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Tiago Morini

Uma noite e seis semanas

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Cópia licenciada para

M. Loureiro

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Todos os direitos reservados ao autor.

Esta obra está registrada no Escritório de Direitos Auorais da

Fundação Biblioteca Nacional – EDA/FBN sob o n. 590.082, livro

1.128, pg. 387, sendo vedada a publicação, reprodução e distribuição

sem autorização prévia e expressa.

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Advogados, médicos, bombeiros, mecânicos, eles é que ficavam com

a grana toda. Escritores? Os escritores morriam de fome. Os

escritores se suicidavam. Os escritores enlouqueciam.

— Charles Bukowski

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Prólogo

O que foi unido pelo destino não pode ser separado pela

vontade humana ou divina, mas apenas por ele próprio, e, embora

esta condição peculiar se pareça em muito com uma criança

brincando de jogar dados, não há quem escape da sua sorte. Foi num

desses lances que Leila e Mariane se conheceram, com a disputa do

único exemplar de um livro qualquer numa das livrarias na cidade de

Jardim do Norte, tornando-se, desde então, companheiras

inseparáveis.

Leila tinha o livro em mãos, mas o deixara de lado para

folhear algum outro que chamara sua atenção. Quando deu por si, ele

desaparecera. Cogitou de algum funcionário tê-lo devolvido à

prateleira de origem e voltou ao local onde o encontrara, sem, no

entanto, achá-lo novamente. Conversou com o atendente, mas nada.

Decepcionada com o próprio descuido e certa de que o tinha perdido

para sempre, escolheu outro título. Apenas quando se dirigiu a fila do

caixa, notou uma garota com o livro e precipitou-se na direção dela.

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─ Esse livro é meu! – disse Leila pouco convencida de si.

A garota olhou para Leila, depois para o livro, e novamente

para Leila um tanto incrédula com a cena.

─ O livro só é seu quando pagar por ele – respondeu a moça.

─ Eu estava guardando ele e me distraí... - tentou argumentar

Leila – Ele é o último exemplar da loja. Eu preciso dele.

─ Olha só, desculpe, mas eu também quero o livro –

respondeu dando as costas sem chance de resposta.

Derrotada e cabisbaixa, Leila largou o livro que segurava em

uma prateleira ao seu alcance e foi embora. Caminhava distraída na

rua, reconstruindo a discussão que tivera minutos antes, em que,

nela, vencia a garota, quando escutou uma voz atrás de si gritando.

─ Vermelha! Ei... Menina vermelha. Espere um pouco.

Olhou sobre os ombros, e viu a garota da livraria em passos

apressados, vindo em sua direção. Pensou em ignorá-la, mas não

conseguiu. Quando foi alcançada, esperou que ela falasse.

─ Desculpe – começou ela – não pretendia ser grossa, mas eu

queria muito esse livro, também.

─ Tudo bem – respondeu calma – você já tem o livro.

Virou e começou a caminhar.

─ Espere Vermelha – segurou-a pelo ombro.

─ Meu nome é Leila, não Vermelha.

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─ Tá bom, Leila, desculpe. Se você quiser, posso te emprestar

o livro, após eu ler. Claro, desde que você me empreste algum seu –

respondeu sorrindo – A propósito, meu nome é Mariane.

Leila ficou pensativa por um tempo. Sentia-se magoada por

ter perdido o livro, por sua distração costumeira, e não queria parecer

fraca, mas acabou por ceder aos tolos impulsos que a impediam de

discutir com os outros e deu seu número de telefone à garota,

anotando o dela.

Dois dias depois, Mariane ligou. Conversaram por quase uma

hora como se fossem amigas de infância. Ela falava por ambas,

enquanto Leila se prestava a responder uma ou outra pergunta

monossilabicamente. Mesmo assim, aquilo a deixara feliz. Há

tempos não conversava com alguém próximo da sua idade. Mesmo

tão nova, a vida exigia muito dela e isso a fez esquecer o que uma

menina de quinze anos deveria desejar ou fazer. Tinha estudado o

ano anterior em casa e, naquele ano, abandonara o colégio. Mas não

contou nada sobre si, apenas combinou a troca dos livros no sábado à

tarde, na sua casa.

Vista da rua, o aspecto era de uma casa de bonecas. Pequena,

toda feita de madeira, paredes na cor salmão, janelas brancas e uma

varanda que se projetava para frente. Não havia muros ou cercas no

terreno, e o jardim com rosas, cravos brancos, orquídeas, e outras

flores que Mariane não conhecia, ornamentavam a frente da casa.

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Um caminho de cascalhos levava à varanda, onde Leila estava

sentada, abraçada aos seus joelhos, chorando.

Mariane precipitou-se em sua direção sem pensar, sentou ao

seu lado e pôs a mão em volta dos ombros de Leila, afagando-a

desajeitadamente.

─ Se eu soubesse que o livro era tão importante teria trazido

antes pra você, Vermelha – disse Mariane num tom suave, e um

sorriso leve no rosto.

Leila forçou um sorriso infeliz.

─ Desculpe – respondeu – devia ter ligado pra você não vir.

─ Você quer ficar sozinha? Eu vou embora, combinamos

outro dia, não tem problema.

─ Não. Por favor, fique! – disse Leila com a voz lúgubre.

Mariane a abraçou com mais firmeza. Não sabia o que se

passava com ela ou o motivo de sua tristeza, mas sabia que seria

indelicado perguntar. Não restava mais nada a fazer, senão ficar ali,

dispondo o ombro para que Leila chorasse. O silêncio era rompido

apenas pelo fungar melancólico de Leila, até que o ranger da porta

atrás delas sobressaiu-se a sua respiração pesada. Leila levantou-se

num salto e limpou as lágrimas com as costas da mão. Da casa saiu

uma senhora esguia de meia idade, com olhos tão escuros quanto a

cor da própria pele. Leila fitou-a em busca de alguma resposta,

algum sinal, uma pista no semblante dela que pudesse indicar as

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palavras a seguir. A mulher a abraçou. Lágrimas fluíram pelo rosto

de Leila como um rio.

─ Ela está bem, querida. Precisa descansar um pouco, mas

está bem – disse a mulher, apoiando a mão sobre a cabeça de Leila –

Os remédios contra dor perderam o efeito. Apliquei um pouco de

morfina para que ela pudesse descansar. Amanhã de manhã, volto

para ver como ela está. Tudo bem?

─ Obrigada, Andrea – agradeceu Leila, soltando a mulher.

Andrea passou por Mariane e cumprimentou-a com um

sorriso breve. Desceu a escada de três degraus, atravessou o jardim

pelo caminho de cascalhos, depois a rua, e entrou na casa logo em

frente.

─ Preciso ver minha mãe, vamos entrar – disse Leila.

Mariane a seguiu.

A porta de entrada dava para a sala, que não possuía qualquer

luxo além de dois sofás velhos e uma estante cheia de livros cobrindo

toda uma parede. Mariane ficou impressionada com a biblioteca da

casa. Precisaria de duas vidas para ler todos esses livros, pensou

ela, e, também, reparou que não tinham televisão, ao menos não ali.

A sala terminava em um balcão que servia como mesa e, do outro

lado, a cozinha, com móveis tão simples quanto o cômodo anterior.

A casa por dentro parecia ainda menor do que vista por fora, dado

que os móveis tomavam maior parte de seu espaço interno. Passaram

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pela cozinha e entraram num pequeno corredor a direita, e por uma

porta entreaberta a esquerda, indo para um quarto grande, bem

arejado e iluminado. Lá, Clarice, a mãe de Leila, dormia um sono

pesado. Sua aparência era assustadora, um saco de ossos, sem cabelo

e tão pálida quanto um cadáver. Quando a viu, Mariane recuou um

passo, chocada com a cena. Parou à porta e observou Leila sentar-se

ao lado da mãe, cobrindo o corpo com um lençol branco até a altura

do pescoço, deu um beijo na face. A tristeza de Leila era visível,

quase palpável.

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I

Em um lago afastado de toda civilização, lugar calmo e

sossegado, envolto em montanhas arborizadas, pássaros cortavam o

céu sem pressa, aproveitando os raios quentes de sol. A abóbada

celeste de um azul intenso, levemente manchado pelos tons brancos

das raras nuvens, confundia-se com o azul cristalino da água que se

encontravam no horizonte, ambos contrastados pelo verde das

montanhas que cercavam aquele mar de água doce. Tudo era

perfeito. Nada se sobrepunha à beleza da paisagem, uma verdadeira

obra de arte.

Sentada a beira de um píer com os pés suspensos sobre a

água, Leila observava Mariane nadar, deslizando pela superfície tão

naturalmente quanto um peixe, como se fizesse parte daquele lugar.

Sentia-se feliz como nunca em toda sua vida. A mãe, sentada em

uma toalha na beira do lago, lia Macbeth. Às vezes levantava os

olhos em sua direção, sorria, acenava, e voltava a se concentrar na

leitura.

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Ver Clarice entristeceu o coração de Leila e lágrimas

correram pelo seu rosto. Sem qualquer controle, seu peito tornou-se

pequeno e apertado. Desejava levantar e correr até ela. Abraçá-la.

Beijá-la. Dizer que a amava. Mas ficou paralisada. Seu corpo não a

obedeceu. Sentiu-se envergonhada por chorar e virou seu rosto para a

água, evitando que a mãe ou Mariane a vissem chorando.

Enquanto fitava a água, viu no fundo do lago a silhueta de um

objeto pequeno. Ora parecia uma de suas bonecas que ornamentavam

seu quarto, ora um peixe, ora, ainda, apenas seu próprio reflexo em

tons vermelhos. Inclinou-se no píer para alcançar a coisa, mas sequer

tocou a água. Debruçou-se com metade do corpo apoiado sobre na

madeira e a mão esquerda segurando uma das vigas que sustentavam

o píer, enquanto a outra tentava inutilmente alcançar a água.

Desequilibrou-se e caiu. O tempo desacelerou na queda. Seu olhar

cruzou com o de sua mãe. Não se preocupe querida, ficará tudo bem,

dizia o olhar doce e distante de Clarice. A água era quente e

aconchegante.

Na superfície, procurou por Mariane certa de que estaria

rindo da sua trapalhada. Não a encontrou. Esquecida da vergonha e

da tristeza, respirou fundo e mergulhou para alcançar o estranho

objeto. Nadou em direção a ele; nadou e nadou, e nadou mais ainda,

com força e determinação, mas o objeto parecia distanciar-se na

mesma medida que ela se aproximava. Seus pensamentos diziam

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para ela voltar à superfície e respirar, mas seu corpo, não; seu corpo

dizia que poderia ficar ali para sempre se desejasse.

Virou-se em direção à superfície e notou um rastro vermelho-

escuro, fluindo entre suas pernas. Sangue. Ele afundava lenta e

vagarosamente até tocar o chão. O pânico tomou conta de Leila.

Desesperada, tentou nadar para a superfície em vão.

Viu o sangue tocar o fundo do lago e semeá-lo. Da terra

brotou uma ilha que se elevou muito acima do nível da água, até

perto das poucas nuvens no céu. Por todos os lados, lama. Tudo que

existia ali antes dela cair, árvores, flores, pássaros, animais silvestres,

a beleza do lugar, sumira. Olhou a sua volta. Procurou pela mãe e por

Mariane. Quando se viu sozinha, desamparada num ambiente

estranho, pôs-se a chorar novamente. Suas lágrimas vermelhas

manchavam seu rosto, sua pele.

Um vasto emaranhado de troncos e galhos secos e corpos de

animais apodrecidos por todo lado surgiu debaixo dos seus pés,

prendendo-os no barro lamacento e negro daquela ilha sem vida. O

sol dera lugar à noite sem estrelas ou lua e o ar exalava o odor ocre

da morte. Tentou em vão soltar seus pés presos na lama. Sequer

conseguiu movê-los.

Ao longe, na noite densa e carregada, percebeu um

movimento; um vulto negro como a própria noite vindo lentamente

em sua direção. Aflita, tentou correr, mas sequer se moveu. E era

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tarde. Foi jogada ao chão e montada pela criatura da noite. Leila

tentou chamar por socorro e a voz falhou num grito mudo. Seu

biquine foi arrancado. Nua, ela tentou lutar sem forças. Seu corpo foi

invadido, violentado, corrompido, e nada pode fazer para se

defender. O tempo se arrastou até que, satisfeita, a criatura a deixou.

Desconsolada, suja em corpo e espírito, finalmente gritou; gritou até

seus pulmões arderem em chamas; gritou até o ar faltar e seu peito

adormecer; gritou até acordar em um quarto desconhecido, sem

lembrar como ou porque estava ali. Sua cabeça latejava de dor e a

claridade que trespassava pela janela queimava seus olhos. Pensou

em se levantar, pedir ajuda, mas, antes que se mexesse, a porta do

quarto se abriu.

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II

Ao amanhecer de agosto, o cheiro doce de frutas frescas, leite

de soja e bolo de cenoura inundava o pequeno apartamento de quatro

cômodos enquanto Leila preparava o café da manhã,

desequilibrando-se sempre que Zíper se enroscava em suas pernas,

reclamando, com a paciência pertinente aos felinos, que ela lhe desse

alguma comida e um pouco de atenção.

─ Calma, Zíper, deixe a mamãe fazer o café - falava para o

gato.

─ Miiaaauuuu... – exigia ele – Miau.

Leila quase não dormira aquela noite. Tal como nas noites

anteriores das últimas duas ou três semanas, estivera excessivamente

cansada por nada, tirando cochilos durante parte do dia e

desregulando seu sono noturno. Quando dormia, tinha pesadelos.

Mesmo assim, apesar de ter acordado muito antes das seis da manhã,

estava animada e disposta para o primeiro dia no estágio, que

prometia ser tão agradável quanto o frio daquela manhã.

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Distraída, assustou-se quando o despertador ressoou

quebrando o silêncio da manhã. Tentou correr e quase caiu ao

atropelar o gato, que sibilou em resposta. Desajeitada, seguiu aos

tropeços, segurando as toalhas que envolviam seu corpo magro cheio

de sardas e seus cabelos ruivos, para desligá-lo. Antes de entrar no

quarto, Mariane já o tinha em mãos. Sonolenta, com o rosto inchado,

cabelos negros desgrenhados e olhos semisserrados, ela lutava com o

aparelho para silenciá-lo. Quando conseguiu, lançou um olhar pouco

amigável à Leila que aparecera na porta do quarto.

─ Merda, Leila, custa desligar o despertador antes de

levantar? – olhou para o relógio – Nossa! Ainda são seis horas da

manhã, ninguém merece, viu? – Enfiou-se por completo embaixo da

coberta.

─ Ah, Tilla, desculpe – respondeu ela, com a voz suave e

aveludada, enquanto subia na cama – Eu fiz o café da manhã pra nós

– Tentou tirar a coberta do rosto de Mariane para beijá-la, mas ela

não deixou.

─ Você não vai me comprar com comida – respondeu

Mariane com a voz abafada pelo cobertor.

Leila deitou ao lado de Mariane e descobriu suas pernas,

pousando a mão fria na parte interna da sua coxa esquerda, subindo-a

delicadamente e a transpondo por baixo de seu pijama de seda até

alcançar a virilha e, depois, o sexo dela.

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─ E com sexo, senhorita Montanez? – perguntou ela - Eu

posso comprá-la com um pouco de sexo oral?

Mariane Castillo Montanez era pouco mais alta e dois anos

mais velha do que Leila, tinha o corpo naturalmente bronzeado,

pernas bem torneadas, cintura fina, seios fartos e firmes. Longos

cabelos lisos, negros e brilhantes. Sempre esbanjou beleza e

inteligência, instigando o desejo dos homens e a inveja das mulheres.

Detentora de personalidade forte e riso fácil, seus olhos cor de mel

refletiam com facilidade seu humor. Leila Rossastro, por outro lado,

era magra, com seios pequenos e rosados, tez branca e salpicada por

sardas. Frequentemente exibia arranhões feitos por Mariane, ou pelo

gato delas, Zíper. Sempre fora distraída, desengonçada e tímida, mas

aos vinte e cinco anos de idade, seus traços exóticos garantiam

muitos admiradores. Raramente sorria e sempre levava no rosto uma

expressão triste e distante, como se o mundo a deprimisse. Iguais às

peças de um quebra-cabeça, elas complementavam uma a outra.

─ Acordar cedo nas férias pode não ser tão ruim assim – disse

Mariane, livrando-se da coberta.

Antes de receber uma resposta, a chaleira silvou na cozinha,

quebrando o clima.

─ Tenho que tirar a chaleira do fogo – disse Leila.

─ Ah não, gata! Logo agora? – protestou Mariane.

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─ Vamos tomar café, prometo recompensar você depois –

respondeu beijando-a.

Mariane tentou agarrá-la para impedir que saísse dali, mas

Leila se esquivou com agilidade e correu em direção à cozinha,

tirando qualquer chance dela segurá-la. Parou na porta e, com uma

mão apoiada no caixilho, despiu-se sensual e vagarosamente da

toalha, revelando seu corpo nu, branco como o leite, decorado por

uma tatuagem ao lado de seu seio esquerdo - La Calavera Catrina

envolta em rosas vermelhas cujos ramos estendiam-se até pouco

abaixo de sua cintura -, e um tufo de pelos cor de abóbora em seu

sexo.

Um sorriso tênue de desejo marcou o rosto de Mariane e,

como um gato à espreita de sua presa, levantou-se sem qualquer

pressa, engatinhando sobre a cama e mantendo o olhar fixo nos olhos

verdes de Leila, agarrando-a num pulo. Leila entregou-se ao abraço

forte de Mariane sem qualquer resistência, ignorando a água fervente

no fogo.

Apenas muito tempo depois, ainda aninhada nos braços de

Mariane, Leila se lembrou da chaleira no fogo, levantou-se num

átimo para tirá-la do fogão. A água se evaporara por completo.

Desligou o fogo e colocou a chaleira dentro da pia, na água. O

choque térmico levantou uma nuvem de vapor. Leila se assustou,

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derrubando um copo que estava na pia, que se estilhaçou ao cair no

chão.

─ Linda, cuidado para não destruir a casa! – gritou Mariane

do quarto, rindo.

Leila não respondeu à provocação.

O gato, um sphynx magro, sem pelos, de pele rosada, com

olhos e orelhas desproporcionais a sua cabeça, fazendo-o parecer um

filhote de rato, estava em cima da mesa, observando as trapalhadas

de Leila, com um pedaço de queijo parcialmente comido entre as

patas.

─ Zíper! - brigou com o felino enquanto ajeitava a bagunça -

Que feio, já disse para você não subir na mesa! Vamos. Pro chão. Já!

Injustiçado, soltou um miado longo, e pulou de cima da mesa

para a cadeira, e da cadeira para o chão, levando consigo o queijo.

Após o café da manhã, Leila foi se vestir para o primeiro dia

no estágio, optou por um terninho de cor preta, e uma camisa de seda

branca. Elegante e discreta. Estava nervosa, por nunca ter pisado em

um escritório de advocacia antes, e, agora, trabalharia em um. Não

possuía qualquer experiência. Na faculdade, recém acabara o

primeiro semestre, onde teve aulas sobre filosofia, sociologia, ciência

política e até introdução ao direito, mas nada que fizesse saber como

era a rotina de um advogado. Ao menos, ainda tinha uma semana de

férias, então não ficaria sobrecarregada com a faculdade e o estágio.

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Isso a deixava um pouco mais confiante, e, também, por ter

melhorado das tonturas e da fadiga excessiva que a acometera nas

últimas semanas. O fim do semestre consumiu todas as minhas

energias, pensava ela enquanto se arrumava, mas, agora, estou nova

em folha. Sorriu para o espelho.

Mariane vestiu sua calça legging preta, um top e uma

camiseta branca de algodão com alcinha. Aproveitaria a manhã para

caminhar e correr no parque da cidade. Costumava se exercitar com

mais frequência, mas, nos últimos meses, sempre arrumava alguma

desculpa para evitar sair de casa, preferia ficar lendo um livro ou

vendo um filme na companhia de Leila. Agora que conseguira uma

quinzena de férias do seu trabalho, pretendia retomar os exercícios

físicos. Desde a última vez em que entrou numa farmácia para se

pesar, tinha engordado mais de um quilo. Um castigo dos deuses por

ser tão descuidada comigo mesma, dissera ela à Leila ainda naquele

final de semana.

─ Vamos Vermelha, você vai se atrasar, linda! – gritou

Mariane, que já estava à porta com as chaves na mão esperando por

ela – Já são quase sete e meia.

─ Estava procurando meu brinco. – respondeu Leila, vindo

em direção à porta – Como estou? – parou a sua frente para que

Mariane pudesse avaliar.

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─ Mais linda do que nunca, gata – respondeu, dando-lhe um

beijo no rosto para não borrar o batom.

O apartamento em que moravam fazia parte de um prédio

simples e mal cuidado de três andares. A tinta das paredes estava

desbotada pelo tempo, com infiltrações e, em algumas partes, o bolor

tinha dado à parede tons verde-amarelados, onde, antigamente, o que

predominava era o azul-claro. O terceiro andar, apesar de longe da

perfeição, era o mais limpo e bem cuidado. Algo que se devia ao

vizinho do apartamento doze, no primeiro andar, Seu Miguel, um

viúvo aposentado que, volta e meia estava trocando uma lâmpada,

arrumando a fiação elétrica, lixando uma parede ou ajudando outros

moradores do prédio. Sua presteza compensava em muito seu humor

ranzinza ao qual todos já estavam habituados.

No piso térreo, defronte ao apartamento do Seu Miguel,

moravam o senhor e senhora Hermann, um casal de idosos muito

simpáticos, os mais antigos moradores do lugar. A saúde debilitada

do casal os impedia de sair do apartamento com muita frequência,

então, pelo menos uma vez por semana, Leila e Mariane os visitavam

para levar compras, remédios ou apenas lhes fazer companhia por

algumas horas.

O prédio era um bom lugar para se morar, senão pela

qualidade ou cuidado da estrutura, mas pelas pessoas que ali

moravam. Ninguém parecia se importar por elas serem lésbicas, ao

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menos, se alguém se importava, não deixava transparecer. Alguns

mal as cumprimentavam, mas isso não era um privilégio delas,

outros, um singelo aceno de cabeça ou, quando muito, um oi

acompanhado de um comentário sobre o tempo. Ninguém tinha por

hábito meter-se na vida alheia, e todos se respeitavam, por isso,

raramente via-se algum vizinho discutindo com outro, com exceção

do senhor Miguel que distribuía sermões a todos pelo descuido que

tinham com o edifício.

O centro da cidade de Jardim do Norte ficava a quinze

minutos de carro e quarenta minutos de ônibus; e o bairro contava

com mercado, padaria e uma farmácia. Seria impossível para elas

encontrarem um local melhor com aluguel tão barato quanto

pagavam ali.

Desceram as escadas até o térreo, passando pelo Seu Miguel

no segundo andar.

─ Bom dia, Seu Miguel – Elas o cumprimentaram.

─ Diiia – respondeu ele – Cuidado com as iscada, os filho

dos Silva dexaro montuera de brinquedo lá di novo. Alguém vai si

machuca, já avisei montuera de vezes. Aqueles minino não tem

educação ninhuma – E passou em direção ao apartamento vinte e

três, onde morava um casal jovem, com dois filhos pequenos.

─ Obrigada Seu Miguel, teremos cuidado – respondeu

Mariane sorrindo – E não brigue muito com as crianças, heim?

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Chegaram ao subsolo. O carro de Mariane, um Ford Maverick

V8, 1976, amarelo com faixas pretas nas laterais, completamente

original e impecável em cada detalhe, ficava em uma garagem

coberta no pátio do prédio. Apenas outro morador possuía

automóvel, mas viajava com frequência, deixando as quatro vagas

disponíveis para o carro dela. O Velho Buk, como Mariane o

chamava em homenagem ao seu escritor favorito, quase não saia de

casa, fosse por excesso de zelo dela ou por ele beber demais,

contudo, naquela manhã, ela abrira uma exceção para levar Leila ao

estágio no seu primeiro dia.

Como era habitual, quase não havia trânsito e chegaram ao

condomínio comercial onde funcionava a sede do escritório com

cinco minutos de antecedência. Naquela hora já havia muitas pessoas

circulando por ali, entrando e saindo do prédio. Advogados,

contadores, corretores de imóveis, agenciadores de viagens, médicos,

dentistas e outros diversos profissionais dos mais variados ramos

estabeleciam seus escritórios e consultórios naquela alameda de

serviços. O escritório de Leila, Mossani e Castro Advogados

Associados, ocupava duas salas grandes no fim do corredor central.

Mariane parou o carro na rua, em fila dupla, e se despediu

rapidamente de Leila, quando outro carro começou a buzinar atrás

dela.

─ Tchau linda, boa sorte, amo você – disse Mariane.

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─ Também te amo – respondeu Leila, inclinando-se para

beijá-la.

Abriu a porta e saiu, acenou timidamente mostrando um

sorriso nervoso enquanto Mariane se afastava com o carro. Leila

sentia-se mais forte e confiante quando na presença dela, mas isso

teria que enfrentar sozinha. Respirou fundo e caminhou até a entrada

do escritório.

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III

A cidade de Jardim do Norte cresceu em torno de uma área

que, outrora, fora um jardim natural de orquídeas, flores de cera e de

São Miguel, gardênias, dálias, crinos, cravos, rosas e inúmeras flores

e plantas raras, por pouco, não extintas devido ao crescimento

populacional, ocupação e desmatamento desenfreado. O local,

batizado de Parque Beca Pavasaris, em homenagem à mulher que

fez o primeiro manifesto para salvar a região, se tornara um parque

com área de quase quinhentos mil metros quadrados preservados por

iniciativa popular, que abrigava espaços para lazer com pistas de

corrida e trilhas para caminhada. Muitas das flores que cresceram ali

gerações passadas, agora, existem somente em floriculturas, mas boa

parte da beleza natural foi preservada, recuperada e mantida no

decorrer dos anos.

Na adolescência, Mariane costumava ir ao Beca Pavasaris

uma vez por semana trabalhar como Fiscal de Jardim. Os Fiscais de

Jardim, também conhecidos como Jardineiros, eram voluntários do

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Caxinguelê, associação civil responsável pela manutenção do parque,

e tinham como objetivo orientar e ajudar os visitantes, e relatar danos

causados pelo desgaste natural ou vandalismo. Como todo Jardim

Nortenho, ela adorava o Pavasaris e passava muito tempo nele,

inclusive quando não estava em sua missão de protegê-lo.

Aos finais de semana ia lá fotografar plantas, animais e

pessoas, seu hobbie preferido. Aos quinze anos de idade, ganhou um

prêmio por fotografar uma arara azul pousada na copa de uma

árvore, que lhe rendeu sua primeira máquina profissional. Pura sorte,

ela justificou. Na ocasião, Mariane caminhava por uma das trilhas

secundárias do parque quando avistou a ave e a fotografou sem

qualquer pretensão. Para ela, apenas mais uma entre uma centena de

fotos tiradas naquele dia, mas quando mostrou aos seus colegas

jardineiros, uma bióloga ficou impressionada pelo fato da arara estar

tão longe de seu habitat natural. A ave não foi vista novamente na

região, mas a foto tornou-se famosa.

Mariane chegou ao Pavasaris pouco antes das 8h30. Viam-se

poucas pessoas por ali naquele horário, uma ou outra levando seu

cachorro para passear, alguns idosos se exercitando e estudantes

gazeando aula - algo que ela fizera muito na sua adolescência. O

tumulto dos finais de tarde e de semana afastavam os animais, por

isso, ela preferia as manhãs dos dias de semana, especialmente as

segundas-feiras quando se ouvia apenas o trinado das aves.

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Enquanto fazia seu alongamento perto do lago – e se o parque

era o coração da cidade, o lago era o coração do parque -, viu um

esquilo no galho de uma árvore e lamentou não ter trazido sua

câmera. Tudo bem, outro dia eu volto para pegá-lo, senhor Esquilo,

pensou ela. Há bons dois anos não visitava o parque e, voltar ali,

deixou-a feliz, com uma sensação de nostalgia pelos tempos de

jardineira, quando tudo era mais fácil e a vida mais simples.

Começou caminhando, pois pretendia dar três voltas no lago

num ritmo mais vagaroso, para depois correr pela trilha principal até

o outro lado do parque, um percurso que ela fazia em duas horas,

quando ainda não tinha se entregado ao sedentarismo. Talvez

demorasse um pouco mais agora, mas estava sem pressa, pegara uma

semana de folga, e precisava estar de volta ao carro somente ao meio

dia para saber se ela e Leila iriam almoçar juntas.

Viu um maltrapilho bêbado deitado à sombra de uma árvore

com um vira-lata de guarda ao seu lado em melhor estado que seu

dono. O cachorro brincava com uma garrafa plástica de cachaça

barata, vazia. Aquilo a lembrou, com asco que lhe embrulhou o

estômago, seus pais.

Ambos alcoólatras, brigavam constantemente quando

embriagados, e, quando sóbrios, uniam forças para criticar e

atormentar a sua vida. O pai, Adolfo Montanez, surrava-a, dia sim,

dia não, durante toda sua infância, até um dia, ela revidar, chutando

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suas partes íntimas, ao mesmo tempo em que apontava uma faca ao

pescoço dele. Se você encostar um dedo em mim novamente, eu te

mato, entendeu? EU TE MATO, ameaçou com uma fúria

desconhecida dentro de si. Recém completara catorze anos. Com

isso, aprendera a se defender de homens maiores e mais fortes que

ela. Sua mãe, Ana Castillo Montanez, apesar de nunca ter batido

nela, era obsessivamente ciumenta, acusava-a frequentemente de

tentar seduzir o próprio pai. Sua vida se tornou o sétimo inferno ao

virar uma mulher no início da adolescência. Quando estava bêbada, a

mãe fazia ameaças constantes, temendo que Mariane roubasse o

marido. Você acha que eu não sei o jeito que você olha para o seu

pai, sua vadiazinha? Você acha que eu não vejo? Se você tentar

roubar ele de mim, eu vou te matar. Ele é meu homem. MEU

HOMEM! Ainda ouvia a voz dela na sua cabeça.

Ao contrário dos pais, os avós paternos de Mariane eram as

pessoas mais queridas e doces que ela conhecera, davam-lhe refúgio

sempre que as coisas esquentavam na sua casa. Para ela, seus avós

eram os verdadeiros pais. Sua avó, Henriqueta, aconselhava-a sobre

tudo, e fazia os melhores doces da cidade, quiçá do país ou do

mundo. Seu avô, Carlo Montanez, dera-lhe o Velho Buk pouco antes

de falecer. Mas, mais importante que o carro, ensinou-lhe a ser

determinada, a lutar por seus ideais. Sempre que seus pais ficavam

bêbados e ela fugia para a casa deles, seu avô contava-lhe uma

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história de quando tinha não mais que a idade dela. Ele estava

cercado por rapazes maiores e mais fortes, quando uma mulher

apareceu, salvando-o de levar algumas bofetadas.

─ Uma mulher - contava ele -, você sabe como era difícil para

uma mulher se impor contra homens naquela época? Lembro que eu

estava assustado demais, com medo de apanhar deles. Ela apareceu e

escorraçou aqueles pivetes para longe, depois segurou meus ombros

olhou para mim e disse: Garoto, se você não se defender, eles vão te

incomodar o resto da sua vida. Você não precisa ser mais forte,

basta ser mais inteligente. E fiz isso, querida. Tornei-me mais

inteligente, e isso me deixou mais forte.

Lembrar-se de seus avós deixou-a com o coração apertado de

saudades. Mergulhada nas lembranças do seu passado, não viu um

homem agachado amarrando o cadarço do tênis no meio da pista de

caminhada. Esbarrou nele com força levando ambos ao chão, num

emaranhado de pernas e braços.

─ Inferno – resmungou Mariane.

─ Eu sempre quis que as mulheres caíssem em cima de mim,

mas não precisava ser literalmente – respondeu o homem enquanto

se levantava – Você está bem, moça? – e estendeu a mão para ajudá-

la.

─ Inferno – disse novamente Mariane ao olhar para cima e

ver o rosto dele.

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─ Pelo que eu lembro você costumava saber mais de uma

palavra, Mariane. A maioria palavrões, claro, mas, mesmo assim, era

melhor do que somente inferno – disse ele mantendo a mão estendida

para ela, com um sorriso por trás de sua espessa barba.

─ Pelos deuses Tomi, você parece um mendigo com essa

barba – disse Mariane levantando-se.

─ Ah, é bom ver que você não desaprendeu a falar –

respondeu ele – Ainda que não tenha perdido o hábito de insultar as

pessoas.

Os dois riram.

─ Nossa! – suspirou ela – Caralho, faz o quê? Uns dez anos?

─ Onze anos, oito meses, e dez dias – respondeu sem saber de

verdade - Mas quem está contanto, não é?

─ Ah, seu bobo – respondeu ela, socando-o de leve o ombro –

Caramba, o que você está fazendo aqui? Lembro-me de quando você

foi morar em Vila Velha, com seu pai, o que o traz novamente a

Jardim do Norte depois de tanto tempo?

─ Voltei para reconquistar alguns amores perdidos, mas pelo

que vejo eu já perdi você – respondeu apontando para a aliança que

Mariane usava - Quem foi o homem de sorte que domou esse seu

coraçãozinho rabugento?

─ Mulher de sorte. E rabugento é seu passado – respondeu

em tom defensivo.

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─ Mulher? – fez uma pausa, pensativo - Espera aí, você é

lésbica? – perguntou admirado.

─ Não, não. Eu não sou lésbica, minha noiva que é –

respondeu Mariane, rindo.

─ Sua palha – riu - É sério isso? Você é lésbica?

─ Seriíssimo! – afirmou ela

─ E como aconteceu?

─ É uma longa história – disse ela –, mas se você quiser me

acompanhar na caminhada, eu conto pra você.

Eles seguiram o caminho em volta do lago, enquanto Mariane

contava à Tomi sua história com Leila, desde a livraria até a doença

de Clarice.

─ Desculpe, não devia ter perguntado – disse ele sem jeito –

Eu sinto muito.

─ Tudo bem – respondeu Mariane – Naquela semana eu

estava dormindo na casa da Leila, a Clarice tinha ficado ainda pior,

se é que isso era humanamente possível, uma manhã acordei e Leila

não estava na cama, então, levantei e fui até o quarto da Clarice.

Quando entrei, ela estava deitada ao lado do corpo da mãe,

acariciando seu rosto. Nunca consegui tirar essa imagem da minha

cabeça.

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─ Não consigo imaginar o quanto deve ter sido duro pra

vocês – disse ele num tom solene -, mas, a morte é mais limpa que o

sofrimento.

─ É... A Leila disse algo parecido na época, depois nunca

mais tocamos no assunto. Bem, depois disso ela foi morar comigo na

casa dos meus avós por algum tempo, até vender a casa, ela não

queria morar lá e não a culpo. Quando vendeu, não muito tempo

depois, fomos morar juntas, em um apartamento alugado.

Tomi parou um momento para amarrar o cadarço do tênis.

─ E no meio dessa história toda, como vocês ficaram juntas,

como um casal? – perguntou ele.

Mariane sorriu.

─ Dois anos depois que estávamos morando juntas, como

amigas, aconteceu. Nem eu, nem ela tínhamos beijado outra mulher,

mas no dia dos namorados, estávamos vendo um filme de comédia

romântica, sentadas no sofá embaixo do cobertor, e aconteceu.

─ Assim, do nada? – perguntou incrédulo – Tem algo aí que

você não quer me contar, ninguém vira gay do dia pra noite.

Mariane refletiu sobre a pergunta alguns minutos

─ Sabe Tomi, você pode escolher um lindo vestido, seus

sapatos, uma bolsa que combine. Pode ir ao shopping e comprar uma

infinidade de roupas e esmaltes de cores diferentes que nunca vai

usar. Você pode escolher sair ou ficar em casa. Ir à praia com suas

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amigas. Comer chocolate escondida numa noite de terça, depois de

começar um regime na segunda. Pode escolher enganar a si mesmo

afirmando que está bem, mas ficar no quarto vendo comédias

românticas e se entupindo de sorvete enquanto chora decidida a ser

mais determinada na próxima semana. Você escolhe tudo, menos o

amor. Não interessa a forma como o amor baterá a sua porta, ele não

será educado. Entrará na sua vida e se instalará na sua casa, esteja ou

não preparada para ele, e acredite, o amor não distingue gêneros,

apenas invade seu coração. Cuide dele e ele cuidará de você,

enfrentará todo e qualquer obstáculo com o único intuito de fazê-lo

feliz. Agora, se você negá-lo, ele o negará. Permanecerá ali, mas não

o ajudará. Ele será como uma criança birrenta. Fará suas travessuras,

baterá os pés no chão e cruzará os braços com lágrimas no rosto e os

olhos vermelhos: eu quero, eu quero, e eu quero. Odeio você. Ele

conhecerá suas fraquezas. E não se engane, pois o amor é egoísta

quando quer. Quando ele bateu à minha porta, veio na forma que eu

jamais esperaria, não apenas como outra mulher, o amor estava

personificado na minha melhor amiga, mas não tive dúvidas, eu o

acolhi e cuidei dele, e ele de mim.

─ Belo discurso. Fico feliz que você tenha encontrado o

amor da sua vida, ainda que seja estranho pensar que ele seja, na

verdade, ela – Tomi riu - Mas pensando nisso melhor, até que faz

sentido, você sempre foi dura demais com os homens, especialmente

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comigo, o que era injusto, porque eu sempre fui um cara MUITO

legal.

Mariane soltou uma gargalhada.

─ Muito legal? Legalzinho, no máximo, seu convencido –

respondeu -. Mas, falando no passado, quando você voltou?

─ Ontem – respondeu Tomi.

─ Desistiu de Vila Velha?

─ Lá, eu estava trabalhando com meu pai. Só que não dá

certo, ele é muito teimoso, e, trabalhar com a família é complicado.

Voltei para fazer o que eu gosto: escrever – respondeu ele - Eu vou

escrever alguns contos históricos sobre a cidade para a Revista

Nortenhos e nada melhor que começar por este parque, não é?

Mariane e Tomi Grainoi continuaram a caminhada

conversando, colocando os assuntos da última década em dia.

Recordaram os tempos de colégio, quando eram melhores amigos e

riram ao lembrar que Mariane era melhor no futebol do que ele; ela

era, na verdade, melhor que a maioria dos meninos, mas como em

contrapartida ele era o pior em qualquer esporte que dependesse de

esforço físico ou coordenação motora, os seus colegas de classe

faziam muitas piadas e insinuações sobre os dois, que passavam

muito tempo juntos, dentro e fora da escola.

─ Lembra quando você roubou uma carteira de cigarros dos

seus pais, para fumarmos na escola? - Perguntou Tomi.

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─ Achei que ia morrer engasgada pela fumaça naquele dia -

complementou Mariane rindo.

Os dois estavam constantemente metidos em algum tipo de

encrenca na escola, com os vizinhos ou colegas. Quase sempre era

Mariane quem o induzia a participar das travessuras. Quando

descobertos, a culpa quase sempre recaia sobre ele, mas Tomi não se

importava, sabia que se os pais dela descobrissem o seu

envolvimento, Mariane estaria seriamente encrencada. Além do

mais, ele gostava dela, mais do que apenas uma amiga e preferia

pensar que a protegia como um verdadeiro cavalheiro deveria fazer.

Contudo, apesar da forte amizade, ela nunca demonstrara nenhum

interesse nele.

O tempo voou enquanto coversavam. Quando deram conta, já

era quase meio dia, e Mariane precisava ir ao carro, onde deixara o

celular para falar com Leila e saber se iriam almoçar juntas.

Convidou Tomi para almoçar e conhecer a noiva.

─ Você verá Tomi, minha Vermelha é um doce de pessoa –

disse Mariane – Só de ficar longe dela uma manhã já sinto saudades.

─ Você apaixonada é muito piegas, Mari - respondeu rindo –

Mas será um prazer conhecer sua noiva. Preciso parabenizá-la pelo

grandioso feito. A concorrência foi injusta, mesmo assim tá valendo.

Quando chegaram ao carro de Mariane já passava do meio

dia.

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─ Puta que o pariu, Mari. O Maverick V8 do seu avô?

─ Este mesmo. Mas pode chamá-lo de Velho Buk – ela

respondeu enquanto entrava no carro para pegar o celular.

─ Você tem que me deixar dirigir ele. É sério – disse Tomi,

ainda admirado com o carro.

─ Vai sonhando... Oh, droga.

─ O que houve?

─ Cinco ligações perdidas - respondeu Mariane enquanto

retornava as ligações, mas o telefone de Leila caiu na caixa postal.

─ Bem, estamos atrasados – observou Tomi.

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IV

─ Bom dia – Leila cumprimentou a secretária do escritório,

uma mulher de meia idade, corpulenta, cabelos curtos, que usava um

óculos de armação grossa.

