. Treadgold, The Problem of Christianity in Non-Western Cultures: The case of China (palestra

- diretriz pronunciada na Conferência de Notre Dame), p 12-16.

49. O exemplo mais célebre é K.A. Wittfogel, Oriental Despotism, New Haven, Conn. 1957.

50. H. Baudet, Paradise on Earth, New Haven, Conn. 1965, p. 74-75.

51. G.F. Hudson, Europe and China, Londres 1931, p. 313-329; W. Franice, op. cit., p. 59-65.

52. Hudson, op. cit., p. 270-290; H. Honour, Chinoiserie, Nova Iorque 1961.

53. S. Leys, Chinese Shadows, Nova Iorque 1977, p. 201.

54. Ibid., citado na página anterior ao Prefácio.

55. Ibid., p. 211.

56. The United Daily (Taipei, Taiwan), 26-11-1978. A história dessa Sociedade Iluminada foi divulgada

por agências noticiosas japonesas em Tóquio.

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Oriente – Ocidente

Jean Riviere

As dificuldades de uma aproximação cultural.

O conhecimento do Oriente parece agora necessário -e poderíamos até mesmo dizer obrigatório-,

mas está semeado de dificuldades, de preconceitos, de obstáculos e de incompreensão. Mas, como

em seguida se verá, esta situação não se deve só a uma grande ignorância, que poderia se corrigir

com estudo, reflexão e boa educação; o problema é mais profundo, porque corresponde a atitudes

inconscientes do espírito, à psicologia, à semântica.

Estas dificuldades na aproximação entre o Oriente e o Ocidente foram salientadas por vários autores,

como F. C. S. Northrop, que afirmou que a diferença principal entre a atitude de ambos os mundos

provém de uma oposição fundamental entre seus conceitos filosóficos básicos e que o problema é, na

realidade, espiritual. Carl Gustav Jung (1875-1961), no seu comentário psicológico, publicado no

“Livro Tibetano da Grande Libertação”, estuda detalhadamente este assunto.

Segundo Jung, o Ocidente deu origem a uma nova doença: o conflito entre ciência e religião que, no

fundo, é uma incompreensão mútua. Este dualismo não existe no Oriente, porque nenhuma ciência

se baseia na paixão experimental e nenhuma religião na fé pura. O Oriente baseia-se na realidade

psíquica, ou seja, na psique enquanto principal e única condição de existência. A introversão é o

"estilo do Oriente", atitude coletiva e habitual, assim como a extroversão é o "estilo do Ocidente", o

que dá origem a um grave conflito emocional entre os pontos de vista orientais e ocidentais. O

Ocidente cristão considera o homem dependente da graça divina ou, pelo menos, da Igreja. enquanto

que instrumento terrestre exclusivo e divinamente reconhecido para a redenção humana. O Oriente

insiste no fato de que o homem é a única causa do seu desenvolvimento superior, visto que acredita

na libertação por si próprio.

A oposição aparece assim como fundamental: o Ocidente é e permanece profundamente cristão, quer

dizer, judaico-grego no que se refere à sua psicologia; subestima a psique humana, por considerá-la

suspeita. Para ele, o homem é pequeno e está muito próximo do nada. Jung sublinha: "Por medo,

arrependimento, promessas, submissão, humilhação voluntária, boas ações e elogios,' mostra-se

favorável ao grande poder, que não está nele, mas sim no outro, na única Realidade. Se

transpusermos ligeiramente a fórmula e substituirmos Deus por qualquer outro poder, por exemplo, o

mundo ou o dinheiro, teremos uma imagem completa do homem ocidental-constante, temente,

piedoso, voluntariamente humilhado, empreendedor, cobiçoso e violento no seu afã em conseguir

bens terrenos... A atitude oriental contradiz a ocidental e vice-versa. Não se pode ser um bom cristão

e conseguir por si só a redenção, nem um bom budista e adorar a Deus... A atitude oriental viola os

valores especificamente cristãos: Não podemos negar o reconhecimento deste fato." O problema

complica-se ainda mais com as antinomias semânticas, com as formas de linguagem. Sabemos, já há

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muito tempo, que entre as formas lingüísticas e o pensamento há uma relação e uma

correspondência mútuas, mas o uso das mesmas palavras, para significar ou traduzir conceitos

diferentes, é fonte de confusões, mal-entendidos e graves incompreensões. Toda a questão

semântica desempenha, a nosso ver, um papel importante na aproximação entre o Oriente e o

Ocidente. Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Benedetto Croce (1866-1952) e Ferdinand de Saussure

(1857-1913) demonstraram o drama da solidão de quem fala, da incomunicabilidade humana, drama

de massas, como sustenta José Ortega y Gasset (1883-1955): “duo si idem, non est idem” (dois,

embora idênticos, não formam uma identidade). Os psicólogos assinalaram a existência de uma

estreita relação entre a rede de associações verbais e os fenômenos emotivos e de memória; a língua

"aprende-se", segundo os hábitos de uma determinada sociedade; o significado da palavra está em

função do uso, mas do uso socialmente regulamentado e coordenado. A comunicação humana, por

intermédio da linguagem, não é perfeita; há sempre um número indefinido de possibilidades,

convenções parciais de compreensão, o que deu lugar, entre os especialistas da língua, ao chamado

"ceticismo semântico".

Os obstáculos

Se se fizer o balanço sincero das tentativas de compreensão e de diálogo entre o Oriente e o

Ocidente, devemos reconhecer que é infelizmente negativo. O fundo da questão é essencialmente

uma oposição entre conceitos filosóficos fundamentais, entre duas visões do mundo diametralmente

opostas; as diferenças econômicas e políticas, variáveis por definição, não são mais do que

conseqüências.

Entre os obstáculos que se opõem a uma aproximação de ambos os mundos destacam-se em

principio as divergências que derivam do amor-próprio, as ofensas ao orgulho nacional, principais

motivos de mal-entendidos. O Ocidente deve abandonar definitivamente a idéia vã e ultrapassada de

que a sua cultura representa a única civilização válida, original e digna de interesse para o mundo

inteiro. A filosofia não se inicia com os pré-socráticos. Deve abandonar também a sua tendência para

dominar política e economicamente os seres débeis, com o pretexto de que os mais elevados

interesses da humanidade, ou seja, os seus, estão em jogo. O colonialismo militar, hipocritamente

transformado em colonialismo econômico, deu origem na Ásia a profundos e tenazes complexos.

Esta brutal forma de domínio constitui um obstáculo insolúvel para se chegar a uma mútua

compreensão de valores culturais.

Os fatos históricos devem ser respeitados nos manuais de ensino e demais meios de comunicação

(livro, rádio, televisão). A História deve ser íntegra e autêntica. Os períodos obscuros - e todos os

povos, sejam quais forem, tiveram épocas de obscurantismo moral - não devem ser dissimulados

mais nos livros ocidentais do que nos orientais.

Uma vez afastados os obstáculos devidos ao orgulho e o afã de poder, o Ocidente poderá

contemplar, e talvez descobrir com assombro, a secreta beleza de uma flor exótica de extraordinário

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valor cujas culturas longínquas e estranhas ignoravam. As civilizações orientais, cheias ainda de

tradições vivas de um passado longínquo, são dignas de estudo se se lhes der a devida atenção. O

Ocidente contaminou a Ásia, mas felizmente a industrialização não substituiu todas as correntes

espirituais; as crenças, as tradições, as práticas não desapareceram completamente. Basta deixar as

capitais da Ásia e percorrer, em carroças puxadas por bois, as antigas aldeias ainda governadas pela

tradição, aldeias que ainda são analfabetas, para se encontrar um ritmo natural, uma sabedoria

prática, um equilíbrio das relações humanas, já há muito tempo esquecidos no Ocidente. O turista

que nunca aprofunda as coisas se surpreenderia por encontrar tanta alegria paralela a tanta miséria.

O problema no conjunto é complexo, visto inserir-se na psicologia das massas, na dramática

experiência das relações entre os homens. Ao examinar outros povos e outras raças descobrimos

novas realidades psíquicas, tradições familiares e nacionais, convenções sociais e religiosas que os

indivíduos destas raças adaptaram ao meio em que vivem. As normas tradicionais, as crenças aceitas

desde a infância, mergulhadas no subconsciente, adquiriram um caráter absoluto e intransigente. A

inibição é muito freqüente e bloqueia a espontaneidade perante a intrusão do "estrangeiro". O ser

humano concreto é de uma complexidade tal que só se pode formular um juízo sobre sua estrutura

com reservas, já que um fator novo e oculto, não reconhecido, pode intervir e modificar bruscamente

seu comportamento e destruir o trabalho de aproximação, realIzado com tanto custo. Os obstáculos

citados pertencem a essa ordem de idéias e por isso o problema da abertura que possa facilitar uma

compreensão mútua é difícil. Os recentes trabalhos da UNESCO, bem como seus resultados,

confirmaram o que atrás se afirmou.

A abertura Religiosa

Ao longo deste trabalho se tem dito que as culturas orientais são profundamente religiosas; a sua

forma de expressão, filosofia e até a sua propaganda têm esse aspecto. O homem oriental está ligado

ao sagrado, que explica através da linguagem e do comportamento. Nas sociedades asiáticas

tradicionais, que constituem as bases das massas orientais contemporâneas, o social, o familiar, a

técnica e o sagrado estão indissoluvelmente ligados. Mas seria errôneo julgar que se trata somente

de uma posição sociologicamente organizada, originada na angústia e no medo, no temor ao destino

e à morte. Esta explicação fácil do fenômeno religioso, muito em voga no Ocidente, permitiu ao

europeu afirmar uma atitude de homem forte, liberto dos temores ridículos da Idade Média, mas esta

é uma explicação falsa. A antropologia religiosa demonstra que o sagrado é um elemento da própria

estrutura do homem e não uma etapa da sua história mental. A presente realidade corresponde muito

mais marcadamente a uma dessacralização das culturas ocidentais, que esqueceram as suas

hierofanias e o sentido do sagrado, a uma laicização geral, já assinalada e estudada por muitos

autores. É oportuno referir que o fenômeno nunca é definitivo e que qualquer cultura, pelo fato de

estar "viva", gera um novo halo "sagrado", que suporta e justifica suas ações, na exata medida em

que este "sagrado" é o próprio mundo do homem, elevado acima da práxis quotidiana, como refere o

Prof. Michel Meslin. É fácil observar este novo "sagrado" ocidental no culto da ciência, no desporto,

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na ideologia política, começando nos "nacionalismos". Um notável exemplo destas novas religiões é o

comunismo radical, com seus "santos", sua "Igreja", sua inquisição, suas confissões, seu

dogmatismo, suas heresias e seus desvios.

Nas tentativas de aproximação Oriente-Ocidente, seria um esquecimento imperdoável a omissão da

abertura religiosa; este tema esteve latente ao longo do presente trabalho. No diálogo entre

ocidentais e orientais, sempre será colocado, num momento ou em outro, o problema da religião, ou,

pelo menos, da reação psicológica religiosa.

Esta abertura religiosa é delicada e difícil, porque roça o irracional, o emotivo, as forças

subconscientes, bases da exaltação mística, que não admitem obstáculos no seu caminho, como já

se disse. Até agora o Ocidente tentou converter o Oriente, o que foi até uma das causas das

Cruzadas, e a razão de ser dos missionários, durante séculos, a do estabelecimento de igrejas cristãs

no Oriente. Infelizmente, esta presença missionária foi acompanhada por ações militares e pelo

interesse econômico do colonialismo europeu. A experiência fracassou.[...] O Oriente nunca aceitará

qualquer forma religiosa exclusiva, que provenha da Europa. A prova foi feita e é fácil tirar as

respectivas conclusões.

Um aspecto inverso do problema é formado pela atração que certas formas religiosas orientais

exercem sobre as ocidentais e o desejo de conversão e de síntese que dele deriva. Surgem no

Ocidente os neobudistas, os neo-hinduístas, os “neo-yoguis”. Criaram-se centros de divulgação

destas doutrinas; muitos possuem unicamente uma atividade lucrativa e não há necessidade de nos

ocuparmos deles, embora seja de lamentar a respectiva clientela. No entanto, outros trabalham de

boa fé e acreditam inaugurar uma nova etapa de sincretismo religioso que aproximará o Oriente do

Ocidente.

Jung escreveu páginas definitivas sobre essas tentativas, na sua introdução psicológica aos textos

tibetanos já referidos. A respeito dessas "conversações" escreveu: "Não posso deixar de colocar o

problema de saber se é possível, e até desejável, que cada um adote o ponto de vista do outro. A

diferença entre ambos - o oriental e o ocidental- é tão grande que não se vislumbra nenhuma

possibilidade racional e menos ainda qualquer oportunidade. Não se pode misturar o fogo e a

água...Para tomar autêntica a nossa nova atitude, isto é, para que se baseie na nossa própria

história, devemos aceitá-la com plena consciência dos valores cristãos e dos conflitos existentes

entre eles e a introvertida atitude oriental. Devemos alcançar os valores orientais internos e não os

externos, procurando-os em nós mesmos, no inconsciente... Aquilo que podemos ensinar em matéria

de conhecimento espiritual e de técnica psicológica, em comparação com o yoga, parece tão

atrasado como a astrologia e a medicina orientais comparadas com a ciência ocidental. Não nego a

eficácia da Igreja cristã; mas se compararmos o “Livro dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de

Loyola”, com o yoga, ficará bem claro o que pretendo dizer. Existe entre eles uma diferença muito

grande. Passar diretamente deste nível para o yoga oriental seria tão desacertado como a repentina

transformação dos povos asiáticos em europeus fracassados. Tenho sérias dúvidas sobre o benefício

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da civilização ocidental e grande apreensão em relação a adoção da espiritualidade oriental no

Ocidente".

Esta citação de Jung era indispensável para esclarecer o problema. Deve-se acrescentar que as

tentativas de comparação de diversas formas religiosas para obter juízo de valor foram em vão. A

morfologia das religiões demonstra que constituem a substância das culturas. Uma religião é um

conjunto estrutural que possui seus dogmas, sua metafísica, seu culto, sua escatologia, etc. Não se

pode separar nenhum elemento sem perigo de alterar o conjunto ou de criar uma nova religião.

Desde que, no século passado, o Ocidente descobriu o budismo escreveram-se centenas de obras

para tentar provar a superioridade desta religião sobre o cristianismo e vice-versa. Esta religião foi

exaltada por puro sentimentalismo e foi, simultaneamente, ignorada por filósofos românticos, poetas,

escritores anticlericais. Os defensores da tradição cristã depreciaram-na e desfiguraram-na por

necessidade de defesa da sua própria causa. Efetivamente estas duas formas de religião não

admitem comparação porque seus fundamentos são muito diferentes, devido tanto à personalidade

de seus fundadores, como às suas bases de ensino ou ao seu conceito da salvação. Nada mais

diferente entre si pela base e pela forma, que os Sutras budistas e os Evangelhos cristãos. Buda

nunca quis ser um Salvador, mas sim um guia no caminho da libertação espiritual, um "iluminado",

como seu nome indica, que chegou a tal estado por intermédio das técnicas de meditação, que

ensinou a seus discípulos. A comunidade, o sangha, que reuniu os ascetas que se sucederam, não

foi nunca uma Igreja no sentido ocidental da palavra porque nunca teve uma hierarquia sacramental;

não há no budismo o conceito de Deus no sentido judaico-cristão do termo. O mesmo poderíamos

dizer do hinduísmo, do daoísmo e de outras formas religiosas asiáticas. Nestas questões chega-se

sempre a um núcleo irredutível a qualquer investigação humana.

Se se pretender estudar as possibilidades de sincretismo das diversas formas sociológicas do

sagrado, do transcendente, devem procurar-se as soluções num plano mais elevado, o da intuição

metafísica. Bergson compreendeu-o ao escrever que "só podemos compreender o Absoluto através

da intuição, enquanto que o resto depende da análise". Esta intuição afeta o ser na sua essência.

Sobre tais bases é possível a comunhão das formas religiosas do Oriente e do Ocidente. Rudolf Otto

estudou-a ao comparar duas grandes personalidades religiosas, o Mestre Johann Eckart (cerca de

1260- 1327) e o metafísico hindu Shankara (cerca de 788-820), nos seus respectivos caminhos para

a posse da visão da unidade; aí estão dois místicos, um, o grande mestre do Ocidente germânico e o

outro, o mais famoso filósofo hindu, fundador da escola dos Vedanta e da Ordem dos Sannyasines

que ainda existe na Índia. A concordância entre ambos os mestres é extraordinária, apesar de suas

origens diferentes e de sua formação teológica e escolástica, que nada têm em comum. A

semelhança da sua posição mística e da especulação que à volta disso se faz é sublimada pelo Prof.

Otto. Evidentemente, o professor alemão luterano inclina a balança a favor de seu concidadão

porque, como teólogo cristão, assusta-o a mística oriental hindu devido a sua teologia negativa, ao

seu "vazio", símbolo muito freqüente na metafísica oriental. Reconhece, porém, o caráter comum

numínico da descoberta do abismo espiritual.

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Neste ponto já não existe Oriente nem Ocidente, mas sim, um grande mistério onde tudo é silêncio e

experiência pessoal; chega-se ao umbral da consciência, onde nada se pode dizer, mas unicamente

indicar. Sobre este aspecto a antiga sabedoria asiática, velha conhecedora de todos os recônditos da

psicologia mais profunda, e que põe em prática métodos de introspecção experimentados durante

séculos, poderá ser um guia seguro e expediente na descida sempre perigosa ao Abismo.

Interação entre Linguagem e Pensamento Chinês

Yu Kuang Chu

Que linguagem e cultura estejam intimamente relacionadas é observação corriqueira, para aqueles

que tenham estudado uma língua estrangeira. São, entretanto, relativamente poucos os que

esquadrinharam especificamente a possibilidade de a estrutura de uma linguagem condicionar os

processos do pensamento e, vice-versa, a de mudanças radicais no pensamento acabarem

acarretando reformas estruturais na linguagem.

Presidindo encontros acadêmicos, como decano de uma universidade chinesa dotada de um corpo

docente internacional bilíngüe, descobri que, se pretendesse estimular a solução de um problema à

maneira chinesa, com a ênfase que ela empresta aos meios indiretos e ao sentimento, bastava-me

falar chinês para dirigir a discussão; ao passo que, se desejasse lidar com o problema de maneira

objetiva e direta, segundo os regulamentos, deveria valer-me do inglês. Como os membros do corpo

docente respondiam pensando e falando numa ou noutra das duas línguas, eles faziam apelo a duas

séries algo diferentes de processos mentais e de hábitos conceituais. Isto era válido tanto para os

docentes chineses, quanto para os ocidentais.

O autor deste ensaio é presidente do Programa de Estudos Asiáticos do Skidmore College, de

Saratoga Springs, Nova Iorque. O Dr. Chu lecionou na Lignan University, na Yenching University e no

National Teachers College, na China, antes de vir para a América como professor de Cultura

Chinesa, em Pomona. É bastante conhecido em todo o país e no Extremo Oriente graças ao seu

trabalho pioneiro no campo dos estudos interculturais. Este artigo foi originalmente publicado em

Topic: A Journal 0f the Liberal Arts, Washington and Jefferson College, Washington, Pennsylvania.

Demonstrar uma interação entre linguagem e pensamento é urna coisa; outra bem diferente, apontar-

lhe a causa e o efeito sob qualquer aspecto específico. É como a proverbial questão da galinha e do

ovo. Para facilitar a análise, a primeira parte deste ensaio, que trata do pensamento tradicional

chinês, adotará, de modo geral, o ponto de vista de que a estrutura da linguagem influenciou os

processos mentais, embora se pudesse defender a tese contrária. Na parte final do ensaio, indicar-

se-á de que maneira as concepções ocidentais que se conseguiram impor na China moderna levaram

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às diversas reformas que estão atualmente ocorrendo na língua.

Características do Discurso Chinês

Este artigo não pretende dar uma descrição panorâmica de todas as características distintivas da

língua chinesa e de suas inúmeras variações dialetais. Tomaremos o dialeto principal, denominado

"mandarim", que foi adotado como língua nacional e que é falado como língua materna por setenta

por cento do povo chinês, excluindo-se as minorias étnicas. E descreveremos sucintamente apenas

as características que parecem estar em interação evidente com o pensamento.

As palavras chinesas são monossilábicas; por exemplo, zhong (1) significando "meio" e guo "país".

Zhongguo significa "China". Em virtude dessa qualidade monossilábica, o discurso chinês possui um

ritmo de toque de tambor. Como existem cerca de 420 sílabas em mandarim, em contraposição às 1

200 do inglês, e como um dicionário chinês completo contém aproximadamente 50.000 palavras, há

muitas palavras pronunciadas com o mesmo som ou sílaba. Como recurso para diferenciar algumas

delas, usam-se tons. Cada um dos caracteres tem um tom fixo. Cada sílaba acentuada numa

sentença em mandarim é pronunciada num dos quatro tons: "elevado-uniforme", "elevado-subindo",

"baixo-subindo" ou "elevado-caindo" * indicados na romanização quer por um sinal diacrítico sobre a

vogal principal, quer por 1, 2, 3 ou -1 subscritos. Temos como exemplo a sílaba mã que, pronunciada

no primeiro tom, significa "mãe"; no segundo tom, é "fio flexível"; no terceiro, "cavalo"; e no quarto,

"ralhar". De modo que, ao falar o chinês, cumpre dizer cada palavra acentuada não somente com o

som correto como também no tom certo; caso contrário, não se é compreendido corretamente. Essa

característica tonal das palavras chinesas confere ao chinês falado uma qualidade musical.

*[Em A Guide to Mandarin, por Y. C. Yuen, Shung Man Printing Press (Hong Kong, 1963), é

apresentada a seguinte notação gráfica para os "tons": 1) 2), 3) 4) . Observe-se que o 3.°

tom, descrito pelo Autor do presente ensaio como "low-dipping", é registrado na introdução prosódica

ao Mathew's Chinese-English Dictionary, Harvard University Press (Cambridge, Mass., 1963) como

"low-rising" (ou "rising tone"). Adaptamos a tradução a esta última fonte, por nos parecer mais clara,

considerada a "notação gráfica" supra.]

Herrlee G. Creel comparou os quatro tons às quatro maneiras de pronunciar o "yes" em inglês (2). O

primeiro tom é como o do modo de responder "yes" a uma lista de chamada (um tom alto,

ligeiramente prolongado). O segundo é como o tom que se vai elevando, quando se diz "yes" para

responder a alguém que está batendo à porta, enquanto se está ainda absorvido pelo que se está

fazendo. O terceiro tom assemelha-se ao do "ye-es" pronunciado por alguém que concorde

dubitativamente com alguma coisa enquanto ainda a vai considerando mentalmente, vindo o tom de

elevado para baixo e subindo levemente no fim. Finalmente, o quarto tom é o de um yes pronunciado

como réplica positiva, breve e segura, terminando incisivamente. Embora a maioria das autoridades

lingüísticas afirme que as palavras inglesas têm apenas acentos e não tons fixos, um estudioso, pelo

menos, sustenta ter identificado sete tons no discurso inglês, equacionando alguns deles com os do

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discurso chinês (3).

Mesmo com o emprego dos tons, muitas palavras são pronunciadas com som e tom idênticos. Num

dicionário reduzido contendo 5 000 palavras, nada menos de quarenta e um caracteres são

pronunciados yi quarto tom. Para apontar apenas alguns, os vocábulos equivalentes a "fácil",

"intenção", "retidão", "diferença", e "arte" são todos eles pronunciados yi embora sejam escritos com

caracteres inteiramente diferentes. A profusão de homófonos torna difícil escrever foneticamente o

chinês com certeza quanto ao significado.

A fim de melhor diferenciar os homófonos, o discurso chinês recorreu ao uso de expressões

compostas, consistindo cada uma em duas ou mais palavras, em lugar das palavras simples. Por

exemplo, em lugar de usar a palavra simples yi significando "fácil", empregamos a expressão

composta jungyi (significando literalmente "suportar fácil"). Da mesma forma, para "intenção",

dizemos yi ssu (literalmente, "pensamento de intenção"); para dizer "retidão", kung yi (retidão

pública); para "diferença", yi tien (ponto diferente); para "arte", yishu (técnica artística); etc. A grande

maioria dos compostos constitui-se de apenas dois caracteres. Há alguns com três; por exemplo, t'u

shu kuan (edifício catálogo de livros), para "biblioteca".

Os compostos de quatro caracteres são mais comuns que os de três, sendo freqüentemente

formados por duas expressões binomiais. Por vezes, o significado de um composto não tem

nenhuma relação com os significados das palavras isoladas que o constituem. Como ilustração,

temos shou tuan cujos dois caracteres, tomados isoladamente, querem dizer "mão" e "seção" mas

que, juntos, significam "método para fazer coisas". Os dois caracteres realmente formam uma palavra

e, nesse sentido, algumas expressões compostas em chinês podem ser consideradas como palavras

polissilábicas. Note-se que o chinês clássico usa muito menos palavras compostas que o discurso

vernáculo de hoje.

Quando uma palavra composta aparece em forma escrita, não se colocam hífens entre os caracteres

que a formam. Supõe-se que o leitor saiba ler o grupo de caracteres de modo adequado, com

significados individuais ou como uma unidade, conforme o caso. A sugestão de que se coloquem

hífens entre os caracteres de um composto parece simples, mas na realidade é embaraçosa. Os

lingüistas não conseguiram chegar a um acordo quanto a um conjunto de regras que definam

claramente os diversos tipos de compostos. É interessante notar que, na tradução mecânica do

chinês para o inglês, o computador é programado para começar pela unidade léxica mais longa e, se

isso não oferecer um significado coerente, ir procurando sucessivamente as unidades cada vez

menores até chegar às palavras simples.(4) Isto se faz necessário para evitar os erros decorrentes da

tradução isolada dos elementos de um composto.

Características da Gramática Chinesa

O chinês é uma língua não-flexionada. As palavras não sofrem modificações de acordo com o

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número, o gênero, o caso, o tempo, a voz ou o modo. Não há conjugação nem declinação. O que

torna o aprendizado do chinês um dos mais fáceis do mundo. As relações gramaticais são indicadas

sobretudo pela ordem das palavras e pelo emprego de palavras auxiliares. Por exemplo, diríamos em

chinês: "Ontem ele deu eu dois literatura revolução livro”. A ordem das palavras indica claramente

que "ele" é o sujeito, "eu" o objeto indireto e "livro" o objeto direto. De modo que, de acordo com a

regra, todos os modificadores devem preceder as palavras por eles modificadas, "literatura revolução"

deve significar "revolução literária" (e não "literatura revolucionária", embora isso também fizesse

sentido), e a frase toda deve ser o modificador de "livro".

O outro recurso para indicar as relações gramaticais é o emprego de palavras auxiliares. O emprego

de uma palavra ou frase referente a tempo sugere o tempo verbal. Um verbo de ação seguido da

palavra auxiliar lei indica o sentido completado. "Eu" seguido de ti se transforma em "meu".

As palavras chinesas não são classificadas em partes do discurso, como as inglesas. Uma palavra

pode ser usada como substantivo, adjetivo, advérbio ou verbo, dependendo de sua função na

sentença. Elas, entretanto, se repartem em duas classes gerais: "sólidas" e "vazias". As palavras

"sólidas" possuem um significado por si mesmas, enquanto as "vazias" são usadas apenas como

preposições, conectivos, interjeições ou partículas interrogativas.

Por exemplo: a forma interrogativa em chinês não inverte a ordem do sujeito e do verbo. Numa das

três maneiras de fazer uma pergunta, a ordem das palavras é exatamente igual à de uma afirmação,

acrescentando-se porém a palavra "vazia" ma no final. Essa partícula auxiliar, por si mesma

destituída de significado, transforma a afirmação em interrogação. Assim, em chinês, "Você é

americano ma", quer dizer "Você é americano?" As palavras "vazias" como ma muitas vezes

constituem a chave para a interpretação de urna sentença. Mostraremos adiante a significação de

tudo isso para os processos mentais.

Características do Chinês Escrito

O chinês é escrito em termos de símbolos, chamados "caracteres". Os caracteres não são

representações fonéticas e sim ideogramas. Cada um deles consiste em certo número de traços,

escritos numa ordem determinada e projetados de modo a se inscreverem num espaço quadrado

(quadrículo) imaginário. De fato, os cadernos destinados às crianças são pautados em colunas de

quadrados, em cada um dos quais será escrito um dos caracteres. É preciso aprender de cor a

reconhecer a forma de cada um deles individualmente, e a escrever os traços que os constituem da

maneira e na ordem adequadas.

A despeito de todas as diferenças dialetais na China, os caracteres escritos são os mesmos para

todos os grupos de dialetos. Sendo ideogramas, os caracteres têm o mesmo significado ou

significados para todos os leitores, embora possam ser pronunciados diferentemente nas diversas

regiões.

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A construção original dos caracteres chineses baseou-se em quatro princípios. O primeiro é a

representação pictórica. A forma arcaica de jih ("sol") é um círculo com um ponto no centro. Mais

tarde convencionou-se que seria um retângulo na vertical, com um traço curto e horizontal no meio.

Um crescente representa a "lua". Três picos representam uma "montanha". O símbolo para "árvore"

tem uma linha vertical representando o tronco da árvore, dois traços que se abrem em baixo para

representar as raízes e outros dois em cima sugerindo os ramos. O símbolo de "porta" é claramente a

imagem de um par de portas de vai-e-vem e pouquíssimas alterações sofreu em mais de 3 000 anos.

Essa qualidade pictórica dos caracteres chineses levou Fenollosa (que escrevia no alvorecer do

século) a afirmar que ela muito contribuiu para a imagética visual da poesia chinesa.(5) Admitia-se

que, ao ver o símbolo da "lua", o leitor chinês não somente obtinha uma idéia da lua, como também

via uma lua crescente. Tal concepção está hoje desacreditada, simplesmente por não ser verdadeira.

Quase todos os caracteres pictográficos modificaram tão drasticamente suas formas que já não são

imagens picturais. O leitor chinês simplesmente os considera como símbolos convencionalizados de

idéias. É ainda certo, entretanto, que os chineses tratam os caracteres escritos como desenhos

artísticos. Talvez não seja coincidência que a arte chinesa sobressaia no campo visual.

O segundo princípio de construção dos caracteres é o diagrama. Algumas idéias não podem ser

representadas, podendo ser, entretanto, diagramadas. Por exemplo, um, dois e três são

representados, respectivamente, por um, dois e três traços. Um ponto acima de uma linha horizontal

representa "acima", e um abaixo dessa linha significa "abaixo".

O terceiro princípio é o da sugestão. Dois caracteres são colocados juntos para formar uma palavra

que sugira uma terceira idéia. A palavra "brilho" é formada colocando-se juntos os caracteres que

significam "sol" e "lua". Duas árvores lado a lado sugerem uma "floresta". Uma mulher segurando

uma criança significa "amor", e como o amor é bom, a extensão do significado transforma a palavra

em "bom".

O quarto e último princípio é o da combinação de um elemento significativo e de um elemento

fonético. O primeiro indica a categoria geral de coisas a que pertence o significado da palavra,

enquanto o segundo fornece o som do caráter. Por exemplo, as palavras equivalentes a "oceano" e

"ovelha" são ambas pronunciadas yang, De modo que, para escrever "oceano", o símbolo de "ovelha"

combinou-se com o de "água", tendo sido ambos originalmente palavras-pinturas. Essa combinação é

para indicar que o novo símbolo tem algo a ver com água, sendo o elemento "ovelha" apenas

fonético. A grande maioria das palavras chinesas pertence a tal tipo (6), Um dos inconvenientes

atuais dos caracteres desse tipo é que, em muitos casos, sua pronúncia se distanciou da dos seus

elementos fonéticos.

Os caracteres chineses se classificam num dicionário de acordo com 214 "radicais" ou partes

identificadoras. Muitos desses radicais são elementos significativos que indicam categorias gerais de

coisas e idéias. Os radicais são apresentados na ordem do número de traços neles contidos.

Seguindo radical por radical, os caracteres que possuem o mesmo radical são apresentados na

ordem do número de traços da parte restante do caráter ou do elemento fonético. É preciso, antes de

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tudo, identificar o radical contido num caráter, para poder saber onde buscar a palavra no dicionário.

Trata-se de um processo fastidioso e por vezes difícil.

Os primeiros registros escritos em chinês remontam a cerca de 1400 anos a.C. Durante a

Antigüidade, os escritos devem ter permanecido bem próximos da maneira de falar. Contudo, com o

desenvolvimento e a difusão da língua por uma área mais vasta, a maneira de falar se modificou mais

rapidamente e se tornou mais diversificada que a escrita. Por volta do ano 600 d.C., o chinês escrito

já se tornara uma língua morta, mas os eruditos continuaram a usar o chinês clássico em todas as

formas de escrita, tanto literárias como práticas. A partir de 1 000 d.C., aproximadamente, a ficção e o

drama começaram a ser redigidos em vernáculo, mas os eruditos não viam com bons olhos esses

escritos. Tal situação perdurou até 1919. O chinês clássico garantiu a continuidade lingüística do

passado e a unidade para os instruídos acima das diferenças dialetais. A situação assemelhava-se à

da Europa pós-renascentista, quando os sábios dos diversos países. Falando várias línguas, podiam

comunicar-se uns com os outros em latim. Embora o vocabulário, a gramática e a sintaxe do chinês

clássico sejam algo diferentes em relação ao chinês vernáculo de hoje, a estrutura básica da língua e

os caracteres escritos são os mesmos.

Linguagem e Pensamento Relacional Tendo examinado rapidamente as características da língua

chinesa, representada pelo mandarim, passo agora a explorar alguns dos inter-relacionamentos entre

língua e pensamento. Os caracteres ideográficos monossilábicos e não-flexionáveis proporcionam um

instrumento congenial à reflexão relacional, que tem sido uma qualidade distintiva do pensamento e

da cultura chineses. Em virtude da estrutura da língua, a atenção se volta para as relações entre as

palavras, mais do que para as próprias palavras individualmente. Embora isto se aplique, em maior

ou menor grau, a todas as línguas, é particularmente relevante no caso do chinês. Em inglês, um

substantivo é um substantivo e conota uma espécie de "substância" real ou imaginária (7). Mas em

chinês, quase todas as palavras, com exceção das partículas "vazias", podem ser substantivos,

dependendo de sua posição e de sua função na sentença. A dependência da ordem das palavras e o

emprego de palavras auxiliares para esclarecer os significados salientam inevitavelmente a

importância das relações e do arranjo estrutural (pattern) das palavras.

