Uma viagem por palavras de mulheres

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Flora Schroeder Garcia A bordo do Euphrosyne Uma viagem por palavras de mulheres Mestrado em Psicologia Social São Paulo 2020

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Page 1: Uma viagem por palavras de mulheres

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

Flora Schroeder Garcia

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Mestrado em Psicologia Social

Satildeo Paulo

2020

Flora Schroeder Garcia

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Mestrado em Psicologia Social

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de MESTRE em Psicologia Social sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Carla Cristina Garcia

Satildeo Paulo

2020

BANCA EXAMINADORA

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal

de Niacutevel Superior- Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

NUacuteMERO DE PROCESSO 888871694352018-00

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Finance Code 001

PROCESS NUMBER 888871694352018-00

Em memoacuteria dos dias na estrada rumo

ao Sul Fitas cassete livros e paisagens

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

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Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

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exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

32

Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

33

1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

34

35

36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

38

39

Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

40

Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

41

Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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67

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

68

Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

69

detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

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No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 2: Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Mestrado em Psicologia Social

Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de MESTRE em Psicologia Social sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Carla Cristina Garcia

Satildeo Paulo

2020

BANCA EXAMINADORA

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal

de Niacutevel Superior- Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

NUacuteMERO DE PROCESSO 888871694352018-00

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Finance Code 001

PROCESS NUMBER 888871694352018-00

Em memoacuteria dos dias na estrada rumo

ao Sul Fitas cassete livros e paisagens

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

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Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

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1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

74

Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

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forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

100

passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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106

Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

107

PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

108

109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 3: Uma viagem por palavras de mulheres

BANCA EXAMINADORA

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal

de Niacutevel Superior- Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

NUacuteMERO DE PROCESSO 888871694352018-00

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Finance Code 001

PROCESS NUMBER 888871694352018-00

Em memoacuteria dos dias na estrada rumo

ao Sul Fitas cassete livros e paisagens

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

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Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

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1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

74

Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 4: Uma viagem por palavras de mulheres

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal

de Niacutevel Superior- Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001

NUacuteMERO DE PROCESSO 888871694352018-00

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Finance Code 001

PROCESS NUMBER 888871694352018-00

Em memoacuteria dos dias na estrada rumo

ao Sul Fitas cassete livros e paisagens

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

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Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

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1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

74

Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 5: Uma viagem por palavras de mulheres

Em memoacuteria dos dias na estrada rumo

ao Sul Fitas cassete livros e paisagens

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

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Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

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1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 6: Uma viagem por palavras de mulheres

Para Adhemar Garcia Neto Liane Schroeder Garcia e Otaacutevio

Schroeder Garcia meus primeiros companheiros de viagem Para

Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que caminha ao meu lado ldquoLove is

all around and all I see is you I must be in a good place nowrdquo Para

Carla Cristina Garcia que embarcou comigo nessa jornada trazendo

em sua bagagem entusiasmo affidamento e um batom vermelho Para

Daniel Franccediloli Yago versado na arte de navegar entre profundezas

e superfiacutecies Para Eduardo Tertuliano de Camargo Garcia que

amava Billie Holiday Joni Mitchell e Madeleine Peyroux Para Franklin

Costa Marques Filho presente-ausecircncia ausente-presenccedila por

devir-companheiro Para Heitor de Carvalho Serra que abrindo o

mapa sobre a mesa e apontando as estrelas no ceacuteu possibilitou que

eu encontrasse outra rota para um antigo desejo Para Hiltraut Fischer

Schroeder que incansaacuteveis vezes me contou histoacuterias de suas

travessuras infantis Para Jamilie Santos de Souza descoberta de

viagem Para Jeanette de Camargo Garcia que incansaacuteveis vezes me

contou histoacuterias de sua mocidade Para Karine Freitas Souza pela

feiticeira picacircncia Para Leopoldo Schroeder que tem o haacutebito dos

bordotildees Para Lizia Coifman que me ajuda a navegar sob qualquer

ceacuteu Para Maacutercia Schroeder Espiacutendola Antonio da Silva Espiacutendola

Juliana Cristina Espiacutendola e Gustavo Henrique Espiacutendola que

alegraram diversos verotildees Para Maria Carolina Garcia explosatildeo

multicolorida Para Maria da Graccedila Marchina Gonccedilalves por

providenciar acircncoras Para Maria do Carmo Guedes por abrir

caminhos Para Marieta Colucci Ribeiro que se aventurou comigo

pelas ldquoramblas do planeta orxata de xufa si us plaurdquo Para o Nuacutecleo

Inanna de Pesquisa uma buacutessola que aponta para o Sul Para Rodrigo

Gomes de Oliveira Pinto versado na arte da generosidade Para

Tatiana Bertini Ferreira pela forccedila inspiradora

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

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Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

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1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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35

36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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39

Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 7: Uma viagem por palavras de mulheres

A bordo do Euphrosyne

Uma viagem por palavras de mulheres

Flora Schroeder Garcia

RESUMO Esta dissertaccedilatildeo tem como objetivo

refletir sobre as relaccedilotildees criativas entre

mulheres escrita e viagem Assim

discuto a construccedilatildeo do territoacuterio literaacuterio

e a constituiccedilatildeo da noccedilatildeo moderna de

autoria de modo a construir um territoacuterio

literaacuterio utoacutepico Embora a divisatildeo sexual

da mobilidade e a divisatildeo sexual da

autoria tenham situado simbolicamente

as mulheres no acircmbito domeacutestico

reprodutivo elas viajaram ndash literalmente

e metaforicamente ndash e escreveram a

partir de suas perspectivas proacuteprias A

partir da poliacutetica de localizaccedilatildeo realizei

cartografias dos modos como mulheres

constroem a si mesmas

PALAVRAS-CHAVE construccedilatildeo de si literatura mulheres

poliacutetica de localizaccedilatildeo viagem

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

32

Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

33

1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

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Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 8: Uma viagem por palavras de mulheres

On board the Euphrosyne

Travelling through womenrsquos words

Flora Schroeder Garcia

ABSTRACT This dissertation aims to reflect on the

creative relationship between women

writing and traveling Thus I discuss

the construction of the literary territory

and the constitution of the modern

notion of authorship so as to construct

a utopic literary territory Although the

sexual division of mobility and the

sexual division of authorship have

symbolically situated women in the

domestic reproductive sphere they

have travelled ndash literally and

metaphorically ndash and they have written

from their own perspective Out of

location politics I have made

cartographies of the ways in which

women construct themselves

KEYWORDS construction of the self literature

women location politics travel

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

32

Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

33

1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

34

35

36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

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Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

153

SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

154

WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

155

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

Page 9: Uma viagem por palavras de mulheres

Euphrosyne Marcio Zamboni

Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

Sinto mil capacidades brotarem em mim Sou astuta

alegre melancoacutelica em turnos Tenho raiacutezes mas fluo

(As Ondas Virginia Woolf)

EUPHROSYNE do grego antigo εὐφροσύνη (EYPHROSYacuteNĒ)

Alegria bom acircnimo divertimento festividade Na mitologia grega Eufrosina

(Εὐφροσύνη Eyphrosyacutenē) eacute uma das trecircs Graccedilas (Χάριτες Khaacuterites) deusas que

seriam filhas de Zeus (Ζεύς Zeuacutes) e de Euriacutenome (Εὐρυνόμη Eurynoacutemē) Suas irmatildes

satildeo Aglaia (Ἀγλαΐα Aglaiacuteae) e Taacutelia (Θάλεια Thaacuteleia) O termo ἀγλαΐα (aglaiacuteae) pode

significar adorno beleza esplendor triunfo gloacuteria No plural refere-se agraves festividades

aos divertimentos Jaacute o termo θάλεια (thaacuteleia) pode significar abundacircncia opulecircncia

exuberacircncia Remete especialmente aos banquetes e agraves festividades

Trecircs Graccedilas Maacutermore

Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Euphrosyne Marcio Zamboni Caneta tinteiro e laacutepis de cor sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 15

FIGURA 2 Trecircs Graccedilas Maacutermore Seacuteculo II d C Cultura Romana Periacuteodo Imperial Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 19

FIGURA 3 Musica Kate Elizabeth Bunce Oacuteleo sobre tela c 1895-1897 Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

p 35

FIGURA 4 Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo Grafite sobre papel 2019 Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

p 53

FIGURA 5 Meus pais em Bariloche Fotografia 198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 55

FIGURA 6 Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia 1 Joinville Brasil coleccedilatildeo particular

p 57

FIGURA 7 Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864 Chicago EUA The Art Institute of Chicago A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

p 59

FIGURA 8 Retrato de Passagem

Jamilie Souza chicavamo Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

p 61

FIGURA 9 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 10 Detalhe de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres tecendo Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

p 63

FIGURA 11 Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868 Chicago EUA The Art Institute of Chicago

p 103

FIGURA 12 Self-Deceit 1 Francesca Woodman Fotografia em gelatina prata 1977-1978 Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

p 105

FIGURA 13 Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela 1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

p 137

FIGURA 14 Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

p 139

FIGURA 15 Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun Oacuteleo sobre tela 1790-1792 Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

p 147

GUIA DE VIAGENS

25

I UMA CAMINHADA PELO TERRITOacuteRIO SELVAGEM

37

II PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS

O DESEJO DA PALAVRA

65

III AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ

A PALAVRA EM MOVIMENTO

109

CODA

141

ENCONTROS PELO CAMINHO

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

149

ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

155

GUIA DE VIAGENS

Toda compreensatildeo eacute poesia

claratildeo inaugural que neacutevoa densa

faz parecer velados diamantes

Em pequenos bocados

como quem daacute comida a criancinhas

a beleza reteacutem seu voacutertice

Satildeo aacuteguas da compaixatildeo

e eu sobrevivo

(A duraccedilatildeo do dia Adeacutelia Prado)

27

Caminho por uma praia deserta As ondas inspiram e expiram suspirando

profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras aladas Os

infinitos gratildeos de areia danccedilam ao sabor dos ventos Olho para a longiacutenqua linha

do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar borram-se Assombro-me com a

infinitude do oceano e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Amaldiccediloada

e encantada a estrada conduz Agrave distacircncia Euphrosyne - o navio em que

embarquei para a minha viagem pelo territoacuterio selvagem1

Parti rumo a determinado destino investigar o modo como o tema da

viagem foi elaborado por escritoras Entretanto a investigaccedilatildeo sobre viagem

transformou-se em um mergulho no eu O eu afirmado por mulheres De que

modo o eu constroacutei-se em linguagem Quais satildeo as suas raiacutezes O que o move

De que modo flui A viagem tornou-se metaacutefora para a jornada de auto-re-

construccedilatildeo do eu

As paisagens que encontrei pelo caminho corpos em movimento que satildeo

carne ossos sangue suor patildeo e poesiaI2 Ouvi cantos declamaccedilotildees lamentos

reivindicaccedilotildees sussurros Faccedilo-os ressoar em ecos Saboreio o reino das

foacutermulas a inversatildeo das origens a desenvoltura que faz com que o texto anterior

provenha do ulterior (BARTHES 2013 p 45) Por meio dessas reverberaccedilotildees

busco estabelecer outra temporalidade O tempo natildeo em linha reta ascendente

mas em espiral

Imagino-me no centro de uma catedral deserta recitando estas palavras

em voz alta Uma voz que entoa palavras eroacutetico-teoacutericas O som que parte da

minha garganta espraia-se atingindo os tijolos de pedra Multiplica-se em muitas

vozes rodopiantes que contornam as frias paredes como crianccedilas brincando e

correndo como mulheres de pescadores cantando e danccedilando em roda ldquoMinha

ciranda natildeo eacute minha soacute Ela eacute de todos noacutes Ela eacute de todos noacutesrdquo (ITAMARACAacute

2000)

I Em numeraccedilatildeo romana estatildeo indicadas as notas de rodapeacute que consistem em traduccedilotildees das citaccedilotildees em liacutengua estrangeira Em numeraccedilatildeo araacutebica estatildeo indicadas as notas de fim

28

Como Roland Barthes (2013 [1973] p 47) interesso-me pela linguagem

porque ela me fere ou me seduz A palavra traz consigo a possibilidade de nos

fazer ver cheirar degustar ouvir e sentir pelos oacutergatildeos da imaginaccedilatildeo A palavra

impressa na paacutegina aleacutem disso propicia o diaacutelogo silencioso que convida agrave

reflexatildeo Tem a vantagem do aroma e do toque Tem poreacutem suas limitaccedilotildees

Natildeo pode fazer ressoar o baixo de Jaco Pastorius o saxofone de John Coltrane

o piano de Glenn Gould ou de Maria Joatildeo Pires a voz de Elis Regina ou o rumor

de muacuteltiplas vozes de muacuteltiplos sotaques de muacuteltiplas liacutenguas (des)conhecidos

Natildeo pode encarnar a tridimensionalidade das cores das texturas ou dos

volumes

Agraves minhas palavras intercalam-se ilustraccedilotildees Remetem a antigos relatos

de viagem que com certa frequecircncia combinavam a linguagem verbal e a natildeo-

verbal Espero que possam aguccedilar de outro modo os sentidos servir como o

repouso necessaacuterio a quem viaja servir como possiacutevel desvio evitando-se

assim o caminho uacutenico

ITINERAacuteRIO

Primeira parada ldquoUma caminhada pelo territoacuterio selvagemrdquo Esse breve

capiacutetulo poeacutetico-teoacuterico foi inspirado por Adrienne Rich (1987) Donna Haraway

(1995) Gloria Anzalduaacute (2000 2012) Sandra Harding (1987 2019) e Virginia

Woolf (1980 2008a) O que me move eacute a poliacutetica de localizaccedilatildeo

[] um meacutetodo assim como uma taacutetica poliacutetica cujo objetivo eacute dar conta da diversidade e da complexidade interna a qualquer categoria [] evitando o relativismo cognitivo e moral e salvaguardando portanto a agecircncia eacutetica e poliacutetica A poliacutetica de localizaccedilatildeo combina as responsabilidades epistemoloacutegica e poliacutetica ao concentrar seus esforccedilos metodoloacutegicos na anaacutelise das muacuteltiplas posiccedilotildees de poder que uma pessoa inevitavelmente habita como o local de sua subjetividade [] Uma rsquolocalizaccedilatildeorsquo de fato natildeo eacute uma posiccedilatildeo subjetiva autonomeada e autodesignada mas um territoacuterio espaccedilo-temporal coletivamente construiacutedo compartilhado e ocupado [] ldquoPoliacuteticas de localizaccedilatildeordquo satildeo cartografias de poder que repousam sobre uma forma de criacutetica de si uma narrativa de si criacutetica e genealoacutegica elas satildeo relacionais e dirigidas para o

29

exterior Isso significa que relatos ldquoencarnadosrdquo iluminam e transformam nosso conhecimento de noacutes mesmos e do mundo (BRAIDOTTI 2011 pp 15-16)

Escrever essas palavras foi como perambular sem buacutessola e sem atlas

aprendendo a me guiar pelas estrelas por um territoacuterio enraizado e em fluxo O

territoacuterio em que me construo Ao fazecirc-lo criei esta voz Natildeo uma voz que oscila

entre a arte e a ciecircncia entre a poesia e a prosa entre a imaginaccedilatildeo e a vida

mas uma voz que se propotildee a percorrer a fina lacircmina da caneta tinteiro em que

arte ciecircncia poesia prosa imaginaccedilatildeo e vida se confundem

Deixo um terreno familiar e seguro de escrita para me aventurar um outro

terreno de escrita Desconhecido Possivelmente perigoso Ouso Corro outros

riscos Torno-me presa de outra sensaccedilatildeo de vulnerabilidade Lembro-me de

uma passagem de Bordelands La Frontera em que Gloria Anzalduacutea escreve

sobre ldquoLa mojada la mujer indocumentadardquo3 (ANZALDUacuteA 2012 p 34)

Como uma refugiada ela deixa o seu terreno familiar e seguro para se aventurar em um terreno desconhecido e possivelmente perigoso

This is her home this thin edge of barbwire

(ANZALDUacuteA 2012 p 35 Trad minha)4

Anzalduacutea escreve em prosa e em versos escreve em espanhol e em

inglecircs Escreve em liacutenguas ldquoel linguaje de la fronterardquo (2012 p 77) ldquoLiacutenguas

selvagens natildeo podem ser domadas apenas podem ser decepadasrdquo

(ANZALDUacuteA 2012 p 76) Sua liacutengua selvagem eacute indomaacutevel e ela natildeo permite

que a decepem Permite-se ousar correr (outros) riscos tornar-se presa de uma

(outra) sensaccedilatildeo de vulnerabilidade E ao fazecirc-lo manifesta sua potecircncia sua

forccedila

Em sua opccedilatildeo estiliacutestico-poliacutetica reivindica a complexidade e a

heterogeneidade do povo chicano um povo que fala muitas liacutenguas o inglecircs

padratildeo o inglecircs da classe proletaacuteria o espanhol padratildeo o espanhol mexicano

padratildeo o dialeto espanhol do Norte do Meacutexico o Tex-Mex o pachuco ou caloacute

o espanhol chicano entre outras (2012 p 77) Segundo Anzalduacutea o espanhol

30

chicano foi forjado portanto como ldquouma linguagem com termos que natildeo sejam

nem espantildeol ni ingleacutes mas ambosrdquo (2012 p 77)

Afinal

A fronteira EUA-Meacutexico es uma herida aberta onde o Terceiro Mundo rala contra o primeiro e sangra E antes que uma crosta possa se formar haacute uma nova hemorragia o sangue vital de dois mundos fundindo-se para formar um terceiro paiacutes ndash uma cultura de fronteira Fronteiras satildeo estabelecidas para definir os lugares que satildeo seguros e inseguros para distinguir entre noacutes e eles Uma fronteira eacute uma linha divisoacuteria uma faixa estreita ao longo de uma borda iacutengreme Uma terra de fronteira eacute um lugar vago e indeterminado criado pelo resiacuteduo emocional de uma fronteira natildeo-natural Estaacute em um estado de constante transiccedilatildeo O proibido e o interdito satildeo seus habitantes Los atravessados moram aqui os vesgos os perversos os estranhos os problemaacuteticos os mesticcedilos os mulatos os de raccedila impura os meio-mortos em suma aqueles que atravessam transpassam ou rasgam os confins do lsquonormalrsquordquo (2012 p 25 Trad minha)

Ao remeter a Anzalduaacute natildeo pretendo dizer que ela as mulheres a que se

refere e eu sejamos iguais Natildeo satildeo os mesmos os corpos que se lanccedilam por

terrenos desconhecidos e possivelmente perigosos Natildeo satildeo os mesmos os

terrenos e os riscos que podem apresentar Natildeo satildeo os mesmos os motivos

pelos quais noacutes nos aventuramos Natildeo satildeo as nossas linguagens ndash gestos

imagens e sons

O sonho feminista sobre uma linguagem comum como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira sobre uma nomeaccedilatildeo perfeitamente fiel da experiecircncia eacute um sonho totalizante e imperialista Nesse sentido em sua acircnsia por resolver a contradiccedilatildeo tambeacutem a dialeacutetica eacute uma linguagem de sonho Talvez possamos ironicamente aprender baseadas em nossas fusotildees com animais e maacutequinas como natildeo ser o Homem essa corporificaccedilatildeo do logos ocidental (HARAWAY 2019 p 191)

Se remeto a Anzalduacutea entatildeo eacute porque reivindico uma perspectiva de

quem habita uma terra de fronteira Uma perspectiva de quem habita seja no

mundo seja em si mesma(o) uma terra de fronteira Pois haacute um entre-lugar

afiado cortante que pode ser natildeo apenas sofrido mas tambeacutem reivindicado

Um entre-lugar criado a partir de ldquofronteiras transgredidas potentes fusotildees e

perigosas possibilidadesrdquo (HARAWAY 2019 p 164) Assim argumento ldquoem

favor do prazer da confusatildeo de fronteiras bem como em favor da

31

responsabilidade em sua construccedilatildeordquo (HARAWAY 2019 p 159 Grifos da

autora)5

Conforme Donna Haraway

Trata-se do sonho natildeo de uma linguagem comum mas de uma poderosa e hereacutetica hetoroglossia Trata-se da imaginaccedilatildeo de uma feminista falando em liacutenguas [glossolalia] para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita Significa tanto construir quanto destruir maacutequinas identidades categorias relaccedilotildees narrativas espaciais Embora estejam envolvidas ambas numa danccedila em espiral prefiro ser uma ciborgue a uma deusa (2019 p 202 Grifos meus)

Segunda parada ldquoPalavras que natildeo foram escritas O desejo da palavrardquo

Nesse capiacutetulo considero as relaccedilotildees entre possibilidades de configuraccedilatildeo de

sujeito possibilidades de configuraccedilatildeo de eu e possibilidades de configuraccedilatildeo

de autor+a6 Procuro fazecirc-lo em consonacircncia com as palavras de Donna

Haraway

A responsabilidade feminista requer um conhecimento afinado agrave ressonacircncia natildeo a dicotomias Gecircnero eacute um campo de diferenccedila estruturada e estruturante no qual as tonalidades de localizaccedilatildeo extrema do corpo intimamente pessoal e individualizado vibram no mesmo campo com as emissotildees globais de alta tensatildeo A corporificaccedilatildeo feminista assim natildeo trata da posiccedilatildeo fixa num corpo reificado fecircmeo ou outro mas sim de noacutedulos em campos inflexotildees em orientaccedilotildees e responsabilidade pela diferenccedila nos campos de significado material - semioacutetico (1995 p 29 Grifos meus)

Terceira parada ldquoAmaldiccediloada e encantada a estrada conduz A palavra

em movimentordquo Nesse capiacutetulo considero o eu construiacutedo no relato de viagem

Letters Written in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas na Sueacutecia na

Noruega e na Dinamarca] de Mary Wollstonecraft O vocecirc construiacutedo em relaccedilatildeo

ao eu O que move o eu Lembro-me desta passagem ldquoNotes Toward a Politics

of Locationrdquo [ldquoNotas em direccedilatildeo a uma poliacutetica de localizaccedilatildeordquo] de Adrienne Rich

Dois pensamentos natildeo haacute libertaccedilatildeo que saiba apenas como dizer ldquoeurdquo natildeo haacute movimento coletivo que fale por cada um de noacutes por todo o caminho a todo momento E assim ateacute mesmo pronomes comuns tornam-se um problema poliacutetico (1987 p 224 Trad minha)

32

Uacuteltima parada ldquoCodardquo A seccedilatildeo que encerra uma composiccedilatildeo musical A

conclusatildeo do movimento Trata-se do uacuteltimo capiacutetulo a bordo do Euphrosyne

Convido-lhe agora a aventurar-se

33

1 No iniacutecio do romance The Voyage Out (literalmente Jornada para fora) de Virginia Woolf encontramos Rachel Vinrace no navio Euphrosyne rumo agrave Ameacuterica do Sul Acompanhamos entatildeo tanto em alto mar quanto jaacute em terra firme sua jornada de auto-re-criaccedilatildeo Na mitologia grega Euphrosyne ou Eufrosina eacute o nome de uma das Trecircs Graccedilas Ela eacute a deusa da alegria 2 Faccedilo aqui uma alusatildeo a Blood Bread and Poetry de Adrienne Rich 3 ldquoA molhadardquo (Trad minha) designa as imigrantes ilegais que realizam a travessia por rios e mares ldquoa mulher sem documentosrdquo (Trad minha) refere-se agrave ausecircncia de documentos para imigraccedilatildeo legal 4 O poema pode ser traduzido como ldquoEsse eacute seu lar essa fina aresta de arame farpadordquo (2012 p 35 Trad livre minha) 5 De fato para Donna Haraway ldquo[] as lsquomulheres de corrsquo poderiam ser compreendidas como uma identidade ciborgue uma potente subjetividade sintetizada com base as fusotildees de identidades forasteiras e nos complexos extratos poliacuteticos-histoacutericos de sua lsquobiomitografiarsquo Zamirdquo (2019 p 192) Eacute importante compreender ldquomulheres de corrdquo de acordo com o uso poliacutetico que as feministas natildeo-brancas tecircm feito do termo desde o final da deacutecada de 1970 Inserem-se nesse grupo Gloria Anzalduacutea e Cherrieacute Moraga que em 1981 editaram a antologia feminista This Bridge Called My Back Writings by Radical Women of Color [Esta ponte minhas costas Textos por mulheres de cor radicais] 6 Trata-se do tiacutetulo do artigo ldquoAutor+ardquo de Norma Telles (1992) que trata da construccedilatildeo da autoria por mulheres

34

35

36

Musica Kate Elizabeth Bunce

Oacuteleo sobre tela c 1895-1897

Birmingham Inglaterra Birmingham Museums and Art Gallery

I

UMA CAMINHADA PELO

TERRITOacuteRIO SELVAGEM1

A Liane Schroeder Garcia A Adhemar Garcia Neto

38

39

Quando tem origem a jornada rumo a determinado destino Seraacute quando

eacute plantada a semente do desejo ou aticcedilada a fagulha da necessidade Seraacute

quando tem iniacutecio o planejamento quando eacute traccedilado o roteiro quando satildeo

arrumadas as malas Seraacute quando se daacute o primeiro passo para transpor a soleira

da porta que nos resguarda do ldquomundo vasto mundordquo2 laacute fora Se as origens satildeo

sempre fictiacutecias podemos fixaacute-las e desafixaacute-las como souvenirs - cartotildees

postais fotos ou panfletos - em um quadro de corticcedila3

Para escrever estas paacuteginas encerrei-me como dizem que Maya

Angelou fazia em um quarto de hotel Tenho o privileacutegio do espaccedilo e do tempo

um quarto para mim horas soacute minhas Posso tecer a escrita em minha vida Em

uma matildeo seguro o coraccedilatildeo sede do espiacuterito Na outra o laacutepis esse instrumento

que permite traccedilar destraccedilar e retraccedilar caminhos Agrave minha frente estatildeo meu

notebook e uma pequena pilha de livros Comeccedilo entatildeo a procurar entre os

objetos do bauacute de recordaccedilotildees que carrego comigo o que me trouxe ateacute aqui

Primeiro souvenir Sentada em uma sala de espera de aeroporto com um

caderno e uma caneta em matildeos escutava pelos meus fones de ouvido a voz de

Joni Mitchell ldquoI am on a lonely road and I am traveling Traveling traveling

traveling Looking for something what can it berdquo (1971)I No peito um pesado

vazio Pela primeira vez estava prestes a viajar sozinha para um paiacutes que natildeo

conhecia cuja liacutengua natildeo falava

Quando laacute cheguei natildeo havia quem me esperasse no portatildeo de

desembarque Natildeo havia quem decidisse por mim ou comigo o rumo a tomar

Passei os primeiros dias amedrontada hesitante me perguntando O que fazer

Para onde ir Natildeo havia quem me respondesse

I ldquoEstou em uma estrada solitaacuteria viajando Viajando viajando viajando Procurando algo o que pode serrdquo (MITCHELL 1971 Trad minha)

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Um dia caminhando a esmo ouvi o rumor de muitas vozes Aproximei-

me do burburinho e vi grupos de pessoas espalhadas por um gramado Algumas

liam ou cochilavam outras conversavam ou brincavam Decidi me sentar por ali

Abri um livro a grama receacutem-aparada pinicava os meus peacutes descalccedilos

Repousei os meus oacuteculos no colo e fechei os olhos O sol aquecia minhas

paacutelpebras Quando as abri novamente vi de um lado o domo de um antigo

museu e do outro o domo de uma catedral Precisava decidir o que fazer me

levantar e seguir em marcha Entatildeo percebi eu poderia simplesmente ficar onde

estava E me inundou uma desconhecida e imensa alegria

Segundo souvenir Em um dia quente e seco de veratildeo cruzando o

caminho aacuterido e empoeirado que levava do ponto de ocircnibus ateacute o preacutedio da

faculdade pensava em Safo em Jane Austen em Anne Charlotte e Emily

Bronteuml em Clarice Lispector em Virginia Woolf Tatildeo brilhantes preciosas e raras

quanto as gotas de chuva agravequela altura do ano Sussurros solitaacuterios dispersos

ao vento eram entatildeo para mim as vozes de mulheres Criacuteticas escritoras

filoacutesofas poetas teoacutericas4

Uma voz que entoava baixinho uma melodia familiar despertou a minha

atenccedilatildeo e me fez olhar por cima de meu ombro esquerdo para traacutes Em ambas

as extremidades da linha do horizonte ondas se formavam Apenas a breve

pausa entre inspirar-expirar e elas correram de encontro umas agraves outras

fabricando diante de mim um monstruoso oceano O choque da surpresa fez

parar meu coraccedilatildeo Por um breve momento todo o meu sangue estancou

deixou de correr Senti todo o meu corpo formigar

Virando-me fitei as aacuteguas e comecei a distinguir embarcaccedilotildees perdidas

no mar Algumas eram meras jangadas outras eram suntuosos transatlacircnticos

Todas poreacutem tinham uma tripulaccedilatildeo diminuta apenas uma marinheira por

embarcaccedilatildeo De se admirar que continuassem flutuando em meio agrave imensidatildeo

do deserto liacutequido

Aos poucos a brisa mariacutetima e o cheiro de maresia foram envolvendo

acalentando todo o meu corpo Embaccedilaram tanto os meus oacuteculos que tive que

tiraacute-los Entatildeo comecei a perceber um nuacutemero cada vez maior daquelas

embarcaccedilotildees navegando pelo oceano Verdadeiros cardumes de mulheres

piratas povoavam aquelas aacuteguas comunicando-se auxiliando-se disputando

entre si E as aacuteguas sofriam vibraccedilotildees ondulaccedilotildees com sua presenccedila

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Vibraccedilotildees agraves vezes sutis e agraves vezes avassaladoras como maremotos

perceptiacuteveis ateacute aos mais desatentos - ldquoapenas a multiplicidade de ondas

proporciona um horizonte uma costa uma terra []rdquo (FRAME 2009 p 232)

