Uma viagem no Sud Expresso - SINDEFER · janta-se razoavelmente com um preço também razoável. Em...

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6 de Junho 2008 25 Em memória do António Martinho e do Maurício Levy Uma viagem no Sud Expresso O comboio rompe a noite precedido de um foco de luz que a barulhenta locomotiva projecta nos carris molhados. Em seu redor a escuridão é total. Na segunda classe são poucos os compartimentos ainda iluminados. A carrua- gem-restaurante acaba de apagar as luzes. No vagão azul que segue na cauda da composição os estores estão todos corridos e o corredor alcatifado está va- zio. É a carruagem-cama. Os quartos, forrados a madeira, têm um velho lavatório sobre o qual se desce um tampo a servir de mesa. A cama tem os lençóis brancos bem engoma- dos e basta um único cobertor porque o ambiente é aqueci- do. A luz de presença permite ler, mas o balancear suave da composição e o ruído monó- tono das rodas a deslizar so- bre os carris convidam ao sono. As rajadas de vento lá fora e a chuva a bater nos vi- dros da janela fazem o resto – fecha-se o livro, apaga-se a luz e adormece-se, quentinho, embalado pela dança suave da velha carruagem. Assim no meio do noite, o Sud, o último dos grandes ex- pressos europeus, asseme- lha-se a um paquete no ocea- no, habitado por uma comuni- dade heterogénea de viajan- tes. Durante o dia os seus pas- sageiros conversaram, cruza- ram-se nos corredores e com- partimentos, no bar e no res- taurante. À noite jantaram. E agora dormem. Passam 25 minutos da meia-noite. As luzes de Medi- na del Campo ainda estão lon- ge e as de Salamanca já não se avistam. A viagem vai ago- ra a meio… M as começara às 16 horas e seis minutos da tarde anterior quando, em Santa Apolónia, o Sud Expresso sol- tou um apito e arrancou, vaga- roso, da linha número três. A seguir pára no Oriente e logo acelera pela beira do Tejo até à primeira paragem no Entron- camento. Há 120 anos que este com- boio liga Lisboa a Paris, em- bora, em rigor, só vá até à fron- teira francesa de Hendaya, onde outra composição asse- gura o resto do percurso devi- do à diferença de bitola (dis- tância entre carris). Hoje esse troço é assegurado pelo TGV, mas durante décadas foi tam- bém um comboio de luxo que assegurou o segmento fran- cês desta viagem. Era o tempo em que burgue- ses endinheirados, diploma- tas, espiões, aristocratas e, mais tarde, refugiados das duas guerras, viajavam neste comboio, numa época em que a aviação comercial era um mito e a massificação do auto- móvel ainda não dera os pri- meiros passos. Georges Nagelmarkers, um empresário belga que fundou a Companhia Internacional de Wagons Lits, inaugurara em 1887 o Sud Expresso, depois de já ter criado o famoso Ori- ente Expresso (Londres – Pa- ris – Istambul). O seu sonho era ligar Lisboa a Moscovo com um único comboio, mas os na- cionalismos da época não o permitiram. O Sud realizava-se três ve- zes por semana e demorava 45 horas entre Lisboa e Paris via Madrid. O sucesso foi tal que em breve passou a diário e o seu percurso modificado seguindo directamente pela Beira Alta até Salamanca sem prestar vassalagem à capital do país vizinho. As grandes companhias marítimas alteraram os horári- os dos navios por forma a fa- zer coincidir as suas partidas com a chegada do Sud Ex- presso. Desde o centro da Eu- ropa para a África e a América do Sul poupavam-se agora três dia de navegação e evita- va-se a turbulenta travessia do golfo da Biscaia. Graças ao caminho-de-ferro, Lisboa ga- nhava estatuto nas grandes rotas internacionais. O Avenida Palace, aos Res- tauradores, tinha uma comu- nicação directa com a estação do Rossio (que a dada altura era o términus do Sud Expres- so) para receber os recém- chegados passageiros vindos de França. E durante alguns anos, a própria carruagem- cama seguia viagem para a estação do Estoril. O último dos grandes ex- pressos europeus é hoje uma pálida imagem desses tempos áureos. Já não tem atrelado o furgão onde viajavam as ma- las de uma clientela distinta e os livros que os intelectuais da Brasileira do Chiado se apres- savam a ir esperar ao Rossio. A locomotiva reboca carru- agens de segunda (uma das quais fica em Vilar Formoso pois destina-se a reforçar o serviço no percurso portugu- ês), o vagão das couchetes (uma forma barata de viajar deitado, em beliches, preferi- da pelos emigrantes) e as car- ruagens restaurante e camas, que conferem ao Sud um der- radeiro toque nostálgico e de aventura. N ão é, porém, esse o motivo que leva José Hernandez, quadro de uma empresa por- Dário/ ocomboio.net Dário/ ocomboio.net