─ Bom dia, querida – respondeu ela - Pronta para o primeiro

dia de trabalho?

─ Espero que sim – disse mostrando um sorriso tímido.

Dona Fátima, a recepcionista, acompanhou Leila por um

pequeno passeio dentro do escritório mostrando-lhe todas as

dependências, desde o banheiro até as salas dos chefes, os advogados

Carlos Mossani e Otávio Castro, cujos sobrenomes compunham a

razão social do escritório, “Mossani e Castro Advogados

Associados”. Os móveis de mogno marrom escuro, vindos de algum

antiquário, davam um ar sóbrio e sério ao escritório. Tão sério, que a

impressão de Leila fora de que, se alguém fizesse alguma piada, seria

imediatamente expulso ou demitido. Finalmente, Dona Fátima

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mostrou a mesa onde Leila trabalharia, dizendo-lhe que se precisasse

de qualquer coisa, poderia digitar o ramal da recepção que ela a

ajudaria. Saiu, deixando-a sozinha com sua nova mesa na sala de

produção - como haviam apelidado a sala de acordo com Fátima.

Com exceção delas, ninguém tinha chegado, ainda, o que deixou

Leila um pouco apreensiva, não sabia o que fazer e não queria, já nos

primeiros minutos, ser um estorvo ou impertinente.

Sentou-se diante de sua nova mesa, grande o suficiente para

abrigar mais três funcionários, e começou a fuçar as gavetas. Achou

blocos de papel, canetas, uma régua e outros materiais, parecia não

faltar nada. Ligou o computador, mas este era protegido por senha.

Olhou a sua volta e viu duas mesas parecidas com a sua, mas só uma

delas continha documentos, pastas e processos, tudo um tanto

desorganizado.

Lembrou-se de como tivera sorte em conseguir o estágio.

Recebera um e-mail da faculdade, informando que o escritório abrira

seleção para a contratação de estagiário. Enviou seu currículo com o

histórico de notas para o endereço eletrônico, sem muita esperança,

considerando sua falta de experiência e que recém começara a

faculdade. Dois dias depois, Dona Fátima ligou para ela dizendo que

o currículo fora selecionado, e que, se tivesse interesse, poderia

começar na segunda-feira. Sequer precisou fazer uma entrevista, o

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que a deixou aliviada e insegura. E se não gostarem de mim, apesar

das minhas notas? Pensara ela.

Uma eternidade de vinte minutos se passou. Escutou uma voz

masculina cumprimentando Dona Fátima na recepção. Viu a porta da

sala de produção se abrir e levantou-se desajeitada a fim de

cumprimentar o homem que adentrara a sala. Alto, de porte atlético,

cabelos negros curtos e barba cerrada, vestia um terno preto simples

sem gravata. Ele não a viu. Concentrado no telefone celular passou

direto por ela e foi sentar-se à mesa bagunçada, de costas para Leila,

que ficou em pé, observando-o sem reação. Ele tirou um laptop da

mochila que levava às costas e o pôs na mesa, afastando alguns dos

papeis e pastas para acomodá-lo em meio a toda aquela desordem.

Quando Leila pensou em intervir, fazer algo e anunciar sua presença

na sala, ele se virou. Ao perceber a companhia, tentou não

demonstrar sua surpresa, mas Leila notou sua falta de jeito.

─ Oi, desculpe... – começou ele – não notei que estava aí –

confessou.

─ Tudo bem, eu vi que você estava concentrado, não queria

atrapalhar – respondeu ela -. Meu nome é Leila, sou a nova

estagiária.

Ele se aproximou estendendo a mão.

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─ Prazer, Ricardo – respondeu – Seja bem vinda. Bom, eu ia

pegar café. Já conhece a cozinha? Se quiser, o primeiro é por minha

conta.

Leila sorriu.

─ Já sim, mas eu não tomo café. – respondeu ela - Obrigada.

─ Espere um pouco, então – pediu Ricardo -. Vou pegar café

pra mim, e já conversamos.

Ricardo pareceu simpático aos olhos de Leila, e seu desleixo

com a própria aparência era, de certa forma, um charme. Apesar das

óbvias diferenças, algo nele lembrava, ainda que vagamente,

Mariane, o que a deixou mais tranquila. Ele voltou com um copo de

café nas mãos, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela a fim de

explicar suas funções. Começou pelo sistema de gerenciamento de

processos, mostrando detalhadamente, como funcionava cada

ferramenta de controle processual. Explicou sobre quais tipos de

ações o escritório trabalhava, e apresentou-lhe, na tela do

computador, alguns dos clientes mais importantes. Mas Leila não

compreendera muito das explicações, nem o mínimo suficiente para

fazer alguma pergunta. A cada término de explicação, Leila

respondia com um sonoro uhum, temendo que Ricardo tentasse testar

seu conhecimento recém-aprendido.

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─... mas não se preocupe – dizia ele – Quando me

apresentaram esse negócio, não entendi porra nenhuma. Você pega o

jeito. Verá.

Porra nenhuma, repetiu mentalmente Leila, lembrando-se de

Tilla e seus palavrões.

─ Você começou numa semana bem turbulenta, Leila. Hoje

haverá uma reunião aqui no escritório, com um dos clientes mais

importantes... Bom, é o mais importante. Conseguimos reverter no

Tribunal uma sentença desfavorável no processo dele. Essa foi a

parte fácil. O problema de verdade, virá a seguir, nas consequências

disso.

Leila tentou se lembrar do que aprendera na faculdade, mas

nada ajudara a compreender o que Ricardo estava lhe dizendo.

─ Desculpe, não entendi – confessou ela.

─ É. Eu imagino que não – disse ele -. Bem, por hora, você

não precisa entender. O cliente virá aqui hoje às onze e meia, e tudo

que você tem que fazer, é tirar cópia do processo dele. Entre no

sistema, procure pelo nome Theodoro Madires, vá até o arquivo,

pegue a pasta e tire uma cópia dos documentos que estão nela –

explicou – depois, leia e tente compreender o que aconteceu no

processo.

Foi o que ela fez. Localizou a pasta no arquivo e fotocopiou

folha após folha, tendo o cuidado de manter tudo organizado. Tarefa

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nada difícil, mas, em compensação, absurdamente tediosa. Antes que

pudesse controlar, bocejou, levando a mão à boca. O cansaço da

noite mal dormida reclamava sua atenção. Mal começara a

fotocopiar, foi ao banheiro, lavar o rosto. Demorou quase quarenta

minutos para terminar o serviço. Só então, dedicou-se a ler e tentar

compreender tudo aquilo. A segunda parte foi ainda mais cansativa,

em meio aos jargões jurídicos tão peculiares, não conseguia

concentrar sua mente na tarefa. Volta e meia flagrava-se pensando

em coisas aleatórias. Em Zíper que estava em casa sozinho ou no que

Mariane estaria fazendo naquele momento. Ao ler mentalmente pela

centésima vez a mesma página, teve uma epifania.

─ Posto isso, dá-se provimento ao recurso de apelação, para

reformar a sentença do juízo a quo, declarando-se o apelante legítimo

proprietário da área sub judice, conforme levantamento cartográfico

de fls. 110/118 – leu em voz alta para si mesma.

Lembrou-se que tirara cópia de um mapa. Nele havia algo

familiar que não dera muita atenção devido ao esgotamento do

trabalho repetitivo. Procurou e pegou o mapa olhando-o

minuciosamente. Agora, observando melhor, reconheceu a área.

─ Ricardo – chamou Leila –, este mapa é do Beca Pavasaris?

– indagou mostrando-lhe a cópia do mapa.

─ É sim – respondeu ele.

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─ Em um desses documentos está dizendo que toda essa área

é do... – fez uma pausa para olhar o documento - apelante?

─ Que no caso, é nosso cliente – complementou Ricardo -

Bem, não é toda a área. Cerca de setenta por cento. Mas parabéns,

geralmente os estagiários novos passam o dia inteiro com um

processo e sequer conseguem diferenciar o autor do réu.

Leila ficou orgulhosa pelo elogio, ainda que não parecesse

um mérito muito grandioso descobrir aquilo. Achou que Ricardo fora

apenas educado. Voltou a se concentrar no processo buscando outras

informações, algo novo que ela pudesse compreender. Eu gostaria de

ser dona do Beca Pavasaris, pensou Leila, Mariane amaria isso, ter

o parque apenas para nós. Sua mente vagava distante enquanto

folheava os papeis. Por mais que apreciasse a ideia, aquilo ficou

como uma farpa em sua mente. Como se houvesse algum perigo

escondido em meio à névoa densa de seus pensamentos.

A manhã demorou a passar, Leila estava fatigada e sua

concentração se esvaia ao menor dos barulhos. O tec tec tec feito por

Ricardo ao digitar, ou, volta e meia, o telefone tocando na recepção.

Fora isso, o silencio era absoluto, algo que também a distraia,

fazendo seus pensamentos vagarem sem rumo. O relógio arrastava

seus ponteiros, e ela, seu trabalho.

Próximo ao meio dia chegaram ao escritório o doutor Carlos

Mossani, um homem baixo, calvo e gordo, que ostentava correntes e

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relógios de ouro, mais parecendo um apontador de jogo do bicho, do

que um advogado, e o cliente, Theodoro Madires, impecavelmente

vestido com um terno de grife, alto e imponente apesar de ter

passado dos cinquenta anos, ambos carregavam no rosto um

semblante descontraído. Adentraram a sala, rindo, como velhos

amigos em uma noite de sexta. Passaram por Leila e Ricardo,

cumprimentando-os, mas sem lhes dar qualquer atenção, exceto

Theodoro, que fitou Leila por todo curto trajeto até a sala de

reuniões, deixando-a constrangida.

─ Você o conhece? – Perguntou Ricardo para Leila, quando

entraram na sala de reuniões.

─ Não – respondeu ela -. Esse é o cliente do processo?

─ Sim. Mas não se deixe confundir pelos sorrisos fáceis dele

– confidenciou – ele pode ser bem cruel, até onde o conheço.

─ Cruel? - Perguntou Leila, franzindo o cenho - Como?

─ Bom, é apenas um modo de falar – explicou -. Quando foi

proferida a sentença, que perdemos, ele ficou furioso. Chegou aqui

soltando fogo pelas ventas e destratou a Dona Fátima, que sempre é a

cordialidade em pessoa. Depois disso, não confio muito nele. Agora

que revertemos a decisão, ele está aí, rasgando seda. Enfim, ele é

nosso cliente e, pelo que parece, rende um bom dinheiro ao

escritório.

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Leila ficou pensando naquilo, mas não por muito tempo.

Percebeu que já era meio-dia, e resolveu ligar para Mariane a fim de

combinarem o local do almoço. Ligou duas vezes de seu celular até a

ligação cair na caixa postal. Esperou alguns minutos e ligou de novo,

e de novo, e mais uma vez, mas nada dela atender. Quando ela ver

as ligações, deve me ligar de volta, pensou ela. E saiu para almoçar

em um restaurante do outro lado da rua indicado por Dona Fátima.

Comida caseira de excelente qualidade, ela recomendou. Leila não

conhecia outros lugares, então resolveu seguir a indicação. Já estava

na entrada do prédio, indo em direção ao restaurante, quando seu

celular tocou.

─ Oi Tilla – atendeu Leila – você vem almoçar comigo? –

perguntou com a voz manhosa - Hum. Conhecer quem? Tudo bem. O

restaurante é na frente do prédio, do outro lado da rua. Espero você

lá, tá bom? Beijos, amo você.

Leila ficou vagando, vendo as vitrines das lojas vizinhas ao

escritório, para passar o tempo. A primeira loja, logo na entrada do

prédio, vendia equipamentos de fotografia, câmeras profissionais,

telescópios, e uma série de coisas que, certamente, Mariane

apreciaria. Talvez, agora que estava trabalhando, poderia comprar

uma máquina fotográfica nova para ela. Apesar de não entender

muito, sabia que aquela que Mariane usava já tinha alguns anos, e

por mais que fosse um bom equipamento, há muito, fora ultrapassado

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pelas novas tecnologias. Teria que parcelar o valor, pois, a mais

barata das máquinas fotográficas naquela loja, era cara demais para

ela.

Foi para frente do prédio, esperar por Mariane e o tal amigo

que ela queria apresentar. Avistou o velho Buk de longe, com sua

inconfundível cor amarela, faixa preta no capô, e seu formato um

tanto brusco e tosco, na opinião dela. Mariane estacionou na rua.

Leila foi caminhando ao encontro deles e os avistou conversando e

rindo. Pareciam felizes. Felizes demais, para o gosto de Leila. Isso

despertou um pouco de ciúmes nela.

─ Oi, gata – cumprimentou Mariane – Que saudades de você,

minha vermelha – abraçou-a quase esmagando o frágil corpo de

Leila, beijando-a em seguida. O ciúme se esvaiu por completo.

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V

─ Tomi, esta é a minha querida e doce Leila – apresentou

Mariane – Leila, este é meu amigo de infância, Tomi.

Leila o cumprimentou com um aperto de mão.

─ Tomi e eu estudamos juntos desde a pré-escola, até o final

do colegial, quando ele se mudou para a casa do pai dele, em Vila

Velha – explicou ela -. Isso, um pouco antes de eu conhecer você.

─ É um prazer conhecer a pessoa que domou essa ferinha –

disse Tomi –, ainda que seja uma MULHER a fazê-lo.

Leila deu um sorriso amarelo, mas não respondeu ao

comentário. Foram almoçar. O restaurante fora instalado em uma

casa grande e antiga, e as mesas eram espalhadas por todos os

cômodos, incluindo uma área ao ar livre na parte de trás. O ambiente

era muito acolhedor. Daria uma boa paisagem para uma sessão de

fotos, pensou Mariane, apesar de o lugar estar lotado. A comida

feita em panelas de barros e os doces pareciam deliciosos.

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─ Adeus regime – comentou Mariane ao se deparar com a

variedade de pratos.

Esperaram alguns minutos até vagar uma mesa. Tiveram sorte

ao conseguir uma, do lado de fora, no jardim. Antes de sentarem,

Leila pediu licença para ir ao banheiro.

─ Já volto Tomi – falou Mariane logo após Leila sair -,

guarde a mesa pra nós vou aproveitar para ir ao banheiro, também.

Mariane seguiu Leila, encontrando-a adentrando ao banheiro.

Segurou a porta, segundos antes que ela a fechasse.

─ Espera gata, preciso retocar a maquiagem – disse Mariane.

Leila deixou-a entrar e fechou a porta.

─ Você nem está usando maquiagem, Tilla – observou Leila.

─ Ah, eu disse retocar? – indagou com irônica – Eu quis dizer

borrar. Eu preciso borrar sua maquiagem – complementou, rindo. E

precipitou-se na direção de Leila para beijá-la.

Leila resistiu por um momento. O lugar era completamente

inapropriado. Mariane não deu atenção, beijou seu pescoço deslizou

a mão para dentro da calça dela. Sua mão roçou os pelos pubianos, e

encontrou o clitóris. Com a ponta dos dedos, masturbou-a com

alguma dificuldade.

─ Safadinha, está toda molhada – sussurrou ao ouvido de

Leila.

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─ Não devíamos fazer isso aqui – respondeu com a respiração

ofegante.

─ Não? - perguntou com um sorriso maldoso, tirando a mão

de dentro da calça de Leila – e o que estamos fazendo, Vermelha? –

Virou-a de costas e abriu o fecho da calça de Leila com facilidade,

abaixando-a até a metade das coxas. Fez com que apoiasse as mãos

na pia do banheiro, inclinado-a para frente. Mariane se agachou a

altura da cintura magra e branca de Leila. Com uma mão segurou a

coxa dela e, com a outra, afastou a calcinha de algodão revelando seu

sexo. Passou sua língua com suavidade, fazendo-a estremecer e

empinar mais seu quadril. Mariane a chupava com leveza e

intensidade. Penetrou-a com o dedo médio, depois com o indicador,

movimentando-os para dentro e para fora do sexo de Leila, que

mantinha o controle para não gemer alto. Segurava a borda da pia

com força, e mordia os lábios. Contorcia-se. Respirava ofegante.

Perto do clímax, já pronta para gozar, alguém mexeu na porta

tentando abri-la. Leila deu um pulo assustada, quebrando todo clima.

─ Temos que sair Tilla – disse Leila num sussurro se

ajeitando.

Mariane levou seus dois dedos à própria boca, lambendo-os.

─ Você é tão doce, Vermelha – disse ela – poderia ficar te

chupando o dia inteiro.

─ Vamos, temos que ir – insistiu Leila.

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Mariane concordou com um sorriso. Lavou as mãos e o rosto

e saiu primeiro. Na porta duas mulheres aguardavam para usar o

banheiro.

─ Emergência feminina – disse às mulheres – Minha amiga

não esta muito bem.

Leila saiu em seguida com o rosto rubro e quente.

─ Você está melhor moça? Não parece estar bem – disse uma

das mulheres que aguardavam para usar o banheiro, uma senhora

idosa.

Leila não compreendeu a pergunta e olhou para Mariane que

estava segurando um riso.

─ Sim, estou melhor – respondeu constrangida.

Voltaram à mesa. Leila tinha a impressão que todos os

olhares estavam voltados para ela. Que todos ali, sabiam o que elas

tinha feito no banheiro. Sentiu-se envergonhada. Mariane falava

descontraída. Não era do feitio dela demonstrar qualquer pudor.

─ Achei que tinham me abandonado – comentou Tomi

quando chegaram à mesa.

─ Tinha fila no banheiro – justificou Mariane –. Se fosse para

abandoná-lo, eu teria primeiro almoçado para deixar a conta pra você

– riu piscando para Tomi - Vamos almoçar? Estou morrendo de

fome!

─ Muito engraçado – respondeu Tomi.

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Leila e Mariane serviram-se no bufê e, logo depois, Tomi,

que aguardara na mesa para não perderem o lugar.

─ Isso tudo é fome, Vermelha? – disse Mariane ao reparar a

quantidade de comida no prato de Leila.

─ Tudo parece tão bom – respondeu ela.

─ Logo você vai precisar fazer um regime, você engordou um

pouquinho.

─ Sério? – perguntou espantada.

─ Brincadeira, seca. Você ganhou uns quilinhos, mas está

mais linda. Só não exagere, tá? – respondeu Mariane.

Durante o almoço, Mariane contou algumas das travessuras

de criança que ela e Tomi aprontaram. Como da vez em que ela

bateu em um garoto maior por dizer que eles dois eram

namoradinhos ou quando pegaram uma carteira de cigarros para

fumar escondidos, e de quando Tomi fora embora da cidade.

─ Agora o Tomi voltou para ser um escritor e acabamos nos

esbarrando no parque – finalizou Mariane.

─ Não escritor nos termos tradicionais. Como eu disse, vou

escrever para uma revista. Uma coluna sobre aspectos históricos da

cidade – completou Tomi – Eu penso em começar pelo parque.

─ O Beca Pavasaris? – Perguntou Leila.

─ Sim – respondeu Tomi.

Leila ficou pensativa por alguns instantes.

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─ Vocês sabiam que o Pavasaris é uma propriedade

particular?

Tomi e Mariane se olharam.

─ Claro que não, Vermelha – disse Mariane rindo – O parque

sempre foi público. De onde você tirou essa ideia?

Tomi pareceu mais interessado na história.

─ Particular? – perguntou ele.

─ É. – afirmou Leila - Bom, posso estar enganada. Tem um

processo no escritório em que um cliente ganhou o parque, mas não

sei explicar direito. Aquilo é muito confuso.

─ Não faz muito sentido isso, Vermelha – disse Mariane.

─ Na verdade, até faz – interveio Tomi -. Você sabe por que o

nome do parque é Parque Beca Pavasaris, não é?

─ Sim, todo jardim nortenho sabe quem era Beca Pavasaris –

respondeu Mariane.

─ É. Sabem sim – respondeu ele - O que não sabem é o

porquê da luta da Beca na época.

─ Porque estavam destruindo o parque, não?

─ Sim. Mas não só por isso – respondeu – No final do século

XIX todas as terras da cidade pertenciam a uma só pessoa. Com o

passar dos anos surgiram os vilarejos e, depois, a cidade. Na primeira

década do século XX, o Coronel Sebastian Corvilino decidiu aterrar

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todo o parque para instalar algumas indústrias de tecelagem. Foi aí

que a Beca Pavasaris entrou em cena.

─ Tá. Tudo bem, mas ela venceu o tal Coronel, por isso hoje

o parque é um lugar público, não é? – disse Mariane.

─ Sim e não. O Coronel morreu e o filho dele, que estava

estudando fora do país, não quis se meter, nunca reclamou a

propriedade da área. Então, teoricamente, se houver algum herdeiro

vivo, que comprove a descendência até o Coronel, o que Leila disse,

faz sentido.

─ Acho uma bobagem isso – disse Mariane.

─ Eu preciso voltar ao trabalho – interrompeu Leila – Já são

quase uma e meia.

─ Tudo bem, gata – respondeu Mariane – Vou colocar

conversa em dia com o Tomi.

Ao levantar-se, Leila ficou pálida e tonta. Apoiou-se na mesa

para não cair.

─ Você está bem, Vermelha? – Perguntou, segurando-a pelo

braço.

─ Estou. Acho que levantei rápido – justificou - Fiquei um

pouco tonta, só isso.

─ Quer um pouco de água, Leila? – interveio Tomi – Você

não parece lá muito bem.

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─ Não. Estou bem– afirmou ela – É sério, foi apenas uma

tontura.

Mariane aceitou com certa relutância as palavras de Leila. Há

algumas semanas ela tinha enjoos, tonturas e passava mais tempo na

cama do que o normal, além das queixas constantes de cansaço para

fazer qualquer coisa diferente, inclusive, sexo.

Leila recompôs-se e foram até a frente do escritório, do outro

lado da rua.

─ Qualquer coisa me liga, Vermelha – disse Mariane – Te

amo, gata – Beijou-a.

─ Tchau Leila, prazer em conhecê-la – despediu-se Tomi.

Leila respondeu com um sorriso amarelo e os deixou.

─ A Leila parece uma pessoa legal, um tanto quieta, mas

interessante – comentou Tomi enquanto voltavam ao carro – e

bonita. Mas acho que ela não foi muito com as minhas fuças.

Mariane riu.

─ Capaz, ela é só um pouco quieta demais. – respondeu –

Tímida no começo, mas verá, ela é um amor de pessoa. Não existe

ser humano melhor no mundo.

─ Vocês já estão a bastante tempo juntas, não é? – perguntou

Tomi – Dois anos, você disse?

─ Sim, fez dois anos no dia dos namorados.

─ Pensam em ter filhos? – Tomi perguntou sem rodeio.

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─ Filhos? Por que a pergunta?

─ Apenas curiosidade, nada de mais – ficou pensativo – Só

queria saber se você, sendo lésbica, preferiria que seu filho fosse gay

ou hetero?

─ Você acha que isso é uma questão de preferência? –

rebateu Mariane – Querer que meu filho seja gay ou hetero é como

querer que ele fosse advogado ou médico, no mínimo um insulto a

sua liberdade de escolha, ou pior, uma ofensa a sua individualidade

enquanto ser humano.

─ Faz sentido – respondeu Tomi – Bom, mera curiosidade,

desculpe. Mudando de assunto, o que você acha de voltarmos ao

Pavasaris? Tenho que entregar meu artigo amanhã e tenho muito

para escrever, ainda.

─ Claro! Eu vou passar em casa para pegar minha câmera

fotográfica.

Passaram a tarde conversando com alguns jardineiros e

visitantes do parque. Mariane aproveitou para visitar amigos que não

via há tempos e que ainda trabalhavam na associação que cuidava do

parque. Enquanto Tomi conversava com as pessoas, em busca de

informações para seu artigo, Mariane tirava fotos. O tempo voou.

Quando se deu conta, já estava perto do horário de ir buscar Leila.

Despediu-se de Tomi e voltou ao escritório. No prédio ficou

apreciando a vitrine da loja de equipamentos fotográficos. Notou que

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o atendente, um homem com barba negra, bem aparada onde se

destacavam alguns pelos brancos a encarava. Já tinha se acostumado

com aquilo, homens secando-a com o olhar. Não deu importância,

até que ele saiu de trás do balcão e foi ao seu encontro, do lado de

fora da loja.

─ Oi – disse ele – hoje meio dia você estava com aquela

menina ruiva, bem vestida, e um homem barbudo, de moletom verde,

não é?

Mariane ficou surpresa com a pergunta.

─ Sim – respondeu ela com desconfiança – Por quê?

─ Eu tenho uma memória fotográfica – respondeu ele – Você

está esperando por ela?

─ Olha, desculpe, mas o que te interessa isso? – Mariane

respondeu impaciente e ríspida.

─ Desculpe, não quis ser indelicado – respondeu ele erguendo

as mãos – Hoje, pouco antes das quatro, uma ambulância esteve aqui

no prédio. E sua amiga saiu com os paramédicos.

O coração de Mariane parou de bater. Engoliu em seco,

digerindo o que acabara de ouvir. Tentava organizar seus

pensamentos.

─ Ambulância? Médico? – repetiu.

─ Sim, mas ela saiu caminhando, não deve ser nada demais –

disse o homem.

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Quando conseguiu compreender a situação, não se deu ao

trabalho de agradecer ou se despedir do homem, saiu correndo em

direção ao escritório. Eu disse para ela me ligar, pensava Mariane,

que porra de menina teimosa. As memórias da mãe de Leila

emergiram, e sentiu medo. Seus olhos umedeceram. Entrou no

escritório de supetão.

─ Onde está Leila? – Perguntou ríspida à secretária

─ Oi querida – ela respondeu – Você é a Mariane, não é? Eu

tentei falar contigo, mas atenderam seu celular dizendo que você o

esquecera no restaurante ali do outro lado da rua.

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VI

Estranho ela nunca ter me falado desse Tomi, pensou Leila

enquanto folheava as cópias que tirara na parte da manhã, sem

prestar atenção no que fazia. Será que foram namorados e ela não

quis me dizer para eu não ficar com ciúmes? Ele parece gostar dela.

O que eles vão fazer sozinhos? Concentre-se Leila. Concentre-se no

trabalho, a Mariane te ama, e não há nada com o que se preocupar.

Passou o começo da tarde especulando sobre o que eles estariam

fazendo. Queria ligar para Mariane e perguntar, mas tinha medo de

parecer boba e insegura demais. Apesar desse novo amigo inusitado,

saído dos confins do passado dela, sabia que podia confiar em

Mariane. Foi o que fez. Controlou-se.

O ramal de Leila tocou, fazendo-a voltar à realidade. Ela

olhou para o telefone e depois para Ricardo, em dúvida sobre o que

fazer.

─ Isso se chama telefone – brincou Ricardo – quando toca,

você puxa aquele negócio do gancho, põe na orelha e diz alô.

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Leila enrubesceu de vergonha.

─ Leila – atendeu ela – Sim. Já entrego – Desligou.

─ O doutor Mossani quer que eu leve a cópia do processo na

sala de reuniões – Disse para Ricardo.

Juntou os papéis da sua mesa e foi à sala de reuniões. Bateu

na porta, respirou fundo para afastar o frio na barriga, e entrou. O

advogado e o cliente sentavam à mesa de reuniões de frente um para

o outro. Eles não pareciam tão descontraídos quanto quando

chegaram.

─ Doutor, as cópias que pediu – anunciou Leila, depositando-

as sob a mesa, perto do advogado.

─ Pastor Ted, esta é Leila, a nova aquisição do escritório. Ela

começou seu estágio conosco hoje – disse Mossani ao cliente.

─ Leila – repetiu o cliente, levantando-se – É um prazer

conhecer-te, Leila – ofereceu a mão.

─ Igualmente, senhor Theodoro – respondeu ela.

─ Pastor Ted, criança – corrigiu Theodoro – Apenas Pastor

Ted. Deus abençoe seu estágio. Com a Sua graça, fará de ti uma

grande advogada.

Leila lançou um olhar perdido e sem graça ao seu chefe.

─ Obrigado, Leila – agradeceu Carlos – Se precisar, eu

mando chamá-la.

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O Pastor Ted a fitou fixamente até sua saída. Leila podia

sentir o peso do olhar dele em suas costas. Devorava-a com os olhos.

Teve asco daquilo. Nunca tivera tempo para relacionamentos, apenas

uma e outra paquera, e não sentia atração por homens, não desde que

ficara a primeira vez com Mariane.

Enquanto voltava para sua mesa, suas forças abandonaram-na

novamente. Desta vez com mais intensidade, obrigou-se a se apoiar

na mesa para se sentar. Teve tempo apenas de puxar o lixeiro

debaixo da mesa e vomitar todo o almoço. Suas pernas tremiam

descontroladamente. Ricardo veio imediatamente ajudá-la. Ligou

para a recepção e pediu a Dona Fátima para trazer um copo de água.

─ Quer ir ao banheiro? – perguntou Ricardo – Consegue

ficar em pé?

Pálida como se tivessem roubado todo o sangue do corpo, não

tinha forças para se levantar. Tomou um pouco da água trazida por

Dona Fátima.

─ Vou ligar para o hospital – disse Fátima -, você ficará bem,

querida!

Quando os paramédicos chegaram, Leila se sentia melhor,

mais corada e capaz de ficar de pé. Sua pressão sanguínea

permanecia abaixo do normal.

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─ É provável que seja apenas uma intoxicação alimentar, mas

seria prudente a levarmos ao hospital para fazer alguns exames de

rotina – disse um dos paramédicos.

─ Eu acompanho – prontificou-se Ricardo.

─ Avisem a Mariane, por favor – disse Leila com a voz

vacilante, mais de vergonha do que pelo mal estar.

Chegaram ao hospital do município em menos de quinze

minutos. Não havia muitos pacientes aguardando, apenas um casal de

idosos e uma criança com sua mãe. Leila foi atendida e encaminhada

à triagem com bastante rapidez.

─ Ricardo, obrigado por me acompanhar, mas preciso da

Mariane aqui comigo, veja se ela está a caminho, por favor? – pediu

Leila – Ficarei bem, sozinha.

Ricardo não se opôs, foi ao lado de fora do hospital ligar para

o escritório, saber se Dona Fátima conseguira falar com Mariane,

enquanto Leila passava pela triagem. Mediram sua pressão e a

colocaram no soro, deixaram-na sentada no corredor, junto com

outros pacientes que aguardavam o resultado dos exames para a

encaminharem ao médico de plantão.

Belo primeiro dia de estágio, Leila, lamentava-se. Tinha que

acontecer justo hoje? Fiquei quase um mês em casa, mas tinha que

ser justo no primeiro dia do estágio? Eles vão me despedir depois

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disso. E mesmo que não, com que cara eu voltarei lá? Droga, onde

eu vou arrumar outro estágio? Será que pode ficar pior?

Ricardo voltou alguns minutos depois.

─ Leila, a Dona Fátima não conseguiu falar com a Mariane,

parece-me que ela esqueceu o celular em algum lugar – disse

Ricardo.

─ Obrigada – respondeu Leila – Por favor, não quero que

você fique aqui, já é constrangedor demais eu passar por isso.

─ Não está atrapalhando, Leila. É no mínimo meu dever

acompanhá-la, é até bom ficar um pouco fora do escritório –

respondeu ele.

─ Olha, obrigada mesmo, mas eu prefiro que você vá embora

– insistiu Leila -. Mariane deve estar me esperando no prédio. Ela é

morena, esta de blusa branca, calça legging preta e, possivelmente,

usando um rabo de cavalo. Avise-a que estou aqui, por favor.

Qualquer coisa, eu pego um taxi para ir embora.

─ Tem certeza? – perguntou Ricardo -, mas me prometa que,

se precisar de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, vai me ligar.

─ Obrigada – respondeu Leila – Eu prometo.

Quando foi chamada ao consultório do médico passava das

cinco horas da tarde, Leila levantou-se levando consigo a haste de

ferro na qual a bolsa vazia de soro estava presa. Uma enfermeira

tirou a agulha de seu braço, liberando-a daquela parafernália. O

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médico, um homem calvo e magro, de pele enrugada, que usava

óculos de lentes grossas, estava concentrado em alguns documentos e

sequer a olhou.

─ Tenho uma notícia boa e uma ruim – disse num tom

ríspido e pausado – A ruim é que você esta com insuficiência de

vitaminas e ferro, você está com anemia o que pode causar algum

cansaço e, se não for tratado pode evoluir para algo mais grave,

como a leucemia...

Uma enfermeira entrou no consultório sem bater,

interrompendo-o.

─ Doutor, temos uma emergência no corredor.

─ Aguarde um momento – disse o médico, levantando-se sem

muita pressa.

─ Leucemia? – Pensou em voz alta quando o médico saiu –

Minha mãe morreu...

Suas entranhas estremeceram de medo. Tentou não pensar no

passado. Esquecer que sua mãe morrera de leucemia, tratava a

lembrança como um pensamento proibido, algo que pudesse atrair

um mal irremediável. Desde a morte de sua mãe, fizera exames

periódicos, o último há menos de seis meses. Será que em tão pouco

tempo eu posso ter adoecido?Pensava ela. Não, estou apenas

exagerando, o médico disse que tinha uma notícia boa,

provavelmente que não é nada grave. Notícia boa?

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Pegou o resultado de seus exames em cima da mesa do

médico. Folheou os papéis sem entender muito daquilo, salvo um ou

outro detalhe que aprendera quando acompanhara a doença da mãe.

Não havia nada ali que indicasse qualquer tipo de câncer. De repende

sua expressão mudou, a expressão séria que carregava em seu

semblante, transformou-se em espanto.

─ Não, não, não, não! Isso está errado, só pode estar errado. É

impossível! – disse em voz alta.

Levantou-se de súbito e saiu porta a fora, deixando os exames

na cadeira ao lado. Esbarrou em algumas pessoas no corredor.

Correu até a rua, em direção a um ponto de taxi, e embarcou no

banco traseiro do primeiro carro que viu.

─ Por favor, Rua Gregório Alves, número quarenta e dois, no

bairro Macieira – pediu Leila.

─ Não sei o que houve moça – disse o motorista olhando-a

pelo espelho retrovisor – mas o tempo costuma melhorar as nossas

aflições, apenas não faça nada que possa se arrepender depois.

─ Desculpe, não quero conversar – respondeu Leila, tentando

não ser dura com o homem.

─ Tudo bem. É que tem um problema – respondeu o

motorista - você deve ter se confundido, não sou taxista.

Leila olhou a sua volta e notou que era um carro normal, sem

taxímetro.

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─ Oh, Deus, desculpe-me – disse levando a mão à boca.

─ Não se preocupe – respondeu ele -, já fiz isso, também.

Olha! Eu conheço a rua que você precisa ir, e estou indo praquele

lado, se quiser posso levá-la até lá.

─ Não quero incomodar – respondeu Leila levando a mão à

maçaneta da porta – Eu vou pegar um táxi. De verdade, obrigada.

─ Não é incomodo, e você não parece nada bem. É caminho

pra mim, gosto de ajudar, é sério – insistiu o homem.

Cansada, não conseguia e nem queria argumentar. Também

não queria ter que sair para procurar um táxi ou ficar esperando por

um ônibus. Sua cabeça, cheia demais, não tinha espaço para outras

preocupações. Sua vida acabara de virar completamente do avesso.

Sua fraqueza de espírito a impedia de assumir o controle de qualquer

coisa, inclusive de uma pequena discussão. O que tinha a perder?

Pensou antes de aceitar a oferta.

Seguiram em silêncio para o endereço indicado por Leila.

Ao chegarem, Leila tirou uma nota de vinte reais de sua bolsa

e ofereceu ao homem.

─ Não é necessário – respondeu o homem – Eu fiz isso

porque era o certo, não para ser recompensado.

─ Obrigada – disse Leila.

Deixou o dinheiro no banco traseiro do carro e saiu.

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A rua, uma viela sem saída, não mudou muito da última vez

que Leila estivera ali. Um prédio residencial surgira na esquina,

algumas casas foram reformadas, outras deram lugares a casas de

alvenaria, mas a maioria continuava exatamente igual as suas

lembranças, casas de madeira sem muros ou cercas e com belos

jardins, com exceção de uma: aquela em que morou toda sua vida;

aquela onde viu morrer junto com sua mãe, parte de si.

A casa há muito estava abandonada, sem vida, com sua

pintura desbotada tomada pelo musgo verde onde outrora fora cor de

salmão. As janelas com os vidros quebrados estavam bloqueadas por

tabuas. O jardim era só mato e ervas daninha. Sentia-se frágil,

insignificante, impotente. O ventou trouxe consigo o cheiro de grama

recém-cortada do vizinho e, com ele, a lembrança de sua infância e o

gosto de estar de volta ao seu lar. Viu-se, ainda pequena, brincando

no jardim, cavando a terra em meio às rosas em busca de minhocas

para dar ao seu peixinho. Algum adulto havia dito que peixes

gostavam de minhocas.

─ Mamãe, como os peixes comem minhocas se eles vivem na

água e elas na terra? – Perguntara, certa vez, a pequena Leila.

Viu sua mãe sorrindo quando entrou em casa toda suja

segurando duas minhocas, uma em cada mão.

─ Querida, o Pupi tem a própria comida, ele não come

minhocas – respondera Clarice.

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─ Mas na escola me disseram que os peixes comem

minhocas, mamãe – argumentara Leila.

─ Só se alguém lhes der – respondera Clarice - As

minhoquinhas cuidam das flores da mamãe. Ajudam elas a crescerem

fortes e bonitas. Vamos colocá-las no jardim novamente?

Leila desejava que sua mãe estivesse ali para abraçá-la e lhe

dizer que tudo ficaria bem. Precisava dela mais do que nunca. Odiava

a si por deixá-la morrer; e odiava a mãe por não estar com ela

quando precisava de seus conselhos, da sua proteção. Estava confusa,

imersa nas lembranças de sua infância, e não viu que alguém se

aproximava às suas costas.

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VII

Meu celular? Como pude esquecer o maldito celular? Pensou

Mariane quando, retrocedendo mentalmente seus passos durante a

tarde, deu-se conta que em nenhum momento estivera com ele.

─ Os paramédicos levaram-na ao hospital do município para

fazer alguns exames – informou Dona Fátima – Disseram que era

apenas uma intoxicação alimentar. Ela ficará bem, não se preocupe.

O nervosismo de Mariane era visível e ela não se convencera

daquilo. Precisava ver Leila com seus próprios olhos, tocá-la, abraçá-

la, protegê-la, e, só então, saberia que tudo ficaria bem. Despediu-se

da recepcionista e virou-se para sair, esbarrando em um homem que

acabara de entrar.

─ Oh! – exclamou Mariane – Desculpe!

─ Não se preocupe – respondeu ele -, acontece.

─ Mariane – chamou Fátima -, este é Ricardo, ele

acompanhou Leila até o hospital.

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Mariane olhou para ela, depois voltou seu olhar sobre

Ricardo.

─ E onde ela está? – perguntou sem rodeios.

─ No hospital – respondeu Ricardo -, mas não se preocupe,

ela está bem.

─ Porra! – soltou Mariane, irritada – Não se preocupe? Que

merda é essa? Como você deixou-a sozinha no hospital?

Ricardo deu um passo para trás irritado.

─ Ela pediu para eu vir aqui, avisar você – respondeu seco –

A Leila me disse que você estaria esperando na frente do prédio.

─ Desculpe – respondeu – Só estou estressada e preocupada.

─ Eu entendo – disse Ricardo – Sua amiga é bem teimosa,

também. Eu queria ficar lá...

─ Noiva – interrompeu Mariane

─ Hã?

─ Noiva. Não amiga. Ela é minha noiva – explicou.

─ Ah! – respondeu sem dar muita atenção – Bom, de

qualquer forma é melhor você ir ao hospital, não?

─ Sim – concordou.

Passou no restaurante para pegar o celular e correu até o

Velho Buk, estacionado uma quadra a frente. Antes de dar a partida,

alguém bateu no vidro. Era Ricardo.

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─ Achei que não a alcançaria – disse ele quando Mariane

abriu uma fresta do vidro.

─ O que houve? – Perguntou ela

─ Meu querido chefe me mandou ir até o hospital –

respondeu ele – Levei uma mijada por deixar sua noiva sozinha por

lá. Eu disse que você estava a caminho, mas ele não quis saber.

Então, talvez você possa me dar uma carona.

─ Pelo menos alguém nesse escritório tem bom senso –

respondeu Mariane – Entre, rápido.

No caminho, Ricardo contou como Leila ficara mal de

repente.

Chegaram ao hospital em menos de vinte minutos apesar do

trânsito.

─ Oi – Mariane cumprimentou a atendente do hospital, uma

mulher que exalava um forte odor de cigarro – Estou procurando

uma paciente, ela chegou aqui perto das quatro da tarde.

─ Qual o nome dela? – Perguntou sem tirar os olhos do

monitor.