O murmuacuterio da canccedilatildeo foi ficando mais alto e pude finalmente reconhecer

o que dizia

Take me on a trip upon your magic swirlinrsquo ship My senses have been stripped my hands canrsquot feel to grip My toes too numb to step Wait only for my boot heels to be wanderinrsquo Irsquom ready to go anywhere Irsquom ready for to fade Into my own parade cast your dancing spell my way I promise to go under it (DYLAN 1965)II

Finalmente percebi - era minha a voz Como ldquoexplicar con palabras de este

mundo que partioacute de miacute un barco llevaacutendomerdquo (PIZARNIK 2016 p 115)III

Embora meus peacutes ainda formigassem eu desejava me lanccedilar ao mar em sua

companhia Pois eu sabia o espaccedilo acadecircmico e o espaccedilo literaacuterio

desestabilizavam-se com sua presenccedila5

Terceiro souvenir em uma estrada qualquer uma mulher e um homem

viajam de carro em lua de mel para algum lugar entre as dunas de areia de

Fortaleza e as montanhas de neve de Bariloche O ano eacute 1979 Com a sabedoria

dos jovens natildeo fizeram planos Natildeo tecircm reserva Chegam em plena alta

temporada Procuram hospedagem em hoteacuteis pensotildees pousadas Natildeo haacute

vagas disponiacuteveis A cidade estaacute repleta de turistas mais precavidos do que eles

Por fim o carregador de malas de um dos hoteacuteis tem pena deles e lhes oferece

hospedagem em uma casa de famiacutelia Alguns dias depois gasto todo o dinheiro

partem para Satildeo Paulo

Para ele que quatro anos antes havia imigrado de Joinville para a terra

da garoa eacute o retorno agrave rotina As aulas da faculdade e as reuniotildees do Centro

Acadecircmico Os cheiros e os sons satildeo familiares os rostos e as ruas satildeo

II ldquoLeve-me em uma viagem em seu barco maacutegico rodopiante Despi-me dos meus sentidos minhas matildeos natildeo podem sentir e agarrar Meus dedos dos peacutes estatildeo muito dormentes para pisar Espere que apenas os saltos das minhas botas vaguem Estou pronta para ir a qualquer lugar estou pronta para desvanecer No meu proacuteprio desfile jogue seu feiticcedilo danccedilante sobre mim Prometo sucumbir a elerdquo (DYLAN 1965 Trad minha) III ldquoexplicar com palavras deste mundo que partiu de mim um barco levando-merdquo (PIZARNIK 2016 Trad livre minha) Trata-se do poema 13 de Aacuterbol de Diana [1962]

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conhecidos Para ela tudo eacute novidade Eacute preciso criar o cotidiano estabelecer

viacutenculos converter o entorno em banal fincar raiacutezes Eles satildeo meus pais6

Dez anos depois viajando de carro em outra estrada qualquer eles

descobririam a primeira gravidez que resultou em mim

Quarto souvenir um mastro nu de madeira maciccedila ergue-se e perfura as

nuvens sustentando o ceacuteu Uma menina o observa Sente no ar o cheiro de

maresia e de vocircmito Seraacute mesmo que o Brasil natildeo eacute longe daqui7 Seu nome

era Anna Mathilde Ernestine Stricker minha tataravoacute

Uma vez ouvi dizer por um desconhecido dado a pesquisar aacutervores

genealoacutegicas e dito parente distante que em 1880 ela teria deixado a

Pomeracircnia proviacutencia do reino da Pruacutessia agrave eacutepoca sob comando do Impeacuterio

Alematildeo rumo ao Impeacuterio do Brasil que ela jaacute bastante idosa lhe teria contado

as lembranccedilas da viagem que fizera aos oito anos no Vapor Valparaiacuteso e que

seu pai Johann Gottlieb Erdmann Strickert teria sido um professor de

matemaacutetica8

Desde entatildeo passei a imaginaacute-la assim uma pequena garota de tranccedilas

explorando com olhos curiosos e passos hesitantes tudo agrave sua volta

assombrada com a infinitude do oceano e maravilhada com a imensidatildeo do

mundo Agora imagino tambeacutem o seu pai com o semblante seacuterio e as matildeos

tranccediladas agraves costas andando pelo barco examinando suas chamineacutes e

calculando O quecirc A quantidade de combustiacutevel necessaacuteria para a travessia

A circunferecircncia do ventre da esposa sinal de que aumentaria sua prole

numerosa A velocidade da embarcaccedilatildeo A iminente abundacircncia tropical O

nuacutemero de dias restantes para alcanccedilarem terra firme A dimensatildeo das

saudades arrependido jaacute de partir

Ao selecionar em sequecircncia esses artefatos do meu bauacute de experiecircncias

vividas e imaginadas deixando outros tantos de fora arquiteto uma linha

biograacutefica evolutiva e forjo a faceta lapidada de um Eu uno coeso teleoloacutegico o

proacuteximo elo natural de uma corrente formada pelo encadeamento de muitas

geraccedilotildees Um traccedilo reto ascendente riscado por uma matildeo que natildeo treme e que

natildeo oscila Afirmo ldquoEste eacute meu quinhatildeo Tudo o que fiz me trouxe ateacute aqui Sou

quem sempre fuirdquo Como nos eacutepicos homeacutericos (HOMERO 2002a 2002b

2011) κατὰ μοῖραν (katagrave moicircran)9 Isto eacute ldquode acordo com a moirardquo de acordo

com o devido de acordo com a lei que rege a seres humanos e a seres divinos

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estabelecendo a harmonia coacutesmica de acordo com o destino Se tudo for

predeterminado pergunto-me por que seguir

Perambulo pelo quarto buscando dar ritmo aos pensamentos Lembro-

me de Virginia Woolf que descobriu que para escrever uma resenha sobre o

romance de um homem famoso teria de combater um fantasma ldquoE o fantasmardquo

ela escreveu

[] era uma mulher e quando eu a conheci melhor dei-lhe o nome da heroiacutena de um famoso poema O Anjo do Lar Era ela que se intrometia entre mim e meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas Era ela que me incomodava desperdiccedilava meu tempo e me atormentava tanto que finalmente eu a matei (WOOLF 1980 p 58 Trad minha)

O assassinato de tatildeo doacutecil criatura foi portanto cometido em legiacutetima

defesa

Se eu natildeo a tivesse matado ela teria matado a mim Ela teria arrancado o coraccedilatildeo da minha escrita Pois como percebi assim que pus a caneta no papel natildeo se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente proacutepria sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relaccedilotildees humanas a moral o sexordquo (WOOLF 1980 p 59 Trad e grifo meus)

E a tarefa natildeo foi faacutecil e natildeo foi raacutepida ldquoEla custou a morrer Sua natureza

fictiacutecia lhe era de grande ajuda Eacute muito mais difiacutecil matar um fantasma do que a

realidaderdquo (WOOLF 1980 p 60 Trad minha) A missatildeo era entretanto urgente

e inescapaacutevel pois como afirmou Anzalduacutea

A luta sempre foi interior e eacute atuada nos terrenos externos A consciecircncia de nossa situaccedilatildeo deve vir antes de mudanccedilas interiores que por sua vez vecircm antes de mudanccedilas na sociedade Nada acontece no mundo ldquorealrdquo a natildeo ser que primeiro aconteccedila nas imagens em nossa cabeccedila (2012 p 109 Trad e grifo meus)10

ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγοςrdquo (En arkhēi ēn ho Loacutegos) ldquoNo princiacutepio havia o

Logosrdquo (Trad minha)11 ldquoLogosrdquo termo de difiacutecil traduccedilatildeo Pode significar caacutelculo

medida proporccedilatildeo enunciado frase oraccedilatildeo sentenccedila termo gramatical

expressatildeo fala comum e sem arte assunto de que se fala tema de uma pintura

enredo relaccedilatildeo correspondecircncia analogia descriccedilatildeo narrativa factual ou

ficcional relato menccedilatildeo rumor reputaccedilatildeo estima valor consideraccedilatildeo que se

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tem em relaccedilatildeo a algo ou a algueacutem conto faacutebula histoacuteria lenda notiacutecia

relatoacuterio afirmaccedilatildeo declaraccedilatildeo pretexto explicaccedilatildeo argumento fundamento

proposiccedilatildeo loacutegica tese hipoacutetese resoluccedilatildeo raciociacutenio pensamento

deliberaccedilatildeo discussatildeo debate interno da alma diaacutelogo filosoacutefico uma seccedilatildeo de

um tratado filosoacutefico razatildeo criativa a razatildeo como faculdade ditado popular

foacutermula maacutexima proveacuterbio fala divina oraacuteculo a palavra ou a sabedoria de um

uacutenico deus ldquopersonificada como sua agente na criaccedilatildeo e no governo do mundordquo

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996 p 1059 Trad minha) apelo

suacuteplica pedido solicitaccedilatildeo ordem comando princiacutepio regra de conduta lei

tradiccedilatildeo linguagem discurso O termo pode ser usado em sentido depreciativo

ou natildeo No plural pode referir-se a uma noccedilatildeo aproximada de ldquoliteraturardquo bem

como a cartas

Retomo a traduccedilatildeo ldquoNo princiacutepio havia a palavrardquo (Trad minha) ldquoNo

princiacutepio havia o discursordquo (Trad minha) A palavra precede a revoluccedilatildeo Mas a

palavra pode ser tambeacutem revoluccedilatildeo ldquoUm movimento por mudanccedila mora nos

sentimentos nas accedilotildees e nas palavrasrdquo (RICH 1987 p 223 Trad minha)

Tenho tambeacutem meus fantasmas Tenho como Virginia Woolf um

fantasma mulher Teraacute retornado o Anjo do Lar Ou seraacute uma parente mais

jovem Mas tenho tambeacutem um fantasma homem Dei-lhe o nome de Professor

Doutor Acima de pilhas de livros e artigos acadecircmicos cada uma dessas pilhas

trecircs vezes mais alta do que eu ele paira com seu olhar condescendente seu

riso de escaacuternio e suas duas matildeos direitas espalmadas onde repousa uma

reacutegua de metal com inscriccedilotildees douradas

Uma batida na porta me desperta A camareira do hotel precisa arrumar

o quarto fazer a cama trocar as toalhas Conversamos um pouco Enquanto ela

realiza o seu trabalho eu realizo o meu Sentada agrave escrivaninha releio ldquoFalando

em liacutenguas uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundordquo e encontro

essa passagem

Como eacute difiacutecil para noacutes pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras muito mais sentir e acreditar que podemos O que temos para contribuir para dar Nossas proacuteprias expectativas nos condicionam Natildeo nos dizem a nossa classe a nossa cultura e tambeacutem o homem branco que escrever natildeo eacute para mulheres como noacutes

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O homem branco diz Talvez se rasparem o moreno de suas faces Talvez se branquearem seus ossos Parem de falar em liacutenguas parem de escrever com a matildeo esquerda Natildeo cultivem suas peles coloridas nem suas liacutenguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro [] Penso sim talvez se formos agrave universidade Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tatildeo classe meacutedia quanto pudermos Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte Reverenciarmos o touro sagrado a forma Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos Nos mantermos distantes para ganhar o cobiccedilado tiacutetulo de ldquoescritora literaacuteriardquo ou ldquoescritora profissionalrdquo Acima de tudo natildeo sermos simples diretas ou raacutepidas (ANZALDUacuteA 2000 p 230 Grifos da autora)

Mulher branca heterossexual de classe meacutedia com formaccedilatildeo

universitaacuteria que nasceu cresceu e mora em Satildeo Paulo importante capital no

Brasil releio a carta de Anzalduacutea sabendo que natildeo foi escrita para mim Teria

sido escrita antes para a camareira negra nascida em uma cidade no interior do

Cearaacute de quem agora me despeccedilo E busco aprender essa liccedilatildeo Pois como

Rich

Eu natildeo mais acredito ndash meus sentimentos natildeo me permitem acreditar ndash que os olhos brancos veem a partir do centro E no entanto eu com frequecircncia pego-me pensando como se ainda acreditasse que isso fosse verdade Ou melhor dizendo meu pensamento permanece imoacutevel Sinto-me em um estado de suspensatildeo como se meu ceacuterebro e meu coraccedilatildeo estivessem se recusando a conversar um com o outro Meu ceacuterebro o ceacuterebro de uma mulher exultou-se ao quebrar o tabu contra o pensamento de mulheres e decolou no vento dizendo Eu sou a mulher que faz as perguntas Meu coraccedilatildeo tem aprendido de modo muito mais humilde e laborioso que sentimentos satildeo inuacuteteis sem fatos e que todo privileacutegio eacute ignorante em seu cerne (1987 p 226 Trad minha Grifos da autora)

Mulher brasileira latino-americana do terceiro mundo releio-a como se

tivesse sido escrita para mim E busco aprender sua liccedilatildeo Pois como Anzalduacutea

ldquoAinda natildeo desaprendi as tolices esoteacutericas e pseudo-intelectualizadas que a

lavagem cerebral da escola forccedilou em minha escritardquo (2000 p 229)

O souvenir eacute um totem A prova da minha proacutepria existecircncia que

(re)apresento a mim mesma O souvenir que recolho e armazeno em meu bauacute

de recordaccedilotildees possibilita que eu (re)organize (re)estruture e (re)crie a minha

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memoacuteria Retrospectivamente o sentido eacute (re)atribuiacutedo agrave experiecircncia e constroacutei-

se o eu (SCOTT 1991) O souvenir permite-me (re)viver a viagem A narrativa

da minha vida que conto para mim mesma

Then your life becomes a travelogue Of picture post card charms (MITCHELL 1976)IV

O souvenir possibilita-me refletir sobre o caminho que seguirei

Entretanto quando um souvenir desbota ou quebra-se eacute possiacutevel substituiacute-lo

por outro Quando a maleta de viagem fica muito pesada eacute preciso desfazer-se

de um ou outro souvenir

Desatado o noacute do espartilho a caixa toraacutecica que guarda o coraccedilatildeo e os

pulmotildees permanece aleijada Natildeo pode ainda se expandir agrave sua plena

capacidade Depois de tanto tempo constritos o coraccedilatildeo e o pulmatildeo devem se

acostumar agrave nova amplitude O focirclego deixaraacute de ser curto e o sangue fluiraacute com

maior liberdade Mas eacute preciso tempo Eacute preciso audaacutecia

Assim com coragem escrevo estas paacuteginas - que satildeo antes de tudo um

experimento uma busca movida pelo desejo de aprender com Anzalduacutea que

O perigo ao escrever eacute natildeo fundir nossa experiecircncia pessoal e visatildeo do mundo com a realidade com nossa vida interior nossa histoacuteria nossa economia e nossa visatildeo [] O perigo eacute ser muito universal e humanitaacuteria e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular o feminino e o momento histoacuterico especiacutefico (ANZALDUacuteA p 233)

O perigo eacute privilegiar a mente em detrimento do corpo como se fossem

duas entidades separadas A mente pura abstraccedilatildeo o corpo pura concretude

Haacute o perigo de considerarmos o corpo como um dado natural imediato ndash isto eacute

sem mediaccedilatildeo - inequiacutevoco

No caso das mulheres a ideologia vai longe uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes satildeo produtos dessa manipulaccedilatildeo Noacutes fomos forccediladas em nossos corpos e nossas mentes a corresponder sob todos os aspectos agrave ideia de natureza que foi determinada para noacutes De tal forma distorcida que nosso corpo deformado eacute o que chamam de ldquonaturalrdquo o que deve existir como tal diante da opressatildeo De tal forma distorcida que no fim a opressatildeo parece ser uma consequecircncia dessa ldquonaturezardquo dentro de noacutes (uma natureza que eacute apenas uma ideia) (WITTIG 2019 p 83 Grifo da autora)

IV ldquoEntatildeo sua vida torna-se um relato de viagem de amuletos-cartotildees-postais-fotografiasrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Mas haacute tambeacutem o perigo de considerarmos abstratamente o corpo Um

corpo ideal atemporal desencarnado sem vida sem movimento Quando o

corpo

[] eacute formado por uma seacuterie de regimes que o constroem ele eacute destroccedilado por ritmos de trabalho repouso e festa ele eacute intoxicado por venenos ndash alimentos ou valores haacutebitos alimentares e leis morais simultaneamente ele cria resistecircncias (FOUCAULT 2018 p 72)

Adrienne Rich refletiu a respeito de como poderiacuteamos evitar esse perigo

Talvez precisemos de uma moratoacuteria em relaccedilatildeo a dizer ldquoo corpordquo Pois tambeacutem eacute possiacutevel abstrair ldquoordquo corpo Quando eu escrevo ldquoo corpordquo eu natildeo vejo nada em particular Escrever ldquomeu corpordquo me lanccedila agrave experiecircncia vivida agrave particularidade eu vejo cicatrizes desfiguraccedilotildees descoloraccedilotildees danos perdas assim como aquilo que me agrada Ossos bem nutridos desde a placenta dentes de uma pessoa de classe meacutedia vistos por dentistas duas vezes por ano desde a infacircncia Pele branca marcada por trecircs gravidezes uma esterilizaccedilatildeo eletiva artrite progressiva quatro operaccedilotildees das articulaccedilotildees depoacutesitos de caacutelcio nenhum estupro nenhum aborto longas horas agrave maacutequina de escrever ndash a minha proacutepria e natildeo uma maacutequina de escrever compartilhada em um local puacuteblico ndash e assim por diante Dizer ldquoo corpordquo me afasta daquilo que me deu uma perspectiva primeira Dizer ldquomeu corpordquo reduz a tentaccedilatildeo a afirmaccedilotildees grandiosas (RICH 1987 p 215 Trad minha)

Penso a partir do meu corpo Penso com meu corpo Penso com os meus

peacutes Quando meus peacutes descalccedilos sentem o frio penetrante do piso de granito da

cozinha vivo o presente do incocircmodo Quando sentem o calor aconchegante

das cobertas vago pelo tempo - presente passado futuro Penso com as

minhas matildeos que tricotam velozmente ideias agrave laacutepis Penso com os dedos que

digitam palavras pixeladas hesitam deletam e digitam outras palavras

costurando as ideias umas agraves outras Penso com o meu estocircmago bem

alimentado

A constituiccedilatildeo humana sendo como eacute coraccedilatildeo corpo e ceacuterebro todos misturados - e natildeo contidos em compartimentos separados como certamente seratildeo em um milhatildeo de anos - um bom jantar eacute de grande importacircncia para uma boa conversaccedilatildeo Natildeo se pode pensar bem amar bem dormir bem se natildeo se jantou bem (WOOLF 2008 p 23 Trad minha)

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Penso com a minha boca com os meus dentes com a minha liacutengua Abocanho

o silecircncio Mastigo-o Sinto o seu gosto Engulo-o Devoro os sons e as palavras

Saboreio-os Deixo-os danccedilar na minha liacutengua Penso com meu nariz Quando

o permite a minha rinite aleacutergica estimulada pelas fumaccedilas do tracircnsito de Satildeo

Paulo e pelas fumaccedilas das queimadas das florestas amazocircnicas capazes agora

de chegar agrave cidade em que moro o aroma do cafeacute receacutem preparado desperta e

potildee em marcha os meus pensamentos O aroma de bolinhos de chuva fritando

os leva de volta agrave minha infacircncia O aroma e o sabor do vinho os fazem

ziguezaguear sem rumo ldquoNossos narizes assim como nossos olhos e ouvidos

tambeacutem satildeo instrumentos poliacuteticos protestadoresrdquo (HILLMAN 2002 p 93)

Penso com meus ouvidos Ouvidos que capturam os ruiacutedos as vozes a muacutesica

agrave minha volta E que capturam tambeacutem o raro silecircncio Penso com meus olhos

Olhos miacuteopes auxiliados por meus oacuteculos que me permitem enxergar agrave

distacircncia e que tornam os contornos do mundo niacutetidos Tenho a vantagem de

poder vesti-los mas tambeacutem a de poder removecirc-los12

Quando os removo os contornos borram-se as luzes e as sombras

misturam-se Sinto que o meu mundo se desestabiliza Assusto-me Temo natildeo

enxergar Entatildeo passo a ver com as minhas matildeos Com os meus ouvidos Com

o meu nariz Aquilo que me cerca mais de perto torna-se mais importante

Estreito e relaxo os olhos Caleidoscopicamente o mundo agrave minha volta

metamorfoseia-se O abajur transforma-se em uma flecha apontando para cima

em uma mulher esguia usando um chapeacuteu pontudo O espelho transforma-se

em uma poccedila de luz prateada Aproximo-me dele

Meu rosto torna-se difuso e ainda mais paacutelido Cascateia ao seu redor

uma massa de aacuteguas enlameadas No centro em chiaroscuro um volume

resplandecendo em tons de bege daacute um salto agrave frente Uma peacutetala transluacutecida

avermelhada e dois buracos negros destacam-se onde haacute apenas alguns

instantes estavam a minha boca e os meus olhos Vejo-me outra ldquoUma resposta

esteacutetica eacute uma accedilatildeo poliacuteticardquo (HILLMAN 2002 p 93) Aos poucos me

(re)conheccedilo na imagem que o espelho reflete

Um jato de vapor luminoso incide no vidro da janela e atravessando-a

esparrama-se em cintilantes fitas coloridas A Moira multiplica-se em trecircs Mοῖραι

(Moicircrai) Κλωθώ (Klōthoacute) Λάχεσις (Laacutekhesis) e Ἄτροπος (Aacutetropos) Cloto fia

Laacutequesis distribui as porccedilotildees e Aacutetropos a inflexiacutevel decreta o fim O fio da vida

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eacute confeccionado ao girar do fuso eacute sorteado ao acaso para ser medido e eacute

rompido arbitrariamente Haacute quem diga que agraves Moiras mesmo Zeus estaacute sujeito

haacute quem diga que agraves Moiras eacute Zeus quem tendo pesado as vidas dos seres

humanos em sua balanccedila daacute ordens Quem o acredita afirma que caso mude

de ideia Zeus pode interferir e revogar a sua proacutepria decisatildeo Eacute que nada eacute

predestinado - satildeo fictiacutecios os destinos A uacutenica certeza a morte

Como o rio que corre eu me construo no caminho Neste momento sou

uma Logo serei outra Diferente de mim mesma13 E

ahora

en esta hora inocente yo y la que fui nos sentamos

en el umbral de mi mirada (PIZARNIK 2016 p 113)V

Natildeo haacute afliccedilatildeo em ser aacutegua em meio agrave terra e em ter a face a um soacute

tempo muacuteltipla e imoacutevel14

V ldquoagora nesta hora inocente eu e a que fui nos sentamos no umbral do meu olharrdquo (PIZARNIK 2016 p 113 Trad livre minha) Trata-se do poema ldquo11rdquo em Aacuterbol de Diana [1962]

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1 Em ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Elaine Showalter (in HOLLANDA 1994 [1981]) nos lembra de que a busca pela terra prometida do desprendimento criacutetico eacute uma ilusatildeo Toda a criacutetica se localiza no territoacuterio selvagem Assim canto o convite ldquo[] hey honey take a walk on the wild siderdquo (REED 1972 ldquo[] ei meu bem decirc um passeio pelo lado selvagemrdquo Trad minha) 2 Alusatildeo agrave sexta estrofe do ldquoPoema de sete facesrdquo [1930] de Carlos Drummond de Andrade ldquoMundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima natildeo uma soluccedilatildeo Mundo mundo vasto mundo mais vasto eacute meu coraccedilatildeordquo (2013 p 11) 3 Conforme Donna Haraway ldquoAs narrativas de origem no sentido lsquoocidentalrsquo humanista dependem do mito da unidade original da ideia de plenitude da exultaccedilatildeo e do terror representados pela matildee faacutelica da qual todos os humanos devem se separar ndash uma tarefa atribuiacuteda ao desenvolvimento industrial e agrave histoacuteria esses gecircmeos e potentes mitos tatildeo fortemente inscritos para noacutes na psicanaacutelise e no marxismordquo (2019 p 159) 4 Em El Fraude de La Igualdad Mariacutea Milagros Rivera Garretas escreveu ldquoQuando eu ia como aluna agrave escola e agrave universidade tudo o que era significativo em termos de ciecircncia ou do exerciacutecio das instacircncias de poder fosse do tipo que fosse era representado em seres e palavras de sexo e gecircnero gramatical masculino A verdade eacute que isto mal descobri falar no masculino natildeo era mais do que um pequeno acidente pequeno ao lado da enormidade da tarefa de aprender e repetir o que os homens entendiam que era havia sido e devia ser o mundo supostamente comumrdquo (2002 p 55 Trad minha) 5 O acesso das mulheres ao espaccedilo acadecircmico e ao espaccedilo literaacuterio eacute obstruiacutedo ou eacute imensamente dificultado Como nos lembram Virginia Woolf (1980 2008a) e Gloria Anzalduacutea (2012) o espaccedilo acadecircmico e espaccedilo literaacuterio natildeo foram construiacutedos para as mulheres No final do seacuteculo XIX a inglesa Virginia Woolf natildeo pocircde estudar em uma Universidade Na segunda metade do seacuteculo XX a chicana Gloria Anzalduacutea pode passar por todos os estaacutegios da educaccedilatildeo formal Ingressou em um programa de doutorado estadunidense Natildeo lhe foi permitido investigar contudo a literatura chicana como tema legiacutetimo de estudo (CANTUacute HURTADO in ANZALDUacuteA 2012 pp 3-5) 6 Depois de dez anos de namoro meus pais se casaram em 07 de abril de 1979 Meu pai realmente morava em Satildeo Paulo desde 1975 No entanto minha matildee se mudou de Joinville para Satildeo Paulo apenas em setembro de 1979 segundo ele ou em novembro de 1979 segundo ela - a memoacuteria costuma pregar esses truques No entanto tamanho lapso temporal entre um evento e outro natildeo serviria aos propoacutesitos deste ensaio Assim peguei com as matildeos a linha do tempo e dobrei-a A vida serve tambeacutem para ser (re)inventada 7 ldquoO Brasil natildeo eacute longe daquirdquo eacute o verso de uma antiga canccedilatildeo de propaganda imigratoacuteria Dessa canccedilatildeo Flora Suumlssekind extraiu o tiacutetulo de seu ensaio O Brasil natildeo eacute longe daqui O narrador a viagem (1990) Trata-se de notaccedilatildeo geograacutefica Assinala no mapa da imaginaccedilatildeo a utopia ldquoPorque houve realmente durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo passado um grande interesse em atrair mercenaacuterios para reforccedilar as forccedilas militares imperiais e camponeses alematildees pressionados por maacutes colheitas impostos pesados e pelo alto grau de divisatildeo da propriedade no seu paiacutes para trabalhar como colonos no Brasil E foram utilizados para esse fim desde agentes especializados [] ateacute canccedilotildees de incentivo agraves viagens que transformavam a terra brasileira em verdadeira Terra da Promissatildeo onde haveria ouro como areia [] o verde seria eternordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 22 ) Se natildeo o soubeacutessemos poderiacuteamos tomaacute-la como a ldquoobservaccedilatildeo expressa por algueacutem jaacute no paiacutes em questatildeo e que natildeo reconhece nele a paisagem anunciadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) Ilusatildeo Poderiacuteamos tomaacute-la como a consciecircncia do amargo engano Enfatizaria ldquoo desacordo entre um mapa de sonho e minas de nadardquo (SUumlSSEKIND 1990 p 21) A partir da deacutecada de 1830 a distacircncia entre a utopia imaginada e o Brasil que encontraram parece intransponiacutevel ldquoAssim como o convite para uma visatildeo do paraiacuteso converte-se em pouco tempo numa temporada no infernordquo (SUumlSSEKIND 1990 p 23) Pergunto-me Estaraacute o Brasil longe daqui

