Uma Proposta Para o Próximo Milenio

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13 ALEA VOLUME 6 NÚMERO 1 JANEIRO – JUNHO 2004 p. 13-25 De Italo Calvino a Ricardo Piglia, do centro para a margem: o deslocamento como proposta para a literatura deste milênio Renato Cordeiro Gomes para o Edson Já é certamente lugar comum nos estudos literários e nos estudos culturais (ou, se quisermos, nos estudos de crítica cultural) lançar mão das oposições centro/margem, centro/ periferia, cosmopolitismo/nacionalismo, global/local, bem como das categorias de diáspora, deslocamento, desterrito- rialização e tantas outras. Mesmo quando esses estudos são acusados de mais uma vez se colocarem na absorção de teo- rias geradas nos centros hegemônicos, para dar conta de fe- nômenos de culturas periféricas e dependentes. Gostaria, então, desde já, de adotar o deslocamento desse tipo de pen- samento, a fim de trazer a esta praça de convites (para usar uma imagem de Drummond) uma outra proposta vinda jus- tamente da margem, que elege o ”deslocamento” como estra- tégia discursiva e ideológica para tentar enfrentar a crise da literatura no mundo contemporâneo, equacionando a litera- tura do futuro e o futuro da literatura, neste conturbado tempo pós-utópico que inaugura o século XXI. Refiro-me ao ensaio “Una propuesta para el nuevo mile- nio”, de Ricardo Piglia. Publicado no segundo número do Caderno de Cultura Margem/Márgenes 1 (outubro de 2001), 1 Uma revista que falasse a partir das margens, que procedesse, então, a um deslocamento em relação aos centros hegemônicos. Essa é a proposta de criação de Margens/Márgenes, revista cujo projeto partiu da idéia do escritor Ricardo Piglia, por ocasião de um encontro com as professoras Monica Bueno (Universidad de Mar del Plata) e Maria Antonieta Pereira (Universidade Federal de Minas Gerais). A proposta foi concretizada num projeto desenvolvido com o apoio da Fundação Rockefeller. A revista, que tem como editor Silviano Santiago e como editores-assistentes Wander Mello Miranda e Florencia Garramuño, e que pre- tende, em primeira instância, ser viabilizada a partir de pesquisas desenvolvidas principalmente fora das grandes metrópoles da Argentina e do Brasil, propõe-se a formalizar o intercâmbio entre esses dois países, com o propósito de “discutir as

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  • 13ALEA VOLUME 6 NMERO 1 JANEIRO JUNHO 2004 p. 13-25

    De Italo Calvino a Ricardo Piglia,do centro para a margem:o deslocamento como propostapara a literatura deste milnio

    Renato Cordeiro Gomes

    para o Edson

    J certamente lugar comum nos estudos literrios e nosestudos culturais (ou, se quisermos, nos estudos de crticacultural) lanar mo das oposies centro/margem, centro/periferia, cosmopolitismo/nacionalismo, global/local, bemcomo das categorias de dispora, deslocamento, desterrito-rializao e tantas outras. Mesmo quando esses estudos soacusados de mais uma vez se colocarem na absoro de teo-rias geradas nos centros hegemnicos, para dar conta de fe-nmenos de culturas perifricas e dependentes. Gostaria,ento, desde j, de adotar o deslocamento desse tipo de pen-samento, a fim de trazer a esta praa de convites (para usaruma imagem de Drummond) uma outra proposta vinda jus-tamente da margem, que elege o deslocamento como estra-tgia discursiva e ideolgica para tentar enfrentar a crise daliteratura no mundo contemporneo, equacionando a litera-tura do futuro e o futuro da literatura, neste conturbado tempops-utpico que inaugura o sculo XXI.