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  • 6 de Junho 2008 25

    Em memória do António Martinhoe do Maurício Levy

    Uma viagem no Sud Expresso

    O comboio rompe anoite precedidode um foco de luzque a barulhenta locomotivaprojecta nos carris molhados.Em seu redor a escuridão étotal. Na segunda classe sãopoucos os compartimentosainda iluminados. A carrua-gem-restaurante acaba deapagar as luzes.

    No vagão azul que seguena cauda da composição osestores estão todos corridos eo corredor alcatifado está va-zio. É a carruagem-cama. Osquartos, forrados a madeira,têm um velho lavatório sobreo qual se desce um tampo aservir de mesa. A cama tem oslençóis brancos bem engoma-dos e basta um único cobertorporque o ambiente é aqueci-do. A luz de presença permiteler, mas o balancear suave dacomposição e o ruído monó-tono das rodas a deslizar so-bre os carris convidam aosono. As rajadas de vento láfora e a chuva a bater nos vi-dros da janela fazem o resto –fecha-se o livro, apaga-se a luze adormece-se, quentinho,embalado pela dança suaveda velha carruagem.

    Assim no meio do noite, oSud, o último dos grandes ex-pressos europeus, asseme-lha-se a um paquete no ocea-no, habitado por uma comuni-dade heterogénea de viajan-tes. Durante o dia os seus pas-sageiros conversaram, cruza-ram-se nos corredores e com-partimentos, no bar e no res-taurante. À noite jantaram. Eagora dormem.

    Passam 25 minutos dameia-noite. As luzes de Medi-na del Campo ainda estão lon-ge e as de Salamanca já nãose avistam. A viagem vai ago-ra a meio…

    Mas começara às16 horas e seisminutos da tardeanterior quando, em SantaApolónia, o Sud Expresso sol-tou um apito e arrancou, vaga-roso, da linha número três. Aseguir pára no Oriente e logoacelera pela beira do Tejo atéà primeira paragem no Entron-camento.

    Há 120 anos que este com-boio liga Lisboa a Paris, em-bora, em rigor, só vá até à fron-teira francesa de Hendaya,onde outra composição asse-gura o resto do percurso devi-do à diferença de bitola (dis-tância entre carris). Hoje essetroço é assegurado pelo TGV,mas durante décadas foi tam-bém um comboio de luxo queassegurou o segmento fran-cês desta viagem.

    Era o tempo em que burgue-ses endinheirados, diploma-tas, espiões, aristocratas e,mais tarde, refugiados dasduas guerras, viajavam nestecomboio, numa época em quea aviação comercial era ummito e a massificação do auto-móvel ainda não dera os pri-meiros passos.

    Georges Nagelmarkers, umempresário belga que fundoua Companhia Internacional deWagons Lits, inaugurara em1887 o Sud Expresso, depoisde já ter criado o famoso Ori-ente Expresso (Londres – Pa-ris – Istambul). O seu sonho eraligar Lisboa a Moscovo comum único comboio, mas os na-cionalismos da época não opermitiram.

    O Sud realizava-se três ve-zes por semana e demorava45 horas entre Lisboa e Parisvia Madrid. O sucesso foi talque em breve passou a diárioe o seu percurso modificado

    seguindo directamente pelaBeira Alta até Salamanca semprestar vassalagem à capitaldo país vizinho.

    As grandes companhiasmarítimas alteraram os horári-os dos navios por forma a fa-zer coincidir as suas partidascom a chegada do Sud Ex-presso. Desde o centro da Eu-ropa para a África e a Américado Sul poupavam-se agoratrês dia de navegação e evita-va-se a turbulenta travessia do

    golfo da Biscaia. Graças aocaminho-de-ferro, Lisboa ga-nhava estatuto nas grandesrotas internacionais.