Essa ênfase se exprime na literatura, particularmente em sua forma mais elevada - a poesia. Existe

um tipo de poesia clássica no qual um poema é geralmente composto de quatro dísticos. Cada verso

contém cinco ou sete caracteres. Os dísticos que intervêm entre o primeiro e o último do poema

devem mostrar um paralelismo, obtido graças a um cuidadoso equiparamento das categorias e dos

tons. Cada uma das palavras do primeiro verso de um dístico tem o seu paralelo numa palavra

correspondente no segundo verso, pertencente à mesma categoria de coisas, como, por exemplo,

aos fenômenos astronômicos, ao reino vegetal, ao domínio da casa e do jardim, da alimentação, ou

de qualquer outra categoria estabelecida. Uma palavra usada como adjetivo no primeiro verso deverá

encontrar um adjetivo correspondente na mesma posição, no segundo verso, e assim por diante.

Além disso, a uma palavra no primeiro ou no segundo tons no primeiro verso, deverá corresponder

uma palavra no terceiro ou no quarto tons no segundo verso, ou vice-versa. O primeiro e o segundo

tons também podem entrar em correspondência. Nenhum tom corresponderá a si mesmo. E mais: o

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conjunto do poema deve ser conforme a um dos esquemas de rimas padronizados no final de certos

versos.

O que vem a seguir é uma tradução literária do segundo dístico de um conhecido poema de Wang

Wei, do oitavo século:

Bright moon amidst pines shines

Clear Spring over rocks flows

[Brilhante lua entre pinheiros reluz/ Clara fonte sobre rochas flui]

Os sons e tons são indicados pela seguinte versão romanizada, consoante a atual pronúncia do

mandarim:

ming yüeh sung xien chao / qing qüan shih shang liu

Os dois versos deste dístico foram cuidadosamente equiparados quanto à categoria material, à

estrutura gramatical e ao esquema tonal. (9) Essa tendência a combinar e equilibrar as coisas ou

idéias é exigida não somente neste tipo de poesia como também aparece freqüentemente em outros

tipos de versos e até na prosa. Seria difícil, senão impossível, conseguir semelhante espécie de

paralelismo com palavras polissilábicas, flexionáveis e não-tonais, como as inglesas.

A ênfase dada às relações entre as palavras tem provavelmente muito a ver com o pensamento

relacional manifestado em numerosas áreas da vida e da cultura chinesas. Alguns exemplos serão

suficientes. A arte e a arquitetura chinesas se caracterizam por uma acentuada noção de equilíbrio. A

atenção se volta menos para os elementos separados que para a configuração total. As idéias são

muitas vezes denotadas por expressões compostas, constituídas de antônimos; por exemplo:

“comprar-vender" é “comerciar"; "avanço-recuo" é "movimento"; "norma-caos" é "condição política",

etc. Os antônimos não são tidos como opostos irreconciliáveis, mas sim como suscetíveis de união

para formar uma idéia completa. Um dos conceitos-chave da Filosofia chinesa se expressa através

de um composto de antônimos, yin - yang. Esses dois termos denotam duas forças opostas porém

complementares no universo, cuja interação produz todas as coisas e cuja unidade se baseia no

Supremo. É do conhecimento geral que o Confucionismo, filosofia dominante na China durante mais

de 2 000 anos, é em grande parte um código de ética para governar as relações humanas. Sua

atenção se volta não para o indivíduo, mas sim para a teia das relações humanas. Sua preocupação

é com a ordem e a harmonia na família e na sociedade, e não com a liberdade individual dos

membros que as constituem. Assim, são enfatizadas as obrigações morais de um indivíduo para com

os outros e não os "direitos individuais" de cada um.

Até a cozinha chinesa reflete esse pensamento relacional. No preparo dos alimentos, a maneira

chinesa consiste em cortar as coisas e cozinhar os ingredientes em combinações e proporções

adequadas. Uma longa experiência provou que determinadas combinações de ingredientes são mais

agradáveis que outras. Até os pratos de um mesmo jantar devem estar agradavelmente relacionados

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uns com os outros. Cozinhar um prato apenas ou elaborar um menu, é tudo uma questão de construir

um modelo configurativo. Por outro lado, uma refeição ocidental dá a impressão de ser o produto de

uma mente analítica. Carne e legumes são cozidos separadamente. Come-se carne por causa da

proteína, batata e pão por causa dos hidratos de carbono, manteiga pela gordura, legumes pelas

fibras; bebe-se café em razão do líquido; e, finalmente, toma-se uma pílula por causa das vitaminas!

Estrutura da Sentença, Lógica e Filosofia

Há ainda um outro sentido, mais profundo e mais estrito. no qual a linguagem influencia o

pensamento. Segundo Tung-Sun Chang, a Lógica e a Filosofia ocidentais são determinadas pela

gramática ocidental, enquanto que as suas contrapartidas chinesas são determinadas pela gramática

chinesa (10). A sentença inglesa deve ter sujeito e predicado. Esta estrutura leva, por si mesma, ao

conceito de lei de identidade, que é o fundamento da Lógica aristotélica. A proposição com sujeito e

predicado dá origem aos conceitos filosóficos de substância e atributo. O estudo da substância leva à

concepção de ser supremo em religião e de átomos em Ciência. Do conceito de substância derivou a

idéia de causalidade, que, por sua vez, dá origem à Ciência. De modo que as categorias do

pensamento ocidental são identidade, substância e causalidade, determinadas talvez, todas três, pelo

padrão das sentenças nas línguas ocidentais.

Por outro lado, uma sentença chinesa não exige nem sujeito nem Predicado, embora eles possam

ser muitas vezes encontrados. Em muitas ocasiões, estando o sujeito claro no contexto, é omitido;

outras vezes, o sujeito simplesmente inexiste. Por exemplo, "Gotejar chuva" é uma sentença

perfeitamente correta em chinês, enquanto que em inglês seria necessário dizer "It rains". A

possibilidade de dispensar o sujeito em chinês torna mais fácil imaginar o cosmo num perpétuo

processo circular de transição, sem necessidade de postular um agente externo para atuar ou

controlar o processo. É um conceito-chave da cosmologia chinesa.

Esta concepção reflete uma falta de interesse pela substância, pelo substrato das coisas. Os

caracteres escritos são apenas signos e não substância. Os fenômenos naturais também são signos.

Mas dos signos vêm as coisas. Os chineses não investigam o substrato das coisas, estando

interessados unicamente nos signos e em suas relações. A língua chinesa nem sequer dispõe de

uma palavra para "substância". Os chineses se interessam pela Vontade do Céu, não pela natureza

do Céu. A Vontade do Céu se revela nas condições sociais e políticas. Confúcio concentrou portanto

a sua atenção nos assuntos humanos.

Além disso, uma sentença chinesa não precisa de verbo. "Montanha grande" é uma sentença. Não é

necessário usar o verbo "ser". Na realidade, o verbo "ser" não existe no chinês clássico. Em inglês,

numa sentença de definição, é absolutamente indispensável esse verbo. No chinês clássico, uma

definição emprega duas palavras "vazias", Che e yeh. Por exemplo, uma definição de jen

(humanidade) assumiria a seguinte forma: jen che jen yeh. O segundo jen é um caráter diferente que

significa "homem". Em outras palavras, a sentença define por analogia, dizendo, com efeito,

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"humanidade é a qualidade do homem".

Sem o padrão sujeito-predicado na estrutura da sentença, o chinês não desenvolveu a noção de lei

da identidade na Lógica, nem o conceito de substância em Filosofia. E sem esses conceitos, não

poderia haver noção de causalidade, nem de Ciência. O chinês desenvolve, em lugar disso, uma

Lógica correlacional, um pensamento analógico e um raciocínio relacional que, apesar de

inadequados para a Ciência, são extremamente úteis em teoria sociopolítica. (11) É por isso que,

primacialmente, a Filosofia chinesa é uma Filosofia da vida.

Não tendo a sentença chinesa necessariamente sujeito nem verbo, pode-se perguntar "Qual é a sua

estrutura básica?" Fique entendido que certos tipos de sentenças em chinês se assemelham, de

modo geral, a determinados padrões das sentenças inglesas, existindo porém algumas que não têm

similar em inglês, por sua singularidade. Como salientou Chao (12), um padrão comum de sentença

em chinês consiste num tópico seguido de um comentário. A pessoa que fala primeiro menciona um

tópico sobre o qual vai falar e diz em seguida algo a respeito do mesmo. A ação é apenas uma

espécie de comentário e. o tópico não precisa ser agente dessa ação. Por exemplo: "Ele, coração

bondoso, mente estúpida". Não seria estritamente exato traduzir essa sentença por "Seu coração é

bondoso mas sua mente é estúpida". Seria melhor traduzir por: "Falando dele, seu coração é

bondoso mas sua mente estúpida". Ou então: "América, muitas famílias têm dois carros" significa

"Falando da América, muitas famílias têm dois carros". Chao compara esse tipo de sentença à

sinalização nas estradas inglesas: "Terceira rua, conserve a direita". A Regra de Ouro chinesa

também assume essa forma: "O que você não quer para si, não faça aos outros".

Tal estrutura de sentença sugere que o tópico é mais vasto e mais abrangente do que o comentário.

O que está de acordo com a idéia de que o cosmo é infinitamente complexo e o que podemos dizer a

seu respeito se reduz a comentários ínfimos, que mais distorcem a verdade do que a revelam.

Essa convicção está subjacente à atitude mística no Taoísmo, filosofia que agiu paralelamente ao

Confucionismo e com ele interagiu na história do pensamento chinês. O Taoísmo também considera

o "ser" e o "não-ser" como interdependentes, e insiste sobre o fato de que o ser extrai sua utilidade ou

função do não-ser. A utilidade de uma tigela não está em suas paredes e sim em sua concavidade.

Essa ênfase atribuída ao não-ser leva à idéia de não-ação, na conduta pessoal tanto quanto no

governo, ao apreço pela quietude e pela meditação, à importância do emprego de espaços vazios

para contrabalançar os objetos numa pintura chinesa, etc. Essa atração pelo não-ser talvez seja

influenciada pelo fato de que, em linguagem, os chineses devem prestar uma atenção especial às

palavras "vazias" que, embora destituídas de significado próprio, desempenham um papel crucial na

estrutura de uma sentença. Uma vez dominadas as palavras "vazias" habituais, o estudante terá

vencido a parte mais difícil da gramática chinesa.

Nesta análise, evidentemente, ficam definidas apenas algumas das maneiras segundo as quais a

estrutura da língua chinesa pode ter influenciado a formação do pensamento tradicional na China.

Passemos agora a considerar o outro lado da moeda; isto é, como as idéias ocidentais que se

impuseram na China moderna levaram a modificações na linguagem.

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A Criação de Novos Termos

Depois que as comportas se abriram em virtude da derrota da China na Guerra do Ópio (1839-42), o

país se viu inundado por um afluxo de coisas e idéias ocidentais, algumas das quais não tinham

nome em chinês. Era preciso criar novos termos. Havia duas soluções alternativas para o problema.

A primeira seria usar os caracteres chineses ou símbolos fonéticos para a transliteração do som ou

sons da palavra inglesa. A segunda seria forjar uma nova palavra ou expressão com caracteres

chineses para traduzir o significado da palavra estrangeira. Os dois métodos foram utilizados tanto na

China como no Japão; mas a China deu ampla preferência ao segundo método, ao passo que a

moderna tendência no Japão é para a transliteração por meio da escrita fonética. [Os japoneses

desenvolveram um silabário fonético especial, katakana, precipuamente destinado a transliterar

palavras estrangeiras]

Não dispondo originalmente de uma escrita fonética, pareceu incômoda aos chineses a transliteração

de sons estrangeiros em caracteres ideográficos. De modo que, na maioria dos casos, recorreu-se ao

método da tradução. Por exemplo: um trem foi chamado huo che (fogo carruagem); uma caneta-

tinteiro. zu lai mo shui pi (pena trazendo sua própria tinta líquida); átomo, yüan tzu (partícula original);

etc.

Traduziu-se "democracia" como min chu chu yi (povo senhor senhor significado). Este composto de

quatro caracteres é, na realidade, produto de dois caracteres compostos. O primeiro constituinte

compósito significa "povo sendo senhor", e o segundo significa "uma doutrina ou ideologia mestra". A

totalidade do composto de quatro caracteres significa "a ideologia que diz ser o povo senhor do país".

Da mesma forma, "comunismo" é kung chan chu yi (propriedade comunal senhor significado).

Quando se descobriu o urânio, foi preciso criar um caráter inteiramente novo para designá-lo em

chinês. Sua construção obedeceu ao quarto princípio de formação dos caracteres, já analisado,

combinando-se um elemento significativo, ou radical, e um elemento fonético. O radical escolhido foi

o caráter que significa "metal", escrito do lado esquerdo do recém-criado, e o elemento fonético é um

caráter que se pronuncia "u", escrito à direita. A combinação resultante, considerada como um caráter

simples, pronuncia-se u. [N. Curiosamente, U (ou yu) representa a germinação de um grão e, por

extensão, "princípio", "origem", "ponto de partida", "causa" (cf. L. Wieger, Chinese Characters, Dover

Publications, Nova Iorque, 1965); isto poderia levar o leitor a interpretar semanticamente (ainda que

"a posteriori") a segunda parte do composto, já que o urânio, o mais pesado dos elementos naturais,

é a "origem" ou "ponto de partida" da energia atômica...]

A Renascença Chinesa

Os contatos com o Ocidente trouxeram para a China as idéias de consciência nacional, lealdade

nacional e independência nacional. Essas e outras noções ocidentais deram origem em 1917 a um

movimento de libertação lingüística, intelectual, social e política, conhecido como Renascença

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chinesa, que empolgou o país durante uma década mais ou menos. (13) Uma das fases desse

movimento preocupou-se com o fato de que, embora sempre tivesse havido na China uma unidade

lingüística na escrita, não havia unidade no falar. Um número considerável de pessoas,

particularmente no litoral sudeste da China, falava dialetos muitos diversos. Visando à unificação do

falar, os líderes promoveram e finalmente garantiram a adoção oficial do mandarim como língua

nacional, que seria ensinada nas escolas de todo o país. Como o mandarim já era falado como língua

materna por cerca de setenta por cento da população chinesa, excluídas as minorias étnicas, sua

adoção constituiu um objetivo exeqüível. Criou-se, e passou a ser utilizada nos manuais impressos,

uma escrita fonética elaborada com partes dos caracteres chineses. Ela poderia ser colocada ao lado

dos caracteres para indicar as pronúncias nacionais dos mesmos.

A unidade lingüística na escrita é dada por uma língua morta: o chinês clássico. Seu vocabulário e

seu idioma, a gramática e o estilo são algo arcaicos. Embora constitua um excelente recurso para a

poesia e outros escritos literários, ela se adapta com dificuldade às necessidades da descrição

científica, do raciocínio preciso e até mesmo da literatura realista. De modo que uma outra fase da

Renascença teve de se haver com a adoção do falar comum da maioria das pessoas (isto é, do

mandarim) como meio de comunicação escrita para todas as finalidades. Esta proposição, que

desencadeou a Renascença, suscitou uma grande controvérsia. Terminou com a vitória dos

advogados do vernáculo, em 1922. A partir de então, todos os manuais das escolas elementares

foram obrigatoriamente editados em mandarim e o chinês clássico vem sendo ensinado apenas nos

cursos médio e superior. O objetivo desse movimento era a unificação do falar e da escrita, e a

produção de uma literatura viva numa língua viva.

Tal reforma lingüística promoveu, de fato, uma grande emancipação da mente chinesa nos domínios

literário, intelectual e cultural. Rompeu com as rígidas convenções do passado e deixou-se fascinar

pelas idéias e pela expressão literária ocidentais. Os escritores experimentaram as formas ocidentais

da poesia e do drama, escreveram versos livres, criticaram a herança cultural chinesa e enalteceram

a Ciência e a democracia do Ocidente. Espocaram periódicos às centenas e uma enxurrada de livros

novos, escritos no vernáculo, ajudou a aplacar a sede de novos conhecimentos: As transformações

sociais (reforma do sistema familiar, emancipação das mulheres, aumento da mobilidade social, etc.)

e os movimentos políticos (antifeudalismo, antiimperialismo, nacionalismo, etc.) começaram a

manifestar-se e a vicejar. Esses aspectos da Renascença fogem ao escopo deste ensaio. Basta dizer

aqui que as reformas lingüísticas não tiveram lugar num vácuo social; estiveram, pelo contrário,

intimamente ligadas aos movimentos sociais e políticos. Os efeitos da Renascença ainda continuam.

Até a gramática e o estilo de escrever do inglês têm sido imitados. Alguns escritores adotaram o

sistema de pontuação usado em inglês. O chinês clássico não tem sinais de pontuação e as citações

não são realçadas por nenhuma marca. Considerava-se um insulto ao leitor não esperar que ele

fosse capaz de fazer pausas nos lugares convenientes do texto, ou de identificar a fonte de uma

citação. Essa ausência de pontuação leva por vezes à ambigüidade. Ao adotar a pontuação inglesa,

passamos a nos desviar para o lado do supérfluo. Por exemplo: colocar um ponto de interrogação

depois de ma, partícula interrogativa, no final de uma pergunta, é uma redundância.

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A influência do Ocidente afetou até a gramática chinesa. Em chinês, raramente se usa a voz passiva.

Com referência a objetos inanimados, a voz ativa tem significado de passiva. Por exemplo: "O

címbalo e o tambor percutem forte", quer dizer "o címbalo e o tambor são percutidos fortemente”.

Referindo-se a uma pessoa, a voz passiva é indicada pelo símbolo pei precedendo o verbo, como em

pei sha (ser morto). A voz passiva é usada apenas em circunstâncias desastrosas. De modo que um

purista dificilmente diria em chinês: "Fui convidado para jantar". Ele diria "Alguém convidou-me para

jantar" ou então "Recebi um convite para jantar". Atualmente, sob a influência ocidental, o emprego

da voz passiva está generalizando-se e é bastante comum dizer-se "Ele foi eleito presidente" sem

ficar implícito que ele fez face a uma oposição! (14)

Outra pequena prova de ocidentalismo nos escritos literários sofisticados é a colocação de uma

cláusula dependente depois da cláusula principal, ficando ambas separadas por um traço. Esta

construção contraria as normas gramaticais do chinês. Ainda não é muito comum na redação

corrente, mas parece que vai sendo cada vez mais praticada. Outro desenvolvimento é a tendência a

imprimir o chinês em linhas horizontais em lugar do sistema tradicional, em que se escrevia e lia em

colunas verticais. Isso é de uso particularmente comum nas revistas científicas para facilitar a

incorporação de fórmulas e equações ao texto chinês. A impressão horizontal é hoje prática corrente

em todos os jornais e revistas da China continental.

Reforma da língua e eliminação do Analfabetismo

A alfabetização universal é uma das características distintivas de uma nação moderna, mas a

natureza ideográfica dos caracteres chineses representa um enorme empecilho à realização dessa

meta. Alguns caracteres correntemente utilizados contêm muitos traços, e embora em outros os

traços sejam poucos, a colocação errônea de um, por pequeno que seja, transformaria o caráter

noutro muito diferente. Como na maioria dos casos a forma dos caracteres não tem relação alguma

com a pronúncia deles, cada um tem de ser aprendido de cor. O que, evidentemente, retarda o ritmo

do aprendizado e impede a educação universal.

Foram tomadas três providências diferentes, visando a diminuir essa dificuldade. A primeira foi a

seleção dos caracteres mais habitualmente usados, a fim de formar uma lista das palavras básicas.

Esses caracteres devem ser ensinados nas escolas elementares e nos cursos de alfabetização. O

Comitê de Reforma da Língua da China Comunista publicou em 1952 uma lista de palavras comuns

contendo 1010 caracteres na primeira classe com referência à freqüência de utilização, e 490

caracteres na segunda classe, totalizando 1500. Além disso, há uma lista suplementar de 500

caracteres na terceira ordem de freqüência. Calcula-se que, tendo aprendido os 1 500 caracteres

básicos, uma pessoa esteja capacitada a ler cerca de noventa e cinco por cento dos "textos de leitura

popular". Esta percentagem parece otimista, visto como um jornal médio utiliza cerca de 4000

caracteres.

A seleção dos caracteres básicos é apenas parte de uma tarefa mais vasta porque, lembre-se, o

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chinês moderno emprega um grande número de compostos, os quais têm de ser aprendidos como

unidades. Em 1958, foi publicada uma lista de 20000 compostos correntemente usados em

mandarim. Incidentalmente, há cerca de 400 desses compostos para cada um dos quais existe, pelo

menos, um outro vocábulo compósito, pronunciado exatamente da mesma maneira e com o mesmo

tom. Se fossem escritos foneticamente, só se poderia estabelecer uma distinção entre eles através do

contexto.

A segunda tentativa de erradicação do analfabetismo consistiu em simplificar os caracteres

complexos pela redução do número de traços de cada um. Conseguiu-se isso mantendo uma

pequena parte do caráter complexo; ou então substituindo um elemento mais complicado por um

mais simples; ou ainda adotando um homófono mais simples no caso dos caracteres intrincados; e de

várias outras maneiras mais. Formas simplificadas de muitos caracteres vinham sendo usadas há

muito tempo pelos homens de negócios, mas eram mal vistas pela elite educada da velha China. Elas

têm agora a aprovação oficial e vêm sendo criadas novas formas simplificadas.

Um exemplo extremo de simplificação é o do caráter qang (fábrica), cujos quinze traços foram

reduzidos a dois. Em 1956, o governo da China Comunista promulgou oficialmente uma lista de 515

caracteres simplificados a serem utilizados em lugar das formas complexas originais em todas as

publicações. Como muitos deles servem de radicais para numerosos outros, o efeito da simplificação

vai muito além dos 515 caracteres oficialmente arrolados. A análise mostra que aqueles 515, em suas

formas originais, tinham em média, cada um, 16,1 traços, ao passo que, depois da simplificação, o

número de traços por ideograma desceu para 8,2 (uma redução, portanto, de 50%).

O terceiro esforço a favor dessa campanha de alfabetização consistiu na elaboração de um plano de

transformação da escrita, que abandonaria os caracteres ideográficos para adotar um alfabeto.

Depois de muitos estudos, a China comunista anunciou em 1958 a adoção das vinte e seis letras do

alfabeto latino usadas em inglês, e de um sistema padronizado para escrever o mandarim com esse

alfabeto - com exceção da letra "v" que seria usada apenas para reproduzir sons estrangeiros e das

línguas minoritárias da China. Esse sistema (15) emprega letras simples, dobradas ou mesmo mais

de duas em combinações, para representar vinte e uma consoantes, seis vogais, e vinte e nove

ditongos. Há quatro sinais diacríticos para indicar os quatro tons e um sinal divisar para indicar,

sempre que necessário, que duas vogais adjacentes, ao serem soletradas, devem ser pronunciadas

isoladamente. Esse sistema está sendo usado (1) para indicar a pronúncia mandarim dos caracteres,

e como auxiliar para o aprendizado do mandarim, língua nacional padrão; (2) para ajudar as minorias

étnicas existentes na China, que não dispõem de sistemas próprios, a criar uma escrita para suas

línguas; (3) na transliteração de nomes próprios estrangeiros e de termos científicos; (4) para ajudar

os estrangeiros a aprenderem o chinês; (5) para compilar índices; e (6) para substituir eventualmente

os caracteres. É linha de ação prevista pelo regime comunista utilizar este sistema em lugar dos

caracteres em data futura, ainda não determinada.

Na verdade, a substituição dos caracteres por uma escrita alfabética encontraria no momento

presente várias e sérias dificuldades. Uma delas diz respeito ao grande número de palavras

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homófonas. Por exemplo, os caracteres que significam "novo", "coração", "salário" e "prazer" são

todos pronunciados xin, no primeiro tom, embora os caracteres escritos sejam muito diferentes. Se a

sua grafia alfabética correspondesse aos respectivos sons, eles seriam enunciados de maneira

idêntica, e o leitor teria de adivinhar o sentido exato baseando-se no contexto.

A tendência do chinês moderno a usar expressões compostas, cada uma delas constituída por dois

ou mais caracteres, tomando-se assim, em certo sentido, um idioma polissilábico, representa uma

solução parcial para o problema dos homófonos. Entretanto, de acordo com uma análise preliminar,

dos 14000 compostos, cerca de 790 grupos têm pronúncias idênticas e, por conseguinte, também

são escritos alfabeticamente de maneira idêntica, implicando 1986 caracteres homofônicos. Quando

o significado correto de um homófono não pode ser inferido através do contexto, a única maneira de

elucidá-lo numa sentença redigida alfabeticamente é incluir imediatamente depois da palavra

homófona o ideograma adequado, ou usá-lo em lugar da expressão alfabética. É o que se faz na

transmissão de telegramas na China comunista entre as estações ferroviárias, onde boa parte do

conteúdo dos telegramas diz respeito às operações de rotina da estrada de ferro. Cerca de cinco por

cento das palavras nesses telegramas têm de ser transmitidas em símbolos de código numérico,

conversíveis em caracteres ideográficos. Contudo, as agências públicas do telégrafo não usam de

maneira alguma a escrita alfabética; seguem ainda o método tradicional da conversão de cada

ideograma num número quadridígito, de acordo com um código para transmissão arbitrariamente

convencionado, que será reconvertido em ideograma ao ser recebido. Significa isto que, pelo menos

nas atuais circunstâncias lingüísticas, a escrita alfabética dos chineses carece de inteligibilidade,

precisão e segurança quanto ao significado, e suas conseqüências são também aleatórias. Não

obstante, o governo comunista adotou recentemente uma política de estímulo para que o povo

empregue uma mistura de escrita alfabética e de ideogramas na escrita informal.

Outro problema sério na escrita alfabética é a união de elementos num composto para escrevê-los

como uma só palavra. Até agora não existem regras que padronizem a definição ou a delimitação dos

compostos. Esse problema fica esquecido quando se escreve chinês com os caracteres ideográficos,

pois estes não se agrupam na sentença de modo a indicar os compostos. Mas escrever cada um dos

componentes de um composto separadamente, em escrita alfabética, representa a perda da

individualidade da expressão escrita. O resultado pareceria quase tão destituído de sentido quanto,

entre nós, "A-mér-i-ca é u-ma de-mo-cra-ci-a." O correspondente em chinês de "pequena burguesia"

é xiao (pequena) zu chan (propriedade) zhie xi (classe). Esta expressão pode ser escrita como uma

palavra única e comprida, ou em duas ou três palavras, dependendo de como se delimitem os

componentes internos do composto integral. A escrita terá de apresentar uma padronização muito

maior no agrupamento dos elementos dos compostos, em relação ao estágio atual, antes que se

possa escrever o chinês alfabeticamente de maneira inteligível.

Um terceiro obstáculo para que se escreva o chinês alfabeticamente vem da falta de uniformidade na

pronúncia, no vocabulário e até na estrutura gramatical, não somente entre os dialetos, como até

mesmo no mandarim. O símbolo para "irmão mais velho" pode ser pronunciado ko ou ke "Cimento"

pode ser designado como yang hui ou shui ni.

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"A não ser que a maioria concorde, então poderemos chegar a uma decisão" é hoje tão aceitável

quanto "A não ser que a maioria concorde, não poderemos chegar a uma decisão". Essas variações

já são bastante embaraçosas quando escritas em caracteres chineses, mas seriam ainda mais

dificilmente reconhecidas em escrita alfabética. Normalmente, a sintaxe e a gramática chinesas já são

suficientemente elásticas para provocar freqüentes ambigüidades. (16) A menos que se faça um

maior acordo baseado num uso mais uniforme, a confusão e a ambigüidade talvez fiquem acrescidas

pela escrita alfabética.

São essas as reformas que se estão processando na língua na China Comunista, e os problemas

concomitantes. O governo nacionalista, antes de perder a parte continental para os comunistas,

mostrou-se favorável à seleção dos caracteres básicos para o ensino às crianças e analfabetos,

assim como à utilização de uma escrita fonética como auxiliar para a pronúncia, mas não favoreceu a

substituição dos caracteres. Havia duas formas de escrita fonética. Denominava-se uma Gwoyeu

Romatzyh (Romanização Nacional), e utilizava o alfabeto latino para indicar a pronúncia mandarim

dos caracteres. Como essa forma se assemelha à escrita ocidental e não pode ser convenientemente

impressa ao lado dos caracteres, seu emprego jamais se tomou extensivo, nem foi oficialmente

encorajado. A outra forma era chu yin zu mu (as "Letras Fonéticas Nacionais"), e consistia em trinta e

nove símbolos derivados de elementos de antigos caracteres chineses. Esta forma tem sido

regularmente ensinada nas escolas elementares controladas pelo governo nacionalista e demonstrou

ser um instrumento eficiente para ensinar o mandarim a pessoas que não o falam, e com um alto

grau de precisão na pronúncia. Desde 1937, todos os livros de texto das escolas elementares têm de

ser Impressos em caracteres chineses à cuja direita vem indicada a respectiva pronúncia em "Letras

Fonéticas Nacionais". O receio de incorrer numa grave ruptura com a herança cultural chinesa

impediu a China nacionalista de estimular oficialmente a simplificação dos caracteres, embora a

maioria das pessoas recorra, dentro de uma certa medida, a formas abreviadas na escrita cotidiana.

O governo nacionalista tem-se oposto energicamente - como era de supor - à escrita alfabética.

No continente, os defensores das reformas declararam que somente o pensamento marxista seria

capaz de produzir as reformas da língua. (17) Sem ser necessário aderir a esse ponto de vista

particular, é indiscutível que as concepções ocidentais provocaram mudanças lingüísticas na China

moderna. Por outro lado, Hajime Nakamura demonstrou que a ideologia budista - elo comum entre os

hindus, os chineses, os tibetanos e os japoneses - tem sido submetida a diversas interpretações por

esses quatro povos em virtude das diferenças lingüísticas. (18) Assim sendo, não serão as idéias

ocidentais, e as concepções marxistas em particular, modificadas na China, em virtude das

peculiaridades lingüísticas dos chineses, muito embora estas últimas já estejam passando por

transformações?

A interação entre a linguagem e o pensamento em chinês, como nas outras línguas, é real e tem

inúmeras ramificações. A consciência dessa interação liberta o indivíduo de uma espécie de prisão

semântica e lhe torna possível evitar uma armadilha em que caiu Immanuel Kant. Desconhecendo

línguas de tipo não-ocidental, provavelmente, Kant foi levado a admitir que as categorias do

pensamento por ele formuladas eram universais no pensamento humano. Nada menos verdadeiro. A

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compreensão da interação entre a linguagem e o pensamento é sem dúvida algum um dos requisitos

essenciais de uma educação liberal.

Notas

1. Para uma descrição completa da língua chinesa feita por um lingüista ilustre, consultar Yuen Ren

Chao Mandarin Primer (Cambridge, Mass., 1961), pp. 3-71.

2. Literary Chinese by lhe lnductive Method, 3 vols. (Chicago, 1939-1952), I, p. 3.

3. Sheng-hu-Chu, The Seven English Speech Tones, Analyzed and identified with Musical Tones and

Chinese Speech Tones, by Jee Sane Woo (Nova Iorque, 1959).

4. Gilbert W. King e Hsien-Wu Chang, "Machine Translation of Chinese", Scientific American (junho,

1963) p. 130.

5. Ernest F. Fenollosa, The Chinese Written Character as a Medium for Poetry (Londres, 1936).

6. Histórias interessantes sobre a origem dos caracteres chineses individuais, ilustradas e contadas

de maneira imaginativa, muitas das quais são etimologicamente verdadeiras, podem ser encontradas

em Rose Quong, Chinese Wit, Wisdom, and Written Characters (Nova Iorque, 1944).

7. Benjamin Lee Whorf, Language, Thought, and Reality (Cambridge, Mass. 1956), pp. 140 55.

8. Em chinês, a preposição vem depois do nome, em lugar de precedê-lo como em inglês. Visando à

inteligibilidade, inverti a ordem das terceira e quarta palavras em cada linha da tradução, mas não na

versão romanizada.

9. Para urna descrição mais completa deste e de outros tipos de poesia chinesa e das técnicas

literárias neles implicadas, consultar James J. Y. Liu, The Art of Chinese Poetry (Chicago, 1962).

10. Tung-Sun Chang, “A Chinese Philosopher's Theory of Knowledge", ETC., IX, N.o 3 (Primavera

1952, pp. 203-226). 246

11. Consultar Harvard University, General Education in a Free Society (Cambridge, 1945), pp. 65-67).

Esse trecho analisa três tipos de pensamento efetivo que, embora não mutuamente exclusivos,

possuem cada qual a sua área de adequação na mente humana: reflexão lógica em Ciências

Naturais, reflexão relacional nos Estudos Sociais e reflexão imaginativa em Humanidades. No

pensamento Chinês, até a reflexão imaginativa tem laivos da reflexão relacional.

12. Yuen Ren Chao, "How Chinese Logic Operates", Anthropological Linguistics, I, N.o 1, pp. 1-8

13. Para uma descrição direta feita pelo mais notável líder desse movimento, consultar Shih Hu, The

Chinese Renaissance (Chicago, 1934).

14. Para outras práticas gramaticais que estão aparecendo, consultar Yuen Ren Chao, "What is

Correct Chinese?", Journal of the American Oriental Society, 81, N.o 3 (agosto-setembro 1961), pp.

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171-177.

15. Este ensaio emprega o sistema Wade-Giles para a romanização dos caracteres chineses. Por

conseguinte, as romanizações aqui não deverão ser tomadas como exemplos de escrita alfabética

segundo o novo sistema.

16. Exemplos curiosos de ambigüidades podem ser encontrados em Yuen Ren Chao, "Ambiguities in

Chinese", Studia Serica Bernhard Karlgren dedicata (Copenhague, 1959).

17. Para um sumário da discussão teórica referente à reforma lingüística na China, e seus

antecedentes históricos, consultar Paul L.-M. Serruys, Survey of the Chinese Language Reform and

the Anti-Illiteracy Movement in Communist China (Berkeley, Calif., 1962).