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8 Conforme tenho anotado em um velho caderno algumas dessas informaccedilotildees podem ser encontradas em um website dedicado agrave pesquisa e divulgaccedilatildeo da genealogia da famiacutelia Stricker lthttpblogstrickerblogspotcomgt (Acesso em 18 Nov 2013) A genealogia percorre diversas versotildees do sobrenome - Stricker Strickert von Stricket Em uma das postagens afirma-se que a origem familiar remontaria ao imperador Carlos Magno Quais foram as fontes consultadas na pesquisa que levou a essa conclusatildeo contudo natildeo estaacute claro Natildeo surpreende poreacutem que a pesquisa tenha levado a ela Considerando-se a natureza da empreitada seria impossiacutevel alcanccedilar conclusatildeo diferente Em se tratando de aacutervores genealoacutegicas a origem remonta sempre a figuras ilustres De todo modo se haacute realmente alguma verdade nisso natildeo se pode deixar de admirar a quantidade de degraus da escala social que os nobres von Stricket foram capazes de descer 9 A transliteraccedilatildeo de termos em grego antigo eacute fornecida sempre entre parecircntesis e em itaacutelico Para tanto seguiram-se as normas estabelecidas por Anna Lia do Amaral de Almeida Prado (2006) 10 Anzalduacutea contrapotildee o mundo ldquorealrdquo e as imagens em nossa cabeccedila Entretanto ao empregar as aspas questiona a divisatildeo e a oposiccedilatildeo entre o mundo material compreendido pelo pensamento hegemocircnico enquanto objetivo e verdadeiro e o mundo mental compreendido por esse pensamento enquanto subjetivo e portanto ldquoirrealrdquo A linha divisoacuteria entre a objetividade do mundo externo e a subjetividade do mundo interno eacute borrada permeaacutevel Na verdade ilusoacuteria Segundo Norma Telles ldquoAs decisotildees pessoais e sociais que tecircm impacto na sobrevivecircncia satildeo repletas de incertezas e necessitam de amplo repertoacuterio de conhecimento sobre o mundo externo e interno ao organismo Os conhecimentos para raciocinar a respeito de possiacuteveis decisotildees chegam agrave mente sob a forma de imagens Estas concordam autores distintos como Bachelard Hillman e Damaacutesio natildeo satildeo armazenadas como se fossem fotografias das coisas ou acontecimentos mas satildeo construccedilotildees momentacircneas passageirasrdquo (2009 p 247) 11 Frederico Lourenccedilo traduz assim o iniacutecio do ldquoEvangelho segundo Joatildeordquo ldquoNo princiacutepio era o verbo e o verbo estava com Deus e Deus era o verbordquo (LOURENCcedilO 2017) 12 De acordo com Donna Haraway ldquoNossos corpos satildeo nossos eus os corpos satildeo mapas de poder e identidade [] O intenso prazer na habilidade - na habilidade da maacutequina - deixa de ser um pecado para constituir um aspecto do processo de corporificaccedilatildeo A maacutequina natildeo eacute uma coisa a ser animada idolatrada e dominada A maacutequina coincide conosco com nossos processos ela eacute um aspecto de nossa corporificaccedilatildeo Podemos ser responsaacuteveis pelas maacutequinas elas natildeo nos dominam ou nos ameaccedilam Noacutes somos responsaacuteveis pelas fronteiras noacutes somos essas fronteirasrdquo (2019 p 200) 13 Conforme Edgar Morin ldquoNatildeo se trata somente de que a cada quatro anos a maior parte das ceacutelulas que constituem o meu organismo desaparecem e satildeo substituiacutedas por outras ou seja biologicamente jaacute natildeo sou o mesmo que era haacute quatro anos Haacute tambeacutem certas modificaccedilotildees que fazem com que uma crianccedila se converta em adolescente depois em adulto depois em anciatildeo E natildeo obstante quando olho uma fotografia de minha infacircncia digo ldquosou eurdquo Sem duacutevida jaacute natildeo sou essa crianccedila jaacute natildeo tenho esse corpo e esse rosto mas a ocupaccedilatildeo desse lugar central do eu que se manteacutem permanente atraveacutes de todas as modificaccedilotildees estabelece a continuidade da identidade Temos inclusive a ilusatildeo de possuir uma identidade estaacutevel sem dar-nos conta de que somos muito diferentes segundo os humores e paixotildees segundo amemos e odiemos e segundo o fato [] de que todos temos uma dupla uma tripla uma muacuteltipla personalidade O eu realiza a unidade []rdquo (1996 p 50) 14 Alusatildeo agrave terceira estrofe do primeiro soneto de ldquoSonetos que natildeo satildeordquo em O roteiro do silecircncio [1959] ldquoAfliccedilatildeo de ser aacutegua em meio agrave terra E ter a face conturbada e moacutevel E a um soacute tempo muacuteltipla e imoacutevelrdquo (HILST 2017 p 90)

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Casa n 12 Adolfo Moreira dotinkttoo

Grafite sobre papel 2019

Satildeo Paulo Brasil coleccedilatildeo particular

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Meus pais em Bariloche Fotografia

198 Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Fotografia de parente cujo nome se perdeu Fotografia

1 Joinville Brasil arquivo particular

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Retrato de Julia Jackson Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1864

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

A futura Julia Prinsep Stephens matildee de Virginia Woolf

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Retrato de Passagem Jamilie Souza chicavamo

Pastel oleoso sobre folha de jornal 2019

Satildeo Paulo Brasil arquivo pessoal

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Detalhes de leacutecito de terracota em que satildeo retratadas mulheres fiando e tecendo

Atribuiacutedo a Amasis c 550-530 a C Cultura Grega Aacutetica Periacuteodo Arcaico

Nova Iorque EUA The Metropolitan Museum of Art

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II

PALAVRAS QUE NAtildeO FORAM ESCRITAS1

O DESEJO DA PALAVRA

A Daniel Franccediloli Yago

que me abriu as portas de sua biblioteca

A Franklin Costa Marques Filho

que me encorajou a escrever como le fou

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Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo As ondas inspiram e expiram

suspirando profundamente Os ventos sopram carregando sal e palavras

aladas Olho para a longiacutenqua linha do horizonte Os limites entre ceacuteu e mar

borram-se ldquoAntes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo eacute

muito grande Porque Terra eacute pequena Do tamanho da antena parabolicamaraacuterdquo

canta Gilberto Gil (1992)

Imagino quantos barcos teratildeo se aventurado pelas aacuteguas rumo ao infinito

desconhecido Quantas baleias teratildeo devorado pernas de capitatildees Quantos

pessoas em botes ou em porotildees de navios teratildeo rezado ou chorado noite

adentro Quantos paacutessaros teratildeo migrado do Sul para o Norte e do Norte para o

Sul Quantos aviotildees teratildeo singrado os mesmos ares ldquoDe jangada leva uma

eternidade De saveiro leva uma encarnaccedilatildeo De aviatildeo o tempo de uma

saudaderdquo (GIL 1992) Faz-me porosa a febre por viajar Sinto o gosto do

movimento

Divago sobre o mapa-muacutendi os grandes navegadores e as descobertas

de novos continentes Como teria sido desembarcar em terras desconhecidas

Ele pensava que poderia haver deuses gigantes esculpidos em pedra na encosta da montanha e figuras colossais eretas no meio de vastas pastagens verdes onde ningueacutem jamais pisara exceto nativos Antes do alvorecer da arte europeia ele acreditava que caccediladores e sacerdotes primitivos haviam construiacutedo templos de pedras maciccedilas haviam formado com a partir de grandes cedros e de rochas escuras figuras majestosas de deuses e de feras aleacutem de siacutembolos das grandes forccedilas - a aacutegua o ar e a floresta - entre as quais viviam [] Ningueacutem jamais estivera laacute praticamente nada se sabia a respeito (WOOLF 2009 p 275 Trad minha Grifos meus)

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Ningueacutem jamais estivera laacute Mundos que natildeo haviam sido vistos antes

Praticamente nada se sabia a respeito Palavras que natildeo haviam sido escritas

antes Antes que matildeos destras musculosas rijas viris manipulassem

astrolaacutebios buacutessolas papel e tinta Antes que cartas fossem escritas antes que

mapas fossem desenhados antes que a descoberta de novos continentes fosse

anunciada

No caso de terras receacutem descobertas lugares ainda sem nome o sujeito ldquoeterno Adatildeordquo de fato natildeo pertence a elas mas caberia a ele dar nome ao que vecirc dar a partida para a inscriccedilatildeo de tais locais no ldquomundo dos brancosrdquo dos mapas do tempo histoacuterico Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudanccedila de um estado de ldquopura naturezardquo para uma corrida em direccedilatildeo ao que este viajante entendesse por ldquocivilizaccedilatildeordquo semente a ser lanccedilada por ele nessa terra que crecirc paradisiacuteaca ou infernalmente em branco (SUumlSSEKIND 1990 p 13)

A descoberta de novos continentes eacute o encobrimento de (re)invenccedilotildees

Satildeo inventados os antigos continentes e os novos continentes O antigo pode

existir apenas quando haacute algo que o sucede o novo pode existir apenas quando

haacute algo que o antecede Em um gesto as terras civilizadas e as terras baacuterbaras

satildeo (re)inventadas Em um gesto a Aacutefrica e a Aacutesia satildeo (re)inventadas enquanto

regiotildees exoacuteticas primitivas e perifeacutericas a Europa eacute (re)inventada enquanto o

berccedilo da civilizaccedilatildeo e o centro da histoacuteria a Ameacuterica eacute (re)inventada enquanto

terra de ningueacutem um feacutertil vazio produtivo ldquoEacute sempre bom lembrar Que um

copo vazio Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O universo europeu medieval se apresentava iacutentegro totalmente

preenchido de significado e de valor Natildeo encerrava a ausecircncia de sentido o

vazio Natildeo era ameaccedilado pelo aniquilamento e pela diluiccedilatildeo de identidades

(FIGUEIREDO 2007 p 52 54)

O indiviacuteduo era uma realidade empiacuterica cujo valor era atribuiacutedo em funccedilatildeo

do decoro (LIMA 1986 p 262) A adequaccedilatildeo da existecircncia a determinados

modelos coletivos conferia honra Aos moldes religiosos a praacutetica da meditaccedilatildeo

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detinha-se sobre a origem e os motivos dos proacuteprios males dos proacuteprios

pecados

Nesse periacuteodo os discursos hegemocircnicos sobre a mulher baseavam-se

em argumentos teoloacutegicos cristatildeos Lilith preferiu a fuga infernal a submeter-se

a Adatildeo A partir de Adatildeo Eva foi criada pelas potentes matildeos divinas Como Eva

a mulher seria um ser incompleto Portanto a mulher deveria subordinar-se ao

homem O fruto proibido foi recolhido pelas audaciosas matildeos de Eva Adatildeo foi

induzido ao pecado por Eva Assim em uma ldquo[] religiatildeo em que a carne eacute

maldita a mulher se apresenta como a mais temiacutevel tentaccedilatildeo do democircniordquo

(BEAUVOIR 1980 p 118) Como Eva a mulher seria ambiciosa astuta

sedutora e perigosa Aleacutem disso como Lilith a mulher seria potencialmente

incapturaacutevel subversiva ldquoO Verbo eacute o apanaacutegio dos que exercem o poder Ele

eacute o poder Ele vem de Deus Ele faz o homemrdquordquo (PERROT 2005 p 318) Desse

modo a partir do seacuteculo XII a Igreja Catoacutelica havia reservado a pregaccedilatildeo

estritamente aos cleacuterigos homens ldquoA palavra puacuteblica das mulheres na Igreja estaacute

ligada desde entatildeo agrave subversatildeo e ateacute mesmo agrave heresiardquo (PERROT 2005 p

318)

Com o Renascimento os significados e os valores foram desarticulados

Deu-se o processo de secularizaccedilatildeo da experiecircncia do conhecimento da

experiecircncia da vida A Razatildeo passou a ser considerada um atributo natural

essencial do homem

De acordo com determinados filoacutesofos racionalistas a Razatildeo teria sido

concedida ao homem por um ser sobrenatural Todavia na medida em que se

atribuiacuteram regularidades intriacutensecas agrave natureza o sujeito poderia analisar

racionalmente o objeto e acessar o conhecimento cientiacutefico imparcial objetivo e

seguro O homem poderia conhecer por si proacuteprio e poderia escolher a sua forma

de conduta a partir de sua proacutepria perspectiva individual (LIMA 1986 p 282)

Foram possibilitadas portanto perspectivas excecircntricas pontos de vista

situados fora do centro cultural poliacutetico religioso social O racionalismo

moderno libertaria o homem do conhecimento dogmaacutetico e finalista da

escolaacutestica

No seacuteculo XVI a Reforma Protestante a Reforma Inglesa e a Contra

Reforma contribuiacuteram para o estabelecimento de uma atmosfera de

efervescente caos poliacutetico religioso e social Haacute a dissoluccedilatildeo de hierarquias ndash

70

entre dogma e heresia entre centro e periferia etc De fato a Reforma

Protestante - ldquoapresentada como uma mulher com liacutenguas de serpenterdquo

(PERROT 2005 p 320) - permitiu por determinado periacuteodo que se elevassem

as vozes puacuteblicas de mulheres

As monarquias absolutistas podem ser entendidas como respostas

poliacuteticas a essa atmosfera conturbada e potencialmente explosiva O monarca

absoluto concentra em si todo o poder A uma uacutenica figura obedece o suacutedito (em

inglecircs subject em francecircs sujet) Alcanccedila-se determinada ordem social

Entretanto persiste a crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo relativo agraves leis do

Estado e agraves accedilotildees puacuteblicas e o domiacutenio interno relativo agraves consciecircncias

individuais e agraves livres opiniotildees O homem estaacute em vias de tornar-se uma mente

enquanto faculdade cognoscente uma consciecircncia um indiviacuteduo pensante um

sujeito (em inglecircs subject em francecircs sujet)2

Dessa maneira o termo ldquosujeitordquo conteacutem significados aparentemente

contraditoacuterios o de sujeito ndash o indiviacuteduo que como o suacutedito deve se sujeitar a

outrem ndash e o de sujeito ndash o indiviacuteduo que possui uma consciecircncia livre O sujeito

tem um status eacutetico moral juriacutedico psiacutequico poliacutetico e social Eacute auto constituiacutedo

Desse modo a introspecccedilatildeo natildeo deve necessariamente dirigir-se ao

divino ou ao ontoloacutegico Pode dirigir-se agraves proacuteprias entranhas (COSTA LIMA

1986 p 266) A praacutetica da meditaccedilatildeo passa a conviver com a praacutetica do

autoexame O autoexame deteacutem-se sobre a investigaccedilatildeo racional de si

Pretende descobrir os motivos que presidem as accedilotildees individuais

No seacuteculo XVII Reneacute Descartes (1596-1650) formularia o paradigma

racionalista moderno Cogito ergo sum [Penso logo sourdquo] O indiviacuteduo moderno

eacute o sujeito cognoscente A partir do racionalismo cartesiano estabelecem-se uma

seacuterie de dualismos corpo-mente sensibilidade-racionalidade subjetivo-objetivo

O corpo do indiviacuteduo eacute o locus da sensibilidade a mente do indiviacuteduo eacute o locus

da racionalidade

Na busca pelo conhecimento cientiacutefico o corpo e a subjetividade satildeo

compreendidos pela filosofia racionalista moderna como ruiacutedos como fontes de

erros Para acessar o conhecimento imparcial objetivo e seguro a observaccedilatildeo

deveria ser depurada do corpo e da subjetividade do observador O sujeito

cognoscente eacute um indiviacuteduo pensante uma consciecircncia uma mente em

detrimento do corpo

71

Entretanto O sujeito constituiria a si mesmo por meio de trecircs praacuteticas-

chave o governo de si a gestatildeo do proacuteprio patrimocircnio e a participaccedilatildeo na

administraccedilatildeo da cidade Praacuteticas viris O sujeito tem um corpo - soberano

branco europeu heterossexual masculino saudaacutevel seminal (PRECIADO

2014 sem paginaccedilatildeo) De acordo com viacutenculos viris eacute distribuiacutedo o poder

cultural social e poliacutetico (BRAIDOTTI 2011)

Ateacute o final do seacuteculo XVII as diferenccedilas entre homens e mulheres satildeo

compreendidas hegemonicamente enquanto ontoloacutegicas e teoloacutegicas A

essecircncia seria destino Haacute entretanto experiecircncias e vozes dissonantes

Em 1673 Poullain de la Barre (1647-1723) elaborou o tratado cartesiano

On the Equality of the Two Sexes A Physical and Moral Discourse Which Shows

the Importance of Getting Rid of Onersquos Prejudices [Sobre a igualdade dos dois

sexos Um discurso fiacutesico e moral que mostra a importacircncia de livrar-se dos

proacuteprios preconceitos] (2007) No Prefaacutecio declara

A melhor coisa que poderia acontecer agraves pessoas que estatildeo se esforccedilando para adquirir novo conhecimento eacute questionar se a educaccedilatildeo tradicional que receberam eacute vaacutelida e entatildeo tentar procurar por si mesmos a verdade Rapidamente percebem que noacutes estamos cheios de preconceitos e que temos que fazer um grande esforccedilo para nos livrarmos deles antes que possamos alcanccedilar um entendimento claro e distinto (BARRE 2007 p 49 Trad minha)

Para persuadir os seus leitores analisa a natureza inferior das mulheres com a

finalidade de demonstrar que essa crenccedila universal eacute resultado de preconceito

As objeccedilotildees agrave igualdade das mulheres encontrariam apoio nas Escrituras

Sagradas ou nas grandes autoridades De acordo com Poullain de la Barre natildeo

haveria nada na Biacuteblia que se opusesse agrave igualdade das mulheres desde que

fosse interpretada corretamente Aleacutem disso ele natildeo reconhece outras

autoridades aleacutem da Razatildeo e do Bom Senso Assim dirige-se em primeiro lugar

agraves pessoas comuns de modo a convencecirc-las de que as posiccedilotildees ocupadas por

cada um dos sexos satildeo distribuiacutedas de tal modo porque as mulheres foram

sistematicamente excluiacutedas e em segundo lugar aos estudiosos fornecendo

boas razotildees para que se estabeleccedila a igualdade entre os sexos

72

Para Poullain de la Barre a constituiccedilatildeo do corpo a educaccedilatildeo a

observacircncia religiosa e os efeitos do ambiente seriam as causas das diferenccedilas

entre os seres humanos Enquanto a constituiccedilatildeo dos corpos de homens e de

mulheres seria diferente a constituiccedilatildeo das mentes natildeo o seria Dessa maneira

homens e mulheres seriam capazes de alcanccedilar o conhecimento Homens e

mulheres poderiam ser sujeitos cognoscentes ndash mentes em detrimento dos

corpos

Ao longo do seacuteculo XVII e do seacuteculo XVIII vozes de mulheres praticaram

a arte da conversaccedilatildeo As preacutecieuses (ldquopreciosasrdquo) organizaram salons

(ldquosalotildeesrdquo) em que se discutia filosofia e literatura Um modo de tomar a palavra

puacuteblica (PERROT 2005 p 463)

Divago sobre o territoacuterio literaacuterio e os grandes autores Onde estariam as

escritoras Em A Room of Onersquos Own a narradora imagina o que teria ocorrido

se William Shakespeare houvesse tido uma irmatilde a que chamou de Judith

Shakespeare

ldquoEnquanto isso a sua irmatilde extraordinariamente talentosa suponhamos permanecia em casa Ela era tatildeo imaginativa tatildeo aventureira tatildeo ansiosa por ver o mundo quanto ele era Poreacutem ela natildeo foi enviada agrave escola Ela natildeo tinha chance de aprender gramaacutetica e loacutegica muito menos de ler Horaacutecio e Virgiacutelio Vez ou outra ela pegava um livro - um dos livros de seu irmatildeo talvez Entretanto seus pais entatildeo entravam e diziam-lhe que cerzisse as meias ou se ocupasse do ensopado e natildeo ficasse devaneando com livros e papeis Eles falariam de modo assertivo mas gentil Pois eram pessoas de substacircncia que conheciam as condiccedilotildees de vida para uma mulher e que amavam sua filha [] Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo [] mas tinha o cuidado de escondecirc-las ou queimaacute-las Cedo contudo ela [] ela foi prometida ao filho do vizinho [] Ela clamou que o casamento lhe era odioso e por isso apanhou duramente de seu pai Entatildeo ele deixou de repreendecirc-la Implorou-lhe que natildeo o magoasse que natildeo o envergonhasse [] Dar-lhe-ia um colar de contas uma boa anaacutegua disse ele E havia laacutegrimas em seus olhos Como poderia desobedececirc-lo Como poderia partir seu coraccedilatildeo Apenas a forccedila de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres [] ela tinha um gosto pelo teatro [] queria atuar [] Os homens riram dela [] Por fim [] o gerente

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dos atores Nick Greene teve pena dela ela engravidou daquele homem e entatildeo [] suicidou-se em uma noite de inverno e jaacute enterrada em alguma encruzilhada []rdquo (WOOLF 2008 pp 60-61 Trad minha Grifos meus)

Pode ser que ela esboccedilasse algumas paacuteginas agraves escondidas no soacutetatildeo

Palavras que natildeo haviam sido escritas antes Mas tinha o cuidado de escondecirc-

las ou queimaacute-las Mundos que natildeo haviam sido vistos antes Apenas a forccedila

de seu dom a levou a isso Empacotou suas coisas desceu por uma corda em

uma noite de veratildeo e dirigiu-se a Londres Judith Shakespeare ousou lanccedilou-se

agrave aventura de seguir seu desejo

Assim atraveacutes de todo o Antigo Regime o campo cultural eacute o mais acessiacutevel agraves mulheres que tentam afirmar-se Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare o que se explica pela mediocridade geral de sua situaccedilatildeo A cultura sempre foi o apanaacutegio de uma elite feminina natildeo da massa e da massa foi que saiacuteram muitas vezes os gecircnios masculinos As proacuteprias privilegiadas encontravam em derredor obstaacuteculos que lhes barravam o acesso aos altos picos [] Eacute somente no seacuteculo XVIII que uma burguesa Mrs Aphra Behn tendo ficado viuacuteva passa a viver da pena como um homem outras lhe seguiram o exemplo mas mesmo no seacuteculo XIX elas era obrigadas a se esconder natildeo tinham sequer um quarto proacuteprio isto eacute natildeo gozavam desta independecircncia material que eacute uma das condiccedilotildees necessaacuterias agrave liberdade interior (BEAUVOIR 1980 pp 136-137 Grifos meus)

Nenhuma atingiu as alturas de um Dante de um Shakespeare Por quecirc

Matildeos adestradas patriarcais manipulam livros em capa dura papel e tinta

Traccedila-se a histoacuteria literaacuteria Dizem houve um dia em que o grito solitaacuterio de uma

mulher quebrou o silecircncio da noite ldquoEacute sempre bom lembrar Que um copo vazio

Estaacute cheio de arrdquo canta Gilberto Gil (2006)

O κανών (kanṓn) eacute um instrumento no formato de uma barra reta Pode

referir-se agraves varas usadas na tecelagem na carpintaria e na construccedilatildeo O

cacircnone eacute um instrumento de medida um padratildeo um paradigma um limite

(LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Tem a frieza e a rigidez da reacutegua

de metal e das laacutepides de pedra

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Com o auxiacutelio do cacircnone exploram-se as minas dos continentes literaacuterios

Selecionam-se as pedras brilhantes deixando-se de lado as pedras opacas

Passa-se cada uma das pedras escolhidas pelo fio condutor do progresso

Confecciona-se entatildeo uma preciosa joia Com o auxiacutelio do cacircnone constroacutei-se

a tradiccedilatildeo literaacuteria Busca-se estabelecer sua atemporalidade sua unidade sua

continuidade e sua universalidade Com o auxiacutelio do cacircnone arquiteta-se o

cemiteacuterio literaacuterio em que jazem os autores dignos da imortalidade A partir de

determinados pressupostos de distinccedilatildeo extraordinaacuteria inscritos em letras

douradas no cacircnone constroacutei-se a tra(d)iccedilatildeo literaacuteria eurocecircntrica dos

androheterogecircnios

Linhas imaginaacuterias linhas imaginadas Por meio de praacuteticas de

mapeamento delineiam-se linhas delimitadoras niacutetidas Essas linhas satildeo os

contornos de objetos que natildeo existem a priori que ldquo[] satildeo projetos de

fronteirasrdquo (HARAWAY 1995 p 40) Poreacutem as fronteiras ldquooscilam desde dentro

[] O que as fronteiras contecircm provisoriamente permanece gerativo produtor

de significados e de corpos Assentar (atentar para) fronteiras eacute uma praacutetica

muito arriscadardquo (HARAWAY 1995 pp 40-41)

Paradoxalmente a tentativa de estabelecer por meio de discursos

hegemocircnicos fronteiras riacutegidas propicia o surgimento de discursos inversos A

tentativa de definir de marginalizar e de controlar oficialmente determinado

grupo tem como efeito que os seus membros percebam a realidade de sua

diferenccedila A partir dessa percepccedilatildeo estabelecem-se novos viacutenculos novos

sentimentos novas praacuteticas novos conhecimentos novas culturas Formam-se

novas identidades sociais que satildeo frequentemente forjadas a partir dos proacuteprios

termos com que se buscou marginalizaacute-las

Em torno dessas novas identidades sociais reivindica-se o

reconhecimento da legitimidade de diferentes modos de existir (SHOWALTER

1993 p 30) Entretanto a produccedilatildeo de novas identidades sociais e de novas

praacuteticas cujo objetivo eacute construir a verdade sobre o eu podem passar a funcionar

como novos mecanismos de captura novos instrumentos de disciplina e de

controle (BRAIDOTTI 2011 p 172)3

75

No Palaacutecio de Versalhes as vidas desenrolam-se agrave vista de todos

Leques maacutescaras e perucas empoadas ordenam-se e reordenam-se agrave luz de

velas formando intrincados padrotildees geomeacutetricos No centro do exuberante

espetaacuteculo o Rei Sol emana a sua proacutepria luz ofuscante

Como os pratos dourados de uma balanccedila enquanto esse astro se potildee

outra fonte de luz desponta no horizonte das sociedades ocidentais Ilumina os

avessos dos meios legiacutetimos de representaccedilatildeo Por meio de procedimentos

empiacutericos e racionais passa-se a exploraacute-los cientiacutefica filosoacutefica e literariamente

(FIGUEIREDO 2007 p 109)

As antigas maacutescaras ocultariam e sufocariam o eu Seria necessaacuterio

abandonaacute-las para revelaacute-lo Ao longo do seacuteculo XVIII espiacuteritos esclarecidos e

almas sensiacuteveis procuram descobrir as profundezas do verdadeiro eu

(FIGUEIREDO 2007 p 105) O indiviacuteduo moderno busca destilar a sua proacutepria

essecircncia Com essa finalidade o autoexame racional do indiviacuteduo moderno

procura a ldquolinha de feacuterrea coerecircnciardquo (LIMA 1986 p 284) capaz de conduzir da

infacircncia agrave maturidade ldquoO menino eacute pai do homemrdquo4

O eu teria uma identidade autocontida autoconhecida e autodominada

Essa identidade permaneceria ao longo do tempo independentemente das

condiccedilotildees A partir dos valores da especificidade da singularidade e da

particularidade o eu passa a compreender a si mesmo e passa a ser

compreendido pelo mundo enquanto indiviacuteduo (LIMA 1986 p 300) A vocaccedilatildeo

passa a mediar a relaccedilatildeo entre o eu e o mundo (LIMA 1986 PERROT 2005)

Eis a fantasia moderna ndash ilustrada liberal e romacircntica (FIGUEIREDO 2007 p

147) Entretanto natildeo haacute um eu primaacuterio estaacutevel irredutiacutevel que se possa

descobrir e conquistar convertendo-o em palavras (LIMA 1986 p 295)

Em paralelo ao processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de eu de

indiviacuteduo e de sujeito deu-se o processo de nascimento da noccedilatildeo moderna de

autoria5

76

No Ocidente entre o seacuteculo XIII e o seacuteculo XIV a concepccedilatildeo e a praacutetica

de produccedilatildeo dos coacutedices ndash isto eacute dos livros manuscritos ndash natildeo era determinada

pelo criteacuterio de identidade autoral Em seu interior o coacutedice trazia textos de

diferentes ldquoautoresrdquo datas gecircneros textuais e liacutenguas Os coacutedices de

autoridades antigas juriacutedicas ou religiosas constituiriam exceccedilotildees agrave regra O

criteacuterio de composiccedilatildeo do coacutedice seria o copista ou o leitor ndash isto eacute quem tivesse

decidido reunir determinados textos em um livro (CHARTIER 2014) Entre o

seacuteculo XIV e a primeira metade do seacuteculo XV comeccedila a estabelecer-se a

unidade entre o coacutedice a obra e o nome proacuteprio do ldquoautorrdquo (CHARTIER 2014)

A partir do seacuteculo XVI ou do seacuteculo XVII o processo de nascimento da

noccedilatildeo moderna de autoria estaria relacionado ao mecanismo de vigiar de

censurar de julgar e de punir exercido por uma autoridade Estabelece-se

entatildeo a noccedilatildeo do autor enquanto responsaacutevel perante a lei por sua obra que

teria potencial hereacutetico heterodoxo transgressor

A partir do seacuteculo XVIII esse processo estaria relacionado aos

mecanismos de atribuiccedilatildeo de verdade a determinados discursos de certificaccedilatildeo

e de legitimaccedilatildeo Haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) em

relaccedilatildeo a esse ponto De acordo com Foucault teria ocorrido a inversatildeo de

status entre os autores dos textos que classificariacuteamos como ldquoliteraacuteriosrdquo e os

textos que classificariacuteamos como ldquocientiacuteficosrdquo6 O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo

teria sido destituiacutedo de autoridade e o autor de textos ldquoliteraacuteriosrdquo teria sido

investido de autoridade De acordo com Chartier durante a Revoluccedilatildeo Cientiacutefica

a autenticaccedilatildeo de uma narrativa natildeo-ficcional a credibilidade de uma

proposiccedilatildeo a garantia de uma descoberta a validade de uma experiecircncia

requereriam o emprego do nome proacuteprio de um indiviacuteduo cuja autoridade lhe

permitisse ldquoenunciar o verdadeiro em uma sociedade cuja hierarquia das ordens

e do poder eacute ao mesmo tempo uma hierarquia das posiccedilotildees sociais e da

credibilidade da palavrardquo (2014 p 52) O autor de textos ldquocientiacuteficosrdquo natildeo teria

portanto sido destituiacutedo de autoridade

No mesmo periacuteodo o processo de estabelecimento da autoria estaria

relacionado agrave concepccedilatildeo burguesa de indiviacuteduo e de propriedade Novamente

haacute divergecircncias entre Foucault (1992) e Chartier (2014) Para Foucault no final

do seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do autor enquanto proprietaacuterio da obra

A propriedade literaacuteria seria um novo direito burguecircs Para Chartier no iniacutecio do

77

seacuteculo XVIII estabelece-se a noccedilatildeo do editor enquanto proprietaacuterio da obra A

propriedade literaacuteria seria a perpetuaccedilatildeo do antigo sistema de privileacutegios