─ Leila Rossastro – respondeu.

─ Sim, ela deu entrada aqui.

─ Eu sei – respondeu Mariane impaciente – Eu vim para

acompanhá-la enquanto ela aguarda os exames.

─ A senhora é parente dela?

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─ Não. Bom, sou noiva dela – disse Mariane.

A mulher desviou o olhar do computador para Mariane,

encarando-a com desprezo.

─ Desculpe senhora, somente parentes podem acompanhar os

pacientes.

─ Parentes? – questionou Mariane – Eu acabei de falar que

sou noiva dela. Moramos juntas. Como um casal.

─ Preciso da sua certidão de casamento, então – respondeu a

atendente em tom rude.

─ QUE PORRA! – gritou Mariane batendo as mãos em cima

do balcão - Eu disse que sou noiva dela, como posso ter uma certidão

de casamento. Você é surda, merda?

As pessoas que estavam sentadas aguardando olharam

espantadas. Ricardo interveio segurando o braço dela.

─ Calma – Pediu ele.

─ CALMA? – respondeu irritada livrando-se da mão dele –

Essa mulher está de brincadeira comigo. Só pode – Mariane sentia

vontade de pular do outro lado do balcão e arrancar as orelhas da

mulher e fazê-la comer em seguida.

─ Desacato a funcionário público é crime – disse a atendente

– Se a senhora não se acalmar terei que chamar a polícia.

─ Crime? – respondeu Ricardo antes que Mariane pudesse se

manifestar – Deixe-me ver – fingiu que pensava segurando o queixo

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com o cenho franzido – O que vejo aqui é crime de preconceito e

discriminação cometido por um funcionário público. Além do seu

emprego, isso renderia uma bela matéria no jornal e uma boa

indenização, não acha?

A atendente recuou sem saber o que responder.

─ Eu estava com a paciente até agora a pouco – continuou

Ricardo – Deixe-a entrar para vê-la e esquecemos todo esse negócio.

O que você me diz?

Ela não respondeu, apenas olhou para a tela do computador.

─ A paciente não está mais no hospital – respondeu ela.

─ Ah, não fode! – bradou Mariane – Toda essa merda para

dizer que ela foi embora?

─ Ela saiu antes de receber alta do médico, no meio da

consulta – respondeu a atendente - O médico achou que ela poderia

ter ido ao banheiro, mas a paciente não voltou. Pelo que parece,

paciência não é um dom da sua noiva, também – disse fazendo noiva

soar com desprezo.

Mariane respirou fundo, tentando controlar o turbilhão de

raiva que se apossava dela.

─ Ela deve ter ido para casa – disse Ricardo – Ela me disse

que qualquer coisa pegaria um táxi.

Mariane tentou ligar para Leila novamente.

─ E mais isso para ajudar, droga – disse ela para si mesma.

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─ Não há o que fazer aqui, Mariane. É melhor você ir para

casa. Leila já deve estar lá, esperando por você.

Uma onda de tristeza tomou lugar da raiva que se agarrava às

entranhas de Mariane. Queria chorar, mas não podia. Não ali, na

presença de estranhos. Muito menos na frente dessa vaca. Seu

orgulho não permitiria. Disfarçadamente ela secou os olhos úmidos

de tristeza enquanto deixavam o hospital. Mariane levou Ricardo de

volta ao escritório sem trocar nenhuma palavra com ele. Despediu-se

com um singelo obrigada quando ele desceu do carro, e foi para

casa.

Subiu quatro lances de escada apressada, cumprimentando

um vizinho sem prestar muita atenção. Zíper estava à porta do

apartamento, arranhado-a e miando, aguardando a chegada de

Mariane. Quando abriu a porta, ele veio ao encontro dela,

enroscando-se entre suas pernas e miando. Não era acostumado

permanecer tanto tempo sozinho. Mariane o pegou em seus braços e

o afagou.

─ Leila? – Chamou.

O apartamento permaneceu em silêncio.

Olhou o quarto e o banheiro. Tudo exatamente como

deixaram antes de sair de casa. Tentou ligar novamente no celular de

Leila que continuava desligado. Não tinha mais ideia do que fazer.

Ligou para alguns conhecidos, concentrando-se em controlar sua

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ansiedade e soar casual. Não queria criar alarde entre seus amigos,

por suas desconfianças e receios infundados. Mas ninguém vira

Leila. Por fim, ligou para Tomi, mesmo que ele não pudesse ajudá-la,

precisava desabafar com alguém. Sua preocupação a consumia.

Tomi chegou ao apartamento algum tempo depois.

─ Não sei o que fazer, Tomi. – disse Mariane andando de um

lado para outro na cozinha - Já liguei para todo mundo e ninguém

sabe dela.

─ Passaram menos de duas horas desde que ela saiu do

hospital, acho que você está preocupada à toa – disse Tomi – Ela

deve ter ido a uma farmácia, ou encontrado alguém na rua.

─ Mas por que ela saiu do hospital antes de receber alta?

─ Pelo que você contou do atendimento, não me surpreende –

mentiu.

─ Porra, Tomi, não faz sentido! – disse Mariane - Eu a

conheço muito bem, sei que tem algo de errado. Ela não sumiria

assim, sem avisar.

─ Tá – concordou Tomi – Se você fosse ela, aonde iria se

estivesse enrascada em algum problema.

─ Eu me procuraria – respondeu Mariane confiante – Nós

duas somos mais que um casal, Tomi. Nós somos confidentes,

amantes e, acima de tudo, amigas. Sempre que uma de nós está com

algum problema, encontramos consolo na outra. Sempre.

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─ Sim, acredito – respondeu ele – Mas, e se ela não pudesse

contar com ou pra você?

─ Ela sempre pode contar comigo, Tomi – retrucou braba.

─ Isso não ajuda muito, não é? – respondeu com firmeza -

Afinal, dessa vez ela não procurou você. Você está nervosa, não

consegue se concentrar. Respire fundo e pense. Aonde ela iria se

precisasse de ajuda, que não fosse a sua?

Mariane serviu-se de um copo d’água. Bebeu e respirou

fundo. De olhos fechados inclinou a cabeça para trás.

─ Há dias que Leila fica bastante deprimida – disse Mariane

pra si mesma – Geralmente nesses dias ela visita... – ficou em

silêncio.

─ Visita? – Perguntou Tomi.

─ Claro! – respondeu numa epifania – Vamos. Eu sei onde

ela está.

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VIII

O vulto parou atrás de Leila, fazendo-a imergir subitamente

de seus pensamentos e lembranças. Virou-se constrangida. Perdera

completamente a noção do tempo enquanto olhava seu antigo lar.

Pensou que algum vizinho tivesse notado sua indiscrição ao ficar

parada no meio da calçada olhando para uma casa habitada por

fantasmas.

─ É uma bela casa, criança.

─ Pastor Ted? – perguntou espantada – O que o senhor faz

aqui?

─ Sempre gostei dela – disse ele, ignorando a pergunta.

Leila voltou-se para a casa novamente, sem compreender o

que aquilo significava.

─ É difícil para nós, em nossa insignificância,

compreendermos os desígnios de Deus, criança – continuou ele –

Quando comprei esta casa, não sabia o que Ele reservava para mim,

mas não cabia a mim, questionar Sua vontade. Agora eu entendo. Ele

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queria nos aproximar. Deus tem visto tua luta e teu sofrimento, e diz

que estão chegando ao fim, Criança.

─ Co... Como? – gaguejou.

Sua disposição para conversa fiada não era das melhores,

ainda mais com Theodoro, numa situação tão delicada como a que se

encontrava. Um misto de confusão, curiosidade, alívio e medo

encheu o peito de Leila. Queria correr, fugir dali. Ficou parada,

imóvel, olhando em direção a casa, para o nada. Não sabia o que

pensar sobre aquilo, sua cabeça era um completo vazio. Era incapaz

de filtrar e compreender o que ele dizia.

─ Eu vejo teu sofrimento, criança – afirmou Theodoro

pousando a mão no ombro de Leila - O pecado está corroendo tua

alma.

Leila afastou-se sutilmente do contato dele. Não sabia o que

dizer.

Deus? Pensou ela. O Deus que deixou minha mãe morrer? O

que ele pode saber do meu sofrimento?

─ Desculpe Pastor Ted – finalmente respondeu -, não estou

em condições de conversar. Preciso ir para casa. Hoje meu dia foi

longo e um tanto difícil.

─ Posso dar-te uma carona, criança.

─ Desculpe, eu sei que o senhor é um cliente importante do

escritório, mas não me chame de criança, por favor – pediu Leila.

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─ Leila – repetiu em tom cordial com sua voz rouca - Eu

insito. Deixe-me levar-te para casa, pois está anoitecendo. E prometo

conversar com o doutor Mossani sobre teu estágio, ele me escutará.

Garanto que tu não serás demitida. Deus me revelou a tua

preocupação.

Leila pensou um instante sobre a oferta. Recusar a oferta

do cliente seria pouco educado de sua parte, ainda que não tivesse

muita simpatia por ele. Opinião que guardaria para si. Por mais que o

embaraço fosse grande, desejava manter seu estágio, pois era uma

das coisas boas que acontecera para ela nos últimos tempos.

─ Obrigada Pastor Ted, mas tenho que passar no cemitério

antes de ir para casa – respondeu Leila – Não quero atrapalhá-lo.

─ Eu te acompanho – insistiu impondo sua vontade – Será um

prazer.

─ Obrigada – respondeu resignada.

Durante o primeiro ano, após a morte de Clarice, Leila

visitara o túmulo da mãe todos os dias. Levava sempre consigo um

livro e ficava lá, lendo em silêncio. Aquilo a mantinha forte, e de

alguma forma, enquanto lia, era como se Clarice estivesse ali, ao seu

lado, como nas tardes em que elas passavam juntas, discutindo quem

era melhor poeta. Embora Clarice adorasse Luís de Camões e Leila

lesse seus poemas em memória da mãe, somente um poema de John

Keats aliviava a dor no seu coração quando prestes a tornar-se

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insuportável. Nesses momentos, ela postava-se a frente do túmulo da

mãe e com a mão estendida, como quem espera o toque, declamava

com o fulgor da voz embaçada o já decorado poema tantas vezes

repetido.

Esta mão viva, agora quente e pronta

Para um sincero aperto, se estivesse fria

E no silêncio gélido da tumba,

Viria de tal forma te obsedar os dias

E esfriar-te as noites sonhadoras

Que quererias esgotar o sangue de teu coração

Para que em minhas veias -

Pudesse inda uma vez correr a vida rubra

E tranquila tivesses a consciência:

- Vê-a, aqui está, estendendo-a para ti.

Nunca mais sentiria o toque ou o abraço acolhedor da mãe,

mas de alguma forma, fazer aquilo aquecia o coração de Leila e a

ajudava ser forte, a seguir em frente. Depois do primeiro ano, passou

a visitá-la uma vez por semana, mais tarde, quinzenalmente, e, por

fim, uma vez ao mês. Gostava ficar a sós com Clarice. Quando

Mariane a acompanhava, Leila voltava ao cemitério no dia seguinte

para ter seu momento de filha e mãe, permanecendo ali postada no

túmulo até o cemitério fechar, às dez da noite.

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O Pastor Ted permaneceu no carro quando chegaram ao

cemitério.

─ Fique o tempo que tu precisares, criança – disse ele pouco

antes dela sair do carro.

─ Obrigada – Leila murmurou e desceu sem sequer olhar para

Theodoro.

O túmulo, feito com mármore branco e ornamentado por um

anjo de granito, ficava à sombra de uma árvore de raízes grossas.

Leila costumava sentar no chão e encostar-se ao tronco da árvore

para conversar com Clarice. Contava sobre seu dia, suas

expectativas. Contou sobre seu relacionamento com Mariane e o

quanto a amava. Não havia segredo entre mãe e filha.

Há duas semanas a visitara para contar sobre como tivera

sorte em conseguir um estágio, e agora estava ali, imersa em tristeza,

perdida e só. Até mesmo a sensação acolhedora da presença da sua

mãe a abandonara naquele momento. Sentou-se no chão, debaixo da

árvore, cruzou os braços sobre os joelhos, olhando fixamente o anjo.

Queria chorar, mas seus olhos negaram as lágrimas como o sertão

árido nega água ao andarilho perdido.

Escutou passos e a voz tão familiar. Era Mariane. Levantou-

se num pulo. Seu estômago congelou e um arrepio percorreu todo

seu corpo, fazendo-o estremecer. Queria fugir, mas era tarde.

Mariane já a tinha visto. Tomi vinha logo atrás.

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─ Leila, eu estava ficando louca – disse Mariane receosa,

abraçando-a – Tentei ligar várias vezes. Você está bem, Vermelha?

Ela não respondeu, sua voz ficou presa na garganta. Queria

falar tantas coisas, pedir desculpas, dizer que sentia muito, mas

simplesmente não conseguia dizer nada.

─ Eu fui ao hospital – continuou Mariane segurando o rosto

de Leila entre as mãos –, disseram que você saiu antes de receber

alta. Você está doente, Vermelha? Por que você fez isso?

Por cima dos ombros de Mariane, Leila encarou Tomi.

─ Okay – respondeu erguendo ambas as mãos –, estou saindo.

Qualquer coisa eu estarei por ai – e desapareceu por entre os

túmulos.

O mundo pareceu mais frio de repente. As pernas de Leila

não paravam de tremer. Desviou o olhar, envergonhada.

─ Tilla, desculpa, eu não sei como aconteceu algo assim –

começou Leila com um tom de voz melancólico – Eu juro que não

sei. Eu te amo tanto, Tilla.

─ Eu também te amo, Vermelha – respondeu – O que

aconteceu? Você está doente, Leila? – perguntou esperando o pior –

Se for isso, vamos superar juntas, não há porque você ter medo, gata.

Devia ter me procurado.

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─ Não, Mariane, eu não estou doente – respondeu Leila

abatida – Quer dizer, não sei. Mas não é isso. Eu não sei como falar,

eu nem acredito que isso seja verdade.

Mariane ficou confusa, não sabia o que pensar sobre aquilo.

─ Apenas diga, Leila – respondeu ela com firmeza - Droga!

Estou quase tendo um ataque cardíaco com medo que você esteja

com a mesma doença da sua mãe.

─ Eu não sei... Mas...

─ Diga, Leila. Apenas fale – disse com firmeza segurando-a

pelos ombros.

─ ESTOU GRÁVIDA – berrou num átimo com o olhar fixo

nos olhos castanhos de Mariane, desviando-o em seguida para o chão

– Estou grávida, Mariane – repetiu com a voz abatida.

─ Grávida? – repetiu – Como assim grávida? Que brincadeira

é essa? Você está brincando, não é?

─ Eu não sei como isso aconteceu, Tilla! – repetiu Leila – Eu

juro que não sei.

Mariane soltou os ombros de Leila tentando compreender

aquilo. Era como se Leila estivesse falando um idioma desconhecido.

Gravidez pareceu-lhe uma expressão sem sentido. De repente, o

significado daquela palavra esmurrou a consciência de Mariane.

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─ Porra, sua cadela! – xingou Leila sem medir suas palavras–

Grávida? Como você pode me trair, Leila. Eu confiei em você. Porra,

eu te amo. Por quê?

─ Tilla, por favor... – implorou Leila.

─ Quem é o pai? – continuou Mariane sem dar chances a

Leila - Valeu tanto a pena assim, uma fodinha com um cretino

qualquer? Caramba... Grávida! Eu aqui, preocupada que você

estivesse doente, mas não, você estava dando para alguém. Antes

estivesse morrendo para se juntar a sua mãe...

Leila precipitou-se com raiva para cima de Mariane e acertou-

lhe uma bofetada no rosto.

─ Não fale da minha mãe – disse firme, esquecendo a própria

dor por um instante.

─ UOU... – exclamou Tomi que apareceu vindo das sombras

– Vamos com calma por aqui, tudo bem? Não façam nada para se

arrepender mais tarde.

─ Tomi, isso não é contigo – retrucou Leila, ainda braba.

─ Do jeito que vocês estão discutindo, os mortos vão acabar

reclamando – respondeu Tomi.

Mariane ficou sem ação. Não esperava em mil anos tal reação

de Leila, mas também jamais passou pela cabeça dela que Leila

pudesse traí-la, e pior, engravidar. Seu coração estava partido,

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estilhaçado, moído e esmagado. A confusão de sua cabeça

transbordou em tristeza e chorou.

─ Eu nunca traí você – disse Leila ao ver as lágrimas de

Mariane – Juro pela minha mãe que nunca traí você.

─ E você está grávida do Espírito Santo? – respondeu com

desdém secando o rosto – Por favor, garota, tenha ao menos a

decência de não mentir descaradamente pra mim.

─ Não é dada aos homens a compreensão dos desígnios

divinos – disse uma voz rouca atrás deles - Não julgueis seu

próximo, Criança.

Os três se viraram ao mesmo tempo em direção à voz.

─ Quem diabos é você? – perguntou Mariane surpresa e

braba – E quem o chamou para essa conversa?

─ Criança, Deus tem um plano pra ti, para todos nós –

respondeu ele – Aceite-o como seu salvador antes que seja tarde.

─ Que porra é essa? Vocês dois estão tirando comigo, não é?

– disse Mariane irritada.

─ Este é o Pastor Ted, cliente do escritório – respondeu Leila

– Ele me deu uma carona até aqui.

─ Pastor Ted? – intrometeu-se Tomi – Theodoro Madires?

Theodoro olhou para Tomi sem responder.

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─ Hoje escrevi um artigo sobre suas intenções quanto ao

Beca Pavasaris - falou Tomi – Eu sei o que você quer fazer com a

cidade, Pastor.

Theodoro, com seus quase dois metros de altura, aproximou-

se de Tomi olhando-o de cima para baixo. Seu rosto estava

levemente avermelhado.

─ Tu não deverias se meter nos planos de Deus, garoto –

disse Theodoro em tom ameaçador – ou fará com que Sua ira caia

sobre ti.

─ Planos de Deus? – respondeu Tomi – Não são seus planos,

pastor?

─ Eu sou um instrumento de Deus, garoto. – disse convicto -

Faço somente a Sua vontade.

─ Bom, acho que Deus pode superar uma materiazinha de

revista questionando suas obras, não? – respondeu Tomi.

Ficaram se encarando por alguns segundos.

─ Rezarei por sua alma, garoto – disse Theodoro retirando-

se.

─ Porra, isso é demais para minha cabeça – vociferou

Mariane – Vamos embora Tomi – e saiu.

Parou após o segundo passo

─ Leila... - disse sem olhar para trás - Nunca mais quero ver

sua cara – e continuou seu caminho com passos firmes.

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Leila, pasmada, não se moveu, ficou olhando Mariane partir.

Tomi lançou um olhar triste e compreensivo para ela, ameaçou dizer

algo, mas nenhuma palavra saiu. Virou-se e seguiu Mariane.

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IX

Mariane ficou sentada com as mãos e a cabeça apoiadas no

volante do Velho Buk. Rios de lágrimas vertiam de seus olhos, e ela

sequer se importou em disfarçar o choro quando Tomi entrou no

carro. Ele aguardou pacientemente que Mariane se acalmasse. Em

um ataque de fúria, ela começou a socar e descontar sua raiva no

volante.

─ Por quê? - perguntava a si mesma enquanto sua raiva se

esvaia em socos e pancadas – Por quê?

Tomi a segurou e a trouxe para junto de si, em um abraço

apertado, um pouco desajeitado, sem dizer nada, até Mariane se

acalmar.

─ Tomi, por favor, fica lá em casa hoje? – pediu ela, secando

o rosto molhado – Não quero ficar sozinha.

─ Não sei se é uma boa ideia.

─ Por favor! – insiste Mariane.

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─ Eu posso ficar um tempo, até você se sentir um pouco

melhor – concordou – Mas preciso ir para casa, tenho que entregar

meu artigo na redação da revista amanhã de manhã.

─ Obrigada!

No caminho para o apartamento, Mariane parou em um posto

de gasolina e comprou duas garrafas de vinho e um fardo de cerveja.

Costumava beber muito em festas ou quando tinha problemas sérios

para fugir deles. Leila odiava quando ela exagerava na bebida. E esse

era um dos poucos motivos pelo qual as duas discutiam. Quando

começaram a namorar, Mariane passou a controlar-se mais, bebia

somente em eventos sociais e em quantidades moderadas. Quando

estava com algum problema, tinha Leila para ajudá-la. Mas não

estava preparada para aquilo. Por isso, recorreu à única solução que

conhecia: o álcool. Quando entrou no Maverick, já estava com uma

garrafa de vinho aberta, tomando no gargalo. Tomi não disse nada.

Pegou a garrafa da mão de Mariane, que o encarou braba, e tomou

um gole.

─ Péssima escolha – respondeu Tomi devolvendo a garrafa.

─ Vai se foder – respondeu Mariane –, eu que paguei esta

porra.

─ Estava falando de beber e dirigir – respondeu com um

sorriso leve no rosto enquanto acariciava o painel do carro – seria

uma pena bater essa relíquia.

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Mariane olhou pensativa, mas não respondeu, e arrancou

patinando os pneus, fazendo subir uma nuvem de poeira em volta do

carro. Quando chegaram ao apartamento, a primeira garrafa já tinha

acabado. Nenhum dos dois demonstrava qualquer sinal de

embriaguês. Abriram a segunda garrafa. Tomi sentou-se a mesa da

cozinha. Zíper veio enroscar-se em suas pernas. Tomi o agarrou e o

segurou a altura de seu rosto, analisando o gato.

─ Não sabia que existiam ratos tão feios deste tamanho –

disse Tomi colocando o gato novamente no chão.

Zíper correu para o quarto.

─ Eu tenho mais pelos que ele – complementou Tomi.

─ Ele é mais bonito – desdenhou ela.

Mariane esboçou um leve sorriso, mas seu coração doía e

desejava arrancá-lo com as próprias mãos. Como não podia, regava-o

em vinho.

Tomaram a segunda garrafa em instantes e passaram às

cervejas. Ela não parava quieta, caminhava de um lado para outro na

cozinha, enquanto Tomi a observava.

─ Tudo bem! – disse Tomi sério – Chega disso. Senta aqui –

apontou para a cadeira a sua frente.

Mariane, incrédula pelo tom autoritário, sentou-se.

─ Hoje quando fomos almoçar, lembra que perguntei se

vocês planejavam ter filhos? – perguntou Tomi.

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Mariane assentiu com a cabeça, curiosa.

─ Olha! Eu notei que a Leila estava estranha enquanto

almoçávamos – continuou ele – Ela pareceu enjoada com um pedaço

de berinjela e, para o tamanho dela, parecia comer por dois. Eu

suspeitei que ela estivesse grávida, mas achei que seria indelicado

tocar no assunto. Pensei que talvez vocês estivessem tentando algo,

sei lá. Não queria me meter. Enfim, o fato é que ela, pelo que você

contou e, pelo que eu notei, não parece capaz de trair alguém.

─ Por que você está defendendo ela, porra? – perguntou

Mariane com a voz embargada – Você quer comer ela, é isso? Você

quer comer aquela cadelazinha que me traiu, Tomi?

─ Claro que não, Mariane – respondeu ele, surpreso e

irritado.

─ Eu sempre achei que você me amasse, Tomi – Mariane se

inclinou colocando a mão na perna dele – Você me ama?

Ele segurou a mão de Mariane e inclinou-se em sua direção,

parando bem perto do seu rosto. Olhos nos olhos.

─ É claro que a amo – respondeu firme –, e eu sei o que você

está pensando, Mariane. Mas você só está com raiva dela neste

momento, e quer se vingar. Acredite em mim, se você fizer isso, vai

se arrepender pelo resto da sua vida – enfatizou.

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─ O que você sabe da vida, Tomi Grainoi, filhinho de papai

que sempre teve tudo, hem? – Mariane retrucou arrastando a voz -

Nada! Absolutamente, nada!

─ É. Talvez você tenha razão – respondeu – Mas eu sei que

você não vai me usar para se vingar de Leila. E deveria pensar muito

bem, antes de fazer alguma merda.

─ Leila... Leila... LEILA! – vociferou - Pare de falar nessa

garota.

─ Bom – respondeu levantando-se –, está na minha hora.

Obrigado pelo vinho. Cuide-se.

Mariane não o impediu, encostou a cabeça na mesa e ficou

imóvel. A porta se abriu antes de Tomi alcançá-la. Era Leila. Tomi

recuou sem dizer nada dando espaço para ela passar.

─ Tilla? – Leila chamou.

Ela levantou a cabeça.

─ O que você está fazendo aqui? –perguntou Mariane,

ríspida.

─ Eu vim pegar algumas roupas... – respondeu Leila - Tilla,

por favor, me escuta!

Mariane se levantou.

─ Não tenho nada pra falar contigo. Pegue o que quiser.

Entrou no banheiro, bateu a porta as suas costas e ficou lá,

sentada no chão, esperando que Leila fosse embora.

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Começou a chorar novamente. Escutou Leila e Tomi

conversando, mas não compreendia o que diziam. Ficou em silêncio,

pôs o ouvido na porta para escutar, mas falavam baixo, quase

sussurrando. Neurótica, imaginou que Tomi estivesse flertando com

Leila. Abriu com cuidado a porta e viu que eles não estavam na

cozinha, e foi até o quarto. Parou a porta e viu Leila arrumando uma

mala pequena com algumas roupas e Tomi, parado de costas para a

porta.

─... dê um tempo à ela – aconselhou Tomi.

─ Já pegou tudo o que precisa? – perguntou Mariane tentando

parecer indiferente

Os dois olharam para Mariane. Não disseram nada. Leila

fechou a mala e saiu, passando por Mariane, cabisbaixa, derrotada.

Tomi a seguiu.

─ Eu ligo pra você amanhã. Para saber como você está –

Beijou o rosto de Mariane – Se cuida - e saiu.

Sozinha, tudo parecia um sonho ruim. Custava a crer num

fato tão absurdo. Ficou remoendo aquela informação, analisando,

revivendo a cena em que Leila lhe contara para ver se não tinha

deixado escapar alguma coisa, algum detalhe. Talvez eu tenha

compreendido errado o que ela me disse, pensou Mariane. Mas sabia

que não. Quando emergia de suas dúvidas fantasiadas para explicar o

injustificável, punha-se a chorar.

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Procurou em si a culpa pelo que acontecera, algo que ela

tivesse feito à Leila que a deixara braba, irritada, magoada. Sabia que

por mais que a amasse, às vezes, era grossa e falava sem pensar.

Leila era de uma emoção sensível, com sentimentos belos,

transparentes e frágeis como um copo de cristal. Talvez ela quisesse

se vingar de algo que eu fiz. Mas o quê? Revirou sua memória e não

encontrou nada.

─ Por que ela tinha que fazer isso? – falava com Zíper,

deitado ao seu lado na cama – Porra! Se havia algo errado com a

gente, ela devia ter me procurado e me dito. Sempre fomos tão

amigas...

Seus olhos inchados voltaram a chorar. Mariane derramou

lágrimas até dormir, exausta e bêbada. Sonhou com Leila. Sonhou

que andavam por um deserto árido e rochoso, de chão rachado e sem

vida. O sol as castigava. Sentiam sede. Leila achou um pequeno

embrulho de pano no chão e o pegou, segurou em seus braços, e

ficou olhando para ele. Mariane se aproximou. Distinguiu as formas

em meio a tecidos negros e sujos. Viu o rosto de um bebê. Sua pele

tinha manchas roxas e feridas. Seus olhos arregalados,

completamente brancos e sem vida. Lágrimas escorriam pelo rosto

de Leila, formando gotas em seu queixo e pingando no corpo do

neném. Mariane, chocada pelo horror da cena, recuou envergonhada

pela própria covardia. Leila olhou em seus olhos, e Mariane pode ver

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sua alma sincera. Desculpe-me Tilla, não sei como isso aconteceu,

disse Leila. A criança ganhou vida. Começou a chorar. Saiu dos

braços de Leila engatinhando e a devorou.

Mariane acordou sedenta e suada. O relógio marcava seis da

manhã.

Embora quisesse ficar na cama até o mundo acabar ou sua

vida se esvair, precisava ir ao banheiro, e a necessidade fisiológica

falou mais alto. Levantou-se ainda sentindo os efeitos do álcool em

seu corpo e dos acontecimentos da noite passada em sua alma.

Tomou banho, alimentou Zíper e saiu. Ficar em casa só aumentava a

dor, e a decepção ainda era grande. Triste, decepcionada e furiosa,

naquele horário poderia ir somente a um lugar em que seria acolhida

como se estivesse na própria casa.

Desceu até o primeiro andar e bateu a porta do apartamento

número onze. Logo escutou passos lentos e arrastados acompanhados

do toque compassado de uma bengala no chão. A porta se abriu.

─ Bom dia senhora Hermann – cumprimentou Mariane

abraçando-a – Desculpe incomodá-la tão cedo, mas eu não consigo

dormir, e preciso desabafar com alguém.

─ Oh, querida, você é bem vinda. – disse a senhora Hermann

– Vamos, entre querida, você não está com uma cara boa.

Franz e Anette Hermann, embora ambos já beirassem os

noventa anos de idade, ele, grande, forte e careca, ela pequena e de

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cabelos brancos como um algodoeiro em época de colheita, tinham a

lucidez de invejar qualquer jovem. Franz, um soldado, e Annette,

uma professora, ambos aposentados, moravam vinte, dos mais de

cinquenta anos de casados, ali, naquele pequeno apartamento. Eram

conhecidos no prédio e em todo o bairro. Sempre muito atenciosos e

com inúmeras histórias para contar.

Escutavam-se as notícias no rádio do senhor Hermann da

cozinha, enquanto cumpria sua rotina diária de acordar, ligar o velho

rádio, fazer a barba, arrumar a cama e tomar café.

A senhora Hermann preparava a mesa. Mariane pôs-se a

ajudá-la com os talheres.

─ Que maus ventos trazem você aqui, querida? – perguntou

Anette.

─ É a Leila, vó Ane – respondeu Mariane.

─ Vocês brigaram? – perguntou a senhora Hermann enquanto

secava as mãos no pano de louça.

─ Ela me traiu... – a garganta de Mariane se fez em um nó.

Respirou fundo e engoliu em seco para não começar a chorar

novamente.

─ Oh, querida, a Leila nunca me pareceu uma menina capaz

disso, você tem certeza?

─ Ela está grávida, vó Ane. Grávida! – não aguentou e a

tristeza transbordou por seus olhos.

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Anette pegou sua bengala encostada no fogão e foi consolar

Mariane com seus passos lentos e arrastados em um abraço.

─ Sinto muito, querida – lamentou – Sente-se, por favor.

Franz entrou na cozinha, foi até Anette e deu-lhe um beijo.

─ Bom dia, minha velha.

Mariane levantou-se tentando disfarçar as lágrimas para

cumprimentá-lo.

─ Bom dia, vô Franz – Cumprimentou-o.

─ Bom dia – respondeu reparando a cara inchada de Mariane

– Filha, seja o que for que esteja a aborrecendo, daqui a cem anos

será passado – Beijo-a na cabeça e sentou-se à mesa – Sente-se, não

há nada que o café da minha velha não cure.

Tomaram café da manhã em silêncio. Mariane quase não

tocou na comida. Não sentia fome. Mexia o café com a colher

enquanto pensava em onde Leila teria passado a noite.

Provavelmente em algum hotel, pensava ela, ou na casa da Cris, a

amiga mais próxima delas. De repente todas as dúvidas vieram ao

mesmo tempo. Quando ela me traiu? Onde? COM QUEM? Pensou

em vários conhecidos, mas nenhum lhe pareceu certo. Porra, se eu

pegar o cretino que comeu ela, vou quebrar sua cara em mil partes.

Terminaram o café e foram para a sala.

─ Agora me conte tudo, querida – disse a senhora Hermann

segurando a mão de Mariane.

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─ Ela me contou ontem – respondeu – mas não sei como isso

aconteceu. Não consegui conversar com ela, eu fiquei muito braba...

Ela nem dormiu em casa hoje, vó Ane. Não sei o que eu faço. Como

ela pode me trair? Como?

─ Traição é algo grave, filha – intrometeu-se Franz.

─ Frank! – Anette chamou sua atenção – Você não está

ajudando.

─ Algo grave, mas... – continuou a despeito do protesto da

esposa – quando você não ouve, também está errada.

─ Franz Hermann! – bradou sua esposa.

─ Minha velha – respondeu - na década de sessenta e setenta

as mulheres fizeram protestos pela igualdade, queimaram sutiãs,

fizeram uma revolução para serem ouvidas. Essas duas meninas só

podem se amar hoje, com alguma liberdade, por causa daquelas

mulheres. O mundo as ouviu e hoje temos uma sociedade melhor. Na

época, tudo parecia tão errado! Mulheres iguais aos homens, onde já

se viu? Aquilo parecia uma piada de mau gosto. Mas, por termos

ouvido seus protestos e reivindicações, hoje sabemos que elas

estavam certas – explicava gesticulando bastante como era seu hábito

- Você estava certa. Lembra quando fez greve em casa e eu quase

morri por nem encontrar minhas cuecas? Eu ouvi você, minha velha,

e foi por ouvi-la que hoje estamos bem. Filha – virou-se para

Mariane -, ainda que tudo pareça improvável, se você ao menos não

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ouvir a explicação que ela tem a dar, estará cometendo um erro

imensurável.

Mariane ficou digerindo aquelas palavras. Que explicação

poderia haver para uma gravidez? Pensou ela.

─ Querida, o Frank, às vezes, é um cabeçudo – disse Anette –

mas ele está certo. Você precisa dar uma chance para ela se explicar.

Para entender os motivos dela. Só assim você ficará em paz consigo

mesma. As duas sempre foram um casal tão lindo, pouco

convencional, mas lindas juntas. Quando estão juntas só falta

passarinhos saírem cantando em volta de vocês. Vocês duas já

superaram tanto preconceito juntas, por que largar tudo assim, sem

ao menos uma explicação?

─ Filha, só amores fortes resistem aos golpes duros da vida –

complementou Franz – E esse foi um golpe e tanto, não foi? Agora

resta saber se o amor de vocês é forte o suficiente para aguentá-lo!

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X

Suas pálpebras pesadas custaram a abrir. Precisou de uma

força sobre-humana para abrir os olhos. Não reconheceu o quarto,

tudo era tão diferente. Sentia seu cérebro dormente. Ainda zonza,

tentou levantar-se, mas seu corpo não obedeceu. A noite passada era

uma névoa densa em cabeça. E a cama era irresistivelmente macia

para que Leila a dispensasse assim. Permaneceu imóvel, olhando o

papel de parede florido, com tons verdes em um fundo branco com

orquídeas cor-de-rosa e lilás se destacando.

A porta do quarto se abriu.

─ Tilla? – virou-se com lentidão e preguiça.

─ Dormiu bem, Leila? – respondeu a mulher, loira e vestida

de branco. Não tinha mais de vinte e cinco anos de idade.

─ Quem é você? – perguntou Leila - Onde estou?

─ Meu nome é Fernanda, sou enfermeira – respondeu com

simpatia – E você está no Hotel Garden Palace. Não se preocupe.

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Logo você vai se lembrar. Isso é efeito do calmante que tomou

ontem. Causa um pouco de confusão.

─ Calmante? – perguntou Leila.

─ Você chegou um pouco agitada e um médico veio vê-la a

pedido do Pastor Ted. Ele receitou um calmante. Eu estou aqui para

garantir que você e o bebê fiquem bem e confortáveis. Daqui a pouco

vão trazer o café da manhã, e não se preocupe em levantar, qualquer

coisa que precisar é só pedir pelo telefone. Qualquer coisa.

─ Obrigada – respondeu Leila -, eu acho.

Fernanda mediu a pressão sanguínea e a temperatura de Leila.

─ Novinha em folha – disse Fernanda – Agora vou deixá-la

sozinha para que descanse. Fique a vontade – sorriu e saiu do quarto.

Suas memórias voltaram aos poucos. Lembrou-se da briga

que tivera com Mariane no cemitério. De como Pastor Ted fora

gentil e a convencera a ficar naquele hotel. Lembrou-se da gravidez e

que não fora apenas um pesadelo, e como seu mundo de um minuto

pro outro virou de cabeça para baixo. Grávida? Pensou. Não traí

Mariane, como isso é possível? Pegou o telefone e ligou para a

recepção do hotel.

─ Recepção, bom dia – atendeu uma mulher.

─ Bom dia, vocês tem farmácia aqui no hotel? – perguntou

Leila um pouco grogue.

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─ Temos alguns medicamentos básicos. Aqueles que não

precisam de prescrição médica, senhora. Algo em especial que a

senhora necessite?

– Um teste de gravidez – respondeu Leila – Eu preciso de um

teste de gravidez.

─ Aguarde um momento, irei verificar para a senhora.

─ Sim, obrigada.

Um minuto depois, ele voltou.

─ Desculpe senhora, o hotel não possui nenhum em estoque,

mas há uma farmácia próxima ao hotel, caso queira, posso pedir para

alguém buscar.

─ Por favor, se puder fazer isso, ficarei grata – respondeu

Leila.

─ Alguma marca em especial, senhora? – perguntou.

─ Não, qualquer uma serve.

─ Já mandarei alguém subir com seu pedido, senhora.

Leila agradeceu e desligou. Sentia-se suja, não apenas

fisicamente, por não ter tomado banho na noite anterior, mas também

moralmente, ainda que não tivesse de fato, feito nada errado. Foi

tomar banho. Sua consciência permanecia limpa, mas as descobertas

recentes pesavam contra ela. Como posso me defender de algo que

sequer consigo explicar? Embora estivesse triste com tudo aquilo,

pensava mais em Mariane que em si mesma.

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─ Calma, Leila – pensava em voz alta enquanto a água quente

do chuveiro deixava sua pele vermelha – Talvez você não esteja

grávida. Médicos erram. Exames podem ser trocados. São tantas

coisas que podem dar errado. Será que isto pode ficar pior?

Secava-se quando ouviu alguém bater na porta. Vestiu o

roupão e, ainda com os cabelos molhados, foi atender. Um rapaz

novo, com o rosto coberto de espinhas, usando o uniforme do hotel a

esperava do lado de fora, com uma pequena caixa envolta em papel

pardo. Ele entregou o pacote e foi embora.

Abriu a embalagem e leu as indicações de uso no verso da

embalagem do teste. No banheiro, urinou sobre a ponta da haste

conforme indicado. Enquanto aguardava os cinco minutos, foi vestir-

se. Fazia frio, mas como saíra de casa sem escolher suas roupas, teve

que usar camisa e bermuda jeans. Calçou seu velho tênis e secou o

cabelo. Seus pensamentos voavam, ora em sua mãe, ora em Mariane

e em como ela estaria lidando com aquilo tudo. Leila sabia que por

trás daquela muralha de certezas e convicções inabaláveis,

desconfianças, palavrões e opiniões ofensivas, escondia-se uma

garota frágil. Frágil e solitária como uma flor de março, fora de

estação.

Desejava ligar para Mariane, pegou o telefone várias vezes,

mas sabia que ela não a escutaria agora. Precisava de um tempo para

a poeira assentar. Voltou ao banheiro para ver o resultado do teste.

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─ Positivo – disse em voz alta.

Jogou o teste no lixo, custando crer naquilo. Estar grávida era

algo surreal. Sua cabeça prestes a explodir, não sabia se aguentaria

toda a pressão sozinha. O que eu farei com um filho? Perguntava-se.

Alguém bateu na porta.

─ Oi – atendeu Leila.

─ Oi Leila – respondeu ela -, você está com uma aparência

ótima.

Como se fossem melhores amigas, a enfermeira, agora,

vestida com uma roupa mais casual, entrou no quarto. Isso a irritou,

mas como era uma convidada, nada podia fazer. Já eram gentis mais

do que o necessário.

─ O Pastor Ted quer que você almoce com ele hoje –

continuou ela – Mas, convenhamos, não é, Leila? Você não pode ir

almoçar com essa roupa. O Pastor Ted não gosta de roupas vulgares.

Falar nisso, você trouxe alguma outra? Não tem problema, nós

vamos comprar algo pra você. Tem uma loja aqui perto com roupas

simplesmente MA-RA-VI-LHO-SAS.

Fernanda falava rápido. Parecia não parar sequer para

respirar, respondia as próprias perguntas e não dava chance para

Leila dizer qualquer coisa.

─ Vamos Leila – continuou – Não fique aí parada, chega de

ficar nesse quarto. Ele é um arraso, eu sei, mas a vida tem outras

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maravilhas além de uma suíte de luxo. Existem os cartões de

créditos.

─ Agora? Eu tenho que... – respondeu confusa.

─ É. Agora. Vamos – respondeu sem deixá-la terminar a

frase, puxando-a pelo braço para fora do quarto.

─ Minha bolsa – disse Leila quando já estava no corredor do

prédio.