    Refiro-me ao ensaio Una propuesta para el nuevo mile-nio, de Ricardo Piglia. Publicado no segundo nmero doCaderno de Cultura Margem/Mrgenes1 (outubro de 2001),

    1 Uma revista que falasse a partir das margens, que procedesse, ento, a umdeslocamento em relao aos centros hegemnicos. Essa a proposta de criaode Margens/Mrgenes, revista cujo projeto partiu da idia do escritor RicardoPiglia, por ocasio de um encontro com as professoras Monica Bueno (Universidadde Mar del Plata) e Maria Antonieta Pereira (Universidade Federal de MinasGerais). A proposta foi concretizada num projeto desenvolvido com o apoio daFundao Rockefeller. A revista, que tem como editor Silviano Santiago e comoeditores-assistentes Wander Mello Miranda e Florencia Garramuo, e que pre-tende, em primeira instncia, ser viabilizada a partir de pesquisas desenvolvidasprincipalmente fora das grandes metrpoles da Argentina e do Brasil, prope-sea formalizar o intercmbio entre esses dois pases, com o propsito de discutir as

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    mas escrito um pouco antes, o ensaio elege como idia cen-tral o que chama de desplazamiento, distancia, cambio de lugar,o que significa sair do centro, deixar a linguagem falar tam-bm das bordas, no que se ouve, no que chega de outro.Esse ncleo retomado e ampliado na conferncia apresen-tada em Cuba, na Casa de las Amricas, em 2000, que cons-titui o pequeno livro Tres propuestas para el prximo milenio y cinco dificultades*, publicado em 2001 pela editora Fondo deCultura Econmica.

    Por um jogo de imaginao, essas propostas viriam com-pletar, de um ponto de vista da margem, as que Italo Calvinoformulara em Seis propostas para o prximo milnio, exatamen-te a sexta das lies americanas que o escritor italiano leriana Universidade de Harvard, mas que no tivera tempo deescrever. Ento, entre os valores ou as qualidades que a lite-ratura deveria conservar ou que deveriam persistir no futu-ro, para tornar possvel uma melhor percepo da realida-de, uma melhor experincia com a linguagem*, Calvino, comosabemos todos, elege a leveza, a rapidez, a exatido, a visibi-lidade, a multiplicidade, valores que ele consignava para aliteratura deste milnio e deixa como seu testamento liter-rio. O escritor argentino se prope a escrever a sexta, no aconsistncia, cogitada por Calvino, mas o deslocamento. For-mula Piglia:

    * (Piglia, Ricardo. Tres pro-puestas para el prximo mi-lenio y cinco dificultades.Buenos Aires: Fondo de Cul-tura Econmica, 2001.)

    Cmo poderamos nosotros consi-derar ese problema desde Hispa-noamrica, desde la Argentina,desde Buenos Aires, desde un su-burbio del mundo. Cmo veramosnosotros el problema del futuro dela literatura y de su funcin. Nocmo lo ve alguien en un pas cen-tral con una gran tradicin cultu-ral. Nos planteamos entonces eseproblema desde el margen, desde

    Como poderamos considerar esseproblema do ponto de vista daAmrica Hispnica, da Argenti-na, de Buenos Aires, de um su-brbio do mundo. Como vera-mos o problema do futuro da li-teratura e de sua funo. Nocomo o v algum em um pascentral com uma grande tradiocultural. Propomos ento esseproblema a partir da margem, da

    perspectivas transnacionais contemporneas relativas a literatura, cultura, artese poltica, a partir das margens e do local, organizando um espao de escrita ereflexo que fosse, na sua excentricidade histrica e geogrfica, metonmia dacondio sociocultural perifrica no atual processo de mundializao da econo-mia. Depois de ser um Caderno de Cultura, de que foram publicados dois nme-ros, o projeto concretizou a revista propriamente dita.

    * (: 11.)

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    A partir dessa tomada de posio, o escritor argentino pro-cura ver as vantagens que no estar no centro s vezes pro-porciona. Em seu exerccio de fico especulativa, busca ima-ginar esse valor suplementar (as vantagens de estar na mar-gem) que poderia persistir na literatura do futuro, de umaliteratura potencial, o que envolveria inferir a realidade queessa literatura postula. Para imaginar esse mundo alternati-vo, evoca a noo de comeo, de algo que abre caminho, numaperspectiva que se ancora em outro lugar (a margem). A per-gunta sobre a literatura do futuro, por conseguinte, tam-bm uma pergunta sobre o limite. A questo, como ponderaPiglia, talvez se deva ao fato de que escrever da Argentinaleva os escritores a confrontarem-se com os limites da litera-tura, o que implica refletir sobre os limites que a linguagemimpe, quando se fala de algo que est alm da linguagem(como o horror, a violncia), que aquele que fala no conse-gue fazer significar.