18. Ways of Thinking of Eastern Peoples: India, China, Tibet, Japan, ed. rev. (Honolulu, 1964).

Origens Históricas e as Primeiras Dinastias

W. Morton

A espécie humana ou quase-humana viveu na China durante um longo período. Em 1923

encontraram-se numa caverna de pedra calcária, perto de Pequim, os restos de uma criatura, o

Sinanthropus pekinensis, ou homem de Pequim, que por certo já andava em posição vertical, utilizava

o fogo e tinha uma capacidade craniana de cerca de dois terços da do homem moderno. Certas

características físicas de um tipo racial mongólico, ainda hoje encontradas nos chineses modernos,

eram já reconhecíveis no homem de Pequim. No mesmo nível estratigráfico foram encontradas

ferramentas primitivas de pedra e restos de animais, inclusive de búfalo, gamo, carneiro, porco

selvagem e rinoceronte. Há indicações de que tais vestígios datem do período interglacial, quente e

seco, do Plistoceno Médio, cerca de 500 mil anos atrás. Em 1963, foi descoberto em Lantian, perto

de Xian, na província de Shaanxi, um outro hominídeo, talvez 100 mil anos mais antigo do que o

homem de Pequim, cujo cérebro era um pouco menor do que o deste último, mas, ainda assim,

consideravelmente maior do que o de qualquer símio antropóide a fóssil foi chamado de Sinanthropus

lantianensis.

As Primeiras Culturas

A data do homem de Pequim corresponde aproximadamente à da cultura acheulense e é atribuída ao

Paleolítico Inferior. Decorrido um imenso intervalo de tempo, restos mortais humanos ou vestígios de

ocupação humana, encontrados na província de Guangdong, no Sul da China, na de Hubei, na China

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central e na região do deserto de ardas, no Norte, são atribuídos em princípio ao Paleolítico Médio,

de 200 a 100 mil anos antes de nossa era. O surgimento do homem do Paleolítico Superior, agora

indubitavelmente Homo sapiens, ocorreu na caverna superior em Zhoukoudian, o mesmo sítio do

homem de Pequim, por volta de 35 mil anos a.C., numa época que corresponderia à do homem de

Cro-Magnon. Há um bom número de outros sítios que contêm ferramentas e ossos humanos da

Idade da Pedra Antiga na China, que se estendem, no espaço, desde a Manchúria à China meridional

e, no tempo, até o ano 10000 a.C. Ferramentas semelhantes encontraram-se ao norte do lago Baikal

na Sibéria e indicam uma única cultura sino-siberiana do Paleolítico Superior. Alguns sítios contêm

ferramentas microlíticas formadas de pequenas lascas de pedra montada em madeira ou osso. Esse

tipo de ferramenta é encontrado em toda a Europa e Ásia e geralmente aparece pouco antes do

surgimento da grande revolução pressagiada pelo período neolítico dos utensílios de pedra polida, da

prática da agricultura e da fabricação da cerâmica.

O cenário social mudou enormemente nos tempos neolíticos. O homem neolítico viveu uma

existência comparativamente sedentária em aldeias, tais como a descoberta em Banpo (Shaanxi),

que mede 200 por 100 m e está rodeada por um fosso profundo que servia, ao mesmo tempo, para

defesa e irrigação. As casas eram semi-subterrâneas, redondas ou retangulares, com pilares centrais

que sustentavam um telhado de barro ou palha. As paredes eram de terra batida e, no interior, havia

fomos, prateleiras e bancos, todos de barro; em alguns casos o chão tinha um acabamento de barro

branco. A população dedicava-se à agricultura, à caça e à pesca. Ferramentas e armas de pedra,

inclusive machados, raspadeiras e machadinhas, pertenciam às variedades lascada e polida. Havia

pontas de flecha, arpões e agulhas de osso. O painço, o principal cereal, era armazenado em poços

subterrâneos em forma de pêra. A dieta de proteína deve ter sido variada, pois se encontraram ossos

de porco, cachorro, carneiro, cabrito e gamo. Perto de Banpo há 250 túmulos nos quais os adultos

estão enterrados em covas individuais retangulares; as crianças, em umas ao lado das casas.

Na China como em outros lugares os tipos de cerâmica são úteis para se distinguir entre as culturas

primitivas. Seguindo simples vasos primitivos com marcas de cordas neles impressas, a cultura

neolítica de Yangshao apresenta uma cerâmica avermelhada com desenhos negros de grande

complexidade - alguns geométricos, outros com motivos realistas. Alguns vasos têm desenhos em

curvatura e a mão livre executados com habilidade sobre uma superfície que é, ela própria, curva.

Sobre uma bacia de Banpo vê-se um peixe de desenho semi-abstrato, altamente satisfatório, que se

desenvolve em triângulos opostos e curvo sutis de vermelho ou preto, com os olhos e um focinho

proeminentes, além da boca aberta. É muito estilizado e, no entanto, apresenta a vitalidade e o ritmo

característicos de toda a arte chinesa.

A cultura de Yangshao encontra-se em sítios, normalmente perto do solo fértil dos rios, ao longo do

curso médio do rio Amarelo, na parte ocidental da planície central, e estende-se até o Noroeste da

China e os vales tributários do rio Amarelo. A cultura de Longshan, que a ela se segue e parece que

lhe sucedeu, centraliza-se mais para leste, no Nordeste da China, na região costeira do Shandong e

em parte da planície central. Em alguns lugares, particularmente na província de Henan, a cerâmica

de Longshan tem seus vestígios sobre os de Yangshao no mesmo sítio, mas a seqüência cronológica

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exata das duas culturas como um todo ainda não está clara. Os objetos de Longshan são finos, bem-

cozidos, negros e polidos. Foram fabricados no torno do oleiro, o que não era o caso da cerâmica de

Yang Shao; o perfil é mais anguloso do que o de Yangshao. Não foi possível, até agora, atribuir datas

seguras a essas culturas neolíticas do Norte da China, mas uma aproximação simplista pode ser

obtida com a ajuda de paralelos japoneses. A cerâmica japonesa mais antiga foi datada, pelo método

do Carbono-14, do oitavo milênio antes de nossa era. É extremamente improvável que a primeira

cerâmica, na Asia continental, seja posterior a essa data. Se assim for, as culturas desenvolvidas de

Yangshao e Longshan provavelmente surgiram depois do ano 5000, época do florescimento das

culturas megalíticas na Europa.

Os intelectuais chineses de uma época posterior, com o seu permanente cuidado de analistas e

arquivistas, consideraram que sua história começava no ano 2852 a.C. e afirmaram que a China teria

sido primeiro governada pelo Três Soberanos, a que se seguiram os Cinco Governantes. A esses reis

míticos atribuíram-se invenções generosas, como a dádiva do fogo, a construção de casas, a

invenção da agricultura e, pela esposa do Imperador Amarelo, a descoberta da cultura do bicho-da-

seda. Dos reis teria também vindo o descobrimento do calendário e da escrita chinesa. Os últimos

dos Cinco Governantes foram os imperadores-modelos Yao e Shun. Então, outro benfeitor, o Grande

Yu, é considerado como o fundador da primeira dinastia, a dinastia Xia.

Dinastia Xia

Entre esses heróis culturais admirados pelos chineses, Yu é particularmente interessante, pois sua

contribuição foi o controle das enchentes e a irrigação. Considera-se que foi tão devotado à sua

tarefa que, quando voltou a seu distrito depois de uma ausência de nove anos, ao avistar sua casa

perto do rio, continuou o seu caminho, sem se dar ao trabalho de nela entrar. Tais mitos, que não se

podem enquadrar em qualquer quadro cronológico de referência estabelecido pela arqueologia,

mostram que, embora a China tenha lutado em muitas guerras cruéis, o seu ideal tem sido sempre a

realização cultural pacífica e não a vitória em batalhas. A lenda de Yu demonstra que o herói cultural

necessário é o que pode organizar os homens e uni-los para combater uma catástrofe natural como

uma enchente de grandes proporções. A sociedade chinesa reconhece a importância vital do trabalho

coletivo para os objetivos comunitários; ao passo que o credo individualista ditado pelas

circunstâncias da fronteira americana acredita no pioneiro solitário que, com ajuda da família, pode

demarcar no sertão um pedaço de terra para seu usufruto em liberdade. Um pequeno grupo de

indivíduos não é de qualquer utilidade nas planícies da China setentrional; lá são precisos dezenas

de milhares, cada um carregando juma pá e um sacode areia, para domar a irada “Tristeza da China",

o rio Amarelo.

A dinastia Xia (datas tradicionalmente atribuídas: 2205-1766 a.C.) não está associada a qualquer

prova arqueológica até hoje conhecida. Entre os cronistas oficiais de épocas ulteriores havia a

tendência para recuar num passado tão remoto quanto possível o surgimento do Estado chinês como

sistema centralizado, burocrático e dinástico. Assim sendo, a historicidade dos Xia é duvidosa, mas

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os eruditos tornam-se cada vez mais cautelosos. Houve um tempo em que se pensou que a dinastia

Shang, também conhecida como dinastia Yin (segundo a tradição, de 1766 a 1122 e, mais

corretamente, de 1523 a 1027 a.C.) foi também considerada como lendária. E, no entanto, a lista de

reis da dinastia, recolhida nas inscrições reconhecidas como datando dos Shang, harmonizava-se

quase totalmente com a lista tradicional dada pelo grande historiador do século II a.C., Sima Qian

(Ssu-Ma Ch'ien), assim defendendo inteiramente, nesse caso, a posição das fontes literárias. Um

julgamento sobre os Xia não deve, portanto, ser feito até que surjam novas provas.

Dinastia Shang

A história dos ossos divinatórios dos Shang é uma das mais excitantes dos anais da arqueologia,

graças ao clarão que lançou sobre os primórdios da história da China. Essa história pode ser

comparada, em seus aspectos mais amplos, à da decifração da escrita linear B na Creta minóica,

cujos textos originais pertencem quase à mesma época. (Esta é também a época do faraó

Tutancâmon.) Pouco antes do final do século XIX, alguns eruditos chineses descobriram que os

chamados "ossos de dragão" estavam aparecendo em farmácias chinesas para serem usados no

preparo de remédios tradicionais. Tais ossos eram considerados como mágicos por trazerem

símbolos inscritos. Pesquisas sérias começaram a ser feitas, a respeito dos ossos, em 1903, mas só

se conseguiram resultados mais completos depois de intensas escavações (efetuadas de 1928 a

1937), em Anyang, perto da grande curva do rio Amarelo, na área conhecida como o berço da

civilização chinesa. Desenterraram-se ao todo 100 mil desses ossos - omoplatas de veados e bois e

carapaças de tartaruga - e publicaram-se os resultados da pesquisa efetuada em 15 mil deles. Os

caracteres neles inscritos, que datam das proximidades do ano 1300 a.C., representam sem dúvida a

forma mais antiga conhecida da língua chinesa. Cerca de 5 mil caracteres foram catalogados e 1.500

deles, decifrados. Uma importante reforma da escrita chinesa realizada no século II a.C. levou a que

se esquecesse o significado de muitos dos mais antigos sinais gráficos.

Os ossos divinatórios, os soberbos vasos de bronze e os túmulos dos Shang revelam uma civilização

de esplendor e violência. Os reis eram sepultados em caixões dentro de imensos poços com duas ou

quatro rampas de acesso. Um cão era sacrificado e imediatamente colocado sob cada caixão, e

numerosos tesouros (5.801 peças em determinado túmulo) eram enterrados junto com o monarca.

Entre os objetos mais valiosos, que contavam como símbolos de status, estavam carros de combate,

com cavalos e cocheiros previamente mortos e enterrados com aqueles, e vasos culturais de bronze.

Os carros eram similares aos que Homero descreve na Ilíada e que pertencem ao ano 1200 a.C. Tais

carros eram construídos com um alto grau de habilidade técnica. As duas rodas de madeira são finas

e têm 16 ou mais raios. A estrutura da boléia, apoiada no eixo e no varal, que se estendia para

colocar-se entre os dois ou quatro cavalos, era pequena e leve, mas de tamanho suficiente para

carregar o cocheiro e o lanceiro, bem como o rei ou o nobre que possuía o carro. Os cubos das rodas

tinham de ser avantajados, a fim de distribuir o calor gerado pela fricção da madeira na madeira,

embora breu ou banha animal fossem empregados para lubrificá-los. Ornatos de carro e de arreios,

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em bronze de alta qualidade, foram preservados nos túmulos.

Um aspecto sombrio dos funerais Shang era o sacrifício de um grande número de vítimas humanas,

em grupos de dez. Eram elas cerimonialmente decapitadas com grandes machados, também

encontrados nos túmulos. Tratava-se de prisioneiros de guerra ou de indivíduos capturados nas tribos

de pastores nômades das fronteiras ocidentais dos Shang. Esse massacre e o fato de que as vítimas

estavam, por vezes, algemadas, levou os historiadores marxistas chineses a darem a esse período a

denominação de "Sociedade Escravista". WiIliam Watson aponta uma semelhança entre os Shang e

os Estados da antiga Mesopotâmia, no que se refere às instituições da realeza e da classe

sacerdotal, do sacrifício e da consulta ao oráculo, do uso do carro de combate e do arco, e "da

hipertrofia do rito funeral acompanhado de sacrifício humano. Sob tudo isso, havia um vasto número

de camponeses que mal tinham ultrapassado a fase da velha economia neolítica."[WiIliam Watson,

Cultural Frontiers in Ancient East Asia. Edinburgh, Edinburgh University Press, 1972, p. 38.]

Os Shang parecem ter-se organizado como uma forma de cidade-Estado sob uma monarquia que, no

início, foi muito forte. Havia aldeias-satélites não muito longe da capital central e o Estado tinha meios

de controlar as comunidades a uma grande distância. Mais de 50 sítios com restos dos Shang, nove

deles de grande, importância, foram identificados na região do rio Amarelo e da planície da China

setentrional. A localização da capital murada sofria mudanças, e dois dos mais importantes sítios

foram Zhengzhou (provavelmente a antiga capital de Ao), fundada durante o reinado do décimo

monarca e ocupada desde c. 1500 a 1300, e Anyang, também conhecida como Grande Shang, que

data do tempo do 19o rei, em 1300, até a queda da dinastia em 1027 a.C.

A riqueza e o domínio de trabalho especializado que aparecem nas tumbas, comparativamente

grandes para esse estágio primitivo da história chinesa, indicam que os reis Shang e os nobres

detinham posições de considerável poder e prestígio na sociedade. Os reis tinham condições de

colocar em campo exércitos de 3 mil a 5 mil homens. Nota-se, pelas inscrições nos ossos

divinatórios, que a caça era uma grande preocupação dos governantes e, como ocorria na dinastia

mongol, essa atividade lúdica, que contava com o concurso de batedores organizados, era utilizada

como meio de treinamento de grupos de soldados. Na verdade, a caça, a pesca e a coleta de

alimentos permaneceram importantes na economia de todo o povo, ainda que a agricultura já

representasse, há longo tempo, uma viga mestra dessa economia.

Os túmulos dos Shang dão-nos igualmente uma boa idéia das armas utilizadas durante esse período,

que assinalou o início da Idade do Bronze na China. A principal utilidade dos carros de combate já

mencionados era evidentemente o transporte de guerreiros para os campos de batalha, onde se

apeavam para o combate, uma vez mais como nas guerras descritas por Homero. Entre as armas

havia lanças com lâminas de bronze e os grandes machados também usados na decapitação

cerimonial das vítimas. Por serem perecíveis, os arcos de madeira e chifre não deixaram vestígios,

mas algumas inscrições em vasos de bronze sugerem que os arcos Shang eram do tipo reflexo ou

composto, que atiram com maior potência com menor comprimento de arco do que o mais comum

arco manual. O arco composto, de dupla curvatura, e de inestimável valor, portanto, no espaço

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apertado de um carro de combate, e foi usado com grande eficácia em datas subseqüentes, tanto por

nômades como por chineses a cavalo. As espadas não eram usadas na época Shang. Fizeram seu

aparecimento durante a dinastia Zhou, no século VI a.C.

Uma arma tipicamente chinesa encontrada em grande quantidade nos sítios da época Shang é o ge

ou alabarda. Esta arma possui uma lâmina montada em ângulo reto com a longa haste, e uma espiga

na parte traseira que atravessa a haste. Mais tarde, acrescentou-se-lhe um reforço protetor ao longo

da haste para dar mais rigidez ao encaixe da lâmina, e uma ponta de lança no prolongamento da

haste e acima da lâmina transversal.

A maior glória da arte e do artesanato dos Shang está nos magníficos vasos de bronze. Estes, com

muitas formas cuidadosamente elaboradas, foram a princípio concebidos para serem usados nos

sacrifícios aos ancestrais e aos deuses, mas também eram empregados para assinalar ocasiões de

favor real, como a outorga de um feudo ou de uma honraria a um nobre. A posse de vasos de bronze

era um sinal evidente de riqueza e um meio de conservá-la no seio da família.

As formas dos bronzes, em muitos casos derivadas das da cerâmica primitiva, são sólidas,

majestosas e belas. A ornamentação é muito rica e adaptada, de maneira notável, à forma do vaso.

Um dos principais motivos é o da máscara do monstro taotie, uma forma estilizada e simétrica de face

animal vista de frente. Uma decoração secundária em forma de desenhos geométricos ou em relevo

preenche o espaço entre os motivos principais. Os vasos eram fundidos em moldes de cerâmica.

Uma proporção de chumbo maior do que a usual era acrescentada à mistura de cobre e estanho a

fim de produzir um fluxo livre de metal derretido nas delicadas partes do desenho e impedir a

formação de bolhas de gás. O artesanato desses bronzes é tão delicado que os encaixes podem ser

vistos, com o auxílio de uma lente, não com a forma de um V, mas mostrando uma perfeita e aberta

seção quadrada, com lados perpendiculares, com o seguinte desenho: U.

O trabalho em bronze dos Shang atingiu um nível extremamente elevado, raramente alcançado em

outra época ou em qualquer outro lugar. O desenvolvimento das técnicas do bronze Shang pareceu,

até pouco tempo atrás, haver sido muito rápido, o que levou a especular se o conhecimento da

fundição do bronze não Poderia ter sido trazido da Ásia ocidental e, em seguida, aplicado e

aperfeiçoado na China. Mas descobertas efetuadas nos anos 1970 revelaram exemplos de bronzes

anteriores, muito mais primitivos e delgados, que atestam um longo desenvolvimento dentro da

própria China. Parece agora provável que os chineses tenham Inventado a fundição do bronze sem

qualquer ajuda do exterior.

Dinastia Zhou

No ponto em que o rio Amarelo completa o seu trajeto em direção ao sul e se vira subitamente para

nordeste, ele recebe pela margem esquerda um importante afluente, o rio Wei. Viajando desde o vale

do Wei, surgiu, em 1027 a.C., uma tribo vigorosa e guerreira, conhecida como Zhou, a qual

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conquistou os Shang e tomou seu território. Os Zhou não eram "bárbaros", e sim chineses, embora

sua terra de origem, situada na parte oeste da China, os tenha levado a entrar em contato com os

nômades das estepes e lhes tenha dado treinamento nas lides guerreiras. Eles já haviam tido contato

com os Shang e sua cultura; e, de fato, provavelmente forneceram aos Shang cavalos trazidos de

suas pastagens nas terras altas.

O Período Zhou Ocidental

O rei Wen dos Zhou preparou o ataque, e o rei Wu completou-o com sucesso, com sua vitória em Mu.

O duque de Zhou, irmão de Wu, teve, logo depois, de retomar ao domínio conquistado para sufocar

uma revolta organizada por alguns dos Shang derrotados, que tinham o apoio de um grupo de

descontentes, até que, por fim, os Zhou assumiram o controle da situação. Tão grande foi o vigor do

ataque dos Zhou que bem cedo atingiram eles a costa leste da China setentrional. Para controlar um

território tão extenso, os reis Zhou nomearam parentes para governarem as várias cidades e regiões.

Por essa razão, deu-se por vezes a esse período o nome de "idade feudal", mas o termo não é muito

apropriado, pois não há indícios de contatos feudais nessa época, no sentido de outorga de parcelas

definidas de terra em troca de levas de tropas.

Os Shang, embora reduzidos a uma posição muito inferior depois de sua revolta, tiveram permissão

para conservar um pequeno território, a fim de que os sacrifícios ofertados aos seus ancestrais não

se interrompessem. Aí está uma prova da importância da posse da terra na China dos primeiros

tempos. Considerava-se necessário, a uma família nobre, ocupar um território para realizar os ritos

religiosos do culto dos ancestrais, do qual dependia seu bem-estar. Embora essa doação de terra

pelos Zhou a seus inimigos derrotados possa ser tida como "cavalheiresca", era também uma

precaução sensata, pois, uma vez abandonados, os espíritos de personagens outrora poderosos

poderiam causar dano considerável aos vivos.

A importância da mudança de governo dos Shang para os Zhou reside não só no próprio

acontecimento, mas também na interpretação que posteriormente lhe atribuíram os filósofos da

escola confuciana. Em sua visão moralista da história, a transferência do poder de uma dinastia para

a outra é tradicionalmente justificada como representando a vontade do Céu. Muito se explorou,

portanto, a malvadez e iniqüidade do último soberano Shang, Zhou Xin (o nome pode levar a

confusões, mas ele não pertence, evidentemente, à nova linhagem Zhou), em contraste com a

bondade, altruísmo e comedimento dos reis Wen e Wu, e do duque de Zhou. O próprio Confúcio teria

compartilhado esse sentimento, pois exclamou certo dia: ”A que ponto pioraram as coisas para mim!

Na verdade, há bastante tempo que não sonho com o duque de Zhou!" [Analectos, VII, 5]. Zhou Xin,

nas descrições tradicionais, aparece como um monstro de perversidade, mergulhado na devassidão,

pois divertia sua corte em torno de um lago de vinho, forçando moços e donzelas nus a se caçarem

mutuamente no interior de uma floresta de cujas árvores pendiam porções de carne. Os antropólogos

modernos consideram esse episódio como sendo a expressão de um festival primaveril de fertilidade,

destinado, por obra de algum sortilégio, a promover a fecundação da terra (os bosques associam-se

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à fertilidade), o êxito nas caçadas e o crescimento da tribo.

Durante os três primeiros séculos do governo Zhou, a sociedade e a cultura continuaram nas

mesmas linhas estabelecidas pelos Shang. Construíam-se casas praticamente da mesma forma,

embora se usassem telhas de barro. Ainda se fundiam magníficos vasos de bronze, mas no final

desse período, a qualidade do trabalho começou a diminuir e a inspiração do desenho já não era tão

rica. As Inscrições nos bronzes tornaram-se mais extensas e mais pormenorizadas. Alguns vasos

eram fabricados em jogos, um para cada finalidade, como, por exemplo, os três de bronze recém-

descobertos: um vaso quadrado para vinho, outro para água e um vaso com tampa em forma de

animal grotesco, todos eles com uma idêntica Inscrição: "Precioso vaso ritual dedicado a Zhe Qi.

Possam seus filhos e netos fazer dele, durante 10 milênios, eterno e valioso uso”. Foram encontrados

jarros de protoporcelana, feitos da mesma argila que, mais tarde, seria utilizada na porcelana famosa

das fábricas imperiais de Jingdezhen, na província de Jiangxi. Um dos mais antigos carrilhões de

nove sinos de bronze, o carrilhão do marquês de Cai, data deste período. Os sinos eram um

componente importante da música ritual Zhou, assim como as pedras musicais que soavam por

percussão.

O uso da tinta e o pincel de escrita eram conhecidos na época dos Shang e a existência de livros de

bambu, que consistiam em tabuinhas ligadas por cordéis, é atestada por um símbolo Shang. Mas, no

tempo dos Zhou, a escrita era uma atividade mais corrente e registros eram conservados em muito

maior quantidade Sabe-se que existiram listas Zhou de objetos valiosos, contabilidade, instruções

escritas para subordinados e editos reais redigidos em linguagem formal por escribas especializados.

No final do período Zhou havia coleções de obras de história compêndios sobre ritual e música,

manuais de arco e flecha e outros assuntos, bem como coletâneas de poesia.

Como parte da visão idealista confuciana dos primórdios da dinastia Zhou, exagerou-se o grau de

controle central exercido pelos reis. Mas até o limitado controle, que efetivamente houve, declinou no

século IX. Uma revolta popular depôs o rei em 841 a.C. e o estabelecimento subseqüente da

regência de Gong He dá-nos a primeira data absolutamente segura da história chinesa. Desse ponto

em diante, as datas são consideradas como certas.

O Período Zhou Oriental

Pouco tempo depois, em 771, o rei Zhou foi implacavelmente derrotado por uma tribo nômade, o

Chuan ("Cachorro") Rong. Conta-se que o monarca havia previamente mandado acender as tochas

de alarme com o intuito de agitar as tropas, arrancando assim risos de sua concubina favorita, que

era rabugenta e caprichosa. No momento em que foi desfechado o verdadeiro ataque, os soldados

não atenderam às tochas de aviso e recusaram-se a responder à chamada. Depois desse desastre,

os reis Zhou foram forçados a transferir a sede do Governo do vale do rio Wei para uma nova capital

mais a leste, perto de Luoyang. Chegava ao fim o sub-período dos Zhou ocidentais e iniciava-se o

dos Zhou orientais.

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A partir desse momento, a submissão dos vários Estados e das várias cidades aos Zhou tornou-se

quase nula. Apenas a corte Zhou tinha o direito e o dever de oferecer sacrifícios ao Céu e continuava

a ser, em teoria, a fonte de todas as honras, mas aos poucos os reis foram se convertendo em figuras

decorativas, praticamente despidas de poder. Do ponto de vista tradicional, isso representou um triste

declínio, desde o primeiro governo glorioso e legítimo dos Zhou. Na verdade, o período subseqüente,

até o fim oficial da dinastia, em 221 a.C., embora cheio de violência e intriga, foi uma época de

intensa criatividade e inventividade no domínio do pensamento, da tecnologia e da mudança social.

Foi o grande período formativo da filosofia chinesa, quando, conforme veremos no próximo capítulo,

muitas escolas, das mais variadas gamas de pensamento, tentaram conquistar a mente das pessoas

no domínio da teoria e da política prática. Essa revolução do pensamento fazia-se acompanhar de

mudanças radicais na sociedade e de técnicas muito desenvolvidas na agricultura e economia.

A dinastia Zhou é inquestionavelmente a mais longa da história chinesa, sendo muito diferentes as

condições de vida e a situação da sociedade em seu princípio e no seu fim. O único elo de ligação é

a existência da Casa dos Zhou, que começa como conquistadora e termina, após um longo período

de 801 anos, como uma família esquecida de reis-sacerdotes, sem quase nenhum vestígio de poder.

A segunda metade, ou período dos Zhou orientais é, por sua vez, usualmente subdividida em duas

partes que cobrem a maioria, mas não a totalidade, dos anos envolvidos. A primeira parte é a de

Chungiu, ou da Primavera e do Outono (722 a 481 a.C.), assim chamada em virtude do título de uma

obra, a primeira crônica da história chinesa, que registra os Anais do Estado de Lu entre essas datas.

A segunda parte é o período dos Estados Rivais, de 403 a 221 a.C., período em que se iniciou a

dinastia Qin. A dinastia Zhou já havia sido deposta alguns anos antes. A situação durante os Zhou

orientais era a seguinte: de 10 a 12 Estados importantes e rivais, depois reduzidos a sete,

digladiavam-se por territórios e supremacia sobre os demais, numa série inconstante de alianças,

intrigas e guerras abertas em que os aliados de hoje podiam ser os inimigos de amanhã. Além disso,

havia um sem-número de Estados secundários, alguns deles consistindo apenas numa cidade

amuraIhada e alguns quilômetros quadrados de território circundante, os quais iam sendo

gradualmente absorvidos pelos maiores. Os Estados passaram de principados sob a tutela Zhou a

reinos independentes. Os chefes, que haviam sido divididos em cinco graus de nobreza, equivalentes

a duque, marquês, conde, visconde e barão, tinham todos, em meados do período dos Estados

Combatentes, usurpado o título de wang (rei), antes reservado unicamente aos soberanos Zhou.

Nenhum dos reis rivais, porém, arrogou a si próprio o título de "Filho do Céu" ou reclamou o direito de

oferecer sacrifícios ao Céu. Entre os símbolos de poder e status que contribuíam para elevar a família

reinante de um Estado, grande ou pequeno, acima de suas rivais, estavam a força militar, medida

pelo número de carros de combate, o prestígio, avaliado através das ligações com a Casa de Zhou, a

longa linha de ancestrais e privilégios religiosos reconhecidos, e a riqueza, exibida em tesouros e

símbolos da classe, tais como vasos de bronze, sinos, jade e outros objetos preciosos.

A natureza da guerra sofreu mudanças durante o longo período da dinastia Zhou. No final do século

VII, prevalecia ainda a idéia antiga de que a guerra era atividade de cavalheiros, a ser conduzida com

alguma moderação e algum respeito pelos decretos do Céu. O duque de Song permitiu que seu

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inimigo Chu atravessasse um rio e colocasse suas forças em formação de batalha, antes de

desfechar o ataque. E foi completamente desbaratado. Quando interpelado por seus conselheiros a

respeito do que lhes parecia ser um excesso de cavalheirismo, o duque respondeu: "O sábio não

esmaga os fracos, nem dá ordem de ataque antes que o inimigo tenha formado suas fileiras”. Mas as

atitudes começaram a mudar e os ritos, cerimônias e hierarquia passaram a ser menos respeitados; a

polidez dos combates foi posta de lado. Os homens passaram a lutar menos por pundonor e mais por

territórios e lucros. Tornaram-se mais comuns as guerras sem trégua nem quartel. Quando os Qin

conquistaram toda a China, a guerra era implacável não só na prática, mas também na teoria dos

Qin.

As táticas e as armas também mudaram. A primeira inovação foi a espada, conhecida há muito

tempo no Ocidente. Provavelmente adotada dos nômades das estepes, a espada de bronze só veio a

ser usada na China a partir do século VI a.C., e a de ferro seria introduzida com êxito pelos Qin, em

suas conquistas do final do século III a.C. A besta foi introduzida no século V. Essa arma, que podia

ser distendida, empinada e carregada pelo pé, era mais poderosa e certeira do que o arco composto.

O mecanismo de gatilho foi gradualmente aperfeiçoado, até atingir, em período ulterior, um alto grau

de eficiência. Com alavancas dispostas em três peças móveis, a besta podia suportar uma carga

pesada, quando retesada, e mesmo assim propiciar um tiro fácil e sem esforço para o atirador. A

remoção de dois pinos desmontava o mecanismo em caso de captura pelo inimigo, e não podia ser

facilmente montado de novo por quem desconhecesse o seu funcionamento. Depois, em 307 a.C., o

rei de Zhao aprendeu uma boa lição com seus vizinhos nômades, no Norte, e adotou a cavalaria no

lugar dos carros de combate, por ser mais veloz e dotada de maior mobilidade. Isso, por sua vez,

acarretou uma mudança no vestuário: o uso de calças e túnica na China data desse período. Mas a

maior transformação na arte da guerra foi a nova importância conferida ao uso da infantaria. Em

terreno montanhoso ou nos lagos e pântanos do vale do rio Yangzi, os carros de combate eram de

pouca utilidade. Por si só, a cavalaria era insuficiente, e também não lhe era possível evoluir em

certos tipos de terreno. Passou-se a confiar mais no emprego dos grandes corpos de infantaria, quer

apoiando os carros de combate e a cavalaria, quer combatendo sem ajuda de outras forças. Isso teve

conseqüências muito amplas no campo social, tal como ocorreu no Ocidente ao fim da Idade Média.

L'état centralisé est contemporain d'une promotion de Ia paysannerie au rang de cultivateurs

indépendants et à celui de combattants. Le droit à Ia ferre et le droit aux honneurs acquis sur le

champ de bataille vont de pair. [O Estado centralizado é contemporâneo da promoção dos

camponeses à categoria de agricultores independentes e à de combatentes. O direito à terra e o

direito às honras conquistadas no campo de batalha caminham lado a lado.] [J. Gernet, Le Monde

Chinois, p.65.]

O trabalho do camponês em tempo de paz era tão encorajado quanto seu lugar na guerra, pois esse

período de agitação dos Estados Rivais, deplorado pelos eruditos chineses posteriores como tendo

representado o rompimento com a velha ordem, foi também uma época em que se procurou estimular

o desbravamento de novas terras, o uso de fertilizantes, o estudo dos tipos de solo e das melhores

épocas para semear, e o crescente emprego de sistemas de drenagem.

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A melhoria das técnicas agrícolas teve como conseqüência o aumento da população. Um

recenseamento do ano 2 A.D. apontou uma população de 57.671.400 habitantes, a qual era

ligeiramente superior ao número de habitantes de todo o Império Romano revelado pelo censo de

Augusto, alguns anos depois.

A invenção tecnológica foi, uma vez mais, tão útil à agricultura quanto era na guerra. Nessa época; foi

inventado o arnês de peitoral, ou coelheira, que aumentava a eficiência, seguindo-lhe pouco depois,

já no século V d.C., um novo tipo de coelheira rígida. Esses dois tipos de arreios permitiram a um

único cavalo fazer o que dois ou até quatro faziam antes, quando o arnês de pescoço ameaçava

estrangular o animal se tivesse de deslocar um peso excessivo no tiro. O maior avanço técnico de

todos foi a introdução dos processos de fusão e fundição do ferro, mencionados pela primeira vez em

513 a.C. O ferro fundido é encontrado em objetos que datam de 400 a. C., época em que o uso desse

minério já entrara em uso bastante generalizado. Um dos primeiros usos conhecidos do ferro na

China era como revestimento das bordas cortantes de pás de madeira, e para outros implementos

agrícolas como enxadas, facões e foices. Mas as enxadas de pedra ainda eram usadas na época dos

Han e mesmo depois, em virtude do alto preço do ferro. Aproveitando-se de sua experiência na

fundição do bronze, os chineses fizeram rápidos progressos na produção do ferro, conseguindo

inclusive reproduzir várias peças, ao mesmo tempo, de apenas um molde composto. Na província de

Rehol, no Extremo Norte, descobriu-se o local de uma fundição em que havia 87 moldes para pás de

ferro, talhadeiras e peças de carros, datados do século IV a.C.