Fundada em 1403 a Stationerrsquos Company era uma companhia cujos

membros eram livreiros de Londres ndash no iniacutecio copistas e posteriormente

impressores Conforme Chartier (2014) de meados do seacuteculo XVI ateacute a primeira

deacutecada do seacuteculo XVIII o estatuto da Stationerrsquos Company garantia que somente

os seus membros pudessem registrar o right in copies O right in copies -

literalmente o ldquodireito em coacutepiasrdquo - referia-se ao direito sobre as coacutepias de livros

produzidas pelos livreiros Ou seja referia-se ao direito sobre o produto material

da reproduccedilatildeo da obra O estatuto da companhia tambeacutem garantia que o

monopoacutelio sobre os rights in copies registrados pelos seus membros fosse

exclusivo e perpeacutetuo Assim esse monopoacutelio poderia ser compartilhado legado

como heranccedila vendido etc

Em 1709 com a votaccedilatildeo no parlamento do Estatuto da Rainha Ana esse

monopoacutelio perpeacutetuo e exclusivo foi extinto Entrou em voga entatildeo o copyright

O copyright - literalmente o ldquodireito de copiarrdquo - referia-se ao direito de reproduzir

a obra Enquanto o right in copies referia-se agrave posse de objetos materiais o

copyright referia-se agrave posse de objetos imateriais Permitiu-se aos autores e aos

livreiros de outras localidades registrar o copyright cuja duraccedilatildeo era de quatorze

anos Agrave eacutepoca o registro da patent (ldquopatenterdquo) que garantia a exploraccedilatildeo

exclusiva de uma invenccedilatildeo teacutecnica de uma maacutequina ou de um procedimento

tinha o mesmo limite de duraccedilatildeo No caso do copyright se o autor da obra fosse

vivo o registro poderia ser renovado por catorze anos adicionais

O paralelo entre o copyright e a patent implicava o paralelo entre obra

literaacuteria e invenccedilatildeo teacutecnica Com a finalidade de defender a perpetuaccedilatildeo do

antigo sistema de privileacutegios convinha aos livreiros londrinos desfazecirc-lo Assim

defenderam que a obra literaacuteria se caracterizaria como uma criaccedilatildeo original

separada de toda materialidade singular (CHARTIER 2014 p 45) Aleacutem disso

uma vez que de acordo com a teoria do direito natural o homem seria

proprietaacuterio do seu corpo e dos produtos de seu trabalho defenderam que o

autor teria a posse perpeacutetua imprescritiacutevel da obra Os membros da Stationerrsquos

Company e os seus advogados inventaram entatildeo a propriedade literaacuteria do

autor reforccedilando a compreensatildeo da obra literaacuteria enquanto objeto imaterial

Entretanto caso o autor cedesse a posse da obra a outra pessoa - por exemplo

78

a um membro da Stationerrsquos Company - transmitiria a sua perpetuidade e a sua

imprescritibilidade Utilizando-se desse argumento processaram livreiros da

proviacutencia que buscavam valer-se do novo Estatuto

Desse modo a noccedilatildeo moderna de obra transcendeu a materialidade do

corpo de um coacutedice manuscrito ou de um livro impresso a noccedilatildeo moderna de

autoria foi inventada enquanto caracteriacutestica essencial da obra de modo a definir

os contornos desse objeto imaterial e a noccedilatildeo moderna de autor foi definida a

partir dos criteacuterios de originalidade profundidade particularidade singularidade

e unidade Aparentemente o autor seria anterior e exterior agrave obra (FOUCAULT

1992 p 34) O autor equivaleria ao indiviacuteduo empiacuterico enquanto uma unidade

de consciecircncia e de intuiccedilatildeo Em tom de desinteressada e velada confidecircncia

expressaria as experiecircncias reais e os sentimentos verdadeiros do indiviacuteduo na

obra O autor-sujeito seria o criador da obra-objeto responsaacutevel por conferir-lhe

um significado uacuteltimo

Na medida em que o nome do autor corresponde ao nome proacuteprio do

indiviacuteduo empiacuterico o autor estabelece uma identidade civil-profissional O nome

proacuteprio do autor-indiviacuteduo seria o iacutendice da autenticidade da legitimidade7 e da

propriedade de uma obra

Em nome de reinos e de impeacuterios impocircs-se silecircncio agraves demandas

coletivas e aos desejos individuais

Em outubro de 1789 uma multidatildeo de mulheres acerca-se dos portotildees

dourados do Palaacutecio de Versalhes Exalam suor Clamam energicamente contra

a crise de abastecimento ldquoHarmful elements in the air Symbols clashing

everywhererdquo cantam Siouxie amp The BansheesI Forccedilado a deixar Versalhes o

rei Luiacutes XVI eacute escoltado a Paris ldquoOs homens tomaram a Bastilha e as mulheres

tomaram o reirdquo escreveu Jules Michelet

A Revoluccedilatildeo Francesa teria autorizado a expressatildeo das demandas

coletivas e dos desejos individuais (PERROT 2005 p 315) Liberdade

igualdade fraternidade

I ldquoElementos nocivos no ar Siacutembolos colidindo em todo lugarrdquo (Trad minha)

79

Liberteacute Os animais os escravizados as mulheres foram as primeiras

maacutequinas da Revoluccedilatildeo Industrial A liberdade dos homens modernos funda-se

no regime de escravidatildeo no regime de trabalho domeacutestico reprodutor natildeo-

assalariado e no regime de trabalho produtor assalariado (PRECIADO 2014

sem paginaccedilatildeo)

Eacutegaliteacute Em 1789 os direitos universais foram proclamados A Deacuteclaration

des Droits de lrsquoHomme et du Citoyen (ldquoDeclaraccedilatildeo dos direitos do homem e do

cidadatildeordquo) estabeleceu as fronteiras da humanidade Aleacutem e aqueacutem desses

limites situaram-se os criados os estrangeiros os menores as mulheres os

pobres

Ao longo da Revoluccedilatildeo Francesa (1789-1799) proibiu-se a participaccedilatildeo

de mulheres no governo da Convention Nacionale (ldquoConvenccedilatildeo Nacionalrdquo)

Interditaram-se os clubes poliacuteticos de mulheres Apoacutes o caos poliacutetico e social eacute

preciso (re)estabelecer a ordem Para isso eacute preciso reprimir esta desordem a

palavra puacuteblica e a forccedila poliacutetica de mulheres (PERROT 2005 p 320)

Fraterniteacute Do latim frater significa ldquoirmatildeordquo Fraters pode referir-se a

ldquoirmatildeosrdquo ou a ldquoirmatildeos e irmatildesrdquo O masculino ou o universal-masculino Os

viacutenculos masculinos estabelecem a loacutegica do poder

Liberdade igualdade fraternidade Os princiacutepios explicitados no famoso

lema da Revoluccedilatildeo Francesa tecircm raiacutezes colonialistas e patriarcais Os seus

operadores exploraccedilatildeo exclusatildeo e hostilidade

Nesse terreno feacutertil e pedregoso comeccedilaram a germinar os feminismos

A partir do sufraacutegio masculino os parlamentos eram compostos em eleiccedilotildees O

Direito estabeleceu-se a partir dos viacutenculos viris e da loacutegica patriarcal As leis

eram escritas por matildeos condescendentes em relaccedilatildeo agraves mulheres

Entretanto a legislaccedilatildeo eacute um campo de forccedilas que se recompotildee sem

cessar Nesse campo lutam-se batalhas em que os adversaacuterios medem as

alianccedilas os obstaacuteculos a opiniatildeo puacuteblica

Na Franccedila os movimentos de mulheres voltaram-se inicialmente agrave

dimensatildeo juriacutedica Para as sufragistas os direitos poliacuteticos estariam atrelados

aos direitos civis O direito ao voto significaria o reconhecimento das mulheres

80

enquanto cidadatildes Possibilitaria que os interesses das mulheres fossem

considerados na elaboraccedilatildeo das leis

Entretanto houve tanto mulheres revolucionaacuterias quanto

contrarrevolucionaacuterias tanto mulheres sufragistas quanto mulheres contraacuterias ao

sufraacutegio universal tanto mulheres feministas quanto antifeministas Aleacutem disso

os movimentos de mulheres eram e satildeo muacuteltiplos ldquoAs revoluccedilotildees natildeo fazem

mais a unidade das mulheres do que a dos homensrdquo (PERROT 2005 p 315)

As mulheres eram e satildeo muacuteltiplas

Ao ocultarem o verdadeiro eu as antigas maacutescaras o haviam protegido

dos tentaacuteculos do Estado A partir do seacuteculo XVIII satildeo disseminadas teacutecnicas

cada vez mais eficientes para a vigilacircncia e para o controle da sociedade Seu

principal alvo satildeo os corpos humanos enquanto fornecedores de energias a

serem formatadas e manipuladas (BRAIDOTTI 2011 p 177) As teacutecnicas

operam pela repressatildeo e pela persuasatildeo A psiquecirc humana e o corpo humano

devem ser configurados de modo a direcionar a atividade humana agrave realizaccedilatildeo

da obra social

A partir do seacuteculo XVI os corpos humanos passaram a ser concebidos

como maacutequinas vivas Dispostos sobre frias superfiacutecies cadaacuteveres humanos

eram perscrutados pelas matildeos aacutevidas de anatomistas cientistas cirurgiotildees e

meacutedicos A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo movimentou um

mercado clandestino Para obter a valiosa mercadoria assassinatos satildeo

cometidos tuacutemulos satildeo roubados A ciecircncia forneceu fundamentos para novas

percepccedilotildees de si Os corpos foram desarticulados e rearticulados O sujeito

moderno tem um corpo ldquoestratificado pleno de oacutergatildeos e de capital cujas accedilotildees

satildeo cronometradas e cujos desejos satildeo os efeitos de uma tecnologia

necropoliacutetica do prazerrdquo (PRECIADO 2014 sem paginaccedilatildeo)

A partir do seacuteculo XVIII a ciecircncia da anatomia encontra-se solidamente

estabelecida A demanda por corpos humanos para dissecccedilatildeo aumenta e

impulsiona ondas de crimes relacionados ao suprimento do mercado clandestino

de cadaacuteveres Os mortsafes grades de ferro entrelaccediladas e fechadas agrave chave

cobrem os caixotildees das pessoas afortunadas ateacute que seus corpos tenham se

81

decomposto a ponto de natildeo terem valor no mercado clandestino e poderem ser

devidamente enterrados Torres de vigilacircncia protegem cemiteacuterios Haacute forte

reaccedilatildeo popular

Em 1832 no Reino Unido o Anatomy Act [Ato da Anatomia] possibilitou

que caso os familiares natildeo tivessem objeccedilotildees corpos humanos fossem doados

apoacutes o seu falecimento natural para a dissecccedilatildeo Desse modo facilitou-se o

acesso legal a cadaacuteveres sobretudo a cadaacuteveres de pessoas que houvessem

falecido em hospitais prisotildees e workhouses (ldquocasas de trabalhordquo) Os

desenvolvimentos cientiacuteficos tecircm custos que natildeo satildeo distribuiacutedos igualmente

Ao longo desse periacuteodo as diferenccedilas entre homens e mulheres passam

a ser compreendidas enquanto fiacutesicas e fisioloacutegicas Homens e mulheres satildeo

identificados aos seus oacutergatildeos reprodutores

Por meio dos dispositivos disciplinares os corpos humanos tornam-se

doacuteceis disciplinados e desenvolvem eficaacutecia de movimentos em conformidade

com o ideal de masculinidade e o ideal de feminilidade Potencializam-se a

energia produtora dos homens e a energia reprodutora das mulheres atenua-se

a energia poliacutetica das mulheres (TELLES 2009 p 252) A palavra das mulheres

eacute restrita ao cotidiano Nos lavadouros nos mercados nas lojas nas residecircncias

as mulheres cantam choram contam dizem gritam maldizem protestam

rezam suplicam sussurram zombam (PERROT 2005 p 317 463) De

acordo com os discursos hegemocircnicos a anatomia eacute destino

A voz de Virginia Woolf ecoa ao meu redor ldquoTomemos o fato da

propriedaderdquo (2008a p 175 Trad minha) Ao longo do seacuteculo XVIII e da maior

parte do seacuteculo XIX no Reino Unido as mulheres casadas viviam sob a doutrina

legal da coverture Ao casaram-se homem e mulher tornavam-se um perante a

lei Desse modo o esposo detinha controle legal e financeiro sobre a esposa As

mulheres casadas natildeo poderiam possuir e controlar - comprar herdar vender -

propriedade Natildeo poderiam assinar contratos ou receber salaacuterios As mulheres

solteiras ou viuacutevas tinham autoridade legal marginal A legislaccedilatildeo estava a

serviccedilo do sistema de privileacutegios viris sobretudo no que dizia respeito agrave

propriedade Como natildeo seria esse o caso da propriedade literaacuteria

82

Durante a maior parte do seacuteculo XIX as fronteiras urbanas em Londres

eram nitidamente demarcadas As classes baixas eram confinadas ao East End

No final da deacutecada de 1870 a Europa Ocidental foi atingida pela depressatildeo

econocircmica Com a escassez de empregos e de moradias urbanas houve a

proliferaccedilatildeo de slums (ldquocorticcedilosrdquo) no centro de Londres Aos membros das

classes altas e das classes meacutedias a miseacuteria visiacutevel dos pobres despertava a

caridade o medo e a repulsa Nesse periacuteodo organizaram-se os sindicatos Em

setores de empregos viris proibiu-se agraves mulheres formaacute-los Foi o caso do setor

livreiro (PERROT 2005 p 293) Em 1900 o Labour Party [Partido Trabalhista]

foi fundado Dentro da capital do Impeacuterio Britacircnico fronteiras oscilavam

Motivados pelo espetaacuteculo da miseacuteria urbana que se desenrolava agrave sua

frente e pressionados pelo ativismo poliacutetico de mulheres os parlamentares

ingleses reformariam ndash de decreto em decreto - o direito agrave propriedade das

mulheres Em conformidade com a vocaccedilatildeo direcionada agrave esfera privada e ao

acircmbito domeacutestico as condiccedilotildees materiais e morais das famiacutelias das classes

baixas deveriam ser restauradas por mulheres ldquoA utilidade social pesa mais do

que a igualdade socialrdquo (PERROT 2005 p 307)

Em 1870 com a promulgaccedilatildeo do Married Womenrsquos Property Act [Ato da

Propriedade das Mulheres Casadas] as mulheres inglesas casadas passaram a

ter direitos limitados agrave propriedade (WOOLF 2008 pp 380-381) Em 1882 com

a promulgaccedilatildeo de outro Married Womenrsquos Property as mulheres passariam a ter

independecircncia legal em relaccedilatildeo agraves financcedilas e agrave propriedade

As mulheres das classes altas e as mulheres das classes meacutedias

realizariam o trabalho caritativo filantroacutepico e social ensinando as mulheres das

classes baixas a administrarem adequadamente o lar Uma vez que as mulheres

seriam predispostas pela sua essecircncia pela sua natureza a fazer a limpeza da

casa e a fazer a limpeza da cidade nenhum reconhecimento e nenhuma

retribuiccedilatildeo em relaccedilatildeo a esses trabalhos deveriam ser necessaacuterios

A noccedilatildeo de autoria foi estabelecida a partir de valores burgueses liberais

romacircnticos e viris A autoria depende de determinado status econocircmico legal

psicoloacutegico e social que se fundamenta na virilidade O processo criativo passa

83

a ser compreendido enquanto um encontro entre a musa e o artista cujo fruto eacute

a obra de arte A musa provoca inspiraccedilatildeo O artista cria O gesto da musa

encarna a energia passiva feminil O gesto do artista encarna a energia ativa viril

Simultaneamente constroem-se a noccedilatildeo de esterilidade literaacuteria feminina e a

noccedilatildeo de paternidade literaacuteria masculina A autoridade patriarcal confunde-se agrave

autoridade literaacuteria

O modelo de relaccedilotildees entre os autores eacute a competiccedilatildeo A tradiccedilatildeo literaacuteria

canocircnica fornece os modelos que devem ser afirmados ou negados Em seus

esforccedilos de autocriaccedilatildeo o autor deve superar os feitos de seus predecessores

de modo a alcanccedilar o status de gecircnio de modo a conquistar a sua proacutepria laacutepide

com inscriccedilotildees douradas O autor sofre a ldquoansiedade de influecircnciardquo8 O desejo

de superaccedilatildeo dos predecessores o medo de natildeo a alcanccedilar Suas obras satildeo

habitadas por fantasmas

O autor inseparaacutevel de sua obra tornou-se a categoria fundamental da

criacutetica A tarefa da criacutetica seria afastar os veacuteus da ficccedilatildeo e revelar o indiviacuteduo-

autor de modo a acessar o significado verdadeiro da obra

Na sociedade ocidental moderna passou-se a contar as vidas de autores

Estabeleceu-se a sucessatildeo cronoloacutegica de escritores geniais Constituiu-se a

tradiccedilatildeo literaacuteria canocircnica Trata-se de uma praacutetica simboacutelica hegemocircnica que

produz uma linhagem patriarcal Os homens tornam-se os merecedores

herdeiros do patrimocircnio literaacuterio No territoacuterio literaacuterio as mulheres podem ocupar

o lugar da anedota o lugar da exceccedilatildeo ou o lugar da incerteza (LEMAIRE 1994

p 59)

A partir do seacuteculo XIX a noccedilatildeo moderna de autor foi indevidamente

estendida a todas as eacutepocas e a todas as culturas enquanto categoria neutra

transhistoacuterica e transdiscursiva (HANSEN 1992)

A literatura invade contamina modifica as leitoras e os leitores

(GILBERT GUBAR 2000 p 52) Na superfiacutecie do espelho-texto eu vejo

refletida a imagem de mim mesma Eu distancio-me da imagem de mim mesma

Eu objetivo-me na imagem de mim mesma Eu reflito sobre a imagem de mim

mesma Entretanto as fronteiras entre o eu e o mim mesma satildeo porosas

84

instaacuteveis (MORIN 1990 p 17 Trad minha) Pois eu reaproximo-me da imagem

de mim mesma Considero que eu sou a imagem de mim mesma refletida no

espelho A partir da imagem eu tomo consciecircncia de mim mesma O eu constroacutei-

se em mim mesma

Em inuacutemeras superfiacutecies de espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais as

mulheres distinguem a figura do anjo e a figura do monstro (GILBERT GUBAR

2000) O anjo eacute como a luz que emana do farol um ponto de referecircncia As

mulheres angelicais satildeo a personificaccedilatildeo do altruiacutesmo da contemplaccedilatildeo da

honra da passividade da pureza Em silecircncio provocam o amor e a devoccedilatildeo A

sua uacutenica capacidade eacute reprodutiva

Por meio da renuacutencia as mulheres tornam-se angelicais A renuacutencia

desdobra-se em subordinaccedilatildeo reclusatildeo sedentarismo doenccedila e morte9

Renunciar a si mesma eacute estar morta Em vida as mulheres angelicais levam

existecircncias poacutestumas (GILBERT GUBAR 2000 p 25)10

Ao lanccedilar-se agrave escuridatildeo o anjo transforma-se em monstro As mulheres

monstruosas satildeo a personificaccedilatildeo da atividade ndash usurpada - do egoiacutesmo da

impureza da subversatildeo da abjeccedilatildeo Provocam o desprezo a repulsa e o medo

Suas capacidades produtivas satildeo moacuterbidas obscenas perigosas perversas

Devem ser silenciadas

Caberia agraves mulheres encarnar os extremos da alteridade

Um ser bastante esquisito (queer) complexo assim emerge Na imaginaccedilatildeo ela eacute da maior importacircncia na praacutetica ela eacute completamente insignificante Ela permeia a poesia de capa a capa ela estaacute praticamente ausente da histoacuteria Na ficccedilatildeo ela domina as vidas de reis e conquistadores na realidade ela era a escrava de qualquer garoto cujos pais impusessem um anel em seu dedo (WOOLF 2008 p 56 Trad minha)

Autor autor+a11 Termos com acepccedilotildees distintas (TELLES 1990) Seriam

as mulheres capazes de criar Ao longo do seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX foram

publicadas inuacutemeras obras escritas por autoras No seacuteculo XIX de acordo com

o discurso hegemocircnico a esfera puacuteblica era o acircmbito do homem a esfera

privada era o acircmbito da mulher Buscava-se confinar - simbolicamente e

85

literalmente - as mulheres agrave arquitetura patriarcal (TELLES 1992 p 53) Ao

ousarem criar as mulheres ultrapassaram a definiccedilatildeo patriarcal normativa do

feminino12

Cobertas por luvas de cetim ou de pelica suas matildeos paacutelidas empregaram

frequentemente as convenccedilotildees literaacuterias da autodepreciaccedilatildeo da modeacutestia e da

subserviecircncia Convenccedilotildees literaacuterias que adquirem outros matizes no caso das

escritoras - ser mulher eacute uma experiecircncia construiacuteda ideologicamente enquanto

condiccedilatildeo de inadequaccedilatildeo de incapacidade e de inferioridade

As autoras transpuseram limites entre territoacuterios Caminharam por regiotildees

cujas fronteiras natildeo foram mapeadas por mulheres As rotas que poderiam

percorrer no territoacuterio literaacuterio pareciam ser suprimir o desejo de criaccedilatildeo publicar

sob pseudocircnimo concentrar-se nos estilos nos gecircneros e nos temas adequados

agrave definiccedilatildeo patriarcal normativa do feminino insurgir-se e aceitar o ostracismo

As autoras eram forasteiras excecircntricas Tornar-se-iam aberraccedilotildees grotescas

Como Frankenstein as autoras nasceram mortas-vivas Satildeo criaturas-

criadoras Nas superfiacutecies dos espelhos-textos hegemocircnicos patriarcais

(re)encontram-se com a figura do anjo e com a figura do monstro

Frequentemente acreditam-se solitaacuterias Sentem-se como se sofressem de

amneacutesia Ao seu redor encontram folhas dispersas o corpus ndash ldquodesmembrado

des-lembrado desintegradordquo (GILBERT GUBAR 2000 p 98 Trad minha) - da

arte de suas predecessoras Sofrem a ldquoansiedade de autoriardquo13 O desejo pela

superaccedilatildeo das definiccedilotildees hegemocircnicas patriarcais o medo de natildeo serem

capazes de criar o desejo pelo ato criativo o medo de metamorfosearem-se em

corpos socialmente inadequados que devam ser isolados ou destruiacutedos o

desejo por uma ancestralidade literaacuteria alternativa Eacute sempre bom lembrar

Guardar de cor Que o ar vazio de um rosto sombrio Estaacute cheio de dor (GIL

2006)

Em seu processo de auto-re-criaccedilatildeo a autora deve cometer o assassinato

do anjo Ao cometecirc-lo suas matildeos tornam-se calejadas maculadas de tinta A

autora deve reimaginar a figura do monstro Suas danccedilas criadoras podem

assemelhar-se a coreografias de arrebatamento de deliacuterio de exaltaccedilatildeo de

furor Suas obras satildeo habitadas por clamores e por gritos Como Sherazade a

autora procura adiar o silecircncio a morte que buscam impor-lhe A autora deseja

a palavra como deseja a vida

86

A visatildeo de sua proacutepria personalidade de si mesma como uma coisa real e duradoura diferente de qualquer outra inconfundiacutevel como o mar ou o vento brilhou na mente de Rachel e ela ficou profundamente feliz de estar viva (WOOLF 2009 p 90 Trad minha)

Afinal as mulheres tecircm autonomia Deteacutem a autoridade de sua proacutepria

experiecircncia (GILBERT GUBAR 2000 p 16) A autoridade da experiecircncia

refere-se sobretudo ao conhecimento derivado da exposiccedilatildeo aos padrotildees

sociais das proacuteprias tendecircncias dos proacuteprios desejos dos proacuteprios prazeres

dos proacuteprios medos Ou seja o conhecimento dos modos proacuteprios de viver e de

morrer (TELLES 1992 p 54)

Os discursos hegemocircnicos atuam como energias autoritaacuterias no territoacuterio

literaacuterio Haacute contudo outras energias A partir de sua perspectiva proacutepria as

autoras revisaram os gecircneros textuais e os temas da literatura viril Esboccedilaram

outras paisagens (TELLES 1992 p 51) As viagens externas e internas satildeo

igualmente arriscadas desafiadoras plenas de potecircncia

As mulheres devem confeccionar e preencher um aacutelbum de fotos a

tradiccedilatildeo literaacuteria proacutepria Devem construir a memoacuteria de suas predecessoras

ldquoVocecirc diz que natildeo haacute palavras para descrever essa eacutepoca diz que natildeo existe

Mas lembre-se Faccedila um esforccedilo para se lembrar Ou caso natildeo consiga

invente (WITTIG 2019 p 80) Devem unir-se em linguagem

Assim em The Madwoman in the Attic The Woman Writer and the

Nineteenth-Century Literary Imagination [A louca no soacutetatildeo A escritora e a

imaginaccedilatildeo literaacuteria no seacuteculo XIX] Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000)

elaboraram o mito da maacutetria literaacuteria e o mito da escritora que poderia ser a matildee

de todas as autoras

Ao construiacuterem seu continente literaacuterio proacuteprio e estabelecerem sua

linhagem literaacuteria matrilinear proacutepria as mulheres procuram simultaneamente

legitimar os seus empreendimentos e tecer o fio de Ariadne que possibilitaria agraves

suas sucessoras encontrarem seus caminhos no labiriacutentico territoacuterio literaacuterio

ldquoPois obras primas natildeo satildeo nascimentos uacutenicos e solitaacuterios satildeo o resultado de

muitos anos de pensamento em comum de pensamento pelo corpo de pessoas

de modo que a experiecircncia da massa esteja subjacente a uma uacutenica vozrdquo

(WOOLF 2008 p 85 Trad minha)

87

No soacutetatildeo encontro o aacutelbum de fotos em uma das gavetas de uma

empoeirada cocircmoda O acaso inunda-me de aliacutevio

A que rupturas poderaacute levar o desejo da palavra puacuteblica Natildeo

representaraacute o triunfo da concepccedilatildeo viril de mundo A palavra puacuteblica eacute o modo

de acesso agrave esfera puacuteblica da qual procurou-se excluir as mulheres devido agrave sua

voz descrita como aguda fraca incontinente rouca A palavra puacuteblica eacute siacutembolo

do poder Apropriar-se da palavra puacuteblica eacute esboccedilar ldquouma revoluccedilatildeo simboacutelica

inacabada ndash interminaacutevel ndash que estaacute no centro do movimento das mulheres

Uma grande aventura em sumardquo (PERROT 2005 p 326)

O territoacuterio da modernidade eacute delineado por fronteiras cujo

estabelecimento se daacute por processos difusos sinuosos Esse territoacuterio eacute

recoberto por complexas redes de relaccedilotildees de poder estabelecidas e

justificadas pelos discursos hegemocircnicos Por meio desses discursos distinccedilotildees

binaacuterias hieraacuterquicas vatildeo sendo demarcadas A Civilizaccedilatildeo versus a Barbaacuterie O

Ocidente versus o Oriente A Raccedila Branca versus a Raccedila Negra A

Heterossexualidade versus a Homossexualidade O Homem versus a Mulher O

Eu versus o Outro A Razatildeo versus o Sentimento O Sujeito versus o Objeto A

Mente versus o Corpo Etc Os termos opostos e complementares que

comporiam determinada unidade Essa unidade corresponderia agrave totalidade

Outras configuraccedilotildees natildeo satildeo admitidas As mesticcedilagens satildeo entendidas

enquanto ameaccedilas14

No territoacuterio da modernidade as experiecircncias coletivas e as experiecircncias

individuais constroem-se mutuamente Os eus elaboram estilizam configuram

as proacuteprias subjetividades em processos complexos e muacuteltiplos que funcionam

em uma variedade de domiacutenios interligados embora internamente diferenciados

(BRAIDOTTI 2011 p 173)

Na elaboraccedilatildeo dos sentidos das experiecircncias individuais e das

experiecircncias coletivas os discursos hegemocircnicos agem como energias ou

88

forccedilas autoritaacuterias Estabelecem relaccedilotildees assimeacutetricas hieraacuterquicas entre

homens e mulheres A partir de valores viris definem a agecircncia o status de

sujeito o status de autor os valores e os modos de produccedilatildeo da Histoacuteria Dessa

maneira em certa medida a Histoacuteria tornou-se destino (BRAIDOTTI 2011 p

170) Em um ciacuterculo vicioso a ausecircncia de mulheres da Histoacuteria engendrou e

fundamentou a continuidade da ausecircncia de mulheres na Histoacuteria Entretanto a

pureza das distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas permaneceu na virtualidade do

mundo abstrato ideal concebido racionalmente pela mente do sujeito

No seacuteculo XX a partir da noccedilatildeo de que o conhecimento natildeo pode ser

objetivo neutro e imparcial a hegemonia do abstrato da mente e da razatildeo

entrou em crise A noccedilatildeo de sujeito entrou em colapso Os discursos sobre o

corpo material proliferaram-se

Nesse contexto Edgar Morin (1990 1996) propocircs a redefiniccedilatildeo da noccedilatildeo

de sujeito Retomou a definiccedilatildeo de partiacutecula de Niels Bohr segundo a qual a

partiacutecula comporta-se a partir de noccedilotildees contraditoacuterias - como corpuacutesculo

entidade discreta e material e como onda entidade contiacutenua e imaterial

Paradoxalmente noccedilotildees contraditoacuterias convivem

Indiviacuteduo e sujeito satildeo indissociaacuteveis Satildeo conceitos-eclipse aparecem e

desaparecem de acordo com a perspectiva com a qual satildeo considerados

(MORIN 1990) Ser indiviacuteduo-sujeito significa localizar-se no centro do proacuteprio

mundo A partir do centro que eacute o eu estabelece-se a relaccedilatildeo com o mundo