    Desse modo, se a primeira proposta tem a ver com a no-o de verdade como horizonte poltico e objeto de luta, asegunda est ligada noo de limite, isto , impossibilida-de de expressar diretamente essa verdade. Tomando comoexemplo o conto Esa mujer (1963), de Rodolfo Walsh2, so-bre algum que est procurando o cadver de Eva Pern,que nunca nomeada diretamente, mas o que move o rela-to, demonstra Piglia que o cadver desaparecido condensa a

    * (: 12-3.)

    el borde de las tradiciones centra-les, mirando al sesgo. Y este miraral sesgo nos da una percepcin,quizs, diferente, especfica.*

    borda das tradies centrais,olhando de vis. E este olhar devis nos d uma percepo, tal-vez, diferente, especfica.

    2 Piglia elege a figura de Rodolfo Walsh como uma sntese do que, para ele,seria a tradio da poltica hoje na literatura argentina: um grande escritor e aomesmo tempo algum que, como muitos outros em nossa histria, levou aolimite a noo de responsabilidade civil do intelectual. Assim nos apresentaWalsh: comeou escrevendo contos policiais maneira de Borges e publicou umdos grandes textos de literatura documental da Amrica Hispnica: Operacinmasacre; paralelamente escreveu uma srie de relatos curtos e por fim. como atodo movimento de resistncia clandestina ditadura militar, escreveu e distribuiu nodia 24 de maro de 1977 esse texto nico que se chama Carta abierta de unescritor a la Junta Militar. Foi assassinado no dia seguinte em uma emboscada. Suacasa foi arrasada e seus manuscritos, seqestrados e destrudos pela ditadura (Piglia,Ricardo. Tres propuestas para el prximo milenio y cinco dificultades. Ob. cit.: 14-5).

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    tenso entre o mundo do letrado, do intelectual, e o mundopopular, o mundo do outro. Afirma ele que h uma estrat-gia de deslocamento: atribuir a outro uma cena que condensae cristaliza uma rede mltipla de sentidos, indo alm da merainformao, uma vez que um movimento interno ao relatoque desloca para o outro a verdade da histria, verdade quetem a estrutura de uma fico na qual outro fala, isto , pro-pe-se a construir na linguagem um lugar para que outropossa falar. A literatura seria o lugar no qual sempre ooutro que vem a dizer. Yo soy outro, como dizia Rimbaud[lembre-se que a frase do poeta francs Je est un autre].Sempre h outro a. Esse outro o que h de saber ouvirpara que o que se conta no seja mera informao e tenha aforma da experincia*, completa Piglia no pequeno ensaioque antecedeu conferncia de Havana. Neste ensaio, h umoutro exemplo de Walsh, Carta a Vicky, em que conta amorte da filha, que lhe revelada atravs da viso de outro.O grande escritor argentino escolhe essa viso mediada paracontar uma experincia extrema e transmitir um aconteci-mento impossvel; d para isso, portanto, a palavra ao outro,um desconhecido que fala de sua dor. E assim, com esse des-locamento, pode chegar a contar esse ponto cego da experin-cia que quase no se pode transmitir.*

    Ao privilegiar el desplazamiento, la distancia, como traofundamental para a literatura do prximo milnio (em quej estamos), o escritor argentino quer, ao fim a ao cabo, dis-cutir o lugar do intelectual e do escritor, a sua responsabili-dade civil, e o futuro da literatura e as relaes entre ela e apoltica: existe uma verdade da histria e essa verdade no direta, no algo dado, surge da luta e do confronto e dasrelaes de poder*. Requer, ento, o deslocamento da obser-vao direta da realidade, para reivindicar a viso indireta,mediada por outro, por outras imagens, para se contrapor sfices oficiais, s fices do Estado. Para Piglia, a relaoentre a literatura entre o romance, escritura ficcional e oEstado uma relao de tenso entre dois tipos de narrao,pois o Estado tambm narra, tambm ele constri fices,tambm manipula certas histrias. A literatura, por seu tur-no, constri relatos alternativos, em tenso com esse relatoconstrudo e difundido pelo Estado*.