Na Europa, o ferro foi forjado antes de ser fundido, mas, na China, os dois processos apareceram

quase ao mesmo tempo. É possível que o aperfeiçoamento dos arreios e a fundição do ferro, que só

se tomaram conhecidos na Europa séculos mais tarde, no fim do período medieval, tenham, na

verdade, vindo da China através de outros povos.

Um elemento importante da metalurgia, o fole aperfeiçoado, foi introduzido no período dos Estados

Combatentes e, durante a dinastia dos Han, foi convertido num fole com pistão duplo e válvulas, que

libertava uma corrente de ar forçada e contínua, com a qual se alcançavam temperaturas superiores

no interior da fornalha. Isso tornou possível a produção do aço, que foi realizada na China desde o

século II a.C.

Não apenas a indústria, mas também o comércio cresceram no período dos Estados Rivais,

revelando-se também um agente de mudança social. Nos períodos anteriores, o comércio tinha-se

restringido, na maioria das vezes, aos artigos de luxo, como seda, pérolas e jade. Mas agora

mercadores empreendedores principiavam a comerciar em larga escala com produtos como cereais,

sal, metais, peles e couro. Eles operavam barcos nos rios e carroças em terra, em comboios de

tamanho razoável. As suas atividades foram facilitadas pela nova possibilidade de cunhar moedas,

embora nem sempre de forma muito conveniente. Havia quatro tipos principais de moeda usados em

diversas partes do país: miniaturas de espadas de ferro; facas; peças em forma de búzios, que eram

usadas tanto como amuletos e ornamentos quanto como moedas; e, finalmente, peças de cobre

circulares com um orifício central por onde passava um fio que as ligava. Este último tipo foi o único

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que sobreviveu e continuou a ser utilizado até o século XIX. Voltemos, para concluir, à situação

política no final da dinastia dos Zhou. Podemos notar que os Estados centrais, como os de Zhou,

Song, Lu e lin (após 403 a.C. o Estado Jin dividiu-se em três: Han, Wei e Zhao), tendiam a desprezar

os Estados periféricos, como Qi a leste; Chu, no sul e Qin, a oeste, como sendo semibárbaros. Mas

foi justamente nesses Estados mais livres, maiores e menos vinculados à tradição que muitas das

inovações supracitadas primeiro ocorreram, particularmente na esfera militar.

Os Estados Combatentes

O Estado de Qi, no século VII, tornou-se poderoso ao aperfeiçoar a sua administração e ao incorporar

novos territórios. O duque de Qi foi nomeado titular da hegemonia (ba) em 651 a. C., com a missão

de defender uma fraca confederação dos Estados centrais contra o crescente poder de Chu. Wu, nos

braços inferiores do no Yangzi, tornou-se uma grande força em 482, mas foi derrotado, poucos anos

mais tarde, por Yue, localizado mais ao sul, na moderna província de Zhejiang. Chu prevaleceu

contra Yue no século seguinte, em 334, e alguns dos Estados menores foram absorvidos por seus

vizinhos mais poderosos. O resultado dessas mudanças calidoscópicas, que se estenderam por

vários séculos, foi deixar um caminho mais livre para a rápida ascensão de Qin, pondo fim à longa

série de guerras e assegurando um só governo central para todos os Estados chineses divididos. Qin,

reforçado pela adição de dois territórios na distante província de Sichuan e organizado para guerra

total, destruiu o sagrado Zhou em 256 e, com rápidas manobras, (230 a 221 a.C.), conquistou todos

os outros Estados, emergindo como incontestáveis senhores da China.

Dinastia Qin

A impressionante conquista da velha China dos reinos separados foi realizada pelo Estado de Qin

com rapidez e completada em 221 a.C. O Estado de Qin (pronunciado "tchin", que nos deu o

presente nome da China) teve uma dupla vantagem: na teoria - a filosofia pragmática e cruel do

Legismo - e, na prática - uma organização militar eficiente, sob o comando de líderes fortes, que

possuíam cavalaria e armas de ferro, mais aperfeiçoadas, ambas criações comparativamente novas

para a época. Embora as fases finais desse domínio tivessem sido rápidas, a preparação exigia um

tempo muito longo.

O poder dos Qin inicia-se com lorde Shang no período compreendido entre os anos de 361 e 338

a.C., data de sua morte. No nível superior da sociedade, suas reformas visaram a estabelecer uma

nova aristocracia de homens premiados por seus feitos bélicos, ocupando o lugar das antigas famílias

cujo domínio era hereditário; nos níveis inferiores, um sistema de recompensas e punições severas, a

formação de grupos responsáveis uns pelos outros e a rigorosa delação de atos delituosos às

autoridades haviam fortalecido o controle estatal sobre toda a população. Um século mais tarde,

quando o futuro imperador de toda a China, Qin Shi Huangdi, subiu ao trono de Qin em 246, pôde

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contar com a competência de um ex-mercador, Lu Buwei, na qualidade de administrador-chefe; este

último foi, por sua vez, substituído por um legista proeminente, Li Si, que aplicou o modelo Qin de

controle em toda a China. Os métodos de reorganização e fortalecimento da autoridade central sobre

os reinos independentes foram assim levados a cabo e aplicados numa esfera limitada, por um

pequeno número de dirigentes, antes da conquista militar dos Qin.

Quando a vitória se tornou completa, todas as armas dos que não pertenciam ao exército Qin foram

confiscadas e seu metal, fundido. A quantidade foi suficiente para construir 12 estátuas gigantescas

na nova capital, Xianyang. Para mostrar sua intenção de iniciar uma administração inteiramente nova,

o soberano adotou o título ambicioso de Shi Huangdi, o "Primeiro Imperador". O país foi dividido,

primeiro, em 36 e, depois, em 48 comandos, ou distritos militares, cada qual com três funcionários

que tinham a função de fiscalizar uns aos outros: um governador civil, um governador militar e um

representante direto do governo central. Todos os funcionários eram metodicamente divididos em 18

ordens hierárquicas. Criaram-se impostos e leis uniformes para toda a China, sem levar em conta as

antigas fronteiras.

A diferença capital na organização das massas sob os Qin foi que o povo se viu libertado da sua

antiga fidelidade a senhores feudais individuais e colocado sob o controle direto do novo governo

central. Isso fez com que o governo pudesse lançar mão de um potencial humano até então

desconhecido, não só no que dizia respeito ao exército, como também a um contingente de

trabalhadores forçados. Essa abundância de mão-de-obra possibilitou a construção de uma rede de

estradas que se irradiavam da capital. Tal como no Império Romano, essas estradas, abertas a

princípio com fins estratégicos, eram igualmente úteis para o comércio. Rasgaram-se canais para

irrigação e transporte, e tomaram-se medidas para aumentar a produção agrícola. Para enfrentar a

ameaça das tribos nômades do Norte, pesadelo constante ao longo de toda a história chinesa,

trechos de uma muralha defensiva já construídos por três dos antigos reinos foram fortalecidos,

ligados e estendidos, para formar a célebre Grande Muralha da China, um dos mais ambiciosos

projetos de construção já realizados por qualquer civilização. Depois de erguida, ela estendia-se do

Sudoeste do Gansu à Manchúria meridional, numa distância de 2.240 km; uma série de

melhoramentos foram efetuados pelas dinastias subseqüentes.

Desembaraçado de qualquer respeito pelo passado e ansioso por impor uniformidade lógica ao país

como um todo, o que já foi assinalado a respeito das medidas tomadas nos campos da lei e da

tributação, o imperador Qin procedeu à padronização de pesos e medidas e adotou um sistema

monetário único - a moeda redonda de cobre, com um orifício quadrado no centro, que continuou

sendo a moeda-padrão até os tempos modernos. Foram assim eliminadas numerosas formas de

moeda de manuseio mais incômodo, que tinham circulado em diferentes regiões na época dos Zhou.

A forma de escrita foi igualmente uniformizada, assim como a distância entre eixos das carroças. Esta

última medida, ao invés do que possa parecer, revestiu-se de grande importância no solo argiloso e

solto do Norte da China, onde os sulcos abertos pelas rodas dos carros ganham tal profundidade que

toda a superfície não-pavimentada da estrada pode desaparecer abaixo do nível das terras

circundantes. Assim, as diferentes distâncias entre eixos exigiam, até então, a transferência de

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mercadorias de uns veículos para outros nas fronteiras dos antigos Estados.

Mas foi na área do pensamento que a nova política de uniformização provocou a maior oposição, que

na época se manteve latente, mas que veio à tona com os eruditos nas dinastias subseqüentes e se

refletiu no azedume duradouro contra o regime dos Qin. Objetivando fazer uma limpeza total que

varresse o passado e desfizesse antigas lealdades aos Estados anteriores, o ministro-chefe, Li Si,

conseguiu que, em 213, Qin Shi Huangdi, baixasse um decreto que ordenava a queima de todos os

livros, exceto os dedicados a assuntos práticos, como agricultura, adivinhação e medicina. Os

eruditos que desobedecessem à ordem seriam executados. Parece que de fato alguns deles fora

enterrados vivos.

Com o poderoso exército que organizara, Qin Shi Huangdi não apenas assegurou suas fronteiras no

Norte, como ainda as estendeu até o extremo sul. Antes da conquistada China, os Qin já haviam

atacado e conquistado territórios em Sichuan no Sudoeste. Os exércitos movimentaram-se, então,

para o sul, até Hanói. Apoderaram-se do litoral em torno da moderna Cantão (Guangzhou) e

conquistaram as regiões perto de Fuzhou e Guilin.

Ao consolidar assim o seu domínio e ao estender as fronteiras da China até quase a sua atual

posição, o primeiro imperador Qin demonstrara uma energia demoníaca e alcançara um êxito

fenomenal. Mas, quanto mais centralizado se tornava o império, mais vulnerável era à fraqueza no

centro do poder. Essa fraqueza veio à tona com a morte do primeiro imperador, em 210 a.C. Ele

estava, ironicamente, em viagem às regiões orientais em busca de mágicos daoístas para que estes

lhe fornecessem o elixir da imortalidade. Li Si e o eunuco-chefe, Zhao Gao, mantiveram sua morte em

segredo até retornarem à capital, a fim de colocarem no trono, como segundo imperador, um herdeiro

mais moço, o qual, julgavam eles, seria mais flexível às suas ambições. Mas houve um

desentendimento entre eles e Li Si foi eliminado; quando o terceiro imperador subiu ao trono, mandou

assassinar Zhao Gao. A dinastia dos Qin, apesar de sua força, não pôde sobreviver à dizimação de

seus líderes. Quando, em 206, teve que enfrentar a rebelião popular, desmoronou. O primeiro

imperador jactara-se de que sua dinastia duraria 10 mil gerações; na verdade tudo terminou em 15

anos.

Qin Shi Huangdi, o primeiro imperador, não gozou de bom conceito junto aos historiadores

confucianos e, na verdade, foi em muitos aspectos um tirano cruel. Vários milhares de homens, por

exemplo, morreram durante a construção da Grande Muralha. Mas ele estabeleceu as principais

bases para o futuro desenvolvimento do Império. Em especial, criou um reino unificado e centralizado

que nunca mais deixou de ser o ideal chinês para o império. Ao proteger o Legismo, influenciou toda

a futura concepção chinesa a respeito da lei. A lei, sob esse ponto de vista, não deveria ser, de modo

algum, uma consagração do costume - ele destruiu os direitos hereditários e os costumes - nem,

simplesmente, um meio de dirimir disputas, nem uma expressão da vontade comum, pois o desejo

dos governados contava pouco. "Afastada qualquer interpretação divergente, [a lei era] um meio de

dividir hierarquicamente os indivíduos, possuindo uma função de balança geral de dignidade e

indignidade, de mérito ou descrédito. [Era] ao mesmo tempo o instrumento todo-poderoso que

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permitia orientar as atividades de todos na direção mais favorável ao poder do Estado e à

tranqüilidade pública" [J. Gernet - Le Monde Chinois. p. 79.]. Qin Shi Huangdi sintetizou sua idéia a

respeito da sua própria realização, quando mandou gravar numa estela as seguintes palavras:

"Trouxe ordem às massas e submeti atos e realidades a esse teste: tudo tem o nome que lhe é

apropriado." [ibid.] A promulgação de regras uniformes e de critérios objetivos deveria pôr um ponto

final à dúvida, à divisão e ao conflito. Mas, num aspecto, que Mêncio havia, muito tempo antes,

declarado essencial, a dinastia Qin fracassara: ela já não contava com o apoio e a confiança do povo,

dando, assim, provas de que perdera o Mandato Celeste.

Dinastia Han

A oposição popular ao governo dos Qin surgiu sob a forma de revoltas na China central em 209 a.C.

Ao mesmo tempo, a oposição aristocrática, que nunca tinha sido, realmente, eliminada, voltou a

manifestar-se no reino reconstituído de Chu, sob a liderança de Xiang Yu. Seu lugar-tenente, Liu

Bang, conseguiu derrotar o terceiro e último imperador Qin no vale do Wei em 206; a seguir, virou-se

contra seu senhor, Xiang Yu, e derrotou-o. Liu Bang logo conquistou território e poder suficientes para

declarar-se imperador, sob o nome de Gao Zu ("Alto Progenitor”), de uma nova dinastia, a dos Han,

que iria governar a China durante os quatro séculos seguintes.

O Período dos Han Anteriores (206 a.C. - 8 d.C.).

Gao Zu (206-195 a.C.) era de origem popular e conservou o seu estilo rude de camponês até o fim,

inesmo vivendo no meio da corte. Ele tinha o agudo sentido do camponês a respeito do possível e do

prático e agia com base no dito do filósofo Xunzi: "O príncipe é o barco; o povo é a água. A água

tanto pode manter o barco quanto virá-lo”.Ele não tinha intenção de submergir e, por isso, agiu com

ponderação, escolhendo com cuidado os seus auxiliares e recompensando-os generosamente. Fez

questão de abolir as severas leis dos Qin e de conter o exército, impedindo-o de saquear. Firme e

geralmente justo, podia igualmente ser generoso, compreendendo as necessidades do homem

comum. Absolutamente, não se mostrava hostil aos prazeres do vinho e das mulheres. Orgulhava-se

de ser sincero, até rude, e descobriu que essa maneira de ser até conferia algum encanto à sua

liderança.

Entretanto, ao abandonar o absolutismo e o legismo Qin, Gao Zu não pensava em voltar ao sistema

Zhou de governantes regionais semi-independentes. Passou seu período de governo a consolidar o

poder centralizado não só pela diplomacia, mas também pela força.

A princípio teve de fazer algumas concessões, e aqueles que o haviam ajudado em sua vitória foram

recompensados com reinos que se localizavam para além da área central de suas próprias 15

comandâncias. Gradualmente, porém, conseguiu que o direito a esses reinos fosse reservado apenas

aos membros de sua própria família imperial. Os mapas e os registros de impostos, compilados pelos

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funcionários Qin da dinastia precedente, foram úteis para a organização do novo governo. Apesar de

impaciente com as sutilezas do comportamento oficial, Gao Zu reconhecia a necessidade de ordem e

dignidade; para tanto, mandou não só organizar um formulário especial de comportamento palaciano,

baseado em preceitos confucianos, mas também que se compusesse uma lista de ancestrais para si

próprio, de modo a ajustar-se à sua nova e excelsa posição. O saber confuciano recebeu novo alento

e as teorias de Confúcio no tocante aos requisitos de justiça e respeito do povo por parte do soberano

parecem ter sido acatadas pelo novo imperador. Seu irmão mais moço, Liu Jiao, foi inclusive um

reputado erudito confuciano.

A transição da caserna à corte não pode ter sido fácil para Gao Zu, pois ele tinha sido um chefe de

bandidos e, depois, um general bem-sucedido. Um de seus emissários, ao voltar de uma missão no

extremo sul da China, citou passagens do Livro das Odes e do da História a Gao Zu, durante uma

audiência. Gao Zu disse: "Obtive o império em cima de um cavalo; por que me importaria com as

Odes ou a História?" O emissário retrucou: "Vós o obtivestes num cavalo, mas podereis governá-lo

num cavalo?"

A combinação de determinação com flexibilidade encontrada em Gao Zu e seus sucessores

imediatos serviu para consolidar o império e estabelecê-lo nas linhas gerais que iria seguir nos

séculos seguintes. O poder da velha aristocracia Zhou estava findo para sempre. As teorias

doutrinárias do governo totalitário e a crueldade em suas execuções, que haviam prevalecido sob os

Qin, foram, em sua maioria, abandonadas. Mas os benefícios resultantes da uniformização e do

governo centralizado dos Qin foram mantidos. Iniciou-se assim uma era de confiança, estabilidade e

prosperidade, que levou os chineses, desde então, a se autodenominarem, com orgulho, os "Filhos

de Han".

Entretanto, a nova paz e a nova segurança não foram fácil e prontamente conseguidas. O equilíbrio

entre, por um lado, o controle regional necessário para estabelecer a lei e a ordem de maneira ampla

e, por outro, o desejo premente de centralismo, foi sempre algo de delicado na história chinesa.

Vimos que o governo dos Han anteriores havia outorgado alguma independência a áreas periféricas,

sem jamais pretender que permanecessem independentes. Uns poucos reinos e alguns marquesados

continuaram a existir nominalmente até o fim da dinastia, mas nenhum deles teve mais do que um

poder aparente depois de 154 a.C. Uma ameaça mais séria ao governo central residia no poder e na

ambição da viúva de Gao Zu, a imperatriz Lu, que governava efetivamente através de seus parentes

masculinos, enquanto, no trono, estava um imperador-infante. Mas com sua morte, em 180 a.C.,

funcionários que haviam permanecido fiéis à memória e à política de Gao Zu Praticamente baniram a

família Lu da capital. A ameaça de rompimento e facciosismo representada pelas famílias das

imperatrizes foi muito séria mais tarde, durante o declínio da dinastia dos Han, e voltou à tona,

periodicamente, em dinastias seguintes.

Eram esses os perigos internos ao estabelecimento do poder dos Han, mas as ameaças externas

não eram menos graves. Vinham, como de hábito, do Norte, pois grande parte da história chinesa é

ocupada pela incursão de nômades das estepes e pela defesa e contra-ataque dos chineses. A

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riqueza acumulada nas terras agrícolas, ocupadas sedentariamente, do Norte da China provou ser,

de tempos em tempos uma poderosa tentação para esses pastores relativamente pobres e inquietos.

Mobilidade que lhes davam seus vigorosos pequenos cavalos mongólicos permitia lhes desfechar

ataques rápidos e predatórios e tomava-os também difíceis de capturar, pois dissolviam-se antes de

qualquer movimento retaliativo chinês. Por outro lado, eles dividiam-se com freqüência em feudos

tribais e podiam unicamente causar pouco dano em pequenos bandos.

Nessa época, a nação nômade dos Xiong-nu (um povo de origem turca, conhecido no Ocidente como

hunos) uniu-se sob o comando de líderes vigorosos e deu início no Shanxi, em 201 a.C., a uma série

de ataques, que forçaram os chineses a transladar-se, durante certo tempo, para o Sul da Grande

Muralha e levaram os Xiong-nu, em 166, para muito perto da própria capital, Changan. Como Gao lu,

nas primeiras fases, estivesse preocupado em consolidar a dinastia, recorreu a um estratagema

freqüentemente repetido depois, o da tentativa de subornar os invasores. No caso de Gao lu, o

incentivo oferecido- e aceito - foi o casamento de uma princesa chinesa com o filho do "imperador"

Xiong-nu, acompanhado de presentes de seda, álcool, arroz e dinheiro de cobre.

Os reinados dos sucessores de Gao lu foram comparativamente curtos, mas, com a ascensão do

sexto imperador Han, Wudi, o "Imperador Marcial", que governou durante 54 anos (141-87 a.C.), a

China entrou num período de segura expansão militar que estendeu suas fronteiras quase até a sua

moderna posição, com a exceção da grande área de território costeiro em frente a Formosa. Han

Wudi foi indubitavelmente um dos mais dinâmicos da longa lista de imperadores chineses. Muito

ambicioso e capaz, introduziu um novo estilo de controle pessoal do processo governamental.

Substituiu os funcionários regulares, na prática, por um corpo de Escritores Palacianos, por quem

fazia proclamar uma série de editos e ordens que cobriam cada departamento de assuntos civis e

militares. Os Escritores, por sua vez, decidiam, dentre os inúmeros documentos (o governo da China

tinha mais burocracia do que outro qualquer do mundo) os que deveriam chegar à mesa do

imperador. O poder dos Escritores Palacianos pode ser avaliado pelo fato de que o seu Intendente

era, ao mesmo tempo, comandante-em-chefe do exército. Entretanto, permaneciam servos de Wudi,

pois este fiscalizava pessoalmente cada departamento. Os perigos óbvios desse sistema altamente

centralizado eram, de algum modo, atenuados pelo fato de que Wudi era, em muitos aspectos, um

soberano esclarecido. Ele estimulou o renascimento dos estudos confucianos e foi enérgico em

recrutar os eruditos mais talentosos para a sua administração. A esse respeito, proclamou um famoso

texto:

QUEREMOS HERÓIS! UMA PROCLAMAÇÃO

Trabalhos excepcionais exigem homens excepcionais. Um

cavalo indócil ou escoiceador pode vir a tornar-se um animal

muito valioso. Um homem que é objeto de ódio de todos pode

mais tarde realizar grandes obras. O que acontece com o

cavalo intratável passa-se também com o homem arrogante: é

apenas uma questão de treinamento. NÓS, desse modo,

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ordenamos aos vários funcionários distritais que procurem

homens de talento brilhante e excepcional, para se

transformarem em NOSSOS generais, NOSSOS ministros e

NOSSOS emissários aos Estados distantes.

[Giles, p.76]

Mas a recomendação de candidatos qualificados para os cargos, feita pelos funcionários existentes,

não foi suficiente. A forma de recrutamento adotada pelos Han representa uma transição entre a

primitiva nomeação de funcionários escolhidos nas famílias aristocráticas e um sistema posterior,

plenamente desenvolvido, de seleção por exame competitivo, que só foi plenamente implantado na

dinastia dos Tang (618-907 d.C.). Na dinastia dos Han, enviava-se de quando em quando um pedido

de recomendação às províncias, e os candidatos selecionados eram submetidos a exames escritos

na corte. O Grão- Mestre-de-Cerimônias corrigia as provas e submetia os resultados ao imperador,

que fazia sua própria seleção. Os estudantes da Universidade Imperial tinham de prestar exames

anuais, e as nomeações para os cargos oficiais eram feitas pelo imperador a partir das duas

categorias de aspirantes.

A julgar pelas tentativas de Han Wudi no sentido de encontrar homens capazes de preencher os

cargos da administração imperial, ele deve ter sido um chefe bem rigoroso. Dos sete Chanceleres

que ocuparam o poder entre 121 e 88 a.C., todos, à exceção de um, morreram ou caíram em

desgraça durante o seu mandato. Ele era igualmente duro com os generais, que desempenhavam

tarefas árduas e freqüentemente ingratas em campanhas nos desertos do Extremo Noroeste.

Entretanto, Wudi recebeu respeito e lealdade, pois durante seu longo reinado foram manifestos os

altos níveis de moral, patriotismo e autoconfiança. Ele possuía certa erudição e escreveu poesia que

reflete ainda um tom universal de sentimento pessoal.

Sobre a morte de Li Furen

Já não se ouve o rumor de sua saia de seda.

No chão de mármore acumula-se a poeira.

Seu quarto vazio está frio e quieto.

Folhas caídas empilham-se nas portas.(...)

De que modo poderei descansar meu coração sofredor?

Apesar do crescente nível cultural do período Han, os líderes políticos estavam dominados pela

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superstição e pela ilusão da magia, características da época. Um escravo esperto da corte de Wudi

anunciou que podia obrigar os Imortais daoístas a aparecerem. Passou a desfrutar uma posição de

honra e riqueza, e até a filha do imperador lhe foi dada em casamento. Como suas promessas não se

concretizassem, ele partiu “para buscar os mestres“. Entretanto, quando os agentes do imperador

descobriram que ele não havia visitado qualquer mestre, caiu em desgraça e foi executado. Um

famoso erudito da corte, Dong Fangsuo, teve melhor sorte. Descobriu-se que bebera uma poção do

elixir da imortalidade preparado para o imperador. Wudi ficou furioso e condenou-o à morte, mas

Dong Fangsuo, com admirável presença de espírito, logrou salvar-se, arquitetando a seguinte

resposta:”Se o elixir era verdadeiro, vossa Majestade não pode fazer-me mal; se não era, que mal fiz

eu?"

A mais importante realização do reinado de Wudi foi sem dúvida a expansão do poder chinês e dos

limites territoriais da China, fatos que merecem um exame mais detido. A expansão deu-se em três

direções: para o noroeste, para o nordeste e para o sul. O primeiro imperador Han, Gao Zu, como

vimos, teve de enfrentar o problema - que, mesmo naquela época, não era novo - dos nômades das

estepes. Os Xiong-nu haviam conseguido uma forte liderança antichinesa ao fonnarem uma

confederação regional de tribos. Havia na corte chinesa uma corrente contrária à solução conciliatória

e ao acordo, com base no fato de que as doações feitas aos líderes Xiong-nu aumentavam não só

sua riqueza, mas também seu poder de oposição. Por outro lado, a política exterior chinesa de

caráter pacífico havia conseguido tirar proveito dos acordos de paz com os nômades, da seguinte

maneira: os reféns das tribos que eram enviados à corte chinesa como garantia de bom

comportamento não só eram tratados magnificamente, mas também recebiam educação chinesa e

até postos nas funções palacianas. Assim, quando voltavam a seus lares, incentivavam amizade com

a China e davam oportunidade de os chineses intervirem na política focal, quando fosse o caso.

Seguindo a agressiva política externa de Han Wudi, um de seus mais capazes generais, Zhang Qian,

ofereceu-se como voluntário para intervir em assuntos tribais no Noroeste, a fim de tentar assegurar

uma aliança com os Yuezhi contra seus tradicionais inimigos, os Xiong-nu. Zhang Qian partiu em 139

a.C., acompanhado apenas de uma guarda de 100 homens, e foi prontamente capturado pelos

Xiong-nu. Ficou prisioneiro durante dez anos mas, quando a vigilância de seus captores abrandou,

evadiu-se com alguns de seus homens e da mulher Xiong-nu com quem casara enquanto esteve

preso. Com extraordinária coragem e fidelidade às ordens, para não mencionar a suprema

autoconfiança de que os Han davam sobejas provas, Zhang Qian não rumou para leste, em direção à

China, mas para oeste, o objetivo de sua missão original. Após meses de viagem, descobriu que os

Yuezhi, um povo de língua indo-européia, abandonaram o vale de Ili para ir fixar-se em Fergana.

Conseguiu finalmente alcançá-los na região setentrional do Afeganistão, conhecida como Bactriana.

Eles estavam relutantes em voltar para o Leste, onde os aguardavam de novo as provações da

guerra das estepes, embora Zhang Qian houvesse passado um ano com eles, num infrutífero esforço

para persuadi-los. A seguir, atacaram o Norte da Índia, fundando o Império Kush. Mas a importância,

para a China, da audaciosa aventura de Zhang Qian foi que os chineses, pela primeira vez, tomaram

conhecimento do mundo ocidental além de suas fronteiras. Ainda que, nesse tempo, fosse mínimo,

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na região, o poder dos reinos macedônios que sucederam a Alexandre, o Grande (morto em 323

a.C.), o contato com os mundos parto, grego e romano tinha sido mantido. Zhang Qian retomou, pois,

à China em 126 a.C. - com sua esposa Xiong-nu e um sobrevivente de seu corpo de guarda -

trazendo informações inteiramente novas à corte chinesa. Em 115 a.C. foi outra vez mandado para o

Ocidente, visitando Fergana e a Sogdiana. Colheu mais informes sobre essas regiões e descobriu

grandes possibilidades de comércio para a China, particularmente em razão da demanda de seda.

Durante esse tempo os generais de Han Wudi e seus sucessores imediatos vinham desenvolvendo

uma intensa atividade militar. Havia uma constante movimentação de grandes exércitos. Em 133 a.C.

um exército de cerca de 300 mil homens, com cavalaria e carros de combate, atacou os Xiong-nu. Ao

todo, nos 80 anos entre 136 e 56 a.C., houve 25 grandes expedições; 14 para o Noroeste e o Oeste,

três para o Nordeste (Manchúria e Coréia) e oito para o Sul. As expedições para o Sul eram

relativamente mais fáceis, lhas as que visavam ao Noroeste árido, com rotas de suprimento longas e

precárias, e contra inimigos determinados e experientes, ocasionaram enormes perdas de vida. Vinte

comandos foram estabelecidos entre 130 e 95 a. C. em áreas fronteiriças. Guarnições eram

instaladas para defender as rotas militares, e só na época de Wudi foram enviados 2 milhões de

chineses com o objetivo de colonizar o Noroeste. Mesmo os vastos recursos da China, era claro,

estavam exaurindo-se. Mas, em 119 a.C., o poder Xiong-nu já não era tão grande e, em 52 a.C., o

ramo meridional dessa nação submetia-se completamente à China, enquanto o ramo setentrional

deixava de ser uma ameaça tão grande.

Duas das numerosas expedições ao Noroeste merecem menção especial. Em 102 a.C., um general,

Li Guangii, conseguiu trazer de Fergana alguns exemplares de uma raça de cavalos altos, muito

apreciada nessa região, juntamente com 3 mil outros de raça inferior. Os cavalos de Fergana

tomaram-se imediatamente um símbolo de status e continuaram a sê-Io nas dinastias subseqüentes.

E três anos mais tarde, um outro general, Li Ling, com uma infantaria de 5 mil chineses, derrotou uma

cavalaria de 30 mil homens, com uma nova tática. Em sua linha de frente colocou a infantaria,

armada de escudos e piques; dispôs, na retaguarda, arqueiros com poderosas bestas, algumas de

arremesso múltiplo, que lançavam várias flechas de uma só vez. Contra essa formação, eram inúteis

os ataques da cavalaria. Foi o contrário do que ocorreu durante a vitória dos partos sobre os romanos

em Carras em 54 a.C., quando arqueiros montados derrotaram os romanos, a melhor infantaria da

época. Mas Li Ling não recebeu reforços e teve de render-se, quando seu suprimento de dardos e

flechas se esgotou. Ele caiu em desgraça diante do tirânico Wudi e, quando Sima Qian, o famoso

historiador, ousou intervir em favor do general, Wudi condenou o erudito ao bárbaro castigo da

castração.

No Nordeste, o objetivo militar dos Han foi o flanco exterior dos Xiong-nu, cuja liderança havia sido

reconhecida pelos povos da Mongólia oriental e da Manchúria. Um comando chinês foi estabelecido

na Manchúria em 128 a.C. O Norte e o Centro da Coréia foram conquistados em 106 e criaram-se

vários comandos; desses, Lak Lang foi o mais importante. Os vestígios arqueológicos desse período

do domínio chinês na Coréia atestam um notável grau de refinamento e luxo. Zhang Qian havia

descoberto, na Bactriana, que os indianos possuíam um tipo de seda chinesa, proveniente do

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Sichuan, no Sudoeste da China. Isso levou Wudi a pensar na existência de um caminho ligando

Sichuan à Índia, aberto por motivos comerciais. Na verdade, o terreno da rota direta era impraticável,

e a seda provavelmente chegava à Índia através do Noroeste da China e da Rota da Seda. Mas a

idéia de uma ligação direta com a Índia foi, em parte, a origem dos esforços de Wudi para explorar a

China meridional e submetê-Ia ao seu domínio. A geografia do Sui era pouco conhecida nos

primeiros tempos da dinastia dos Han. Quando se serviu a Um zeloso funcionário da capital em visita

a Cantão, amoras como sobremesa, ele percebeu que aquela fruta não era um produto da região. Ele

associou-a a um tipo de amora cultivada no Sichuan, e graças a esse fato o governo Han descobriu

uma rota já em operação, que ia de oeste para leste e era utilizada pelos povos tribais que se serviam

do sistema do rio do Ocidente. Se se descobrisse uma rota do Sichuan à lndia, o comércio poderia

fluir diretamente do oceano, em Cantão, até as regiões ocidentais. De qualquer modo, uma

campanha de vulto foi organizada em 111 a.C. e a região sul da China, chamada Nan Yue, foi

conquistada por seis exércitos; alguns contingentes vieram pelo mar, outros, diretamente do sul, e

outros mais, pela nova rota Sichuan-rio Ocidental. Cantão foi tomada, bem como as províncias de

Guang-dong, Guangxi e o Tonquim, na lndochina, que passaram a fazer parte do império.

Durante a dinastia dos Han, o exército tornou-se organizado e desenvolveu-se a um grau até então

desconhecido. Havia uma guarnição postada na capital, Changan. Forças expedicionárias eram

enviadas em campanhas particulares, de acordo com as necessidades. E mantinha-se uma

permanente defesa na Grande Muralha e em outros postos fronteiriços. A eficiência niilitar chegou a

um alto nível na Grande Muralha. No período dos Han, essa famosa construção consistia numa série

de torres ou postos de comando, em tijolo e a intervalos regulares, usualmente não muito

distanciados uns dos outros para poderem ser mutuamente observados, e ligados por

entrincheiramentos com algumas portas onde sentinelas fiscalizavam meticulosamente passaportes e

todo o trânsito que entrava ou saía, para impedir o contrabando. (A muralha posterior, da dinastia

Ming, com revestimento de pedra e reparos coroados de ameias, era muito mais complexa.) Os

postos de observação trocavam entre si sinais com fogo e fumaça, e bandeiras vermelhas e azuis, a

intervalos fixados com precisão ou em casos de emergência. Havia um serviço regular de correio, e a

contabilidade era mantida em dia, inclusive para os materiais armazenados. Empregavam-se cães

policiais adestrados. Os soldados fabricavam flechas e encarregavam-se da conservação da muralha.