A noccedilatildeo de indiviacuteduo-sujeito pressupotildee a autonomia Para Morin

autonomia significa auto-eco-organizaccedilatildeo

A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a operaccedilatildeo eu = mim mesmo O eu

equivale a uma posiccedilatildeo que permite a objetificaccedilatildeo em mim mesmo O eu deve

distinguir o que equivale a mim mesmo o ser vivo material e o que natildeo equivale

a mim mesmo os elementos exteriores A auto-eco-organizaccedilatildeo supotildee a

dimensatildeo cognitiva e a computaccedilatildeo de informaccedilatildeo Isto eacute o processamento de

dados de iacutendices de siacutembolos (MORIN 1990 pp 4-5) A autonomia eacute portanto

indissociaacutevel da dependecircncia ecoloacutegica em relaccedilatildeo ao meio15

Nesse processo o eu distancia-se de mim mesmo o eu objetiva-se em

mim mesmo Assim a subjetividade do eu fundamenta-se objetivamente em mim

mesmo Entatildeo o eu deve reaproximar-se de mim mesmo A objetificaccedilatildeo do eu

89

em mim mesmo e a re-subjetivaccedilatildeo do mim mesmo em eu constituem o circuito

automaacutetico permanente eu = mim mesmo (MORIN 1990 p 6)

Em outras palavras a noccedilatildeo de sujeito reconstroacutei-se sem cessar Ela natildeo eacute estaacutetica Ela pode ser apenas um circuito nesse movimento de recomposiccedilatildeo [] Assim tudo estaacute em movimento rotativo em turbilhatildeo e sem esses polimovimentos permanentes natildeo haacute sujeito (MORIN 1990 pp 15-16 Trad minha)

Da infacircncia agrave velhice apesar da trajetoacuteria de vida apesar da trajetoacuteria da

morfologia do corpo apesar da trajetoacuteria ininterrupta de ceacutelulas e de moleacuteculas

que se degradam e que satildeo recompostas a identidade do indiviacuteduo-sujeito

permanece Materialmente morfologicamente e psiquicamente o eu natildeo eacute o

mesmo E no entanto o eu eacute o mesmo Paradoxalmente o circuito automaacutetico

permanente nutre-se da e cria a identidade estaacutevel do eu

O sujeito nasce e iraacute morrer ele emerge um dia ele natildeo permanece presente por toda eternidade ele iraacute morrer Ao morrer os elementos fiacutesico-quiacutemicos do corpo separam-se o corpo decompotildee-se lentamente e seus elementos propagam-se Mas o que se desintegra imediatamente ao morrer eacute o sujeito eacute a operaccedilatildeo [eu = mim mesmo] [] Eacute isso que eacute irremediavelmente atingido A morte sobretudo a morte radical eacute a aniquilaccedilatildeo do sujeito (MORIN 1990 p 11 Trad minha)

O indiviacuteduo-sujeito eacute uma estrutura em que participam noccedilotildees

contraditoacuterias Eacute constante movimento envolto em estabilidade Constitui-se a

partir da auto-eco-organizaccedilatildeo bio-loacutegica Supotildee concomitantemente a operaccedilatildeo

da computaccedilatildeo de informaccedilatildeo e a operaccedilatildeo eu = mim mesmo Computo ergo

sum Computo logo existo (MORIN 19901996)

A partir da subjetividade floresce a consciecircncia verbal A consciecircncia

verbal equivale a uma possibilidade de elucidaccedilatildeo16 Cogito ergo sum Penso

logo existo Ao afirmar que eu penso eu penso implicitamente em mim mesma

pensando Eu distancio-me de mim mesma eu objetivo-me em mim mesma

Entatildeo eu me reaproximo de mim mesma Considero eu = mim mesma Imersa

na atividade organizacional a conscientizaccedilatildeo emerge Toda auto-eco-reflexatildeo

supotildee a conscientizaccedilatildeo da operaccedilatildeo eu = mim mesma Sobre um fundo de

inconsciecircncia e atravessando processos inconscientes o conhecimento emerge

(MORIN 1990 p 9)

90

A consciecircncia verbal possibilita aos seres humanos o conhecimento de

sua situaccedilatildeo absolutamente pateacutetica ser simultaneamente tudo e nada

(MORIN 1990 p 11)

A voz de Joni Mitchell (MITCHELL) ecoa ao meu redor

I know no onersquos going to show me everything We all come and go unknown Each so deep and superficial Between the forceps and the stoneII

A contemplaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo pelo eu provoca anguacutestia e temor O

princiacutepio de inclusatildeo os atenua (MORIN 1990 p 11) Em outras palavras os

viacutenculos com outros eus confortam

O indiviacuteduo-sujeito relaciona-se de modo ego-altruiacutesta com o mundo

(MORIN 1990)

Minha proposta eacute profundamente chocante e repugnante a muitos e eu o compreendo perfeitamente Eu associo noccedilotildees do velho arsenal da filosofia e da metafisica ndash as quais todos os cientistas acabaram por dizer ldquoAgrave lixeirardquo ndash agraves noccedilotildees fiacutesicas agraves quais dou a dignidade subjetiva Eacute extremamente chocante eu o compreendo Mas como fazer de outro modo Essa concepccedilatildeo permite mostrar que haacute na definiccedilatildeo do sujeito simultaneamente a solidatildeo e a comunicaccedilatildeo o fechamento egocecircntrico sobre si ndash a famosa incomunicabilidade ndash e a comunicabilidade sobretudo a comunicabilidade com os outros sujeitos com os alter ego com os ego alter aqueles que satildeo da comunidade E noacutes temos a comunidade humana e a comunidade de seres vivos que compartilhamos com as cerca de vinte bilhotildees de bacteacuterias que passeiam em nossos intestinos e que tecircm de qualquer maneira essa qualidade de sujeito (MORIN 1990 p 10 Trad minha)

As mulheres natildeo poderiam desconstruir a partir de seu interior uma

subjetividade a que natildeo tiveram acesso (BRAIDOTTI 2011) A partir das

margens em que foram situadas as mulheres - mesticcedilas e revolucionaacuterias -

participaram do estabelecimento da crise do sujeito Aprofundaram-na

II ldquoEu sei que ningueacutem iraacute me mostrar tudo Todos noacutes vimos e vamos anonimamente Cada um tatildeo profundo e tatildeo superficial Entre o foacuterceps e a laacutepiderdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

91

Elas dizem que foram comparadas agrave terra ao mar agraves laacutegrimas ao que eacute uacutemido ao que eacute negro ao que natildeo queima ao que eacute negativo agravequelas que se rendem sem lutar Dizem que essa concepccedilatildeo se deve a um raciociacutenio mecanicista que potildee em jogo uma seacuterie de termos sistematicamente relacionados a termos opostos Seus esquemas satildeo tatildeo grosseiros que uma simples lembranccedila as faz cair na risada Elas dizem que tambeacutem podem ser comparadas ao ceacuteu aos astros em seu movimento conjunto e em sua disposiccedilatildeo agraves galaacutexias aos planetas agraves estrelas aos soacuteis agravequilo que queima agravequelas que lutam com violecircncia agravequelas que natildeo se rendem jamais Elas zombam desse assunto dizem que eacute como ir de Cila a Cariacutebdis evitar uma ideologia religiosa para adotar outra [] (WITTIG 2019 pp 71-72)

As Outras da modernidade rejeitaram as distinccedilotildees binaacuterias hieraacuterquicas

Afirmaram a diferenccedila enquanto alteridade positiva Adotaram perspectivas

localizadas em corpos humanos materiais Abriram-se possibilidades para a

criaccedilatildeo de novos valores e de novos paradigmas criacuteticos (BRAIDOTTI 2011 p

179) 17

O sujeito natildeo eacute definido pela submissatildeo ou pela liberdade pela

passividade ou pela atividade pela sensibilidade ou pela racionalidade pela

privacidade ou pela publicidade No loacutecus do sujeito esses poacutelos binaacuterios

dissolvem-se e confundem-se

O ponto natildeo eacute apenas a mera desconstruccedilatildeo mas a realocaccedilatildeo de identidades em novos terrenos que comportem muacuteltiplos pertencimentos ie uma visatildeo natildeo-unitaacuteria de sujeito Esse sujeito ativamente anseia por e constroacutei a si mesmo em redes complexas e internamente contraditoacuterias de relaccedilotildees sociais Para comportaacute-los noacutes precisamos olhar para as formas internas de pensamento que privilegiam os processos em detrimento das essecircncias e as transformaccedilotildees em detrimento das contra-reivindicaccedilotildees por identidade As variaacuteveis socioloacutegicas (gecircnero classe raccedila e etnia idade sauacutede) precisam ser suplementadas por uma teoria do sujeito que coloque em questatildeo as fibras internas do eu (self) Essas incluem o desejo a habilidade e a coragem de sustentar muacuteltiplos pertencimentos em um contexto que celebra a Mesmice (Sameness) o essencialismo cultural e o pensamento de uacutenica (BRAIDOTTI 2011 p 10 Trad minha)

O eu natildeo eacute primeiro natildeo eacute puro natildeo eacute uacutenico (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem -se a coletividade fria e anocircnima da qual somos parte O eu conteacutem

noacutes a comunidade caacutelida da qual somos parte (MORIN 1996 p 54) O eu

conteacutem ldquosirdquo O eu eacute criaccedilatildeo contiacutenua impura coletiva e muacuteltipla ldquoEu sou feita e

92

refeita continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) De acordo com Rosi Braidotti

O sujeito [ser humano] eacute um processo feito de constantes mudanccedilas e alteraccedilotildees entre diferentes niacuteveis de poder e de desejo ou seja de escolha intencional e de impulsos inconscientes Qualquer aparecircncia de unidade que possa haver natildeo se trata de essecircncia concedida por Deus mas da coreografia ficcional de muitos niacuteveis em um eu (self) socialmente operacional Isso implica que o que sustenta todo o processo de tornar-se-sujeito [para os seres humanos] eacute a vontade de saber o desejo de dizer o desejo de falar eacute um desejo fundador primaacuterio vital necessaacuterio e portanto original de tornar-se (conatus) (2011 p 18 Trad minha)

Compreendo a trajetoacuteria do eu enquanto jornada de auto-re-construccedilatildeo

Nessa jornada eacute preciso que nos desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais

Natildeo porque sejam maacutescaras que ocultam o verdadeiro eu Eacute preciso que nos

desfaccedilamos das figuras miacuteticas patriarcais porque como riacutegidas maacutescaras

mortuaacuterias impotildeem uma visatildeo definitiva limitadora restritiva Ao desfazermo-

nos dessas maacutescaras mortuaacuterias deveriacuteamos resistir ao impulso de substituiacute-las

por outras congelando o movimento O eu e a autora (re)cria-se mutua e

simultaneamente

Colocar o corpo ndash um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e

o socioloacutegico (BRAIDOTTI 2011)18 - na escrita significa compreender que

escrever natildeo tem a pureza abstrata da accedilatildeo pois eacute um gesto realizado por um

eu ndash que tem raiacutezes mas flui Um eu que (re)cria-se ao escrever

O eu que escreve confecciona o texto ldquoum tecido de citaccedilotildees saiacutedas dos

mil focos da culturardquo (BARTHES 1988 p 69) Imita um gesto anterior Mescla

as escrituras muacuteltiplas ndash esse eacute seu poder (BARTHES 1988 p 69 Imenso

poder

O eu que lecirc confecciona o texto No loacutecus do eu que lecirc as citaccedilotildees

ldquoentram umas com as outras em diaacutelogo em paroacutedia em contestaccedilatildeordquo

(BARTHES 1988 p 70) Os eus muacuteltiplos produzem muacuteltiplos sentidos

93

Utopia Palavra inventada a partir dos termos οὐ + τόπος19 Οὐ (ou)

significa ldquonatildeordquo Τόπος (topoacutes) pode significar ldquolocalrdquo ldquolugarrdquo ldquoregiatildeordquo ldquoposiccedilatildeordquo

ldquopassagemrdquo ldquotoacutepicordquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE 1996) Utopia eacute o

natildeo-lugar O lugar ideal inexistente

Com alguma liberdade poeacutetica poderiacuteamos inventar outra etimologia εὖ

+ τόπος Εὖ (eū) pode significar ldquobemrdquo ldquocompetentementerdquo ldquocompletamenterdquo

Composto com adjetivos ou substantivos pode significar ldquoabundacircnciardquo

ldquoprosperidaderdquo ldquotranquilidaderdquo Metaforicamente τόπος (topoacutes) pode significar

ldquoaberturardquo ldquoocasiatildeordquo ldquooportunidaderdquo (LIDDEL SCOTT JONES MCKENZIE

1996) Utopia poderia ser o bom-lugar Utopia poderia ainda ser a proacutespera-

oportunidade

Primeira utopia No seacuteculo XVIII sonhou-se com a biblioteca essencial

Como os perfumes a biblioteca essencial seria constituiacuteda por meio da

destilaccedilatildeo da extraccedilatildeo de essecircncias Conteria em suas estantes de madeira de

lei tudo o que fosse uacutetil para o saber da humanidade (CHARTIER 2014 p 76)

No entanto o que seria uacutetil ao saber da humanidade Quem o definiria Como

Para a confecccedilatildeo da biblioteca essencial o instrumento de medida eacute o cacircnone

O desejo de purificaccedilatildeo de subtraccedilatildeo de exclusatildeo eacute o fundamento da biblioteca

essencial

Esse desejo significou inicialmente a supressatildeo do feminino - na

constituiccedilatildeo do sujeito da autoria da histoacuteria literaacuteria da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cacircnone Por meio dos esforccedilos de mulheres estabeleceu-se posteriormente a

tradiccedilatildeo literaacuteria de autoras (GILBERT GUBAR 2000) Recuperaram-se as

Judith Shakespeare que apesar de tudo existiram Devido agraves reivindicaccedilotildees de

mulheres foram acrescentadas estantes suplementares agrave biblioteca essencial

Dedicadas agraves autoras essas estantes eram certamente menos ostensivas

menos robustas A voz de Donna Haraway ecoa ao meu redor ldquoFomos todas

lesadas profundamenterdquo (2019 p 202)

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos como

imposiccedilatildeo de significados (HARAWAY 2019 p 177) Tecnologia τέχνη + λόγος

94

Τέχνη (teacutechnē) significa ldquohabilidaderdquo ldquodestreza manualrdquo ldquoarterdquo ldquoofiacuteciordquo Pode

referir-se a uma obra de arte ou a um tratado Em sentido pejorativo pode

significar ldquoartimanhardquo Remete portanto agrave criaccedilatildeo Λόγος (logos) pode significar

ldquoafirmaccedilatildeordquo ou ldquoregra de condutardquo Nesse sentido a tecnologia pode ser a

proposiccedilatildeo normativa de determinada teacutecnica ou seja de determinado conjunto

de procedimentos detentor e produtor de significados

ldquoA fronteira entre ferramenta e mito instrumento e conceito [] eacute

permeaacutevel Na verdade o mito e a ferramenta satildeo mutuamente constituiacutedosrdquo

(HARAWAY 2019 p 177) Minha utopia feminista natildeo eacute a destilaccedilatildeo da

essecircncia e a imposiccedilatildeo de significados Seu instrumento natildeo pode ser portanto

o cacircnone Eacute preciso abolir os cacircnones

Os discursos cientiacuteficos e as tecnologias podem ser compreendidos ainda

como ldquoformalizaccedilotildees isto eacute como momentos congelados das fluidas interaccedilotildees

sociais que as constituemrdquo (HARAWAY 2019 p 177) Λόγος (logos) pode

significar ldquodescriccedilatildeordquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Nesse sentido a tecnologia seria a

proposiccedilatildeo natildeo-normativa de determinada teacutecnica estabelecida tornada

estaacutetica20 Uma fotografia instantacircnea

Segunda utopia A biblioteca total seria constituiacuteda pela soma de todas as

possibilidades Jorge Luis Borges (2007) concebeu a Biblioteca de Babel todas

as combinaccedilotildees possiacuteveis de todos os alfabetos possiacuteveis compotildeem todos os

livros que jaacute existiram que poderiam ter existido que existem que poderiam

existir que existiratildeo que poderiam vir a existir Para a confecccedilatildeo da biblioteca

total o instrumento de medida deve ser substituiacutedo pelo instrumento de

armazenamento O desejo do acuacutemulo eacute o fundamento da biblioteca total

Da biblioteca total a biblioteca digital eacute um esboccedilo A biblioteca digital eacute a

biblioteca universal Em tese as fronteiras satildeo abolidas Tudo estaacute disponiacutevel a

todos O instrumento de armazenamento para a confecccedilatildeo da biblioteca digital

eacute a nuvem (cloud) O acuacutemulo infinito seria possibilitado pela desmaterializaccedilatildeo

dos dados

Entretanto a totalidade eacute uma ilusatildeo As fronteiras permanecem Uma

nuvem digital consiste em uma vasta rede de centros de processamento de

dados ao redor do planeta que opera como um ecossistema Os centros de

processamento de dados (data centers) contecircm centenas de servidores Por

isso necessitam de imensos espaccedilos fiacutesicos Para o funcionamento e para o

95

resfriamento dos servidores necessitam de imensas quantidades de energia De

fato esses servidores alcanccedilam temperaturas tatildeo elevadas que testa-se o

estabelecimento de centros de processamento de dados submarinos de modo a

economizar energia A biblioteca digital natildeo eacute o aacutepice da libertaccedilatildeo como a

princiacutepio parece ser

Minha utopia feminista natildeo eacute o acuacutemulo total Seu instrumento natildeo pode

ser a nuvem

Conforme Donna Haraway natildeo precisamos de renascimento mas de

regeneraccedilatildeo As possibilidades para essa regeneraccedilatildeo incluem a utopia de ldquoum

mundo monstruoso sem gecircnerordquo (HARAWAY 2019 p 202) Desse modo

Haraway propocircs um ldquomito poliacutetico pleno de ironiardquo (2019 p 157)21 No centro

desse mito estaacute o ciborgue enquanto figura-accedilatildeo poliacutetica recurso imaginativo

ldquoficccedilatildeo que mapeia nossa realidade social e corporalrdquo (HARAWAY 20019 p

158)

O ciborgue eacute uma criatura de um mundo poacutes-gecircnero ele natildeo tem qualquer compromisso com a bissexualidade com a simbiose preacute-ediacutepica com o trabalho natildeo alienado O ciborgue natildeo tem qualquer fasciacutenio por uma totalidade orgacircnica que pudesse ser obtida por meio da apropriaccedilatildeo uacuteltima de todos os poderes das respectivas partes as quais se combinariam entatildeo em uma unidade maior Em certo sentido o ciborgue natildeo eacute parte de qualquer narrativa que faccedila apelo a um estado original de uma ldquonarrativa de origemrdquo no sentido ocidental o que constitui uma ironia ldquofinalrdquo uma vez que o ciborgue eacute tambeacutem o telos apocaliacuteptico dos crescentes processos de dominaccedilatildeo ocidental que postulam uma subjetivaccedilatildeo abstrata que prefiguram um eu uacuteltimo libertado afinal de toda dependecircncia ndash um homem no espaccedilo (HARAWAY 2019 p 159)

Terceira utopia Para confeccionar a minha utopia feminista proponho

instrumentos oacutepticos

Os instrumentos oacutepticos pressupotildeem corpos accedilotildees e gestos Por meio

de instrumentos oacutepticos os corpos humanos vivos realizam a accedilatildeo de enxergar

e os gestos de ver Desse modo criam-se imagens Os olhos satildeo nossos

primeiros instrumentos oacutepticos Bio-instrumentos

O corpo humano eacute o primeiro produtor de tecnologia Procura por

extensotildees de si por proacuteteses Artefatos ferramentas armas Linguagem22

(BRAIDOTTI 2011 p 176) Ao manipularem areia e fogo as matildeos humanas

96

produzem vidro Criam-se lentes lunetas microscoacutepios oacuteculos telescoacutepios

Instrumentos oacutepticos Anthropo-instrumentos

Nas sociedades ocidentais acostumamo-nos com a noccedilatildeo da visatildeo

imparcial e objetiva Partindo do corpo abstrato e universal essa visatildeo

possibilitaria conhecer o que consideramos ser a verdade Possibilitaria

classificar cientificamente o que consideramos ser a verdade

Contudo o corpo abstrato e universal natildeo eacute todo corpo Eacute o corpo natildeo-

marcado que ocupa a posiccedilatildeo estrateacutegica do poder O corpo natildeo-marcado vecirc

sem ser visto O seu olhar inscreve todos os corpos marcados O corpo natildeo-

marcado representa sem ser representado Em meio agraves suas classificaccedilotildees

cientiacuteficas o polivocalismo desaparece (HARAWAY 2019 p 172) A visatildeo

imparcial e objetiva natildeo foi possibilitada pelo olhar do corpo abstrato e universal

pela divisatildeo entre sujeito e objeto pela transcendecircncia (HARAWAY 1995)

A partir de corpos materiais particulares produz-se toda visatildeo Os

instrumentos oacutepticos satildeo sistemas de percepccedilatildeo ativos que constroem modos

de ver modos de vida (HARAWAY 1995 pp 21-22) Os meus olhos miacuteopes

criam imagens desfocadas Quadros impressionistas Sobrepostas aos meus

olhos miacuteopes as lentes corretoras dos meus oacuteculos criam imagens niacutetidas

Tratam-se de ilusotildees da verdade de ficccedilotildees de criaccedilotildees de imagens

Parafraseando Donna Haraway a fronteira entre a ficccedilatildeo e a realidade social eacute

uma ilusatildeo de oacuteptica (HARAWAY 2019 p 158)23

As visotildees objetivas ndash ativas detalhadas especiacuteficas interessadas - satildeo

possibilitadas pelas perspectivas parciais As classificaccedilotildees cientiacuteficas satildeo

poliacuteticas24 Nenhuma construccedilatildeo eacute uma totalidade (HARAWAY 2019 p 169)

As construccedilotildees satildeo apenas possibilidades visuais cada qual com seu modo de

organizar mundos (HARAWAY 1995 p 22) A questatildeo da responsabilidade pela

concepccedilatildeo das praacuteticas visuais eacute aberta pelo eu localizado (HARAWAY 1995

p 21)25

Proponho enquanto instrumento poliacutetico os caleidoscoacutepios

Caleidoscoacutepio κάλλος + εἶδος (eidos) + σκοπέω κάλλος (kaacutellos) significa

ldquobelezardquo especialmente em sentido concreto em referecircncia agrave mateacuteria εἶδος

(eidos) significa ldquoaquilo que eacute vistordquo ldquoformardquo ldquoformatordquo ldquoconfiguraccedilatildeordquo Pode se

referir agrave ldquofigurardquo agrave ldquoaparecircnciardquo agrave ldquoconstituiccedilatildeo fiacutesicardquo Pode significar ldquoclasserdquo

ldquotipordquo σκοπέω (skopeacuteō) significa ldquoobservarrdquo ldquocontemplarrdquo ldquoexaminarrdquo

97

ldquoinspecionarrdquo Refere-se mais agrave contemplaccedilatildeo de algo particular do que

universal Metaforicamente pode significar ldquoconsiderarrdquo ldquoatentar parardquo (LIDDEL

SCOTT JONES MCKENZIE 1996) O caleidoscoacutepio eacute um instrumento oacuteptico

luacutedico Remete aos gestos lentos

Haacute um corpo humano que deseja ver Suas matildeos humanas seguram o

caleidoscoacutepio e aproximam-no do seu rosto humano Podem giraacute-lo para um lado

ou para o outro lado Sobreposta ao olho humano a lente do caleidoscoacutepio cria

e recria diferentes imagens de mosaicos A accedilatildeo de enxergar e o gesto de ver

culminam no prazer da ficccedilatildeo da visatildeo Parafraseando Roland Barthes o prazer

da ficccedilatildeo da visatildeo eacute o momento em que meu corpo segue ideias - minhas ou

suas Pois meu corpo tem e natildeo tem as mesmas ideias que eu26

Como instrumento para a confecccedilatildeo da minha utopia feminista o

caleidoscoacutepio configuraraacute e reconfiguraraacute imagens de bibliotecas circulares

cintilantes Bibliotecas efecircmeras em fluxo Muacuteltiplas coleccedilotildees de livros de areia27

De acordo com loacutegicas dionisiacuteacas proacuteprias os livros seratildeo agrupados

desagrupados e reagrupados em muacuteltiplas combinaccedilotildees Em se tratando de

bibliotecas em fluxo haacute apenas ensaios28

Uma vez que natildeo haacute necessariamente acordos sobre os textos do prazer

Barthes imaginou a Sociedade dos Amigos do Texto cujos membros natildeo teriam

nada em comum - exceto pelos inimigos Seus inimigos seriam aqueles que ndash

seja por ldquoconformismo culturalrdquo seja por ldquocriacutetica do significanterdquo seja por

ldquodestruiccedilatildeo do discursordquo seja por ldquomoralismo poliacuteticordquo seja por ldquoparvoiacutece

fascistardquo seja por ldquopragmatismo imbecilrdquo seja por ldquoracionalismo intransigenterdquo

(BARTHES 2013 pp 21-22) etc ndash decretam ldquoa perempccedilatildeo do texto e de seu

prazerrdquo (BARTHES 2013 p 21)

Todavia a condiccedilatildeo para a existecircncia da Sociedade dos Amigos do Texto

seria a plena atopia (BARTHES 2013 p 22) Do grego antigo ἀτόπια (topoacutes)

significa ldquofora do caminhordquo Consequentemente pode significar por um lado

ldquoextraordinaacuteriordquo ldquoabsurdordquo ldquosingularidade [em relaccedilatildeo a pessoas]rdquo por outro

ldquoimpotecircncia [em relaccedilatildeo a palavras e sons]rdquo ldquoaccedilatildeo maacuterdquo (LIDDEL SCOTT

JONES MCKENZIE 1996) A Sociedade dos Amigos do Texto seria um

falansteacuterio isto eacute uma organizaccedilatildeo comunitaacuteria convivendo em harmonia e

liberdade de modo a possibilitar a plena expressatildeo e realizaccedilatildeo dos seres

humanos que a integram A concretizaccedilatildeo do ideal de vida social Na Sociedade

98

dos Amigos do Texto a diferenccedila seria observada as contradiccedilotildees seriam

reconhecidas e o conflito ndash improdutor de prazer - seria acometido de

insignificacircncia (BARTHES 2013 p 22)

Penso que as bibliotecas em fluxo seratildeo frequentadas pela Sociedade das

Amigas e dos Amigos do Texto Nela o conflito - entendido enquanto o encontro

de divergecircncias - seria aceito desde que produtor de movimento

99

1 Trad minha Trata-se do verso ldquoWords that have not been writtenrdquo da canccedilatildeo ldquoAmerigordquo de Patti Smith (2012) 2 A crescente cisatildeo entre o domiacutenio externo e o domiacutenio interno poderia ser fonte de conflitos Nesse caso para Thomas Hobbes (1588-1679) o domiacutenio externo deveria prevalecer em nome da ordem puacuteblica Se necessaacuterio essa prevalecircncia deveria ser garantida pela via da forccedila De modo que a opccedilatildeo prudente para o suacutedito seria a opccedilatildeo pela obediecircncia A sobrevivecircncia ndash corpoacuterea fiacutesica material e tambeacutem espiritual mental - do suacutedito eacute assegurada pela sujeiccedilatildeo 3 Em democracias liberais o poder eacute exercido por meio de formas biopoliacuteticas de governabilidade Essas formas satildeo medidas regulatoacuterias e cautelares que combinam aspectos repressivos (potestas) e aspectos produtivos (potentia) Em grande medida essas formas biopoliacuteticas de governabilidade satildeo auto implementadas (BRAIDOTTI 2011) 4 Trata-se de um verso de William Wordsworth empregado para nomear um capiacutetulo do romance Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis 5 A autoria natildeo estaacute presente em todas as eacutepocas em todas as sociedades em todas as culturas de modo uniforme Eacute uma convenccedilatildeo cuja presenccedila eacute determinada de acordo com as modalidades dos discursos

6 Foucault aponta instabilidades histoacutericas incertezas classificatoacuterias e inadequaccedilotildees lexicais na divisatildeo entre literatura e ciecircncia 7 O efeito de legitimidade da obra eacute estabelecido pela apresentaccedilatildeo do autor enquanto indiviacuteduo que natildeo manteacutem com seus enunciados uma relaccedilatildeo guiada pelos valores mercadoloacutegicos ldquoO desinteresse eacute a garantia de verdade no enunciado do saberrdquo (CHARTIER 2014 p 53) Desse modo o topos do desinteresse estaacute presente em dedicatoacuterias proacutelogos prefaacutecios etc 8 Expressatildeo cunhada por Harold Bloom (apud GILBERT GUBAR 2000) 9 No seacuteculo XIX as mulheres inglesas das classes altas e das classes meacutedias-altas satildeo descritas como doentes fraacutegeis as mulheres inglesas das classes baixas satildeo descritas como doentias infecciosas 10 Publicada pela primeira vez em 1854 o poema The Angel in the House [O Anjo do Lar] de Coventry K D Patmore narra a corte e o casamento de Honoria modelo de dama vitoriana ldquoA virtude essencial de Honoria [] eacute que sua virtude faz de seu homem ldquoexcelenterdquo Em si mesma ela natildeo eacute excelente nem extraordinaacuteriardquo (GILBERT GUBAR 2000 p 22 Trad minha) Em seu ensaio ldquoProfissotildees para mulheresrdquo publicado pela primeira vez em 1942 Virginia Woolf defendeu o assassinato simboacutelico do Anjo do Lar como condiccedilatildeo necessaacuteria para a liberdade artiacutestica e intelectual das mulheres 11 Ver nota 5 do Guia de Viagens 12 Haacute modos mais arriscados ou menos arriscados de fazecirc-lo Ao longo do seacuteculo XIX a literatura inglesa fora organizada a partir das definiccedilotildees vitorianas ideoloacutegicas de masculinidade e de feminilidade Considerou-se o romance adequado agraves escritoras mulheres devido agrave associaccedilatildeo do gecircnero textual agrave privacidade e agrave passividade A produccedilatildeo de romances escritos por mulheres foi significativa (SHOWALTER 2014) Entretanto de acordo com Sandra M Gilbert e Susan Gubar ldquo[] haacute ironia consciente ou inconsciente em todas essas escolhas pelo que aparentemente tem escala reduzida em vez do que tem seguramente escala maior pelo domeacutestico em vez do dramaacutetico pelo privado em vez do puacuteblico pela obscuridade em vez da gloacuteria Do mesmo modo contudo eacute evidente que a proacutepria necessidade de fazer tais escolhas acentua a doentia ansiedade de autoria inerente agrave situaccedilatildeo de praticamente todas as escritoras mulheres na Inglaterra e na Ameacuterica ateacute tempos recentesrdquo (2000 p 64 Trad minha) Aleacutem disso a partir de 1880 a produccedilatildeo de romances por autoras comeccedilaria a ser eclipsada Quando a literatura inglesa comeccedila a se libertar da moralidade sexual vitoriana o territoacuterio do romance