    * (Piglia, Ricardo, Una pro-puesta para el nuevo mile-nio, Margens/Mrgenes, n.2. Belo Horizonte, Mar DelPlata, Buenos Aires, out.2001: 3.)

    *(: 2.)

    *existe una verdad de la his-toria y esa verdad no es di-recta, no es algo dado, sur-ge de la lucha y de la con-frontacin y de las relacio-nes de poder (Piglia, Ricar-do. Tres propuestas para elprximo milenio y cinco di-ficultades. Ob. cit.: 30.)

    * (: 21-2.)

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    A proposta do autor de Respirao artificial funciona tam-bm como estratgia por meio da qual se percebem continui-dades e mudanas nos contatos entre matrizes locais queressaltam a margem e abalam, em graus diversos, as matri-zes dadas como universais pelo projeto expansionista do Oci-dente. As excentricidades histricas e geogrficas de que falaPiglia so, pois, deslocamentos estratgicos, distncias (cer-tamente ecoa aqui o efeito de distanciamento de Brecht, dequem Piglia retoma as cinco dificuldades para expressar averdade, aludidas nos parnteses do ttulo e que remetem aosentido poltico e crtico que quer resgatar para a literaturadeste milnio), que permitem um olhar enviesado, tornandopossvel medir diferentes direes e velocidades: o espao e otempo numa concepo que no ignora o que foi transmitidoou imposto pelo poder hegemnico, pelo Estado, e possibilitagerar descontinuidades, cortes, desvios, para alm de umarelao causalista e linear dada como hegemnica.

    O deslocamento enquanto idia regeneradora da mar-gem pode, assim, ser privilegiado como estratgia operacionalfecunda para a literatura e as culturas no hegemnicas, den-tro de determinado contexto histrico, uma vez que o concei-to de hegemonia nunca um estado permanente e nunca indiscutvel, como lembra Stuart Hall*. Tal estratgia de quea cultura da margem lana mo para resistir sua confor-mao passiva ao modelo, imposio da cpia, da seme-lhana (o fazer igual), possibilita a assuno de produtosculturais perifricos que, em dilogo e em tenso permanen-te (interna e externamente), podem fecundar a produo ar-tstica dos centros hegemnicos. As excentricidades histri-cas e geogrficas no podem, entretanto, estar dissociadasdos deslocamentos discursivos, atrelando-se, por outro lado,a marcas identitrias que a periferia constri para si numprocesso permanente, ao transformar uma provvel identi-dade estvel e seu carter essencialista numa identidade emprocesso, o que se torna uma urgncia em tempos de globali-zao econmica e homogeneizao cultural.

    Desse modo, parece que as propostas de Piglia so perti-nentes para um tempo em que a assuno das diferenas (nosomente das diversidades) e as reivindicaes a elas referen-tes, bem como a desterritorializao, ao lado de deslocamen-

    *(Hall, Stuart e outros. Cul-ture, media, language. NewYork/London: Center forContemporary Studies/Routledge, 1980: 36.)

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    tos cada vez mais intensos, por razes diversas (das migra-es ao turismo, passando pelos xodos, pelas disporas),abalam a conjuntura especfica de identidade, locao e locu-o da cultura, que tem por base uma determinao estvel eapresentvel de uma localidade, isto , que traz as marcasidentitrias fornecidas pela permanncia, pela continuida-de, pela tradio, portanto. Essa realidade ps-moderna dodesenraizamento das formas espaciais e temporais e doshomens cria espaos com limites indeterminados e irregu-lares entre e dentro de culturas, como vem estudando HomiBhabha.