    O Avenida Palace, aos Res-tauradores, tinha uma comu-nicação directa com a estaçãodo Rossio (que a dada alturaera o términus do Sud Expres-so) para receber os recém-chegados passageiros vindosde França. E durante algunsanos, a própria carruagem-cama seguia viagem para a

    estação do Estoril.O último dos grandes ex-

    pressos europeus é hoje umapálida imagem desses temposáureos. Já não tem atrelado ofurgão onde viajavam as ma-las de uma clientela distinta eos livros que os intelectuais daBrasileira do Chiado se apres-savam a ir esperar ao Rossio.

    A locomotiva reboca carru-agens de segunda (uma dasquais fica em Vilar Formosopois destina-se a reforçar o

    serviço no percurso portugu-ês), o vagão das couchetes(uma forma barata de viajardeitado, em beliches, preferi-da pelos emigrantes) e as car-ruagens restaurante e camas,que conferem ao Sud um der-radeiro toque nostálgico e deaventura.

    Não é, porém, esseo motivo que levaJosé Hernandez,quadro de uma empresa por-

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    tuguesa de papel, a viajar to-dos os meses no Sud até SanSebastian. Embarca em Man-gualde e explica por que pre-fere este modo de transporteao avião.

    “Primeiro, poupo 250 qui-lómetros pois teria de ir a Lis-boa apanhar o avião para Bil-bau e depois viajar de carropara San Sebastian. Assim,entro em Mangualde, janto abordo e saio directamente nocentro da cidade de manhãcedo. No comboio durmomagnificamente bem, aspessoas são acessíveis ejanta-se razoavelmente comum preço também razoável.Em segundo lugar, só pagopor tudo isto 275 euros [com-partimento single na carrua-gem-cama] quando só oavião custa 750 euros maisuma noite de hotel em Lis-boa”.

    Grande parte dos passagei-ros do Sud não faz o ponta aponta (Lisboa-Paris), mas en-tra na região Centro (o com-boio pára em Fátima, Pombale Coimbra) ou na Beira Alta esai em Espanha ou no sul deFrança.

    É o caso destas três mulhe-res que vão visitar os seusmaridos acompanhadas dosfilhos. Maria Celeste e Mariade Fátima vêm de Vila do Con-de e acompanham-nas o Ema-nuel, de 13 anos, e a Joana,um ano mais nova. A primeiravai para Hendaya e a segun-da para Bordéus. Os maridostrabalham na construção civile o comboio foi a melhor op-ção para esta viagem.

    “O avião era muito caro”,diz Maria Celeste, que já fazeste percurso pela quarta vez.A viagem em 2º classe custaapenas 74 euros. “Isto faz-sebem. Trazemos um farnel equando o sono aperta, mes-mo sentados, dorme-se namesma”. No restaurante docomboio diz que só tomou “umcafezinho”.

    Já para Maria de Fátimaesta viagem é uma estreia. “Es-tou a achar isto bom porquejá fui de autocarro e achomais confortável ir de com-boio …embora o autocarroseja mais barato”. Os miúdos,que se entretêm com os tele-móveis e os sms, estão de acor-do. Desentorpecer as pernasno corredor, ir à casa de ba-nho ou ao bar, é uma vanta-gem que só o comboio podeoferecer.

    O acaso juntou no mesmocompartimento outra mãe comum filho, este de 15 anos, quevai também visitar o marido.Alexandra Alexandre vem deLisboa e vai sair em Burgos.Não pode descuidar-se com osono pois a hora de chegadaé ingrata - às três da manhã -mas mesmo assim acha que ocomboio foi a melhor opção.

    “Pagamos 180 euros ida evolta, mas o avião era maiscaro, só ia até Valladolid edepois ainda tinha que ir deautocarro para Burgos”, ex-plica.

    Nesta altura já o SudExpresso sobe vigoroso a linha daBeira Alta. Já não precisa demudar de locomotiva na Pam-pilhosa porque todo o percur-so português é electrificado ea mesma máquina reboca acomposição até Vilar Formo-so. Solitário, indiferente, ao quese passa nas carruagens quereboca, o maquinista tem osolhos postos na luz que varrea escuridão uns escassos me-tros à sua frente. As duas tirasde metal que são os carris malse distinguem. Sucedem-se ostúneis, as curvas, as pontes, asestações iluminadas no meiodo nada com as plataformasvazias, que passam velozes.

    O traçado é sinuoso, mas alinha da Beira Alta já foi mo-dernizada e, mesmo sendo emvia única, tem elevados índi-ces de segurança. O célebredesastre de Alcafache seriahoje impossível de acontecerporque o tráfego ferroviário écontrolado à distância atravésde sistemas informáticos quemonitorizam o percurso doscomboios.