─ Guria, não se preocupe – respondeu –, tudo que precisamos

está aqui – e mostrou um cartão de crédito retirado de uma pequena

bolsa de mão.

Leila não se sentiu à vontade na presença dela.

Fernanda era loira de olhos azuis, pele lisa e bochechas

naturalmente coradas, de beleza ímpar e não se vestia de forma

vulgar, mas era irritantemente efusiva. Mesmo assim, Leila não sabia

como se portar perante aquela situação tão peculiar. Numa

circunstância como aquela, eles estavam sendo tão corteses com ela,

que Leila pensou ser uma desfeita grande se reclamasse de algo.

Seguiu Fernanda em silêncio, mesmo porque, ela tagarelava o tempo

todo. Um táxi as aguardava na frente do hotel.

─ Por que tudo isso? – perguntou Leila, quando Fernanda

parou de falar alguns segundos para passar batom.

─ Tudo isso o quê? - perguntou ainda se olhando no pequeno

espelho, distraída.

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─ Hotel de luxo. Médico. Sair para comprar roupas. Você –

apontou Leila – Eu não quero parecer ingrata, mas eu nem conheço o

Pastor Ted, por que ele está fazendo tudo isso por mim?

─ Ah, amiga, não se preocupe, o Pastor Ted é um pouco

excêntrico, mas, se ele gosta de alguém, faz de tudo por essa pessoa.

É muito generoso. Um pouco rude, às vezes, mas generoso. Ele

financiou meu curso de enfermagem, sabia? O Pastor Ted veio para

Jardim do Norte com a missão de instalar a sede do nosso Templo.

Ele é um líder religioso muito respeitado. Fundou o Templo da

Liberdade e faz um trabalho muito bonito abrigando ex-criminosos

que quitaram sua dívida com a sociedade. Com certeza um homem

agraciado pelos céus. Todos respeitam ele.

Leila não queria ouvir toda aquela ladainha religiosa.

Observava as pessoas pela janela do táxi, pessoas seguindo suas

vidas rotineiramente como animais adestrados fazendo o que foram

ensinadas a fazer. Trabalhar, caminhar, conversar, rir, reclamar, viver

e morrer. A voz de Fernanda tornou-se como um zunido ao fundo de

seus pensamentos. Até que o táxi estacionou.

─... vamos encontrar algo que a deixará ainda mais linda,

amiga – dizia Fernanda.

Entraram na loja e logo uma mulher elegante e bem vestida,

veio atendê-las. Tudo era tão belo que Leila ficou envergonhada da

simplicidade de sua roupa. Queria ter se arrumado melhor.

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─ Bom dia, eu posso ajudá-las?

─ Minha amiga precisa de algo bonito – respondeu Fernanda

– Nada muito extravagante, nem muito sensual. Uma roupa que

realce sua beleza natural e, que ao mesmo tempo, seja discreta. Ela

tem um almoço importante, hoje.

─ Claro, entendo. Tenho algo perfeito pra você, senhorita...

─ Leila – respondeu Fernanda efusiva e sorridente – o nome

dela é Leila. Eu me chamo Fernanda. E nada de senhorita, senhora, e

esses tratamentos cafonas, por favor.

A atendente olhou concentrada para Leila dos pés a cabeça,

analisando cada curva de seu corpo, o tom da sua pele, a cor de seus

olhos e cabelos, como quem procura desvendar um enigma.

─ Claro. Eu tenho algo perfeito pra você, Leila – respondeu –

Meu nome é Barbara. Por favor, me acompanhem.

Leila nunca foi vaidosa. Gostava de se arrumar. Ficar bonita

fazia sentir-se bem consigo mesma, mas nada ao extremo. Preferia

comprar livros a roupas. Sempre fora muito discreta, mas fazer

compras pareceu algo relaxante. Fez com que se esquecesse dos

problemas.

A atendente trouxe algumas peças e Leila descartou as de

cores alegres. Resolveu experimentar uma calça cigarrete com

cintura alta, e uma blusa de golas transpassadas e mangas três-

quartos com corte francês, ambos de cor preta e detalhes cinza.

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Barbara trouxe alguns adereços para o traje: cinto, pulseira, brincos,

sapatos e um relógio. Fora bajulada o tempo todo pelas atendentes da

loja e por Fernanda. Leila experimentou tudo.

─ Meu Deus, amiga – disse Fernanda juntando as mãos à

altura do rosto – Você está simplesmente linda. UM ARRASO! –

disse entusiasmada.

Leila olhou-se no espelho. Ainda que fosse modesta consigo

mesma, a roupa lhe caía muito bem. Sentiu-se bela. Sua aparência

era exuberante e linda. Queria que Mariane estivesse ali para vê-la.

Para chamá-la de minha Vermelha. Aquele pensamento entristeceu-

a.

─ É isso! – disse Fernanda à Barbara – Ela vai ficar com esse.

─ Todo o conjunto?

─ Sim, todo ele – respondeu Fernanda – As joias, a bolsa e o

sapato, também.

─ Excelente escolha, Leila – respondeu Barbara.

Leila tirou a roupa e entregou tudo para a vendedora, para que

embrulhasse.

─ Isso tudo parece tão caro, Fernanda – comentou Leila –

Você tem certeza? Você e o Pastor Ted estão sendo muito gentis e

sou grata, mas não precisa de tudo isso.

─ Amiga, não se preocupe! Isso é apenas uma comprinha

básica, nós mulheres merecemos algo assim de vez em quando –

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respondeu Fernanda – Falar nisso, vamos passar no cabeleireiro,

ainda, e já demoramos aqui.

Leila não respondeu.

─ Bom dia, acharam tudo o que procuravam? – Perguntou a

mulher do caixa.

─ Sim, é tudo tão lindo, vamos voltar mais vezes aqui –

respondeu Fernanda entregando o cartão para ela.

─ São três mil e quatrocentos reais – disse a mulher do caixa

–, a senhora deseja pagar no crédito ou débito?

─ QUANTO? – espantou-se Leila.

Tanto a caixa como Fernanda olharam surpresas para ela.

– Não posso ficar com isso, é muito dinheiro para dar numa

roupa. Eu agradeço de coração, mas não dá. Eu custo pagar cem reais

numa bolsa... É um absurdo gastar tanto. Com esse dinheiro eu

pagaria um ano da minha faculdade. É tudo muito lindo, mas não

posso ficar com a roupa, sério.

Fernanda puxou Leila para um canto afastado.

─ Amiga – começou ela -, como eu disse, o Pastor Ted é um

homem abençoado por Deus, e ele ficará muito chateado se você

fizer essa desfeita. Eu ficarei chateada se você não aceitar. Não se

preocupe, é um presente de todo o coração. Poxa, ele disse para

ajudá-la porque você está passando por uma situação difícil. Poucas

coisas enchem mais o coração de uma mulher com alegria do que

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fazer compras. Ele foi muito categórico. Ordenou que você tivesse

qualquer coisa que gostasse. Se você recusar, eu falhei, e o Pastor

Ted ficará decepcionado comigo. Por favor, aceite. Faça isso por

mim!

Leila não suportava pessoas implorando. Ainda que aceitar

um presente caro, ferisse seu bom senso, um apelo como aquele era

fatal para ela que tinha coração mole.

─ Tudo bem – respondeu Leila -, mas me prometa que não

fará algo assim novamente. E não iremos ao cabeleireiro.

─ Combinado – respondeu Fernanda alegre.

Voltaram ao caixa. A funcionária as aguardava com um

sorriso no rosto.

─ Minha amiga é muito modesta – disse Fernanda à atendente

-, acha que não merece uns presentinhos, só porque eles são um

pouquinho mais caros.

─ Uma pessoa tão bonita, inteligente e simpática como sua

amiga merece apenas o melhor – respondeu a caixa.

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XI

Embora amasse Leila, Mariane não sabia se seria capaz de

perdoá-la. Como? Perguntava-se. A traição poderia até ser esquecida

com o tempo, dependendo da motivação de Leila. Mas não era

apenas isso, havia uma criança. Uma criança! Como poderíamos

educar uma criança, fruto de um adultério?Como eu poderia ser boa

mãe se a criança seria uma lembrança constante da minha dor e da

irresponsabilidade de Leila? Essa perspectiva a deixava decidida.

Por mais que isso doesse, jamais perdoaria Leila. Seu pobre coração,

despedaçado em mil pedaços, não suportaria uma vida de

desconfianças e incertezas. Mesmo certa de que não a perdoaria,

ouviria Leila. Não queria aquela dúvida em sua alma. Necessitava

saber a razão pela qual Leila fizera aquilo.

Despediu-se dos Hermann decidida a procura-la para escutar

a explicação dela e colocar seus pensamentos em ordem e decidir

como seria o futuro dali pra frente. Voltou ao apartamento e ligou

para o celular de Leila. Desligado. Impaciente, ligou para alguns

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conhecidos e amigos. Ninguém a vira ou falara com ela. Por fim,

ligou para Tomi.

─ Oi Tomi, tudo bem? Desculpe ligar tão cedo.

─ Que isso – respondeu ele -, eu já estou acordado faz tempo,

preparando minha matéria. Como você está?

─ Bem – mentiu -, na medida do possível, estou bem. A Leila

não dormiu em casa, estou preocupada.

─ Já viu se ela foi ao estágio?

─ Droga! Esqueci completamente disso – respondeu

indignada– Já ligo pra você novamente, obrigada.

─ Ei... – chamou Tomi antes que ela desligasse.

─ O quê?

─ Vamos almoçar hoje – disse Tomi – Quero ver com meus

próprios olhos se você está bem.

─ Olha Tomi, eu agradeço, mas não estou com cabeça. Quero

encontrar a Leila e conversar com ela. Saber da boca dela porque ela

me traiu.

─ Isso não foi um pedido – respondeu ele em tom autoritário

-, estou informando que vamos almoçar juntos hoje. É sobre isso que

eu quero falar, sobre a traição da Leila. Resta saber se eu terei que

passar aí, ou podemos nos encontrar em algum lugar? Ah, se falar

com ela, tente adiar a conversa de vocês, tudo bem?

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Mariane sempre fora uma mulher independente, determinada

e de opinião forte, mas, era constantemente vencida por sua

curiosidade. Bastava que prometessem lhe contar algo, e sua mente

ficava maquinando teorias exacerbadas até de fato vir a saber o do

que se tratava. Tomi não adiantou o que queria conversar sobre Leila.

Será que ela contou algo pra ele? Pensava ela. Isso era o suficiente

para garantir que ela fosse ao encontro, ainda que enfrentasse uma

tempestade emocional que devastava seu interior.

Após encerrar a conversa com Tomi, ligou para o escritório.

Foi informada que Leila não aparecera ou sequer ligara naquela

manhã. Seu instinto protetor falou mais alto, deixando-a preocupada

com a falta de notícia. Ligou novamente no celular e deixou

mensagem de voz. E se ela apenas não quis falar comigo? Tal

pensamento foi o suficiente para deixá-la intrigada e novamente com

raiva. Afinal, se alguém tinha o direito ao afastamento, de não querer

conversar, era ela, Leila ainda devia uma explicação.

Vestiu-se e saiu. Precisava certificar-se de que Leila não

estava fugindo dela. Mas, no fundo, tinha medo que algo tivesse

acontecido, ou que a própria Leila tivesse tentado algo estúpido.

Chegou ao escritório perto das onze da manhã, e encontrou Ricardo

saindo e passou por ela sem, aparentemente, reconhecê-la.

─ Ricardo! – Mariane o chamou.

Ele virou-se em sua direção.

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─ Oi... – respondeu sem ânimo – Desculpe. Não a vi.

─ A Leila veio trabalhar? – perguntou sem rodeios

─ A Leila? – perguntou pensativo - Não, achei que estivesse

de atestado em casa. – respondeu – Aconteceu algo?

─ Se você a vir, pode pedir para ela me ligar? – pediu

Mariane.

─ Acho melhor você falar com a Dona Fátima – sugeriu -, eu

não trabalho mais no escritório. Fui demitido. Bem, foda-se – disse

dando os ombros -, eu sequer gostava de trabalhar para eles. Mande

lembranças para Leila – Virou-se e saiu sem esperar resposta.

Mariane foi conversar com Fátima.

─ Bom dia, querida – Dona Fátima cumprimentou-a – Como

está Leila? Melhor, espero.

─ Bem... – disse Mariane constrangida -, eu não a vi desde

ontem, vim saber se ela veio trabalhar. O celular dela está desligado.

─ Eu pensava que vocês duas morassem juntas, desculpe –

respondeu Fátima – Ela não veio trabalhar, hoje. Deve estar de

atestado pelo mal estar de ontem.

─ Mas ela nem ligou para avisar que não viria? – perguntou

Mariane.

─ Não, querida.

─ Obrigada – agradeceu Mariane. Já estava na porta quando

se lembrou de algo – Desculpe, ontem ela estava com um tal pastor,

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que acho que é cliente de vocês. A senhora poderia me dizer onde eu

o encontro?

─ O Pastor Ted? – perguntou Dona Fátima.

─ Sim, ele mesmo – confirmou Mariane.

─ Ele é cliente do escritório, mas não posso passar nenhuma

informação, desculpe – lamentou a secretária.

─ Mas eu quero falar com a Leila, não com ele – respondeu

Mariane um pouco brusca -, não tenho nenhum interesse nesse cara.

─ Querida, o que eu posso fazer é ligar para o Pastor Ted e

perguntar se Leila está com ele – respondeu Fátima com a

cordialidade costumeira.

─ Ficarei grata se a senhora fizer isso por mim – respondeu

Mariane.

Dona Fátima levantou-se foi para a sala de produção. Mariane

ficou aguardando, impaciente, andando de um lado para o outro,

como um pai que espera notícias de seu filho recém-nascido. Parou a

frente de um quadro pendurado na parede. De longe, parecia uma

mulher com uma espada empunhada, atravessando um mar de fogo;

de perto, não era mais que borrões vermelhos, amarelos, laranjas,

lilases, e uma infinidade de outras cores vivas. Afastou-se em passos

mansos olhando fixamente a tela, admirada pela mudança de

perspectiva do desenho ao se afastar. Quanto mais afastada, melhor

enxergava o desenho, mas ao se afastar demais, o quadro voltava a

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ser um borrão de cores vivas. O ponto ideal para vê-lo era

exatamente da frente do balcão da recepção.

─ Impressionante – exclamou para si mesma.

Fátima voltou alguns minutos depois.

─ Não consegui falar com o Pastor Ted – disse ela -, mas ele

deve retornar a ligação, se quiser deixar seu número, eu ligo para

avisá-la.

─ Tudo bem, se a Leila estiver com ele, só preciso falar com

ela. É importante.

Mariane anotou seu telefone em um pedaço de papel,

entregando-o, em seguida, para Fátima.

Voltou para casa.

Embora odiasse ficar de mãos atadas, sem o controle da

situação, não havia nada mais que pudesse fazer, exceto esperar. No

caminho para casa parou em um mercado para comprar mais cerveja.

Flagrou-se pensando na peculiaridade do quadro. Suas cores fortes e

vivas. A mulher que ora parecia uma valente guerreira, que se

transfigurava numa nódoa de cores sem sentido. Achava-o genial,

mas a tela tinha algo mais peculiar, mais pessoal, como se tentasse

dizer algo; como se o quadro tivesse uma mensagem para ela. Estou

louca, só pode, pensou.

O apartamento, que outrora abrigara planos de uma vida a

duas, parecia solitário e triste, paredes sem vida. Até Zíper que

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sempre fora agitado e atrapalhado em suas escaladas pela falta de

bigodes, parecia sentir falta de Leila e ainda culpar Mariane. Apático,

quando ela chegou, o gato sequer veio à porta recepcioná-la como

era de costume. Permaneceu deitado na prateleira entre as bonecas

cabeçudas de Leila, ignorando-a por completo. Mariane abriu uma

cerveja e sentou-se na cama. Observo o desinteresse do gato,

impassível entre as bonecas.

─ Zíper – Mariane o chamou.

Zíper levantou as orelhas e soltou um miado lúgubre e

melancólico.

─ Pelos deuses, Zíper, até você acha que estou errada? – falou

irritada – Será possível, isso?

Ficar em casa deprimia Mariane. As roupas, o cheiro do

lençol, a bagunça organizada do cômodo com a foto delas sorridentes

e felizes. Cada detalhe, cada canto, da cama às paredes amareladas,

tudo lembrava Leila. Isso só fazia aumentar a dor e os estilhaços do

seu coração. Foi para a cozinha pegar outra cerveja e sentou-se a

mesa com olhos pensativos focados no nada.

Toc toc. Alguém bateu na porta. Mariane olhou no relógio:

onze horas. Levantou-se sem qualquer pressa. Toc, toc, toc, bateram

novamente.

─ Já vai – respondeu ela em voz alta.

Abriu a porta.

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Foi surpreendida pela visita inesperada, daquele a quem,

desde o primeiro momento, não sentira qualquer simpatia. Ficou

encarando sem dizer qualquer palavra. A surpresa inicial deu lugar

ao desprezo.

Teve vontade de bater a porta em sua cara, mas lembrou-se de

Leila e a peculiaridade daquela visita fê-la ser educada na medida do

possível.

─ Tens um minuto, criança? – disse Theodoro quebrando o

silêncio.

─ Que porra você está fazendo aqui? – perguntou ofensiva.

Theodoro lançou um olhar de reprovação pelas palavras rudes

e entrou no apartamento sem esperar convite.

─ Leila – respondeu.

Mariane o teria expulsado imediatamente, não fosse o fato

dele ter mencionado o nome de Leila. Fechou a porta e fitou-o com

olhos interrogativos, esperando que ele falasse o porquê viera.

─ Tens grande apreço por tua amiga, não é? – disse ele

─ Noiva - Mariane corrigiu -, Leila é minha noiva.

─ Bem, se assim o dizes – retrucou com meio sorriso – Mas,

agora, isso já não importa mais. É passado.

─ Porra! – vociferou Mariane – Diga o que você quer e saia

da minha casa.

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─ Justo – respondeu Theodoro em tom cortês – Deus tem

planos para Leila. Planos que pessoas impuras e mundanas jamais

compreenderiam.

─ Planos? – perguntou ela – Que merda de planos são esses?

─ Os planos de Deus são revelados àqueles que nele creem.

─ Porra! E o que eu tenho haver com os planos do seu Deus?

─ Tu não, criança, – respondeu ele – Leila. Vim te pedir para

ficares longe dela, que te afastes para que ela possa cumprir os

presságios divinos. Para que Leila possa cumprir sua missão na

terra. E tu? Tu serias uma distração mundana para ela e, por

consequência, para os planos divinos.

Digerindo aquelas palavras, Mariane permaneceu parada com

a boca entreaberta, sem mexer um músculo.

─ Deixe-me ver se compreendi – disse quebrando o silêncio

em tom ameno e pensativo – Você surge do dia pra noite, como o

espectro de um fantasma na vida de Leila, e, por consequência, na

minha vida. Dá abrigo a ela por causa de uma discussão que diz

respeito somente a nós duas, e se acha no direito de vir aqui, em

nome do seu Deus, me pedir para ficar fora da vida da minha noiva,

porque EU sou uma distração mundana para seja-lá-o-que-seu-deus-

pretende?

─ Não colocaria nestes termos – respondeu o Pastor Ted -

Mas sim, espero que te mantenhas afastada de Leila, para o bem dela

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e para teu próprio bem. Tu achas que esta é a vida que Leila merece?

– Disse olhando ao redor.

─ Ah, vá se ferrar! – respondeu ela impaciente - Você, sua

arrogância, seu Deus e os planos dele. Com que porra de direito você

interfere na vida de outras pessoas assim? Quem é você para vir com

a merda dos seus julgamentos pra cima de mim? - as faces de

Mariane ficaram vermelhas e quentes de raiva – O que eu tenho para

tratar com a MINHA NOIVA, tratarei com ela. Saia da minha casa,

agora!

Mariane, que já estava próxima à porta, abriu-a indicando a

saída. Theodoro caminhou tranquilamente para fora.

─ Ninguém interfere nos planos de Deus sem que a ira divina

recaia sobre si – disse o Pastor Ted ao passar por ela.

─ FODA-SE SEU DEUS E A IRA DELE – vociferou às

costas de Theodoro.

Bateu a porta com força o suficiente para estremecer todo o

prédio.

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XII

Os pensamentos de Leila vagavam longe dali. Ansiava por

conversar com Mariane e explicar que nunca a traíra; nunca deitara

com outro alguém, senão ela. Mas como explicar, se nem eu sei como

isso pode acontecer? Pensava Leila. Fernanda matraqueava ao seu

lado enquanto voltavam ao hotel.

Leila conhecia Mariane suficientemente. Demoraria um

tempo até que ela se acalmasse e de fato ouvisse o que tinha para

dizer. Precisava se afastar um ou dois dias para isso acontecer. Este

tempo, decidiu Leila consigo mesma, dedicaria para por a própria

cabeça no lugar. Entender como ficara grávida. Decidiu que

procuraria um médico em busca de respostas. Iria almoçar com o

Pastor Ted e agradecer toda a gentileza, hospitalidade e presentes,

então, depois, ligaria para sua ginecologista e marcaria uma consulta.

Deveria existir uma explicação, algo crível em que ela pudesse se

apegar.

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─... estou tão animada para o almoço de hoje, você não está?

– perguntou Fernanda.

─ Hã? – respondeu Leila – Desculpe. Almoço?

─ Sim, com o Pasto Ted – respondeu sorridente – Você não

está animada? Ele convocou os membros mais importantes do

Templo. E nós duas estaremos lá, também. Isso não é super legal?

─ É sim – confirmou com um sorriso forçado -, super legal.

─ Você não parece muito bem, amiga – respondeu Fernanda

pousando a mão nos ombros de Leila – Mas não se preocupe, Deus

sabe o que faz em nossas vidas. Ponha sua fé em Deus e ele não

falhará.

Leila, ao contrario de Mariane, que era completamente cética

e ateia, acreditava em Deus. Não na forma das religiões tradicionais e

suas regras morais questionáveis. Via-o na natureza, nas crianças,

nas asas de uma borboleta, mas não engaiolado em uma igreja. Deus,

para Leila, não era um pássaro que se podia prender em algum lugar,

numa estrutura de tijolos e cimento. Não, Ele não era o animal

enjaulado que as pessoas tanto admiravam e temiam. Se alguém não

visse Deus nas pequenas coisas, certamente não o conhecia. Ele era

o vento gelado de inverno, o sol de verão, as flores da primavera, e as

folhas secas do outono. Deus não precisa de bajuladores negociantes

de milagres ou promessas de sofrimento. Para Leila, os humanos

foram criados, não para dominar, mas para cuidar da obra divina e

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serem felizes sem a necessidade de reportar a cada segundo as boas

ações, pedir perdão pelos erros ou requerer intervenções e milagres.

Cria nisso de tal forma, que há anos não comia carne. Em parte

porque sentia pena dos animais, mas também por seus princípios, por

tudo o que sua mãe a ensinara sobre Deus e a natureza.

─ Com um bebe a caminho, você deverá se cuidar em dobro –

continuou Fernanda – Eu estou tão feliz por sermos amigas. Eu já

disse que o Pastor Ted me escolheu pessoalmente para ajudá-la, não

é? Hoje de manhã ele disse que você faz parte dos planos de Deus. E

se ele disse, é porque faz mesmo. Então, você é parte da nossa

família, agora.

─ Desculpe Fernanda – respondeu Leila tentando não parecer

rude – Eu agradeço pelo que estão fazendo por mim, de verdade.

Mas irei almoçar com o Pastor Ted para agradecer toda a gentileza e

seguirei minha vida.

─ Ah, não seja boba amiga, garanto que você mudará de ideia

quando conhecer os membros do Templo – disse Fernanda com seu

tom alegre - Você se sentirá tão acolhida e amada que nunca mais vai

querer ir embora.

Não existe nada pior do que uma pessoa efusiva quando se

quer um pouco de paz e solidão para repensar a vida. Leila não via o

momento de livrar-se por algum tempo de Fernanda e de toda sua

alegria; de ter seu momento para organizar suas ideias, e, quem sabe,

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até chorar um pouco. Prometera a sua mãe no último sopro de

consciência dela que não choraria; que levaria a vida adiante e seria

forte, independente dos obstáculos que a vida jogasse em seu

caminho. Embora não conseguisse, ela desejava aliviar um pouco do

próprio sofrimento esvaindo-se em lágrimas e soluços, sem medo ou

culpa.

Chegaram ao hotel pouco antes das onze da manhã. Leila

subiu para seu quarto e dispensou os cuidados de Fernanda, embora

ela tivesse insistido bastante para permanecerem juntas até a hora do

almoço. Deixou as sacolas de roupas em um canto e sentou-se na

cama, observando o quarto. Tudo de uma fineza impecável. Sem

saber o que fazer, ficou ali, imóvel como quem faz parte da mobília.

Notou a sacada e foi até ela.

Seu quarto ficava no décimo segundo andar, e a vista dava

para o Beca Pavasaris. Dali o parque aparentava ser um enorme

jardim numa selva de pedra. Nunca o tinha visto por aquele ângulo.

Tilla certamente gostaria do contraste da vista, pensou Leila, quem

sabe se um dia nos entendermos, podemos passar um final de

semana aqui.

O dia permanecia nublado, com nuvens cinza carregadas de

chuva no horizonte. Um vento gelado trespassou a pele suave de

Leila fazendo-a se encolher e ter calafrios. Caminhou até o parapeito

e olhou para baixo. Dali, as pessoas, os carros, as motos, tudo era tão

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pequeno, tão insignificante. No céu, viu uma revoada de pássaros.

Será que sou capaz de voar e ver o mundo ainda mais do alto?

Pensou. Eu poderia ver o mundo do céu. A ideia de voar pareceu

tentadora. Subir na sacada e pular. Um fim rápido para seus

problemas. Pensou nos milésimos de segundos que antecederiam o

impacto; na sensação de total liberdade mesmo que por um mísero

segundo; na dor. Não a dor física, na dor que aquela escolha infligiria

a quem ficasse. Imaginou o pânico das pessoas ao verem seu corpo

esfacelado no chão. A sentença perpétua de culpa que prolataria à

Mariane por um ato tão covarde e egoísta. Lembrou-se de Clarice,

que lutara até o último segundo pela vida e da coragem com que ela

enfrentara o câncer. Sentiu vergonha de si. Não seria fraca, precisava

encarar tudo aquilo com a cabeça erguida para que sua mãe, onde

quer que estivesse, sentisse orgulho dela. Precisava lutar como sua

mãe lutou, e vencer como ela venceu. Embora ela tenha falecido, o

câncer nunca tirou o seu desejo pela vida. Ele levou seu corpo, mas

nunca seu amor e sua coragem; nunca conseguiu tirar-lhe o sorriso da

alma. Se é certo que todos morreremos, também é certo que sua mãe

vencera o câncer. Porque, no fim, o que importa não é o quanto se

vive, mas sim, como se vive.

Voltou ao quarto. Pegou o telefone e ligou para a recepção.

Pediu que ligassem para a sua ginecologista. Seu celular estava sem

carga na bateria e não sabia o número de cabeça. A recepcionista,

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muito gentil, prontificou-se a encontrar o número e passar a ligação

assim que conseguisse falar com alguém no consultório. Cerca de

vinte minutos depois o telefone tocou.

─ Bom dia Martha – disse Leila assim que a ligação foi

transferida -, é a Leila. Leila Rossastro. A Dra Midori tem algum

horário disponível para hoje à tarde?

Leila aguardou para que a moça verificasse a agenda da

médica.

─ Amanhã às nove horas da manhã? – repetiu Leila – Não.

Está ótimo. Obrigada.

Assim que desligou, alguém bateu na porta do quarto.

─ Nossa estamos super atrasadas – disse Fernanda entrando

no quarto – Já é quase meio-dia e nem começamos a nos arrumar,

ainda. Como você está amiga? Está se sentindo bem? Alguma

tontura? Náusea? Você vomitou?

─ Não, estou bem Fernanda – respondeu Leila.

─ Ótimo! Então vamos nos vestir – disse ela eufórica -

Trouxe algumas roupas. Quero que me ajude a escolher. Mas,

primeiro você. Onde estão suas roupas novas? Ah, aqui.

Fernanda tirou as roupas da sacola com todo cuidado e fez

Leila despir-se. Ela protestou, dizendo que poderia vestir-se sozinha,

mas Fernanda pareceu não escutar, ou simplesmente, ignorou. Leila

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queria que aquilo acabasse o mais rápido possível, então cedeu às

vontades de Fernanda sem reclamar.

─ Amiga! – exclamou Fernanda quando Leila tirou a blusa –

Que tatuagem mais linda! Um pouco assustadora, mas linda, mesmo

assim.

─ Obrigada – a outra limitou-se a responder.

Ao terminar de vestir a roupa nova, Fernanda ajudou-a com a

maquiagem. Um delineador para destacar o verde dos olhos, um

pouco de blush e um batom nude. Então levou-a até o banheiro para

que pudesse ver-se no espelho. Estava exuberante, de uma beleza

imponente. Fernanda podia ter alguns defeitos, incluindo ser um

pouco chata, mas conhecia como ninguém a arte da moda.

Antes de vestir-se, Fernanda mostrou à Leila algumas das

roupas que trouxe para si, pedindo a opinião dela. Leila logo

percebeu que aquilo não passava de uma cortesia, Fernanda

perguntava se a roupa cairia bem, e acabava respondendo as próprias

perguntas.

─ O que você acha dessa blusa amiga? – perguntava – Não,

também não gostei – respondia em seguida sem esperar Leila fazer

qualquer julgamento.

Finalmente decidiu-se por um vestido godê com gola em v na

cor grafite, mangas curtas, cintura justa, barra na altura dos joelhos, e

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um capote cinza que se estendiam alguns centímetros abaixo do

vestido. Um sapato de meio salto e uma bolsa, ambos na cor preta.

Despiu-se sem qualquer pudor na frente de Leila, que não

pode deixar de reparar no quanto seu corpo era bem definido e belo.

Embora se vestisse bem e fosse atraente, as roupas escondiam grande

parte de sua beleza natural, as curvas milimetricamente projetadas, a

proporção dos seios e da bunda, a barriga lisa, e as pernas torneadas

sem quase nenhuma celulite. Nua em pelo, Fernanda parecia uma

foto saída de um editor de imagens.

─ Você acha que eu preciso colocar silicone, amiga? –

perguntou Fernanda, quando notou que Leila a observava.

─ Hã? Não, capaz. – respondeu Leila – Seu corpo é lindo.

─ Hum – murmurou Fernanda – Eu acho que meus seios são

um pouco flácidos – disse pegando a mão de Leila e pondo-a sobre

seu seio – O que você acha?

Leila ficou imediatamente vermelha e puxou a mão num

reflexo.

─ Você não deveria fazer isso – disse Leila constrangida - Eu

tenho uma noiva. Na verdade, não deveríamos nem estar nos

trocando no mesmo ambiente. Desculpe não ter falado antes, mas

não imaginei que você faria isso.

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─ Ah, amiga! – respondeu Fernanda – Eu sei. Por isso achei

que você não fosse se importar em opinar. – disse enquanto apalpava

os próprios seios – Então, eu preciso de silicone ou não? O que acha?

─ Olhe, ainda que você não se importe com o fato de eu ser

lésbica, eu sou noiva – respondeu com firmeza –, e gostaria que você

respeitasse isso.

─ Eu sempre tive curiosidade em saber como seria ficar com

outra mulher – respondeu ignorando o sermão de Leila –, mas em

outro momento conversamos e, quem sabe, você pode me tirar

algumas dúvidas? Agora precisamos apurar. Estamos atrasadas.

As duas desceram para o restaurante do hotel. Leila desejava

tão somente almoçar e ir para casa, conversar com Mariane. Iriam

juntas ao ginecologista para compreender a origem daquela gravidez

surreal.

O lugar estava cheio. Leila olhou a sua volta tentando

localizar o Pastor Ted ou alguém conhecido. Não encontrou

ninguém. Atravessaram todo o restaurante até uma porta de duas

folhas, guardada por um garçom que a abriu num cordial

cumprimento para que elas entrassem. Dentro revelava-se uma sala

ampla com aquários nas paredes, e uma mesa retangular de centro

para cerca de doze pessoas, embora apenas três lugares estivessem

ocupados. Dois homens e uma mulher. Um deles, um homem negro,

de traços exóticos, mas charmoso; o outro, um caucasiano careca e

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parrudo de expressão séria, com roupa casual; e uma a mulher,

branca, desgrenhada, de olhar compenetrado e perturbado, que se

vestia sem combinar qualquer peça de roupa. Aos olhos de Leila, ela

parecia uma louca varrida. Os três levantaram-se ao vê-las entrar na

sala. Fernanda tomou a frente segurando Leila pela mão, e fez as

apresentações.

─ Leila, este é Thomas Adichie – apresentou ao homem

negro – Ele cuida da administração do nosso Templo. Dá apoio aos

nossos pastores nas filiais do Templo.

─ Olá Leila, seja bem vinda – cumprimentou-a com um

aperto firme de mão -, e, por favor, me chame de Tom.

Leila sorriu.

─ Este é Paul Gazino – apresentou-a ao homem caucasiano,

que a cumprimentou com um aperto de mão cuja força quase custou-

lhe os ossos da mão - Ele auxilia o Pastor Ted na tesouraria.

─ E, por fim, esta é Elvira, uma conselheira espiritual do

Templo.

Leila estendeu a mão para cumprimentá-la, mas Elvira se

aproximou e apalpou o seu rosto, analisando cada centímetro com

ambas as mãos. Depois segurou as mãos dela nas suas e esfregou os

dedões nas palmas de Leila como quem analisa a textura de um

tecido.

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Theodoro entrou na sala. Cumprimentou um a um, a todos os

presentes, deixando Leila por último.

─ Bom dia, criança – cumprimentou-a - Eu vejo que a

Fernanda está cuidando muito bem de ti. Tu estás sendo bem tratada?

─ Sim – respondeu Leila -, não só a Fernanda tem sido muito

querida e atenciosa. Todos estão me tratando muito bem, Pastor Ted.

Só não entendo porque tanta gentileza.

─ Somos meros instrumentos nos planos divinos – respondeu

Theodoro – E tu, minha criança, tu és a ferramenta mais importante

dele para vencermos o mal. Hoje nós comemoraremos o início de

uma nova era para a humanidade – disse em tom profético – Este

tempo será conhecido como A era da salvação. Nós fomos

escolhidos pelo próprio Deus para garantir que sua vontade seja

cumprida.

─ Eu? – perguntou confusa e encabulada pelo discurso –

Desculpe, não sei se compreendi o que o senhor quis dizer, pastor!

─ Quando fundei o Templo da Liberdade, eu sabia que Deus

tinha grandes planos para nós. As bênçãos divinas fizeram-nos

crescer e prosperar. Hoje temos vinte templos espalhados em dois

Estados. Eu tenho fé. Eu sabia no fundo do meu coração que este era

só o começo; eu não sabia o que Ele reservava para nós, até ontem à

noite, mas eu tinha fé. Ao me deitar, um anjo veio a mim e revelou o

que Deus guardara para nós todos esses anos. Imediatamente, eu

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reuni os membros do templo, ainda de madrugada, para contar a boa

nova. Elvira, nossa conselheira espiritual, foi trazida aqui para vê-la e

confirmar se a profecia que recebi do anjo de Deus esta correta. Pois,

mesmo um homem de fé, como eu, pode enganar-se – virou-se para

Elvira.

─ Sim Pastor Ted, esta menina carrega dentro de si o fruto do

salvador – disse Elvira -, Leila dará a luz ao messias e será

responsável pela segunda vinda do Filho do Homem a Terra, tal

como profetizado nas escrituras sagradas. Seu ventre foi semeado

pelo Espírito Santo. Eu pude sentir quando ela pisou nesta sala. Mas

vejo dúvidas em seu coração, dúvidas que podem corrompê-la e

desviá-la do caminho de Deus.

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XIII

Fúria era o que definia Mariane naquele momento.

─ Como esse idiota, arrogante, filho da puta tem a audácia de

vir na minha casa e me mandar ficar fora da vida de Leila? –

esbravejava andando de um lado para outro – Deus! Ele só pode estar

zoando com minha cara. Cara de pau do inferno. Ele está querendo

foder comigo, isso sim.

Pegou outra cerveja na geladeira e tomou-a quase toda em um

único gole. Desde que cortara relações com seus pais, Mariane não

admitia receber ordens, especialmente de homens. E alguém vir até

sua casa pedir para ficar afastado da pessoa com quem convivera

quase dez anos da sua vida, era o cúmulo do obsurdo. Ela estava

braba, triste e imensuravelmente desapontada com Leila, mesmo

assim, não aceitaria que um completo estranho viesse em sua casa,

desse-lhe ordens e fizesse ameaças. Nem que Deus em pessoa viesse

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falar com ela, aceitaria tamanha afronta. Ficou zanzando de um lado

para outro, proferindo xingamentos, e arrependida por não tê-lo

expulsado aos tapas da sua frente.

Tomi chegou pontualmente ao meio dia e encontrou Mariane

levemente embriagada. Ela não comera nada naquela manhã, não

tinha o hábito de prepara o café da manhã, tarefa feita por Leila na

maioria dos dias.

─ Tem cerveja? – perguntou Tomi.

─ Na geladeira – respondeu Mariane – fique a vontade.

─ Como você está?

─ Cara, você acredita que aquele pastorzinho de merda veio

aqui? – disse Mariane recuperando um pouco da sua raiva.

─ Quem, o tal do Pastor Ted? – perguntou Tomi

demonstrando surpresa e curiosidade – Aqui, no seu apartamento? O

que ele queria?

─ Veio dizer para eu ficar longe da Leila, porque Deus tem

planos pra ela e eu sou uma distração mundana – contou indignada -

Acredita nessa merda?

─ Ontem e hoje eu pesquisei bastante sobre o Pastor Ted. O

nome dele é Theodoro Madires. Quase nem dormi para terminar a

matéria que escrevia – disse Tomi bastante sério -, e descobri muitas

coisas interessantes sobre ele. Ele parece louco, e tem muito

dinheiro, o que pode ser uma combinação perigosa. Não sei quais as

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intenções dele com Leila, mas, antes de tudo, deveríamos falar com

ela.

─ Louco? – perguntou – Agora me diz algo que eu já não

saiba!

─ Bom, não louco no sentido literal... ou médico, da palavra –

respondeu ele – O Theodoro se tornou pastor após cumprir pena por

extorsão e lavagem de dinheiro, passou cinco anos preso no começo

dos anos noventa. Aparentemente se converteu na cadeia, e ao sair

fundou o Templo da Liberdade. Um nome bem sugestivo para um

ex-presidiário, não? – comentou com um meio sorriso - Ele abriga,

em sua maioria, ex-criminosos que se convertem ao Templo dele.

Hoje, ele tem várias filiais da igreja espalhadas pelo Estado, e ganha

uma nota preta administrando tais igrejas. Isso sem contar outros

investimentos. E faz serviços sociais nos presídios de dois Estados.

Mariane escutava abismada.

─ E agora vem o que realmente surpreende – continuou Tomi

-, lembra o que a Leila tinha dito sobre ele ser dono do Beca?

─ Sim, claro – respondeu ela -, ontem no almoço.

─ Em meados dos anos noventa, quando ele saiu da prisão em

regime aberto, ele entrou com uma ação judicial, alegando ter direito

de herança sobre as terras do Beca Pavasaris, baseado em uma

escritura pública muito antiga, do avô materno, se não me engano. O

processo correu durante anos e ele perdeu em primeira instância.

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Alguns jornais locais noticiaram isso, mas ninguém deu muita

importância, e logo o fato foi esquecido. Ele recorreu da decisão e,

há um mês mais ou menos, o Tribunal de Justiça reverteu a decisão

de primeiro grau concedendo ao Pastor Ted, o direito de propriedade

do Beca Pavasaris. Bom, não todo o parque, mas boa parte. Agora

eu pergunto: se você controla uma igreja em ascensão e, ao mesmo

tempo, torna-se dono de um parque que é o coração de uma cidade

com meio milhão de pessoas, qual seu próximo passo?

Mariane tentava acompanhar o raciocínio de Tomi, mas não

sabia ao certo que conclusão tirar de tudo aquilo, mas ficou surpresa,

em especial pela mídia não ter noticiado algo assim. Nenhum

comentário, nenhuma palavra, nada, nem sequer das associações que

cuidavam do parque. Tudo muito estranho.

─ Eu, no lugar dele, faria do parque o quintal da sede do

Templo – concluiu Tomi.

─ Você tem certeza? – perguntou Mariane.

─ Sim. Meu editor dará destaque de capa para minha matéria.

Amanhã, estará em todas as bancas da cidade. Quem sabe se nos

unirmos novamente, dê tempo de fazer algo a respeito!

─ E onde Leila entra nisso tudo?