No período Han, a muralha estendia-se até à fronteira em Dunhuang, onde a Estrada da Seda

bifurcava para cruzar o deserto de Gobi de oásis em oásis, juntando-se de novo em Kagshar para

cobrir a enorme distância na direção oeste. O problema do abastecimento ao longo das rotas

militares foi parcialmente resolvido por fazendas mantidas pelo governo, nas quais se estabeleceram

colônias de veteranos, um método muito semelhante ao usado pelos romanos. Recrutas e ex-

detentos eram usados para o impopular serviço de guarnecer a muralha. Mas, no final do período dos

Han, a guarnição era formada principalmente por veteranos e mercenários. As forças mercenárias

eram, em sua maioria, pagas com fundos conseguidos através de um imposto que substituía o

serviço militar compulsório. A política expansionista da dinastia dos Han anteriores e as grandes

obras públicas por eles empreendidas tornaram-se muito onerosas para os cofres do governo. Han

Wudi procurou resolver esse problema com uma série de medidas fiscais. Restabeleceu os

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monopólios estatais do ferro, do sal e da cunhagem de cobre, e introduziu um novo monopólio, o das

bebidas alcoólicas. Colocou em operação um sistema de "nivelamento", no qual o governo comprava

grãos nos períodos de abundância, e estocava-os para revendê-los em épocas ou localidades de

escassez. O principal objetivo era obter um lucro para o Estado, embora a medida também se

destinasse a assistir as classes populares, pois ajudava a estabilizar os preços. Wudi passou a cobrar

taxas especiais de navios e carroças, vendeu cargos do governo aos ricos e exigiu "doações" de

pessoas proeminentes. Emitiu "certificados em pele de gamo" que certos nobres eram compelidos a

adquirir ao preço de 400 mil moedas de cobre. Também procedeu a uma desvalorização da moeda,

assim criando, até certo ponto, um precedente perigoso para os seus sucessores no trono.

Esses estratagemas fiscais obtiveram moderado êxito por algum tempo mas o mais pertinaz de todos

os problemas provou ser a propriedade da terra e concomitantes impostos. A população crescia, o

que significava menos terra para cada camponês. Ao mesmo tempo, as grandes famílias

terratenentes estavam aumentando a extensão de suas propriedades e estas, com freqüência,

estavam isentas de impostos. Assim, a base tributária diminuía, como no Japão do período Heian, em

data posterior, e os camponeses remanescentes estavam suportando um ônus desproporcional.

Foram realizados constantes esforços legislativos para corrigir essa situação, limitando a área das

propriedades dos grandes senhores e restabelecendo assim a proteção do governo e, por

conseguinte, o controle do campesinato, que tinha sido a grande força da dinastia dos Han em seus

primórdios. Mas esses esforços foram, em grande parte, infrutíferos, e as propriedades privadas

continuaram crescendo. Apesar do poder centralizado da dinastia, os governantes não pareciam ser

mais capazes de sustar essa tendência do que os irmãos Gracos e seus sucessores em Roma,

quando quiseram impedir a usurpação das terras do Estado por senadores e ricos cavaleiros. As

circunstâncias eram diferentes mas as razões as mesmas; em ambos os casos, um número

comparativamente pequeno de lati- fundiários solidamente instalados, os funcionários da corte na

China e os senadores em Roma, controlavam o funcionamento cotidiano do governo.

A interação política entre o imperador e os funcionários do período dos Han constitui um paradigma

para grande parte da história subseqüente da China, quando o padrão se repetiu em várias formas,

pois um sistema autocrático não elimina a atividade humana da política, mas altera tão-somente sua

manifestação. A maneira autocrática como Wudi conduzia os negócios do Estado era quando muito,

benéfica enquanto um imperador fosse tão forte e capaz quanto ele. Mas, depois de sua morte em 87

a.C., um general, He Guang, estabeleceu praticamente uma ditadura sob o sucessor de Wudi e

obteve para seus próprios familiares a maioria dos principais cargos. As facções que se formaram em

torno dos favoritos do palácio, eunucos poderosos e, especialmente, dos parentes masculinos das

imperatrizes, foram fatais para um governo bem organizado. Wudi tinha chegado a uma solução

simples quanto ao problema dos parentes, pois quando escolheu o seu herdeiro legítimo ordenou a

execução da imperatriz-mãe; mas os seus sucessores não puseram em prática essa cruel

salvaguarda. Graças à combinação dos fatores mencionados acima, o poderio da Casa dos Han

declinou rapidamente e, no ano 9 d.C., um membro da poderosa família Wang, Wang Mang,já no

exercício de um alto cargo e sobrinho de uma imperatriz, usurpou o trono e tentou fundar uma nova

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dinastia.

Wang Mang (9-23 d.C.), um fervoroso confucionista, restabeleceu o que considerava serem os títulos

e as instituições da dinastia dos Zhou, mas suas reformas econômicas foram radicais. Reinstituiu o

sistema de "equalização", introduziu créditos agrícolas e manipulou o valor da moeda. Propôs uma

solução extrema para o problema da terra, "nacionalizando-a" e redistribuindo-a aos camponeses. Os

escravos particulares, menos de 1% da população, seriam da mesma forma propriedade do governo.

Mas essa tentativa sofreu a inevitável' oposição dos proprietários de terra. Não se encontrou, por

outro lado, nenhum meio eficaz de redistribuir a terra confiscada. Irrompeu uma revolta camponesa

em 17 d.C., no Shandong, sob a liderança de uma mulher vigorosa conhecida como Mãe Lu. Quando

a falta de cuidado com os diques e pesadas chuvas geraram uma importante mudança no curso

inferior do rio Amarelo, provocando enchentes desastrosas, a revolta espalhou-se às planícies

centrais. Os rebeldes, com os rostos pintados para parecerem demônios e adotando símbolos

religiosos, tomaram-se conhecidos como "Sobrancelhas Vermelhas" e abriram um precedente, muitas

vezes imitado em dinastias posteriores, de um movimento genuinamente popular surgido em tempos

de crise, sob a égide de uma religião. A combinação das classes mais altas e das mais baixas na

oposição ao novo regime mostrou ser demasiado forte para Wang Mang, que acabou sendo

derrotado e morto em 23 d.C. Sua reputação foi prejudicada pelo simples fato de não ter conseguido

fundar uma nova dinastia, o que levou historiadores ortodoxos a tachá-Io de usurpador.

Dinastia Han Posterior

O novo governante que devolveu o poder aos Han era, ele próprio, um membro da família imperial

original, a casa de Liu, e recebeu o epíteto de Guang Wudi, o "Brilhante Imperador Marcial" (25-57

d.C.). Líder vigoroso, sufocou a revolta dos "Sobrancelhas Vermelhas" e libertou muitos que haviam

sido reduzidos à escravidão durante o período de agitação. As guerras tinham eliminado numerosos

aristocratas e latifundiários, o que teve o efeito de melhorar a arrecadação direta de impostos pelo

Estado. O novo imperador, partindo da estaca zero, não tinha na corte tantos funcionários e

dependentes a quem manter. O tesouro recuperou-se e, sob seu pulso firme, o governo alcançou um

certo grau de estabilidade. O sistema de irrigação do rio Wei fora destruído e a velha capital,

Changan, tinha sido severamente castigada. Por outro lado, os imperadores do período dos Han

posteriores, apesar do que se afirmou, foram forçados a depender, em larga medida, da classe dos

proprietários de terra, cujo centro de gravidade se situava mais para o leste. Por todas essas razões,

Guang Wudi mudou sua sede de Changan mais para o leste, para Luoyang, fundando o período que

se conhece como da dinastia dos Han posteriores ou Oriental.

O segundo imperador, agora assente em bases mais firmes, voltou suas atenções para a

recuperação do domínio sobre a Ásia central. Para dar execução a seus planos, contou com um dos

maiores generais chineses, Ban Chao. O apogeu do anterior poderio chinês na Ásia central e no

Noroeste verificara-se em 59 a.C., com a nomeação de um Protetor-Geral das Regiões Ocidentais.

Mas o cargo - e com ele o controle chinês - decaíra aos poucos em importância, sobretudo durante o

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tumultuado período associado ao fim dos Han anteriores. Ban Chao, a partir de 73 d.C., usou de

todos os meios diplomáticos e militares ao seu alcance para reafirmar e consolidar o domínio chinês;

quando, em 91, foi nomeado Protetor-Geral das Regiões Ocidentais, ele já estava em condições de

controlar toda a bacia do Tarim desde o seu quartel-general situado no limite norte da região, em

Kucha. Em 76, Ban foi afastado durante breve período, por motivos políticos, mas logrou persuadir o

imperador de que precisaria apenas de um reduzido quadro de oficiais e homens experientes

chineses para organizar forças locais fiéis contra os Estados ainda não submetidos. Essa política,

pacientemente executada ao longo de 17anos, foi extremamente bem-sucedida e o próprio Ban Chao

granjeou o respeito de numerosas tribos, graças às suas qualidades de estadista.

Em sua maior expedição, Ban Chao conduziu um exército de 70 mil homens através das montanhas

Tian Shan até o mar Cáspio, ou seja, até quase as fronteiras da Europa, sem encontrar nenhuma

resistência séria. Depois de cobrir essa prodigiosa distância, mais de 6 mil quilômetros desde

Luoyang, enviou um representante à Pártia, à Mesopotâmia e ao Império Romano, então (em 97

d.C.) governado pelo imperador Nerva. O enviado informou que a Pártia era um país que produzia

excelentes soldados. Dirigiu-se em seguida, pela rota das caravanas, para as margens do golfo

Pérsico. Amendrontado por uma lenda de marinheiros que afirmava que os que se aventuravam pelo

golfo Pérsico e pelo oceano Índico poderiam precisar de três meses a dois anos para a viagem e que

muitos, em virtude de alguma propriedade do mar, morriam de saudades da pátria, o emissário

desistiu da tentativa de chegar ao mundo romano. É provável que os partos fizessem todo o possível

para evitar uma estreita ligação entre os poderosos chineses e seus inimigos tradicionais, os

romanos. Além disso, o comércio da seda era rendoso para todos os que pudessem permanecer

como intermediários, e especialmente para os partos. Mas, através de informações trazidas por Ban

Chao, que retomou à China em 102, e pelos gregos que visitaram a China em 166 e 226, é evidente

que os chineses sabiam mais sobre Roma do que os romanos sabiam sobre a China. As histórias

dinásticas dos Han posteriores e de dinastias menores subseqüentes aludem sumariamente a esses

fatos:

O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de

línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas

cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas

bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os

governantes desempenham suas funções durante um curto

espaço de tempo e são escolhidos entre os homens mais

valorosos. Quando as coisas não vão bem, são substituídos.

[Há aí um anacronismo, pois trata-se de uma referência aos

cônsules da época da República.] O povo de Daqin possui

elevada estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses.

Sua terra produz ouro e prata, todas as espécies de bens

preciosos, âmbar, vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da

China, através de Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que

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transformam em fina gaze. Os mágicos de Daqin (sírios?) são

os melhores do mundo. Sabem engolir fogo e fazer

malabarismos com várias bolas. Os Daqin são honestos. Os

preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. Os

silos e o tesouro público estão sempre repletos. O povo de Anxi

impede-os de comunicar-se conosco por terra; além disso, as

estradas são infestadas de leões, o que torna necessário viajar

em caravana e com escolta militar. Os daqin primeiramente

enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.). Desde então,

seus mercadores têm feito freqüentes viagens a Rinan

(Tonquim).

[Citado em C.P. Fitzgerald - China: A Short Cultural History, p.

195.]

O relato pode ser sumário, mas está basicamente correto. A ignorância romana sobre a China, por

outro lado, era profunda. Os romanos associavam a China a pouco mais do que à seda, a tal ponto

que o adjetivo sericus, "chinês", derivado do substantivo Seres, veio a significar, por transferência,

"sedoso" (sericos pullvilos: pequenas almofadas de seda: Horácio, Epodos, 8: 15). Horácio menciona

os chineses em vários contextos geográficos amplamente separados, associados com a Pártia, a

Bactriana e o rio Don, na Rússia atual. Na verdade, ele estava escrevendo poesia e não geografia

exata. Além disso, apreciava a inteligência dos contrastes inesperados. Mas permanece a impressão

de que Horácio e seus leitores se mostravam extremamente vagos, para não dizer confusos, a

respeito da localização da China, e ignorantes sobre seus costumes. O mais gritante erro a respeito

dos chineses vem do escritor Lucano, que foi executado por Nero em 66 d.C. Lucano coloca os

chineses nas nascentes do Nilo e os faz vizinhos dos etíopes.

Os dois grandes impérios da China e de Roma mantinham, pois, contatos através do comércio da

seda, mas jamais se encontraram realmente. Os indícios de contato são tênues e mostram apenas

um intercâmbio mínimo. Duas moedas antoninas foram encontradas em Phnam, um porto no delta do

Mekong, que era um entreposto florescente para o comércio ultramarino na dinastia dos Han, mas

isso não prova a presença de romanos ali. Em 42 a.C. soldados chineses no antigo reino helenístico

da Sogdiana derrotaram um grupo do Xiong-nu e de tropas estrangeiras que, possivelmente, eram

soldados romanos capturados. Pinturas da batalha foram anexadas a um relatório enviado ao

imperador chinês; essa era uma prática que os romanos observavam em suas vitórias, mas nunca foi

costume chinês. Uma cidade existiu na própria China depois de 79 a.C., chamada Li Jian. Este é o

nome que os chineses davam a Alexandria, e os métodos da nomenclatura chinesa indicariam que a

cidade era habitada por pessoas vindas de Alexandria, no mundo romano. A não ser por esses

pequenos fatos, o mundo greco-romano e a China e seus satélites existiram como entidades

separadas, cada uma considerando a si própria o centro do mundo civilizado. O intercâmbio entre a

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Europa e a Ásia oriental iria começar, de maneira muito reduzida, no período medieval, mas só se

tornaria culturalmente significativo a partir do século XIX.

Voltando ao desenrolar dos acontecimentos no período dos Han posteriores, os reinados dos três

primeiros imperadores, até 88 d.C., foram marcados por solidariedade interna e expansão externa ou,

melhor dizendo, recomeço dessa expansão. Depois disso, porém, os problemas aumentaram e

iniciou-se a decadência. A situação na fronteira norte mostrou diferenças interessantes, se

comparada à existente no período dos Han anteriores. As tribos semi-sedentárias, influenciadas pela

civilização chinesa, formaram uma região-tampão que protegia a China propriamente dita. Não houve

incursões maiores de povos bélicos independentes no Extremo Norte ou no Oeste. As dificuldades

surgiram, na verdade, nas tribos incorporadas sob os Han anteriores na própria China. Algumas eram

formadas por antigos nômades, enquanto outras eram constituídas de montanheses de origem

tibetana. Ambos os grupos sentiram-se explorados pela burocracia chinesa. A China, em sua

capacidade "civilizadora", estava sempre tentando transformar os reinos dependentes nos chamados

"territórios militares" e, em seguida, em "regiões administrativas" comuns, como as do resto de seu

território. Se fosse possível converter os recém-chegados em agricultores, poderiam ser tributados,

recrutados para o exército e obrigados a contribuir com um mês por ano de trabalho compulsório

(corvéia). 'Aqueles que se recordavam da liberdade de uma antiga vida nômade (e esqueciam suas

provações) revoltavam-se contra todo esse processo, ainda mais quando viam seus agressivos

primos, além-fronteiras do império, receberem presentes valiosos com que os faziam ficar quietos.

(De fato, para manter a paz com esses vizinhos, gastavam-se vultosas somas: 8 mil rolos de seda em

51 a.C., elevados para 30 mil rolos em I d.C.; dos 10 bilhões de caixas [ou moedas de cobre] de

receita governamental, cerca de um terço era gasto com essa diplomacia de "ajuda externa".) Não

surpreende, portanto, que os ex-nômades explorados dentro das fronteiras do império estivessem

freqüentemente em pé de guerra.

Essa intranqüilidade e o recuo de antigas colônias fronteiriças deu origem à migração de muitos

camponeses, que buscavam refúgio e emprego junto aos grandes proprietários. Estes tornavam-se

mais ricos e poderosos do que nunca dentro do Estado. O próprio Guang Wudi, antes de tornar-se

imperador, possuía um vasto território circundado de uma muralha com portas. Tinha seu próprio

mercado e um exército privado para defendê-lo. A irrigação, a criação de gado e os viveiros de peixes

em tais propriedades propiciavam-lhes completa independência econômica em tempos difíceis.

Se os únicos fatores importantes na estrutura social dos Han posteriores tivessem sido os

funcionários terratenentes e a enorme massa de camponeses, a situação poderia ter permanecido

estável, como o foi durante os três primeiros reinados. Mas os eunucos da corte ascenderam ao

poder como cruéis rivais dos funcionários e, em 135 d.C., foi-lhes dado o direito de adotar filhos. A

medida deu a esses infelizes oriundos de uma classe mais baixa da sociedade um incentivo para

formar famílias e legar riqueza e poder. Seria um estudo interessante para a nova disciplina da psico-

história examinar como a carência sexual dos eunucos palacianos, freqüentemente voluntária por

razões de carreira, acendia sua ambição e aumentava o furor com que combatiam os funcionários

privilegiados, em luta por riqueza, posição e um lugar ao sol.

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Um grupo de funcionários e donos de terras tramou uma conjura contra os eunucos em 167 mas foi

desmascarada e os conspiradores afastados de seus cargos e mandados para o exílio. As famílias

latifundiárias tinham em suas propriedades rurais as bases do seu poder local, nas quais se sentiam

normalmente seguras. Mas importantes revoltas agrárias, em 184, ameaçaram-nas no campo, e os

camponeses, sem qualquer status político oficial, mostraram ser capazes de ameaçar todo o sistema

estatal pelo peso numérico, puro e simples, somado à sua força militar. Nessa situação, os eunucos

retomaram temporariamente ao poder mas foram derrotados, de modo decisivo, em 189, numa

vigorosa ação armada sob o comando de um general da Guarda Imperial que mandou massacrar

mais de 2 mil eunucos.

A crise agrária de 184 foi semelhante mas muito mais grave do que a da revolta dos "Sobrancelhas

Vermelhas", a qual apressou o fim do pequeno interregno de poder de Wang Mang. Aumentaram

imensamente os bandos de camponeses errantes, em conseqüência das enchentes na bacia inferior

do rio Amarelo. Esses homens desesperados encontraram um foco e um propósito no movimento

daoísta conhecido como os Turbantes Amarelos. Dado que não havia lugar num Estado autocrátIco

para que movimentos dissidentes se expressassem de forma política, nessa e em muitas outras

crises subseqüentes, o descontentamento geral e a oposição combinavam-se sob uma égide

religiosa. A rebelião dos Turbantes Amarelos foi comandada pelo patriarca de uma seita daoísta

conhecida como os Taiping, um certo Zhang Jiao, ajudado por seus dois irmãos. Esse líder era

evidentemente uma figura carismática, a quem se atribuíam poderes de cura, bem como o talento e a

energia para o comando militar. Como grassavam epidemias em conseqüência das enchentes, seu

poder de cura atraiu muitos adeptos. O título da seita, Taiping, "grande paz", sugeria uma idade de

ouro onde os homens seriam todos iguais, viveriam em paz e compartilhariam os bens materiais. Por

isso as comunidades dos Turbantes Amarelos passavam muito tempo em observâncias religiosas,

jejuns de purificação e confissão pública de pecados. Esses encontros religiosos incluíam , transes

coletivos, acompanhados de música e de prostrações incessantes. A histeria coletiva assim induzida

terminava muitas vezes em orgias em que homens e mulheres "misturavam seus bafos" (he qi).

Quando os Turbantes Amarelos passaram à revolta aberta em 184, não tardou a haver 360 mil

homens em armas e, em 188, a rebelião tinha-se estendido desde o Shandong na China oriental até

o Shanxi, na parte oriental do país. Ao mesmo tempo, outra rebelião de características semelhantes

irrompeu em 190, estabelecendo, durante certo tempo, um Estado independente na parte sul do

Shaanxi e no Sichuan. Essa revolta ficou conhecida como a dos "Cinco Celamins de Arroz", cujo

nome deriva da quantidade de arroz com que os membros precisavam contribuir para os cofres

comuns. Aboliram a propriedade privada, instituíram a distribuição gratuita de cereais aos viajantes e

construíram "albergues da igualdade", onde estes últimos podiam comer sem pagar nada.

Encorajaram os membros a se purificarem dos pecados através de trabalho na manutenção das

estradas. Essa! medida é uma variante interessante da corvéia usual imposta pelo governo, agora.,

cumprida pelos camponeses com um certo grau de livre-arbítrio, mas sob sanção religiosa. A

expiação parece ter sido um forte incentivo, uma vez que essas seitas acreditavam que as doenças

resultavam do pecado. Embora o centro dos "Cinco Celamins de Arroz"[Celamin, antiga medida de

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capacidade para cereais, equivalente à 16.8 parte de um alqueire, ou cerca de 2 litros] se localizasse

no Oeste da China, talvez valha a pena observar que o Shandong e a área costeira do Nordeste, que

por tanto tempo se destacaram com seu entusiasmo pela mágica daoísta e com a revolta dos

Turbantes Amarelos, foi também a região, antes do regime comunista, em que seitas milenares e

fundamentalistas cristãs assumiram as formas mais extremas.

Essas rebeliões enfraqueceram seriamente a dinastia dos Han posteriores, já debilitada por facções

na corte, pois três grandes famílias aliadas a imperatrizes tinham dominado a situação de 88 d.C. a

144 d.C. O fim chegou em razão da rivalidade de generais a quem se conferiram grandes poderes

para enfrentar as revoltas camponesas. Dong Zhuo saqueou e queimou a capital em 190, o que

acarretou a perda da Biblioteca Imperial e dos arquivos dos Han. Sua crueldade excessiva causou

seu assassinato, e o poder supremo no Norte passou às mãos do famoso general Cao Cao, filho

adotivo de um eunuco. O império então dividiu-se em três regiões geográficas naturais, Cao Cao

governando o reino de Wei no Norte; Liu Bei, o reino de Shu-Han no Sichuan, no Oeste, e Sun

Chuan, o Sul e o vale do baixo Yangzi, num reino chamado Wu. Iniciou-se, assim, a era dos Três

Reinos (220-280 d.C.) e um longo período em que o império unificado não era mais do que um

sonho.

Sima Qian, o Primeiro grande Historiador Chinês

R. Joppert

O maior historiador chinês antigo foi, sem dúvida, Sima Qian. Ele compôs uma obra imortal, o Shiji

(Registros Históricos), que se tornou o modelo das Histórias Oficiais, escritas sempre na dinastia

seguinte, a respeito da dinastia antecedente. A primeira "História Oficial" foi a dos Han Anteriores

(Qian Han Shu), trabalho realizado por Ban Gu no período dos Han Posteriores e que versa sobre a

História do período imediatamente precedente ao seu.

Sima Qian teria nascido em -145 ou -135 e morrido em -85. Descendia de uma família aristocrática

(Sima: "Comandante das Cavalariças" - Ministro da Guerra - nome de uma função tornada

sobrenome familiar, de acordo com o uso) do Estado de Qin (Shenxi), país natal de Shi Huangdi e

berço do legismo. O pai de Sima Qian, Sima Tan, ocupara a função, na corte Han, de Tangongshi

("Duque-Grande Astrólogo" ou Analista), ligada à observação da correspondência entre os

fenômenos celestes e o calendário oficial. Apesar do título pomposo, o cargo não era de muita

importância na época Han, embora o direito ao acesso livre à biblioteca e aos arquivos imperiais

fosse de muita utilidade para quem pretendesse escrever uma obra histórica. Esse foi o caso de Sima

Tan, que idealizou e começou o "Shiji", morrendo, entretanto, no início do trabalho e legando a Sima

Qian tanto a função de Taigongshi quanto o encargo de terminar o "Shiji". A obra ocupou vinte anos

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da vida de Sima Qian e divide-se em cinco grandes seções: "Benji" ("Anais de Base"), consistente em

doze capítulos sobre as casas reais anteriores à dos Han e sobre as vidas dos próprios imperadores

Han; "Nian Biao" ("Tabelas Cronológicas"), dez capítulos que enumeram, por ordem de datas,

acontecimentos importantes do passado; "Zhi" ("Tratados"), oito capítulos a respeito de assuntos

vários, tais como os ritos, a música, a astronomia, a religião e a economia; "Shi Jia" ("Famílias

Hereditárias"), trinta capítulos sobre os anais históricos dos Estados feudais anteriores aos Qin, e

"Liezhuan" ("Biografias"), setenta capítulos concernentes à vida de personagens historicamente

célebres ou a povos estrangeiros com os quais a China tivera contactos. O "Shiji", escrito com o

objetivo de transmitir e não inovar (no espírito de Confúcio), é uma compilação de todo o material

histórico da China existente na época de Sima Qian. Sua única preocupação foi apresentar um

quadro de toda a História da China, desde as origens até o reinado de Han Wudi, baseando-se em

tradições orais, textos, arquivos e testemunhos contemporâneos. Sima Qian não cita suas fontes no

trabalho, mas simplesmente copia o material histórico com inteira fidelidade. Unicamente na seção

das "Biografias" (Liezhuan) é que constatamos alguma originalidade, pois tratava-se das vidas de

personagens contemporâneos seus; nas outras seções, Sima Qian é apenas um frio compilador de

documentos. Em conseqüência, temos hoje um trabalho de imenso valor, que nos fornece a coleção

completa das fontes históricas consideradas como autênticas pelos chineses nos últimos séculos

antes de nossa era. O "Shiji" foi magnificamente traduzido para o francês por Edouard Chavannes (de

1895 a 1905), com o titulo de "Les Mémoires Historiques de Se-Ma Ts'ien". Sima Qian foi, além disso,

um grande explorador, pois quando jovem percorreu todas as províncias da China de então. Vivendo

sob o governo de Han Wudi, que tinha uma legislação penal extremamente severa, Sima Qian viu-se

envolvido num crime de lesa-majestade, por haver defendido um general (Li Ling), que caíra em

desgraça perante o Imperador. Seu castigo foi a castração, à qual os homens de honra de seu tempo

fugiam cometendo suicídio. Sima Qian não se matou, porque desejava terminar o "Shiji", mas essa

mutilação psicologicamente o amargurou pelo restante de seus dias. Sima Qian estabeleceu as

bases da historiografia na China e seus métodos foram imitados nas dinastias seguintes. Sua obra é

ainda indispensável nas pesquisas da moderna Sinologia.

Métodos Antigos de Datação

R. Joppert

Individualmente, Dong Zhongshu e Sima Qian dominaram o panorama da literatura Han. Deles já

tratamos na parte referente ao reinado de Han Wudi. A dinastia Han, por outro lado, marcou a época

das recensões definitivas dos Clássicos confucianos. São essas as edições que nos chegaram, mas

é necessário agir com prudência na análise das obras, uma vez que o trabalho dos Han foi de

reconstrução de textos perdidos e ocorreram interpolações e deformações, voluntárias ou não. A

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dinastia Han usou o confucionismo para estabelecer sua legitimidade e, para esse objetivo, a "queima

dos livros" em -213 foi mesmo útil aos Imperadores Han, pois facilitou-lhes alterações oportunas. A

crença popular dava aos Clássicos uma autoridade quase sagrada e, se a dinastia Han, que, pelas

origens plebéias de seu fundador, nada tinha de divino, pudesse encontrar um modo de basear seu

direito de governar em idéias da alta antiguidade, ninguém contestaria sua autoridade. Assim explica-

se, por exemplo, a tentativa dos "Wei Shu" de tornar Confúcio uma figura santa, que teria profetizado

a ascensão dos Han. Por outro lado, já se disse que havia duas tendências na interpretação dos

Clássicos: uma seguia a linha dita do "Jinwen" ("Escrita Moderna"), segundo a qual os Clássicos

teriam sido transmitidos por tradição oral, isto é, letrados haviam-nos memorizado durante a

interdição dos livros, registrando mais tarde seus textos em caracteres da época Han; outra advogava

que livros isolados haviam sido escondidos durante a perseguição aos confucionistas por Qin Shi

Huangdi e reencontrados durante os Han: tais textos apresentavam-se escritos em caracteres antigos

(Guwen) e representariam os Clássicos em seu estado primitivo. Ora, os textos em "Guwen"

poderiam apresentar alterações, pois nos diversos comentários aos Clássicos os autores colocavam

suas opiniões pessoais em caracteres menores do que os do texto original, mas, nas cópias, muitas

vezes havia confusão entre o trabalho primitivo e o dos comentadores e todos os caracteres

apareciam de um só tamanho. Assim, a exegese dos Clássicos deve basear-se em critérios seguros

e um deles é o gramatical. Sabendo-se que a gramática de uma determinada época seguia tais

regras, podem naturalmente ser rejeitados os textos que as não respeitam. Por outro lado, a

observação dos fenômenos naturais interessou desde muito cedo aos chineses. O registro de

manchas solares, eclipses e terremotos consta de documentos históricos da China antiga, tais como

os ossos divinatórios, e ajuda no estabelecimento da autenticidade dos textos filosóficos que, por

ventura, mencionem os mesmos fenômenos.

O sistema chinês de datação nos textos anteriores aos Han era uma cronologia computada por ciclos

de sessenta anos, em cuja notação se combinavam dez signos, chamados Tiangan ("Troncos

Cel'estes"), correspondentes a planetas, com doze outros signos, chamados Dizhi ("Galhos

Terrestres"), correspondentes a animais. Os dez Tiangan chamam-se: Jia e Yi (correspondentes a

Júpiter), Bing e Ding (Marte), Wu e Ji (Saturno), Geng e Xin (Vênus), Ren e Gui (Mercúrio). Os doze

Dizhi são: Zi (correspondente ao rato), Chou (ao touro), Yin (ao tigre), Mao (à lebre), Chen (ao

dragão), Si (à serpente), Wu (ao cavalo), Wei (ao carneiro), Shen (ao macaco), You (ao galo), Xu (ao

cão), Hai (ao javali). Os doze Dizhi são também usados para designar as horas chinesas (cada uma

delas, equivalente a duas horas ocidentais). As combinações dos dez Tiangan com os doze Dizhi

designam não só os anos, mas também os meses, os dias e as próprias horas. Os doze animais

indicam, por sua vez, os anos. Assim, unindo-se o signo Jia (o primeiro Tiangan) com o signo Zi (o

primeiro Dizhi), temos o ano de 1804, por exemplo. Sessenta anos depois, em 1864, a combinação

será a mesma (Jiazi). Portanto, quando um texto chinês fala no ano Jiazi, tanto poderá tratar-se de

1804, quanto de 1864 ou de muitos outros, anteriores ou posteriores: 1744, 1924..., sempre

separados por um intervalo de sessenta anos. Encontra-se ai um dos problemas desse tipo de

datação, que se presta naturalmente a confusões. Os dicionários antigos (Mathew's Chinese-English

Dictionary; Dictionaire Classique de Ia Langue Chinoise, de Couvreur) trazem sempre uma lista dos

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ciclos chineses e sua correspondência cronológica ocidental.

Para um exemplo prático com base nos Clássicos, vejamos o seguinte: o capitulo IV do Shujing, "O

ensinamento de Yi" (Yixun), abre-se com a seguinte datação: "Wei Yuan Si, Shi You Er Yue,

Yichou"... (= "No primeiro ano do reinado (de Taijia, o sucessor de Tang, o Vitorioso), na décima -

segunda lua, no dia Yichou"...). Como o Shujing usou o reinado de Taijia como base para a notação

do ano e a lua, para a do mês, naturalmente a combinação Tiangan - Dizhi foi usada para o dia. Jiazi,

vimos, é o primeiro dia (ou mês ou ano) de um ciclo de sessenta; Yichou, união dos segundos

elementos de cada coluna de signos, é pois o segundo dia (no texto, em virtude do que explicamos)

de um ciclo de sessenta. O ano civil começava, durante a dinastia Shang, no segundo mês lunar

após a data do solstício de inverno. Assim, tratava-se do segundo dia do décimo-segundo mês lunar

do ano de -1542 (Taijia teria ascendido ao trono em -1544, segundo a cronologia dos "Anais sobre

Bambu"). Na verdade, tal exatidão é utópica para qualquer data anterior a -841, a primeira realmente

precisa da História da China, consignada em documentos. Toda a cronologia anterior a -841 é

baseada em cálculos hipotéticos.

Com Han Wudi, criou-se um novo sistema de datação, o do "Nian Hao", que se traduz por "era de um

reinado". O tempo de governo de um só Imperador poderia ter várias "eras", cada uma delas iniciada

por um acontecimento extraordinário. Han Wudi teve, por exemplo, onze "Nian Hao" durante as cinco

décadas em que reinou. Um eclipse poderia marcar o começo de um "Nian Hao" e assim aconteceu

em -134, que assinalou a "era iniciada com a luz" (Yuanguang), prolongada até -128, quando um

novo acontecimento excepcional trouxe uma mudança de denominação. Em -116, encontrou-se uma

trípode de bronze julgada sagrada por ter sido fabricada na alta antiguidade: a era chamou-se

"Yuanding" ("iniciada pela trípode Ding") e terminou em -110. Han Wudi fez estender o sistema à

época de seus próprios antepassados.

Um outro método de datar empregava o título póstumo (Miao Hao) dos Imperadores, que se inscrevia

numa placa guardada no Tempo Ancestral da dinastia. O nome pessoal do Imperador (Yuming) era

tabu, pois os chineses acreditavam que pronunciá-lo era apoderar-se da alma do monarca. Assim, os

historiadores usavam o título póstumo (Miao Hao), ao referir-se ao reinado deste ou daquele

soberano. Por exemplo, o nome pessoal do fundador dos Han, Liu Bang, foi substituído, em toda a

historiografia oficial, por seu titulo póstumo, Gaozu ("O Supremo Ancestral"). Desse modo, Sima Qian

refere-se a Liu Bang por seu "Miao Hao", "Gaozu", embora em certos trechos, referentes a períodos

da vida de Liu ainda sob os Qin (antes da fundação da dinastia Han), o método resulte num

anacronismo do ponto de vista da narrativa.

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Religião na Antiga China

W. Morton

A religião da China tem sido normalmente descrita como tendo origem no culto dos antepassados,

mas isso é apenas uma verdade parcial. O culto ancestral está presente desde o tempo mais remoto

de que se tem registro, mas apenas como um dos elementos da religião chinesa. O outro elemento é

o culto dos espíritos da Natureza.

Os chineses encararam o enigma da vida humana através da suposição de que Uma pessoa tem

duas almas, a po, alma animal ou alma da vida, e a hun, alma espiritual ou alma da personalidade.