    O próprio maquinista limita-se a ser um “gestor da condu-ção”. A velocidade a que deveseguir é-lhe imposta por umcomputador de bordo, o esta-do dos próximos sinais é-lhecomunicado antes de se apro-ximar deles e à mínima falha aprópria máquina lança avisose, no limite, faz parar a compo-sição.

    Santa Comba Dão, Nelas,Mangualde, Celorico, Vila Fran-ca das Naves, Guarda. Por quepára tantas vezes um comboiorápido? Porque esta é uma re-gião de emigrantes e histori-camente este é o comboio queos levou para terras de França.A tradição já não é o que era,mas nesta sexta-feira as garesestão cheias de gente que oespera. Muitos aguardamquem chega de Lisboa ou deCoimbra. E outros para embar-car e fazer uma longa viagem.

    Cento e trinta é a velocida-de máxima que o Sud alcançaem Portugal. A linha permitemais, mas as carruagens éque não. Ainda assim, a sen-sação de velocidade é gran-de, os tímpanos ressentem-seà entrada dos túneis e a trepi-dação nas agulhas pode as-sustar quem não está habitua-do a viajar na locomotiva por-que esta abana e dá solavan-cos que não se sentem nascarruagens de passageiros.

    De vez em quando um regi-onal ou um comboio de mer-cadorias em sentido contrárioaguarda a passagem do Sud

    numa linha de resguardo, emjeito de submissao. Só por umavez, num apeadeiro esqueci-do, o comboio encosta eaguarda - no meio do nada -pelo Intercidades da Guarda.No silêncio da noite, ouve-seprimeiro a vibração dos carrise vê-se depois a luz ao longeque rapidamente se aproxima.Um furacão passa veloz, comgrande estrondo e, subitamen-te, outra vez o silêncio da noitegelada.

    O sinal vermelho, entretan-to, deu lugar ao verde, e o SudExpresso retoma a sua mar-cha. Em Vilar Formoso seráentregue aos espanhóis. Umapesada e barulhenta locomo-

    tiva a diesel é engatada à com-posição e irá rebocá-lo, duran-te toda a noite, até Hendayaonde chegará às 7h10.

    Bacalhau à Lagareiro com batata amurro. Em que outrocomboio do mundo se poderácomer uma tal ementa? Sopade legumes, pudim, fruta daépoca, café, vinho tinto. Vinteeuros é quanto custa este jan-tar, servido com um toque per-sonalizado por funcionáriosque há muito anos estão habi-tuados à restauração sobrecarris. Só a experiência permi-te transportar uma travessa de

    comida ou servir as bebidassem partir nem entornar nadaquando uma curva mais aper-tada provoca um safanão nacarruagem, a passagem deuma agulha faz saltitar os pra-tos, ou uma frenagem bruscaobriga a um equilíbrio de per-nas para manter tudo na verti-cal.

    O cliente pode ainda optarpor uma lasanha de salmão ouperninhas de frango com fari-nheira. Qualquer dos pratos éacompanhado de batata cora-da e espinafres salteados. Umbife com batatas fritas tambémse arranja, ali mesmo prepa-rado na cozinha do comboio.

    A hora do jantar é precedi-da pelo toque de uma sinetaque um empregado faz bada-lar ao longo de toda a compo-sição. É o ponto alto da viagem.No Verão e em épocas de mai-or procura o restaurante do Sudganha até algum glamour comas mesas cheias de gente ani-mada que faz prolongar o jan-tar pela noite dentro em tornodos digestivos.

    Com bom tempo, janta-seao entardecer vendo a serrada Estrela ao longe, intervala-da pelos escarpas rochosas degranitos que quase tocam acomposição quando esta ir-rompe pelas trincheiras. Há

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    estações que passam a correrpor esta tela que é a janela docomboio e outras onde a situ-ação se inverte e o restauran-te é como um aquário ilumina-do exposto à curiosidade (e aalguns olhares invejosos) dosque estão nas plataformas dasgares.

    Mas hoje são escassos oscomensais. Há algumas famí-lias com crianças pequenas,uns poucos clientes habituais(um passageiro que viaja decomboio de Lisboa para Dus-seldorf), homens solitários.

    O bar tem mais procura.Bebe-se cerveja e sumos. Pe-dem-se uma sandes.