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passaria a ser dominado pelos escritores homens Para Elaine Showalter esse processo natildeo teria sido acidental (SHOWALTER 1993 p 33-34) 13 Expressatildeo cunhada por Sandra M Gilbert e Susan Gubar (2000) 14 Para citar um exemplo a ciecircncia do final do periacuteodo vitoriano dedicava-se a legitimar a diferenciaccedilatildeo hieraacuterquica entre as ditas raccedilas humanas e a demonstrar que o desrespeito dos limites estabelecidos entre elas ocasionava ldquodegeneraccedilotildeesrdquo (SHOWALTER 1993 p 18) 15 A dimensatildeo cognitiva seria proacutepria a toda a organizaccedilatildeo viva (MORIN 1990 pp 4-5) As bacteacuterias computam ldquoA partir do que os bioacutelogos denominam lsquomemoacuteriarsquo lsquoprogramarsquo ou seja algo a que atribuem um sentido informacional jaacute que dizem que os genes contecircm lsquoinformaccedilatildeorsquo ndash natildeo reifiquemos esse termo - a partir do que eacute um conhecimento acumulado pela espeacutecie dada produz-se toda uma seacuterie de operaccedilotildees pelas quais o ser recompotildee as moleacuteculas que se degradam processa o universo laacute fora reconhece o perigo e foge ou pelo contraacuterio reconhece a comida e segue em sua direccedilatildeordquo (MORIN 1990 p 4 Trad minha) 16 Para Morin (1990) a ilusatildeo metafiacutesica seria natildeo perceber que a consciecircncia eacute um desdobramento da subjetividade Entre os mamiacuteferos ocorre o hiperdesenvolvimento da afetividade entre os seres humanos ocorre o desenvolvimento da consciecircncia Acrescento consciecircncia verbal 17 Enquanto atores histoacutericos e objetos de conhecimento a ldquoclasserdquo a ldquoraccedilardquo a ldquosexualidaderdquo tecircm uma gecircnese histoacuterica Ao passo em que as redes de conexatildeo entre as pessoas no planeta tornam-se complexas muacuteltiplas e pregnantes como nunca o sistema simboacutelico da famiacutelia patriarcal entra em colapso A essecircncia dissolve-se lsquoMulherrsquo multiplica-se em lsquomulheresrsquo A observaccedilatildeo da diferenccedila contudo natildeo deve fazer-nos desistir ldquoda complicada tarefa de realizar conexotildees parciais reaisrdquo (HARAWAY 2019 pp 172-173) 18 ldquoO corpo - ou a encarnaccedilatildeo do sujeito - natildeo deve ser entendido como uma categoria bioloacutegica ou como uma categoria socioloacutegica mas como um ponto de sobreposiccedilatildeo entre o fiacutesico o simboacutelico e o socioloacutegicordquo (BRAIDOTTI 2011 pp 24-25 Trad minha) 19 Em 1516 foi publicado o livro Utopia de Thomas Morus Repuacuteblica e Nova Ilha de Utopia eacute o nome ironicamente atribuiacutedo por Morus ao local perfeito que cria 20 A tecnologia natildeo eacute a priori hostil agrave humanidade ldquo[] todas as ferramentas satildeo [] produtos da imaginaccedilatildeo criativa humana elas copiam e multiplicam as potecircncias do corpo A tecnologia satisfaz o destino bioloacutegico humano de tal modo que o orgacircnico e o teacutecnico se complementam e se adaptam um ao outrordquo (BRAIDOTTI 2011 p 176 Trad minha) 21 Em sua proposta Donna Haraway desejou ser fiel ao feminismo ao socialismo e ao materialismo Contudo entende que mais fiel do que a adoraccedilatildeo ou a identificaccedilatildeo reverente seria a blasfecircmia Para ela a ironia eacute uma estrateacutegia retoacuterica e um meacutetodo poliacutetico ldquoA ironia tem a ver com contradiccedilotildees que natildeo se resolvem ndash ainda que dialeticamente ndash em totalidades mais amplas ela tem a ver com a tensatildeo de manter juntas coisas incompatiacuteveis porque todas satildeo necessaacuterias e verdadeiras A ironia tem a ver com o humor e o jogo seacuteriordquo (HARAWAY 2019 p 157) 22 A linguagem eacute um instrumento de corporificaccedilatildeo Por meio da linguagem eacute possiacutevel dar corpo ao abstrato Por meio da linguagem o sujeito pode tomar consciecircncia de si de sua subjetividade (MORIN 1996 p 56) 23 ldquoOs movimentos internacionais de mulheres tecircm construiacutedo aquilo que se pode chamar de lsquoexperiecircncia das mulheresrsquo Essa experiecircncia eacute tanto uma ficccedilatildeo quanto um fato do tipo mais crucial mais poliacutetico A libertaccedilatildeo depende da construccedilatildeo da consciecircncia da opressatildeo depende de sua imaginativa apreensatildeo e portanto da consciecircncia e da apreensatildeo da possibilidade Ciborgue eacute uma mateacuteria de ficccedilatildeo e tambeacutem de experiecircncia vivida - uma experiecircncia que muda aquilo que conta como experiecircncia feminina no final do seacuteculo XX Trata-se de uma luta de vida

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e morte mas a fronteira entre a ficccedilatildeo cientiacutefica e a realidade social eacute uma ilusatildeo de oacuteticardquo (HARAWAY 2019 p 158) 24 As perspectivas parciais natildeo devem ser idealizadas Natildeo satildeo inocentes Natildeo se aprendem facilmente Satildeo problemaacuteticas Natildeo estatildeo isentas de decodificaccedilatildeo de desconstruccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de reavaliaccedilatildeo criacutetica Satildeo preferidas justamente por serem explicitamente interessadas Desse modo ldquoparecem prometer explicaccedilotildees mais adequadas firmes objetivas transformadoras do mundordquo (HARAWAY 1995 p 23) 25 A visatildeo a partir das perspectivas parciais eacute hostil agraves totalizaccedilotildees e aos relativismos Ambos negam a corporificaccedilatildeo a posiccedilatildeo Os relativismos satildeo os modos de natildeo estando em parte alguma alegar estar em toda parte ldquoA alternativa [] satildeo saberes parciais localizaacuteveis criacuteticos apoiados na possibilidade de redes de conexatildeo chamadas de solidariedade em poliacutetica e de conversas compartilhadas em epistemologiardquo (HARAWAY 1995 p 23) 26 ldquoO prazer do texto eacute esse momento em que meu corpo vai seguir suas proacuteprias ideias ndash pois meu corpo natildeo tem as mesmas ideias que eurdquo (BARTHES 2013 p 24) 27 Trata-se de uma referecircncia ao conto ldquoLivro de Areiardquo de Jorge Luis Borge (1899-1986) 28 Entre os ensaios possiacuteveis parece-me que poderiacuteamos localizar a biblioteca contiacutenua de Aby Warburg Organizada a partir de uma loacutegica dionisiacuteaca proacutepria pretende ser antes uma coleccedilatildeo de problemas do que uma coleccedilatildeo de informaccedilotildees

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Marie [Euphrosyne] Spartali [Stillman] Julia Margaret Cameron

Fotografia impressatildeo em papel albuminado 1868

Chicago EUA The Art Institute of Chicago

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Self-Deceit 1 Francesca Woodman

Fotografia em gelatina prata 1977-1978

Edinburgh Escoacutecia National Galleries Scotland

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PAUSA Sirvo-me de mais uma xiacutecara de cafeacute A xiacutecara extensatildeo do meu

corpo O cafeacute fonte da energia do meu corpo e da minha mente Preciso renovar

constantemente a energia enquanto escrevo estas paacuteginas A jarra estaacute quase

vazia O cafeacute amargou

Ouccedilo o burburinho vindo da rua O dia estaacute ensolarado Gostaria de

balanccedilar em minha rede na varanda ou de ir caminhar pela rua Deixar o corpo

e a mente danccedilarem ao ar livre

O prazer de pensar o prazer de escrever dissolvem-se na necessidade

de produzir Assombra-me a palavra P ndash R ndash A ndash Z ndash O Em inglecircs deadline

Literalmente ldquolinha mortardquo Exprime o temor de onde emana seu poder

Mais um gole O gosto amargo faz com que me pergunte como os

prazeres podem levar a tanto sofrimento

Releio esta passagem de As Guerrilheiras de Monique Wittig A mulher

prova dos frutos de cada uma das aacutervores perguntando a Orpheacutee a serpente

como reconhecer o bom Como resposta foi-lhe dito que o bom fruto

resplandece que basta olhaacute-lo para que o coraccedilatildeo se encha de alegria (2019

p 46)

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109

III

AMALDICcedilOADA E ENCANTADA A ESTRADA CONDUZ1

A PALAVRA EM MOVIMENTO

A Carla Cristina Garcia

que coloca as palavras em movimento

110

111

Caminho por uma praia deserta Assombro-me com a infinitude do oceano

e maravilho-me com a imensidatildeo do mundo Os infinitos gratildeos de areia danccedilam

ao sabor dos ventos Desejo ardentemente contecirc-los Agarro dois punhados de

areia Ao cerrar as matildeos em concha com demasiada forccedila a areia escorre por

entre meus dedos Tento novamente Recolho outros dois punhados

repousando-os nas minhas matildeos espalmadas A areia esvoaccedila ao menor

sussurro da brisa mariacutetima

Ao longo do seacuteculo XVIII a popularidade dos relatos de viagem espraiou-

se por toda a ilha da Gratilde-Bretanha Entre o puacuteblico leitor a popularidade dos

relatos de viagem era excedida apenas pela popularidade dos romances

Inuacutemeras leitoras e inuacutemeros leitores viajaram pelas paacuteginas de relatos de

viagem saciando sua sede por instruccedilatildeo prazerosa (BATTEN 1978) Seus

estilos e seus temas eram determinados por convenccedilotildees literaacuterias De modo

agradaacutevel deveriam transmitir conhecimento soacutelido verdadeiro2 Os relatos de

viagem eram considerados testemunhos do que a autora ou o autor havia

experimentado ldquoPara o seacuteculo XVIII portanto o escritor de viagem era

sobretudo um pesquisador lsquosugandorsquo inteligecircncia de diferentes regiotildees

geograacuteficasrdquo (BATTEN 1978 p 7 Trad minha)

Em viagem homens e mulheres frequentemente levavam consigo obras

que houvessem abordado os paiacuteses que visitavam Os caraacuteteres e os cenaacuterios

esboccedilados nas obras eram comparados aos que encontravam Esperava-se que

coincidissem

Em minha caminhada acompanha-me o relato de viagem Letters written

during a short residence in Sweden Norway and Denmark [Cartas escritas

durante uma curta estadia na Sueacutecia na Noruega e na Dinamarca] de Mary

Wollstonecraft publicado em 1796

Uma vez que o eu era afirmado nos relatos de viagem associou-se o

gecircnero textual agrave autobiografia moderna A partir do seacuteculo XVIII a autobiografia

moderna foi compreendida enquanto confissatildeo da verdade Seria o documento

112

de determinada vida O documento elaborado por quem seria mais capaz de

fornecer o seu relato legiacutetimo (LIMA 1986 p 284) A noccedilatildeo do eu enquanto fonte

legiacutetima supotildee coordenadas histoacutericas (LIMA 1986 p 300) Supotildee a noccedilatildeo da

posiccedilatildeo constantemente igual do eu O eu que narra no presente compreenderia

os acontecimentos de sua vida exatamente do modo que os compreendia

enquanto ocorriam (LIMA 1986 p 293) Caso a autobiografia natildeo fosse a

confissatildeo da verdade seria provavelmente considerada fraudulenta por quem a

lesse3

Sinto a areia escorrendo pelos meus dedos o vento atravessando minhas

roupas Do mesmo modo o eu invariavelmente nos escapa Natildeo pode ser

plenamente contido Eacute muacuteltiplo A vida eacute a descontinuidade de gestos que

posteriormente satildeo selecionados ou descartados para serem encadeados em

nossas narrativas (TELLES 2009 p 247) As autobiografias o que satildeo

Possibilidades Naturezas-mortas paisagens ou retratos tecidos em textos-

tapeccedilarias4

A autobiografia eacute o testemunho do modo como o eu que escreve no

presente compreende os eus em seu passado O testemunho do modo como o

eu no presente deseja que o eu no passado seja compreendido ldquoO instante

ataca se impotildee de suacutebito acolhe a ambiguidade e os contraacuterios e assim faz a

siacutentese do serrdquo (TELLES 2009 p 247) Embora o eu no presente e os eus no

seu passado tenham histoacuterias e reaccedilotildees semelhantes trata-se de muacuteltiplos eus

que vivem sob a ilusatildeo de unidade (LIMA 1986 p 294)

Desfaz-se a miragem de peneirar as palavras impressas para encontrar

uma pepita de verdade Consolo-me Quem lesse no ano de sua publicaccedilatildeo a

obra que carrego pouco saberia a respeito de sua autora Proponho-me um jogo

de faz-de-conta esquececirc-la e permitir que as palavras nas paacuteginas sigam seu

rumo

Quais elementos iratildeo compor meu texto-tapeccedilaria Quais seratildeo as suas

cores as suas formas os seus volumes Que fios escolherei para tececirc-la Com

que pontos irei tramaacute-la Escolho meus novelos Comeccedilo a desenrolaacute-los

113

Primeiro novelo Eu A palavra mais comum Proferida por todos A

palavra mais pessoal Natildeo se pode proferir por outra pessoa (MORIN 1990)

Por meio do exerciacutecio da palavra seria conferido a todo ser humano o

poder de tornar-se sujeito absoluto (WITTIG 1992 p 80) Ao dizer eu o locutor

(re)apropria-se da liacutengua e pode (re)organizaacute-la a partir de seu ponto de vista

(WITTIG 1992 p 84)

Ao dizer eu gesto que encerra enorme potecircncia o sujeito realizaria o ato

supremo da subjetividade transformar-se em consciecircncia (WITTIG 1992 p 80)

A liacutengua conferiria a todos os seres humanos o poder de tornarem-se sujeitos

absolutos (WITTIG 1992 p 80) Para Monique Wittig ser sujeito absoluto

significa ser iacutentegro natildeo ter marcas distintivas ser universal Penso que ser

sujeito absoluto significa ocupar a posiccedilatildeo de centro do seu mundo (MORIN

1990 1996)

Ao escrever essas cartas desultoacuterias natildeo pude evitar ser continuamente a primeira pessoa ndash ldquoo pequeno heroacutei de cada contordquo Tentei corrigir essa falha se for uma pois elas destinavam-se agrave publicaccedilatildeo Poreacutem agrave medida que ordenava meus pensamentos minha carta tornava-se afetada e riacutegida Decidi portanto deixar meus comentaacuterios e minhas reflexotildees fluiacuterem livremente pois percebi que natildeo poderia dar uma descriccedilatildeo justa do que vi a natildeo ser que relatasse o efeito que diferentes objetos produziram em minha mente e em meus sentimentos enquanto essa impressatildeo ainda estava fresca Uma pessoa tem o direito pensei certas vezes em ocasiotildees em que estava entretida por um egotista espirituoso ou interessante de falar dele mesmo quando adquirindo nossa afeiccedilatildeo ele pode ganhar nossa atenccedilatildeo Se eu mereccedilo figurar entre esse nuacutemero privilegiado meus leitores apenas poderatildeo julgar ndash dou-lhes licenccedila para fechar o livro se natildeo desejarem familiarizar-se comigo Meu plano era simplesmente empenhar-me em fornecer uma visatildeo justa do presente estado dos paiacuteses pelos quais passei conforme conseguisse obter informaccedilatildeo durante estadia tatildeo curta e evitar aqueles detalhes que natildeo sendo muito uacuteteis aos viajantes que seguem a mesma rota parecem muito insiacutepidos agravequeles que apenas a acompanham de suas poltronas (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha Grifos meus)

Ao relatar suas viagens pela Sueacutecia pela Noruega e pela Dinamarca o

eu afirma-se Aborda as distacircncias percorridas por vias aquaacuteticas e terrestres

as condiccedilotildees e os custos das acomodaccedilotildees das refeiccedilotildees dos meios de

transporte etc Relata episoacutedios da histoacuteria dos paiacuteses Observa as condiccedilotildees e

114

os modos de vida de seus povos Realiza reflexotildees filosoacuteficas e poliacuteticas Daacute

asas aos devaneios (reveries) ldquoficccedilotildees poeacuteticas da sensibilidaderdquo

(WOLLSTONECRAFT 2009 p 90 Trad minha) O eu constroacutei-se enquanto

espiacuterito esclarecido e enquanto alma sensiacutevel

O eu elabora as cartas para publicaccedilatildeo Conhece as convenccedilotildees literaacuterias

do relato de viagem Emprega a convenccedilatildeo da modeacutestia - natildeo sem antes afirmar

o direito que uma pessoa tem de falar de si mesma Deseja transmitir o que

experimentou Sua escrita natildeo eacute a transcriccedilatildeo espontacircnea irrefletida de

sentimentos pessoais transbordantes O eu decide empregar a primeira pessoa

e apresentar as cartas de modo que aparentem seguir sem mediaccedilatildeo o curso

dos sentimentos e dos pensamentos5

O eu retratado nas cartas eacute um ardil pelo qual a escritora ganha nossa simpatia de modo a prender nossa atenccedilatildeo Sem esse eu nossas atenccedilotildees provavelmente iriam perambular Contudo esse eu eacute maravilhosamente moacutevel perambula devido agrave necessidade de evocar a emoccedilatildeo de um puacuteblico amplo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

Em cadeia afetiva a reaccedilatildeo da viajante ao que experimentou pretende

evocar a reaccedilatildeo de quem lecirc suas cartas Em relaccedilatildeo agrave experiecircncia razatildeo e

sentimento satildeo indissociaacuteveis

Eu tu ele ela Noacutes voacutes eles elas O gecircnero parece natildeo ser parte da

estrutura dos pronomes pessoais Apenas na terceira pessoal do singular e na

terceira pessoal do plural os pronomes pessoais satildeo portadores do gecircnero

gramatical O gecircnero parece ser mero detalhe em sua forma (WITTIG 1992 p

79)

Ao dizer eu o sujeito eacute absoluto Entretanto assim que haacute o eu no

discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico ldquoHaacute uma espeacutecie de suspensatildeo da

forma gramatical Uma interpelaccedilatildeo direta do locutor ocorrerdquo (WITTIG 1992 p

79 Trad minha) O corpo a pessoa do locutor satildeo convocados Embora sem

mediaccedilatildeo gramatical o sexo o gecircnero do locutor intervecircm na ordem dos

pronomes (WITTIG 1992 p 79)

115

O corpo abstrato universal corresponde ao gecircnero gramatical masculino

Quando o eu eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada a proclamar seu sexo e seu

gecircnero socioloacutegico em seu discurso Ela eacute forccedilada a aparecer ldquosob sua forma

fiacutesica proacutepriardquo (WITTIG 1992 p 79 Trad minha) Essa imposiccedilatildeo procura privar

as mulheres da autoridade do discurso O gecircnero gramatical-socioloacutegico

feminino foi configurado ontologicamente como a impossibilidade total (WITTIG

1992 p 80 Trad minha Grifo meu) As mulheres satildeo forccediladas a andarem pelas

beiradas

O corpo abstrato universal revela-se enquanto falaacutecia O sujeito total foi

configurado para corresponder ao gecircnero gramatical-socioloacutegico masculino

ldquoNatildeo acontece por magia deve ser feito Eacute um ato [] realizado no niacutevel dos

conceitos da filosofia da poliacuteticardquo (WITTIG 1992 p 80 Trad minha Grifo

meu)

Nas cartas que leio o eu constroacutei-se mulher

Os pilotos informaram aos marinheiros que estavam sob as ordens de um tenente reformado que falava inglecircs [] Eles recusavam-se a ir comigo sozinha o que eu queria que tivessem feito porque queria dispensar os marinheiros assim que possiacutevel (WOLLSTONECRAFT 2009 p 7 Trad minha Grifo meu)

Para poupar aos marinheiros mais penas fiz removerem imediatamente minhas malas para o seu barco pois como ele falava inglecircs natildeo era necessaacuteria uma conferecircncia preacutevia O respeito de Marguerite por mim mal podia impedi-la de expressar seu medo nitidamente evidente em seu semblante que o fato de eu ter-nos colocado sob o poder de um homem desconhecido provocava Ele apontou seu chaleacute e ao aproximarmo-nos dele natildeo fiquei triste em ver uma figura feminina embora eu natildeo estivesse estado como Marguerite pensando em roubos assassinatos ou outros males que insistentemente como os marinheiros diriam assombra a imaginaccedilatildeo de uma mulher (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifos meus)

Com a esposa eu podia apenas trocar sorrisos Ela ocupava-se em examinar o feitio das minhas vestimentas Minhas matildeos percebi a havia levado agrave descoberta de que eu era a dama (WOLLSTONECRAFT 2009 p 8 Trad minha Grifo meu)

116

No jantar meu anfitriatildeo disse-me abruptamente que eu era uma mulher de observaccedilatildeo pois eu fazia-lhe perguntas de homens (WOLLSTONECRAFT 2009 p 10-11 Trad minha Grifo da autora)

Vocecirc sabe que como mulher sou particularmente ligada a ela Sinto mais do que a ternura e a ansiedade de uma matildee ao refletir sobre o estado dependente e oprimido de seu sexo Eu temo que ela seja forccedilada a sacrificar seu coraccedilatildeo aos seus princiacutepios ou seus princiacutepios ao seu coraccedilatildeo Com matildeos vacilantes cultivarei a sensibilidade e nutrirei a delicadeza de sentimento com receio de que enquanto eu empresto rubor fresco agrave rosa eu afie os espinhos que machucaratildeo o seio que eu defenderia Temo desenvolver sua mente com receio de que se torne inadequada para o mundo que deveraacute habitar Mulher infeliz Que destino eacute o teu (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifos meus)

Meus olhos os seguiram ateacute o chaleacute e um suspiro involuntaacuterio sussurrou em meu coraccedilatildeo por mais que natildeo gostasse de cozinhar eu invejava a matildee que preparava sua sopa Eu estava retornando para o meu bebecirc que pode nunca experimentar o cuidado e a ternura de um pai Frente a esse pensamento o seio que a nutriu agitava-se com uma dor que apenas uma matildee infeliz pode sentir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 95 Trad minha Grifos meu)

Marguerite e a crianccedila frequentemente caiacuteam no sono Quando estavam acordadas eu podia ainda me considerar sozinha uma vez que o trilho dos nossos pensamentos natildeo tinha nada em comum Marguerite eacute verdade entretinha-se muito com o costume (ldquovestuaacuteriordquo) das mulheres [] e com alegria contava-me novamente histoacuterias que estimava contar para sua famiacutelia quando estivesse uma vez mais dentro dos limites da cara Paris Natildeo se esquecia de lembrar-me com aquela vaidade agradaacutevel e maliciosa peculiar aos franceses [] dos ares de importacircncia que iria adquirir quando informasse seus amigos de todas as suas jornadas por mar e por terra ndash mostrando-lhes as moedas que havia colecionado e balbuciando algumas poucas frases estrangeiras que repetia com sotaque verdadeiramente parisiense Feliz ingenuidade Ah uma vaidade inofensiva invejaacutevel que produz uma gaiteacute du coeur (ldquoalegria no coraccedilatildeordquo) que vale toda a minha filosofia (WOLLSTONECRAFT 2009 p 117 Trad minha Grifos meus)

117

Suas matildeos datildeo indiacutecios de sua classe social Devem ser paacutelidas macias

Em companhia de sua filha e de sua criada inicia sua viagem Embora conheccedila

os perigos que podem se apresentar agraves mulheres o eu natildeo permite que se

configurem em obstaacuteculos intransponiacuteveis Eacute Marguerite quem teme a

companhia de homens desconhecidos Natildeo o eu

Ao atribuir o temor exclusivamente agrave sua criada o eu atenua a sua proacutepria

vulnerabilidade Eacute independente intreacutepida Ao contrastar filosofia e vaidade o

eu aprofunda a distacircncia entre si mesma e sua criada O eu natildeo se ocupa com

vaidades inofensivas e inconsequentes Prefere as perguntas que natildeo satildeo de

mulheres ndash perguntas sobre dignas da admiraccedilatildeo do seu interlocutor

Estabelece-se como sujeito inquisitivo como autoridade intelectual e moral

(SCHLICK 2014 p 38-39) O eu eacute responsaacutevel por controlar o itineraacuterio de sua

viagem e o itineraacuterio de seu relato de viagem (LAWRENCE 1994 p 85)

Em determinado momento decide seguir sozinha resolver os negoacutecios

que motivaram a viagem e reencontrar entatildeo sua filha e sua criada Seria

excecircntrica incomum ou transgressora Distante de sua filha a crianccedila mobiliza

ocasionalmente seus pensamentos e seus sentimentos Consciente da situaccedilatildeo

inferior das mulheres o eu preocupa-se com o futuro da pequena Fanny Eacute uma

matildee amorosa6

Em sua autocriaccedilatildeo o eu borra a oposiccedilatildeo entre espaccedilo puacuteblico e

mobilidade versus espaccedilo privado domeacutestico e sedentarismo Ultrapassa o

ciacuterculo em giz em que buscam inscrevecirc-la e explora outras oacuterbitas

Em muitos momentos de sua viagem o eu deseja estar soacute Em outros

momentos teme a solidatildeo

Para onde vago Apenas pretendia dizer-lhe que a impressatildeo que a gentileza do povo simples tornou visiacutevel em meu semblante aumentou a minha sensibilidade a um grau doloroso Eu desejei ter um quarto para mim mesma Pois a sua atenccedilatildeo ndash na verdade sua observaccedilatildeo incocircmoda - constrangeu-me ao extremo No entanto como faziam-me cafeacute e traziam-me ovos natildeo poderia tecirc-los deixado sem ferir seu sentido de hospitalidade (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 36-37 Trad minha Grifo meu)

118

O constrangimento incocircmodo de estar em meio a desconhecidos a faz

desejar um quarto para si mesma A dificuldade da viajante faz ressoar em mim

a dificuldade de outro eu

Aqui entatildeo estava eu - chame-me de Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou pelo nome que preferir pois natildeo eacute uma questatildeo importante - sentada agraves margens de um rio em um agradaacutevel clima de outubro uma ou duas semanas atraacutes perdida em pensamentos (WOOLF 2008 p 5 Trad minha Grifo meu)

Mary Beton Seton ou Carmichael levantou-se e caminhou pela relva de

Oxbridge Indignado o bedel a reprimiu a relva destinava-se aos estudantes e

aos professores Ela deve seguir pelo caminho de cascalho Alcanccedilou entatildeo as

portas da famosa biblioteca de Oxbridge Desejava ver um dos manuscritos em

sua coleccedilatildeo Condescendente um cavalheiro informou-lhe deveria ter uma

carta de apresentaccedilatildeo ou a companhia de um professor para ingressar ali Tem

iniacutecio entatildeo uma reflexatildeo prolongada Associa a liberdade espacial e a

liberdade intelectual - articuladas a partir das condiccedilotildees materiais Para escrever

Mary afirmaraacute a mulher deve ter dinheiro e um quarto para si mesma

Em solidatildeo a imaginaccedilatildeo daacute forma livremente agrave suas concepccedilotildees e pausa para adorar os seres de sua proacutepria criaccedilatildeo Esses satildeo momentos de ecircxtase (bliss) e a memoacuteria os recorda com deleite (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 57-58 Trad minha)

A mente e o corpo tecircm faculdades locomotivas Nas cartas que leio a

mobilidade apresenta-se como promessa de felicidade ldquoSinto que esse ser

consciente deve libertar-se de algemas deve ter as asas do pensamento antes

que possa ser felizrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 pp 88-89 Trad minha)

Em suas caminhadas e em seus devaneios (reveries) o eu estaacute em

movimento constante A partir das sensaccedilotildees provocadas pelo que experimenta

o eu realiza saltos e mergulha em devaneios que giram frequentemente em torno

do futuro da humanidade da mortalidade da eternidade

119

Com quanta frequecircncia a melancolia e mesmo a misantropia apossaram-se de mim quando o mundo me causou aversatildeo e os amigos provaram-se crueacuteis Considerei-me entatildeo como uma partiacutecula agrave parte da grande massa da humanidade Estava sozinha Ateacute que alguma emoccedilatildeo simpaacutetica involuntaacuteria [] fez-me sentir que ainda era parte de um todo potente do qual eu natildeo podia separar-me [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 12 Trad minha)