    O deslocamento, que pode ser entendido como espacial-geogrfico, ou temporal, ou discursivo, associa-se noo delimite de que fala Piglia, passvel de ser conjugada proble-mtica da fronteira, que por sua vez implica a noo de trans-gresso (e vice-versa). Por essa tica, como postula HomiBhabha, as narrativas legitimadoras da dominao culturalainda estruturadas numa lgica binria de centro e perife-ria, hierarquizadora e eurocntrica, podem ser deslocadaspara revelar o que ele chama terceiro espao, em que con-vivem momentos diferentes do tempo histrico. Ou, dito comoutras palavras, a temporalidade no-sincrnica das cultu-ras nacional e global abre um espao cultural um terceiroespao onde a negociao das diferenas incomensurveiscria uma tenso peculiar s existncias fronteirias*. Essaconcepo est bem prxima do conceito de entrelugar, for-mulado por Silviano Santiago no ensaio O entrelugar dodiscurso latino-americano*, de 1971, quando, motivado pe-las teorias da dependncia, procura uma metodologia de lei-tura para o lugar de transgresso das literaturas produzi-das nos trpicos. A astcia do olhar perifrico, olhar envie-sado, que avalia a dependncia cultural para alm do econ-mico, no para neg-la, mas como atitude afirmativa capazde autoconhecer-se como valor diferencial. Um p l, outroc, num entre-lugar, lugar diferido; pensa-se uma cultura euma literatura do ponto de vista de uma provncia ultrama-rina ou dos subrbios da periferia (para usar a imagem dePiglia), reformulando conceitos etnocntricos, debilitando es-quemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade. Essedescentramento desloca a cultura europia de seu lugar pri-vilegiado de cultura de referncia postura inspirada em

    *(Bhabha, Homi. O local dacultura. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1998: 300.)

    *(Em: Santiago, Silviano. Umaliteratura nos trpicos. SoPaulo: Perspectiva, 1978.)

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    Derrida e pe em causa a descolonizao dos pensamentosbrasileiro e latino-americano. Transmutao dos valores, queo contato entre culturas diferentes provoca. Entre assimila-o e agressividade, aprendizagem e reao, obedincia e re-belio, realiza-se o ritual antropofgico da cultura latino-americana, aquele que se faz de temporalidades disjuntivas,mltiplas e tensas, temporalidade de entrelugar, que desesta-biliza o significado da cultura nacional como homognea,pois uma cultura dividida no interior dela prpria, articu-lando sua heterogeneidade e seu hibridismo*.

    Se no h referncia direta a essas questes no ensaio dePiglia, elas esto na deriva do que a postulado e permitemoutras indagaes. Como construir na linguagem o lugar emque o outro possa falar? Como transfigurar e conciliar nosdiscursos das artes, da literatura e das mdias diferentes di-rees e temporalidades?

    na busca de equacionar questes desse tipo que o ensaiode Ricardo Piglia fecundo, ao elaborar as suas trs propostaspara o prximo milnio. Ao lado do desplazamiento e da no-o de limites da literatura, ou seja, um deslocamento parao outro, um movimento ficcional para uma cena que condensae cristaliza uma rede mltipla de sentido*, o escritor argen-tino requer a claridade da linguagem como virtude (essa aterceira proposta). H um ponto extremo ao que parece im-possvel de acercar-se, como se a linguagem tivesse uma mar-gem, como se fosse um territrio com uma fronteira, depoisda qual esto o deserto infinito e o silncio, num tempo qued as boas-vindas ao deserto do real (a expresso do fil-me Matrix, dos irmos Wachowski, de 1999). Acrescenta ele:Em momentos em que a lngua se tornou opaca e homog-nea, o trabalho detalhado, mnimo, microscpico da literatu-ra uma resposta vital [...]: uma luta contra os esteretipose as formas cristalizadas da lngua social*.

    Com a mediao dessas estratgias polticas, ticas e dis-cursivas, Piglia busca resgatar a funo utpica da literatu-ra. A literatura seria um antdoto contra a peste da lingua-gem (de que fala talo Calvino, ao discorrer sobre a exati-do), que faz repetir e modular as construes monolticasda realidade e se relaciona lngua tcnica, demaggica, pu-blicitria que a sociedade imps. Seus argumentos esto bemprximos da proposta de talo Calvino, ao falar do excesso

    * (Bhabha, Homi. O local dacultura. Ob. cit.: 209.)