    Nesta carruagem encon-tram-se emigrantes e imigran-tes. “Portugal está ruim, nãohá trabalho e quando hápaga-se mal”, dizia Maria deFátima quando contava que iavisitar o seu homem, emigran-te do século XXI que trabalhana construção civil em França,como o fizeram os portugue-ses dos anos sessenta do sé-culo passado.

    Mas também no Sud circu-lam africanos e sul-america-nos, sobretudo brasileiros. Nãopor acaso, no dia seguinte, emHendaya, a polícia francesaesperará os passageiros des-te comboio que vem do Sulpara pedir identificações. E emPortugal, contrariando o espí-rito do código de fronteiras doespaço Shengen, o SEFaguarda regularmente o SudExpresso em Vilar Formoso ouem Santa Apolónia para pedirpassaportes. Não raras vezes,há um passageiro, normal-mente de tez escura, que ficadetido na fronteira.

    Amib Mosaad tem 30 anose é egípcio. Regressa a Parisdepois de ter trabalhado cincomeses em Portugal. Pagou 168euros pela viagem em 2ª clas-se.

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    Américo Rocha, 45 anos, vaipara Bayonne visitar familiares.“Para a próxima se calharvou de avião, que isto é mui-ta hora no comboio”, diz. Énormal para quem, como afir-ma, não viaja de comboio des-de criança. “Pensava que istofosse um bocadinho melhor.Tenho estado a mandar men-sagens para a minha filha acontar a viagem”.

    A CP ainda não sabeo que fazer comeste comboio que évelho e dá prejuízo. Mas quetem História, cumpre uma fun-ção social e, sobretudo, tem umpotencial de mercado que épreciso explorar.

    As carruagens avariam-sefrequentemente e já tem acon-tecido os passageiros refugia-rem-se no restaurante porqueo aquecimento falhou. Os com-partimentos de 2ª classe já nãorespondem aos padrões deexigência actuais – são aper-tados e incómodos para via-gens nocturnas.

    Enquanto isto, as low co-ast aumentam a sua oferta eos autocarros conseguempreços mais baratos. A Ren-fe, que explorava o Sud Ex-presso em parceria com a CP,desinteressou-se e deixou oónus da questão para a trans-portadora portuguesa que éa única responsável por esteserviço diário desde Janeirode 2006. Os espanhóis limi-tam-se a assegurar a tracçãono seu território.

    A procura tem vindo a di-minuir. Em 2002 o Sud trans-portou em serviço internaci-onal 165 mil passageiros,mas no ano seguinte já sóeram 122 mil, em 2004 atin-giu 109 mil e desde entãoestabilizou nos 100 mil pas-sageiros. No percurso nacio-nal (entre Lisboa e Vilar For-

    moso) transporta, contudo, 70mil passageiros por ano e nopercurso exclusivamente es-panhol 15 mil.

    O seu mercado é heteró-geneo: desde um segmentomédio-alto que aprecia estetipo de viagens com sabor aaventura, às pessoas quetêm medo de andar de avião(os funcionários do comboiogarantem que não são pou-cas), emigrantes, jovens deinter-rail e, mais recentemen-te, estudantes do Erasmus.

    A CP tem duas alternativaspara o futuro deste comboio.Um up grade à situação ac-tual, com modernização dascarruagens, dotando-as declimatização e interiores maisadequados a viagens de lon-go curso, ou a compra decomposições Talgo para rea-lizar um comboio-hotel idên-tico ao que circula entre Lis-boa e Madrid. Esta soluçãoteria ainda a vantagem depoder ligar directamente Lis-boa a Paris sem mudar decomboio pois estas compo-sições adaptam-se aos doistipos de bitola.

    O problema maior é fácil deexplicar - a CP não tem di-nheiro e o seu accionista (oEstado) não tem sido gene-roso a dotá-la com os meiosnecessários para renovar asua frota. Nas últimas déca-das, Portugal sempre tevemais dinheiro para auto-es-tradas do que para o transpor-te ferroviário.

    E depois há ainda um pro-blema de horário. A empresareconhece que há um merca-do interessante no eixo Sala-manca, Valladolid, Burgos, SanSebastian que poderia viajarde comboio para Portugal. OSud é a única ligação directa,mas atravessa Espanha denoite, a horas impróprias paraum bom serviço comercial.