─ Não sei – confessou Tomi -, mas esse cara não dá ponto

sem nó. Por isso acho melhor você procurar por ela e avisá-la. Deixar

um pouco de lado essa intriga de vocês.

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─ Mas Tomi, ela está grávida – disse ressentida – não posso

simplesmente esquecer isso.

─ Era aí que eu queria chegar – disse antes de tomar um gole

da cerveja – Eu jogo pôquer, e sou bom, modéstia a parte. O que

separa o jogador profissional do amador é a capacidade de ler o

oponente, saber quando o adversário está mentindo – parou para

tomar mais cerveja - Ontem, conversei com ela, quando você se

trancou no banheiro. Algo rápido. Ela disse que não tinha traído

você, Mari.

─ E você acreditou? – perguntou incrédula.

─ Bem, se isso fosse um jogo de pôquer, eu teria acreditado

nela. Ela não demonstrou qualquer sinal de mentira. Posso estar

errado? Sim, eu posso. Mas, confiando na minha capacidade, já

ganhei algum dinheiro, então, eu acredito que ela esteja falando a

verdade.

─ E como isso é possível? – perguntou Mariane agarrando-se

ao fio de esperança que Tomi lançara - Você não quer que eu

acredite que ela engravidou sentando numa poltrona gozada, ou

abraçando algum tarado com ejaculação precoce, não é?

─ Não – afirmou.

─ Então?

─ Partenogênese telítoca humana – respondeu com ar

triunfante – É algo bem raro, muito raro mesmo, mas com

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plausibilidade científica. É comum em algumas espécies de

invertebrados e nem tanto nas espécies vertebradas; mais rara, ainda,

na humana. Mesmo assim existem casos registrados de mulheres que

duplicaram o material genético e ficaram grávidas sem ter contato

com o sexo masculino. Autofecundação. Não lembro ao certo os

termos científicos que explicam a partenogênese, mas é basicamente

isso: uma mulher pode ficar grávida sem nunca ter relações sexuais

com um homem.

─ Isso é bizarro – disse Mariane pensativa.

─ É, sim. – concordou Tomi – Mas você pode considerar essa

possibilidade, pelo menos por um tempo até esclarecer a gravidez.

Acho que, por tudo que vocês duas já passaram juntas, a Leila

merece um voto de confiança, e você também tem direito ao

beneficio da dúvida. Não se culpe ou sofra antes do tempo.

Ainda que a razão não permitisse Mariane acreditar por

completo na possibilidade de uma gravidez assim, a explicação caiu

como um analgésico para a sua alma. Ainda que não pudesse

comprovar a tese mirabolante de Tomi, que fosse mera suposição, a

possibilidade lhe trazia esperança e um pouco de paz ao coração.

Sem notar, sorriu.

─ Eu não consigo falar com ela – disse Mariane – Já liguei

diversas vezes, deixei recado e nada. Não sei aonde ela foi. Nem sei

se ela está bem. Droga!

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A conversa foi interrompida pelo miado de Zíper ao entrar na

cozinha.

─ Olha só – exclamou Tomi -, o rato pelado voltou!

─ Ah, agora você vem, não é, senhor Zíper? – falou Mariane

ao gato – Quando está com fome, é todo atenção e carinho, né?

Mariane foi colocar a ração no prato de Zíper, que ficava

onde era suposto ser a lavanderia, um espaço na cozinha com uma

máquina e um tanque de lavar roupas.

─ Quando o Ted veio aqui ele não mencionou onde a Leila

estava?

─ Não – respondeu Mariane –, ele veio aqui falou um monte

de asneiras e foi embora.

─ Meu editor estava tentando contatá-lo para uma entrevista

sobre o processo judicial e as intenções dele com o parque. Podemos

passar lá depois do almoço e ver se conseguimos alguma informação.

Se o Theodoro está tão interessado assim na Leila, ela não deve estar

muito longe dele.

─ Ótimo - respondeu Mariane pondo-se pronta para sair -,

então vamos!

─ Calma lá, criatura – disse Tomi – É meio-dia, não vamos

encontrar ninguém na redação agora. E eu estou com fome. Devemos

comer primeiro.

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Saíram para comer em um restaurante barato nas redondezas,

Mariane não fora contemplada com o dom de cozinhar, e por isso

acabava refém da dieta vegetariana de Leila, embora, sempre que

podia, comia fora e saciava sua vontade de carne mal passada.

─ Sabe, esse negocio de pater... parte... – disse Mariane

enquanto almoçavam

─ Partenogênese – interveio Tomi.

─ Isso. Entendo que é uma explicação científica e tal –

continuou demonstrando preocupação – mas, poxa, e se no fim não

for isso? Se no fim eu descobrir que ela me traiu? Vou sofrer tudo

novamente. Estarei me iludindo à toa. Cara, por que isso tinha que

acontecer?

─ Deixe para se preocupar no momento certo, Mari. Tente

não pensar nisso. Se concentre em outras coisas, como, por exemplo,

salvá-la das mãos daquele pastor.

─ Salvá-la? – perguntou Mariane surpresa – Você acha que

ela corre algum perigo?

─ Não, não. Foi só maneira de falar – respondeu – Mas, de

qualquer forma, é bom que você converse com ela. Para isso, você

terá que deixar de lado sua raiva.

Terminaram de almoçar em silêncio. Mariane ansiava por

encontrar Leila, e ensaiou mentalmente o que diria quando a visse.

“Oi Leila – não a chamaria de Vermelha para demonstrar que ainda

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estava braba -, você disse que não sabe como isso, sua... não

conseguia nem pensar em dizer a palavra ‘gravidez’, se não pensasse

e não dissesse, talvez nunca tivesse acontecido de verdade -, como

isso aconteceu e, em nome do nosso amor... amor não, amor pode

parecer que estou sendo complacente com ela, em nome da nossa

história, de tudo o que passamos juntas, vou dar uma chance para

você se explicar”. Mas, na cabeça dela, Leila acabava confessando

que a traíra, e brigavam até, por fim, romperem o noivado e qualquer

chance de o retomarem no futuro. Lembrou-se que Leila batera em

seu rosto, e a tristeza invadiu seu coração. Como ela pode fazer isso?

Não basta que jogue na minha cara uma gravidez, ainda tem que me

humilhar, batendo em mim? Porra!

Chegaram à redação da Revista Nortenhos no começo da

tarde. O prédio, localizado no subúrbio bastante afastado do centro

da cidade, era de cor cinza apático, com um letreiro na fachada em

que algumas das letras estavam ocultas pela sujeira e outras gastas

pela ação do tempo. Dentro, ele era ainda pior, o cenário ideal para

rodar-se um filme de terror. As paredes com excesso de umidade e

canos de esgoto correndo por elas. Mariane não se espantou por

nunca ter ouvido falar da revista, embora não tivesse confessado isso

à Tomi. Passaram pela recepção e foram direto para a sala do chefe.

Tomi bateu com o nó do dedo indicador duas vezes.

─ ENTRE – Gritou uma voz de dentro da sala.

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Tomi abriu a porta e entrou. Mariane o acompanhou. Na sala,

pilhas de caixas espalhadas por todos os cantos, enquanto a mesa

acumulava material de escritório, papéis, pastas, um computador

portátil e um porta-retratos. Tudo tão desorganizado quanto o resto

da sala. Atrás da mesma, um homem moreno, levemente acima do

peso, vestido com uma camisa salmão justa, e um par de brincos de

diamantes, cuja fisionomia lembrava alguém, embora Mariane não

tivesse certeza de quem. Ele falava ao telefone, mas foi só vê-los

entrar, que desligou.

─ Tomico! – disse ele levantando-se com um trejeito

afeminado – Achei que fosse vê-lo somente mais tarde, mas que bom

que veio – e deu um beijo no rosto - E quem é sua amiga? Nossa!

Você não perde tempo mesmo, não é, seu safadinho? Chegou à

cidade há dois dias e já arrumou uma amiga. Assim você deixa seu

chefinho triste.

─ Meu nome é Mariane, mas não se preocupe, o Tomico não

faz meu tipo – Respondeu segurando a risada.

─ Mariane? Não A-CRE-DI-TO! – respondeu admirado o

chefe levando ambas as mãos à boca.

Ela o olhou com desconfiança, sem entender a surpresa.

─ Não acredito que você não se lembra de mim, bicha – disse

colocando uma mão na cintura como que afrontado – Gabriel.

Estudamos juntos no colégio. Meu Deus, linda, quanto tempo?

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Desta vez foi Mariane quem levou as mãos à boca,

desacreditada e surpresa. Gabriel fora na época da escola um aluno

metido a machão, que gostava de bater nos garotos mais novos e

constantemente se gabava de pegar todas as meninas. Embora

ninguém jamais o visse com alguma. Em uma ocasião, ela bateu nele

por dizer que ela e Tomi eram namoradinhos

─ Caramba, eu que não acredito – respondeu finalmente

Mariane rindo – Porra Gabriel, eu jamais pensei que você fosse jogar

no outro time!

─ Ai, fofa – respondeu ele dando um beijo no rosto e um

abraço - Gabriel não, isso me traz más recordações, pode me chamar

de Gabí... ou de “meu amor” se preferir. Mas me conta linda, como

você está? Sente-se, por favor – indicando uma cadeira -

Tomiquinho, meu amor, pegue um café pra fofa da Mari.

Os três conversaram por algum tempo. Mariane resumiu sua

vida e seu relacionamento com Leila. Não conseguiram nenhuma

informação útil sobre Theodoro.

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XIV

Todos naquela sala eram estranhos e, ao que pareceu à Leila

após aquela declaração, eram também loucos. Não tinha certeza se

falavam sério, ou se tudo aquilo fazia parte de alguma piada de mau

gosto. Nem sabia se compreendera corretamente o que eles disseram.

─ Não entendo – confessou Leila - Grávida do Espírito

Santo? Isso é alguma brincadeira?

─ Teu coração está cheio de dúvidas no momento, criança –

respondeu Theodoro –, mas Deus proverá o alívio para a tua cruz.

Será um caminho difícil, não nego, mas tu encontrarás todo apoio

que precisas aqui, entre aqueles que o próprio Deus escolheu para

serem teus humildes guias.

─ Não! – respondeu agitada, levantando-se – Deve ter alguma

coisa errada.

─ Deus nunca erra, criança.

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─ Isso é loucura. Por que eu? – perguntou nada convencida –

Eu nem sei se acredito em Deus... Digo, pelo menos não da mesma

forma que vocês creem.

─ Menina – interviu Elvira -, eu sei que você não se considera

digna de carregar em seu ventre o filho de Deus, e muitos também

não a considerarão. Mas não nos cabe questionar Suas ordens e

desígnios. Só Deus poderia escolher uma mulher impura e com

pecados para dar a luz ao seu filho. Isso, Ele faz para ensinar que

ama a todos igualmente. Nosso Templo é a prova desse amor. Todos

nós, aqui nesta sala, já cometemos erros imperdoáveis pelos homens,

mas Deus em toda Sua sabedoria e misericórdia nos perdoou. Agora,

depois de cumprir Suas ordens e desejos, ele nos presenteia com a

semente do Espírito Santo, para darmos continuidade à Sua obra, e

levar a palavra a toda humanidade.

─ Mas eu nem faço parte da igreja de vocês – argumentou

Leila -, desculpem, mas eu sequer a conhecia até hoje.

─ Deus nos trouxe você, Leila – respondeu Tom.

─ Mas... – começou a dizer.

─ Por Deus, pessoal – disse Fernanda ríspida – Leila está

grávida. Muita informação pode causar estresse e ser ruim para o

bebê. Ai, meu Deus Leila – continuou virando-se para ela -, que

honra a minha poder cuidar de você, acho que vou chorar de

emoção... desculpe... Viu? Já estou chorando.

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─ Deus abrirá seu coração, criança – disse Teodoro – No

momento certo, Deus abrirá seu coração para tudo isso. Ele não erra.

Procure não pensar muito nisso, agora.

Não pensar muito nisso? Pensou ela. Como posso não pensar

muito nisso? Primeiro eu fico grávida e nem sei como, depois um

bando de loucos diz que estou grávida do Espírito Santo. Como eu

posso não pensar nem um pouco nisso?

Sentaram-se para almoçar, mas, embora a comida fosse farta,

com uma diversidade de salada e comida vegetariana, não conseguiu

comer nada. Olhando novamente o que era servido, notou que não

havia nada de origem animal. Sentiu-se bem com aquilo. Ainda que

não sentisse fome, sua mente vagou entre os pratos que eram

servidos: arroz com feijão e cogumelos; arroz integral com tofu e

verduras; caril de legumes; soja ao molho madeira; tofu frito com

molho teriyaki; strogonoff vegano; e, até, feijoada vegana.

Embora Leila fosse vegetariana há algum tempo, era tanta a

variedade de comida, que muito daquilo ela nunca experimentara.

Lamentou não sentir disposição para comer. Por insistência de

Fernanda, Leila beliscou da comida, não conseguia engolir nada.

Apenas quando a sobremesa foi servida, Leila atracou-se com o

manjar de coco, e em seguida, com o mousse de chocolate vegano,

comendo por todos os que estavam ali. De tão concentrada nos

doces, esqueceu que havia outras pessoas a mesa. Comeu com desejo

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e sem culpa, até notar os olhares em cima de si. Encabulada, largou o

pote de mousse e pegou um guardanapo para limpar a boca.

─ Amiga – disse Fernanda –, você deveria comer a taça

silvestre daqui, é simplesmente DI-VI-NA. E não se preocupe, é

normal a mulher sentir desejo por comida nessa época. Coma sem

culpa, até porque agora você come por dois, não é? – virou-se para o

garçom que estava parado à porta – Garçom, por favor, traga uma

taça silvestre... não, duas, eu também vou querer.

─ Não é necessário, Fernanda, já estou satisfeita, obrigada –

dispensou Leila.

─ Não seja boba, amiga. Você vai se arrepender o resto de

sua vida se não experimentar a sobremesa – disse ela encerrando o

assunto.

Todos estavam conversando, mas Leila não participava de

nenhum assunto em especial, ficou quieta, respondendo

eventualmente uma ou outra pergunta. Na maioria das vezes bastava

um sorriso educado concordando com a afirmação, para tirar a

atenção de si.

─ Pastor Ted – chamou Leila aproveitando o instante de

silêncio -, eu aprecio e sou muito grata por tudo o que vocês estão

fazendo por mim. Sinceramente, não acho que mereça tanta atenção,

mas eu preciso ir embora, desde ontem não converso com minha

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noiva. Nós brigamos e ainda que ela esteja braba comigo, deve estar

preocupada com a falta de notícias.

Todos olharam para ela em silêncio analisando suas palavras

e, em seguida dirigiram os olhares ao Pastor Ted, aguardando sua

resposta.

─ Criança – respondeu ele, educadamente -, não precisas

agradecer. Não a nós, pelo menos. Somos gratos a Deus por colocá-

la em nossas vidas. Eu compreendo tua preocupação, mas tenho um

pedido para te fazer, Leila. Depois disso, se ainda não tiveres

convencida, somente Deus poderá iluminar teu caminho.

─ Claro, se eu puder fazer algo para retribuir tanta gentileza –

respondeu Leila, comedida.

─ Hoje à noite haverá culto na atual sede do nosso Templo –

continuo Theodoro –, quero que estejas lá.

─ Claro – respondeu Leila um pouco aliviada pela

simplicidade do pedido -, eu posso fazer isso. Basta me passar o

endereço, e eu irei.

─ O Templo fica em Santa Helena – disse Teodoro -, mas não

te preocupes, nós a levaremos e a traremos de volta, se assim

quiseres.

Leila pensou um pouco a respeito daquilo. Embora parecesse

loucura toda aquela conversa antes do almoço, eles foram gentis, e

ela sentia-se em dívida. Se visitar o templo em uma cidade a menos

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de duas horas de Jardim do Norte fosse o preço por todos os cuidados

que tiveram com ela, certamente Leila retribuiria com alguma

felicidade.

─ Acho que posso ir, mas mesmo assim, preciso falar com a

Mariane.

─ E você acha que ela está preparada para conversar contigo?

– perguntou Tom – Pelo que sei tudo isso é muito recente para vocês

duas, você mesma disse que brigaram. Penso que se você for até ela

agora, será pior. Não seria mais prudente aguardar até amanhã, assim

você aproveita para visitar o Templo sem alterar seu estado de

espírito com uma briga que se pode evitar por hora.

Thomas pareceu coerente. Conhecendo Mariane, Leila sabia

que ela demoraria para superar sua raiva, e se queria uma chance

para se explicar, precisava aguardar o momento certo. Também sabia

que ela jamais aceitaria a ideia de uma gravidez divina.

Provavelmente, ela riria na sua cara, se mencionasse algo assim,

ainda que também achasse loucura. Não teria como mencionar sua

experiência atual para Mariane, não sem antes ter uma explicação

para sua gravidez. Então precisaria acabar com aquilo antes de falar

com ela.

─ Você está certo – concordou Leila -, talvez seja melhor

deixar para amanhã.

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─ Excelente – respondeu Theodoro -, sairemos pouco antes

das cinco da tarde. Fernanda vai te ajudar com o que for necessário.

Tu podes aproveitar o hotel, enquanto isso. Qualquer coisa que

precisares, a Fernanda conseguirá para ti.

Leila voltou para seu quarto na companhia de Fernanda.

─ Você sabia disso, Fernanda? – perguntou Leila quando

estavam no elevador.

─ Não, Lê, eu não sabia. - disse – Nossa! Eu estou tão feliz.

Você é muito especial, eu sabia disso desde o momento que a vi pela

primeira vez. Eu sinto uma paz no coração perto de você, amiga. Eu

sei que agora você terá coisas mais importantes para se preocupar,

mas podemos continuar sendo amigas, não é?

─ Claro – sorriu Leila.

Quando chegaram à porta do quarto, Leila pediu à Fernanda

que conseguisse papel e caneta. Fernanda atendeu prontamente o

pedido, trazendo uma resma de papel, três canetas de cores diferentes

e um lápis, minutos depois. Após algumas explicações e muita

insistência, Leila conseguiu dispensar Fernanda. Queria escrever uma

carta para Mariane antes de ir para Santa Helena. Sentou-se à

escrivaninha do quarto e ficou olhando para a folha em branco a sua

frente, escolhendo com cuidado as palavras.

Começou a escrever, mas as palavras saíam com dificuldade.

As sentenças eram vulgares, comuns demais para transmitir seus

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sentimentos. Rascunhou folhas suficientes para encher a lixeira de

papéis amassados. Quando ficou satisfeita, já passava das três da

tarde. Dobrou a carta em três partes, escreveu o nome de Mariane e

desceu até a recepção do hotel.

─ Oi, boa tarde, eu estou hospedada no quarto mil duzentos e

quatro, queria saber se você tem como fazer um favor pra mim? –

Perguntou à recepcionista.

─ Sim, claro – respondeu prontamente a moça.

─ Perto das cinco horas, eu deixarei o hotel – explicou Leila -

, próximo deste horário, você pode ligar nesse número – disse

mostrando um pedaço de papel em que tinha anotado o telefone e o

nome de Mariane -, e pedir para que ela venha buscar essa carta?

─ Claro – concordou a atendente –, será feito conforme pede.

─ Obrigada - agradeceu Leila.

Entediada, Leila resolveu caminhar, passar um tempo na rua,

afastar-se um pouco do hotel, do Pastor Ted e seus amigos estranhos,

de Deus e da atenção exagerada de Fernanda. Se pudesse, se afastaria

de si mesma para ter um momento sem preocupações. Caminhou sem

rumo parando num ponto em que havia algumas pessoas aguardando

o ônibus. Viu uma criança com não mais de três anos, agarrada à

perna da mãe, que procurava distraída algo em sua bolsa. Imaginou a

si mesma como mãe. Nunca pensara naquilo, em como seria dar a luz

a uma criança. Será um menino ou uma menina? Eu preciso escolher

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alguns nomes. De repente a menina começou a chorar pedindo colo;

a mãe, impaciente e com vergonha da choradeira, deu um beliscão

nela, que só a fez chorar ainda mais. Finalmente ganhou o colo

reclamado.

Será que eu darei conta de cuidar de uma criança? Uma

criança? Será que darei conta de cuidar do MEU filho? Droga, eu

não acredito que serei mãe. Eu não sei cuidar de mim mesma, como

poderei ser uma boa mãe? Seu coração apertou. O ônibus chegou e

todos embarcaram, deixando-a sozinha.

Voltou ao hotel já perto da hora combinada para partir, e

encontrou Fernanda no saguão visivelmente agitada.

─ Meu Deus, Leila! – disse exagerada – como você some

assim, sem avisar? Estávamos todos preocupados. Disseram que

viram você saindo do hotel, eu estava indo atrás, já. Grávida você

não pode sair assim, vai que acontece alguma coisa? Meu Deus, não

quero nem pensar nisso.

─ Eu estou bem, Fernanda – respondeu Leila -, só fui tomar

um ar, não aguentava mais ficar aqui.

Ficou levemente irritada pelo controle que eles tentavam

exercer sobre cada passo seu. Logo estarei em casa, lembrou e

respirou fundo. Resolveu ignorar aquilo. Haviam assuntos mais

importantes para se preocupar.

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─ Nós vamos sair daqui a pouco – informou Fernanda – Eu

fui ao seu quarto para avisá-la, e você não estava lá, procurei por

todos os lados. Desculpe, não queria chateá-la, mas eu me preocupo

com você.

Leila ficou com pena da cara de cachorro perdido de

Fernanda, e sentiu-se culpada por ser insensível a ela. Apesar de ser

um tanto intrometida, Fernanda era a única companhia decente

naquele momento, e aparentava estar genuinamente preocupada,

além de solidária.

Subiram de elevador os doze andares em silêncio, Leila

escutava sem prestar atenção à voz de Fernanda, que contava

detalhes da viagem e como estava feliz por irem juntas ao Templo

em Santa Helena. Chegou ao quarto, arrumou as parcas coisas que

trouxera consigo e, em instantes já estava pronta para partir. Antes de

sair, foi à sacada olhar a incerteza do horizonte.

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XV

─ Merda, Tomi – disse indignada Mariane ao saírem da

redação -, e agora?

─ Vamos com calma – respondeu Tomi – Provavelmente se

ela quisesse falar contigo, já teria ligado. A Leila me disse que daria

um tempo para você esfriar a cabeça.

─ Porra – irritou-se Mariane -, ela faz merda e eu que tenho

que correr atrás?

─ Faz merda? – questionou Tomi – Achei que tínhamos

suspendido os julgamentos, por enquanto.

─ Não força, Tomi. Pra você é fácil falar – respondeu braba -,

não foi a sua mulher que ficou grávida de outro.

─ É. Não foi. – concordou – Mesmo assim, isso não me

impede de estar certo. E, ainda que você desdenhe meu conselho,

estou aqui, não estou?

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Mariane não respondeu à observação. O estresse já era grande

o suficiente sem a necessidade de acrescentar mais culpa. Ficaram

em silêncio até chegarem ao carro.

─ E agora, o que fazemos? – perguntou Mariane

─ Não sei – respondeu Tomi -, você é a especialista no que

condiz à vida da sua noiva. Pense em alguma coisa.

─ Eu não consigo pensar em nada, droga – respondeu triste -,

não sei o que fazer.

─ Vê-la, assim, chega a ser irônico – observou Tomi -, no

passado você sempre sabia o que fazer. Não importa o quão

encrencado nós estivéssemos, você tinha uma solução. Eu era muito

tapado na época...

─ Era? – interrompeu Mariane com um meio sorriso.

─ Sua palha! – disse rindo – Como eu estava dizendo, eu

ERA muito tapado, e você vivia salvando minha pele. Inclusive dos

garotos mais velhos. Acho que na época, ninguém reparava isso, mas

agora, pensando bem, você sempre foi lésbica, só não sabia. Nós

éramos muito ligados um ao outro e eu nunca escondi que era

apaixonado por você, mas eu respeitava sua falta de interesse por

mim além da amizade. De alguma forma, sempre soube que você

nunca seria minha.

Mariane prestava atenção nas palavras de Tomi, enquanto

surgiam novas lembranças da infância em sua mente. Permaneceu

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parada, com as mãos apoiadas no volante do carro observando Tomi,

enquanto este falava, com o olhar perdido na parede do

estacionamento.

─ Por tudo que você me disse da Leila, e pelo pouco que eu a

conheci, eu vejo que ela é parecida comigo, tirando as diferenças

óbvias, é claro – Tomi sorriu -, é como se você tivesse escolhido uma

versão feminina minha. Bom, talvez não de agora, mas da época que

brincávamos, ainda. Ela é uma versão melhorada de mim.

─ Não entendo aonde você quer chegar – confessou Mariane.

─ Mari, você nunca falhou comigo – respondeu voltando-se

para ela –, estava presente quando eu precisava, não importando o

quê, como ou onde, e sempre arranjava uma solução para minhas

encrencas. Você não falhará com Leila, acredite em mim, eu sei.

Aquelas palavras eram um bálsamo para Mariane. Ela tirou as

mãos do volante e abraçou Tomi forte e desajeitadamente.

─ Obrigada, Tomi – disse finalmente -, você é o melhor

amigo que uma mulher lésbica, perdida, com o coração partido e sem

saber o que fazer da vida, pode ter.

─ É. Eu sou – respondeu ele sorrindo.

─ Convencido. – retrucou Mariane – Falar em amores

impossíveis, como está sua vida amorosa. Nesse tempo todo você

não encontrou ninguém?

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─ Eu acumulei uma lista vasta de fracassos amorosos. Nada

muito impressionante.

─ Fracassos? – Exclamou Mariane erguendo as sobrancelhas.

─ Eu fui casado.

─ Não acredito – disse surpresa - Como você não me contou

antes?

─ Não gosto de falar sobre isso – respondeu tentando acabar

com o assunto – Não tem nada de mais.

─ Ah, não fode. Você me deve – insistiu Mariane, encarando-

o como quem o desafia a não ceder.

─ Eu tive algumas namoradas – começou -, mas todos meus

relacionamentos duraram no máximo três meses, não muito mais que

isso. De alguma forma, sempre que conquistava a menina, meus

sentimentos por ela acabavam. Não fazia por mal ou

intencionalmente, mas acabava magoando-as. Aqueles erros típicos

que o ser humano comete repetidamente sem se dar conta. Até que

um dia eu conheci a Natália, minha ex-esposa. Uma mulher

extremamente manipuladora, mentirosa e, que por coincidência, era

bissexual. Ao conhecê-la, senti uma estranha necessidade de

conquistá-la, mesmo que, nem de longe, combinássemos um com o

outro. Hoje eu vejo que fui atraído, não pela pessoa dela, mas pelo

desafio que ela representava. Natália sempre foi uma mulher

independente, dona de si, e não ficava presa aos relacionamentos.

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Fazia sexo com quem sentisse vontade, na hora em que sentisse

vontade. Isso tornava o caminho para o corpo fácil. Já o caminho

para o coração, era uma estrada íngreme, sinuosa e extremamente

perigosa. Ninguém se atrevia neste caminho, até porque ela não

permitia. Manipulava as pessoas a sua volta, mentindo ou fazendo

sexo, mas nunca se envolvendo sentimentalmente. Ela era brilhante

nisso. Durante muito tempo me mantive por perto, analisando,

estudando o comportamento, e planejando como percorreria aquele

caminho. Isso pode parecer frio vindo de mim, agora, mas na época,

nem eu, nem ela tínhamos conhecimento que jogávamos com as

pessoas. Muita gente faz isso e não se dá conta. – explicou Tomi –

Demorou quase um ano para termos o primeiro contato, o primeiro

beijo, depois disso foi mais... Fácil, digamos. No fim de um mês,

estávamos noivos, no outro, casados. Mesmo assim, durante esse

tempo ela fazia questão de dizer que não me amava, embora

afirmasse gostar bastante de mim. A verdade é que eu era um

relacionamento conveniente para ela, assim como conquistá-la era

um jogo pra mim.

Demorou alguns meses até que um dia, depois de uma briga, ela me

abraçou e disse as palavras mágicas: eu te amo. No meu jogo, eu

venci. Foi naquele momento que eu tive uma epifania disso tudo que

estou contando. E daquele momento em diante, eu descobri não ter

mais motivos para ficar com a Natália, ou tolerar suas traições

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descaradas. Afinal, monogamia não era o forte dela. Um ou dois

meses depois, estávamos separados.

─ Bizarro – limitou-se a dizer Mariane.

─ Bizarro é o fato de ela ter transado com o próprio primo, ou

com o marido da amiga – respondeu Tomi – ou com dois irmãos,

primeiro um, depois o outro. Depois disso, tendo consciência de que,

para mim, os relacionamentos não passavam de um jogo, decidi que

não faria mais isso, nem que tivesse que parar de me relacionar. E

tem sido assim desde então.

─ Nossa! Como você descobriu tudo isso? – perguntou

espantada.

─ Investigando. Consegui alguns nomes e pessoas que a

conheciam e que ela não sabia que eu conhecia. Ela trabalhou como

prostituta durante um tempo. Nada contra, mas acho que, quando

ainda estávamos juntos, ela fazia uns bicos, por assim dizer. Disso eu

nunca consegui provas. Até onde eu sei, ela continua sendo a mesma

manipuladora de sempre, que subverte fatos a seu favor, inventa

mentiras e se faz de vítima. Mas não me arrependo, ela foi um

desafio interessante. Agora, se você quer mesmo saber, a culpa disso

tudo é sua.

─Minha? – indagou Mariane espantada.

─ Sim – respondeu Tomi -, sua culpa. Analise comigo: Você

era a paixão da minha infância, o amor da minha vida, e eu nunca

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consegui conquistá-la. O que um atleta faz para ganhar uma

competição mundial?

─ Treina? – perguntou Mariane receosa.

─ Sim. Treina e participa de competições menores como

forma de preparo para a grande competição, a conquista da sua vida.

Ainda que de forma inconsciente, você representava minha maior

conquista no amor, enquanto meus outros relacionamentos foram um

treinamento, competições menores em que eu precisava vencer a fim

de chegar a você. Piegas, eu sei.

─ Não sei o que dizer disso, Tomi – respondeu Mariane.

─ E não precisa. Quando estamos envolvidos demais com o

problema é difícil enxergá-lo. Hoje, analisando tudo de uma distância

razoável, eu vejo que estava competindo na modalidade errada.

Precisaria ter nascido sem um pênis para vencer – disse-lhe rindo -,

mas tudo bem, isso de certa forma me liberta do meu estigma. Talvez

agora eu possa arrumar alguém legal e que eu ame...

─ O que você disse? – interrompeu Mariane.

─ Que está tudo bem? Que vou arrumar alguém que eu ame

de verdade?

─ Não, não – respondeu apreensiva Mariane –, o negócio da

distância?

─Que é preciso estar numa distância razoável para enxergar o

problema?

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─ Sim. O quadro. É isso! – respondeu Mariane pegando seu

celular – Obrigado, Tomi.

─ Tá. Quadro? – perguntou confuso.

─ Nada, não, é um quadro que vi hoje de manhã – respondeu

com o celular ao ouvido - Eu sei como encontrar a Leila.

─ Boa tarde Fátima, tudo bem? Aqui é a Mariane, tem como

me passar o número do Ricardo?

Com a mão no microfone do celular, pediu para Tomi anotar

o número.

─ Obrigada. Tchau.

─ Então, vai me colocar a par dos seus planos? – perguntou

Tomi quando ela desligou.

─ Ricardo é um advogado que trabalhava no escritório junto

com Leila – explicou -, hoje de manhã, eu fui lá e descobri que ele

foi demitido. Ele deve saber como encontrar o Pastor Ted. Cara,

como eu não pensei nisso antes?

Ligou em seguida para Ricardo e, após explicar de forma

breve o porquê precisava da localização de Theodoro, conseguiu o

nome do hotel onde o tal pastor estava hospedado. Saíram do

estacionamento com destino certo, Mariane não queria mais perder

tempo, precisava encontrar Leila e esclarecer de vez aquilo tudo. O

que estava matando-a já não era mais a gravidez, mas permanecer no

escuro, sem uma explicação.

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Chegaram ao hotel meia hora depois e foram direto à

recepção.

─ Boa tarde – cumprimentou Mariane -, eu preciso falar com

uma hospede de vocês, pode avisá-la que estou aqui?

─ Qual o nome da hospede, senhora?

─ Leila Rossastro – respondeu Mariane.

─ Sim, ela estava hospedada aqui – disse a recepcionista após

consultar seu computador -, mas fez check-out há mais ou menos

meia hora.

─ Droga! – soltou frustrada.

Eles já tinham se virado para ir embora, desacreditados na

falta de sorte que tiveram, quando foram chamados de volta. A

atendente vinha correndo.

─ Desculpe, qual o seu nome senhora?

─ Mariane... – respondeu virando-se para ela - Por quê?

─ Mariane Castillo Montanez?

─ Sim – confirmou.

─ Foi deixada esta correspondência aos seus cuidados – disse

a recepcionista entregando-lhe um envelope.

Mariane abriu o envelope a leu ali mesmo.

Tilla, amor meu,

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Como parte desconhecida de um coração incompleto,

sabidamente incompleto, mas que por ser parte desconhecida a

ausência era tolerada, tu me tornaste inteira. Antes, ignorante que

era, poderia viver uma vida longe da tua existência; hoje, consciente

que a parte que me faltava não era apenas uma parte, mas metade,

longe de ti, sinto-me oca e carente de vida. Sem o teu abraço, sou

fraca; sem teus carinhos, sou triste; sem tua respiração ofegante e

teus olhos ardentes, sou um corpo vazio de desejos; sem tua

presença, sou nada.

Penso nos acontecimentos recentes, em como o avesso do

mundo tornou-se regra, e mesmo que minha consciência fiel pouse

tranquila, não sei como pedir que compreendas algo que foge ao

meu próprio entendimento. Não, não posso. Pedir-te isso seria

loucura. Em nome do nosso amor, peço somente que não desistas de

mim, porque eu lutarei por ti; mesmo que se passem mil anos até o

inexplicável tornar-se compreensível, eu lutarei por ti. Queria eu ter

respostas imediatas para diminuir as dores da dúvida em tua carne

Embora o tempo sem luta seja tempo perdido, precisávamos

pensar a sós, cada uma consigo mesma, e evitar, mesmo que por

alguns dias, o conflito. Caso contrário, no ápice do anseio e pela

brevidade dos fatos, desgastaríamos nosso amor em ofensas

recíprocas e, no fim, trágicas. Mas, amanhã, antes que o sol alcance

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o topo do céu, resolveremos com vistas ao nosso amor, este fardo

lançado sobre nós.

Da eterna tua

Vermelha

─ E então? – perguntou Tomi quando Mariane levantou os

olhos lacrimejantes.

─ Eu odeio quando ela faz isso. – respondeu Mariane –

Quando ela dá um jeito de amolecer meu coração. Ela diz que é para

conversarmos amanhã de manhã, mas não deixou nada de como ou

onde encontrá-la.

─ Bom, então ela deve ir para casa amanhã, não? - disse

Tomi – E isso põe fim a nossa busca. Dê esse tempo pra ela.

Descanse hoje e se prepare para amanhã conversarem. Ah, tente

relaxar um pouco, pois se você for ter com ela estressada desse jeito,

só vai complicar as coisas.

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XVI

A paisagem passava lenta, enquanto Leila a observava inerte

dentro do carro. Pouco, ou nada à vontade na presença deles,

questionava a todo o momento a coerência de deixar sua cidade para

visitar uma igreja da qual nunca ouvira falar, com pessoas

completamente desconhecidas na situação atual. De alguma forma,

não era apenas para retribuir todos os favores concedidos, quando

seu mundo virou do avesso, ainda que a teoria deles fosse pouco

ortodoxa, ela fora acolhida sem ser julgada e talvez essa fosse a razão

pela qual aceitara. Nunca a acusaram de traição e, mesmo sendo

religiosos, pareciam não se importar com o fato dela ser lésbica. A

comodidade que vivenciava ao lado daqueles desconhecidos se

contrapunha ao medo de encarar Mariane e à falta de explicação para

sua gravidez. Por hora, ela aproveitaria a cortesia, mas estava decida

a resolver seu problema e enfrentar Mariane. Ligaria para ela na

manhã seguinte e iriam juntas à sua ginecologista.

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Fernanda, sentada entre Elvira e Leila no banco traseiro do

carro, falava por todos, mesmo que ninguém parecesse se importar

muito com sua tagarelice. Eventualmente, Tom respondia com

palavras monossilábicas, mantendo o foco nele. Elvira ficava

pronunciando palavras inaudíveis, meditando, ao que pareceu a

Leila, em uma espécie de oração. Paul mantinha-se focado à estrada.

Chegaram antes do pôr do sol ao Templo, localizado no centro da

cidade, símbolo de ostentação e luxo com fachada de vidro

ornamentada por pilares romanos com quatro metros de altura. Todos

brevemente exaustos, embora a viagem tenha durado menos tempo

do esperado.

O culto fora programado para as nove da noite. Até lá, eles se

hospedariam numa edícula construída nos fundos do Templo para

abrigar os pastores visitantes que pregavam para os fieis daquela

cidade. O local era equipado com um refeitório, quartos, banheiros,

sala de estar e uma biblioteca.

Pouco antes de o culto começar, Leila foi acomodada em uma

das cadeiras em fileira atrás do púlpito junto com outros pastores que

ela conheceu de vista durante sua estada de poucas horas. Deram-lhe

uma espécie de manto azul claro para vestir por cima da roupa.

Fernanda, que estava ao seu lado, vestida com uma manta

semelhante, explicou que, por tradição do Templo, as mulheres,

quando convidadas para ficar entre os pastores, precisavam usar o

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manto em sinal de deferência. Para Leila pareceu uma forma

comedida de machismo.

Não demorou muito para que os primeiros fiéis começassem a

entrar no templo. De cima do tablado, Leila, com olhos ansiosos e

receosos, observava as pessoas que entravam e se acomodavam em

seus lugares. O ar era preenchido com um murmúrio crescente, assim

como os bancos de pessoas. Logo, o templo ficara abarrotado de

pessoas, algumas se aglomerando de pé ao fundo.

Às nove horas em ponto, o Pastor Ted entrou pela porta

escondida atrás de uma cortina bordo de cetim que cobria a parede

aos fundos do tablado. Theodoro postou-se ao púlpito lançando um

olhar e um sorriso orgulhoso por cima dos ombros para Leila. Todo o

templo ficou no mais absoluto silêncio.

─ Irmãos, vós que bucais a vitória de Deus; – começou o

Theodoro preenchendo todo o ar com sua voz imponente e firme –

Vós que atravessais adversidades; que lutais, que travais batalhas

diárias e que esperais respostas das promessas de Deus, eu vos

pergunto: Vós, irmãos e irmãs, creem na promessa de Deus? Vós

tendes a fé necessária para se tornarem servos do Senhor seu Deus?

Um sonoro, mas tímido amém foi dado como resposta pelos

fiéis.

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─ CREDES NA PALAVRA DO SENHOR OU NÃO

CREDES, IRMÃOS? – Gritou Pastor Ted. As veias do seu pescoço

saltaram.

─ AMÉM – Os fiéis responderam tão alto que os ouvidos de

Leila zuniram por alguns segundos.

─ Quando eu fundei nosso Templo – continuou Theodoro

numa voz pacifica, mas firme -, o Templo da Liberdade, Deus

possuía planos não revelados para mim, para vós e para o mundo.

Planos que me foram revelados ontem e hoje compartilharei

convosco.

─ ALELUIA! AMÉM! GLÓRIA DEUS! – ouvia-se gritarem

os fiéis.

─ Agradeço aos pastores das outras congregações que

atenderam imediatamente meu chamado para estarem aqui, presentes

neste marco da história, não da vida de cada um de vós, mas de toda

a humanidade. Em nome do Senhor nosso Deus, obrigado – disse o

Pastor Ted virando-se para os pastores que estavam sentados atrás

dele.

─ Amém – disse uma voz solitária entre os pastores.

Theodoro saiu de trás do púlpito com um microfone em mãos

e desceu do tablado, ficando se postando no corredor central. Leila

notou que a voz de Theodoro parecia cansada, apesar do esforço para

falar firme. Segurava o microfone na mão direita e nos curtos

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intervalos entre uma frase e outra, entre um amém e um aleluia,

massageava seu braço esquerdo. Pareceu a Leila que estava dormente

ou algo parecido. Achou esquisito.

─ Irmãos e irmãs – continuou Theodoro – hoje eu sou a boca

de Deus, e nem sempre conseguimos compreender Sua vontade. O

que revelarei hoje, irmãos, é para quem confia na palavra de Deus,

não é para covardes. Se tu és um covarde, descrente na palavra, cuja

fé é abalada por dúvidas, tenho algo para te pedir.

Olhou para a plateia. Massageou o braço esquerdo. Levou o

microfone à boca novamente.