    *un desplazamiento para elotro, un movimiento ficcio-nal hacia una escena quecondensa y cristaliza unared mltiple de sentido(Piglia, Ricardo. Tres pro-puestas para el prximo mi-lenio y cinco dificultades.Ob. cit.: 35-6.)

    *En momentos en que lalengua se ha vuelto opaca yhomognea, el trabajo deta-llado, mnimo, microscpi-co de la literatura es unarespuesta vital [...]: una lu-cha contra los esteretiposy las formas cristalizadasde la lengua social (: 41.).

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    de imagens no mundo contemporneo. Afirma ele: Hoje so-mos bombardeados por uma tal quantidade de imagens aponto de no podermos distinguir mais a experincia diretadaquilo que vimos h poucos minutos na televiso*. A ad-vertncia contra o excesso que esvazia a experincia , entre-tanto, contrabalanada pelo que o escritor italiano propecomo uma pedagogia da imaginao, que possibilitaria re-cuperar certa essencialidade da imagem, atravs de procedi-mento que levaria a reciclar as imagens usadas, inserindo-as num contexto novo que lhe mude o significado*. Procuraressaltar a relao de dupla implicao entre a expressoverbal e a imagem, em um jogo que d conta dos processosimaginativos da criao. Busca ver o que h de imagem napalavra e o que h de palavra na imagem, mas no se tratade encontrar os processos interativos entre palavra e ima-gem; prope a visibilidade enquanto um meio transparente,atravs do qual a realidade se apresenta compreenso. Cito:

    Penso numa possvel pedagogia da imaginao que nos habitue acontrolar a prpria viso interior sem sufoc-la e sem, por outrolado, deix-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas per-mitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida,memorvel, auto-suficiente, icstica.*

    Essa inflao redita algumas vezes, em outros termos, aexemplo de quando formula a idia de uma superabundn-cia imagtica, ou seja, o dilvio das imagens pr-fabricadasque inundam a humanidade*. Afirma o escritor italiano: emnossa memria se depositam, por estratos sucessivos, mil es-tilhaos de imagens, semelhantes a um depsito de lixo, onde cada vez menos provvel que uma delas adquira relevo*.

    Como contraponto desse estado de coisas, Calvino for-mula a proposta da exatido. Para ele, exatido quer dizerprincipalmente trs coisas: 1) um projeto de obra bem defi-nido e calculado; 2) a evocao de imagens visuais, incisivas,memorveis, icsticas; 3) uma linguagem que seja a maisprecisa possvel como lxico e em sua capacidade de tradu-zir as nuanas do pensamento e da imaginao*. O que lheparece bvio tem a ver com sua ojeriza pessoal da lingua-gem usada de modo aproximativo, casual, descuidado. Talaspecto leva Calvino a formular sua teoria da peste da lin-guagem e tambm das imagens:

    *(Calvino, talo. Seis propos-tas para o prximo milnio.So Paulo: Companhia dasLetras, 1990: 107.)

    * (: 111.)

    * (: 108.)

    * (: 107.)

    * (: 107.)

    * (: 71-2)

  • 21Renato Cordeiro Gomes DE ITALO CALVINO A RICARDO PIGLIA...

    s vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingidoa humanidade inteira em sua faculdade mais caracterstica, ouseja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numaperda de fora cognoscitiva e de imediaticidade, como um auto-matismo que tendesse a nivelar a expresso em frmulas maisgenricas, annimas, abstratas, a diluir os significados, a embotaros pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite noencontro das palavras com novas circunstncias.*

    Todo esse estado de coisas seria o contrrio da exatido, objetodo culto de Calvino. E por esse vis que denuncia a peste dalinguagem e aponta o antdoto.