Ambas as almas separam-se do corpo coma morte e ambas podem ser mantidas vivas por meio de

sacrifícios que as alimentem. A alma da vida, entretanto, gradualmente decai com o corpo; a alma da

personalidade sobrevive por tanto tempo quanto seja lembrada e receba sacrifícios dos vivos. Ela

pode tornar-se uma divindade de poder e influência, pode responder, nos processos de adivinhação,

às questões e pedidos de seus descendentes, e pode até adiar suas mortes. Se a alma po for

negligenciada, poderá tornar-se um demônio- um guio -, e perseguir os vivos, ao passo que, se a

alma hun for esquecida, irá tornar-se um fantasma piedoso, mas também capaz de causar o mal. Daí

a importância capital de ter descendentes do sexo masculino que realizem os sacrifícios ancestrais

da família. A queda de uma dinastia ou de um reino é descrita nos textos históricos chineses pela

frase: "Interromperam-se os sacrifícios”.

O Ser Supremo foi possivelmente concebido como o Ancestral Supremo, pois os mundos dos

homens e dos espíritos estavam em estreita conexão. Sob os Shang o Ser Supremo era conhecido

como Shang Di, o Senhor do Alto, mas, sob os Zhou, o termo usado era Tian, o Céu. No decurso dos

tempos, Tian passou a ter considerado como o guardião da ordem moral do universo.

Além dos ancestrais, certos espíritos da natureza também eram honrados na China antiga. Durante a

dinastia Shang, a Mãe do Oriente, a Mãe do Ocidente, o Soberano das Quatro Direções, a Mulher,

Dragão, o Espírito da Serpente e o Vento são citados como divindades que deveriam ser

reverenciadas. A mera menção desses nomes basta para indicar que se trata de espíritos da

Natureza e de deuses da fertilidade. O solo de loesse do Norte da China só é muito fértil quando

recebe chuva suficiente. Por outro lado, vimos que o rio Amarelo, correndo pela terra do loesse,

constrói seu leito, depositando limo acima do nível do solo circundante; quando ocorrem cheias, o

dano é enorme e extensivo. Desse modo, percebia-se facilmente que o equilíbrio da Natureza, entre

o excesso e a escassez de chuva, era delicado; o Filho do Céu tinha o dever de preservar esse

equilíbrio, efetuando sacrifícios não somente ao Céu, mas também aos deuses da terra. As formas

mais imperfeitas e primitivas de culto às forças da vida constituíram um estorvo para os austeros

eruditos confucianos das épocas posteriores, que envidaram esforços no sentido de minimizá-Ias ou

modificá-Ias. Mas a presença desse elemento de culto da Natureza, com ênfase na fertilidade, está

claramente atestada tanto na China como no resto do mundo. As representações gráficas para zu -

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ancestral- e she - deus do solo - contêm um símbolo fálico. Ambas as formas de culto gozaram de

honra igual, com altares colocados a leste e a oeste da entrada do palácio, como se destinados a

assegurar boas colheitas de filhos para os ancestrais e de grão para os campos.

O Livro das Canções, que reflete a sociedade antes do tempo de Confúcio, contém muitas canções

de galanteios, que indicam uma relação entre os sexos muito mais livre e natural do que a que se

constata em época posterior. Por exemplo:

Cresce no bosque uma trepadeira,

Uma densa camada de orvalho desce sobre ela.

Havia um homem tão encantador,

Sua testa limpa era bem delineada...

Encontrei-o por acaso,

E ele fez minha vontade...

Cresce no bosque uma trepadeira,

Uma espessa camada de orvalho desce sobre ela.

Havia um homem tão encantador,

Sua testa limpa era bem delineada...

Encontrei-o por acaso:

"Oh, Senhor, é tão bom estarmos juntos!"

[Livro das Canções, Mao 94 por A. Waley]

Em outro poema desse livro, diz uma mulher:

Perto da amendoeira da Porta Oriental,

Onde há uma fileira de casas.

Não é que eu não o ame,

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Mas que lento você é em cortejar-me!

[Ibid. Mao 89]

Eruditos posteriores trataram o Livro das Canções do mesmo modo que os cultos primitivos, tentando

expungi-lo de todos os seus elementos mais grosseiros. Empenharam-se em dar às canções de

galanteio e casamento um sentido alegórico destinado a inculcar virtudes como a lealdade a um

príncipe, muito à maneira do significado alegórico atribuído à canção bíblica do amor a Canção de

Salomão, no Ocidente.

À proporção que se desenvolviam as práticas religiosas chinesas, é interessante notar a ausência de

uma classe sacerdotal, gozando de uma posição de poder na sociedade. Havia conselheiros em

matéria de ritual e etiqueta, mas os sacrifícios e os próprios serviços de culto eram realizados por

funcionários do Estado ou por chefes de família, conforme o caso. Entre os animais sacrificados

figuravam bois, ovelhas, porcos e cachorros, geralmente em pequenas quantidades (menos de dez

cabeças, de cada vez). Há notícia de um "grande sacrifício" oferecido a três antigos reis, no qual se

abateram 300 cabeças de gado. Do símbolo que representa li, “ritual", "cortesia", depreende-se que

oferendas de flores eram igualmente feitas. O vinho, quando oferecido, era despejado no solo, em

libação. As oferendas eram geralmente queimadas, mas também enterradas ou atiradas n'água. As

pessoas ricas, ao atravessarem um certo rio, costumavam lançar n'água um anel de jade, como

dádiva ao espírito do rio. Os pobres congregavam-se para celebrar o festival de um rio, durante o

qual uma linda moça era escolhida e despachada num barco, rio afora, até que se afogasse como a

"noiva do rio". Contudo, o sacrifício humano foi praticamente abolido no fim do período Zhou.

Cumpre salientar que as pessoas comuns não tomavam parte nas cerimônias de culto ancestral, as

quais estavam reservadas às famílias da alta sociedade, correspondente à classe das gentes na

antiga Roma. A camada popular, na China, não tinha sequer sobrenome e, muito menos, ancestrais

conhecidos. Seus costumes religiosos, inclusive os do casamento, eram completamente diferentes

dos da classe alta. O povo não celebrava ritos individuais de casamento, mas participava nos festejos

coletivos da primavera. Se uma moça desse mostras de gravidez no outono, ela e seu homem

passavam a viver maritalmente por um ajuste reconhecido por ambas as famílias e pela comunidade.

A religião do homem do campo era marcada pelo culto às divindades locais do solo e da fertilidade, e

por ritos xamânicos que envolviam espíritos mediúnicos, exorcistas ou feiticeiros chamados WU, que

executavam danças frenéticas.

Esse elemento xamânico, encontrado em todo o Nordeste da Ásia, inclusive no Japão, foi desde cedo

eliminado das práticas religiosas da classe alta, cujos cultos se dirigiam basicamente ao Céu (culto

reservado ao soberano), à Terra, aos deuses do solo e das colheitas e aos espíritos dos rios e das

montanhas, além de seus respectivos ancestrais. Foi a um homem da pequena aristocracia rural,

unido por práticas religiosas e atitudes sociais, e não ao povo chinês como um todo nem aos

estrangeiros, que Confúcio se referiu, quando disse: "Todos, dentro dos Quatro, Mares, são seus

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irmãos” [Analectos, XII, 5]. A frase é de certo modo universalista, mas não chega ao ponto

freqüentemente presumido por idealistas modernos. Confúcio estava também representando o grupo

dos "cavalheiros" e sua desvinculação do xamanismo popular e das formas supersticiosas de religião,

quando se diz dele que "nunca falava de prodígios, de provas de força, de desordens ou espíritos

[shen, deuses]” [Analectos, VII, 20]. Essa frase foi igualmente mal compreendida, já que se pensou

que Confúcio se opunha à religião como um todo, o que está longe de ter sido a verdade. Como um

exemplo em contrário, ele parecia encarar a moralidade como dotada de alguma forma de sanção

religiosa, pois disse: "Quem ofende o Céu não terá a quem rezar”. [Analectos, III, 13]

O Confucionismo Religioso e o Daoísmo

D. Smith

Vários séculos após a sua morte, Confúcio chegou a ser reconhecido na China como “o maior sábio

da China”. Por vezes, eram-lhe concedidos títulos extravagantes tais como “rei”, “sábio perfeito”, “co-

igual com o céu e a terra”. Alguns escolares do período Han ocidental (202 antes de Cristo - AD 9)

consideravam-no virtualmente uma divindade. Foram erigidos templos em sua honra, e mesmo nos

primeiros anos do século atual foi feita uma tentativa séria, embora abortada, para tornar o

confucionismo a religião do Estado. No entanto, Confúcio não fundou uma religião, e muitos

estudantes distintos da cultura chinesa, tanto no Oriente como no Ocidente, têm-se recusado a

chamar ao confucionismo uma religião. Confúcio, defendem eles, foi primeiramente um grande

professor ético, interessado principalmente em problemas sociais e políticos. Põe-se contudo a

questão: se os seus ensinamentos éticos e político-sociais se baseavam num humanismo

racionalista, ou numa profunda fé religiosa que se manifestava na devota aceitação das práticas

religiosas tradicionais e na humilde confiança num supremo e divino poder. É a resposta a esta

pergunta que vai determinar se sim ou não o confucionismo pode ser enfileirado entre os grandes

sistemas religiosos do mundo.

Tem-se discutido, e não sem razão, que o confucionismo não possui muitas das importantes

características que se encontram na maioria das grandes religiões históricas da humanidade. Nunca

possuiu uma organização distintamente religiosa. Nunca desenvolveu um clero especializado, sendo

as funções sacerdotais realizadas pelo chefe do estado ou do clã, ou entregues a funcionários

escolares. Não possuía afirmações de credo nem doutrinas autoritárias. Olhava com desprezo o

monasticismo e o ascetismo. As suas “escrituras”, embora respeitadas, nunca foram julgadas

“revelações” como a Bíblia, o Alcorão ou os Vedas. Nunca teve ritos de iniciação numa comunidade

religiosa. Não tem uma doutrina distinta do após-vida e falta-lhe uma escatologia. Contudo, se religião

se define, de modo geral, como o reconhecimento do homem, a sua crença e a sua atitude para com

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um poder ou poderes espirituais mais altos, se a religião diz respeito ao significado fundamental da

vida e do destino humano, então o confucionismo devia ser classificado como religião e não

simplesmente como uma filosofia ético-política. Através de toda a sua história, o confucionismo tem

manifestado um profundo sentido da dependência do homem de uma divindade suprema. Tem

encorajado um sentido de íntima relação entre um mundo espiritual transcendente e o mundo dos

homens. Tem dado expressão a um sentido de dependência de seres espirituais em rituais

complicados e orações fervorosas.

O Daoísmo

O Daoísmo é geralmente incluído entre as religiões do mundo, mas chamar-lhe religião pode ser

engano, pois inclui muitos outros elementos. Conforme Holmes Welch escreve, inclui “a ciência da

alquimia; expedições marítimas em busca das Ilhas Abençoadas; uma forma chinesa indígena de

yoga; o culto do vinho e da poesia; orgias sexuais coletivas; exércitos da igreja para defender um

estado teocrático; sociedades secretas revolucionárias; e a filosofia de Lao- tzu”.[...]

Quatro principais correntes convergiam para formar o Daoísmo, e parecem ter-se tornado

proeminentes a partir do século IV antes de Cristo. A primeira era o Daoísmo filosófico que já

discutimos no capítulo sexto. A segunda, a “escola de higiene” que cultivava a longevidade por meio

de exercícios de respiração e o domínio e o exercício do corpo. A terceira, um grande interesse pela

descoberta de um elixir de vida. Finalmente, as expedições organizadas e enviadas das costas do

nordeste da China em busca das Ilhas Abençoadas onde se acreditava que crescia a planta que

podia renovar a vitalidade de uma pessoa e manter a vida perpetuamente. Três destes movimentos

interessavam-se principalmente pela imortalidade, mas pela imortalidade ou a vida perpétua

concebidas de maneira diferente da que é aceite pelo cristianismo. O primitivo Daoísmo era acima de

tudo uma religião que pretendia atingir a vida sem fim. Visto a vida ser considerada resultante das

relações harmoniosas dos elementos materiais pertencentes a Yin e a Yang, que antes do

nascimento eram invisíveis e sem forma, então, se esses elementos, que normalmente se

dispersavam na morte, pudessem ser mantidos em perfeita harmonia, a vida seria prolongada

indefinidamente. Infelizmente, essa harmonia interior estava continuamente a ser perturbada pelo

mau comportamento, pela paixão e os apetites, e por o corpo ingerir elementos dilacerantes que eram

a causa material de doenças e da morte. A eliminação completa de tais materiais por meio da

disciplina, pela dieta, o jejum, o controle da respiração, etc., levaria ao prolongamento da vida para

sempre.

Na época da dinastia Han, em face da lógica da morte inevitável mesmo para os adeptos Daoístas

que mais consistentemente praticavam essas técnicas, os ensinamentos relativos à imortalidade

tiveram de ser modificados. Desenvolveu-se a idéia de que cada um devia procurar criar dentro de si

um “embrião” invisível e imortal. Este “embrião”, convenientemente alimentado e fortalecendo-se

através da vida formava a verdadeira “individualidade” de que o corpo não era senão uma concha. À

hora da morte, emergia como uma borboleta da crisálida ou como uma cobra da pele, para vaguear à

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vontade em perfeita liberdade através do universo ou se encaminhar para o reino dos abençoados

xien (imortais). Embora o adepto daoísta parecesse morrer, o que se enterrava na sepultura não era o

seu verdadeiro corpo mas apenas uma semelhança. Corriam histórias fantásticas de túmulos abertos

que não revelavam senão um pau seco ou um molho de roupa abandonada.

O Budismo na China

W. Morton

O Budismo foi introduzido na China muito lentamente, chegando ao Sul por mar e ao Noroeste por

terra. Existe uma tradição segundo a qual o imperador Han, Ming Di, em resposta a um sonho, enviou

emissários à Índia para lhe trazerem imagens e escrituras, do que resultou a criação de um mosteiro,

em 65 d.C., perto da capital. De acordo com a tradição, a tradução das escrituras para o chinês

iniciou-se nesse lugar, chamado Bai Ma Si, Templo do Cavalo Branco, em homenagem ao fiel animal

que carregou os rolos em sua longa jornada desde a Índia. O Budismo na China, entretanto, estava

limitado nessa fase a um punhado de adeptos na corte. Só obteve acolhimento mais amplo por volta

da época da dinastia Wei Setentrional (386-534). Dois fatores sociais tornariam possível, na época,

essa mais vasta aceitação. A oposição dos letrados confucianos foi inoperante porque eles já não

estavam no poder e os governantes "bárbaros" no Norte estavam dispostos a acolher favoravelmente

a nova fé. Ao mesmo tempo, o povo comum abraçou uma religião que prometia uma resposta para o

sofrimento e algum consolo numa época de constantes lutas intestinas. Uma correspondente acolhida

foi dispensada ao Budismo no Sul, um pouco mais tarde, pelo imperador Liang Wu Di, em começos

do século VI, como já se mencionou.

O Budismo estabeleceu-se na China em sua forma Mahayana. A cisão entre Hinayana, o Veículo

Menor (também conhecido como Theravada, o Caminho dos Anciãos), e Mahayana, o Veículo Maior

já ocorrera alguns séculos antes na Índia. O Budismo é praticado hoje como Theravada na

ramificação meridional, no Ceilão, na Birmânia, Tailândia e no resto do Sudeste asiático, enquanto o

ramo setentrional, na China, Japão, Coréia, Mongólia e Tibete, adere a várias seitas do Budismo

Mahayana. As diferenças são significativas. Theravada conserva-se mais próximo do Budismo

original, mas Mahayana desenvolveu o culto de toda uma série de deidades, o Buda em várias

manifestações como Bodhisattvas ou Existências Iluminadas. Uma delas é Amitabha (em chinês, O-

mi-to Fo), o compassivo salvador do Paraíso Ocidental. Uma outra é Maitreya (Mi-Io Fo),

correspondendo ao Messias, o Buda que está para vir. Uma terceira manifestação é Avalokitesvara

(Guan Yin), literalmente, em chinês, "a que atende ao choro" dos infelizes, e é descrita como a Deusa

da Misericórdia. A divindade original aqui representada pelo nome sânscrito é uma figura masculina,

mas torna-se uma deidade feminina no decorrer do tempo, uma figura materna colocada de face, não

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para o afortunado quadrante do Sul, como os imperadores, mas para o frio e inóspito Norte, a fim de

prestar ouvidos aos necessitados.

O termo Bodhisattva, tal como é religiosamente entendido, encerra a idéia de renúncia por amor aos

outros. Essas figuras do Buda estavam prontas para ingressar no Nirvana, uma liberação do ciclo de

renascimento e sofrimento, e uma fusão com a Alma Absoluta, tal como uma gota d'água perde sua

identidade no oceano; mas comprometeram-se a voltar ao mundo e a não aceitar sua própria

salvação enquanto não tiverem sido redimidos todos os seres dotados de sentimentos ou

consciência, sejam eles homens ou animais.

Ver-se-á que nessas descrições ocorreu uma transferência de termos - de Buda para Bodhisattva, um

salvador; da iluminação na experiência original para algo que se aproxima da salvação; e do que para

o homem prático é a idéia negativa de Nirvana, literalmente uma extinção, como o soprar de uma

vela, para a bem-aventurança e a recompensa positivas do Paraíso Ocidental. Em correspondência

com o Paraíso existem as punições do Inferno budista, representadas de forma realista em alguns

templos chineses por toscas figuras de gesso sofrendo cruéis formas de tortura. Essas adaptações

do Budismo tinham começado antes de a doutrina chegar à China, mas as tendências pragmáticas

dos chineses e, na verdade, também dos japoneses, ampliaram-nas à medida que a fé se

desenvolvia e se ramificava em várias seitas. Ao mesmo tempo, é importante recordar que grande

parte do legado indiano original do Budismo, em sua forma suprema, permaneceu ativa na prática

chinesa e japonesa; a disciplina, a compaixão, o profundo discernimento filosófico e psicológico, uma

compreensão intuitiva e aceitação limitada do mundo, a ênfase sobre a meditação e a contemplação,

e a formação da própria alma, um processo desenvolvido, o que não deixa de ser muito curioso,

enquanto o indivíduo se desvencilha do peso do seu ego.

A tradição primitiva, como mencionamos, tinha sido inteiramente oral mas, por volta do século I a.C.,

começou a acumular-se um vasto repositório de escrituras. Estas passaram a ser coletivamente

conhecidas como as Três cestas ou Tripitaka, as quais consistiam nos Vinayas, regras para os

mosteiros; os Sutras, discursos atribuídos ao Buda; e os Abhidhammas, ou desenvolvimentos

escolásticos da doutrina. A sólida base estabelecida pelo Budismo nos vários países da Ásia foi

devida, indubitavelmente, ao fato de a nova religião possuir, por essa altura, uma base literária. Isso

era particularmente importante na China, onde a palavra escrita era alvo de grande acatamento. Os

primeiros missionários e peregrinos dedicaram, pois, uma considerável parcela de seu tempo à difícil

tarefa de tradução. A língua chinesa é singularmente inadequada para a transliteração de nomes

estrangeiros. Além disso, embora a língua seja rica em vocabulário e expressão de nuanças, as

idéias e os termos técnicos do Budismo, com suas origens hindus, formaram um imenso obstáculo à

transferência fácil da doutrina para um chinês inteligível, aceitável aos eruditos. As dimensões

enormes do corpus de escrituras budistas exigiam também inesgotável paciência no trabalho de

tradução. Entre os numerosos tradutores que se empenharam na tarefa durante vários séculos, um

dos mais famosos foi Kumarajiva, levado da Ásia central para a China em fins do século IV e que

dirigiu uma equipe de eruditos na produção de versões chinesas de 98 escrituras.

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Com o passar do tempo, chineses budistas começaram a realizar peregrinações à terra sagrada da

Índia, a fim de obterem manuscritos e imagens e de visitarem os santuários célebres. Faxian gastou

cerca de 15 anos numa viagem à Índia, através da Ásia central, de 399 a 414. Dois séculos depois,

Xuanzang realizou uma peregrinação que durou de 629 a 645, tornando-se amigo do grande

imperador indiano Harsha e deixando uma valiosa descrição de suas viagens na “Memórias das

Regiões Ocidentais". Após seu regresso, ambos os homens dedicaram muito tempo à tradução de

obras budistas que tinham levado de volta com eles. As cuidadosas anotações de suas viagens, a par

dos comentários por visitantes gregos em outros períodos, fornecem muitos fatos e datas que não

foram registrados de qualquer outro modo na história indiana. Dessa forma, a China deu uma

contribuição para a civilização indiana, ao mesmo tempo que recebia o tesouro do Budismo; mas as

imensas barreiras geográficas limitaram muito o contato entre as duas grandes culturas do Sul e do

Leste asiático.

História da Filosofia Chinesa

Chan Wing Tsit

Introdução

A Filosofia chinesa é uma sinfonia intelectual em três movimentos: o primeiro, do VI ao II século a.C.,

foi essencialmente um período de desenvolvimento dos três maiores temas - Confucionismo,

Daoísmo e Moísmo -, e dos quatro menores - Sofismo, Neomoísmo, Legalismo e Interacionismo yin

yang -, todos com os seus contrastes e harmonias, com o acompanhamento das outras "Cem

Escolas". O segundo movimento foi caracterizado pela mistura de diferentes motivos que se

resolveram no acorde dominante da Filosofia chinesa medieval, ao passo que a nota do Budismo foi

introduzida da Índia para dar-lhe o efeito de contraponto. No terceiro movimento, o mais longo de

todos, do século XI aos dias atuais, as notas características da Filosofia chinesa foram sintetizadas

para transformar o acorde persistente do Confucionismo na longa e excepcional melodia que é o

Neoconfucionismo.

A analogia sugere imediatamente que há consonância, bem como dissonância, entre os principais

sistemas do pensamento chinês, fato significativo e digno de nota, especialmente no caso das

escolas antigas. A oposição entre o Confucionismo humanístico e o Taoísmo é, à primeira vista,

quase inconciliável. Todavia, qualquer distinção completa inevitavelmente distorce o quadro. O

Taoísmo primitivo está mais próximo do Confucionismo do que geralmente se entende,

principalmente em sua filosofia de vida. Contrariamente à crença popular de que Laozi ensinou a

renúncia à vida e a sociedade, sua doutrina ética estava mais ligada à de Confúcio, o experiente

conhecedor do mundo, do que à do Hinduísmo ou do Budismo. Esta opinião não é nova nem pessoal,

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mas uma opinião geral entre os historiadores nativos da filosofia chinesa. Tanto o Dr. Hu Shih, em

seu The Development of the Logical Method in Ancient China (1), como o Professor Fung Yu-lan, em

sua The History of Chinese Philosophy (2), interpretaram Laozi de maneira bem diferente daquela a

que o Ocidente está acostumado. O principal interesse do Taoísmo e do Confucionismo é a vida, com

a diferença principal que, no Taoísmo, a preservação da vida vem de seguir-se a Natureza, ao passo

que o Confucionismo a realização da vida vem com o pleno desenvolvimento do homem.

Confucionismo primitivo: Confúcio, Mêncio, Xunzi e o Zhong Yong

O movimento do humanismo começou em Confúcio (551 - 479 a.C.), ganhou impulso com Mêncio e

Xunzi, e finalmente alcançou o clímax no Neoconfucionismo. É uma história de mais de dois mil anos,

a história da vida e do pensamento chineses. Desde a época de Confúcio até os dias atuais, a

principal inspiração espiritual e moral dos chineses tem sido o ditado confuciano. "É o homem que

engrandece a verdade, e não a verdade que engrandece o homem" (3).

Dizer que Confúcio era humanístico não é negar que o sábio mostrou razoável interesse pela religião.

Confúcio foi, por um lado um reformador, um pioneiro da educação universal, para todos os que

quisessem vir (4) e para pessoas de todas as classes (5), um homem que viajou quatorze anos por

muitos Estados em busca de uma oportunidade para servir os governantes, a fim de que a Ordem

Moral (dao, o Caminho) (6) pudesse prevalecer. Era, por outro, um conformista, um homem "fiel aos

antigos e que os amava" (7), um homem que tentou preservar a doutrina de Zhou (8), da qual era

parte integrante o culto do Céu e dos antepassados. Conseqüentemente, disse que "O homem

superior teme (...) os decretos do Céu" (9). Acreditava que "Se deve prevalecer a Lei Moral, é porque

esse é o mandamento do Céu" (10). Ele próprio oferecia sacrifícios aos seus antepassados e "tinha a

sensação de que eles estavam realmente presentes", dizendo: "Se eu não estiver presente ao

sacrifício, será o mesmo que não fazer sacrifício" (11). Não obstante, pôs francamente o bem-estar

dos homens à frente da religião. Sua relutância em discutir o Céu levou seus alunos a dizerem que

sua concepção do Céu "não podia ser ouvida" (12). "Nunca discuta fenômenos estranhos,

explorações físicas, desordens ou espíritos" (13). Quando um aluno lhe perguntava sobre o ato ou a

maneira de servir os espíritos e sobre a morte, respondia: "Ainda não sabemos servir os homens;

como podemos saber servir os espíritos?... Ainda nada sabemos da vida, como podemos saber

alguma coisa sobre a morte?" (14)

Por estas amostras, é evidente que Confúcio era um humanista mesmo em matérias religiosas; não

era um sacerdote, muito menos fundador da religião que tinha o seu nome. O Homem, somente o

Homem, ocupava sua atenção primeira. É o que se pode ver na seguinte passagem, que é todo o seu

sistema em poucas palavras:

"Os antigos que desejavam tornar manifesto o caráter claro dos

povos do mundo empenhavam-se primeiramente em ordenar

sua vida nacional. Os que desejavam ordenar sua vida nacional

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empenhavam-se primeiro em regular sua vida familiar. Os que

desejavam regular sua vida familiar empenhavam-se primeiro

em cultivar sua vida pessoal. Os que desejavam cultivar sua

vida pessoal empenhavam-se primeiro em pôr seu coração no

caminho certo. Os que desejavam pôr seu coração no caminho

certo empenhavam-se primeiro em tornar sinceras suas

vontades. Os que desejavam tornar sinceras suas vontades

empenhavam-se primeiro em ampliar seu conhecimento. A

ampliação do conhecimento depende da investigação das

coisas. Quando as coisas são investigadas, o conhecimento

então se amplia, a vontade então se torna sincera; quando a

vontade é sincera; o coração então se põem no caminho certo;

quando o coração está no caminho certo, a vida pessoal então

é cultivada; quando a vida pessoal é cultivada, a vida familiar

então é regulada; quando a vida familiar é regulada, então a

vida nacional está ordenada; e quando a vida nacional está

ordenada, então há paz no mundo" (15).

Trata-se de um programa abrangente que pode, porém, ser resumido numa palavra, isto é, ren, ou

verdadeira natureza humana. Esta é a idéia central do sistema confuciano, em torno da qual todo

movimento confuciano se desenvolveu. Confúcio nem definiu nem analisou o ren. Está até registrado

no Lun Yü (Os Analectos) que ele "raramente" falava dele (16). Embora 55 entre os 498 capítulos dos

Lun Yü sejam dedicados à discussão da verdadeira natureza humana, o Mestre considerava o

assunto com tal seriedade que dava a impressão de raramente haver discutido o tema.

A afirmação mais próxima da definição de ren é que ele "consiste em dominar-se e em restabelecer a

ordem moral (li)"(17). Isto praticamente equivale a toda a filosofia confuciana, já que o ren, assim

definido, envolve a realização do eu e a criação de uma ordem social. Especificamente, a verdadeira

natureza humana consiste em "ser respeitoso ao lidar consigo mesmo, ser sério ao ocupar-se de

negócios e ser leal nas relações com as pessoas (18)." Um homem de caráter "forte, resoluto,

simples e modesto" está "perto" da verdadeira natureza humana(19). Além disso, "Quem pode

praticar cinco coisas onde quer que esteja é um homem verdadeiro... a saber, seriedade, liberalidade

lealdade, diligência e generosidade" (20). "O verdadeiro homem", disse Confúcio, "que deseje

determinar a natureza de seu próprio caráter, também procura determinar a natureza do caráter dos

outros. Desejando ter êxito, também procura ajudar os outros a ter êxito" (21). Em uma palavra, ser

um homem verdadeiro é "amar todos os homens" (22).

Tal homem verdadeiro é o que Confúcio chamou o "homem superior", que é a combinação do

"homem bom que não tem tristezas, o homem sábio que não tem perplexidades e o homem corajoso

que não tem medo" (23). Faz da honestidade "a substância do seu ser", da correção "a base da sua

conduta", da modéstia seu "ponto de partida" e da honestidade seu "alvo" (24). Ele "se refreia em

matéria de sexo quando seu sangue e sua força vitais são fortes. Quando alcança a maturidade e seu

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sangue e sua força vital estão cheios de vigor, refreia-se em questões de luta. Quando alcança a

velhice e seu sangue e força vital já enfraqueceram, refreia-se em questões de aquisição"(25). Ele

visa a nove coisas. "No uso dos olhos, seu objetivo é ver claramente. No uso dos ouvidos, seu

objetivo é escutar distintamente. Na expressão, seu objetivo é ser afável. Quanto às maneiras, seu

objetivo é ser respeitoso. Na fala, seu objetivo é ser sincero. Nos negócios, seu objetivo é ser sério.

Na dúvida, procura esclarecimento. Quando tem raiva, pensa nas conseqüências. Diante do lucro

pensa na integridade" (26). Nada faz contrário ao princípio do decoro (27), quer ser lento no falar mas

diligente no agir (28), e pensa na verdade em vez de no lucro"(29). Desfruta o prazer derivado da

devida ordenação de rituais e música, dos comentários sobre os merecimentos dos outros e da

amizade com muitos homens virtuosos (30). Renunciaria à riqueza e aos altos cargos, mas suportaria

a pobreza e as posições mesquinhas em nome dos princípios morais (31). Não faz aos outros o que

não quer que outros lhe façam (32), "retribui o mal com a justiça (probidade) e retribuí a bondade com

a bondade" (33). Pratica a lealdade filial com os pais, ao ponto de nunca desobedecer, mas aderindo

estritamente ao principio do decoro; serve aos pais quando estão vivos, enterrando-os e sacrificando

em sua honra quando estão mortos (34). É respeitoso com os superiores (35). Em resumo, é um

homem perfeito.

Esta ênfase no humanismo é suprema em Confúcio. Subjaz a todas as suas doutrinas políticas,

educacionais, estéticas e até lógicas. As pessoas devem ser governadas pelos bons exemplos dos

governantes, guiadas pela virtude e reguladas pelos princípios do decoro, e o objetivo do governo é

dar riqueza e instrução ao povo e segurança ao Estado (37). O conhecimento é "conhecer os

homens" (38). O homem superior "estuda a fim de aplicar seus princípios morais" (39). Os poemas

são "para estimular nossas emoções, alargar vosso campo de observação, ampliar vosso

companheirismo e expressar-vos os ressentimentos". Ajudam-vos nos deveres imediatos para com

vossos pais e nos deveres mais remotos para com vosso governante. Aumentam vossa familiaridade

com os nomes dos pássaros, dos animais e das plantas" (40). Mesmo a "retificação dos nomes", a

abordagem confuciana que mais se aproxima da Lógica, deve ser conduzida segundo diretrizes

humanistas. Por exemplo, a música não significa apenas sinos e tambores (41), pois os nomes,

quando retificados, têm um quê de prático. Assim, retificar nomes num Estado significa "o governante

ser um governante, o ministro ser um ministro, o pai ser um pai, e o filho ser um filho"(42).

Este humanismo é completo, mas qual é seu fundamento lógico? Confúcio disse que "há um princípio

central que percorre toda a minha doutrina" (43). Tal princípio central é geralmente aceito como

significando "nada que não seja a fidelidade a si mesmo e à reciprocidade" (44). Se semelhante

interpretação é correta, então somos forçados a concluir que o fundamento do sistema confuciano

está no reino moral, isto é, na experiência humana mesma. O princípio é também, em geral, tido

como idêntico à doutrina confuciana da Harmonia Central (chung yung, o áureo meio). De fato, essa

doutrina é de suprema importância na Filosofia chinesa; é, não apenas a espinha dorsal do

Confucionismo, tanto antigo como moderno, mas também da Filosofia chinesa como um todo.

Confúcio disse que "encontrar a pista central (zhong) do nosso ser moral e ser harmonioso (yong)

com o universo" é a suprema realização da nossa vida moral (45). Isto parece implicar que Confúcio

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tinha como fundamento da sua ética algo psicológico ou metafísico, porém este aspecto só foi

desenvolvido dois séculos mais tarde. Para Confúcio chung yung por certo significava o áureo meio,

como o indica o ditado "Ir longe demais é o mesmo que não ir longe o bastante." O fundamento

psicológico deve ser proporcionado por Mêncio e por Xunzi, e o metafísico pelo livro conhecido como

o Zhong Yong (ou A Doutrina do Meio).

Confúcio interessava-se principalmente por um mundo prático e, portanto, ensinava-nos a fazer o

bem sem entrar no problema de por que devemos fazer o bem. Para Mêncio (371 - 289 a.C.),

entretanto, fazemos o bem, não apenas por que devemos, mas porque temos que, pois "A natureza

humana segue o bem da mesma forma como a água procura o nível mais baixo" (47). "Se os homens

se tornam maus, não é culpa do seu dom natural" (48). Todos os homens têm, originariamente, o

sentimento da misericórdia, o sentimento da vergonha, o sentimento do respeito e o sentimento do

bem e do mal, e são estes os que chamamos de "quatro princípios fundamentais da benevolência, da

honestidade, do decoro e da sabedoria" (49). Esta consciência moral está enraizada no coração de

um homem perfeito (50), o que pode ser demonstrado pelos fatos de que todas as crianças sabem

amar seus pais (51) e de que, quando os homens de repente vêem uma criança preste a cair num

poço, inevitavelmente surge no coração deles um sentimento de misericórdia e de alarma (52).