A grandeza do princiacutepio ativo nunca eacute sentida mais fortemente do que frente a tal vista [da fileira de cadaacuteveres embalsamados em uma igreja na Noruega] Pois nada eacute mais feio do que a forma humana quando privada da vida [] A contemplaccedilatildeo de nobres ruinas produz uma melancolia que exalta a mente (exalts the mind) Noacutes examinamos retrospectivamente os esforccedilos (exertions) do homem e o destino de impeacuterios e de seus governantes A grande destruiccedilatildeo dos seacuteculos parece a mudanccedila necessaacuteria que leva ao aperfeiccediloamento (improvement) Nossa proacutepria alma expande-se e esquecemos de nossa pequenez dolorosamente relembrada por essas tentativas vatildes de arrebatar da decadecircncia o que estaacute destinado a perecer tatildeo cedo Vida o que eacutes Para onde vai esse sopro Esse eu tatildeo viva Com que elemento se misturaraacute dando ou recebendo energia O que quebraraacute o encanto da animaccedilatildeo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 48 Trad minha)

[] sem a esperanccedila o que sustentaraacute a vida exceto o medo da aniquilaccedilatildeo Eacute a uacutenica coisa de que jaacute senti pavor Natildeo posso suportar pensar em natildeo existir mais em perder a mim mesma ainda que a existecircncia seja a dolorosa consciecircncia dos tormentos Natildeo Parece-me impossiacutevel que eu deva deixar de existir ou que esse espiacuterito ativo incansaacutevel igualmente vivo agrave alegria e ao pesar seja apenas um arranjo de poacute pronto para voar para fora assim que a mola que o manteacutem junto estoure que o brilho se extinga Certamente deve residir algo nesse coraccedilatildeo que natildeo seja pereciacutevel A vida deve ser mais que um sonho (WOLLSTONECRAFT 2009 p 51 Trad minha)

Natildeo Estou exausta de mudar de cenaacuterio de deixar as pessoas e os lugares no momento em que comeccedilam a interessar-me Isso tambeacutem eacute vaidade (WOLLSTONECRAFT 2009 p 130 Trad minha)

A melancolia inundou-a com o sentimento de efemeridade da vida de

isolamento da humanidade No entanto o eu natildeo opotildee indiviacuteduo e coletivo Em

suas cartas propotildee-se a percorrer a fronteira porosa entre indiviacuteduo e coletivo

ldquoEm certo sentido o caminho dessas cartas eacute [] uma viagem contiacutenua para fora

120

e para dentro do eu e a escrita de viagem enquanto reconhecimento desse

processordquo (FAVRET 2002 p 225 Trad minha)

O eu transforma os seus deslocamentos constantes em estilo de

composiccedilatildeo em meacutetodo de observaccedilatildeo em posicionamento poliacutetico O

movimento eacute apresentado enquanto necessidade individual e coletiva Levaria

da opressatildeo agrave liberdade

[] eacute o labor paciente dos homens que apenas procuram meios de subsistecircncia que produz o que embeleza a existecircncia permitindo o oacutecio (leisure) para o cultivo das artes e das ciecircncias que elevam o homem tatildeo longe de seu estado inicial [] O mundo requer como vejo a matildeo do homem para aperfeiccediloaacute-lo Agrave medida que essa tarefa naturalmente desenvolve as faculdades que ele exercita eacute fisicamente impossiacutevel que ele tivesse permanecido na idade de ouro da estupidez de Rousseau (WOLLSTONECRAFT 2009 p 60 Trad minha)

A descriccedilatildeo que recebi deles levou-me agraves faacutebulas da eacutepoca de ouro independecircncia e virtude abundacircncia sem viacutecio cultivo da mente sem depravaccedilatildeo do coraccedilatildeo [] Quero crer Minha imaginaccedilatildeo apressa-me a procurar refuacutegio nesse retiro dos desapontamentos que me frustram No entanto a razatildeo me arrasta de volta sussurrando que o mundo ainda eacute o mundo e que o homem eacute a mesma combinaccedilatildeo de fraqueza e insensatez que deve ocasionalmente excitar amor e aversatildeo admiraccedilatildeo e desprezo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 86 Trad minha)

Quanto mais vejo o mundo mais convenccedilo-me de que a civilizaccedilatildeo eacute uma benccedilatildeo que natildeo eacute estimada suficientemente por aqueles que natildeo traccedilaram seu progresso pois natildeo apenas refina nossos prazeres mas produz uma variedade que nos permite reter a sutileza primitiva de nossas sensaccedilotildees Sem o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo todos os prazeres de nossos sentidos mergulhariam em grosseria - a natildeo ser que a novidade contiacutenua servisse como substituto para a imaginaccedilatildeo Sendo isso impossiacutevel foi a esse enfado suponho que Salomatildeo aludiu ao declarar que natildeo haacute nada de novo sob o sol (WOLLSTONECRAFT 2009 p 14 Trad minha)

121

Os homens satildeo estranhas maacutequinas todo o seu sistema de moralidade eacute geralmente mantido por um grande princiacutepio que perde sua forccedila no momento em que eles se permitem quebrar impunemente os elos que asseguravam seu respeito proacuteprio Um homem deixa de amar a humanidade ndash e entatildeo os indiviacuteduos ndash conforme avanccedila em sua busca por riqueza Um colide com seu interesse o outro com seus prazeres Aos negoacutecios [] tudo deve ceder Ou melhor tudo eacute sacrificado (WOLLSTONECRAFT 2009 p 127 Trad minha)

Eles [] natildeo tecircm espiacuterito puacuteblico Seus esforccedilos (exertions) satildeo em geral dirigidos apenas a suas famiacutelias Penso que sempre seraacute o caso ateacute que a poliacutetica tornando-se assunto de discussatildeo abrindo a compreensatildeo alargue o coraccedilatildeo A Revoluccedilatildeo Francesa teraacute esse efeito (WOLLSTONECRAFT 2009 p 42 Trad minha)

[] apesar de todos os argumentos que ouvi para justificar desvios do dever estou persuadida de que ateacute mesmo as sensaccedilotildees mais espontacircneas estatildeo mais sob a direccedilatildeo do princiacutepio do que as pessoas fracas estatildeo dispostas a admitir (WOLLSTONECRAFT 2009 p 98 Trad minha)

O eu acredita no movimento deliberado eneacutergico cujo rumo eacute

determinado A partir de quais criteacuterios o modo e o sentido do movimento satildeo

estabelecidos

Se a viagem como o desfecho de uma educaccedilatildeo liberal fosse adotada conforme fundamentos racionais as naccedilotildees do norte deveriam ser visitadas antes das partes mais refinadas da Europa para servirem como elementos ateacute do conhecimento sobre os modos adquirido somente a partir do contraste entre diferentes paiacuteses (WOLLSTONECRAFT 2009 p 109 Trad minha)

O eu crecirc no ideal iluminista da razatildeo como via para a liberdade

(LAWRENCE 1994 p 78) Por meio da viagem enquanto componente da

educaccedilatildeo racional o sujeito-viajante poderia adquirir conhecimentondash filosoacutefico

moral poliacutetico etc ndash tornando-se o sujeito-poliacutetico A viagem levaria ao

aperfeiccediloamento de si mesmo e de sua naccedilatildeo ldquo[] assim como a viagem

informa o sujeito e amplia seus horizontes tambeacutem promove a dissoluccedilatildeo de

traccedilos fixos Assim o progresso estaacute ligado agrave viagem e a requerrdquo (SCHLICK

2014 p 9 Trad minha)

122

Ao construir seu ethos de sensibilidade e de racionalidade o eu ataca os

apetites exagerados e argumenta pelo equiliacutebrio harmocircnico ndash em relaccedilatildeo ao

conhecimento ao sentimento agrave ingestatildeo de aacutelcool agraves relaccedilotildees mercantis

(LAWRENCE 1994 p 98) A uniatildeo entre sensibilidade e racionalidade funda o

gosto - a digestatildeo do conhecimento e do sentimento Deve-se cultivaacute-lo A

civilizaccedilatildeo deve reger o gosto

Toda essa descriccedilatildeo nos remete ao Iluminismo agrave Razatildeo esclarecedora geomeacutetrica precisa e matemaacutetica que desvenda os misteacuterios escondidos clarifica as mentes descobre e experimenta cientificamente e cria por meio do espetacular (poreacutem delicado) engenho humano (GARCIA 2007 p 21)

O aperfeiccediloamento dos modos introduziria sentimentos em conformidade com a

moral (WOLLSTONECRAFT 2009 p 71) A reflexatildeo sobre sensibilidade e

racionalidade tem desdobramentos para o indiviacuteduo e para o coletivo

O eu mede as sociedades que visita com a reacutegua do Impeacuterio Inglecircs

Implicitamente coloca-se em posiccedilatildeo de superioridade Do baacuterbaro ao civilizado

os estaacutegios das sociedades distribuem-se em uma linha progressiva ascendente

O eu desloca-se no tempo e no espaccedilo ao visitar sociedades que considera

menos avanccediladas (LAWRENCE 1994 p 101) Em seu relato de viagem ldquo[] o

espiacuterito da investigaccedilatildeo fundado na habilidade de ver ndash isto eacute de viajar para ndash

diferentes estados da sociedade estaacute entrelaccedilado com a noccedilatildeo de progresso

[]rdquo (SCHLICK 2014 p 38 Trad minha)

Sua noccedilatildeo de desenvolvimento esteacutetico moral social e poliacutetico segue o

ideal do progresso Todavia em sua noccedilatildeo de progresso o estado de natureza

natildeo corresponde agrave era de ouro da humanidade O esforccedilo (exertion) e a

diligecircncia (industry) seriam capazes de movimentar o status quo inerte rumo ao

aacutepice da civilizaccedilatildeo No entanto o eu alerta contra os perigos que o

desenvolvimento pode trazer O capitalismo eacute o movimento vatildeo Seus motores

satildeo a opressatildeo e a injusticcedila O capitalismo eacute a restriccedilatildeo de movimentos

diversos Ameaccedila asfixiar o mundo embrutecer a humanidade O progresso

requereria a melhoria das condiccedilotildees materiais e o aumento da compreensatildeo

poliacutetica Exigiria a postura voltada ao coletivo (SCHLICK 2014 p 38-39) A

utopia a Revoluccedilatildeo Francesa

123

Incomoda-me o emprego de ldquohomemrdquo por ldquoseres humanosrdquo Para o eu a

virilidade constituiria virtude

Lembro-me da seguinte passagem de Emiacutelio ou Da educaccedilatildeo de Jean-

Jacques Rousseau

Natildeo pensamos somente nos dois termos mas tambeacutem no intervalo que os separa [] Natildeo o fazemos tristemente sentados e como prisioneiros numa gaiola bem fechada Natildeo viajamos na moleza e no relaxamento das mulheres [] Parte-se [viajando-se a peacute] quando se quer para-se quando se entende faz-se tanto exerciacutecio quanto se deseja Observa-se toda a regiatildeo [] Natildeo preciso escolher caminhos abertos estradas cocircmodas passo por toda parte que um homem pode passar vejo tudo o que um homem pode ver e natildeo dependendo senatildeo de mim mesmo gozo de toda a liberdade de que um homem pode gozar (ROUSSEAU 1995 p 494 Grifos meus)

Em seu tratado pedagoacutegico Rousseau configura a mulher e o homem

enquanto opostos complementares

Uma mulher e um homem perfeito natildeo devem assemelhar-se nem de espiacuterito nem de fisionomia [] [] Um deve ser ativo e forte o outro passivo e fraco eacute necessaacuterio que um queira e possa basta que o outro resista pouco (ROUSSEAU 1995 p 424)

A delicadeza a fragilidade a passividade e o sedentarismo seriam

caracteriacutesticas essenciais da mulher Ser esposa e matildee seria sua uacutenica fonte de

sua satisfaccedilatildeo e de sua felicidade seu destino natural A mulher deveria

permanecer encerrada no lar seu domiacutenio por excelecircncia Toda a sua energia

deveria ser direcionada agrave criaccedilatildeo dos filhos agrave satisfaccedilatildeo do marido agrave

manutenccedilatildeo da harmonia familiar Seu conhecimento seria inato A mulher natildeo

seria capaz do pensamento abstrato Por isso natildeo necessitaria de instruccedilatildeo O

homem superior moral e intelectualmente deveria vigiar a mulher Direcionaacute-la

ao caminho adequado correto Sem essa orientaccedilatildeo a mulher poderia

facilmente se desviar Rousseau afirma categoricamente

Estabelecido este princiacutepio segue-se que a mulher eacute feita especialmente para agradar ao homem []

124

Se a mulher eacute feita para agradar e ser subjugada ela deve tornar-se agradaacutevel ao homem ao inveacutes de provocaacute-lo (1995 p 424)

De acordo com o modelo desenvolvimentista pautado pelo progresso a

mulher corresponderia ao estado natural dirigido pelo instinto e limitado pela

capacidade fiacutesica e o homem corresponderia ao estado civil dirigido pela justiccedila

e limitado pela vontade geral (SCHLICK 2014 P 32) A viagem enquanto praacutetica

que integraria a educaccedilatildeo racional iluminista deveria restringir-se ao homem - o

cidadatildeo

Ao homem a potecircncia fiacutesica o poder da razatildeo e o domiacutenio do mundo Agrave mulher a sensibilidade a devoccedilatildeo aos seus e a submissatildeo A diferenccedila de sexos conduz a uma irredutiacutevel diferenccedila de funccedilotildees cuja transgressatildeo eacute sempre percebida como uma ameaccedila (BADINTER 2003 p 27)

A obra de Rousseau tornou-se influente (HENRIQUES 2010) Outras

vozes uniram-se a ele Buscou-se excluir as mulheres do complexo

entrelaccedilamento entre mobilidade espacial e mobilidade intelectual Buscou-se

restringir sua accedilatildeo cultural e poliacutetica

As vozes hegemocircnicas passaram a opor reproduccedilatildeo e produccedilatildeo Nessa

eacutepoca estabeleceu-se o mito do amor materno enquanto instinto (BADINTER

1985) Por um lado o nascimento tornou-se metaacutefora para o processo criativo

de escritores Suas obras seriam a prole do seu intelecto Por outro a criaccedilatildeo de

escritoras era comparada agrave reproduccedilatildeo Seria um processo corporal involuntaacuterio

(TELLES 2009 p 296)

Havia contudo vozes dissonantes De Poullain de la Barre a Mary

Wollstonecraft houve quem defendesse a educaccedilatildeo igualitaacuteria entre meninos e

meninas A associaccedilatildeo entre a emoccedilatildeo e as mulheres impediu-as de

desfrutarem de autoridade Sua afetividade foi considerada inconsciente

indisciplinada inferior (SCHLICK 2014 p 48) De acordo com o eu por meio da

educaccedilatildeo racional deveria ser desfeita a disposiccedilatildeo das mulheres aos

sentimentos indiscriminados As mulheres seriam capazes de exercitar a mente

e o corpo a razatildeo e o sentimento Deveriam ter a oportunidade de fazecirc-lo Se o

eu critica determinadas caracteriacutesticas das mulheres com quem convive em sua

viagem acredita que natildeo satildeo caracteriacutesticas essenciais Satildeo atributos

contingentes e podem ser modificados (SCHLICK 2014 pp 45-46)

125

Para Yaeumll Rachel Schlick (2014) o eu procuraria estabelecer-se em suas

cartas enquanto sujeito neutro e objetivo Imparcial e sem marcas Entretanto

assim que haacute o eu no discurso manifesta-se o gecircnero socioloacutegico Quando o eu

eacute uma mulher a locutora eacute forccedilada aparecer sob seu corpo proacuteprio (WITTIG

1992) Penso que o eu natildeo procura desfazer-se de suas marcas A tentativa

seria vatilde O eu sente e compreende o que significa ser mulher Simultaneamente

constroacutei-se como mulher e posiciona-se como sujeito-mulher capaz de

discernimento e de imaginaccedilatildeo (SCHLICK 2014 p 36) Ao distanciar-se da

noccedilatildeo hegemocircnica de mulher procura abrir caminho a outras mulheres

A Declaraccedilatildeo dos Direitos Universais do Homem e do Cidadatildeo

proclamada em 1789 fundou-se em uma contradiccedilatildeo fundamental recusar a

cidadania agraves mulheres persistiu a questatildeo como as mulheres poderiam realizar

as promessas universais de liberdade de igualdade e de fraternidade feitas pela

Revoluccedilatildeo Francesa e por todas as repuacuteblicas que a seguiram (SCOTT 1996

p 2)

Ecoando ideais iluministas o eu desenvolve seus modos proacuteprios de

viajar (SCHLICK 2014 p 40) Satildeo modos arriscados O eu caminha na linha

afiada e tecircnue do paradoxo (SCOTT 1996)

Segundo novelo 25 cartas Aconchegada em minha poltrona mergulho

em sua leitura O eu envolve-me Leio suas cartas como se houvessem sido

escritas para mim Ao elaborar seus devaneios e suas observaccedilotildees o eu elabora

a si mesma Desejo saber a seu respeito mais do que me permite O eu envolve-

se em misteacuterio

Vagando mais meus olhos foram atraiacutedos pela visatildeo de alguns amores-perfeitos (heartrsquos-easeI) que espreitavam por entre as pedras Tomei-o como bom pressaacutegio e vou preservaacute-los em uma carta que natildeo transmitiu um baacutelsamo ao meu coraccedilatildeo ndash uma cruel lembranccedila inundou meus olhos mas passou como uma chuva de abril (WOLLSTONECRAFT 2009 p 9 Trad minha)

I Literalmente ldquotranquilidade do coraccedilatildeordquo

126

O que teria dito essa carta inclemente Natildeo saberei

Vocecirc espantou-se certas vezes meu caro amigo com a extrema afetividade de minha natureza Eacute essa a temperatura da minha alma Natildeo se trata da vivacidade da juventude o auge da existecircncia Por anos esforcei-me por acalmar uma mareacute impetuosa trabalhando para que meus sentimentos tomassem um curso ordenado Era lutar contra a corrente Necessito amar e admirar com ardor ou mergulho em tristeza (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifos meus)

Vocecirc Meu caro amigo Percebo sou uma intrusa Leio cartas destinadas

a outra pessoa Quem O destinataacuterio jamais eacute nomeado Vocecirc A presenccedila de

uma ausecircncia Por meio da correspondecircncia o eu manteacutem os viacutenculos

anteriores agrave viagem

Como eacute longo o tempo que levamos para conhecermos a noacutes mesmo E no entanto quase todos temos mais desse conhecimento do que estamos dispostos a admitir ateacute para noacutes mesmos Eu natildeo posso determinar nesse momento se devo regozijar-me por ter nessa solidatildeo virado uma nova paacutegina na histoacuteria do meu coraccedilatildeo ainda que possa arriscar dizer-lhe que a maior familiaridade com a humanidade apenas tende a aumentar meu respeito pelo seu julgamento e minha estima pelo seu caraacuteter (WOLLSTONECRAFT 2009 p 61 Trad minha Grifo meu)

[] eu estava relutante em permanecer ali um dia natildeo tendo nada que me detivesse de encontrar minha garotinha e as suas cartas que eu estava impaciente de receber (WOLLSTONECRAFT 2009 p 91 Trad minha Grifo meu)

O eu constroacutei-se em relaccedilatildeo ao vocecirc a quem destina suas cartas Traccedila

o esboccedilo do vocecirc a quem destina suas cartas ldquoSem algueacutem vivo respirando do

outro lado da paacutegina as cartas satildeo inuacuteteisrdquo (WOOLF 2008 153-154 Trad

minha O vocecirc eacute construiacutedo como leitor interessado e como correspondente

ativo Por meio de formulaccedilotildees sugestivas o vocecirc eacute construiacutedo como o amante

do eu Constroacutei-se relaccedilatildeo de reciprocidade entre eu e vocecirc

Pensar na morte faz com que nos agarremos aos nossos afetos com mais ternura do que de costume Portanto asseguro-lhe que sou sua Desejo que a morte temporaacuteria da ausecircncia possa natildeo se prolongar mais do que o absolutamente necessaacuterio (WOLLSTONECRAFT 2009 p49 Trad minha Grifo meu)

127

O eu sente a ausecircncia do vocecirc como morte temporaacuteria Ao estabelecer o

elo textual a correspondecircncia minimiza o sofrimento causado pela ausecircncia

pela distacircncia A partir da perspectiva do eu a distacircncia atenua e fortalece os

laccedilos entre remetente e destinataacuterio - atenua os viacutenculos fiacutesicos fortalece os

viacutenculos sentimentais O desejo do eu pelo vocecirc distante desloca-se

metonimicamente agraves cartas que o eu estaacute impaciente por receber O eu o vocecirc

e as cartas satildeo construiacutedos como substacircncias eroacuteticas e esteacuteticas (LAWRENCE

1994 pp 88-89)

Ainda batendo na mesma tecla vocecirc exclamaraacute Como posso evitaacute-lo uma vez que a maioria das dificuldades de uma vida repleta de ocorrecircncias foram ocasionadas pelo estado oprimido do meu sexo Noacutes raciocinamos profundamente quando sentimos forccedilosamente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 107 Trad minha Grifo meu)

A conversa com ele fez passar o tempo e deu uma espeacutecie de estiacutemulo ao meu espiacuterito que se tornava cada vez mais lacircnguido desde meu retorno de Gotemburgo ndash vocecirc sabe por quecirc (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Mas vocecirc diraacute que estou me tornando amarga possivelmente pessoal Ah Devo sussurrar-lhe que vocecirc - vocecirc mesmo ndash alterou-se extraordinariamente desde que se aprofundou no comeacutercio Mais do que vocecirc tem consciecircncia uma vez que nunca se permite refletir e que sempre manteacutem sua mente ndash ou melhor suas paixotildees ndash em estado de agitaccedilatildeo A natureza deu-lhe talentos que permanecem adormecidos ou satildeo desperdiccedilados em suas buscas despreziacuteveis Vocecirc iraacute despertar e espantar a poeira vil que o obscurece ou meu discernimento assim como meu coraccedilatildeo enganam-me admiravelmente Diga-me apenas quando (WOLLSTONECRAFT 2009 p 126 Trad minha Grifo meu)

Adeus Adeus eu digo ndash se vocecirc natildeo pode repetir a despedida em um tom diferente (WOLLSTONECRAFT 2009 p 116 Trad minha Grifo meu)

Ao longo das cartas constroacutei-se a tensatildeo entre o eu e o vocecirc O vocecirc

conhece os motivos que tornam o eu lacircnguido Enfada-se com o eu O eu

ressente-se em relaccedilatildeo agraves alteraccedilotildees do vocecirc ndash suas inclinaccedilotildees aos viacutecios

128

ocasionados pela preocupaccedilatildeo excessiva com o acuacutemulo financeiro O vocecirc

parece ser a causa do estado de languidez do eu A reciprocidade eacute

transformada em ilusatildeo do eu Em tom fatalista o eu despede-se - a contragosto

- do vocecirc Quem desejaria o distanciamento eacute o vocecirc O eu contudo segue sua

viagem e escreve-lhe outras quatro cartas

A ausecircncia converte-se para o eu em provaccedilatildeo esteacutetica de abandono de

desamparo (LAWRENCE 1994) Entretanto a imagem tradicional da mulher

que como Peneacutelope aguardaria fiel e pacientemente o retorno do homem ao lar

eacute invertida (SCHLICK 2014 p 36) Em sua escrita o eu funde tecer e viajar

Releio o ldquoAdvertisementrdquo Literalmente ldquoanuacutenciordquo As cartas foram

ldquoorganizadas para publicaccedilatildeordquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p 3 Trad minha)

No ldquoAdvertisementrdquo o destinataacuterio eacute representado como o puacuteblico leitor Dessa

audiecircncia faccedilo parte Nas cartas o destinataacuterio eacute representado como o vocecirc

ausente com quem o eu manteacutem uma relaccedilatildeo iacutentima Em camadas constroem-

se destinataacuterios anocircnimos um destinataacuterio individual e um destinataacuterio coletivo

Na obra o eu procura relatar o efeito exato que diferentes objetos

produziram em sua mente e em seu coraccedilatildeo Propoacutesito que o eu parece

considerar desafiador haacute o perigo de que as impressotildees vivas da viajante se

tornem paacutelidos artefatos a quem lecirc suas cartas (LAWRENCE 1994 p 91)

Propoacutesito que considero inalcanccedilaacutevel os efeitos satildeo (re)elaborados pelo eu ao

escrever

De todo modo haacute a associaccedilatildeo entre a resposta e a responsabilidade de

quem lecirc as cartas em julgar se o eu eacute suficientemente espirituosa ou interessante

para empregar publicamente a primeira pessoa (LAWRENCE 1994 p 92)

O endereccedilamento ao vocecirc e a impressatildeo de que as cartas foram escritas

durante a viagem satildeo gestos que tornam a obra mais viacutevida Estrateacutegias

persuasivas As leitoras e os leitores mergulham nas palavras em fluxo

129

Terceiro novelo Emoccedilatildeo sentimento movimento Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz

Emoccedilatildeo e movimento satildeo indissociaacuteveis Do latim ex pode significar

ldquopara forardquo Pode indicar a origem a causa o material constitutivo Motio significa

ldquomovimentordquo ldquogestordquo Emoccedilatildeo eacute o que provoca o movimento o gesto Emoccedilatildeo

eacute afetaccedilatildeo O movimento eacute paacutethos Πάθος (paacutethos) pode ser traduzido como ldquoo

que ocorreurdquo ldquoo que se passourdquo Eacute a experiecircncia - boa ou maacute O desejo

concretizado eacute paacutethos Πάθος pode ser traduzido ainda como ldquoestadordquo

ldquocondiccedilatildeordquo ou ldquoemoccedilatildeordquo ldquopaixatildeordquo Eacute o estado emocional ndash bom ou mau O desejo

de viver plenamente exigiria que desejaacutessemos usufruir tanto o prazer quanto o

sofrimento (TELLES 2009 pp 246-247)

Quando um coraccedilatildeo caloroso recebeu impressotildees fortes elas natildeo seratildeo obliteradas Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Ao retraccedilaacute-las afetuosamente a imaginaccedilatildeo torna permanentes mesmo as sensaccedilotildees transitoacuterias Natildeo posso sem um estremecimento de deleite (thrill of delight) recordar vistas que observei e que natildeo seratildeo esquecidas ou olhares que senti em cada nervo e que jamais reencontrarei (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifo meu)

Ao perambular com o corpo e com a mente o eu encontra prazer e

sofrimento Emoccedilotildees transformam-se em sentimentos Amaldiccediloada e

encantada a estrada conduz A alegria a melancolia natildeo satildeo sentimentos

inerentemente humanos Satildeo manifestaccedilotildees historicamente delimitadas modos

de conduta coacutedigos diferenciados de comunicaccedilatildeo (LIMA 1986 p 246)

Posso estar melancoacutelica amanhatilde Agora todos os meus nervos manteacutem compasso com a melodia da natureza Ah Deixe-me ser feliz enquanto posso As laacutegrimas comeccedilam a cair assim que penso nisso Devo voar desse pensamento e encontrar refuacutegio do pesar em uma imaginaccedilatildeo potente o uacutenico consolo para um coraccedilatildeo sensiacutevel Fantasmas de felicidade (bliss) Formas ideais de excelecircncia Encerrem-me novamente em seu ciacuterculo maacutegico e limpem da minha recordaccedilatildeo os desapontamentos que tornam dolorosa a simpatia A experiencia amplia esses desapontamentos em vez de abafaacute-los ao dar a sanccedilatildeo da razatildeo agrave indulgecircncia do sentimento (WOLLSTONECRAFT 2009 p 67 Trad minha)

Melancolia Μέλας (meacutelas) + χολή (kholḗ) Μέλας (meacutelas) significa

ldquoescurordquo ldquonegrordquo χολή (kholḗ) significa ldquobiacutelisrdquo ldquofelrdquo (LIDDEL SCOTT JONES

130

MCKENZIE 1996) A melancolia eacute a bile negra produzida pelo fiacutegado um humor

do corpo humano7

Ao longo de seacuteculos empregou-se em referecircncia ao humor ao estado de

espiacuterito agrave enfermidade ou ao temperamento8 Em diferentes eacutepocas designou

enfermidades diversas com causas diversas e sintomas diversos Enfermidades

do corpo com consequecircncias para a mente enfermidades da mente com

consequecircncias para o corpo Atribuiu-se a causa das enfermidades ao

desequiliacutebrio da bile negra do sangue do ceacuterebro da moral Para o tratamento

recorreu-se ndash com recomendaccedilotildees frequentemente opostas - aos banhos ao

exerciacutecio fiacutesico agrave expulsatildeo de substacircncias corporais ndash por meio da evacuaccedilatildeo

da ejaculaccedilatildeo da sangria da transpiraccedilatildeo etc - aos faacutermacos agrave massagem agrave

muacutesica agrave palavra aos regimes alimentares agraves viagens Melancolia eacute um termo

polissecircmico Aleacutem de suportarem os seus males os pacientes os receberam do

meio e os construiacuteram (STAROBINSKI 2016)

No seacuteculo XVIII a melancolia configurou-se por ambiguidades profundas

O termo poderia designar o temperamento e a enfermidade O temperamento

melancoacutelico natildeo levaria necessariamente agrave enfermidade denominada

melancolia

Por um lado considerou-se que a enfermidade teria origem mental Sua

causa foi deslocada do humor para o pensamento do corpo para a mente A

enfermidade atingiria o ser sensiacutevel por meio do predomiacutenio de determinada

ideia fixa sobre o espiacuterito9 Provocaria atonia fraqueza lassidatildeo languidez Para

a cura o espiacuterito deveria ser (re)animado por emoccedilotildees extraordinaacuterias que o

colocassem em movimento que o liberassem do movimento repetitivo Por outro

lado considerou-se que o temperamento teria origem corporal Seria causado

pela prevalecircncia do sistema hepaacutetico no organismo Ofereceria terreno propiacutecio

agrave enfermidade e ao gecircnio (STAROBINSKI 2016)