    No me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia [queele estende ao universo das imagens] devam ser pesquisadas napoltica, na ideologia, na uniformidade burocrtica, na homo-geneizao dos mass-media ou na difuso acadmica de uma cul-tura mdia. O que me interessa so as possibilidades de salvao.A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar anticorposque cobem a expanso desse flagelo lingstico.*

    E completa, ao constatar que a inconsistncia advinda dovrus est no prprio mundo: Meu mal-estar advm da per-da de forma que constato na vida, qual procuro opor anica defesa que consigo imaginar: uma idia da literatu-ra*. A prpria fico de Calvino prova isto: Palomar e Ascidades invisveis, por exemplo.

    Como vimos, proposta semelhante a formulao deRicardo Piglia, que busca recuperar resduos utpicos da li-teratura. O escritor argentino fala ento no paradoxo da ln-gua privada da literatura, rastro mais vivo da linguagem so-cial. A interveno poltica do escritor se define, antes de tudo,na confrontao com os usos oficiais da linguagem, naquiloque ele chama de fices oficiais. Nesse sentido que de-nuncia a obscuridade deliberada da linguagem convertidaem territrio ocupado, a que se ope, justamente, a claridadecomo virtude, que possibilita literatura minar as fices doEstado, criando as contrafices, que so fices tambm, mascom outro valor esttico, necessariamente atrelado ao tico eao poltico, porque capaz de dar a ver, ou instaurar, a possvelverdade, embaralhada nos relatos oficiais.

    No toa que, ao findar sua conferncia em Havana,evoque as cinco dificuldades para escrever a verdade re-

    * (: 72.)

    * (: 72.)

    * (: 73.)

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    queridas por Brecht. So elas: ter a coragem de escrever averdade; ter a inteligncia de reconhecer a verdade; possuira arte de tornar a verdade manejvel como uma arma; ter acapacidade de escolher aqueles em cujas mos a verdade setorna eficiente; ter a astcia de divulgar a verdade entre mui-tos, de difundi-la. Assim, o escritor argentino postula um modode imaginar as possibilidades de uma literatura futura ou aspossibilidades futuras da literatura.

    As propostas de Italo Calvino e de Ricardo Piglia, ao con-traporem-se ao excesso que eles ligam a uma espcie de v-rus que ataca a linguagem, procuram, de certa forma, resga-tar determinados valores da literatura, enquanto uso socialda linguagem, para devolver-lhe a funo utpica que per-deu com a ps-modernidade. Discutem, ao fim e ao cabo, valo-res da literatura e da linguagem em seu carter tico e pol-tico, que eles agregam ao esttico, que no vale como essn-cia absoluta fora da histria. A estratgia poltico-discursivado escritor argentino, todavia, ganha um valor suplementar,qual seja, postula um lugar da enunciao, de forma nenhu-ma neutro: a margem, as bordas das tradies hegemnicas,de fora do poder, lugar estratgico que o intelectual e escri-tor escolhe para combater as fices do Estado. Estratgiamais contundente em se tratando de literaturas latino-ame-ricanas, aquelas produzidas nos subrbios do mundo.

    Parece que os dois escritores, ao combater o excesso dalinguagem que caracterizaria o mundo contemporneo, apon-tam para o paradoxo da arte deste incio de milnio. Se oexcesso desgasta a mensagem e a verdade, por outro ladoabre possibilidades de reinveno, mas denunciam uma de-terminada economia poltica do signo, que se acomoda e in-centiva a inflao dos signos e das imagens.

    Gostaria de terminar, citando mais uma vez RicardoPiglia, com as palavras com que fecha o seu pequeno ensaioUna propuesta para el nuevo milenio (sintomaticamente,publicado num caderno de cultura denominado Margens/Mrgenes), que antecedeu a conferncia sintomaticamenteproferida na Casa de las Amricas e publicada no n. 222(janeiro-maro de 2001) da revista dessa instituio cuba-na. Cito:

  • 23Renato Cordeiro Gomes DE ITALO CALVINO A RICARDO PIGLIA...

    En el ao de 2100, cuando elnombre de todos los autores sehaya perdido y la literatura seaintemporal e annima, esta pe-quea propuesta sobre el despla-zamiento y la distancia, ser, talvez, un apndice o una intercala-cin apcrifa en un website lla-mado Las seis propuestas, que paraese entonces sern ledas como sefueran consignas en un antiguomanual de estrategia usado parasobrevivir en tiempos difciles.