Este sentimento inato do bem é uma "capacidade ingênita", que possuímos sem necessidade de

aprender, e é também "conhecimento ingênito", que possuímos sem necessidade de pensamento

(53). Assim, "todas as coisas já estão completas no eu. Não há maior delícia do que voltar ao eu com

sinceridade" (54). Porque a "sinceridade é o caminho do Céu, ao passo que pensar em como ser

sincero é o caminho do Homem" (55). O princípio diretor da conduta humana é, portanto, "o pleno

exercício da mente". "Exercitar plenamente nossas mentes é conhecer nossa natureza, e conhecer

nossa natureza é conhecer o Céu. Preservar nosso espírito e nutrir nossa natureza é o meio de servir

ao Céu. Manter a singeleza de espírito,. quer soframos morte prematura quer tenhamos vida longa, e

cultivar nosso caráter pessoal e deixar que as coisas sigam seu curso, são os meios de talhar nosso

destino"(56). Assim, os pré-requisitos de uma ordem moral harmoniosa estão completos dentro de

nós. Em vez de olhar para a Natureza a fim de nos conhecermos, olhamos dentro de nós a fim de

conhecer a Natureza. Não temos sequer que olhar para o sábio, pois ele "pertence à mesma espécie

que nós" (57). A chave para a centralidade e a harmonia do universo, assim como para nós mesmos,

não deve, portanto, ser buscada longe. Estão dentro da nossa natureza. Desenvolver nossa natureza

é realizar as virtudes a ela intrínsecas, que Mêncio primeiro reduziu aos "quatro princípios

fundamentais", e mais adiante à benevolência, que é a "mente do Homem", e à integridade, que é o

caminho do homem"(58). Aquela é a base ética da sociedade, ao passo que esta é o fundamento da

política. O termo "benevolência" (ren) deve ser entendido em seu significado mais fundamental de

verdadeira natureza humana, pois "Ren é aquilo que faz de um homem um homem. Falando de modo

geral, é o princípio moral" (59). O homem moral nada faz que não esteja de acordo com a verdadeira

natureza humana (60). De fato ele ama todos os homens (61). A demonstração mais natural da

verdadeira natureza humana é a lealdade aos pais, que para Mêncio era a maior de todas as virtudes

(62). "De todas as coisas que um filho com verdadeira virtude filial pode alcançar, não há nada mais

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grandioso do que honrar seus pais" (63). A devoção filial, então, é o fundamento das cinco relações

humanas. "Entre pai e filho, deve haver afeição; entre soberano e ministro, honestidade; entre marido

e mulher, consideração pelas suas funções distintas; entre velhos e jovens, uma ordem apropriada; e

entre amigos, fidelidade"(64). Quando tais qualidades estiverem demonstradas, prevalecerá uma

ordem social harmoniosa.

Essa tentativa de proporcionar um fundamento psicológico ao humanismo é um desenvolvimento

significativo na escola confuciana, não apenas porque representa um grande avanço, mas também

porque exerceu influência em toda a escola do Neoconfucionismo, principalmente do século IV até os

dias atuais.

O desenvolvimento psicológico em Xunzi (aproximadamente 355 - apr. 288 a.C.) seguiu, entretanto,

quase direção oposta. Não que o espírito humanista nele seja mais fraco; ao contrário, é muito mais

forte. A Lei Moral (dao) "não é o caminho do Céu, nem o caminho da Terra, mas o caminho seguido

pelo Homem, e caminho seguido pelo homem superior" (65) e, mais especificamente, "Dao é o modo

de dirigir um Estado", ou, em outras palavras, "organizar o povo" (66). Por conseguinte, ele defendia

vigorosamente o controle da Natureza:

Vós glorificais a Natureza e meditais sobre ela:

Por que não a amansais e não a regulais?

Vós obedeceis à Natureza e cantais em seu louvor:

Por que não controlar seu curso e usá-lo?

Vós contemplais as estações com reverência e as aguardais:

Por que não respondeis a elas com atividades sazonais?

Vós dependeis das coisas e vos maravilhais diante delas:

Por que não desenvolver vossa própria capacidade e

transformá-las?

Vós meditais sobre o que torna uma coisa uma coisa:

Por que não ordenar as coisas de modo a não desperdiçá-las?

Vós buscais em vão a causa das coisas:

Por que não usufruir e apropriar-se do que elas produzem?

Portanto, digo: desdenhar o homem e especular sobre a

Natureza

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É mal compreender os fatos do Universo (67).

Xunzi acreditava necessário o domínio da Natureza por que achava que a natureza humana é muito

diferente da descrição que dela fazia Mêncio. Para Xunzi, "A Natureza do Homem é má; sua bondade

é adquirida (pelo treinamento)" (68) O móvel aqui foi, obviamente, dar ênfase à educação, ênfase que

o tornou o principal filósofo da educação na China antiga. Como a natureza original do Homem é má,

ele "precisa passar pela instrução de professores e leis" (69). Assim, a virtude não é inata, mas deve

ser "acumulada", da mesma forma como as montanhas são formadas por acumulação de terra (70).

O princípio diretor da acumulação para o indivíduo é o li ou decoro (71), para a sociedade é a

"retificação de nomes" (72), e para o governo é a "modelagem de acordo com os reis sábios dos

últimos dias" (73). Quando a virtude é "acumulada" a um grau suficiente, o Homem pode, então,

"formar uma tríade com o Céu e a Terra" (74).

Pelo fim do século IV a.C., o Confucionismo deu mais um passo à frente. Houve urna tentativa de

proporcionar um fundamento metafísico para o seu humanismo, corno podemos ver pelo livro

chamado Zhong Yong (75) ou A Doutrina do Meio. De acordo com esse livro, nosso eu central ou

nosso ser moral é concebido como "a grande base da vida", e a harmonia ou a ordem moral é "a lei

universal do mundo. Quando o nosso verdadeiro eu e harmonia centrais são realizados, o universo

então se torna um cosmos e todas as coisas alcançam seu pleno crescimento e

desenvolvimento"(76). Assim, "a vida do homem moral é uma exemplificação da ordem moral

universal" (71).

O Zhong Yong declara, além disso, que ser fiel a si mesmo (zheng, sinceridade) é "a lei do Céu" e

tentar ser fiel a si mesmo é "a lei do Homem" (78). Esta verdade é "absoluta", "indestrutível", "eterna",

"auto-existente", "infinita", "vasta e profunda", "transcendental c inteligente" (79). Contém e abarca

toda a existência; cumpre e aperfeiçoa toda a existência. "Sendo esta a natureza da verdade

absoluta, manifesta-se sem ser vista; produz efeitos sem movimento; atinge seus objetivos sem ação"

(80). Apenas aqueles que são "seus absolutos eus verdadeiros" podem "realizar sua própria

natureza", podem "realizar a natureza dos outros", podem "realizar a natureza das coisas", podem

"ajudar a Mãe Natureza a cultivar a vida", e podem ser "os iguais do Céu e da Terra" (81). Não se

sabe até que ponto foi original esta tendência metafísica cm Confúcio, mas tornou-se ela um fator

extremamente significativo no Confucionismo posterior, especialmente no Neoconfucionismo dos

séculos XI e XV.

O Daoísmo Primitivo: Laozi e Yangzhu

Enquanto progredia esse movimento do humanismo confucionista, o Daoísmo naturalista se

desenvolvia paralelamente, por caminhos diferentes, mas com objetivos de vida similares. Assim

como o fim do Confucionismo é a vida plenamente desenvolvida, o do Daoísmo é a vida simples e

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harmoniosa. Embora o termo "Daoísmo" (dao jia) só viesse a ser usado no século I a.C., no Shiji

(Registros Históricos) de Sima Qian (Ssu-ma Ch´ien, 145 - 86 a.C.), o movimento daoísta já devia ter

então alguns séculos. Mas, se foi Yangzhu ou Laozi o primeiro líder do movimento é ponto

controvertido (82). No caso de Yangzhu (aproximadamente 440 - apr. 366 a.C.), o espírito é,

certamente, de simplicidade e harmonia. Ele não era um hedonista que insistia com todos os homens

para "gozarem a vida" e para se satisfazerem com "uma casa confortável, boas roupas, boa

alimentação e belas mulheres", como o descreve o espúrio Liezi do século III a.C. (83), ou um egoísta

"que não teria arrancado um só fio de cabelo ainda que com isto viesse a beneficiar o mundo todo",

como Mêncio de propósito o fez parecer (84). Era antes um seguidor da natureza interessado

principalmente em "preservar a vida e em conservar intacta a essência do nosso ser e em não

magoar a nossa vida material com coisas" (85), "um homem que não entraria numa cidade em perigo,

que não se alistaria no exército nem mesmo trocaria um fio de cabelo pelos lucros do mundo inteiro"

(86). Mesmo no capítulo intitulado "Yangzhu" em Liezi, a ênfase principal era "deixar a vida seguir seu

curso livremente" e ignorar, não apenas a riqueza e a fama, mas também a vida e a morte. Foi esta

ênfase naturalista que o tornou o daoísta representativo do seu tempo.

No caso de Laozi, a linha mestra em seu Daodejing é a "simplicidade", uma idéia central pela qual

outros conceitos aparentemente estranhos devem ser entendidos. Uma vida "simples" é urna vida de

naturalidade na qual o lucro é descartado, a esperteza abandonada, o egoísmo minimizado e os

desejos reduzidos (88). É a vida da "perfeição que parece incompleta", da "plenitude que parece

vazia", da "retidão absoluta que parece desonesta", da "habilidade que parece desajeitada" e da

"eloqüência que parece gaguejar" da vida de "produzir e cultivar coisas sem apossar-se delas", de

"fazer um trabalho mas não orgulhar-se dele", e de "governar as coisas mas não dominá-las" (89). É

a vida que é "pontiaguda como um quadrado mas não fura, afiada como uma faca mas não corta, reta

corno uma linha distendida mas que não se estende, e brilhante como luz mas que não ofusca" (90).

Outras idéias fantásticas do Taoísmo se desenvolveram e morreram, mas este é o fator vivo que fez

dele uma fibra forte da ética chinesa, ainda hoje. É o ponto de acordo com o mais poderoso sistema

intelectual da China, a saber, o Confucionismo.

É verdade que Laozi foi extremamente crítico a respeito da ordem existente, ao ponto mesmo de

exclamar que "Quando o Grande Caminho (Dao) estivesse obliterado, a benevolência e a justiça

surgiriam. Quando a sabedoria e o conhecimento aparecessem, a hipocrisia emergiria" (91) Mas

denunciou a civilização com a mesma disposição com que atacou a guerra, a cobrança de impostos e

o castigo (92), essencialmente por causa do seu caráter excessivo e destruidor. Laozi não foi desertor

da civilização. De acordo com registros históricos autênticos, foi um modesto funcionário público. O

Dr. Hu Shih opina que ele e Confúcio foram ambos ju, literatos do tipo sacerdote-professor, que

levavam a tocha da civilização; que Laozi era um ju ortodoxo, um "ju dos mansos" que se agarravam

à cultura dos povos conquistados do Yin, que se caracterizava pela não-resistência, pelo

contentamento, etc., ao passo que Confúcio, apesar de ser descendente de Yin, era um ju de novo

tipo, um "ju dos fortes", que advogava a substituição da degenerescente cultura Yin pela florescente

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cultura dos povos dominantes de Zhou (93). Assim, devemos considerar Laozi um professor de vida

simples, e não um desertor da vida.

É também verdade que Laozi ensinou a estranha doutrina do wu wei, geralmente interpretada como

"inação". Mas é um erro pensar no wu wei corno qualquer coisa que sugira completa inatividade,

renúncia ou o culto do inconsciente. É antes um modo singular, ou, mais exatamente, o modo natural,

de comportar-se. "O sábio gere seus negócios sem declará-lo e divulga suas doutrinas sem palavras"

(94). O caminho natural é "suster todas as coisas em seu estado natural" e permitir, assim, que elas

se "transformem espontaneamente" (95). Dessa maneira, "O Caminho não exerce nenhuma

atividade, e, no entanto, nada resta por fazer" (96). O governante sábio faz coisas sem declará-las, e

assim nada fica por regular" (97). Por aí se vê ser bem claro que o caminho do wu wei é o caminho

da espontaneidade, que deve ser contrastado com o caminho artificial, o caminho da esperteza e da

moral superficial. Foi a vida de artificialismo que provocou o vigoroso ataque de Laozi e o levou a

glorificar a realidade do inexistente, a utilidade do inútil e a força dos fracos (98).

Isto não representa esforço para substituir o ser pelo não-ser, nem o forte pelo fraco. É, antes uma

afirmação da importância de ambos. O "eterno não-ser" e o "eterno ser" "vieram da mesma fonte mas

aparecem com nomes diferentes"(99). O verdadeiramente fraco é idêntico ao verdadeiramente forte.

Como disse Laozi, "O que é o mais perfeito parece incompleto" e "O que é o mais completo parece

mais vazio" (100). Nestes enunciados, Laozi estava ainda um passo mais próximo do áureo meio. Na

superfície, ele parece ser o defensor da mulher como o princípio fundamental da vida e da infância

como o estado ideal do ser (101). Também parece advogar o vazio e a quietude (102). No fundo,

entretanto, tal posição ética se aproxima muito mais do centro do que do extremo. "Já que falar

demais sempre acaba em malogro, é melhor aderir ao princípio da centralidade" (103).

A principal diferença entre Laozi e Confúcio está no fato de que, ao passo que em Confúcio a medida

de todas as coisas é o Homem, em Laozi é a Natureza. A simplicidade, wu wei, e outros ideais éticos,

são todas lições morais tiradas da Natureza, que é o padrão para o Céu e a Terra, assim como para o

Homem (104). É o Caminho, ou Dao, o princípio universal da vida. É "a fonte do Céu e da Terra", e "a

mãe de todas as coisas"(105). É eterno, uno, onidifuso e absoluto (108). Acima de tudo, é natural

(107).

Como a realidade é natural, nossa vida também deve sê-lo. Ser natural é viver como água, que é

"semelhante ao bem mais elevado" e "quase idêntico ao Dao" (108). A água "ocupa lugares que as

pessoas detestam", mas "beneficia todas as coisas sem fazer qualquer exigência" (109). "Não há

nada mais brando nem mais fraco do que a água, e, no entanto, não há nada melhor para atacar

coisas duras e fortes" (110). A idealização da infância nada mais é do que a idealização do estado

natural. Não é o estado de ignorância e incapacidade. É, antes, o estado de quietude, de harmonia e

de introvisão. Acima de tudo, é o estado da vida.

"Tao produziu o um. O um produziu o dois. O dois produziu o

três. O três produziu todas as coisas. Todas as coisas possuem

yin (o principio passivo ou feminino) e contém yang (o princípio

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ativo ou masculino), e a mistura da força vital (ch'i) produz

harmonia"(111). Conhecer essa harmonia chama-se "O

Eterno", e conhecer o Eterno chama-se "Introvisão"(112).

Disse Laozi:

Alcance o completo vazio.

Mantenha inabalável quietude.

Todas as coisas nascem, e vejo por aí seu retorno.

Todas as coisas florescem, mas cada uma retorna à sua raiz.

Este retorno à raiz chama-se qüiescência;

Significa seu retorno de acordo com o seu Fado.

Retornar de acordo com o Fado chama-se o Eterno.

Conhecer o Eterno chama-se Introvisão.

Não conhecer o Eterno e agir cegamente é desastroso.

Conhecer o Eterno é ser liberal.

Ser liberal é não ter preconceito.

Não ter preconceito é ser compreensivo.

Ser compreensivo é ser grande.

Ser grande é ser como Tao (o Caminho).

Ser como Tao é (possuí-lo) para sempre e não falhar por toda a

vida (113).

É esta, talvez, a passagem mais abrangente do Daodejing. Devemos notar que o clímax de todo o

procedimento é "não falhar por toda a vida". Aqui temos o sabor humanístico do naturalismo. Não se

deve abandonar a vida, mas torná-la segura e valiosa. A grandeza do Dao é perfeita basicamente

porque nunca se considera grande (114). Quem conhece o contentamento não sofre humilhação.

"Quem sabe quando parar não sofre desgraças. Ali ele pode estar são e salvo" (115). "Apenas

aqueles que não se atormentam com a vida se distinguem tornando a vida valiosa" (116). Em

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resumo, a filosofia de Laozi pode ser resumida com sua frase "O caminho da vida longa e da visão

duradoura" (117).

Quando compreendermos esta ênfase em uma vida simples e harmoniosa no Taoísmo, estaremos

em condições de ver por que essa filosofia naturalista e atéia deve ter sido erigida em fundamento de

uma religião supersticiosa, notória pela sua prática da alquimia e pela crença nos imortais, da China

Medieval. A razão, simples, é que o móvel básico da corrupta religião daoísta era buscar a

longevidade. O efeito do movimento foi que o homem cada vez mais se apegou a uma filosofia

negativa, perdendo confiança em si, assim como numa ordem social progressista. Tal atitude foi

frontalmente contestada, não apenas pelo Confucionismo, mas também pelo Moísmo.

Moísmo, Sofismo e Neomoísmo

Como no Confucionismo, o principal interesse do Moísmo é o homem. Em vez da geral e vaga

"verdadeira natureza humana", entretanto, Mozi (entre 500 e 396 a.C.) advogou o bem-estar do

homem. "Promova o bem-estar geral e elimine o mal" tornou-se o lema de todo o movimento moísta

(118). Mozi se opôs de tal maneira à vazia fala confuciana sobre os "rituais e a música" que os

rejeitou inteiramente em favor dos "benefícios" em termos de população e de riqueza. "Antigos reis e

príncipes", disse, "na administração dos seus Estados, visavam todos à riqueza para o seu país e a

uma grande população" (119). Conseqüentemente, insistiu em que "os homens deviam casar-se com

vinte e as mulheres com quinze anos" (120), e o povoamento serviu de fundamento às suas

denúncias contra a guerra. As expedições militares, disse, destroem a vida de família com o

decréscimo da população (121). Advogou veementemente a economia de gastos (122). Atacou os

funerais e a música, não na base da moral e do decoro, como Confúcio teria feito, mas em base

estritamente utilitária. "A prática de enterros complicados e luto prolongado resulta, inevitavelmente,

em pobreza para o país, em redução da população e em desordem de governo" (123). Demais, a

música desfrutada pelos dirigentes leva a impostos pesados, interfere na agricultura e em outros

empreendimentos produtivos retirando os músicos de suas ocupações e desperdiçando o tempo dos

funcionários públicos" (124).

Nosso filósofo prático chegou a este humanismo utilitário, não apenas como reação contra a

tendência formalista de Confúcio, mas também como resultado de seu método científico. "Para

qualquer doutrina", disse, "algum padrão de juízo deve ser estabelecido. (...) Portanto, para uma

doutrina deve haver três provas. (...) Deve haver uma base; deve haver exame; e deve haver

aplicação prática. Em que há ela de basear-se? Há de ser baseada nas atividades dos antigos reis-

sábios. Como deve ser examinada? Deve ser examinada mediante a sua confirmação em cotejo com

o que o povo realmente ouve e fala. Como aplicá-la? Ponham-na na lei e na política governamental e

vejam se ela é ou não benéfica ao Estado e ao povo"(125).

Em vez de tentar dirigir e regular a experiência mediante um princípio central como a "harmonia

central" de Confúcio ou o Dao de Laozi, esse filósofo utilitário preferiu chegar a um princípio geral

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através de um exame abrangente da própria experiência. Se há ou não fado, por exemplo, é o que

devem determinar os olhos e os ouvidos das pessoas. "Se as pessoas o viram ou o ouviram, direi que

há fado. Se ninguém o viu ou ouviu, direi que não há fado" (126). Embora tal positivismo pareça rude,

o caráter prático e objetivo da filosofia de Mozi é inegável.

Esse caráter prático leva consigo um saber pragmático, porque a utilidade e a escolha são

considerados os princípios diretores do valor e da conduta e mesmo da verdade. "A razão por que

Mozi censura a música não é que o som dos sinos, dos tambores, das harpas e das flautas seja

desagradável (...) mas por que não contribui para a promoção do bem-estar geral e para a eliminação

do mal" (127). Tanto assim que "todas as atividades que são benéficas para o Céu, os espíritos e os

homens" devem ser incentivadas como "virtudes celestiais", ao passo que "todas as palavras e atos a

eles perniciosos" devem ser considerados um "inimigo" (128). Não pode haver nada que seja bom,

porém inútil (129). O valor de virtudes como a lealdade e a devoção filial é seu "grande benefício"

para as pessoas (130).

Assim, o valor, no Moísmo, está limitado a "benefícios", e todos os valores devem ser avaliados em

termos de sua capacidade de "promover o bem-estar e de eliminar o mal". Uma boa vida e uma

sociedade bem ordenada dependerá, basicamente, da escolha acertada de tais valores. "Um cego é

incapaz de distinguir o negro do branco, não porque desconheça suas distinções, mas porque não

pode escolher entre eles." Da mesma maneira, "os homens superiores do mundo não sabem o que é

realmente a benevolência, não porque lhe desconheçam a definição, mas em virtude do seu malogro

em escolher o que seja realmente benevolente"(131).

Para comprovar a utilidade de um valor, deve-se pô-lo em uso a fim de ver se ele realmente contribui

para a "promoção do bem-estar e a eliminação do mal". O princípio fundamental desse uso é a

famosa doutrina moísta do Amor Universal, que visa à maior felicidade para o maior número de

pessoas mediante "o amor das pessoas umas pelas outras beneficiando-se mutuamente" (132). "É

este", declarou Mozi, "o princípio dos antigos reis-sábios e do bem-estar geral dos homens" (133). A

sua falta é a causa da desordem social (134). Assim, deixai que todos "tratem outros países como ao

seu, que tratem outras famílias como à sua, e que tratem outras pessoas como tratam a si mesmos"

(135). É interessante notar que mesmo tal princípio não está livre de um saber utilitário, pois pelo

menos uma das razões dessa doutrina benevolente é utilitária, a saber, "aqueles que amam os outros

serão amados" (136).

É óbvio que o fundamento de semelhante filosofia utilitária não pode ser buscado em qualquer

sanção interna. Em vez disso, deve ser buscado na "experiência dos homens mais sábios do

passado". Essa reverência pelo passado de modo algum solapa o espírito prático da filosofia moísta.

Antes o realça, pois, conforme Mozi, "As medidas governamentais dos antigos reis-sábios

destinavam-se a reverenciar o Céu, servir os espíritos e amar os homens" (137).

Outra sanção, a religiosa, também tem um cunho de interesse prático. "Se todas as pessoas

acreditarem no poder dos espíritos para abençoar o bem e condenar o mal, não haverá desordem"

(138). Esta crença, quando aplicada ao Estado e às pessoas, "torna-se um princípio relacionado com

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o restabelecimento da ordem no Estado e com a promoção do bem-estar do povo" (139). Foi devido a

tal eficácia prática da religião que Mozi se tornou seu principal defensor na antiga China, mais ainda

do que Confúcio. Não se pode aceitar a teoria de que Mozi fundou urna religião e de que os seus

adeptos organizaram uma espécie de ordem religiosa. Não se pode negar, porém, que Mozi foi mais

longe que Confúcio na tentativa de preservar um sistema religioso. Ao passo que Laozi claramente se

inclinava para a esquerda e Confúcio aderiu ao "áureo meio" na crença no sobrenatural, Mozi

inegavelmente representava a direita. Podemos seguramente dizer, entretanto, que o critério da

crença religiosa moísta era também o interesse humano, pois Mozi disse: "Faço tudo que o Céu

desejar que eu faça; e o Céu faz tudo que eu desejo que Ele faça" (140).

A maneira exata por que a escola moísta se desenvolveu depois de Mozi ainda é matéria de

controvérsia. Há alguma prova de que ela se tornou uma ordem religiosa. Mas outro aspecto do seu

desenvolvimento, sua tendência lógica, conhecida como Neomoísmo, tem mais interesse para nós.

Os neomoístas, que floresceram nos séculos III e IV a.C., procuraram instituir sua filosofia prática em

bases lógicas, e, assim fazendo, acharam necessário refutar a sofisticaria de Hui Shih (390 - 305

a.C.), Kung-sun Lung (apr. 400 - apr. 300 a.C.) e outros sofistas. O primeiro expressou suas idéias

em paradoxos como "O maior nada tem dentro de Si: chama-se a Grande Unidade. O menor nada

tem dentro de si: chama-se a Pequena Unidade"; "O sol começa a pôr-se ao meio-dia; uma coisa

começa a morrer ao nascer"; e "Vou a Yüeh hoje e cheguei lá ontem" (141). Kung-sun Lung e seu

grupo eram ainda mais sofísticos: sustentavam que "o ovo tem plumas"; que "uma ave tem três

pernas"; que "as rodas não tocam no chão"; que "a sombra de um pássaro que voa nunca se move";

que "uma flecha que voa ligeiro às vezes não se move e às vezes não pára"; que "um cavalo marrom

e um boi escuro fazem três"; e que "se uma vara com um pé de comprimento for cortada todos os

dias pela metade, nunca poderá acabar, nem depois de dez mil gerações"(142). Kung-sun Lung

afirmou outrossim que "um cavalo branco não é um cavalo" porque "a palavra 'cavalo' denota forma e

a palavra. 'branco' denota cor". "Um cavalo não é condicionado por qualquer cor, e, assim, tanto um

cavalo amarelo como um preto podem responder.' Um cavalo branco, porém, é condicionado pela cor

..."(143). Propôs a teoria de que todas as coisas são "marcas", designações ou predicados (144), e

de que as qualidades de solidez e alvura são independentes da substância da pedra (145). O

principal interesse dos sofistas estava em conceitos como o espaço e o tempo, a potencialidade e a

realidade, o movimento e o repouso, o geral e o particular, e substância e qualidade. Em suma, todo o

movimento dos sofistas representou um interesse no conhecimento pelo conhecimento, um interesse

no de todo em harmonia com o profundo interesse pela vida que se encontra tanto no Daoísmo corno

no Confucionismo e no Moísmo. Não admira que o Sofismo se tenha tornado o alvo do ataque de

todos eles (146).

Mas os neomoístas, a fim de manterem seu interesse prático em face do intelectualismo dos sofistas,

tiveram de tornar o seu próprio sistema lógico suficientemente forte para defender sua filosofia

utilitária. Por conseguinte, escreveram Os Seis Livros do Neomoísmo sob a forma de definições,

proposições, notas e provas, agora incorporadas às Obras de Mozi (147). Nelas desenvolveram sete

métodos de argumentação, a saber, os métodos de "possibilidade", de "hipótese", de "imitação", de

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"comparação", de "paralelo", de "analogia" e de "indução"(148). Classificaram os nomes em três

classes - "gerais, genéricos e particulares"(149). Descobriram o "método do acordo", que inclui

"identidade, relação genérica, coexistência parcial"; o "método da diferença", que inclui "dualidade,

ausência de relação genérica, separação e dessemelhança"; e o "método conjunto de diferenças e

semelhanças".(150) "Identidade significa que duas substâncias têm um nome, enquanto a relação

genérica significa inclusão no mesmo conjunto. Estarem ambos no mesmo quarto é um caso de

coexistência, ao passo que semelhança parcial significa ter alguns pontos de semelhança. (...)

dualidade significa que duas coisas necessariamente diferem. Ausência de relação genérica significa

não ter qualquer conexão. Separação significa que as coisas não ocupam o mesmo espaço.

Dessemelhança significa nada ter em comum" (151). Definiram um modelo como aquilo de acordo

com o que algo se torna" (153) e explicaram que "o conceito de um círculo, o perímetro e o

verdadeiro círculo (...) podem todos ser usados como modelo"(153). Rejeitaram a teoria dos sofistas

de que a solidez e. a alvura e a pedra são três. Ao contrário, sustentaram que a solidez e a alvura

estão na pedra(154), e que as duas qualidades não são mutuamente exclusivas (155).

Embora seja significativo que os neomoístas se tenham recusado a tolerar distinções como a de

qualidade e substância, ponto igualmente importante a ser notado é que saber é poder. Para os

neomoístas, saber significa "encontrar" (156). Quer tome a forma de "compreensão" (157),

"aprendizado", "inferência" ou "busca" (158) seu fim é a conduta(159). A função do saber é guiar o

homem em seu comportamento, especialmente na "escolha" inteligente entre o prazer e a dor. "Se

um homem quer cortar o dedo e sua faculdade cognitiva não percebe as conseqüências nocivas

desse ato, a culpa é de sua faculdade cognitiva. Se ele sabe as conseqüências nocivas e toma

cuidado, não sofrerá". Mas se ainda assim quiser cortar o dedo fora, então sofrerá (160). Mas,

"quando se corta um dedo para conservar a mão, é para escolher o maior beneficio e escolher o mal

menor" (161). Com essa "escolha" inteligente, a "promoção moísta do bem-estar geral e da

eliminação do mal" pode ser levada avante.

É uma pena que esse movimento lógico tenha morrido quase na infância, privando assim a China de

um sistema de Lógica desinteressado, analítico e científico sobre o qual a Metafísica e a

Epistemologia poderiam ter sido edificadas. Entretanto, o assoberbante interesse pelos assuntos

humanos não foi o único fator que impediu o crescimento do intelectualismo. Houve um forte

movimento antintelectual na China durante o século IV a.C., cujo melhor representante foi Zhuangzi

Zhuangzi e a Escola Yin-yang

Tanto no humanismo moralista da escola confuciana como no humanismo utilitário dos moístas, o

intelecto desfrutou um lugar justo. É verdade que Laozi condenou o saber em termos inequívocos,

mas a "introvisão" no Daodejing contrasta com a esperteza e o engodo. À época de Zhuangzi (entre

399 e 295 a.C.), desenvolveu-se ele ao ponto de quase completa inconsciência. Nas palavras do

próprio Zhuangzi, o verdadeiro saber é "grande saber", e grande saber é "amplo e abrangente" (162).

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Com isso queria dizer que a mente "não faz distinções, não alimenta subjetivismo, mas atém-se ao

universal" (163).

O princípio básico desta doutrina de pura unidade é que Dao produziu todas as coisas (164), é

fundamento para todas as coisas (165) e está em todas as coisas, mesmo em coisas insignificantes

como a formiga, a ervilhaca, um caco de vaso de barro e o lixo (166). Do ponto de vista de Dao,

portanto, "todas as coisas são iguais", tema ao qual está dedicado todo o segundo capitulo do

Zhuangzi. "Tomem-se uma viga e uma pilastra, ou tome-se uma mulher de ar doentio e Xi Shih

(beleza famosa), ou tomem-se a grandeza, a monstruosidade, a ilusão e a estranheza. Dao identifica-

os como um só. A separação é a mesma coisa que a construção; a construção é a mesma coisa que

a destruição" (167). Falando-se de modo geral, "o 'isto' é também o 'aquilo' e o 'aquilo' é também o

'isto'" (168). Do ponto de vista da "causalidade mútua", o "'aquilo' é produzido pelo 'isto' e o 'isto' é

causado pelo 'aquilo'" (169). Isso quer dizer que "O nascimento veio da morte e a morte veio do

nascimento"; que "Onde há possibilidade, há impossibilidade"; que "O certo veio do errado e o errado

veio do certo"(170). Pelo padrão de Dao, também, "Não há nada debaixo do pálio do céu maior do

que a ponta de um pêlo outonal, e a enorme montanha T'ai é uma coisinha" (171).

Esta doutrina da "igualdade das coisas" ou da "identidade dos contrários" não pode ser levada mais

longe. Sua glorificação da unidade, da identidade e da síntese pode ser considerada uma virtude,

mas sua condenação do particular, do concreto e do específico deve ser vista como um defeito. Se

absolutamente nenhuma distinção pudesse ser feita, não apenas a lógica, mas também a moral seria

impossível. Na verdade, aos olhos de Zhuangzi, a civilização não é uma benção, mas uma maldição.

(...) "O sábio, portanto, (...) considera o conhecimento uma maldição. (...) Ele não precisa de moral

(...) é alimentado pela Natureza. Ser alimentado pela Natureza é ser sustentado pela Natureza. Se o

Homem é sustentado pela Natureza, qual é a utilidade do seu esforço?" (172). Toda benevolência e

toda correção, os ritos e a música devem ser "esquecidos" (173).

Isto é primitivismo elevado ao grau máximo. Em nenhuma outra parte da Filosofia chinesa

encontramos primitivismo tão radical. A filosofia naturalista da vida de Zhuangzi exerceu tremenda

influência sabre os libertinos fatalistas dos séculos V e VI, ao passo que as suas doutrinas

metafísicas naturalistas se tornaram pontos de contato entre o Taoísmo e o Budismo. Sua ênfase na

transformação incessante e espontânea e na "igualdade das coisas" afetou quase todos os filósofos

chineses nos últimos quinze séculos. Como glorificador da Natureza, ele ainda é hoje, como tem sido

nos últimos quinze séculos, a principal fonte de inspiração e de imaginação para os artistas chineses,

especialmente pintores de paisagem.

A grandeza e a importância de Zhuangzi estão basicamente na sua exaltação da Natureza. O

humanismo, para ele, perdeu todo significado, porque o Homem no mundo nada mais é do que "a

ponta de um fio na pele de um cavalo" (174). Assim sendo, "os intimamente retos" querem ser

"companheiros da Natureza" (175) e "adeptos da Natureza" (176). Não querem "ajudar o Céu com o

Homem" (177). Quer dizer, enquanto "cavalos e bois tiverem quatro pés, não ponha cabresto na

cabeça de um cavalo nem anel no nariz de um novilho" (178). Não ajudar o Céu com o Homem é a

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versão de Zhuangzi do wu wei, a única na qual a felicidade pode ser encontrada. "A felicidade perfeita

e a preservação da vida devem ser alcançadas através da espontaneidade" (179). "Não sejas o

proprietário da fama. Não sejas um reservatório de planos. Não sejas sobrecarregado de trabalho.

Não sejas dono do saber. Identifica-te com o Infinito e passeia livremente pelo insondável. Exercita

plenamente o que recebeste da Natureza sem qualquer subjetividade. Em uma palavra, sê vazio"

(180).

Quando um homem alcança semelhante estado, torna-se um "homem puro", um homem que "não

soube o que era amar a vida e odiar a morte. Não se regozijou com o nascimento nem repeliu a

morte. Foi espontaneamente e espontaneamente veio - eis tudo. Não se esqueceu de onde veio nem

procurou saber onde terminaria. Aceitou as coisas alegremente, e devolveu-as à Natureza sem

reminiscência. Isto é não violar Dao com o coração humano, nem assistir o Céu com o Homem. (...)

Sendo assim, sua mente ficou livre de todos os pensamentos. (...) Esteve em harmonia com todas as

coisas, e assim por diante, até o Infinito" (181).