─ SAIA DESTE TEMPLO AGORA – gritou – Isso mesmo,

saia por aquela porta agora mesmo. – apontou para a porta - O que

virá a seguir, não é para fracos e pessoas com dúvidas no coração.

Deus, hoje, nesta hora, precisa de pessoas firmes na fé. Pessoas que

não vão recuar quando o mundo se voltar contra nós. Por que está na

bíblia que aqueles que seguissem a Deus, seriam perseguidos pelos

infiéis. Deus precisa de pessoas que deem a própria vida pela Sua

palavra.

O lugar inteiro se agitou enquanto pessoas oravam em tom de

lamentação, e outras gritavam agradecimentos a Deus. Pastor Ted

voltava ao púlpito, com alguma satisfação estampada no rosto.

─ Irmãos - disse Theodoro aos fiéis levantando as mãos – há

quase dois mil anos, o filho de Deus nos prometeu seu retorno. E

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esse tempo chegou – fez uma pausa enquanto os fieis se acalmavam -

Irmão Paul continuou ele -, vamos mostrar o milagre à nossa igreja.

Paul entrou empurrando um homem tetraplégico numa

cadeira de rodas e o colocou defronte para o público, ao lado do

púlpito. O homem, muito magro, sentava-se retorcido na cadeira de

roda. Uma baba espessa escorria do canto de sua boca. A mulher que

o acompanhava, dizia-se esposa do homem, e que ele ficara naquela

condição após sofrer um acidente há alguns anos.

Para surpresa de Leila, o Pastor Ted a chamou para perto

dele. Ficou constrangida e quase não conseguiu levantar-se da

cadeira. E só terminar o culto e você pode ir embora, pensou ela,

Apenas para retribuir as gentilezas. Levantou tímida. O manto azul,

que cobria todo o corpo até os pés, deixava transparecer apenas

algumas mechas de seus cabelos vermelhos e seu rosto branco e

sardento. O contraste dava a Leila um ar de santidade. Foi colocada

de pé, ao lado do homem enfermo.

─ Acreditas no retorno do filho de Deus? – Perguntou o

Pastor Ted à mulher.

─ Amém! – respondeu ela, já secando as lágrimas.

─ Hoje, o filho de Deus o libertará dessa enfermidade –

respondeu Theodoro.

Os fieis responderam aleluia em coro.

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Leila, envergonhada, fixou os olhos no chão. Apenas sentiu

Theodoro pousar a mão nas suas costas, forçando-a com leveza a se

aproximar mais do homem, enquanto, segurando a mão dele,

encostou-a ao ventre de Leila. Ela tentou se afastar surpresa, mas a

mão pesada de Theodoro a impediu. Ela sentiu os dedos do homem

se mexer sobre sua barriga, quando isso aconteceu, o Pastor Ted a

liberou, e ela deu três passos para trás, observando o homem ganhar

vida aos poucos. Os braços, a cabeça, os pés, ganhavam movimentos

lentos. Aquilo a assustou. As pessoas começaram a gritar, algumas

choravam.

Quando viu o homem levantar-se, passou mal, quase

desmaiou. Teria caído no meio do palco se não fosse por Fernanda

estar ali para ampará-la. Fernanda a tirou dali discretamente e a levou

para um quarto. A cena do homem levantando-se como um zumbi da

cadeira de rodas a chocou. As imagens ficavam rodando em sua

cabeça. Tomou um remédio para enjoo e deitou um pouco. Não

conseguia fechar os olhos sem vê-lo.

Após melhorar do mal estar, Leila e Fernanda juntaram-se aos

seus anfitriões no refeitório. As duas mesas estavam praticamente

cheias, havendo dois lugares reservados ao lado direito do Pastor

Ted, que sentava à ponta de uma delas.

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Ao entrarem, todos se levantaram numa saudação silenciosa

cercada de respeito e temor. Elas cumprimentaram as pessoas mais

próximas e sentaram-se.

À frente delas, do outro lado da mesa, noutro lugar vago,

sentou-se em seguida Paul.

─ Obrigado, Senhor! – disse ele – Carne!

Ao escutar aquilo Leila olhou de relance para a mesa, notando

que diferente do almoço, o jantar era regado a vários tipos de carne

vermelha e branca, embora houvesse uma quantidade razoável de

salada. Olhando para os pratos já servidos daqueles que estavam à

sua volta, viu que todos comiam carne vermelha, incluindo o Pastor

Ted.

─ Vocês não são vegetarianos? – perguntou Leila, mais

surpresa do que incomodada com o fato.

Os olhares daqueles que a ouviram e sabiam o motivo da

pergunta se voltaram para ela e, em seguida, para Theodoro.

─ Não, criança – respondeu o Pastor Ted -, mas não se

preocupe, nós mandamos preparar algo especial pra você.

─ E por que vocês comeram comida vegana no almoço? –

perguntou Leila – Embora eu seja vegetariana, não me importo... –

interrompeu a fala quando uma dúvida veio à cabeça – Espera. Até

ontem eu não conhecia nenhum de vocês e eu nunca disse que era

vegetariana. Como vocês sabem que sou vegetariana?

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Fez-se um silêncio mórbido diante da pergunta. Todos

pareciam desviar o olhar de Leila eximindo-se da tarefa de respondê-

la.

─ Heim? – repetiu ela olhando para o Theodoro – Como

vocês sabem que sou vegetariana?

─ Há coisas que você não está preparada para saber agora,

criança – respondeu o Pastor Ted – os planos de Deus serão

revelados ao tempo certo.

─ Planos de Deus? – O cheiro de carne invadiu suas narinas

embrulhando seu estômago. Ficou enjoada.

─ Por Deus, amiga – interviu Fernanda – você não pode se

estressar, lembre-se que está grávida. Olha só como está pálida.

Vamos – segurou-a pelo braço – vou levá-la ao seu quarto.

─ Banheiro – respondeu Leila desvencilhando-se da mão de

Fernanda e correu para o banheiro mais próximo. Vomitou apenas

suco bilar. Não comera nada durante a tarde.

Saiu do banheiro com ajuda de Fernanda, com as pernas

fracas e trêmulas. Foram até um quarto. Leila deitou-se na cama

ainda nauseada e com frio, embora a noite estivesse quente. Não

demorou para que um médico chegasse, o mesmo médico que a

atendera no hotel, segundo suas recordações. Sentia-se tão indisposta

e fraca que não teve tempo de se opor à injeção que ele aplicou.

Dormiu um sono profundo e sem sonhos.

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Acordou um pouco aturdida e com calor. A sua volta tudo era

tão branco que feria seus olhos sensíveis, não reconheceu o lugar, a

cama, o lençol verde, as paredes, nada se parecia com o quarto que

fora dormir na noite anterior, embora sua mente vagasse entre o seu

quarto com alguns flashes dos acontecimentos da noite passada.

─ Bom dia, amiga – disse Fernanda que estava sentada ao

lado da cama -, nossa que susto você me deu. Você está anêmica,

menina. Precisa se alimentar direito, mas você e o bebê ficarão bem.

Ah, você está numa clínica. Trouxemos você pra cá para fazer alguns

exames e cuidar melhor dos dois – explicou Fernanda – E, amiga,

você está para completar seis semanas de gravidez. Não é lindo?

─ Que horas são? – perguntou Leila abatida.

─ Nove da manhã – respondeu Fernanda -, você dormiu como

um anjo. Eu fiquei o tempo inteiro com você, amiga, não se

preocupe, esta é a melhor clínica que uma mulher grávida pode ficar.

─ Fernanda... – disse Leila -, estou um pouco cansada, pode

me deixar sozinha, algum tempo?

─ Tem certeza que é uma boa ideia? É um prazer cuidar de

vocês.

─ Por favor, eu quero ficar um pouco sozinha.

─ Hum... Tudo bem, então, amiga – concordou com

relutância.

Levantou-se da poltrona para sair

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─ Se precisar de algo é só chamar, estarei por perto. Descanse

bastante.

Quando Fernanda saiu, Leila levantou-se devagar e sentou à

beira da cama. Seus pensamentos eram confusos e lentos. Reparou

que seu corpo nú era protegido somente por um roupão verde.

Fechou-o mais, cobrindo mais seu busto. Antes de qualquer coisa,

precisava das suas roupas. Desceu da cama quase caindo ao por os

pés no chão, olhou para a poltrona ao lado da cama e viu uma bolsa

feminina, a bolsa de Fernanda. Abriu-a e vasculhou seu interior,

pegando um celular. Instintivamente discou o número de Mariane. O

telefone sequer terminou o primeiro toque para que ela atendesse.

─ Oi, Tilla – disse quando Mariane atendeu.

Mariane demorou alguns segundos para responder.

─ Oi – respondeu indiferente e insegura.

─ Estou na sexta semana de gravidez – comentou a primeira

coisa que veio a sua cabeça, lembrando-se do que Fernanda dissera.

─ É? – respondeu Mariane – que bom.

─ Precisamos conversar, Tilla – disse Leila - eu não suporto

mais isso. Não sozinha.

─ Onde você está?

─ Não sei – confessou Leila -, ontem fiquei mal e me

trouxeram para uma clínica, mas não sei onde fica. ─ Hoje eu vou

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pra casa, não sei que horas, mas assim que eu chegar nós vamos

sentar e conversar, tudo bem?

─ Sim, tudo bem. – concordou Mariane – Ouvirei o que você

tem a dizer.

─ Tilla?

─ Sim? – perguntou Mariane.

─ Eu te amo, sinto sua falta.

O telefone ficou mudo. Embora Leila soubesse que Mariane

ainda estava do outro lado ouvindo, apenas desligou. Não esperava

uma retribuição da declaração. Conhecia bem o gênio de Mariane.

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XVII

Sentada na cama, Mariane segurava o celular com força entre

suas pernas enquanto um rio de lágrimas emergia em seus olhos e a

tristeza invadia seu coração. Tinha treinado tanto mentalmente falar

com Leila e, quando finalmente conseguiu contato, nenhuma palavra

daquelas que ensaiara veio a sua mente, apenas travou como um

adolescente diante da sua paixão.

─ Droga! – esbravejou arremessando o celular contra a

parede – Por que precisa ser tão difícil?

Sua cabeça latejava e a garganta estava seca como um

deserto. Levantou-se cambaleando e pisou em Tomi, que estava

deitado em uma cama improvisada com cobertores, almofadas e

travesseiros no chão.

No dia anterior, depois que saíram do hotel, compraram

bebidas e foram para o apartamento de Mariane. Vararam a

madrugada bebendo e conversando. Tomi ficou tão bêbado que não

conseguiu ir para casa.

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─ Ai, caralho – reclamou Tomi -, cuidado onde pisa.

─ Desculpe – respondeu Mariane.

Não sabia se era a ressaca ou a ligação de Leila que a

atordoava.

Quando voltou para o quarto, após ir ao banheiro e tomar

muita água, encontrou Tomi em pé, ajeitando-se. Ao acordar, a roupa

amarrotada e os cabelos e barba desgrenhadas deixavam a aparência

dele ainda mais assemelhada a de um mendigo.

─ Era a Leila? – Perguntou Tomi apontando para as partes do

celular no chão.

─ Sim – respondeu Mariane desaprovando a censura implícita

na pergunta.

─ E o que ela disse?

─ Que quer conversar e que virá pra casa hoje – respondeu

ela – E que está na sexta semana de gravidez.

─ Isso é bom, não é? - comentou Tomi.

Mariane olhou para ele descrente.

─ Como isso pode ser bom, Tomi?

─ Imaginei que você fosse mais esperta, Mari. – retrucou –

Agora você pode saber quando ela ficou grávida.

Sem responder virou-se e voltou para a cozinha, pegando um

calendário preso na porta da geladeira. Tomi a seguiu. Contou as

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semanas até localizar o dia aproximado da concepção da gravidez de

Leila.

─ Final de junho. – comentou Mariane com a voz pensativa –

Nessa época fomos à festa na casa de um colega de faculdade da

Leila. Fora isso, ela não teria muita oportunidade de fazer sexo,

ficávamos o tempo todo juntas.

─ E na festa ela teve tempo? – perguntou Mariane.

─ Não. - afirmou – Quer dizer, ela não é acostumada a beber,

eu insisti para ela tomar uma dose de tequila. Algum tempo depois,

ela estava tão alterada que mal conseguia ficar de pé. Eu conversei

com o dono da casa e a levei até um quarto para que pudesse

descansar. Ela simplesmente desmaiou lá. Fechei a porta e voltei

para a festa. Ela não poderia ter me traído lá, mal conseguia ficar de

pé, não falava nada com nada. Não faz sentido.

─ Talvez ela, por livre e espontânea vontade, não tenha te

traído... – disse Tomi deixando a conclusão no ar.

─ Como não... – começou a protestar quando a lógica da ideia

inacabada de Tomi acertou-lhe como murro na boca do estômago -

Não, Tomi, não pode ser – negou empalidecida.

─ Talvez alguém tenha se aproveitado dela – disse Tomi.

O estômago de Mariane revirou e veio à garganta. Ainda

estava bêbada da noite anterior, e a perspectiva da sugestão de Tomi

fez o resto. Caiu de joelhos no chão e vomitou ali mesmo, na

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cozinha. Tomi a ajudou segurando seus cabelos, dando apoio no

ombro dela. Após vomitar e se lavar no banheiro, enquanto Tomi

limpava a bagunça, Mariane sentou-se numa cadeira até assimilar

tudo e se recuperar. Ela não regurgitou apenas tudo o que comera e

bebera na noite anterior, mas também algo que estava consumindo

sua alma por dentro.

─ Precisamos ter certeza, Tomi. – disse levantando-se

abruptamente decidida – Você vai me ajudar.

─ E qual é o plano? – perguntou sorrindo ao ver que Mariane

recuperara sua força.

─ Vamos voltar na casa da festa – respondeu ela prontamente

– e ter uma conversinha com o tal colega dela.

─ Você vai bater na porta da casa dele e dizer: Oi, você sabe

quem estuprou minha noiva? – retrucou pouco convencido Tomi –

Não me parece um bom plano.

─ Eu não, você vai – respondeu apontando o indicador para

ele – Diga que estava na festa e esqueceu algo lá, alguma coisa

assim, você é esperto, vai conseguir arrancar alguma informação.

Tinha muita gente na festa, muitos penetras, ele vai achar que não se

lembra de você, aproveite-se disso. Mas se eu aparecer, ele pode

acabar lembrando, afinal tive que falar com ele para arrumar o quarto

para a Leila.

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─ Okay, podemos tentar – respondeu pouco seguro – Qual o

nome dele?

─ Cristian. Ele é um pouco mais alto que você. Tem o

penteado estilo militar, sabe? Raspado dos lados e bem curto em

cima – explicou Mariane passando a mão do lado da própria cabeça –

tem o rosto quadrado e é um pouco entroncado. E, pelo que lembro,

burro que é uma porta.

Mariane vestiu-se com uma calça jeans, uma camisa mais

larga e colocou um boné com os cabelos presos num coque. Foram

direto para a casa onde ocorreu a festa, estacionando o carro uma

quadra antes para não chamar a atenção. Tomi desceu do carro e foi

a pé até lá, enquanto ela esperou impaciente dentro do velho Buk.

Menos de dois minutos depois, Tomi voltava para o carro.

─ O que houve? – perguntou Mariane inquieta.

─ Ele não está em casa – respondeu Tomi -, mas a mulher

que atendeu disse que ele foi à padaria aqui perto. Podemos ir a pé,

mas você terá que ir junto, para reconhecê-lo.

─ Tudo bem – concordou prontamente -, vamos a pé, não

quero correr o risco de ele reconhecer meu carro.

A padaria ficava na próxima esquina, a rua era calma e sem

alma viva transitando por lá. A fachada feita de vidro permitia que os

pedestres vissem dentro dela, o que facilitou para Mariane localizar

Cristian e mostrá-lo para Tomi. Cristian, vestido de camisa regata,

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bermuda e tênis, sentava-se ao balcão de costas para rua, enquanto

flertava com uma das atendentes.

Tomi entrou e foi direto na direção dele sem hesitar. Mariane

o seguiu, sentando-se à mesa às costas dele, para manter-se longe do

seu olhar e ao mesmo tempo poder ouvir a conversa.

─ Veja só! – disse Tomi a todo sorriso indo em direção à

Cristian – Se não é o melhor anfitrião da cidade. Cristian, meu caro,

quanto tempo?

Ele olhou surpreso para Tomi.

─ Cara, eu sei que você não deve se lembrar de mim –

continuou Tomi dando tapinhas nas suas costas – Mas, que festa

épica aquela sua? Que festa!

─ E aí? – respondeu Cristian com um sorriso leve no rosto –

Beleza?

─ Cara, saiba que você ficou famoso até lá na minha cidade –

continuou Tomi - tem um monte de amigas minhas loucas pra saber

quando você fará a próxima. Estão loucas pra conhecer o melhor

anfitrião de Jardim do Norte. Sabe como é, não é? Essas meninas de

cidade pequena adoram uma festinha. Quando for fazer outra festa

me avise, tem pelo menos cinco gatas que vem de certeza.

Cristian ficou mais relaxado, o apelo ao seu ego masculino

surtiu efeito.

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─ Claro – respondeu ele -, tô querendo fazer uma pelos

próximos dias.

─ Me deixa anotar o seu número, cara – disse Tomi – Tenho

uma amiga, maior filé, que está doida pra conhecer você. Eu já passo

o número pra ela. Claro, se você quiser. Mas, cara, a mulher é um

avião, não vai se arrepender.

─ Oh, demoro anota aí – respondeu Cristian abrindo um largo

sorriso.

Tomi anotou o número. Já eram melhores amigos.

─ Cara, eu estava passando por aqui, e pensei em dar uma

passada na sua casa, e tal. Mas pensei: poh, o cara mal me conhece,

nem sei se lembra de mim e vou chegar assim. Daí eu acabei

desistindo. Daí eu vim aqui na padaria, tomar um café e encontro

você, cara. É coisa do destino, mesmo – continuou Tomi.

A moça com que Cristian estava flertando foi à mesa de

Mariane.

─ Deseja algo? – perguntou com um bloco de notas a postos

para anotar o pedido.

─ Um café sem leite e muito quente – respondeu ela –,

fervendo, de preferência.

Ele trouxe o café um instante depois, tão quente que sequer

podia-se segurar o copo sem queimar as mãos.

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─ Oh, cara, pode passar lá em casa a hora que quiser –

respondeu Cristian.

─ Sabe o que é Cristian – respondeu em segredo – na festa,

lá, eu conheci uma menina, a gente trocou umas palavras e tal, e ela

sumiu da festa. Mas fiquei mó na dela, sabe? Queria ver ser por acaso

você não conhece. Uma ruivinha, olhos verdes, de pele bem

branquinha, acho que era Leila o nome. Conhece?

─ Ah cara, esquece essa piranha fresca – respondeu Cristian –

Ela é uma vadia, só quer saber de mulher.

O sangue de Mariane ficou mais quente que o café, ao ouvir

aquilo. Tomi olhou de relance na direção dela.

Fica calma, não vai estragar tudo agora, disse com o olhar.

─ Ah, mas isso é bom, não é? – respondeu Tomi – Sabe, duas

mulheres juntas? Hã?

─ Pode esquecer cara, a piranha é foda. Um camarada meu

tava na dela e tal, mas ela não cedeu. Essas putas precisam de um chá

de pica de um homem de verdade pra se ajeitar, isso sim. Pô, meu

camarada, gente fina pra caramba, um monte de mulher dando moral

pra ele e ela rejeitou o cara? Foda, né?

─ É. Foda – concordou Tomi.

─ Mas não ficou por isso, não. Eu dei um remedinho da

minha coleção pra ele, desses que fazem qualquer puta fresca abrir as

pernas. Ela viu o que era bom, os dois treparam a noite inteira. –

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soltou um riso alto – Quer dizer, ele trepou a noite inteira, a vaca

ficou desmaiada na cama – riu mais alto.

A expressão de Tomi se fechou numa seriedade mórbida.

As mãos de Mariane tremiam, sua cabeça estava prestes a

explodir. Tomada pela raiva, levantou-se. A dois passos de Cristian,

jogou o café em seu rosto. Primeiro ele não pareceu sentir a

queimadura, mas logo que o efeito do susto passou, sua pele ficou

vermelha e ele gritou.

─ SUA PIRANHA LOUCA – Gritou tentando tirar a camisa

e secar o café quente que escoria pelo seu pescoço, costas e peito.

Mariane o puxou pelo pescoço, derrubando-o no chão num

estrondo. Os funcionários ficaram chocados.

Tomi teve tempo apenas de se afastar, sentindo alguns pingos

do café quente no seu corpo. Ela pegou uma faca no balcão e

imobilizou Cristian roçando a serra da faca no pescoço dele.

─ Eu vou perguntar somente uma vez, se você não responder,

vou arrancar o teu saco fora com essa faca – a ira de Mariane não

deixou qualquer dúvida de que ela seria capaz de fazer o que

prometera.

Uma funcionária tentou se aproximar, com a intenção de

intervir em favor de Cristian, mas foi impedida por Tomi.

─ Quem é o seu amigo estuprador? – perguntou em voz alta

para todos ouvirem - Eu quero o nome e o endereço, escutou?

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Apertou a faca no pescoço dele.

─ JEAN. O nome dele é Jean Rafael!

─ Onde ele mora, porra? – perguntou pressionando mais a

faca.

─ Sua vaca, você vai pagar por isso – esbravejou ele.

─ Onde. Ele. Mora – perguntou pausadamente apertando

ainda mais a faca até sair um filete de sangue.

─ Tá bom, tá bom – concordou com medo – Ele mora perto

da fábrica de tecidos abandonada. A fábrica fica no final da rua, a

casa dele duas casas antes. É amarela e tem uma cerca branca, é

impossível errar.

─ Que fábrica, porra?

Mariane sentiu uma mão no seu ombro.

─ Eu sei onde fica, é perto da redação da revista. – disse

Tomi – Temos que ir, já chamaram a polícia.

─ Escuta aqui seu merdinha – falou Mariane ao ouvido de

Cristian segurando o rosto dele contra o chão – se você abrir a boca

pro seu amiguinho sobre essa nossa conversa, ou contar pra polícia,

antes de você ser preso por cumplicidade no estupro e virar

mulherzinha dos presidiários, eu volto aqui e arranco o teu saco,

entendeu? – perguntou ela – ENTENDEU, PORRA? – gritou.

─ Tá, merda – respondeu ele –, entendi.

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Mariane levantou-se e, ela e Tomi, desapareceram pela porta

antes que Cristian pudesse ficar de pé. As funcionárias, embora

assustadas, olharam para ele com nojo após ouvir a acusação, e

nenhuma se prestou a ajudá-lo.

Desceram a rua em direção ao carro de Mariane. Ambos

estavam agitados, Mariane tremia feita vara verde, enfurecida por

saber que a mulher que amava, que Leila fora abusada, violada,

estuprada, completamente indefesa e bem debaixo do seu nariz.

Aquilo cortava profundamente seu coração e sua alma, ao mesmo

tempo em que uma luz brotava em seu espírito. Leila sempre lhe fora

fiel. Como fui tão burra e mesquinha?Pelos deuses, como pude ser

tão injusta com a Vermelha, pensava enquanto voltavam ao carro.

Chegaram ao velho Buk e um rapaz, com não mais de dezoito

anos, de andar largado, mãos no bolso da jaqueta e capuz que cobria

boa parte do rosto, se aproximou deles.

─ E aí mano, tem horas? – perguntou olhando a sua volta,

como se procurasse alguém.

Tomi buscou o celular no bolso da calça, enquanto o rapaz

tirava as mãos dos bolsos da jaqueta. Mariane notou que segurava,

em uma delas, um objeto prateado. Escutou um estalido seco. E

outro. E mais um. O ar foi tomado pelo cheiro forte de pólvora. Ela

olhou para Tomi, caído no chão, ensanguentado, só então

compreendeu o que estava acontecendo. Antes que pudesse pensar

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sobre a situação, por reflexo, precipitou-se para cima do atirador,

acertando um soco direto no nariz com a mão direita, enquanto que,

com a esquerda, buscava a arma. Na disputa rápida que se sucedeu, o

bandido deixou a arma cair, recuando alguns passos após afastá-la

com um pontapé. Antes que Mariane pudesse avançar novamente em

sua direção, ele levou a mão às costas e puxou outra arma, apontando

em sua direção. O coração de Mariane parou consciente de que a luta

estava perdida. Fechou os olhos e viu o rosto de Leila. Sentiu-se

amargamente arrependida. Queria ter a chance de dizer que a amava.

Abraçá-la com força e dizer que nunca mais brigariam. Eu te amo

minha vermelha. Escutou um novo estalido e o cheiro de pólvora

voltou a encher o ar. Não sentiu nenhuma dor. Será que a morte é

assim, indolor? Pensou.

Quando os abriu novamente, milésimos de segundos depois,

viu o bandido caído no chão, com sangue saído de sua cabeça

escorrendo pela calçada. Sem entender, olhou para trás e viu Tomi,

ainda caído no chão, com metade do corpo soerguido com apoio do

antebraço, apontando a arma fumegante na direção do bandido.

Correu até ele e sentou-se ao lado, fazendo-o apoiar a cabeça

em seu colo.

─ Eu não sei o que fazer, Tomi – confessou Mariane chocada

pela quantidade de sangue – desculpe, eu não sei o que fazer.

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Havia tanto sangue que era impossível saber por onde ela

estava sangrando.

Algumas pessoas apareceram e ficaram observando a cena

sem fazer nada.

─ CHAMEM UMA AMBULÂNCIA, PORRA – Gritou

Mariane.

─ Ma... Mari... – chamou Tomi com a voz embargada pela

dor e a respiração pesada – por favor, Mari – levou sua mão

ensanguentada a nuca dela, segurando-a com a força que restava –

Quando eu for... Não chore por mim...

─ O que você está falando, Tomi? – perguntou confusa e

aflita – Você ficará bem, apenas não se esforce, por favor.

─ Escuta! – disse ele reunindo mais forças e apertando a nuca

de Mariane – Eu quero morrer como herói, Mariane. – sua voz era

fraca – Não tire isso de mim, chorando quando eu for embora. Quero

morrer trocando a minha vida, pela vida da mulher que eu amo. A

minha vida pela sua, para que você seja feliz ao lado de Leila.

Prometa-me que vocês serão felizes e que não vai chorar quando eu

morrer.

─ Eu prometo, Tomi – respondeu Mariane com a voz

trêmula.

─ Mari... – chamou enquanto suas forças se esvaiam com o

sangue de seu corpo.

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─ Sim?

─ Você está chorando – disse com um sorriso dolorido no

rosto.

─ Desculpe, Tomi – respondeu inclinando a cabeça para trás,

como se o gesto fosse reter as lágrimas que secava com a mão.

─ Tudo bem – respondeu antes de seus olhos fecharem –,

você pode começar amanhã.

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XVIII

As pernas de Leila caminharam com dificuldade até o outro

lado do quarto onde encontrou suas roupas. Vestiu-se com

dificuldade e relutante com a possibilidade de alguém entrar e flagrá-

la nua. Voltou para perto da cama e sentou-se na poltrona de

Fernanda para que sua cabeça, ainda tonta em razão do calmante,

pudesse se recompor. O sono pesava suas pálpebras, queria voltar

para a cama e dormir, mas resistiu. Levantou-se decidida, lavou o

rosto com água gelada no banheiro do quarto. Precisava voltar para

casa e conversar com Mariane.

Estava cheia daquela pressão de ser o centro do universo, de

gravidez divina, de milagres. Leila nunca gostou de ser o centro das

atenções, não sabia como reagir às bajulações e ao excesso de

cuidados que todos tinham com ela. Sentia que havia algo errado

naquilo tudo, como se a mantivessem no escuro, como se não

falassem toda verdade para ela. Sufocavam-na como se, ao tirar aos

poucos sua liberdade, tirassem também seu ar. Nunca pretendeu

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salvar o mundo, não queria tal responsabilidade. Mal consigo cuidar

da minha própria vida, pensou ela.

Abriu a porta cautelosa e espiou o corredor. Não viu

ninguém. Esgueirou-se para fora do quarto em passos leves para não

chamar atenção.

─ Segunda vez na mesma semana. - murmurou para si mesma

ao lembrar-se da última vez que esteve num hospital - Espero não

fazer disso um hábito.

Um enfermeiro passou sem dar qualquer atenção.

Por que estou tão preocupada? Pensou ela. Não sou uma

prisioneira para ficar me escondendo. Mudou de postura. Decidida e

firme, caminhou em direção à saída.

─ Leila?

Leila virou-se em direção à voz.

─ Amiga! O que você está fazendo fora do quarto? –

perguntou Fernanda que caminhava em sua direção – Você não pode

ficar andando por ai precisa descansar...

─Fernanda – interrompeu–, estou me sentindo

maravilhosamente bem – mentiu Leila -, mas preciso ir pra casa.

Como eu já disse antes, vocês foram muito gentis comigo e sou

grata, mas tenho uma vida pra organizar, não posso ficar mais aqui.

─ Mas você não pode... – começou Fernanda

─ Como assim, não posso? – desafiou Leila.

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─ Digo... Você assistiu no culto. Você está grávida do filho

de Deus. Você viu o milagre, Leila, viu com seus próprios olhos.

Muitas pessoas depositaram sua esperança nessa criança. Eu tenho

esperança nas mudanças boas que o seu filho trará ao mundo.

─ Eu não posso querer salvar o mundo sem antes arrumar

minha vida, não é? – argumentou Leila – Eu só preciso ir para casa

conversar com Mariane. Resolver de vez esse impasse. Se não fizer

isso, nunca ficarei em paz com minha consciência - Ela não queria

ser demasiadamente rude com Fernanda, porque de certa forma,

gostava da presença dela, e da sua companhia. Como ela falava sem

parar, distraia os pensamentos de Leila - Você pode me ajudar,

Fernanda?

─ Ajudar? – perguntou confusa - Como?

─Eu nem sei onde estou – explicou gesticulando com as mãos

- e acabei de perceber que estou sem minha bolsa, ela deve ter ficado

no Templo. Estou em uma cidade estranha, em um lugar que não

conheço e sem dinheiro. Primeiro preciso pegar minha bolsa, depois

voltar para casa.

─ Mas você... - começou Fernanda com uma expressão triste.

─ Eu estou bem – cortou Leila -, não se preocupe. Pode me

ajudar ou não? – enfatizando o ajudar não deixando dúvida de sua

decisão.

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─ Tá bom, sua chata – respondeu sorrindo -, eu ajudo. Mas só

se você me prometer que vai se cuidar. Ah, eu poderia ir com você

para Jardim do Norte, só para o caso de você precisar. Por favor! Por

favor! Por favor! – insistiu parecendo uma criança.

─ Não sei se é uma boa ideia – respondeu pensativa – Eu vou

conversar com Mariane, e ter uma pessoa estranha perto enquanto se

discute um relacionamento, pode não ser legal.

─ Estranha? – perguntou entristecida – Achei que fossemos

amigas...

─ Eu quis dizer em relação à Mariane – justificou Leila

levemente irritada pelo drama de Fernanda.

─ Ah! – exclamou – Bom, mas eu fico em um hotel, só para

estar por perto. Por favor? – juntou as mãos como quem implora.

─ Não sei, Fernanda. – respondeu Leila – Primeiro eu preciso

pegar minha bolsa.

O desejo de Leila, mais do que tudo, era voltar para casa. Não

queria discutir ou negociar. Nunca deveria ter saído pra começar,

pensou ela. Será que a Tilla alimentou o Zíper? Ela sempre se

esquece de colocar a comida dele. Levou a mão ao peito apertado de

saudade.

Depois de assinar os papeis de alta na clínica, Leila e

Fernanda pegaram um táxi até o Templo. Como de costume,

Fernanda falou durante todo o caminho, volta e meia, expressando

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sua felicidade em terem se conhecido e, agora, acrescentando teorias

de como o filho de Leila, que era filho de Deus, ao que todos criam,

literalmente, iriam mudar o mundo para um lugar melhor; como o

filho de Leila uniria as nações em prol do bem comum; e como todos

seriam imensamente mais felizes a partir daquilo.

─ Qual será o nome do seu filho? – perguntou Fernanda.

Depois de tudo, a gravidez ainda parecia algo tão distante

para Leila, tão inacreditável, tão surreal, que quase sempre pensava

nela como se tivesse acontecido com outra pessoa, não com ela

própria, mas, volta ou outra algo trazia seus pensamentos para a

realidade. Que nome eu deveria dar a essa criança? Pensou.

─ Não sei, não pensei nisso, ainda. Talvez, Jesus – respondeu

com ironia.

Chegaram ao Templo já passava das onze da manhã.

Algumas pessoas que trabalhavam permanentemente ali, quando

viram Leila vieram cumprimentá-la. Pediam permissão para tocar na

sua barriga esperando com isso receber algum milagre; diziam-se

felizes e desejavam-lhe saúde e muitas bênçãos na vida dela. Não

demorou em estar cercada por cerca de dez pessoas que nem teve

tempo de ver de onde saíram.

─ Por favor, irmãos – intrometeu-se Fernanda – Leila precisa

descansar e não pode ficar sob estresse de forma alguma – com isso

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dispersou a pequena multidão que se formou no hall de entrada nos

fundos do Templo.

Leila foi ao quarto onde fora acomodada na noite anterior e

pegou sua bolsa, enquanto, Fernanda, foi pegar suas coisas no quarto

ao lado, com a pretensão posterior de falar com o Theodoro para que

ele providenciasse um motorista a fim de levá-las até a casa de Leila

em Jardim do Norte. Ela saiu do quarto e viu Fernanda arrumando

uma mala de viagem, a mesma que trouxera na noite anterior. Não a

interrompeu. Escutou alguém discutindo no final do corredor, na

biblioteca. Curiosa, se aproximou. Não conseguia ver nada pela porta

entreaberta, Mas escutava bem, não reconheceu a voz imediatamente.

─ ...um absurdo – dizia o homem irritado - uma completa

loucura. Pra que isso agora? Estamos bem, não precisamos nos

preocupar com um artigozinho qualquer numa revista que ninguém

conhece. Não posso participar de algo assim, Pastor Ted. Eu o

respeito muito, mas não posso.

─ Ninguém interfere nos planos de Deus, irmão Thomas –

respondeu Pastor Ted com palavras firmes.

Leila prendeu a respiração, como se respirar pudesse

denunciar sua presença.

─ Pastor, o senhor não precisava tomar medidas tão extremas

– respondeu Thomas – Isso é loucura. Se ligarem algo assim ao

templo, tudo estará perdido.

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─ Irmão Tom – disse o Pastor –, a ira de Deus cairá sobre

todos os infiéis. E tudo já foi providenciado, queiras tu ou não. Nesta

hora a alma daquele pobre rapaz já encontrou o julgamento de nosso

Senhor.

Leila escutou passos firmes atravessando a biblioteca, vindo

em sua direção. Não teve tempo de reagir, a porta se abriu e Thomas

deu de cara com ela. Era impossível definir quem ficou mais

surpreso, ele ou Leila. Hesitou um segundo, olhou para trás, e fechou

a porta.

─ O que você faz aqui, Leila? – perguntou Tom.

─ Eu... Eu... – gaguejou ela – Desculpe, não queria ser

intrometida. É que estou voltando para casa e vim avisar o Pastor

Ted, preciso resolver algumas coisas pessoais.

─ Pra casa? – repetiu pensativo.

Por um momento ela achou que ele tentaria convencê-la a

ficar, como Fernanda constantemente fazia.

─ Eu levo você – disse ele de repente -, vamos!

─ Obrigada. Não é melhor avisar o Pastor Ted? – perguntou.

─ Não! – respondeu ríspido – Digo... As coisas não estão

muito boas por hora, melhor não incomodá-lo, depois eu o aviso.

Melhor irmos. Agora – enfatizou.

Encontraram Fernanda saindo do seu quarto.

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─ Oi Tom. – cumprimentou ela – Você viu o Pastor Ted,

precisamos falar com ele.

─ O Tom vai nos levar para Jardim do Norte – interveio

Leila.

─ Bom, melhor irmos – disse Thomas – À tarde tenho muito

que fazer.

O estomago de Leila roncava de fome quando os três

entraram no sedam que os trouxera.

Ela notou que Tom parecia agitado, um pouco preocupado, e

um tanto distante em seus pensamentos, nada parecido a imagem que

fizera dele na primeira vez que o vira. A briga dele com o Pastor Ted

aparentava tê-lo abatido. Leila queria perguntar sobre o que era a

conversa, mas tinha medo que a culpa fosse sua; que tivesse feito

algo errado ou irritado de alguma o Pastor Ted. Não tocaria no

assunto diante de Fernanda. Fernanda, como em todas as ocasiões,

entrou no carro manifestando sua opinião sobre algo que não foi

perguntado e ninguém mais estava interessado em saber.

Por sorte, Leila sentou-se sozinha no banco de trás, onde

podia ignorar o monólogo de Fernanda mais facilmente. Sentia seu

ombro tenso. A conversa que ela ouvira ficava martelando na sua

cabeça. Já não lembrava mais exatamente o seu teor. Ficara mais

preocupada em não ser percebida que escutar algo, mas o pouco que

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ouviu foi suficiente para deixá-la tensa. Algo muito errado está

acontecendo, pensou ela, mas o quê?

─ Tom, o que houve com o Pastor Ted? – perguntou

Fernanda – Ele vai se zangar por não termos avisado.

─ Nada com que se deva preocupar – respondeu rude -, e eu

me viro com o Theodoro quando voltar.

Leila notou que ninguém chamava o Pastor Ted de Theodoro,

ela mesma já se acostumara com a alcunha, aquilo soou como um

alarme dentro de si, o que fez aumentar sua tensão. Levou a mão ao

ombro e o massageou tentando aliviar a sensação.

─ Você está bem, amiga? – perguntou Fernanda – Parece um

pouco tensa.

─ Estou, sim, apenas devo ter dormido de mau jeito –

respondeu retirando a mão do ombro.

─ Ah, deve ser torcicolo – disse ela – sorte sua que eu estou

aqui.

Antes que Leila pudesse responder, Fernanda já estava

pulando para o banco de trás, junto dela, esbarrando em Thomas que

soltou uma fungada de desaprovação.

─ Eu estou...

─ Vire-se, vamos – ordenou Fernanda, quando se sentou ao

lado de Leila – Você não se arrependerá, garanto.

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Leila virou-se de costas para Fernanda, olhando a paisagem

passar vagarosamente pelo vidro do carro. Ela amarrou os cabelos de

Leila num coque com um prendedor e deslizou as mãos por baixo da

blusa de Leila, passando-a vagarosamente por toda suas costas,

depois pela presilha do sutiã, até chegar ao pescoço. Leila precipitou-

se para frente num gesto de fuga, quase batendo o rosto no vidro do

carro.

─ Olha...

─ Shhhhhh – sibilou Fernanda - tente relaxar.

Com os dedões, Fernanda pressionou a base da nuca de Leila,

enquanto os outros dedos puxavam levemente os ombros dela para

trás, fazendo-a ficar numa postura ereta, tanto quanto possível

sentada no banco traseiro de um carro. Os dedões postavam-se firmes

nos pontos exatos onde os músculos de Leila estavam tensionados, os

demais acariciavam a pele com uma agilidade e precisão que deixou

Leila, não apenas surpresa, mas completamente relaxada. Fernanda

repetiu os movimentos ao lado de cada uma das vértebras, da base da

cabeça até o meio das costas.

─ Isso foi muito bom. – confessou Leila com um sorriso

tímido - Obrigada, me sinto bem melhor. Você é muito boa com as

mãos.

─ Isso não foi nada, amiga – respondeu Fernanda com um

sorriso de satisfação -, um dia, se você quiser, faço uma massagem

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tântrica, daí você verá o que é bom de verdade, mas para isso

precisamos de um ambiente mais adequado do que o banco traseiro

de um carro.

Relaxada, Leila conseguiu se concentrar nos problemas

futuros e afastar aqueles pensamentos sobre gravidez divina por um

tempo. Pensou na conversa que teria com Mariane, passou o resto da

viagem imaginando o que diria, e as possíveis reações dela. Ora

furiosa; ora compreensiva; ora irônica. À medida que eles se

aproximavam, o coração de Leila batia mais rápido e forte. Toda

aquela experiência de um dia e duas noites parecia ter durado uma

eternidade, algo acontecido em outra vida, não com ela. Esperava por

um ponto final em tudo.

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XIX

A água quente escorria na pele de Mariane enquanto ela se

esfregada com raiva ao ponto de quase esfolar-se para tirar o sangue

seco de seu corpo. Limpa, transparente e fumegante, a água saída do

chuveiro escorria por seu rosto, levando consigo as lágrimas de

agonia e tristeza, e se misturavam ao sangue impregnado em seu

pescoço, seios, braços, mãos e pernas, chegando ao chão numa poça

vermelha de dor que era engolida pelo ralo.