A imensa sombra das rochas margeada por abetos condensando a visatildeo sem obscurececirc-la excitava aquela suave melancolia (tender melancholy) que sublimando a imaginaccedilatildeo exalta a mente (exalts the mind) em vez de deprimi-la

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[] O proacuteprio ar era um balsacircmico refrescando-se ao alvorecer e produzindo a mais voluptuosa das sensaccedilotildees Um vago sentimento prazeroso absorveu-me conforme eu abria-me ao abraccedilo da natureza Minha alma elevou-se ao seu autor com o piar de paacutessaros solitaacuterios que comeccedilavam a sentir ndash e natildeo a ver ndash o avanccedilo do dia [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 34 Trad minha Grifo meu)

Nunca havia visto na Noruega tantos carvalhos juntos quanto os que havia nesse bosque e nem faias tatildeo grandes quanto as que agitadas pela brisa tornavam o vento audiacutevel Mais que isso musical Pois a melodia parecia voar ao meu redor Quatildeo diferente era o aroma fresco que me reanimou na alameda do frio uacutemido dos meus aposentos Quatildeo pouco a meditaccedilatildeo sombria estimulada pelas tapeccedilarias empoeiradas e pelos quadros roiacutedos por vermes assemelhava-se aos devaneios (reveries) inspirados pela melancolia calmante (soothing melancholy) de sua sombra (WOLLSTONECRAFT 2009 p 57 Trad minha Grifos meus)

Em suas caminhadas o eu encontra o ar puro balsacircmico e a melancolia

suave calmante O movimento fiacutesico e o movimento mental coincidem

Simultaneamente o estado de seu corpo e o estado de sua mente alteram-se

There is comfort in melancholy When therersquos no need to explain Itrsquos just as natural as the weather In this moody sky today (MITCHELL 1976)II

Em oposiccedilatildeo agraves meditaccedilotildees sombrias os devaneios prometem levar a

outras regiotildees O trabalho da imaginaccedilatildeo eacute uma lenta depuraccedilatildeo uma lenta

transformaccedilatildeo ldquoO vivido o experimentado se distorcem se alongam e se

comprimem se condensam ou se prolongam noutros traccedilos []rdquo (LIMA 1986 p

306) Por meio da imaginaccedilatildeo (imagination fancy) o eu desloca-se pelo espaccedilo

e pelo tempo O eu desloca-se para fora de seu cotidiano e entatildeo retorna a ele

Paradoxalmente ao fugir de determinadas convenccedilotildees sociais adere a outras

A melancolia sublima a imaginaccedilatildeo e exalta a mente a alma eleva-se A

melancolia confere superioridade de espiacuterito e reveste de prestiacutegio social Eacute

distinccedilatildeo dom e risco Atribui-se agrave melancolia nacionalidade inglesa10 A cultura

inspira o spleen11 A melancolia eacute topos literaacuterio

II ldquoHaacute conforto na melancolia Quando natildeo haacute necessidade de explicar Eacute apenas natural como o clima Hoje nesse ceacuteu temperamentalrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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Praticamente natildeo preciso informaacute-lo depois de contar-lhe sobre minhas caminhadas que a minha constituiccedilatildeo foi renovada aqui e que recuperei minha atividade ainda que retenha um pouco de embonpoint (ldquosobrepesordquo) Minha imprudecircncia no uacuteltimo inverno e alguns acidentes desagradaacuteveis na eacutepoca em que eu estava desmamando minha filha reduziram-me a um estado de fraqueza que nunca havia experimentado [] Por acaso encontrei um belo riacho filtrado pelas pedras e confinado em uma bacia para o gado A aacutegua tinha gosto de ferro (chalybeat) De todo modo era pura O bom efeito das vaacuterias aacuteguas a que se manda que os invaacutelidos bebam depende creio mais do ar do exerciacutecio e da mudanccedila de cenaacuterio do que de suas qualidades medicinais Portanto decidi-me a dirigir minhas caminhadas matinais em sua direccedilatildeo e a buscar partilhando da bebida oferecida aos habitantes da sombra a sauacutede nas matildeos da ninfa da fonte (WOLLSTONECRAFT 2009 p 50 Trad minha Grifo meu)

Conforme o eu o exerciacutecio fortalece o corpo e a mente O que natildeo quer

dizer que habitue agrave possibilidade de sofrimento ao ponto da anestesia A escrita

a caminhada e a viagem transformam o movimento e liberam o corpo e a mente

emperrados A evasatildeo de Londres metroacutepole esfumaccedilada e lamacenta rumo

ao ar cristalino e agrave vegetaccedilatildeo viccedilosa do campo eacute salutar

A simpatia que inspirei ao cair dos ceacuteus em uma terra desconhecida afetou-me mais do que o teria se o meu espiacuterito natildeo estivesse perturbado por vaacuterios motivos por muitos pensamentos meditaccedilotildees que levaram-me agraves raias da loucura e mesmo por uma espeacutecie de melancolia tecircnue que fixou-se em meu coraccedilatildeo ao separar-me de minha filha pela primeira vez (WOLLSTONECRAFT 2009 p 36 Trad minha Grifo meu)

O tuacutemulo fechou-se sobre a querida amiga da minha juventude Ainda assim ela estaacute presente comigo e eu ouccedilo a sua voz suave cantarolando enquanto vago pela charneca O destino separou-me de outra O fogo de seus olhos temperado por ternura infantil ainda aquece meu peito mesmo contemplando esses enormes penhascos emoccedilotildees sublimes absorvem minha alma Natildeo ria se acrescento que o tom rosado da manhatilde me lembra de um rubor que a natildeo ser que reapareccedila na face da minha filha natildeo encantaraacute mais meus sentidos (WOLLSTONECRAFT 2009 p 39 Trad minha Grifos meus)

Entatildeo jantei com meus companheiros de quem logo me separaria para sempre ndash uma ideia sempre demasiado melancoacutelica moacuterbida Uma espeacutecie de separaccedilatildeo de alma [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 118 Trad minha Grifo meu)

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O afastamento a ausecircncia a distacircncia produzem a nostalgia espeacutecie de

melancolia

Nas cartas alternam-se caminhadas pela estrada reta da observaccedilatildeo e

pela relva do devaneio A caminhada pela estrada reta da observaccedilatildeo eacute o

movimento direto e intencional Convencional e seguro A caminhada pela relva

do devaneio eacute o movimento arriscado Pode levar agrave restauraccedilatildeo ou ao

adoecimento do espiacuterito

No presente momento a negra melancolia paira ronda os meus passos e a tristeza verte bolor sobre todas as minhas perspectivas futuras que a esperanccedila natildeo mais adorna (WOLLSTONECRAFT 2009 p 78 Trad minha Grifo meu)

Haacute sempre algo nas depredaccedilotildees do tempo que emprega a imaginaccedilatildeo (fancy) ou que conduz a meditaccedilotildees sobre assuntos que [] parecem dar-lhes nova dignidade Poreacutem aqui eu estava pisando sobre cinzas em brasa Os sofredores encontravam-se ainda sob a pressatildeo da miseacuteria ocasionada por esse terriacutevel incecircndio [em Copenhagen] Eu natildeo podia refugiar-me no pensamento eles sofreram mas natildeo existem mais (WOLLSTONECRAFT 2009 p 100 Trad minha Grifo da autora)

Ao longo das cartas a distacircncia da filha a frieza do destinataacuterio e a fadiga

causada pela viagem embotam gradativamente a alegria e a esperanccedila A

melancolia suave calmante daacute lugar agrave melancolia embolorada negra Ao final

da viagem o eu vecirc os destroccedilos deixados pelo incecircndio que consumiu extensas

aacutereas de Copenhagen e os acampamentos miseraacuteveis em que se refugia a

populaccedilatildeo pobre As meditaccedilotildees em tom sombrio aprofundam-se ldquoA melancolia

se ganha ao correr do mundordquo (STAROBINSKI 2016 p 89) A viagem pode

provocar e curar a enfermidade

Certas vezes pensei ser um grande infortuacutenio que os indiviacuteduos adquiram certa delicadeza de sentimentos que frequentemente os torna fatigados das ocorrecircncias comuns da vida Contudo eacute essa delicadeza de sentimento e de pensamento que provavelmente produziu a maioria das realizaccedilotildees que beneficiou a humanidade Pode com propriedade talvez ser nomeada a enfermidade do gecircnio (malady of genius) [] (WOLLSTONECRAFT 2009 p 112 Trad minha)

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A expansatildeo do eu pelos sentidos envolve risco Prazer e sofrimento

anguacutestia e tranquilidade alegria e melancolia entrelaccedilam-se formando o ritmo da

jornada de Mary Tempo e contratempo Tece canto que expressa movimento

Adeus Meu espiacuterito de observaccedilatildeo parece ter escapado E eu tenho perambulado por esse lugar imundo literalmente falando para matar o tempo Embora os pensamentos dos quais eu fugiria com prazer jazam demasiado perto do meu coraccedilatildeo para serem espantados ou mesmo seduzidos por qualquer ocupaccedilatildeo a natildeo ser a de preparar a minha viagem para Londres Deus o abenccediloe (WOLLSTONECRAFT 2009 p 131 Trad minha)

O eu conclui suas cartas com a preparaccedilatildeo para sua viagem de retorno

Como se a jornada jamais se encerasse A morte parece-lhe a libertaccedilatildeo do ser

para expandir-se em outro elemento desconhecido (WOLLSTONECRAFT 2009

p 88) Como se o movimento jamais se encerrasse Ao final a assinatura Mary

Mary Beton Mary Seaton Mary Charmichael ou Mary Wollstonecraft O que

importa eacute isto natildeo conheceu o exiacutelio enquanto silecircncio

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1 Trata-se de referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo [ldquoConforme conduz a estrada amaldiccediloada e encantadardquo Trad minha] da canccedilatildeo ldquoAmeliardquo de Joni Mitchell (1976) 2 Conforme Charles Batten Jr ldquoRebelando-se contra seus ancestrais renascentistas o relato de viagem do seacuteculo XVIII alcanccedilou uma mescla geneacuterica de informaccedilatildeo factual e arte literaacuteria [] Nossa dissociaccedilatildeo moderna de ciecircncias e belas letras ainda natildeo havia ocorrido nessa era em que o leitor educado ainda podia ser um lsquohomem universalrsquo e dominar muitos assuntosrdquo (BATTEN 1978 pp 5-6 Trad minha) 3 A autobiografia moderna configurou-se enquanto gecircnero textual a partir do momento em que a vocaccedilatildeo passou a mediar necessariamente a relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o mundo A noccedilatildeo de literatura passou a ter como valor a comoccedilatildeo dos leitores pela forccedila dos sentimentos autecircnticos confessados pelo indiviacuteduo (COSTA LIMA 1986 p 243)

4 Conforme Roland Barthes ldquoTexto quer dizer Tecido mas enquanto ateacute aqui esse tecido sempre foi tomado por um produto por um veacuteu acabado por traacutes do qual se manteacutem mais ou menos oculto o sentido (a verdade) noacutes acentuamos agora no tecido a ideia gerativa de que o texto se faz se trabalha atraveacutes de um entrelaccedilamento perpeacutetuo perdido neste tecido ndash nessa textura ndash o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreccedilotildees construtivas de sua teia Se gostaacutessemos dos neologismos poderiacuteamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos eacute o tecido e a teia de aranha)rdquo (2013 pp 74-75) Penso contudo que o sujeito se faz e se refaz no perpeacutetuo tecer

5 De acordo com Tone Brekke and Jon Mee ldquoAo tratar ingenuamente Letters como um mapa do coraccedilatildeo de Wollstonecraft [] corre-se o risco de subestimar o seacuterio trabalho que ela realizou na Inglaterra transformando sua jornada em um livro aleacutem de se cair na armadilha de identificar a escrita de mulheres puramente agrave sensibilidade uma limitaccedilatildeo contra a qual Wollstonecraft passou toda a sua careira resistindo Embora o livro se declare ancorado nas reaccedilotildees pessoais de Wollstonecraft haacute a reflexatildeo contiacutenua sobre essas reaccedilotildees e elas satildeo direcionadas para fora para o mundo de que participam ndash o lsquovocecircrsquo a que se dirige no livro natildeo pode ser simplesmente traduzido como o lsquoImlayrsquo das cartas privadasrdquo (WOLLSTONECRAFT 2009 p xxiii Trad minha) 6 Ao longo do seacuteculo XVIII elabora-se o ideal burguecircs de amor materno O eu constroacutei-se enquanto matildee amorosa em oposiccedilatildeo impliacutecita aos costumes vigentes durante o Antigo Regime Sobre a construccedilatildeo do ideal burguecircs do amor materno vide Elisabeth Badinter (1985) 7 O termo em latim umor pode ser traduzido como ldquoliacutequidordquo ldquofluiacutedordquo Por volta do seacuteculo IV a C a teoria dos quatro humores tornou-se influente na medicina grega antiga Essa teoria foi exposta no tratado da Natureza do homem tradicionalmente atribuiacutedo a Poliacutebio de Coacutes De acordo com a teoria humoral os humores do corpo humano ndash a bile amarela a bile negra a fleuma e o sangue ndash deveriam permanecer em equiliacutebrio harmonioso Ao serem produzidos em excesso ao deslocarem-se de seu centro natural ao inflamarem-se ou ao corromperem-se causariam enfermidades (STAROBINSKI 2016 p 20) 8 No seacuteculo V aC Hipoacutecrates elaborou a teoria dos temperamentos O comportamento dos seres humanos poderia ser categorizado em temperamento bilioso o temperamento melancoacutelico o temperamento fleumaacutetico ou o temperamento sanguiacuteneo O temperamento do indiviacuteduo seria definido conforme predominasse em seu organismo respectivamente a bile amarela a bile negra a fleuma ou o sangue No seacuteculo XVIII Pierre-Jean-Georges Cabanis ampliou a teoria dos temperamentos acrescentando o temperamento muscular e o temperamento nervoso (STAROBINSKI 2016) 9 Em 1838 Jean-Eacutetienne Esquirol consideraraacute que a melancolia eacute a monomania A enfermidade repousaria inteiramente na sensibilidade e nas afeiccedilotildees (STAROBINSKI 2016 p 70) 10 No seacuteculo XVIII conforme Jean Starobinski considera-se que ldquo[] o verdadeiro melancoacutelico eacute necessariamente um inglecircs []rdquo (2016 p 91)

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11 Spleen significa ldquobaccedilordquo O baccedilo produziria a bile negra De acordo com a teoria humoral o desequiliacutebrio da bile negra seria a causa da melancolia O termo que permeia a literatura do seacuteculo XVIII remete agrave melancolia

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Self-Portrait at the Seaside Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

1929 Paris Franccedila Centre Georges Pompidou

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Le trajet Romaine Brooks Oacuteleo sobre tela

c 1911 Washington DC EUA Smithsonian American Art Museum

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CODA

A Adolfo Rodrigues Dianes Moreira que conhece seus modos proacuteprios de criar de ser feliz e de sofrer

Primeiro gesto Sentar-me para escrever A paacutegina em branco O nada e

a encruzilhada O caos pleno de potecircncia Amaldiccediloada e encantada a estrada

conduz1 Para onde Haacute muacuteltiplos destinos haacute muacuteltiplos caminhos Como

seguir

Segundo gesto Encontro-me paralisada Eacute preciso agir O medo

preenche meus pulmotildees Eacute preciso agir Inspiro-expiro-inspiro-expiro O ato de

respirar conteacutem toda a existecircncia todo o universo

Terceiro gesto Caminho pelo chatildeo repisado de uma conhecida estrada

Enfileiro os seacuteculos como soldados em marcha O seacuteculo XVI o seacuteculo XVII o

seacuteculo XVIII o seacuteculo XIX Assisto o seu desfile roboacutetico

People will tell you where theyve gone Theyll tell you where to go But lsquotill you get there yourself you never really know Where some have found their paradise Others just come to harm (MITCHELL 1976)I

Como coreografar outras danccedilas Como impedir que Cronos me devore

inteira

Eacute preciso agir Entretanto natildeo me interessa qualquer accedilatildeo Desejo tecer

fios da terra ao ceacuteu do poacute agrave bruma Desejo que minha tapeccedilaria forme padrotildees

circulares cintilantes caleidoscoacutepicos

Quarto gesto Olho para minhas matildeos delicadas Femininas Canhotas

Tolas

I ldquoAs pessoas diratildeo a vocecirc para onde foram Elas diratildeo a vocecirc para onde ir Mas ateacute que vocecirc chegue laacute vocecirc nunca sabe realmente Onde alguns encontraram seu paraiacuteso Outras apenas encontram danosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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A ghost of aviation She was swallowed by the sky Or by the sea like me she had a dream to fly Like Icarus ascending On beautiful foolish arms (MITCHELL 1976)II

Com essas matildeos como natildeo ser engolida pelo ceacuteu ou pelo mar

A visatildeo de minhas matildeos desperta o desejo de fugir Correr em meio agrave

escuridatildeo da noite rumo a uma densa floresta Faria uma imensa fogueira em

que lanccedilaria todos os meus papeacuteis Assistiria enquanto se queimassem Entatildeo

deitaria sobre o carvatildeo incandescente para que outras chamas me

consumissem Os fragmentos de folhas de aacutervores os fragmentos do meu corpo

e os fragmentos dos meus papeacuteis confundindo-se

Quinto gesto Eacute preciso agir Persegue-me uma pergunta A accedilatildeo eacute

possiacutevel agraves mulheres Poderiam as mulheres realizar accedilotildees - mediacuteocres

excepcionais Poderia Peneacutelope aventurar-se escrever e viajar Peneacutelope a

tecelatilde de enganos

Natildeo me venha falar na maliacutecia de toda mulher Cada um sabe a dor e a deliacutecia de ser o que eacute [] Vocecirc sabe explicar vocecirc sabe entender tudo bem Vocecirc estaacute vocecirc eacute vocecirc faz vocecirc quer vocecirc tem Vocecirc diz a verdade e a verdade eacute seu dom de iludir Como pode querer que a mulher vaacute viver sem mentir (CREUZA 1977)

O eu que pergunta ldquoA accedilatildeo eacute possiacutevel agraves mulheresrdquo faz uma pergunta

envergada pelo peso patriarcal enviesada Esse peso me abate Esse vieacutes me

tolhe Devo abandonaacute-los para seguir

Sexto gesto Haacute muacuteltiplos eus em mim ldquoEu sou feita e refeita

continuamente Diferentes pessoas extraem diferentes palavras de mimrdquo

(WOOLF 2015 p 78 Trad minha) Crio outros eus Elaboro outra(s)

pergunta(s) Como negar as accedilotildees - mediacuteocres excepcionais - das mulheres

Como negar a aventura a escrita e a viagem de Peneacutelope

Peneacutelope natildeo percorre territoacuterios estrangeiros distantes exoacuteticos e

perigosos Permanece em Iacutetaca O perigo se apresenta a ela em sua proacutepria

II ldquoUm fantasma da aviaccedilatildeo Ela foi engolida pelo ceacuteu Ou pelo mar Como eu ela tinha um sonho de voar Como Iacutecaro ascendendo em belos braccedilos tolosrdquo (MITCHELL 1976 Trad minha)

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morada Para adiar a sua opccedilatildeo por um pretendente tece uma mortalha para

Laerte pai de Odisseu Seu instrumento natildeo eacute a lanccedila ou a nau seus

instrumentos natildeo satildeo o papel e a caneta a maacutequina de escrever ou o

computador Seus instrumentos satildeo o tear e as linhas Com esses instrumentos

Peneacutelope tece suas proacuteprias possibilidades cria sua proacutepria vida Atua Ao adiar

o novo matrimocircnio evita o inevitaacutevel Peneacutelope tem meios proacuteprios e histoacuterias

proacuteprias Meus instrumentos satildeo o computador o papel e a caneta Como

Peneacutelope desfaccedilo e refaccedilo meu texto-tapeccedilaria

Seacutetimo gesto Os soldados devem ser desarmados Devem desfazer-se

das fardas dos coturnos Devem aprender novos modos de se movimentar

novos gestos

Enquanto escrevo meu coraccedilatildeo pulsa feroz e velozmente Posso ouvi-lo

Meu estocircmago revira-se Tenho naacuteuseas Um corpo que foi ingerido e digerido

deve ser regurgitado Eacute parte de mim Natildeo eacute parte de mim

Amaldiccediloada e encantada a estrada conduz As ondas inspiram Suas

energias concentram-se em um noacute tenso As ondas expiram Espraiam-se O

relaxamento eacute total Bliss2 Entre esses estados a mais iacutenfima pausa O silecircncio

Oitavo gesto Se os destinos satildeo sempre fictiacutecios quando se encerra a

jornada

A minha jornada foi aacuterdua angustiante dilacerante e dolorosa Inundou-

me de alegria de ecircxtase Pelo caminho procurei aprender a partir de onde posso

observar refletir dizer Procurei aprender a partir de onde desejo dizer escrever

Terei alcanccedilado o fim

Acostumadas ao ritmo minhas matildeos desejam seguir escrevendo

Atrofiados pela posiccedilatildeo constante meus joelhos doem Meus peacutes desejam

seguir caminhando

Nono gesto Cronos impotildee o ponto final Sinto contudo ldquocomo se natildeo

houvesse conclusatildeo possiacutevel apenas proliferaccedilotildees mais produtivasrdquo

(BRAIDOTTI 2011 p 13)

Eu jaacute estou com o peacute nessa estrada Qualquer dia a gente se vecirc Sei que nada seraacute como antes amanhatilde (REGINA 1972)

Elis Regina canta enquanto escrevo estas linhas Encoraja-me a partir

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Sei que nada seraacute como estaacute Amanhatilde ou depois de amanhatilde Resistindo na boca da noite um gosto de sol (REGINA 1972)

Deacutecimo gesto Sigo Ventania em qualquer direccedilatildeo

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1 Referecircncia ao verso ldquoAs the road leads cursed and charmedrdquo (MITCHELL 1976) 2 ldquoBlissrdquo refere-se a um estado de alegria extrema de ecircxtase de felicidade perfeita ldquoBlissrdquo eacute o tiacutetulo de um conto de Katherine Mansfield (1888-1923)

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Emma Hamilton as Bacchante Elizabeth Vigeacutee Le Brun

Oacuteleo sobre tela 1790-1792

Port Sunlight Merseyside Inglaterra Lady Lever Art Gallery

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ENCONTROS PELO CAMINHO

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LIMA Luiz Costa Sociedade e discurso ficcional Rio de Janeiro RJ Guanabara 1986 LOURENCcedilO Frederico (Trad Apres e Notas) Biacuteblia Novo Testamento Os Quatro Evangelhos Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2017 MITCHELL Joni ldquoAll I Wantrdquo in Blue AampM Studios 1971 1 LP Faixa 1 (03 min 34) MITCHELL Joni ldquoAmeliardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 2 (06 min 01) MITCHELL Joni ldquoHejirardquo in Hejira AampM Studios 1976 1 LP Faixa 5 (06 min 42) MORIN Edgar ldquoA noccedilatildeo de sujeitordquo in SCHNITMAN Dora F (Org) Novos paradigmas cultura e subjetividade Porto Alegre RS Artes Meacutedicas 1996 pp 45-58 MORIN Edgar ldquoComputo ergo sumrdquo in Chimegraveres v 8 mai 1990 pp 1-20 Disponiacutevel em lt httpwwwelissaltnetBIOTHECAComputo20ergo20sumpdfgt Acesso em dez 2019 PERROT Michelle ldquoA palavra puacuteblica das mulheresrdquo ldquoPuacuteblico privado e relaccedilotildees entre os sexosrdquo ldquoSairrdquo in As mulheres ou os silecircncios da histoacuteria Bauru SP EDUSC 2005 pp 317-326 455-466 279-316 PERROT Michelle Mulheres puacuteblicas Trad Roberto Leal Ferreira Satildeo Paulo SP UNESP 1998 PIZARNIK Alejandra Poesia completa (1955-1972) Ed Ana Becciuacute Barcelona Espanha Lumen 2016 PRADO Anna Lia do Amaral de Almeida ldquoNormas para a transliteraccedilatildeo de termos e textos em grego antigordquo in Claacutessica Brasil v 19 2 2006 pp 298-299 PRECIADO Beatriz [PRECIADO Paul B] O feminismo natildeo eacute um humanismo Trad Charles Feitosa O Povo Fortaleza CE 24 nov 2014 Colunas Filosofia Pop Disponiacutevel em lthttpswww20opovocombrappcolunasfilosofiapop20141124noti ciasfilosofiapop3352134o-feminismo-nao-e-um-humanismoshtmlgt Acesso em ago 2019 REED Lou ldquoTake a walk on the wild siderdquo in Transformer RCA Records 1972 1 LP Faixa 5 (04 min 12) REGINA Elis ldquoNada seraacute como antesrdquo Compositores Milton Nascimento e Ronaldo Bastos In Elis Phonogram 1972 1 LP Faixa 3 (02 min 45) RICH Adrienne ldquoNotes Toward a Politics of Locationrdquo in Blood Bread and Poetry Selected Prose (1979-1985) London Reino Unido Virago 1987 pp 210-231 [1984] ROUSSEAU Jean-Jacques ldquoLivro Quintordquo in Emiacutelio ou Da Educaccedilatildeo Trad Seacutergio Milliet Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 1995 pp 423-581 [1762] SCHLICK Yaeumll Rachel Feminism and the Politics of Travel Cranbury EUA Bucknell University Press 2014 SCOTT Joan Wallach ldquoGender Still a Useful Category of Analysisrdquo in Diogenes Vol 57 (1) out-2010 pp 7-14

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SCOTT Joan Wallach Only Paradoxes to Offer French Feminists and the Rights of Man Massachusetts EUA Harvard University Press 1996 pp 1-18 SCOTT Joan Wallach ldquoThe Evidence of Experiencerdquo in Critical Inquiry Vol 17 No 4 Chicago EUA Summer-1991 pp 773-797 SHOWALTER Elaine A literature of their own British women writers from Charlotte Bronteuml to Doris Lessing London Reino Unido Virago 2014 [1977] SHOWALTER Elaine ldquoA criacutetica feminista no territoacuterio selvagemrdquo Trad Deise Amaral in HOLLANDA Heloiacutesa Buarque de (Org) Tendecircncias e impasses O feminismo como criacutetica da cultura Rio de Janeiro RJ Rocco 1994 [1981] pp 23-57 SHOWALTER Elaine Anarquia sexual Sexo e cultura no fin de siegravecle Trad Waldeacutea Barcellos Rio de Janeiro RJ Rocco 1993 [1990] SIOUXIE amp THE BANSHEES ldquoHong Kong Gardenrdquo in The Scream Polydor Records Universal Records 2005 [1978] CD Faixa 6 (02 min 42) SMITH Patti ldquoAmerigordquo in Banga Compositores Patti Smith e Tony Shanahan Legacy Recordings 2012 1 CD Faixa 1 (04 min 36) STAROBINSKI Jean ldquoHistoacuteria do tratamento da melancoliardquo in A tinta da melancolia Uma histoacuteria cultural da tristeza Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo SP Companhia das Letras 2016 pp 15-125 SUumlSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo SP Cia das Letras 1990 TELLES Norma ldquoA escrita como praacutetica de sirdquo in RAGO Margareth VEIGA-NETO Alfredo (Org) Para viver uma vida natildeo-fascista Belo Horizonte MG Autecircntica 2009 pp 291-303 (Coleccedilatildeo Estudos Foucaultianos) TELLES Norma ldquoAutor+ardquo in JOBIM Joseacute Luis (Org) Palavras da criacutetica Tendecircncias e conceitos no estudo da literatura Rio de Janeiro RJ Imago 1992 pp 46-63 TELLES Norma ldquoEmoccedilotildeesrdquo in BERNARDO Teresinha RESENDE Paulo-Edgar Almeida (Org Ciecircncias sociais na atualidade Movimentos Satildeo Paulo SP Paulus 2005 pp 233-256 WITTIG Monique As Guerrilheiras Trad Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo Satildeo Paulo SP Ubu Editora 2019 [1969] WITTIG Monique ldquoThe Mark of Genderrdquo in The Straight Mind and Other Essays Boston Massachusetts EUA Beacon Press 1992 [1985] pp 76-89 WITTIG Monique ldquoNatildeo se nasce mulherrdquo Trad Leacutea Suumlssekind Viveiros de Castro In HOLLANDA Heloisa Buarque de (Org) Pensamento feminista Conceitos fundamentais Rio de Janeiro RJ Bazar do Tempo 2019 [1980] pp 83-92 WOLLSTONECRAFT Mary Letters written during a short residence in Sweden Norway and Denmark Ed Intro e Notas Tone Brekke and Jon Mee Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1796]

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WOOLF Virginia A Room of Onersquos Own and Three Guineas Oxford Reino Unido Oxford University Press 2008 [1929 1938] WOOLF Virginia Professions for Women in BARRETT M (Ed) Virginia Woolf Women and writing Remarkable pieces on the writing life of women New York EUA Hartcourt 1980 pp 57-63 WOOLF Virginia The Voyage Out Oxford Reino Unido Oxford University Press 2009 [1915] WOOLF Virginia The Waves Oxford Reino Unido Oxford University Press 2015 [1931]

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ANEXO

DESFAZENDO AS MALAS

Agradeccedilo a Adolfo Moreira dotinkttoo Jamilie Souza chicavamo e

Marcio Zamboni que realizaram as obras comissionadas que integram este

trabalho Agradeccedilo a George Rufato e a Rosana Maria Pinto

libelus_encadernacao que confeccionaram respectivamente os

caleidoscoacutepios e as maletas entregues agraves componentes da banca

examinadora

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