Para alcançar esse objetivo, devemos não "ter um eu", "nenhuma realização" e "nenhuma fama"

(182). Devemos "deixar nossa mente em paz conformando-nos à natureza das coisas. Cultivar nosso

espírito segundo o que é necessário e inevitável". "Para a nossa vida externa, não há nada melhor do

que a adaptação e o conformismo. Para a nossa vida interna, não há nada melhor do que a paz e a

harmonia"(183). Aqui temos, em poucas palavras, primitivismo, misticismo, quietismo, fatalismo e

pessimismo.

O tom de fatalismo e pessimismo foi intensificado pelo fato de que tanto a realidade quanto a vida dos

homens estão sempre mudando. "A vida de uma coisa passa como um cavalo a galope. Em

nenhuma atividade deixa ela de estar em estado de mudança; em nenhum momento deixa ela de

estar em estado de fluxo. Que deve ela fazer? Que não deve ela fazer? Na verdade ela sé pode

deixar sua transformação espontânea continuar"(184). A vida é transitória e a vida do homem é tão

momentânea quanto a das coisas. "Estas entram na vida e dela saem; sua maturidade é

impermanente. Na sucessão do crescimento e da decadência, estão mudando de forma

incessantemente. Anos passados não podem ser revividos; o tempo não pode ser detido. A sucessão

dos estados é interminável; e todo dia. é seguido por um novo começo" (185). Neste universo fugaz,

a única maneira de um homem ter paz é deixar que a Natureza siga seu próprio rumo. Ele não deve

discutir "se há um ajuste mecânico que torne inevitável o movimento dos corpos celestes", ou "se a

rotação dos corpos celestes está além do seu próprio controle" (186). Talvez haja um Senhor

supremo de tudo, mas, "se realmente há um soberano, falta o indício da sua vida" (187). A única

coisa de que estamos certos é de que "todas as coisas brotam de germes e se tornam germes

novamente". "Todas as espécies vêm de germes. Certos germes, caindo na água, tornam-se lentilhas

- d'água (...) tornam-se líquenes (...) tornam-se um eritrônio (...) produzem o cavalo, que produz o

Homem. Quando o Homem envelhece, torna-se germes outra vez" (188). Em passagens como estas

não podemos deixar de ser atraídos pela imaginação poética de Zhuangzi e pelo seu pensamento

evolucionista. Mas ficamos também impressionados com a inevitável "transformação espontânea e

com a vida transitória. Em desafio a tais fatos irredutíveis, o homem puro "harmoniza todas as coisas

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com a igualdade da Natureza e as deixa sós no processo da transformação natural. Esta é a maneira

de completar o curso da nossa existência. (...) Esquecemos as distinções entre vida e morte e entre

certo e errado. Achamos satisfação no reino do Infinito e, portanto, ali paramos" (189).

Claro que não devemos esquecer que, apesar da idéia de fuga em Zhuangzi, seu principal interesse

ainda era a "preservação da vida". Ele dedicou um capítulo inteiro aos "princípios fundamentais do

aperfeiçoamento da vida" (190). Quanto a isso, associou-se ao coro das "Cem Escolas" que

floresceram durante os séculos III e IV a.C. na China. Todos ambicionavam uma vida boa e cada um

tinha uma doutrina superior, de sua própria criação. Em nenhum outro período da história chinesa, ou

da história de qualquer país, houve mais liberdade de pensamento e mais profuso desenvolvimento

intelectual.

Perpassando este desenvolvimento múltiplo havia uma forte corrente intelectual cuja origem pode ser

buscada no passado remoto, quando a adivinhação era a única forma de atividade intelectual. É a

teoria do yin e do yang, ou os princípios universais do passivo ou feminino, e ativo ou masculino, os

quais, conforme o Daodejing, tornaram possível a harmonia do mundo. No clássico confuciano Yi jing

(191) aprendemos que "No princípio, há o Grande Final (Tai ji) que gera os Dois Modos Primários. Os

Dois Modos Primários produzem as Quatro Formas. As Quatro Formas dão origem aos Oito

Elementos. Estes Elementos determinam todo o bem e o mal e a grande complexidade da vida". A

data do Yi jing ainda está cercada por uma atmosfera de incerteza, mas as idéias fundamentais, de

que o universo é um sistema dinâmico de mudança incessante do simples para o complexo, e de que

os Dois Modos Primários (yin e yang) são os agentes da mudança, devem ter-se antecipado por

vários séculos à elaboração do livro.

Nenhum estudante de história chinesa deve subestimar esta idéia do yin e do yang, não apenas

porque ela condicionou amplamente a visão chinesa da realidade, mas também porque proporcionou

o fundamento comum para a mistura das escolas filosóficas divergentes. O movimento foi tão forte

que por volta do século IV a.C. se tornou uma escola independente. Finalmente identificou-se, no

século IV a.C., com o comum e vigoroso movimento que tinha por égide Huang di, bem como com a

filosofia predominante de Laozi, assumindo o nome "Huang-Lo". Ao mesmo tempo, a idéia yin yang

do Yi jing tornou-se o aspecto mais importante do Confucionismo. Efetivamente, a nota do yin yang é

a nota dominante no segundo movimento da sinfonia intelectual da China, a saber, a filosofia chinesa

medieval.

Filosofia Medieval

Foi em torno da doutrina do yin yang que a primitiva filosofia chinesa se desenvolveu, em várias

direções. Tanto em Huainanzi, o daoísta, como em Dong Zhong-shu, o confucionista, levou a uma

filosofia de microcosmo-macrocosmo, ao passo que em Wang Chong levou o naturalismo em

oposição direta à teoria da correspondência. Huainanzi (morto em 122 a.C.) tentou desenvolver uma

cosmologia mais racional do que os predecessores. Opinou que "Houve um Começo", um "começo

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de uma Anterioridade a Este Começo", e um "começo de uma Anterioridade mesmo antes do começo

desta Anterioridade" (192) e que o Grande Começo produz em sucessão o espaço, o universo, a

força vital primária, o yin e o yang, e, finalmente, a forma material (193). Mas tudo isso é apenas o

desdobramento do Dao (194). Ademais, embora insetos, peixes, pássaros e animais "difiram em sua

natureza e destino", "todos vêm do mesmo Grande Começo", "com referência ao qual o homem puro

não faz distinção"(195). Até aí, Huainanzi não se afasta da antiga filosofia chinesa. Mas a idéia yin

yang que vem com ele acrescenta uma nota nova ao Daoísmo. "O Céu tem as Quatro Estações e os

Cinco Elementos (...) que encontram correspondência nos quatro membros e nas cinco vísceras do

homem (...)" (196) porque são meras manifestações diferentes dos mesmos princípios do yin e do

yang.

O espírito de correspondência assume aspecto ainda mais importante em Dong Zhong-shu (177-104

a.C.), que cooperou para fazer do Confucionismo um culto estatal. Para ele, "Todas as coisas têm

seus complementos de yin e yang. (...) Os princípios subjacentes de príncipe e ministro, pai e filho,

marido e mulher derivam todos da maneira de ser do yin e do yang. O príncipe é yang e o ministro é

yin. O pai é yang e o filho é yin. O marido é yang, e a esposa é yin"(197). Em resumo, tudo que é

concebível pode ser reduzido a estes dois princípios universais. Tais princípios se expressam por

meio dos Cinco Agentes a que todas as coisas do mundo correspondem. Os Cinco Agentes têm sua

correspondência nos cinco tons, nos cinco sabores, nas cinco cores, nas várias direções, nas virtudes

morais (198).

Este esquema de correspondência deve ter tido um fascínio extraordinário para os chineses

medievais, pois dominou o pensamento chinês por não menos de cinco séculos. Tanto os daoístas

como os confucionistas o achavam agradável porque era uma expressão sistematizada da idéia de

harmonia, uma idéia chegada ao coração deles. Mas o verdadeiro espírito de harmonia, seja a

harmonia central do Confucionismo, seja a harmonia íntima dos daoístas, ou a harmonia entre o

Homem e a Natureza pela forma como é ensinada por ambas as escolas, se havia perdido. O

movimento de correspondência tomou-se um assunto de esporte intelectual, um jogo de enigmas, e

finalmente uma superstição. Escreveu-se um volume após outro de "Textos Complementares" para

ajudar a interpretação do Yi jing. Este corpo de literatura se tomou tão grande, e tão influente que

muitas diretrizes políticas de Estado foram decididas por estranhas confirmações desses livros

infestados de superstição. A Filosofia chinesa entrara numa era obscura, uma era em que o

Confucionismo se desenvolveu em culto de Estado e não numa filosofia racional, e o Daoísmo

degenerou e identificou-se com as formas mais baixas do culto religioso. Era natural que se

levantasse forte reação contra tal estado de coisas. Pouco a pouco, o espírito crítico se fez sentir, até

alcançar um grau tão elevado, do século III ao V, que deu origem a um vigoroso movimento de crítica

de texto e a um movimento igualmente vigoroso de pensamento político livre.

O representante principal desse espírito crítico foi Wang Chong (27-apr. 100 d.C). Talvez nenhum

outro filósofo chinês pudesse rivalizar com ele em pensamento racional e em espírito critico. Ele

atacou todas as espécies de crenças errôneas, crenças em fantasmas (199), no trovão como ruído do

descontentamento do Céu (200), em calamidades como castigos do Céu (201), no passado como

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superior ao presente (202) e muitas outras crenças falsas. Sustentou que "todas as coisas são

produzidas espontaneamente pela fusão das forças vitais do Céu e da Terra (yin e yang) (203). Estas

criações espontâneas não são em benefício do Homem, porque a opinião de que o Céu produz

cereais para alimentar a Humanidade equivale a fazer do Céu o fazendeiro do Homem (204). Além

disso, "Se o Céu tivesse produzido criaturas de propósito, deveria tê-las ensinado a amarem-se umas

às outras, e não a atacar-se e destruir-se"(205). Tem-se aqui o mais completo naturalismo da

Filosofia chinesa.

Filosofia Medieval Posterior

Wang Chong lutava por repor o naturalismo em bases racionais, apelando para a razão e a

experiência. Se a Filosofia chinesa se tivesse desenvolvido nessa linha, sua história teria sido

diferente. Infelizmente, o Taoísmo como filosofia mal se desenvolveu, exceto no caso do livro

chamado Liezi (apr. 300 d.C.), no qual a idéia de Dao é levada ao ponto de um mecanismo fatalístico

(206), e no filósofo Ko Hung (Baopuzi, apr. 268-apr. 334 d.C.), em quem a filosofia daoísta foi

transformada na base filosófica da Alquimia e na pesquisa da longevidade. Somente em Guo Xiang

(apr. 312 d.C.) reviveu o verdadeiro espírito do Daoísmo. Ele restabeleceu e desenvolveu as

doutrinas daoístas do naturalismo e da transformação espontânea, dando-lhes uma posição de

dignidade.

No Confucionismo, o único desenvolvimento notável foi em Han Yü (767-834 d.C.), cuja teoria dos

três graus da natureza humana e cuja defesa do Confucionismo tiveram sucesso devido mais à

beleza do seu estilo literário do que à força do seu raciocínio. A fase realmente construtiva da

Filosofia chinesa, nesse período, foi a introdução e desenvolvimento da filosofia budista.

Notas:

(1) The New China Book Co., Xangai (1917), 1922.

(2) Parte I, 1930. Parte II, 1933. Parte 1, traduzida por D. Bodde, Henri Vetch, Peiping, 1937.

(3) Confúcio, Lun Yü (Analectos), Livro XV, Cap. 28 (cf. traduções inglesas por James Legge, The

Analects, em The Chinese Classics, Londres, 1861-1897, Vol. I, 1872, e também em The Four Books,

Honan, 1871, nova edição, The Chinese Book Co., Xangai, 1932; por W. E. Soothill, The Analects of

Confucius, Yocohama, 1910, nova edição, Oxford University Press, 1937; e por Arthur Waley, The

Analects of Confucius, Allen & Unwin, Londres, 1938).

(4) VII, 7. As traduções incluídas neste capítulo, salvo indicação em contrário, são minhas.

(5) XV, 38.

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(6) Literalmente, o Caminho. A mesma palavra é usada tanto por confucianos como por daoístas, mas

com sentidos radicalmente diferentes.

(7) Lun Yü, VII, i.

(8) III, 9, 14; XVII, 5; VII, 5.

(9) XVI, 8.

(10) XIV, 38.

(11) III, 12.

(12) V, 12.

(13) VII, 20.

(14) XI, ii.

(15) Ta Hsüeh (O Grande Saber), Introdução; cf. tradução de Lin Yutang, em seu The Wisdom of

Confucius [A Sabedoria de Confúcio], págs. 139-140.

(16) Lun Yü, IX, i.

(17) XII, i.

(18) XIII, 19.

(19) XIII, 27.

(20) XVII, 6.

(21) VI, 28.

(22) XII, 22.

(23) XIV, 30.

(24) XV, 17.

(25) XVI, 7.

(26) XVI, 10.

(27) XII, i.

(28) IV, 24.

(29) XV, 31; IV, 12, 16.

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98

(30) XVI, 5.

(31) IV, 5.

(32) XV, 23.

(33) XIV, 36.

(34) II, 5.

(35) I, 2.

(36) II, i, 3; XII, 17, 19; XIII, 4; XI, 25.

(37) XIII, 9; XVI, i.

(38) XII, 22.

(39) XIX, 7.

(40) XVII, 9.

(41) XVII, ii.

(42) XII, ii.

(43) IV, 15.

(44) IV, 15.

(45) VI, 27.

(46) XI, 15.

(47) Mêng Tsé (As Obras de Mêncio), VI, I, 2 (cf. a tradução inglesa de James Legge, The Works of

Mencius, em The Chinese Classics, op. cit., Vol. II e em The Four Books, op. cit.).

(48) Ibid., VI, I, 6,

(49) Ibid., VI, I, 6; II, I, 6.

(50) Ibid., VII, I, 21; VII, II, 24; VI, I, 10; VII, I, 21.

(51) Ibid., VII, I, 15.

(52) Ibid., II, I, 6.

(53) Ibid., VII, I, 15.

(54) Ibid., VII, I, 4.

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(55) Ibid., IV, I, 12.

(56) Ibid., VII, I, i.

(57) Ibid., VI, I, 7.

(58) Ibid., VI, I, ii; VI, I, ii.

(59) Ibid., VII, II, 16.

(60) Ibid., IV, II, 28; VI, I, 10

(61) Ibid., IV, II, 28.

(62) Ibid., IV, I, 27.

(63) Ibid., V, I, 4.

(64) Ibid., III, I, 4.

(65) Hsün Tzu, Cap. VIII (cf. tradução inglesa de H. H. Dubs, The Works of Hsiintze, Probsthain,

Londres, 1928, pág. 96).

(66) Ibid., Cap. VII.

(67) Cap. XVII (tradução de Hu Shih, em seu The Development of the Logical Method in Ancient

China, pág. 152).

(68) Cap. XXIII (cf. Dubs, pág. 301).

(69) Ibid. (cf. Dubs, pág. 302).

(70) Cap. VIII (cf. Dubs, pág. 115).

(71) Cap. XIX (cf. Dubs, pág. 213).

(72) Cap. XXII (cf. Dubs, pág. 284).

(73) Cap. XXI (cf. Dubs, pág. 277).

(74) Cap. XVII (cf. Dubs, pág. 174).

(75) Tradicionalmente atribuído a Cizi (Tsu Ssu, 492-431 a.C.), neto de Confúcio. É um capítulo dos Li

ji (Li Ki, ou O Livro dos Ritos). Tradução de Ku Hung-ming: The Conduct of Life, série "The Wisdom of

the East [A Sabedoria do Oriente] (Londres: John Murray, 1906), revista por Lin Yutang, em sua obra

The Wisdom of Confucius, The Modern Library (Nova Iorque: 1938), págs. 104-134, e em seu livro

The Wisdom of China and India (Nova Iorque: Random House, 1942), págs. 843-864.

(76) Ibid., Cap. I.

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(77) Cap. II.

(78) Cap. XX.

(79) Cap. XXVI.

(80) Ibid.

(81) Cap. XXII.

(82) Laozi é situado tradicionalmente por volta de 570 a.C. Nas duas últimas décadas, a teoria de

Wang Chong (1744 - 1794), de que Laozi e o Daodejing pertenceram ao século IV a.C. foi

ressuscitada e aceita por muitos eruditos chineses e ocidentais. Entre os primeiros estão Liang Ch'i-

ch'ao, Ku Chieh-kang, Fung Yu-lan (The History of Chinese Philosophy; tradução de Bodde, págs.

170 e segs.), Ch'ien Mu, etc. Entre os últimos, Arthur Waley (The Way and Its Power, 1934, págs.

101-108), Homes H. Dubs ("The Date and Circunstances or the Philosopher La-dz", Journal of the

American Oriental Society, vol. LXI, n.0 4, dezembro de 1941, págs. 215-221; "The Identification of

the Lao-Dz", ibid., vol. LXII, n.0 4, dezembro de 1942, págs. 300-304), etc. Embora o Dr. Hu Shih não

afaste a possibilidade desta teoria, sente que as provas para justificá-la são insuficientes ("A Criticism

of Some Recent Methods Used in Dating Lao Tzu", 1933, traduzido no Harvard Journal of Asiatic

Studies, vol. II, nos. 3 e 4, dezembro de 1937).

(83) Lieh Tzu, Cap. VII. Vide abaixo pág. 68.

(84) The Works of Mencius, Livro VII, Parte I, Cap. 26.

(85) Huai-nan Tzu, Cap. XIII (cf. E. Morgan, Tao, the Great Luminant, pág. 155).

(86) The Works of Han Fei Tzu, Cap. I.

(87) Lieh Tzu, Cap. VII. Vide tradução inglesa do capítulo por A. Forke, Yan Chu's Garden of

Pleasure, Murray, Londres, 1912.

(88) Tao-tê Ching (Tao Tê King): Caps. XII, XIX. Traduções bem conhecidas do Tao-tê Ching são:

The Canon of Reason and Virtue, por Paul Carus, The Open Court Co., Chicago, 1913; The Way and

its Power, por Arthur Waley, Allen & Unwin, Londres, 1934. A tradução de Lin Yutang, "The Book of

Tao", em sua The Wisdom of China and India, é boa.

(89) Ibid., Caps. XLV, X, LI, XII, XXIV.

(90) Cap. LVIII.

(91) Caps. XVIII, II, XII, XIX, XXXVIII.

(92) Caps. XXX, XXXI, LXVIII, LXXIII, LIII, LXXV, LVII, LXXIV, LXXV.

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(93) Hu Shih, Shuo Ju, 1934, agora incluído em Hu Shih Lun-hsüeh Chin-chu, Primeira Série,

Commercial Press, Xangai, 1935, págs.3-81.

(94) Tao-tê Ching, Cap. II.

(95) Caps. LXIV, XXXVII.

(96) Cap. XXXVII.

(97) Caps. III, LVII.

(98) Caps. XL, XI, LXXVIII, XLIII, LXXVI.

(99) Cap. I.

(100) Cap. XLV.

(101) Caps. VI, XX, XXVIII, LXI, X, XLIX, LV.

(102) Cap. XVL.

(103) Cap. V.

(104) Cap. XXV.

(105) Caps. I, IV, XXV.

(106) Caps. I, XIV, XLII, XXV, XXXIV, XXI.

(107) Cap. XXV.

(108) Cap. VIII.

(109) Cap. VIII.

(110) Cap. LXXVIII.

(111) Cap. XLII.

(112) Cap. LV.

(113) Cap. XVI.

(114) Cap. XXXIV.

(115) Cap. XLIV.

(116) Cap. LXXV.

(117) Cap. LIX.

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(118) Mo Tsé, Cap. XVI (cf. tradução inglesa de Mei Yi-pao, The Ethical and Political Works of Motse,

Probsthain, Londres, 1920, pág. 87).

(119) Cap. XXXV (cf. Mei, pág.182).

(120) Cap. XX (cf. Mei, pág. 1118).

(121) Cap. XX (cf. Mei, pág. 119).

(122) Caps. XX e XXI.

(123) Cap. XXV (cf. Mei, pág. 127).

(124) Cap. XXXII (cf. Mei, págs. 175-180).

(125) Cap. XXXV (cf. Mei; págs. 182-184).

(126) Cap. XXXVI (cf. Mei, pág. 189).

(127) Cap. XXXII (cf. Mei, págs. 175-177).

(128) Cap. XXVIII (cf. Mei, pág. 155).

(129) Cap. XVI (cf. Mei, pág. 89).

(130) Cap. XVI (cf. Mei, pág. 97).

(131) Cap. XLVII (cf. Mei, pág. 225).

(132) Cap. XV (cf. Mei, pág. 83).

(133) Cap. XVI (cf. Mei, pág. 97).

(134) Cap. XIV (cf. Mei, pág. 78).

(135) Cap. XV (cf. Mei, pág. 82).

(136) Cap. XV (cf. Mei, pág. 83).

(137) Cap. XXVII (cf. Mei, pág. 138).

(138) Cap. XXXI (cf. Mei, pág. 160).

(139) Cap. XXXI (cf. Mei, pág. 170).

(140) Cap. XXVI (cf. Mei, pág. 136).

(141) Chuang Tzu, Cap. XXXIII.

(142) Ibid.

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(143) King-sun Lung Tzu, cap. II (cf. tradução inglesa de A. Forke, "Os Sofistas Chineses", Journal of

the North China Branch of the Royal Asiatic Society, vol. XXXIV, 1901-1902, págs. 61-82).

(144) Ibid., Cap. III.

(145) Ibid., Cap. V.

(146) Chuang Tzu, Cap. II; Hsum Tzu, Cap. XXI.

(147) Mo Tzu, caps. XL-XLV.

(148) Ibid., Cap. XLV.

(149) Cap. XL.

(150) Cap. XL.

(151) Cap. XLII.

(152) Cap. XL.

(153) Cap. XLII.

(154) Cap. XLIII.

(155) Caps. XL, XLIV.

(156) Cap. XL.

(157) Ibid.

(158) Ibid.

(159) Ibid.

(160) Cap. XLII.

(161) Cap. XLIV.

(162) Chuang Tzu, Cap. II (cf. traduções inglesas de Fung Yu-Lan, Chuang Tzu [Caps. I-VII],

Commercial Press, Xangai, 1931, pág. 45, e de H. A. Giles, Chuang Tzu: Mystic, Moralist, and Social

Reformer, Kelly & Walsh, Xangai, 1926, pág. 14).

(163) Cap. II (cf. Fung, pág. 52).

(164) Cap. VI (cf. Fung, pág. 117).

(165) Cap. VI (cf. Fung, pág. 118).

(166) Cap. XXII (cf. Giles, págs. 285-286).

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(167) Cap. II (cf. Fung, pág. 52).

(168) Cap. II (cf. Fung, pág. 50).

(169) Ibid.

(170) Ibid.

(171) Cap. II (cf. Fung, pág. 56).

(172) Cap. V (cf. Fung, pág. 106).

(173) Cap. VI (cf. Fung, págs. 128-129).

(174) Cap. XVI (cf. Giles, pág. 202).

(175) Cap. IV (cf. Fung, pág. 78).

(176) Cap. VI (cf. Fung, pág. 115).

(177) Cap. VI (cf. Fung, pág. 113).

(178) Cap. XVII (cf. Giles, pág. 211).

(179) Cap. XVIII (cf. Giles, pág. 222).

(180) Cap. VII (cf. Fung, pág. 141).

(181) Cap. VI (cf. Fung, pág. 113).

(182) Cap. I (cf. Fung, pág. 34).

(183) Cap. IV (cf. Fung, págs. 85-86).

(184) Cap. XVII (cf. Giles, pág. 209).

(185) Ibid.

(186) Cap. XIV (cf. Giles, pág. 173).

(187) Cap. II (cf. Fung, pág. 46).

(188) Cap. XVII (cf. Giles, pág. 228).

(189) Cap. II {cf. Fung, pág. 63).

(190) Cap. III.

(191) The Book of Changes [O Livro das Mudanças].

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(192) Huai-nan Tzu, Cap. II (cf. tradução inglesa de E. Morgan, Tao, The Great Luminant, Kelly &

Walsh, Xangai, 1933, pág. 31).

(193) Ibid., Cap. III (cf. Morgan, pág. 58).

(194) Ibid., Cap. VII (cf. Morgan, pág. 59).

(195) Ibid., Caps. XIV, VIII, XIX.

(196) Ibid., Cap. VII (cf. Morgan, pág. 60).

(197) Tung Chung-shu, Ch'un-ch´iu Fan-lu, Cap. LIII. V. E. R. Hughes, Chinese Philosophy in

Classical Times, Londres, Dent, 1942, págs. 293-308.

(198) Ibid., Caps. XXXVIII, XLII.

(199) Wang Ch'ung, Lun Hêng, Cap. XX (cf. tradução de A. Forke, Mittelungen des seminars für

orientalische sprachen, vol. IX, págs. 371-376).

(200) Ibid., Cap. VI (cf. Mittelungen, vol. X, págs. 66-76).

(201) Wang Ch'ung, Luan Hêng, Cap. XIV (cf. Mittelungen, vol. X, págs. 299-300).

(202) Ibid., Cap. XVIII (cf. Mittelungen, vol. XI, págs. 84-85).

(203) Ibid., Cap. XVIII (cf. Mittelungen, vol. IX, pág. 272).

(204) Ibid., Cap. XVIII (cf. Mittelungen, vol. IX, pág. 272).

(205) Ibid., Cap. III (cf. Mittelungen, vol. IX, pág. 284).

(206) Lieh Tzu, trad. inglesa, de L. Giles, Taoist Teachings from the Book of Lieh Tzu, Murray,

Londres, 1912.

Introdução a Ciência Chinesa

Colin Ronan

Entre os chineses, bem como entre os gregos, havia alguns conceitos científicos básicos usados para

explicar o mundo natural. Dentre eles, comum a ambas as civilizações, o que se referia às

propriedades básicas da matéria. Alguns filósofos gregos, como vimos, apoiavam a teoria atômica,

mas o consenso geral não aprovava tal teoria; preferia-se pressupor quatro elementos básicos (terra,

ar, fogo e água) e aliá-los às quatro qualidades (quente e frio, seco e úmido).

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Os chineses nunca desenvolveram uma teoria atômica, pois essa visão não combinava com o

conceito de um universo natural, um vasto organismo que funcionava de acordo com a interação do

comportamento reto e natural, Os moístas. é verdade, parecem ter-se inclinado para uma perspectiva

atômica, mas seus pontos de vista nesse sentido não tiveram qualquer influência. Como os gregos -

os chineses em geral optavam por uma teoria que usava um pequeno número de elementos básicos -

em seu caso, cinco e não quatro. Essa teoria dos cinco elementos vem do passado - entre 330 e 270

a.C. pelo menos - e foi estabelecida e sistematizada por Zou Yan (Tsou Yen), por vezes chamado de

fundador de todo o pensamento científico chinês e membro mais destacado da importante Academia

Zhi xia (Chi Hsia) do príncipe Xuan (Hsuan). Zou Yan era naturalista e pertencia à seita dos filósofos

chineses que não desprezavam as cortes dos príncipes, como faziam os taoístas, mas, apesar disso,

preocupavam-se em explicar o mundo natural.

Os cinco elementos originais chineses eram a água, o metal, a madeira, o fogo e a terra, embora eles

não devessem logicamente ser considerados como meras substâncias (o que não eram), mas, antes,

como princípios ativos. Os elementos eram relacionados com processas existentes na natureza ou

em laboratório. Assim, a água era caracterizada por molhar, gotejar e pelo movimento descendente, e

era associada com o sabor salgado; as características do fogo eram queimar, aquecer pelo

movimento ascendente, e seu sabor era associado com o amargo. A madeira aceitava novas formas

pelo corte e pela escultura, e a acidez a caracterizava; o metal também aceitava formas pela

modelagem ou pela fundição, e era de sabor acre. Finalmente, a terra era caracterizada por produzir

vegetação comestível, e era doce.

Em breve esses elementos foram organizados em um sistema cíclico que se tornou muito estilizado

no período Han. Esboçaram-se várias "ordens" dos elementos. Uma delas mostrava a seqüência na

qual se supunha que os elementos tinham surgido, com a água como elemento primitivo. Uma outra

ordem, a da "produção mútua", acreditava mostrar como um elemento dava origem a outro. Havia

também a ordem da "mútua conquista", em que cada elemento podia conquistar o outro. Por

exemplo, a madeira conquista a terra (uma vez que uma pá de madeira pode cavar a terra); o metal,

a madeira (pode cortá-la e esculpi-la); o fogo, o metal (pode fundi-lo); a água, o fogo (pode extingui-

lo). Para completar, a terra conquista a água (pode represá-la e contê-la, como os chineses sabiam

muito bem, com seus eficientes e muitas vezes elaborados sistemas de irrigação). A ordem da mútua

conquista era usada não só na ciência como também no campo político, pois era crença amplamente

difundida que o comportamento do príncipe ou imperador e de seus funcionarias da corte poderia, se

fosse bom, ser guiado pela ordem da mútua conquista dos elementos, especialmente porque esses

elementos eram associados com as estações e com as manifestações do mundo natural.

Os cinco elementos eram associados com todas as experiências. Constituíam símbolos de mudança,

de quantidade (eram considerados responsáveis pelo controle de um processo, dependendo da

quantidade do elemento presente) e, na ocasião oportuna, eram ligados aos cheiros, assim como aos

gostos, aos pontos cardeais da bússola, às funções humanas, físicas e mentais, e aos animais. Eram

também relacionados com o tempo atmosférico e com a posição das estrelas, com os planetas e até

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107

com aspectos de governo. Em suma, os cinco elementos eram associados a todas as atividades,

tanto naturais quanto as realizadas pelo homem.

Uma segunda idéia básica da explicação chinesa sobre o mundo natural era a das duas forças

fundamentais, o Yin e o Yang. Eram usadas de maneira filosófica no princípio do século IV a.C. o Yin

era associado a nuvens e chuva, ao princípio feminino, a tudo o que está dentro, que é frio e escuro.

O Yang, por outro lado, liga-se às idéias de calor e tepidez, luz do sol e masculinidade. Não podiam

ser encontradas separadamente, já que um era o complemento do outro; o que acontecia é que, em

cada situação, um ou outro tomava a precedência ou (idéia surgida paralelamente, muito mais tarde,

em nossa própria época, na terminologia da genética), um fator era dominante e o outro, recessivo.

Os cinco elementos e as duas forças fundamentais podiam, juntos, apresentar uma multiplicidade de

associações dentro do mundo natural. Podiam cobrir tudo o que era suscetível de um arranjo em

cinco partes, e as coisas que não se enquadrassem no esquema eram, posteriormente, arrumadas

em outras associações - em quatro, nove, 28 partes, e assim por diante. Em outras palavras, os

chineses praticavam o que é chamado de "pensamento associativo"; procuravam associações,

relacionamentos entre uma coisa e outra.

Os cinco elementos e as duas forças fundamentais auxiliaram a ciência chinesa, pois tornaram

possível que relacionamentos fossem definidos e, uma vez definidos, examinados. Eles indicavam

como as coisas podiam "ressoar" uma com a outra, ou, de acordo com os cientistas atuais,

permitiram aos cientistas chineses propor ação a uma distância entre um corpo e outro. Contudo, o

que não trouxe nenhum proveito foi o modo místico de encarar esses relacionamentos, que se

difundiu e foi preservado no I Ching (O livro das mutações). Este provavelmente é uma compilação

das profecias dos camponeses (relatos de acontecimentos extraordinárias notadas no homem e nos

animais, histórias incomuns sobre o tempo e fatos semelhantes) e do material usado para a

adivinhação, e se tornou um minucioso sistema de relacionamentos simbólicos e explicações que os

utilizavam. Os cinco elementos e as duas forças fundamentais eram incorporados em seus extensos

apêndices, embora a idéia das duas forças se tenha freqüentemente inserido no texto principal. A

esse texto principal acrescentou-se uma coleção de padrões simbólicos, cada qual composto de

conjuntos de três ou seis linhas cheias ou interrompidas. Cada um desses padrões é

predominantemente ou Yin ou Yang, e são dispostos de tal modo a produzir esse resultado

alternadamente. Em suma, trata-se de um texto repleto de implicações mágicas, e constitui o deleite

daqueles que apreciam o misticismo relacionado com os números.

O texto data provavelmente do século III a.C., embora suas origens remontem a trezentos anos

antes. Se se tratasse apenas de um texto utilizado para a adivinhação do futuro, não estaríamos

discorrendo sobre ele, mas os apêndices, que estavam em um plano intelectual mais elevado que o

restante do texto, a muitos parecem ter significação real. Apesar de sua natureza abstrata, talvez

contenham uma quantidade tão grande de relacionamentos que poderiam lançar luz sobre todos os

fatos observados na natureza e explicar cada fenômeno. O livro das mutações parecia ser o livro de

referência natural dos estudiosos da época Han que procuravam decifrar os problemas das marés e

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108

dos efeitos do magnetismo; infelizmente suas explicações eram apenas pseudocientíficas, e não

traziam nenhum esclarecimento à luz da ciência. Certamente, a despeito dessa obra, fizeram-se

descobertas de valor científico, mas, muitas vezes, desestimulavam-se essas descobertas com a

alegação de que elas já constavam do Livro das mutações. Isso, naturalmente, parecia estimular-lhe

a validade.

O verdadeiro perigo do Livro das mutações residia no fato de ele agir como esponja, absorvendo toda

observação nova, em busca de associações apropriadas para que os novos fatos pudessem ser

classificados. Um dos efeitos dessa ação foi desencorajar observações posteriores; outro, ridicularizar

idéias. Apesar disso, a ciência chinesa fez progressos. Nenhuma outra civilização parece ter sofrido

tanto por causa de um Livro como o I Ching, mas talvez isso não seja surpreendente; ele era,

essencialmente, um extenso e complexo sistema de arquivamento de relações e estava destinado a

atrair a mente chinesa, que, afinal, desenvolvera a mais extensa - e eficiente - burocracia do mundo.

Fontes dos Textos

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USP – Cultrix, 1979.

Sugestões Bibliográficas

Os textos aqui apresentados servem apenas para fornecer uma base geral sobre os temas propostos.

Assim sendo, aqui vão algumas sugestões para um estudo inicial da Sinologia.

Balazs, E. La Burocracia Celeste. Barcelona: Barral, 1974.

Bedin, F. Como Reconhecer a arte chinesa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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