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    I mpróprio é tambémser-se acordado àsseis da manhã e nãose ter direito a um duche(um “luxo” que o Talgo ofe-rece aos passageiros daprimeira classe). Felizmen-te a água jorra abundanteno lavatório do comparti-mento e o café servido norestaurante é português. Astorradas estão quentinhase o corpo e a alma retem-peram-se e reconciliam-secom o mundo.

    Mundo que, porém, tar-da em clarear. Atravessa-se o País Basco e quandonão se mergulha nos tú-neis dá para ver atravésdas luzes amareladas dascidades uma paisagem in-dustrial onde ainda há fu-mos de fábricas e monta-nhas de sucatas. Em SanSebastian a linha acompa-nha o porto marítimo quecomeça a ganhar vida, masem breve o Sud Expressochega à fronteira espanho-la de Irún, pára por uns mi-nutos, cruza uma ponte eimobiliza-se, às 7h10, nagare de Hendaya.

    Aquela estação não é omelhor cartão de v is i tafrancês. Conserva toda asua estrutura da Europacom fronteiras. As gradesque separam as platafor-mas dos comboios espa-nhóis das dos francesesmantêm-se. E um subter-râneo esconso terminanuma escadar ia ondepassageiros sonolentos,carregados de sacos emalas , se acumulam etravam o passo porque, láem cima, os polícias fran-ceses efectuam o contro-lo dos passaportes.

    O TGV nº 8524 faz a suaentrada na estação qua-se sem se dar por ele. Éum “bicho” prateado defoc inho pon t iagudo . Acomposição é ladeada dejanelinhas estreitas quedeixam antever um interi-or com um design estili-zado , ag radáve l , ondepredominam as cores ro-xas, pontuadas de cinzen-to e laranja. Entre a velhacarruagem portuguesa fa-bricada nos anos setentana Sorefame e estes veí-culos franceses a diferen-ça é abismal.

    Des i l uda -se , po rém,quem julgue que uma vi-agem no TGV é uma ex-per iência emocionante.Há mais história e históri-as no Sud Expresso quef icou para t rás, do queneste asséptico comboioque circula, para já, ape-nas a 160 Km/hora comuma cl ientela nem bemnem mal humorada, deli-cada sem ser simpática,sonolenta quanto bastepara que, em breve, a vi-agem decorra silenciosae monótona por entre uma

    paisagem igualmente de-sinteressante.

    Em S t . Jean-de -Luzainda se vê uma nesgade mar, mas a estação deBiarritz já fica longe dacosta e agora é só a pla-nície que mal se avistana madrugada.

    Em Bayonne, onde oTGV chega às 8h33, oSol cumprimenta os via-jantes, mas a modorra daviagem prossegue. Nãose pode fumar e um letrei-ro indica que os telemó-veis devem estar no silên-cio. Falar ao telefone sónos intervalos entre ascarruagens, explica o re-v i so r . Uma fo rma daSNCF responder às inú-meras queixas de quemse sen t ia i ncomodadocom os toques e as con-versas ao te lefone dosoutros passageiros.

    Em Dax , às 9h10 , acomposição encosta de-vagarinho noutro TGV efo rma-se um combo ioúnico com 600 metros decomprimento. A manobraterá corrido mal porque,à partida, a voz simpáti-ca da menina da SNCFlamenta informar que háum atraso de 20 minutos.

    Em Bordéus o TGV en-che-se. Já há mais movi-mento e no bar comem-secroissants com café aulait. A paisagem deslizamais depressa porque al inha já permite os 220Km/hora.

    Mas vai ser preciso es-perar mais uma hora emeia em que nada acon-tece para o coqueluchedos caminhos-de- fe r rofranceses mostrar aquiloque vale e entrar na linhade alta velocidade ondese lançará numa correriade 300 Km/hora. O maqui-nista ultrapassará mesmoeste patamar e chegaráaos 310 à hora, lega l -mente permi t idos pararecuperar atrasos.

    Agora sente-se clara-mente a sensação da ve-locidade, mais nítida ain-da quando, já perto deParis, a linha acompanhauma auto-estrada e se ul-trapassam os carros queficam para trás como seestivessem parados.

    Às 13h45 em pon to ,com os 20 minutos dea t raso recuperados , oTGV nº 8524 entra silen-ciosamente na gare deMontparnasse onde des-peja milhares de passa-geiros. Entre eles, ape-nas uma meia dúzia vin-da de Lisboa concluiu aliuma viagem de 2000 qui-lómetros percorr ida em20 horas e 39 minutos.

    Carlos [email protected]

    Miguel Madeira/ Público

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