Sua pele já sensível doía, mas ela continuava esfregando, e

esfregando, como se pudesse substituir a dor da alma pela dor física e

palpável de seu corpo; como se pudesse limpar da sua memória o

barulho dos tiros, o cheiro de pólvora. Ainda sentia o cheiro

adocicado de pólvora; ainda via Tomi caído no chão ensanguentado.

Exausta, sentou-se no chão do banheiro deixando a água cair em

cima de si. Com o rosto enfiado entre os joelhos, chorava e soluçava

como uma criança assustada.

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A maçaneta da porta do banheiro girou devagar. Soergueu-se

num impulso, pensando que alguém viera terminar o serviço. Seu

coração acelerou. Colou seu corpo no azulejo gelado. Vão me matar,

pensou assustada.

─ Tilla? – ouviu a voz de Leila.

Mariane abriu o box de acrílico embaçado pelo vapor,

olhando-a com tristeza. Leila percebeu as roupas sujas no chão do

banheiro e o rosto inchado de Mariane. Seus olhos arregalaram.

─ Meu Deus, Tilla – disse atônita – o que aconteceu?

Sem hesitar, Mariane precipitou para cima de Leila e a

abraçou com força, se esvaindo em lágrimas.

─ Desculpe, Vermelha – lamentou Mariane.

A tristeza de sua voz era de cortar o coração

─O que houve Tilla? – perguntou novamente.

─ Por favor, desculpe! Eu te amo! Isso tudo é culpa minha.

─ Eu também te amo, Tilla – respondeu Leila -, mas o que

aconteceu? Venha, vamos ao quarto, vou preparar um chá de

camomila pra você – disse pegando uma toalha e cobrindo seus

ombros nus.

Ainda pingando, Mariane foi até o quarto e sentou-se na

cama, molhando o lençol e o colchão com seu corpo. Seus cabelos

escorriam água. Leila pegou a toalha e a ajudou a secá-la. Nenhuma

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das duas falou nada. Leila foi ao guarda-roupa e pegou um pijama

leve para ela.

─ Não! – disse recusando o pijama - Eu preciso ir ao hospital

─ Hospital? – perguntou Leila confusa – O que aconteceu

Mariane? Estou preocupada.

Mariane voltou-se para Leila e abraçou-a novamente.

─ Isso é tudo culpa minha, Vermelha – disse com a voz

embargada -, o Tomi... nós estávamos saindo da padaria... tudo

aconteceu tão rápido, Leila. Tão rápido.

─ Calma, respire fundo e me conte o que aconteceu, tudo

bem? – pediu Leila – Vou buscar um copo d’água pra você. Sente

aqui e tente relaxar, Tilla.

Foi à cozinha e preparou um copo com água e uma colher de

açúcar.

─ Agora me conte tudo com calma, o que aconteceu com o

Tomi?

─ Você lembra-se da festa daquele seu colega, o Cristian? –

perguntou Mariane mais calma.

─ Sim, eu fiquei bastante mal por tomar uma dose de tequila,

fiz um fiasco não é? – comentou séria – O que tem ela?

─ Eles drogaram você, Leila. – disse chorando - Drogaram e

abusaram de você, bem debaixo do meu nariz e eu não vi, não pude

protegê-la.

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─ Como assim, Tilla?

─ Faça as contas, Vermelha... – disse Mariane olhando para a

barriga de Leila –Seis semanas.

─ Mas...- começou a dizer levando a mão ao ventre – Como

isso é possível? Eu não me lembro de nada.

─ Eles drogaram você, Leila – repetiu Mariane – E a

estupraram enquanto estava inconsciente – cada palavra saia com

uma navalha rasgando o coração de Mariane.

─ Meu Deus! – exclamou consternada.

─ Eu e o Tomi fomos atrás do tal de Cristian para conseguir

alguma informação, e acabamos descobrindo um amigo dele, aquele

que não largava do seu pé. Ele drogou você e depois... – não

conseguiu repetir – Quando estávamos chegamos ao carro, um

sujeito chegou perto de nós e atirou no Tomi, Leila. Atirou no Tomi,

com uma arma.

Leila escutava apreensiva e surpresa pela história.

─ Foi tudo tão rápido. Tinha tanto sangue – continuou em

meio a lágrimas e soluços - Não me lembro de muita coisa. Eu fecho

os olhos e o vejo caído no chão... Todo aquele sangue. O barulho do

tiro e o cheiro da pólvora. Foi tão horrível Leila, tão horrível. Se eu

tivesse acreditado em você ele estaria bem agora.

─ Não! – disse Leila sentando-se ao lado de Mariane e

abraçando-a – Não é culpa sua, Tilla. O Tomi está...

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─ No hospital. Os médicos disseram que o estado dele é

delicado. Ele perdeu muito sangue e está numa cirurgia agora, eu

preciso doar sangue... O sangue dele é ó negativo.

Leila ficou abalada, mas precisava manter-se firma para

ajudar Mariane. Respirou fundo. Suas mãos tremiam

involuntariamente.

─ Tilla, nada disso foi culpa sua – disse abraçando Mariane –

Você precisa ser forte agora, se ele está lutando pela vida, não é você

que vai desistir, não é? Tilla, você ainda pode ajudá-lo. Precisa ser

forte por ele. – repetiu - Deixe para chorar depois, quando estiver

tudo bem, okay?

─ Você tem razão, Vermelha – concordou Mariane secando

as lágrimas com a mão – Tomi precisa de mim, agora. Obrigada por

voltar, senti tanto sua falta.

─ Eu também, amor... Eu também.

Mariane vestiu-se apressada, enquanto Leila verificava a

comida e a água de Zíper que, com o calor, estava dormindo debaixo

do tanque de lavar roupas. Dez minutos depois embarcaram no velho

Buk.

No hospital, aguardavam o chamado para Mariane entrar na

sala de coleta de sangue, enquanto assistiam a uma televisão velha

pendurada no alto da parede à frente delas. Uma repórter postada

defronte ao local onde Tomi foi baleado transmitia a notícia.

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─ Bandido é morto com a própria arma após uma tentativa de

assalto. De acordo com a polícia, um casal caminhava por esta rua

quando foi abordado pelo meliante que disparou duas vezes contra

Tomi Grainoi, 27 anos. A mulher, identificada como Mariane

Castillo Montanez, 25 anos, reagiu ao assalto desarmando o bandido

ainda não identificado, possibilitando que a vitima, já ferida e

sangrando, pegasse a arma e disparasse contra o assaltante, matando-

o instantaneamente. Tomi Grainoi foi levado para o hospital

municipal onde passa por procedimento cirúrgico. De acordo com os

médicos, a situação da vítima é gravíssima e há risco de morte.

Mariane voltou a chorar, enfiando o rosto no ombro de Leila.

A presença de Leila amenizava seu sofrimento, embora agravasse a

culpa que sentia. Um sentimento de culpa a invadiu.

─ Você reagiu ao assalto, Tilla? – perguntou Leila depois de

alguns minutos.

─ Eu não lembro – respondeu Mariane com a voz embargada

– foi tudo tão rápido... Vermelha, ele não veio nos assaltar. Ele

perguntou as horas e começou a atirar – soluçou – Por que alguém

faria algo assim?

─ Talvez o bandido achasse que Tomi fosse reagir – sugeriu

Leila -, mas não pense nisso agora, desculpe, vai ficar tudo bem,

amor.

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O tempo passava sem pressa na sala de espera do Centro de

Hematologia anexo ao hospital. A tristeza de Mariane era substituída

gradualmente por ansiedade em saber alguma notícia sobre Tomi. O

sentimento de impotência era dominante. Cerca de cinco pessoas

foram chamadas antes de Mariane. Quando chegou a sua vez, teve

que ir sozinha, já que eram proibidas companhias na sala de doação.

─ Tudo bem, amor – disse Leila com um sorriso complacente

– eu espero aqui – e beijou a face úmida de Mariane.

Mariane passou pela triagem e foi encaminhada à sala de

coleta. Apenas quando se sentou na confortável cadeira reclinada,

que notou o quanto estava exausta, cada músculo de seu corpo doía.

Dormiria se sua cabeça ainda não estivesse a mil, revivendo

intensamente cada instante seu drama naquela manhã. Não sentiu a

agulha perfurar sua pele, e postou-se a observar o sangue fluindo de

sua veia até chegar à bolsa de coleta. Cerca de vinte minutos depois,

foi liberada. Encontrou Leila na sala de espera.

─ Foi rápido – comentou Leila -, como você está se sentindo,

Tilla?

─ Estou bem – mentiu -, eu acho. Vamos passar no hospital,

ver se há alguma novidade.

─ Claro – concordou Leila -, vamos, sim.

Na ala de emergência foram informadas que Tomi ainda

estava em cirurgia e que o procedimento poderia durar horas pela

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gravidade e delicadeza dos ferimentos. Alguns conhecidos de Tomi

aguardavam numa sala de espera, mas ninguém que ela ou Leila

conhecessem. Já que nenhuma das duas tinha almoçado, embora não

tivessem fome, decidiram comer um lanche, na cantina do próprio

hospital. Tomaram apenas um copo de suco de laranja cada.

Tomi saiu da cirurgia após as seis horas da tarde, sendo

encaminhado diretamente para a unidade de terapia intensiva. Não

pode receber visitas. De acordo com informações, um dos projéteis

perfurou a aorta do braço esquerdo, enquanto o outro perfurou o

pulmão alojando-se na espinha dorsal. A hemorragia fora estancada,

mas não foi possível retirar o projétil da coluna vertebral. Sedado,

respirava com ajuda de aparelhos. Sua saúde era delicada e ainda

corria risco de morte. Um médico as orientou a avisar a família, para

que pudessem se despedir dele. As perspectivas do médico não eram

em nada animadoras.

A noite caía com lentidão e estampava a exaustão no rosto de

ambas. Decidiram ir para casa, descansar, ficar de prontidão no dia

seguinte, caso houvesse alguma mudança no quadro de Tomi.

Quando chegaram ao apartamento, por volta das oito da noite, se

depararam com Fernanda à porta do apartamento.

─ Oi, amiga. – cumprimentou ao se aproximarem - Você

deve ser a Mariane?

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Mariane apenas a olhou sem devolver o cumprimento, não

queria conversar com ninguém.

─ Oi, Fernanda – respondeu Leila – O que você faz aqui?

─ Resolvi dar uma passadinha aqui para ver se estava tudo

bem.

─ Desculpe, não é a melhor hora – disse Leila tentando ser

delicada.

─ Você está bem? – perguntou Fernanda – Aconteceu alguma

coisa com você? Com o bebê? Quer que eu chame um médico? Eu

ligo para o doutor...

─ Não! Eu estou bem, não se preocupe. – cortou Leila – Olha,

se você puder voltar amanhã, ficarei grata. Eu e Mariane estamos

bastante cansadas. Desculpe não poder dar atenção agora – abriu a

porta do apartamento – No vemos amanhã. Tchau, Fernanda.

─Ah – exclamou desanimada –, tchau.

─ Quem é essa? – Perguntou Mariane quando já estavam

dentro do apartamento.

─ É uma enfermeira que o Pastor Ted colocou no meu pé sob

o pretexto de cuidar de mim – explicou Leila - Só que se tivesse que

passar mais uma hora com ela, acabaria esgoelando-a. Bom, outro

dia conto melhor isso tudo.

─ E como você está, Vermelha? – perguntou Mariane – Com

tudo isso eu esqueci completamente de você, gata. Temos que fazer

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algo em relação à sua... – hesitou - Ao seu problema. Acho que

deveríamos ir à delegacia prestar queixa. Por aquele filho da puta na

cadeia.

─ Eu não quero pensar nisso agora, Tilla. – respondeu Leila –

Nosso dia foi bastante longo e agitado, não precisamos acrescentar

mais uma preocupação, por hora.

Leila preparou um jantar leve. Sopa. Mariane quase não tocou

na comida. Foi deitar-se cedo, antes das dez da noite. Leila e Zíper a

acompanharam. Nenhuma das duas tinha ânimo para conversar. O

conforto do abraço e da presença bastava para aquele momento.

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XX

─ Quem é você? – perguntou Leila.

Apalpava a escuridão em busca de algo sólido para tocar;

escuridão que a cegava ao ponto de não ver a própria mão à frente do

rosto.

Embora não visse, sentia a presença de alguém.

─ Ninguém – respondeu uma voz onipresente.

─ O que você quer? Por favor, pegue o que quiser e vá

embora – disse ela.

─ Eu quero mostrar algo para você, Leila.

Uma luz branca intensa atravessou o corpo de Leila fazendo-a

recuar dois passos. Quando tirou as mãos dos olhos já acostumados à

estranha claridade, viu-se defronte de sua casa; a mesma casa que lhe

trazia tantas lembranças boas e agradáveis, mas também a mais triste

e dura de sua vida; a casa onde tivera uma infância alegre e, que mais

tarde, extirpou a vida de sua mãe.

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O vento trazia o farfalhar e o cheiro das folhas secas caídas

no chão. Deu um passo hesitante em direção da casa, depois outro, e

outro, avançando todo o caminho de pedras brancas até chegar à

porta. Girou a maçaneta e adentrou a casa como quem invade

sorrateiramente a propriedade de um estranho. O interior era em nada

parecido com o que um dia conhecera. Os móveis e as cores das

paredes, tudo novo e diferente. A estante de livros à direita da

entrada já não existia e dava lugar a uma rack com uma televisão.

Viu na mesa da cozinha a sombra de uma pessoa, demorou em

reconhecê-la.

─ Tilla? – chamou.

Não houve resposta. Leila se aproximou receosa. Notou que

Mariane estava com a aparência péssima, tinha envelhecido muito. A

pele seca, magra e pálida com fundas olheiras e algumas rugas

marcavam seu rosto. Em uma das mãos segurava uma garrafa de

cerveja e na outra um cigarro acesso.

─ Meu Deus, Tilla, desde quando você está fumando? –

perguntou com um aperto no coração. Podia entender ela beber,

nunca se importou, mas fumar, isso era algo grave – O que

aconteceu?

Mariane a ignorava ou, estava tão concentrada que não notava

sua presença.

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─ Ela não come e dorme o dia inteiro, desistiu da faculdade,

simplesmente entregou os pontos – disse de repente Mariane olhando

em direção de Leila, sem, no entanto, vê-la.

─ Quem? – perguntou Leila surpresa.

─ Como quem, porra? – respondeu Mariane ríspida – Leila,

oras.

─ Eu? – disse confusa – Não estou entendendo!

─ Me deixe falar com ela, talvez eu consiga convencê-la a se

alimentar direito ao menos – disse uma voz feminina.

Leila virou-se.

─ Fernanda? – exclamou surpresa.

─ Essa merda toda é culpa de vocês – respondeu Mariane -,

encheram a cabeça dela com aquela porra de gravidez divina e

pecado.

─ Não. Você está errada, Mariane. O momento pode ser

difícil, mas Deus sabe o que faz. Vocês tem aguentar firme – disse

Fernanda em tom amistoso.

─ Aguentar firme? – esbravejou Mariane levantando-se

enquanto apagava o cigarro dentro da garrafa de cerveja – Vá pra

merda.

Leila assistia a discussão delas abismada. Sem entender o que

estava acontecendo. Tentou lembrar-se de algo, de como viera parar

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ali ou quando voltaram a morar na antiga casa dela, mas nada veio a

sua mente.

─ Vocês encheram o coração dela de culpa – continuou

Mariane indo em direção à Fernanda – Porra, vocês a convenceram

que o estupro foi um castigo divino por ela viver comigo. Vocês

fizeram de tudo para afastá-la de mim. Transformaram nossa vida

nessa... Nessa coisa medíocre.

─ Foi o Pastor Ted – respondeu Fernanda entristecida – Ele é

a boca de Deus...

─Não fode, garota. Você é tão culpada quanto aquele

pastorzinho de merda.

─ Parem com isso, por favor – Pediu Leila assustada.

Sequer foi percebida.

─ Mas você tem que ter fé – retrucou Fernanda – Isso vai

melhorar.

─ Escuta aqui garota – disse Mariane apontando o dedo na

face de Fernanda -, não venha com esse papinho pra cima de mim.

─ Mas ela estava tão bem... – comentou Fernanda.

─ Bem? Claro! Ela estava ótima! – ironizou Mariane – Você

a via uma vez por mês no máximo. Mas deixa eu te contar uma coisa,

garota. Quando a gravidez dela completou dezesseis semanas e o pai

da criança foi absolvido pelo estupro por falta de provas, a depressão

dela começou. Passou a acreditar que estava sendo castigada por

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Deus. Mesmo assim, ela disse que ficaria comigo. Conforme a

barriga dela crescia, ela se preocupava mais com o futuro da criança.

Leila se perguntava toda noite, antes de dormir, se conseguiria olhar

para o filho sem lembrar que foi estuprada, sem lembrar que estava

contrariando a vontade de Deus por ficar comigo. Esses pensamentos

foram corroendo ela por dentro. Quando o filho nasceu, ela o

rejeitou. Caiu numa depressão profunda e sequer olhava para a

criança. Ela nem queria falar sobre o filho. Tentei convencê-la em

dá-lo para adoção... Mas convenhamos, com toda burocracia

governamental a criança apodreceria num orfanato e quando não

tivesse mais idade para estar no orfanato, seria expulsa De qualquer

forma Leila não aceitou a ideia, está convencida de que seria pecado

abandonar uma criança a própria sorte ou, pior, aos cuidados do

governo.

Leila ouviu o choro de uma criança vindo dos fundos da casa

e andou em direção ao quarto, curiosa. Abriu a porta. Viu um berço

ao lado da cama e a escuridão. Como se a realidade se desfizesse

diante de seus olhos, viu-se novamente imersa na escuridão.

─ O que é isso? – perguntou.

─ O seu futuro – respondeu a voz.

No momento seguinte ela estava caminhando descalça num

lamaçal negro, com restos de árvores mortas, galhos e folhas secas

dificultando cada passo. Vislumbrou ao longe, no horizonte uma

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linha azul, que dividia o céu cinzento e aquele lodo sem fim. Olhou a

sua volta, forçando a visão para o ponto azul, água. Todo o resto,

lama e morte. Estava numa ilha. Uma ilha que já conhecia. Sentiu-se

um peixe arrancado de seu habitat. Suja e sozinha. Queria mergulhar

para longe daquele lugar asqueroso, sem vida.

Cada passo era mais pesado que o outro. Caiu de joelhos uma

vez. Levantou-se. Caiu novamente. Levantou-se exausta. Os galhos

no chão ganhavam vida e, sem pressa, aos poucos, prendiam-na pelos

pés. Para cada um que ela se livrava, outros dois se enroscavam em

seu corpo. Cansada de lutar, ficou imóvel. Queria gritar, pedir ajuda,

mas sua garganta estava seca. Esticou a mão em direção à linha azul

no horizonte. Desculpe, disse. Sua voz era quase inaudível. Ou

pensou que havia dito. Seus lábios rachados mal se abriam. Uma

brisa leve soprou seu rosto. No horizonte, a fina linha azul, parecia se

aproximar aos poucos, ganhando tamanho. Parecia uma onda.

Leila observou estagnada até que a singela linha ganhou

proporções gigantescas à sua frente. Era uma onda; uma onda de

água limpa e de um azul que dava cor ao opaco céu cinza. A

insegurança do primeiro momento foi substituída pela ansiedade e

excitação ao ver algo tão belo. Um pouco antes do impacto, Leila

levou o braço à frente do rosto de forma instintiva. A onda a

envolveu com suavidade e delicadeza. Permaneceu parada de pé,

exatamente onde estava antes de ser atingida. Uma sensação de paz

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inundou sua alma. A água passava por ela, limpando a lama de seu

corpo e livrando-a dos galhos que se enroscavam nela. Sentia-se

aquecida, livre, feliz.

A ilha sumira debaixo de si, lavada pela onda. Imersa na água

olhou para cima. Viu o sol amarelo distorcido no céu e nadou em sua

direção.

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XXI

Mariane acordou de uma noite agitada de sono. Virou-se para

o lado de Leila, com o rosto a um palmo de distância do dela, já

acordada, apenas observando. Fitou seus olhos verdes sem dizer nada

e sorriu.

─ Eu sonhei com você – disse Leila.

─ Espero que algo bom.

─ Não lembro direito – respondeu forçando a memória – nós

estávamos na minha casa, mas não lembro o que aconteceu. Acho

que você estava fumando.

Mariane riu.

─ Eu, fumando?

─ É. Mas não lembro direito – disse desistindo – vou preparar

o café da manhã pra gente, descanse mais um pouco – beijou

Mariane e se levantou.

Mariane pegou o celular de Leila no criado-mudo para ver as

horas. Passava das oito da manhã. Puxou o edredom para cobrir-se.

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Rolou alguns minutos na cama sem conseguir dormir novamente.

Leila, desajeitada, fazia barulho na cozinha entre pratos e talheres,

enquanto conversava com Zíper que respondia aos comentários e

perguntas.

─ Você está com fome, Zi? – Falava Leila.

─ Miaaauuu – respondia o gato.

Não havia jeito de pegar no sono novamente, nem que fosse

para cochilar mais dez minutos. Sentou-se preguiçosamente na beira

da cama e pôs os pés no chão gelado. Espreguiçou-se erguendo os

braços e esticando as costas. Bocejou e levantou-se. Espreguiçando-

se foi ao banheiro, depois à cozinha.

─ Eu ia levar o café pra você na cama – disse Leila.

─ Eu posso voltar pra lá – respondeu Mariane sorrindo.

Leila devolveu o sorriso com um beijo.

─ Precisamos conversar.

O tom sério da voz de Leila fez Mariane voltar à realidade de

tudo o que estavam passando naquela semana. Sua face entristeceu.

─ Eu sei que o momento é difícil – começou Leila enquanto

secava as mãos no pano de louça -, especialmente pelo que aconteceu

ontem com o Tomi... Bom, vamos tomar café primeiro, depois

conversamos.

─ É – respondeu Mariane e sentou-se a mesa.

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Leila a abraçou transpassando seus braços pelo busto de

Mariane, colando seu rosto ao dela.

─ Ficará tudo bem, Tilla – sussurrou – Eu te amo – e beijou-

a.

Mariane levou a mão ao braço de Leila, fechando os olhos

quando foi beijada.

─ Eu também te amo – respondeu beijando a mão de Leila,

que em seguida foi sentar-se.

Não comeram quase nada.

─ Vou marcar uma consulta com minha ginecologista – disse

Leila quebrando o silêncio – Desde que você me contou sobre o que

aconteceu, tenho pensado em fazer um aborto.

Mariane ficou pensativa.

─ Se você quiser ter essa criança – respondeu Mariane

segurando a mão de Leila -, eu vou apoiá-la. Não importa a decisão

que você tome, eu estarei ao seu lado. Mas você precisa denunciar

esse cara, ele não pode ficar impune, Leila.

─ Eu sei – concordou Leila -, pensei em ir à Delegacia da

Mulher agora pela manhã. Depois passamos no hospital para ver o

Tomi.

Toc, toc. Alguém bateu na porta. As duas se entreolharam.

Toc, toc. Mariane levantou-se para atender.

─ Oi Mariana, a Leila está?

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Mariane a reconheceu da noite anterior, mas não sentia a

menor vontade de ser simpática. Encarou-a.

─ É Mariane – corrigiu ríspida dando ênfase no e – Quem é

você?

─ Meu nome é Fernanda, sou amiga da Leila – respondeu

sorrindo.

─ Oi Fernanda, não esperava que viesse aqui tão cedo – disse

Leila atrás de Mariane – entre, por favor, é bom que esteja aqui,

preciso mesmo conversar com você.

Mariane desobstruiu a passagem de Fernanda.

─ Oi amiga – cumprimentou Leila com um beijo no rosto,

ignorando Mariane -, espero que você esteja melhor, ontem não

estava lá muito bem, não é? Tem se alimentado direito? Você tem

que se alimentar direito e tomar bastante água. Faz bem ao bebê...

─ Fernanda – interrompeu Leila -, obrigada por tudo que você

tem feito.

─ Por nada, é um...

─ Mas você não precisa mais se preocupar comigo, estou

bem, irei ao médico amanhã e, no restante, no que eu precisar, tenho

a Mariane para me ajudar.

─ Mas... – começou novamente Fernanda com a feição triste,

como se estivesse terminando um relacionamento de anos.

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─ Eu vou te contar algo em consideração a tudo o que você

fez por mim, mas peço que não conte a ninguém por enquanto, tudo

bem?

─ Sim – disse Fernanda inclinando o rosto para o lado.

Leila então contou toda a história do estupro e do assalto, e de

como Tomi estava lutando pela vida no hospital, enquanto Mariane

as observava em silêncio, com vontade de socar Fernanda, mas

controlando-se.

─ O Pastor Ted estava errado quanto a minha gravidez,

Fernanda – terminou Leila.

─ Não pode ser – respondeu a moça desacreditada. Pela

primeira vez ficou em silêncio.

─ Leila, precisamos sair – disse Mariane.

Fernanda foi dispensada com alguns pedidos de desculpas de

Leila. Saiu cabisbaixa. Mariane quase sentiu pena dela, mas essa

intrometida fresca podia ser atropelada por um caminhão, que ela

não se importaria. Logo depois de a visita indesejável ir embora, elas

foram se arrumar. Enquanto se vestiam, Leila contou sobre sua

empreitada desde que ela saíra do hospital na segunda-feira à tarde,

até se reencontrarem em casa na quarta-feira. Absorta, Mariane ouviu

toda história.

─ Então esse era o plano do tal pastor – concluiu para si

mesma.

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─ Plano? – perguntou Leila.

─ É – respondeu Mariane -, o Tomi escreveu uma reportagem

sobre o Pastor Ted e o tal Templo da Liberdade, especulando as

intenções dele quanto ao Beca Pavasaris. Ele me ajudou a localizá-la

no hotel, e disse que achava estranho o interesse do pastor em você.

Bem, parece que ele queria dar um showzinho e chamar a atenção

com a sua gravidez, não é? Droga! E eu nem comprei a revista para

ler a reportagem do Tomi – confessou entristecida.

─ Reportagem? – perguntou Leila

─ Sim, lembra quando almoçamos na segunda? – explicou

Mariane - Que você comentou sobre o tal cliente ser dono do

Pavasaris? Então, o Tomi escreveu um artigo sobre isso para a

Revista Nortenhos. Parece que ele desenterrou um monte de merda

sobre esse tal pastor... – Mariane parou de falar quando percebeu a

expressão de espanto e medo de Leila – O que houve, está se

sentindo bem?

Leila sentou-se na cama, atordoada.

─ Não pode ser – disse ela.

─ Vermelha, você está me deixando mais preocupada.

─ Ontem, antes de vir pra casa, eu escutei uma briga entre o

Pastor Ted e o Tom – lembrou-se Leila – Eles estavam discutindo

sobre alguma reportagem que estava prejudicando a igreja... Não

lembro ao certo... – forçou a memória - Sei que o Tom não parecia

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concordar, mas o Pastor Ted disse que a ira de Deus cairia sobre

quem tentasse interferir e que ele, o Tom, não poderia fazer nada a

respeito. Será que ele pode ter algo a ver com o Tomi? Será que ele

chegaria a tanto? – Perguntou Leila deixando a ligação entre os fatos

no ar.

Os punhos e os dentes de Mariane cerraram. Suas têmporas

latejavam ao ritmo do coração disparado.

─ Não sei Leila – respondeu controlando a raiva -, mas

vamos contar essa sua história pra polícia, também. E só torça para

que o filho da puta desse pastorzinho não cruze meu caminho, se foi

ele, ele pagará pelo que fez. Eu juro.

─ Mas eu não tenho certeza, Tilla – respondeu Leila

preocupada – Pode ser coisa da minha cabeça. Esta semana está

sendo estressante.

─ Por isso devemos falar com a polícia – disse decida –, para

que eles investiguem se há alguma ligação, não é?

─ Mas e se eu estiver errada – protestou Leila -, querendo ou

não eu fui bem tratada por ele. Não sei se o Pastor Ted poderia fazer

algo assim.

Mariane se ajoelhou em frente de Leila, e segurou as mãos

dela nas suas.

─ Leila, eu nunca engoli essa história de assalto – disse

Mariane recuperando a calma -, eu preciso esclarecer isso, por mim e

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pelo Tomi. Não é hora de ter medo, tudo bem? Se o tal pastorzinho

não tem nada com isso, ele ficará bem. Aposto que ele tem um monte

de advogados para defendê-lo.

─ Você tem razão – concordou Leila.

Terminaram de se arrumar e saíram. Passaram numa banca e

compraram a mais recente edição da Revista Nortenhos, cuja capa

dava destaque para a reportagem que Tomi escrevera sobre o parque.

Quando chegaram à Delegacia da Mulher, foram logo atendidas e

encaminhadas a uma sala pequena com apenas uma mesa, equipada

com um computador, e três cadeiras. O delegado de plantão estava

sentado à mesa. Cumprimentou as duas e indicou o lugar para

sentarem. Leila relatou toda a história, desde a festa até descobrir que

estava grávida.

─ Então, você não se lembra do estupro? – perguntou o

delegado.

─ Não – confessou Leila.

─ Eu preciso ser sincero – disse ele – Ainda que você esteja

grávida e se possa provar a paternidade, será difícil comprovar o

estupro. Ele provavelmente vai alegar que foi consensual, que vocês

dois estavam bêbados, mas que ele nunca forçou a barra.

─ Mas ela foi drogada – disse Mariane indignada.

─ O problema é que esse tipo de droga é detectável por vinte

e quatro horas. Mas nós vamos conversar com ele, e com o pessoal

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da festa. Mas seria mais fácil se houvesse alguma testemunha neste

caso. Geralmente, em se tratando da palavra da vítima contra a do

acusado, o suspeito é inocentado por falta de provas.

─ Poderia ser o... – começou Mariane pensando em Tomi,

sem concluir o que diria.

─ Se lembrarem de alguém, vocês podem voltar aqui e

informar – disse o Delegado -, enquanto isso, nós vamos investigar o

suspeito. Você precisará fazer o exame de corpo de delito no IML.

Basta apresentar este formulário no prédio ao lado, na saída vire à

esquerda e vocês verão a placa – entregou uma folha de papel para

Leila.

─ Mais uma coisa – disse Mariane -, ontem eu fui vítima de

um assalto. Um amigo foi baleado e está no hospital, o nome dele é

Tomi Grainoi, quando prestei depoimento, eu estava um pouco

chocada... Bom, eu acho que não foi um assalto – entregou a revista

ao delegado -, acho que tem a ver com essa reportagem que ele fez.

O delegado pegou a revista e olhou a capa.

─ Qual o nome dele, mesmo? – perguntou.

─ Tomi Grainoi – repetiu Mariane.

Ele anotou a mão num pedaço de papel.

─ Vou passar ao delegado responsável pelo caso – respondeu

ele -, posso ficar com a revista?

─ Claro – concordou Mariane.

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O exame foi rápido e inconclusivo. O médico fez algumas

perguntas sobre o dia do estupro. Colocou na ficha que a declaração

da vítima era compatível com os efeitos do Ácido Gama-

hidroxibutírico, conhecido por GHB ou droga do estupro, mas que

devido ao tempo entre o incidente e o exame, não seria possível

encontrar indícios da droga no organismo da vítima o que tornava a

análise prejudicada e inconclusiva.

Saíram de mãos dadas da delegacia. Leila apoiou a cabeça no

ombro de Mariane.

─ Sabe, Tilla, de certa forma fazer isso me deixou mais

tranquila. – desabafou Leila - Como se eu estivesse tirando um fardo

das minhas costas ou, ao menos, dividido ele com alguém. Estava

assustada antes de vir pra cá. Achei que seríamos mal atendidas. Já

ouvi tantas histórias absurdas... sei lá, eu estava com medo, mas foi a

coisa certa a ser feita.

Mariane parou de caminhar e a abraçou num abraço forte e

envolvente, beijando-a na testa.

─ Eu sei, Vermelha, eu também – confessou Mariane.

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XXII

O dia esfriara de repente. No início da manhã, fazia uma

temperatura agradável, mas uma massa de ar frio se instalou na

cidade fazendo a temperatura cair quase cinco graus, embora já fosse

quase meio dia. Um vento frio as trespassou enquanto caminhavam

em direção à entrada do hospital. Os braços nus de Mariane sentiram

o frio e abraçaram Leila, denunciando não apenas o frio, mas a

tensão alimentada pelo medo. Entraram e foram direto à recepção.

─ Bom dia – cumprimentou Mariane. Sua voz era baixa e

insegura - Eu queria informações sobre um paciente que deu entrada

ontem.

─ Qual o nome dele? – Perguntou a mulher jovem de cabelos

longos e negros amarrados numa trança que pendia sobre o ombro.

─ Tomi Grainoi – respondeu numa voz abafada.

A mulher consultou o computador à sua frente por alguns

instantes.

─ Ele recebeu alta, senhora – respondeu.

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Mariane e Leila trocaram um olhar incrédulo, embora um

pouco esperançoso.

─ Tem certeza? – perguntou Mariane - Ontem o Tomi estava

na UTI.

─ Qual é mesmo o nome dele?

─ Tomi Grainoi – repetiu sonoramente – Tomi. T-O-M-I.

Grainoi. G-R-A-I-N-O-I.

─ Ah! – exclamou a mulher – Desculpe, entendi errado o

nome – explicou e voltou a consultar o computador.

Mariane a olhou com raiva pelo erro, mas no fundo, sua raiva

era por causa do balde de água fria derramado na fagulha de

esperança que o erro acendeu dentro de si. Esperança por uma

recuperação rápida e enérgica. Não disse nada, apenas apertou a mão

de Leila.

─ Por favor, podem aguardar na sala de espera, um minuto –

disse a recepcionista – chamarei o médico para conversar com vocês.

A sala era ainda mais fria. Não apenas pela temperatura do

ambiente, mas pelo fato de algumas pessoas que aguardavam ali,

estarem com o semblante tão pesado e de feição cansada, que um

arrepio subiu pela espinha de Mariane.

Esperaram por mais de quarenta minutos. Pessoas entraram e

saíram da sala até sobrar apenas mais um casal.

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Mariane, impaciente, levantou-se a fim de pedir alguma

informação.

─ Acho que eles se esqueceram de nós. – comentou Mariane

– Eu vou lá perguntar de novo.

Antes que pudesse se mover em direção à porta, esta se abriu,

entrando pela porta um homem jovem de uniforme esverdeado, um

estetoscópio pendurado no pescoço, e uma prancheta nas mãos. Ele

olhou a sua volta e fixou o olhar nas duas, indo na direção delas.

Leila levantou-se ao perceber que o médico se aproximava.

─ Vocês são parentes do Tomi Grainoi? – perguntou.

─ Sou amiga – respondeu Mariane agarrando sutilmente o

braço de Leila –, eu estava junto quando ele... – hesitou triste por um

instante - o doutor sabe, quando foi baleado.

─ Meu nome é Dr. Rui, sou o médico que operou o Tomi. –

começou – Ele chegou ao hospital em um estado bastante delicado –

continuou o médico – um dos projeteis perfurou o tórax,

atravessando o brônquio esquerdo, próximo ao coração e se alojou na

coluna cervical; o outro rompeu uma artéria do braço esquerdo;

ambos os ferimentos, gravíssimos.

Conforme o médico explicava, Mariane se encolhia agarrada

ao braço de Leila, apertando-o com medo do que tudo aquilo podia

significar. Sua respiração pesava no peito.

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─ Ele respondeu bem à cirurgia – continuou -, mas ainda

corre risco de perder a vida, está em coma induzido por medicação e

respirando com ajuda de aparelhos. Ainda que ele sobreviva, é

provável que haja sequelas.

─ Podemos vê-lo? – pediu Mariane.

─ Infelizmente não – respondeu o médico -, somente

parentes, e ainda assim, a visita deve ser rápida.

Mariane largou o braço de Leila e segurou o médico.

─ Por favor – implorou ela -, eu estava lá, eu o vi ser baleado.

Se ele morrer e eu não conseguir me despedir nunca vou me perdoar.

O médico pensou um instante.

─ Tudo bem – concordou -, mas só uma de vocês e apenas

cinco minutos.

Mariane concordou imediatamente.

Acompanhou o médico até uma sala com cerca de cinco

macas, todas ocupadas com pacientes moribundos. Tomi estava na

primeira, logo à entrada. Quase irreconhecível. Sem barba, os ossos

do rosto marcavam sua palidez mórbida em meio a uma respiração

difícil e ruidosa. Aproximou-se hesitante do leito e tocou o braço

dele, com o medo de alguém que toca algo muito sensível.

─ Tomi! – disse mal abrindo os lábios.

Queria falar ou fazer algo para que ele se levantasse e buscou

instintivamente a sua volta e em sua mente. Viu os aparelhos que o

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mantinha vivo; os bips do monitor cardíaco; o som pesado do

respirador artificial. Tudo tão mecânico, tudo tão frágil que o desejo

de ajudar pesou inútil.

─ Não ouse morrer – ordenou após um tempo, com a voz

vacilante – Você já é um herói, não precisa morrer por isso.

─ Você precisa sair – disse o médico.

Sem dar atenção, Mariane se abaixou e beijou a testa de

Tomi.

─ Obrigada, Tomi. – disse acariciando seu rosto – Obrigada

por salvar minha vida e por me fazer enxergar que eu estava errada.

Você é meu amigo, Tomi, e eu o amo, por favor, não morra.

Mariane tentou conter sua emoção, mas uma lágrima correu

pelo seu rosto até o queixo pingando no rosto de Tomi. O monitor

cardíaco se alterou com dois bips mais rápidos que o comum. Olhou

para ele e depois para o rosto de Tomi, na esperança surda de que

algo acontecesse em seguida. Mas nada mudou.

O médico a advertiu pela segunda vez que o tempo acabara.

Triste, beijou-o novamente e retirou-se secando as lágrimas. Não

teve coragem de olhar para trás. Em parte pela vergonha ao quebrar

sua promessa de não chorar, mas, também, por medo de nunca mais

vê-lo. Encontrou Leila na sala de espera, ansiosa. Trocaram um

abraço consolador. Voltaram para casa.

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─ Ele ficará bem, Tilla – disse Leila depois de percorrerem a

maior parte do caminho em silêncio.

Mariane soltou uma das mãos e a apoiou na coxa de Leila,

acariciando-a por cima do jeans, como se quem precisasse de consolo

naquele momento era Leila e não ela. Depois de tê-lo visto tão frágil,

não tinha tanta certeza se Tomi ficaria bem, mas não podia confessar

isso, mesmo se quisesse, não conseguiria transformar em palavras

sua falta de esperança.

─ Sim – respondeu com um sorriso marcado pela tristeza -,

ele ficará.

Enquanto subiam as escadas, já no andar térreo, ouviram uma

voz conhecida descendo em direção a elas. Leila apertou a mão de

Mariane, e parou de repente. Antes que pudesse falar qualquer coisa

a Mariane, o Pastor Ted apareceu no alto da escada e, ao seu lado,

Paul. Eles se encararam por um momento, surpresos pelo encontro,

ainda que, claramente eles vinham do apartamento delas.

O rosto de Mariane ganhou uma tonalidade avermelhada, seu

coração disparou. Sentia sua têmpora latejar. Apertou a mão de Leila

com força. Deu um passo a frente, prestes a descarregar toda sua

raiva e frustração em cima de Theodoro. Assassino, filho da puta,

diria ela, se Leila não a tivesse puxado. Mariane não ofereceu

resistência, apenas a acompanhou. Foram em direção ao apartamento

dos Hermann, mas a porta estava trancada.

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─ Leila! – ouviu-se a voz de Theodoro - Tu precisas me

ouvir, um minuto – falava firme.

Elas o encararam sem dizer nada. No apartamento da frente, a

porta se abriu. Sem pensar abordaram o morador que saía.

─ Seu Miguel – disse Leila - pode nos ajudar, por favor?

─ O qui vocêis qué? – perguntou.

─ Tem uns homens atrás de nós, não queremos falar com eles

– explicou Leila – podemos ficar aqui até irem embora?

Seu Miguel colocou a cabeça para fora do apartamento,

espiando o corredor. Ao ver os dois homens que se aproximavam,

abriu a porta, deixando-as passar.

─ Obrigada! – agradeceu Leila.

As duas entraram sem olhar para trás. Seu Miguel entrou

também e fechou a porta.

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XXIII

Tum, tum tum. As batidas rápidas e fortes fizeram Leila

recuar. Seu Miguel, que nem tivera tempo de se afastar da porta,

abriu uma fresta, o suficiente para passar sua cabeça, considerando

que não quisesse passar suas orelharas de abano junto.

─ Não quero comprá nada – disse Seu Miguel antes que

Theodoro pudesse falar qualquer coisa.