    No ano de 2100, quando o nomede todos os autores estiver per-dido e a literatura for intemporale annima, esta pequena propos-ta sobre o deslocamento e a dis-tncia ser, talvez, um apndiceou uma intercalao apcrifa emum website chamado As seis pro-postas, que para esses tempos se-ro lidas como se fossem regis-tros em um antigo manual deestratgia usado para sobreviverem tempos difceis.

  • 24 ALEA VOLUME 6 NMERO 1 JANEIRO JUNHO 2004

    Palavras-chaveItalo CalvinoRicardo Pigliadeslocamentodistnciamargemfuturo da literatura

    Key wordsItalo CalvinoRicardo Pigliadislocationdistanceedgeliteratures future

    Palabras-llaveItalo CalvinoRicardo Pigliadesplazamientodistanciamargenfuturo de la literatura

    AbstractThe Italan writer Italo Calvinohas left as his literary legacy thesix proposals that would charac-terize the literature of the nextmillenium, but he had no timeto write consistency, the sixthof these proposals. The Argen-tinian writer Ricardo Piglia atthe Three proposals for the nextmillenium (and five difficul-ties), conference held at Casade las Amricas, Cuba, in 2000,proposes, therefore, to write the

    ResumenEl escritor italiano Italo Calvinoha dejado como testigo literarioseis propuestas para caracterizarla literatura del prximo mile-nio, pero no tuvo tiempo de es-cribir la sexta, justo la que lleva-ria el nombre de consistencia.El escritor argentino RicardoPiglia en su conferencia Trespropuestas para el prximo mile-nio (y cinco dificultades), hechaen la Casa de Las Amricas, Cuba,ao 2000, intenta escribirla no

    Renato Cordeiro GomesDoutor em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio deJaneiro, onde professor Associado do Departamento de Comunica-o Social e do Programa de Ps-Graduao em Letras do Departa-mento de Letras. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Programa dePs-Graduao em Comunicao da PUC-Rio. Coordenador-Adjuntoda Ctedra Padre Antnio Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio, em convnio com o Instituto Cames. Publicou Todas as cidades, acidade (Rio de Janeiro: Rocco, 1994) e Joo do Rio: vielas do vcio, ruas dagraa (Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1996); organizou o volumeMarques Rebelo da Coleo Melhores Crnicas (So Paulo: Global,2004). Entre seus ltimos ensaios publicados, destacam-se Que fare-mos com esta tradio? Ou: relquias da casa velha. (Em: Margato,Izabel (org.). Figuras da lusofonia: Cleonice Berardinelli, 2002); Litera-tura e resduos utpicos: heterogeneidade cultural e representaesda cidade (Em: Schollhammer, Karl Eric e Olinto, Heidrun Krieger(org.). Literatura e cultura , 2003).

    ResumoO escritor italiano Italo Calvino deixou como testamento literrio seispropostas que caracterizariam a literatura do prximo milnio, masno teve tempo de redigir a sexta dessas propostas, justamente a con-sistncia. O escritor argentino Ricardo Piglia, na conferncia Trspropostas para o prximo milnio (e cinco dificuldades), proferidana Casa de las Amricas, Cuba, em 2000, prope, ento, escrev-la,no a consistncia, mas o deslocamento, a distncia, para equacionaro problema do futuro da literatura e sua funo na sociedade, vista,entretanto, a partir da margem, das bordas das tradies centrais daAmrica Hispnica.

  • 25Renato Cordeiro Gomes DE ITALO CALVINO A RICARDO PIGLIA...

    proposals dislocation and dis-tance in the place of consistency,aiming at solving the problem ofliteratures future and its role insociety, which is seen, however,from the edge, from the borderof Spanish Americas central tra-ditions.

    como consistencia sino comodesplazamiento, distancia, paraequacionar el problema del fu-turo de la literatura y su funcinen la sociedad, pero desde el mar-gen, desde el borde de las tradi-ciones centrales de Hispano-Amrica.

    Recebido em30/09/2003

    Aprovado em30/11/2003