Leila e Mariane estavam paradas logo atrás dele. Não

conseguiam ver Theodoro, mas ouviam claramente sua voz.

─ Eu preciso falar com a Leila – respondeu Theodoro.

─ O sinhô dévi tê batido no partamento errado – retrucou.

─ Leila – disse em voz alta o Pastor Ted -, ouça o que vim te

dizer, e depois vou embora, tu não precisaras me ver mais, se não

quiseres.

─ Cê é surdo? – perguntou brabo – Cê qué que eu vai buscar

meu facão, homi? – começou a fechar a porta.

Leila o interrompeu.

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─ Espera! – disse num impulso – Eu quero ouvir o que o

Pastor Ted tem a dizer.

Seu Miguel lançou um olhar de reprovação para Leila, mas

abriu a porta dando os ombros.

─ Cê qui sabe – disse saindo da frente - Se quisé mando esses

dois embora.

─ Não – respondeu decidida –, eu quero ouvi-lo.

Leila deu um passo à frente ficando frente a frente com o

Pastor Ted. Ele no corredor, ela dentro do apartamento. Seu Miguel

sentou-se a mesa esperando com certa impaciência que Leila e o tal

homem resolvessem suas indiferenças.

─ Podemos conversar a sós? – disse Theodoro lançando um

olhar de desdém para Mariane.

Mariane cerrou os pulsos com tanta força que chegou a cravar

as unhas na palma da mão.

─ Escuta aqui seu arrogante filho da puta – vociferou ela

apontando o indicador para ele -, se tem algo pra falar, diga aqui, na

frente de todo mundo. Eu sei que você tentou matar o Tomi...

─ Tilla – interrompeu Leila -, por favor!

─ Você deveria cuidar com tuas palavras, criança –

respondeu Theodoro -, eu sou um homem de Deus.

─ FODA-SE VOCÊ E SEU DEUS – retrucou Mariane

furiosa - Eu juro que você vai pagar pelo que fez ao Tomi.

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─ Ele está pagando por interferir nos planos de Deus –

respondeu o Pastor Ted -, e eu no teu lugar, tomaria cuidado para não

invocar a ira divina.

─ Por favor – pediu Leila -, diga o que quer e vá embora.

Houve um instante de silêncio, enquanto Theodoro e Mariane

trocavam olhares intimidares entre si, até que ele desviou o olhar

para Leila. O rosto dele estava levemente vermelho, e sua respiração

um pouco pesada. Levou sua mão ao braço esquerdo, massageando-

o. Leila lembrou-se que ele fizera o mesmo gesto no culto. Parecia

mal. Doente.

─ Fernanda me contou sobre as tuas dúvidas, criança. -

começou ele - Ela me contou sobre o... sobre o teu problema.

Leila abriu a boca, com a intenção de expressar sua

indignação, desacreditada que Fernanda tinha contado algo tão

particular ao Pastor Ted. Ficou com raiva, mas acabou por dizer

nada. Não adiantaria. Não naquele momento.

─ Deus age certo por linhas tortas, criança – continuou -, Tu

vistes ainda ontem um milagre acontecer. Vistes com teus próprios

olhos. Não podes negar a força de Deus.

─ Espera aí – disse Mariane – Você está dizendo que ela foi

estuprada por que Deus quis?

─ Mari...

─ Não, Leila, que porra de absurdo é esse!?

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─ Ninguém pode conhecer os desígnios de Deus – respondeu

ele – Tu manténs uma relação impura, pecaminosa, e mesmo assim,

Deus foi misericordioso e bondoso para te perdoar e semear-te com o

fruto do salvador.

─ Bestera, homi – soltou Seu Miguel quase sem querer -,

pecado é passa fomi.

Todos olharam para ele por um instante, e ele voltou-se ao

que estava fazendo, como se não tivesse dito nada.

Theodoro lançou um olhar de desprezo para Seu Miguel.

─ Leila, eu sei que tu tens dúvidas. És humana. Mas tu viste

um milagre acontecer, não podes negar isso.

─ Eu sou grata por tudo que vocês fizeram por mim nesses

dias – respondeu Leila – Mas você não pode vir na minha casa dizer

que meu amor pela Mariane é errado, que é pecado. Eu não acredito

num Deus assim, mesquinho, que se preocupa mais se eu amo um

homem ou uma mulher, do quê com a fome no mundo, guerras...

Bem, como eu já disse mais de uma vez, obrigada. Eu vou devolver

os presentes, não preciso deles.

─ Estás sendo egoísta, Leila. – respondeu Theodoro.

Sua respiração estava mais pesada, e seu braço esquerdo

parecia doer. Gotas de suor começavam a aparecer em sua testa

─Esta criança em teu ventre trará a paz ao mundo –

completou.

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─ Não! – afirmou Leila seca – Você não escutou? Eu fui

estuprada. Você está errado.

─ Quando eu te contei sobre o fruto do teu ventre,

perguntaste por que foras escolhida.

─ Sim – concordou ela -, não entendo como de repente eu me

tornei o centro do universo pra vocês.

Theodoro se virou e esticou a mão para Paul, que entregou

um envelope pardo.

─ A resposta para as tuas dúvidas estão aqui. – disse

Theodoro mostrando o envelope - Posso entrar?

Leila olhou para Seu Miguel, que deu de ombros.

Theodoro e Paul entraram.

Mariane estava encostada na parede, perto da entrada do

quarto, controlando sua raiva. Não queria interferir. Precisava

demonstrar confiança em Leila. Já estragara tudo antes, não faria isso

agora. Controlaria sua raiva por Theodoro.

─ Eu queria que não fosse desse jeito, criança – disse

Theodoro – Queria que tu estivesses preparada e não contar agora,

nesse momento em que já passas por tantas provações.

Até Seu Miguel que estava distraído afiando uma faca, ficou

apreensivo.

Theodoro entregou o envelope para Leila.

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Leila cruzou seu olhar com o de Mariane quando o pegou o

envelope, e a raiva vazada pelos olhos dela fora substituída por

simples curiosidade. Ela o abriu e tirou algumas folhas, com o

timbre de uma empresa de exames laboratoriais. Leu com os lábios

mudos. Até que parou, boquiaberta. Olhou para Theodoro.

─ Eu pedi esse exame na primeira noite que tu ficaste no

hotel – disse Theodoro.

Leila afastou-se do Pastor Ted.

Seu cérebro tentava organizar algo coerente para ser dito.

─ Você está bem, Vermelha? – perguntou Mariane quando

Leila esbarrou nela – O que tem escrito aí? – perguntou apontando

para o documento.

Leila olhou para o envelope e depois para Theodoro, sem dar

atenção a Mariane.

─ Por quê? – perguntou resignada – Por que, agora?

─ Porque Deus tem o tempo certo para tudo, criança –

respondeu o Pastor Ted.

─ Tempo certo? – perguntou indignada – Minha mãe morreu

porque não tínhamos dinheiro para pagar o tratamento dela. Quando

consegui vender a casa, já era tarde demais. Ela já estava morta. Usei

quase todo o dinheiro para pagar as dívidas do hospital.

─ Eu orei por ela...

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─ Droga! – esbravejou Leila – Você sabia que ela estava

doente, e não fez nada pra ajudar.

─ Clarice era uma mulher teimosa – explicou Theodor -,

apenas quando ela morreu pude me aproximar de ti. Conhecer-te um

pouco melhor.

─ É essa a sua explicação? – perguntou braba – Minha mãe

era teimosa?

─ Tu não compreendes... – começou a dizer.

─ Por isso que você sabe tanto sobre mim? – interrompeu –

Você me seguiu esses anos todos? É por isso que você comprou a

casa? O meu estágio? – A mão de Leila segurava com força os

papéis, amassando-os ao gesticular - Você não tinha o direito de se

meter na minha vida, não depois de tantos anos.

─ Eu estava cuidando de ti, filha...

─ Não me chame assim, não me importa o que esse papel diz.

– interrompeu com rudeza - Você nunca será meu pai. Eu não tive

pai.

─ Entendo que precisaras de um tempo para compreender

tudo isso – respondeu o Pastor Ted. Seu rosto estava encharcado de

suor – Mas, o que tu precisas entender, agora, é que foste escolhida

pelo próprio Deus, por ser minha filha. Essa criança nascerá para

mudar o mundo, torná-lo um lugar melhor.

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─ Não, Theodoro! – disse com tanta firmeza na voz que

surpreendeu a si mesma – Minha gravidez é fruto de um crime. Eu

quero que você saia da minha vida e da vida da minha noiva. Eu

quero que saia da vida de todas as pessoas que amo ou conheço.

─ Tu estás sendo egoísta, criança – disse Theodoro – Estas

dando as costas para Deus. Reze para que Deus não vire as costas

para ti.

─ Quer saber? – respondeu em tom de desafio – Irei ao

medico amanhã e vou abortar, entendeu? A-BOR-TAR! – disse

mesmo que não tivesse certeza sobre sua decisão, ainda - Não quero

ter um filho nascido envolto em tanta desgraça. Nunca serei uma boa

mãe para uma criança que foi concebida em um estupro. Desculpe,

mas você é só mais um lunático religioso. Vá embora, não quero

mais vê-lo. NUNCA MAIS.

As palavras de Leila pairavam no ar, num silêncio

ensurdecedor, numa agressividade incomum por virem dela que era

sempre tão calma; sempre tão apática; sempre tão desinteressada.

O rosto furioso de Theodoro ficou vermelho. Como se

alguém tivesse ofendido sua dignidade. Sua respiração pesada e

nauseada fê-lo apoiar-se na cadeira mais próxima. Mesmo assim, não

desviou seu olhar dos olhos de Leila. Paul fez um gesto para ajudá-

lo. Foi repelido imediatamente.

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─ Tu estás... - começou a falar. Pausadamente. Cansado –

Cometendo... Um.. Grande erro... Criança - a camisa social de seda

estava encharcada de suor.

─ Erro? – respondeu furiosa – Quem é você para falar de

erros? Você acha que pode abandonar sua família e depois vir com

um monte besteiras que eu vou aceitá-lo? Deus pode tê-lo perdoado,

Theodoro, mas nunca terá o meu perdão. Eu vou abortar. Não quero

levar essa gravidez adiante. E pela última vez. SUMA DA MINHA

VIDA – gritou.

Theodoro tomou fôlego. Respirou fundo tentando esquecer a

dor que sentia.

─ Tu vais assassinar o filho de Deus – disse em tom de

ameaça – Eu prefiro que Ele tome minha vida, agora, a ver você

matar Seu filho. Tu iras... – hesitou apertando o a mão contra o peito

– queimar... No... Médico!

Quando Theodoro desabou no chão, Leila ficou estática,

olhando seu corpo imóvel, deitado, como se, estando cansado,

decidisse descansar ali mesmo, no meio da cozinha. Todos ficaram

agitados, passavam por ela esbarrando, falando algo. Gritando algo.

Mariane segurou-a pelo ombro e disse algo. Ela não conseguia

desviar os olhos do rosto de Theodoro. Ele é tão parecido comigo,

pensava ela, as sardas, o nariz, como não notei isso antes? – Pensou

ela.

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Paul começou a fazer uma massagem cardíaca, gritando com

as pessoas, gritando com os Hermann. Quando eles chegaram aqui?

O barulho e a agitação a perturbava. Sem ninguém, nem mesmo

Mariane, reparar, Leila andou em direção à porta, como quem sai

para ir à padaria numa manhã de segunda-feira. Pensava em Zíper.

Sentou-se na escada com as pernas postas contra seu peito, os braços

apoiados nos joelhos e o queixo no braço. Sua cabeça era um vazio

completo. Escutou o ressoar de sirenes se aproximando ao longe.

Sua garganta ficou apertada, seus olhos úmidos. Uma lágrima

escorreu por seu rosto. Permitiu-se pela primeira vez em anos, chorar

compulsivamente, lavando aos prantos as dores guardadas de toda

uma vida.

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XXIV

Lavou o rosto com a água gelada que corria da torneira.

Molhou os pulsos e a nuca na água fria. Olhou-se no espelho. Sentia-

se vinte anos mais velha. A sexta-feira amanhecera quente, quase

insuportável. O ar faltava aos pulmões naquele calor que beirava aos

quarenta graus. Ventiladores eram inúteis. Droga! Agora abriram a

porta do inferno de vez, pensou Mariane, semana de merda.

Embora Leila não demonstrasse, Mariane sabia que ela estava

arrasada. Não trocaram muitas palavras desde que a encontrou

sentada na escada, chorando. Mariane só a vira chorar antes de

Clarice morrer, depois, nem uma lágrima sequer. Nem no dia da

morte, nem no velório, nem depois, quando visitavam o túmulo dela.

Mas, na noite anterior, depois de toda aquela discussão com

Theodoro; depois que soube que ele era seu pai biológico; depois do

que aconteceu com ele, ali, na frente de todos, na frente dela,

encontrá-la encolhida como uma criancinha assustada e aos prantos,

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partiu o coração de Mariane em mais pedaços do que alguém poderia

contar.

Naquela noite, foram para o apartamento e Leila tomou

banho. Não disse nada. Mariane quis dizer que sentia muito, mas isso

parecera tão superficial, que apenas ficou abraçada com ela,

acariciando seus cabelos. Distante, seus pensamentos vagavam em

outros mundos, talvez no passado, junto de sua mãe, até que se virou

para o lado de Mariane, e a olhou com olhos inexpressivos. Mariane

tentou sorrir como quem diz está tudo bem, querida, acabou, mas

não conseguiu. Não estava tudo bem, e ela sabia disso.

Foi estranho. Leila começou a beijá-la. Primeiro a boca,

depois a bochecha, desceu para o pescoço. Mariane ficou imóvel, não

sabia como reagir. Ela quer fazer sexo? Será que ela está bem para

isso? Lembrou-se de ter pensado.

─ Leila! – sussurrou Mariane.

Ela respondeu com um olhar firme e outro beijo nos seus

lábios. Escorregou sua mão com leveza para a barriga dela, sentido

na ponta dos dedos o tecido de seda do seu pijama. Mariane levou a

mão ao rosto de Leila, mas ela a afastou. Levantou-se e ficou de

joelhos na cama. Sentou-se sobre o seu quadril, mantendo-a entre as

pernas. Mariane tentou tocá-la novamente, mas foi repelida com a

suavidade e firmeza de um olhar dominador. É um jogo, entendeu

Mariane, um jogo de poder. Leila sempre fora tão passiva em tudo

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que, para se sentir bem, precisava estar no controle absoluto de algo,

mesmo que fosse o sexo. Mariane faria o jogo dela, e apenas baixara

a mão, mostrando total submissão a sua parceira.

Leila alisou o seu pijama logo abaixo dos seus seios,

deixando-os rijos e marcando a seda com dois pontos. Desceu a mão

até a bainha da camisa, e acariciou a barriga já arrepiada de Mariane.

Tirou sua camisa, deixando os seios nus e expostos. Leila segurou

com ambas as mãos sua cintura, deixando os polegares apontados

para o seu umbigo, subiu-as com suavidade, sentindo cada

centímetro de pele, até a base dos peitos. Com o polegar e o dedo

indicador da mão direita, acariciou a auréola do bico do seio,

brincando com ele entre os dois dedos, enquanto usava os demais

para arranhar a lateral do seio. Mariane sentia um prazer estranho.

Ficou excitada. Queria segurar Leila e jogá-la na cama para fazer

amor. Por instinto, levou sua mão à coxa dela, mas foi repelida com a

outra mão. Leila se inclinou e beijou o outro seio, sem soltar nem

por um instante o primeiro. Segurou firme em sua mão e mordiscou o

bico rijo. Mariane soltou um gemido baixo. Aquilo era bom. Nunca

experimentara ser completamente possuída, sem assumir o controle

do sexo. Receber prazer ao invés de dar. Leila continuou beijando-a,

descendo os lábios rosados por sua barriga. Mariane não usava

calcinha, Leila beijou seu sexo por cima da bermuda fina, mordendo-

o com uma ferocidade que a fez suspirar. Acomodou-se entre suas

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pernas e, revezando beijos e mordidas na parte interna de sua coxa,

subiu até a virilha, passou a língua nela, sentindo o gosto salgado da

sua pele. Mariane apalpou os próprios seios e abriu mais as pernas.

O prazer era indescritível. Queria mais. Precisava de mais.

Leila afastou o pijama, deixando seu sexo liso desnudo.

Passou a língua nos grandes lábios já úmidos e segurou o seu clitóris

com os dentes sem forçar. Mariane ergueu seus joelhos e Leila tirou

sua bermuda, deixando-a completamente nua. Agarrou suas coxas e

levantou suas pernas, mergulhando os lábios em seu sexo. Chupava-a

com vontade e determinação. Penetrou o dedo indicador em Mariane,

depois o médio, enquanto a boca cuidava da parte mais sensível, o

clitóris, e o dedão estimulava a região anal.

Mariane respirava rápido e ofegante. Ficou descontrolada,

começou a gemer tão alto que talvez o prédio inteiro estivesse

ouvindo. Mas não se importou. Era tão gostoso, tão bom, estava tão

excitada, que não havia espaço em sua mente para mais nada, muito

menos preocupação. Leila a chupava como nunca fizera antes, como

se daquilo dependesse a própria vida. Não demorou a chegar ao

orgasmo. Segurou os cabelos de Leila e apertou sua cabeça,

pressionando mais e mais contra seu sexo. Os músculos de sua

barriga se contraíram e uma explosão de prazer correu todo seu

corpo. Cada centímetro seu estava relaxado. Quando Mariane atingiu

o clímax, Leila parou e voltou a deitar-se aninhada nos seus braços.

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Dormiu envolta no abraço protetor de Mariane sem dizer uma

palavra. Aquilo fora bom, talvez um dos melhores orgasmos que ela

já tivera, mas dada a situação, as lembranças soavam um tanto

estranhas em sua cabeça.

Secou o rosto com toalhas de papel e saiu do banheiro.

Leila permanecia sentada na sala de espera, concentrada num

quadro qualquer pendurado na parede, sem prestar atenção nele.

Sentou-se ao lado dela e segurou-lhe a mão entre as suas. Passaram a

manhã inteira correndo para cima e para baixo fazendo exames.

Agora, a última etapa era uma entrevista com o psicólogo.

─ Leila Rossastro! – chamou uma voz vinda da porta

entreaberta ao lado delas.

Levantaram-se e entraram no consultório. O ar condicionado

mantinha a sala fresca. Uma sala simples, com uma mesa simples,

com objetos simples sobre ela e um homem simples, magro, de rosto

fino, cabelo bem aparado e óculos de grau sentado atrás dela.

Sentaram-se. O psicólogo encarou Leila com ar sério, por instantes.

Abriu a gaveta, tirando de lá uma carteira e, de dentro dela, duas

notas de dez reais de dentro da carteira. Colocou-as na mesa, na

frente de Leila. Mariane acompanhou a cena confusa, olhou para

Leila que parecia tão confusa quanto.

─ Algumas pessoas fazem o bem porque é o certo a se fazer –

disse o psicólogo olhando para Leila.

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Mariane olhou para Leila, e a viu abrir-se num sorriso

espontâneo. O psicólogo também sorriu.

─ Obrigada! – respondeu sem jeito – Agora você sabe o

motivo.

─ Sinto muito pelo o que aconteceu a você, Leila – disse ele -

, a propósito, meu nome é Maurício – e estendeu a mão para ela e

depois para Mariane - Você deve ser a noiva, Mariane, certo?

─ Sim... – respondeu resignada – Afinal, vocês se conhecem?

– perguntou de forma espontânea franzindo o cenho.

─ Quando saí do hospital, na segunda-feira em que descobri a

gravidez, eu entrei no carro dele achando que era um taxi. – disse

Leila visivelmente envergonhada – O Mauricio me deu uma carona

até a casa da minha mãe.

Mariane riu.

─ Nossa! Só você mesma, né, Vermelha?

─ É algo normal quando estamos sob um forte estresse. –

disse Maurício - E como você está se sentindo, agora?

─ Péssima – respondeu olhando para a mesa – aconteceu

tanta coisa daquele dia até hoje.

─ Você quer falar sobre isso?

Meneou a cabeça, negando.

─ Eu não quero ser uma assassina – disse de repente.

─ Assassina? – repetiu Maurício.

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─ É. – confirmou Leila, olhando-o – Eu sei que fui estuprada,

e tenho esse direito, mas não sei se quero tirar uma vida.

Mariane acompanhava a conversa em silêncio.

─ Hum! – compreendeu Maurício – O que significa tirar uma

vida pra você, Leila?

─ Matar alguém – respondeu incerta.

─ Então você tem medo de tirar uma vida humana, certo? –

perguntou o psicólogo – De matar um bebê, por assim dizer – e

parou para pensar um minuto sobre aquilo – Você tem uma decisão

importante para tomar, mas está confusa.

Que gênio, pensou Mariane com ironia, é claro que ela está

confusa.

─ Você acha justo dizer que a vida humana termina com a

morte do cérebro da pessoa? - perguntou Maurício.

─ Sim – respondeu pensando na pergunta.

─ Eu, também, penso assim – respondeu ele – Então, seria

justo dizer que a vida humana começa com o cérebro, correto?

─ Sim – respondeu um pouco a contragosto.

─ Pelos seus exames, você está com seis semanas de gravidez

– disse ele olhando alguns papéis.

Levantou-se e foi até um armário. Voltou trazendo consigo

algumas fotografias.

Selecionou uma.

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─ Este é um feto com seis semanas – mostrou Maurício.

─ Parece um girino – comentou Mariane ao olhar a imagem.

─ Somente a partir da décima segunda semana de gravidez é

que a cérebro do feto começa a ser formado. Antes disso, a vida

existente nele é igual a existente em qualquer célula. Igual a existente

num óvulo ou num espermatozóide. Existe vida nele, mas não é uma

vida humana, não é a mesma coisa.

─ Mesmo assim eu estaria tirando a oportunidade dele se

tornar um ser humano, não? – questionou Leila.

─ Sim – respondeu o psicólogo -, tanto quanto alguém tira a

oportunidade de dar vida a um ser humano quando usa camisinha,

toma pílula anticoncepcional, se masturba, no caso dos homens, ou

deixa de transar quando está no período fértil, no caso das mulheres.

Em todos eles, tira-se a possibilidade de se conceber outro ser

humano.

Mariane observava Leila.

─ Ser mãe é uma responsabilidade muito grande nos dias de

hoje – continuou ele -, o que você precisa pensar no momento é, se

você decidir levar a gravidez adiante, como será o seu futuro e o

futuro da criança. Ainda que a concepção seja ocasionada em

decorrência de um ato violento, você pode ser uma excelente mãe.

Pode fazer acompanhamento psicológico e superar tudo isso. Mas

essa decisão deve ser sua. Somente sua. – enfatizou - Você não deve

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abortar se acreditar que pode ser uma boa mãe e amar incondicional

a criança. Também não deve levar a gravidez adiante se pensar o

contrário. Vocês duas são novas, terão tempo para planejar uma

gravidez e ter muitos filhos. Não devem colocar o próprio futuro em

risco, colocar uma criança no mundo simplesmente por medo de

julgamentos. As pessoas não sabem o que vocês passaram e não

sabem nada sobre vocês, Leila. Não viveram o que vocês viveram. A

decisão cabe somente a você e ela deve ser tomada com base naquilo

que você acredita ser o certo.

As palavras de Maurício tranquilizaram Mariane, que não

sabia o que fazer ou o que dizer para Leila. Sabia que a apoiaria

independentemente da decisão que tomasse, embora preferisse que

ela abortasse. Desejava muito ter uma filha, mas não era o momento

e, muito menos, a circunstância ideal para isso. Leila é forte, mas

sofrerá muito em razão dessa gravidez, pensava Mariane enquanto

ouvia o psicólogo, um sofrimento desnecessário e que ela não

merece.

─ E seu eu quiser levar a gravidez adiante e deixar a criança

para adoção, quando ela nascer? – perguntou Leila.

─ É uma opção – disse o psicólogo –, mas talvez seja a mais

difícil. Não apenas para você, como para a criança. Uma coisa é

interromper a gravidez enquanto o feto não passa de um amontoado

de células ou mesmo levar a gravidez adiante e enfrentar isso com

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acompanhamento profissional se for necessário; outra é passar por

uma gravidez, parir a criança para desfazer dela, consciente que ela

está no mundo e você não sabe se estão cuidando, se ela está bem ou

até mesmo viva. Será difícil pra você, mas será difícil especialmente

para a criança que dependerá de uma adoção para ter uma família, e,

antes disso, viverá em um lar temporário. Ainda assim é uma opção,

se você quiser.

Leila parecia pensar sobre tudo aquilo.

Desviava o olhar volta e meia para a imagem do feto e

voltava a olhar o nada.

─ Mariane, eu posso conversar um pouco com a Leila a sós?

– perguntou Maurício

Mariane olhou para Leila, que anuiu com um aceno de

cabeça.

─ Claro – concordou – estarei ali fora esperando.

O vazio da sala de espera fê-la sentir-se solitária. Ansiosa. Foi

até a janela basculante e olhou para fora. Observou o gramado e as

folhas das árvores imóveis. Não ventava e o calor continuava

insuportável. Após passar alguns minutos no consultório, com ar

condicionado, o calor do lado de fora parecia ter aumentado vinte

graus. Viu um ponto azul no galho de uma das árvores mais

distantes. Cerrou as vistas para enxergar melhor. Um pássaro?

Pensou ela. Mas tão azul... Alçou voo. Mariane pode vê-lo melhor.

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Suas grandes asas de um azul nítido e profundo abertas e majestosas

em pleno ar. A mancha amarela perto do bico e ao redor dos olhos.

Uma arara azul. Lembrou-se de quando tinha apenas quinze anos. A

arara foi para uma árvore mais próxima dela. Depois pousou na

grama, próximo à janela. Mariane colou o rosto e a palma das mãos

no vidro. A ave parecia estar ali se exibindo, como se soubesse que

era admirada.

Quando Leila saiu do consultório, Mariane ainda admirava a

arara, e fez um aceno leve para que se ela aproximasse.

Leila foi até a janela e olhou para fora.

─ Está vendo, Vermelha? – perguntou Mariane.

─ Uma arara-azul! – confirmou admirada – É tão linda.

A ave levantou voo. Elas a observaram até sumir

completamente de suas vistas. Viraram-se uma defronte para a outra

e Mariane pegou as mãos de Leila nas suas.

─ Seja qual for a sua decisão, Vermelha, eu ficarei ao seu

lado – disse Mariane.

Leila a olhou no fundo dos olhos e a beijou.

─ Eu sei – respondeu.

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Epílogo

Parte um

TUM. TUM. TUM. Alguém estava derrubando a porta da

frente. Ou, talvez, fosse somente o efeito da ressaca da noite anterior

ecoando na sua cabeça e potencializando tudo que pudesse

incomodar seu sono. Não eram nem nove horas da manhã. Fosse o

que fosse, precisava dar um jeito naquilo para voltar a dormir.

Levantou cambaleando e esbarrando em todos os móveis da casa.

Sequer se deu ao trabalho de colocar uma camiseta.

TUM. TUM. TUM.

─ JÁ VAI... – gritou ele ainda da porta do quarto – Caralho.

TUM. TUM. TUM.

─ Inferno! – resmungou - Espero que morra o desgraçado que

veio bater a minha porta tão cedo em pleno sábado.

Há uma semana bebia todos os dias. Comemorava sua

liberdade. E naquela manhã, sentia seu corpo como se um caminhão

o tivesse atropelado. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas na

claridade.

Estava há três passos da porta quando ela fora arrombada.

Ficou paralisado. Homens encapuzados passaram pela porta,

armados e gritando.

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─ PRO CHÃO! – Alguém gritou.

Ele não se mexeu até que dois dos invasores o jogaram no

chão sem qualquer delicadeza. Acertando-o com a coronha de uma

escopeta na boca do estômago.

─ POLÍCIA – gritou novamente, algemando-o - PRO CHÃO!

─ Eu não fiz nada – disse finalmente quando compreendeu o

que estava acontecendo – Aquela puta mentiu pra vocês, eu juro, não

fiz nada.

─ Cala a boca – disse o Policial.

─ O Juiz me liberou – tentou argumentar -, eu fui inocentado.

Pode perguntar pro Juiz. Deve haver algum engano. Eu não a

estuprei. Ela mentiu.

─ Jean Rafael Cordeiro? – Perguntou um policial.

─ Sim, sou eu – disse ele virando a cabeça para o policial,

mas via somente o coturno lustrado dele – Eu sou...

─ Você está preso pelo crime de tráfico de drogas –

interrompeu o policial jogando um pacote abarrotado de

medicamentos controlados e drogas ilícitas defronte ao seu rosto

junto com o mandado de prisão, busca e apreensão – Tem o direito

de permanecer calado e da presença de um advogado.

─ NÃO – gritou debatendo-se –, ISSO NÃO É MEU! EU

SOU INOCENTE!

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─ Não se preocupe, vamos levá-lo para um lugar onde só há

inocentes – respondeu irônico - Levem-no – ordenou em seguida.

Ele foi levantado à força e arrastado para fora de casa,

enquanto um batalhão de policiais vasculhava sua casa em busca de

mais provas e evidências. Pouco antes de ser colocado na traseira da

viatura, olhou de relance para trás e viu um rosto conhecido, entre os

muitos que se aglomeravam na rua. Os olhos verdes penetrantes; o

rosto fino branco e sardento; o cabelo cor de fogo. Ela era

inconfundível.

Lembrou-se dela no dia da audiência, há uma semana, dia em

que o Juiz o declarou inocente do crime de estupro por falta de

provas, dez meses após a festa. No fim da audiência, Jean esboçou

um sorriso sarcástico, enquanto todos conversavam ao mesmo

tempo, e a encarou triunfante. Leila permanecera calma. Levantou-se

com delicadeza e inclinou-se em sua direção com as mãos apoiadas

na mesa.

─ Eu estarei lá, rindo, quando você for preso – disse a ruiva

sem hesitar -, eu juro pela alma da minha mãe, eu verei você ser

preso, não importa o tempo que demore – e saiu sem olhar para trás.

─ Você não escutou? – respondeu ele em voz alta com um

sorriso estampado no rosto – Eu sou inocente. Não existem provas

contra mim.

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Apenas uma semana após Jean ser inocentado, Leila estava

ali, de pé, encarando-o com um sorriso nos lábios enquanto ele era

jogado na traseira de uma viatura de polícia, exatamente como

prometera.

Parte dois

Não se via a sede do Templo da Liberdade tão cheia desde a

morte do Pastor Ted, quando muitos membros da igreja, pastores,

conhecidos e curiosos foram prestar suas últimas homenagens. A

convocação dera o que falar entre os pastores. Muitas especulações e

boatos surgiram. Especialmente, quando alguns membros que faziam

parte da administração e o advogado Carlo Mossani, foram presos.

Os boatos eram de que apenas Thomas Adichie, ficara livre de

qualquer acusação. O restante, quem era próximo ao Pastor Ted,

todos presos. Nunca ninguém confirmou o motivo. Haviam muitos

rumores relacionados à suposta filha do Pastor. Alguns, que ela teria

o matado envenenado; outros que ela dera a luz ao demônio e este a

devorara, levando-a para o inferno. O que todos sabiam, era que ela

sequer fora ao velório do Pastor Ted, há pouco mais de dois anos.

─ Senhores, meu nome é Ricardo Silva – apresentou-se -, sou

advogado da senhora Leila Rossastro. Como muitos sabem a senhora

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Leila Rossastro é filha e herdeira legítima do falecido Senhor

Theodoro Madires, o Pastor Ted, como era conhecido. Ela, por

determinação judicial e força da Lei, agora é administradora vitalícia

de todos os bens pertencentes ao Templo da Liberdade e suas

sucursais.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo, interrompendo

Ricardo.

Pacientemente, esperou que se acalmassem.

─ A senhora Leila Rossastro estabeleceu novas diretrizes de

gestão. – continuou após conseguir a atenção dos presentes -

Primeiro: Todos os bens considerados de luxo, que ultrapassem a

linha do necessário ou que sejam supérfluos, serão vendidos. Carros,

casas, joias, roupas... Tudo!

Todos protestaram ao mesmo tempo. Ricardo precisou de

quase dez minutos para ter novamente a atenção de todos.

─ Senhores, se eu for interrompido novamente, vocês serão

convidados a se retirar. – ameaçou - Segundo: O Templo apenas

subsidiará carros, casas, apartamentos, viagens, estadas, dentro dos

padrões da classe média. Terceiro: a aquisição de bens deverá ser

aprovada pelo conselho gestor. Quarto: qualquer Pastor que se recuse

a cumprir as novas diretrizes de gestão será imediatamente

excomungado do Templo. Quinto: as doações recebidas serão usadas

para o financiamento de programas sociais, como, por exemplo, o de

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reinserção de ex-presidiários no mercado de trabalho. Sexto: a

construção da sede do Templo da Liberdade em Jardim do Norte foi

cancelada. Agora, o Parque Beca Pavasaris é propriedade da

Fundação Beca Pavasaris, criada para gerir e manter o parque como

patrimônio cultural daquela cidade, cuja presidente vitalícia é a

senhora Mariane Castillo Montanez.

─ ISSO É UM ULTRAJE – gritou um dos presentes,

levantando-se -, vocês não podem tirar aquilo que nos foi dado por

Deus.

─ Desculpe – respondeu Ricardo educadamente -, mas eu

respondo somente às ordens da senhora Leila Rossastro, talvez ela

tenha conversado com Deus e ele em pessoa, a tenha orientado dessa

forma. Aproveito para informá-los que na próxima semana, será

iniciada uma auditoria interna em todas as sucursais e na matriz.

Fraudes, desvios de dinheiro, ações ilícitas e irregularidades serão

encaminhadas ao Ministério Público para responsabilização criminal

dos responsáveis. Os senhores receberão um dossiê completo

contendo as novas regras. Agora vou abrir para perguntas, mas os

senhores estão liberados. Obrigado pela atenção.

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Parte três

A garotinha, completamente suja pelo barro do buraco que

cavara entre as flores próximas à cerca branca, parou sua empreitada

quando ouviu uma voz chamando-a. Olhou em direção à varanda da

casa, mas, por momento, ignorou o chamado e continuou a escavação

no jardim. No começo achava estranha a nova casa. Era quieta

demais. Não que achasse ruim, era apenas estranho viver em um

lugar tão silencioso. Gostou das flores já no primeiro dia. Eram

cheirosas e coloridas, e o jardim estava cheio delas. Na sua antiga

casa não havia nenhuma flor. Nem lembrava muito da outra casa,

apenas que era tudo cinza, barulhento e sem flores coloridas e

cheirosas. Parou de cavar quando ouviu seu nome pela terceira vez.

Pegou duas flores amarelas e correu para dentro de casa, parando à

porta quando viu o homem estranho. Não gostava da barba dele. Mas

nunca tinha visto uma cadeira igual aquela, com rodas, gostava dela.

Queria poder sentar nela, mas o homem não saía de lá para deixá-la

brincar, e tinha medo de pedir pra ele.

─ Acho que sua filha não gosta muito de mim, Mari – disse o

homem.

─ Ela só é tímida no começo – respondeu Mariane - Não é

filha? – e foi até ela – Nossa! Como você consegue se sujar tanto,

Clarisse? Ai, ai, ai, vai ter que tomar outro banho agora.

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Ela gostava de tomar banho, não via problema nisso. Poderia

ficar horas na banheira ou no jardim. Lembrou-se das flores que

colhera no jardim e ofereceu uma para Mariane. Mamãe Mari.

─ Ownnn! – sibilou Mariane – Obrigada docinho! A mamãe

ama tanto você, meu amor! – e abraçou-a forte enchendo-a de beijos.

Clarisse gostava disso mais que do jardim e da banheira.

─ E trouxe uma pra mamãe Leila, também? - perguntou

Mariane ao ver a outra flor – É muita fofura para uma pessoinha

desse tamanho, não é, Tomi? A mamãe Leila está no quarto, vai lá

entregar pra ela – e beijou mais uma vez.

Ela atravessou a sala até a cozinha olhando com curiosidade

para Tomi. Ele sorria. Ao perceber que ele a olhava, saiu correndo

para o quarto. Encontrou Leila vasculhando uma caixa com

documentos em cima da cama.

─ Oi filha, o que você está aprontando? – perguntou Leila ao

vê-la na porta.

Clarisse esticou seus pequenos braços mostrando a flor.

─ Que flor linda! – respondeu Leila se ajoelhando – É pra

mim? Obrigada, filha!

Clarisse ganhou mais abraços apertados e beijos. Ela

realmente gostava mais das mamães que das flores e da banheira.

Não gostava do Zíper, ele a arranhara uma vez e doeu.

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Jardim; flores; abraços apertados; mais beijos; mais abraços

apertados; e, finalmente, o banho. Um dia perfeito. Depois do banho

Leila a levou para a sala. Clarisse ficou brincando com seus

brinquedos no chão, enquanto as suas mamães conversavam com o

homem estranho.

─ Como está o tratamento com a fono da Clarisse? -

perguntou Tomi.

─ Ela não disse nenhuma palavra até agora – disse Leila –

mas está se adaptando maravilhosamente bem. A psicóloga explicou

que é um trauma pelo abandono da mãe biológica e que, quando ela

sentir confiança, vai começar a falar – olhou para a pequena Clarisse

com um sorriso largo no rosto.

─ Foi a melhor coisa que fizemos – complementou Mariane –

Nós a amamos mais que tudo nessa vida.

─ Ela fará cinco anos no mês que vem. – disse Leila

empolgada - Queremos fazer uma super festa. Convidamos todo

mundo. Os Hermann, Seu Miguel e outros moradores lá do prédio, a

Dona Fátima, o Ricardo e a namorada, Camila, o Tom, as crianças do

jardim... Olha, virão por baixo umas duzentas pessoas. E, claro,

vocês estão convidados, também, não preciso nem dizer, não é?

─ Ela é uma criança adorável – disse Tomi – Dá pra ver que

vocês são excelentes mães! Fico feliz por estar vivo para presenciar

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isso. E eu sei da festa, vocês só falam nisso. Vocês são mães mega

corujas, isso sim – completou rindo.

A conversa foi interrompida pela porta que se abriu.

─ Boa tarde, meninas!

─ Oi Fernanda, boa tarde, estávamos esperando você – disse

Leila levantando-se.

─ Boa tarde, Fê – cumprimentou Mariane –, entre!

─ E essa menina mais linda? – disse Fernanda abaixando-se

ao lado de Clarisse – Que inveja dessa pele morena, quando você

crescer vai arrasar corações, menininha – e beijou-a na bochecha.

Após amassar e beijar Clarisse toda, levantou-se e foi

cumprimentar Tomi.

─ Oi amor – beijou-o.

─ Oi linda.

Mariane observou feliz o casal. Feliz pela felicidade do

amigo.

─ Quem diria que, naquela história toda, vocês dois ficariam

juntos? – comentou.

─ É. Eu tentei sair correndo, mas não deu certo – disse Tomi

apontando para a cadeira de rodas.

Todos riram.

─ Ai, seu bobo – disse Fernanda dando um tapa nele,

ofendida.

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─ Brincadeira, amor – se justificou sorrindo -, se eu pudesse

correr, voltaria sempre para os seus braços. Claro, exceto durante a

sua TPM, daí eu iria pra bem longe – apanhou novamente.

Clarisse brincava com uma boneca, mas prestava atenção à

conversa. Gostava de quando todos riam felizes. Até gostava mais do

homem estranho.

─ Já decidiram sobre o livro? – perguntou Fernanda.

─ Sim, está tudo acertado – respondeu Tomi.

─ Hum! Que bom!

─ Leila, eu pensei em colocar uma piadinha sobre sua

gravidez... – disse Tomi virando-se para Leila.

─ O quê? – perguntou curiosa.

─ Só queria provar que você não estava grávida de Deus –

explicou ele – Bom, na teoria, se a sua gravidez fosse divina, você

deveria ter engravidado de novo, três dias depois do aborto!

Mariane soltou uma gargalhada. Leila ficou séria.

─ Okay – disse Tomi antes que ela respondesse notando sua

expressão -, sem piada!

─ E o título? – perguntou Fernanda.

─ Eu propus Uma noite e... – começou a dizer Tomi.

─ Mamãe!

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Todos olharam pasmos para Clarisse que continuava sentada

no chão com suas bonecas, olhando para Leila. Descriam os próprios

ouvidos.

─ Mamãe – repetiu Clarisse.

Leila deu um pulo do sofá e se ajoelhou na frente dela.

─ Sim, filhinha – disse sem segurar as lágrimas que já

transbordavam seus olhos.

Clarisse, tímida por todos os olhares estarem nela, levantou-

se e abraçou o pescoço de Leila, afundando seu rosto entre os cabelos

dela.

─ Mamãe – repetiu com a voz abafada -, amo você.

Parte quatro

E viveram felizes para sempre, sempre que possível.