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Winckler, C. R.; Faria, L. A. E. Uma nau à deriva: política, governabilidade e desenvolvimento ..... O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 90 Uma nau à deriva: política, governabilidade e desenvolvimento no Rio Grande do Sul, desde 1980 Carlos Roberto Winckler * Luiz Augusto E. Faria ** “Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: 'Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quere o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!’” Mensagem (Fernando Pessoa, 1934) Este trabalho trata da dimensão política do desenvolvimento no plano regional. O que queremos compreender aqui é o nexo que vincula as forças sociais e sua representação política, na forma das coalizões criadas ao longo da história para exercer o poder sobre essa fração do território brasileiro chamada Rio Grande do Sul, com o propósito de dar uma direção específica ao desenvolvimento socioeconômico do Estado. Para tanto, iniciamos com uma discussão sobre o próprio conceito de desenvolvimento regional e suas determinações. O curso da análise buscará levar em conta as condições que permitiram, em um momento particular da história, a adoção de um caminho inovador e distinto do que ocorria no resto do País, desde a última década do século XIX até os anos 40 do século XX, condições estas desaparecidas na segunda metade desse século, quando a região foi subsumida ao desenvolvimentismo nacional. Num segundo momento, trataremos de investigar como, em razão da crise dos anos 80 do século passado, se abriu um novo momento *Sociólogo, Técnico da FEE. ** Economista, Técnico da FEE.

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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010

90

Uma nau à deriva: política, governabilidade e

desenvolvimento no Rio Grande do Sul, desde 1980

Carlos Roberto Winckler*

Luiz Augusto E. Faria**

“Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: 'Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quere o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!’”

Mensagem (Fernando Pessoa, 1934)

Este trabalho trata da dimensão política do desenvolvimento no

plano regional. O que queremos compreender aqui é o nexo que vincula

as forças sociais e sua representação política, na forma das coalizões

criadas ao longo da história para exercer o poder sobre essa fração do

território brasileiro chamada Rio Grande do Sul, com o propósito de dar

uma direção específica ao desenvolvimento socioeconômico do Estado.

Para tanto, iniciamos com uma discussão sobre o próprio conceito de

desenvolvimento regional e suas determinações. O curso da análise

buscará levar em conta as condições que permitiram, em um momento

particular da história, a adoção de um caminho inovador e distinto do que

ocorria no resto do País, desde a última década do século XIX até os anos

40 do século XX, condições estas desaparecidas na segunda metade desse

século, quando a região foi subsumida ao desenvolvimentismo nacional.

Num segundo momento, trataremos de investigar como, em razão

da crise dos anos 80 do século passado, se abriu um novo momento

*Sociólogo, Técnico da FEE.

** Economista, Técnico da FEE.

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político marcado pela busca de uma alternativa. O choque das

contradições entre as diversas forças sociais atuantes no plano regional,

temperado pela negação do nacional-desenvolvimentismo e a ascensão do

neoliberalismo, abriu um período de disputas que adentrou a primeira

década do século XXI e segue inconcluso. Para além dos interesses das

classes e dos grupos sociais envolvidos, um dos temas centrais dessa

disputa responde pelo grau de autonomia que o novo momento guardaria

à formulação de um projeto regional. A época é a da vigência de impulsos

que vêm do mundo, da globalização, da integração no Mercosul, impulsos

que se combinam e se opõem à subordinação do desenvolvimento

regional ao movimento geral da acumulação em escala nacional. Num

movimento do mais geral e abstrato para o mais concreto, iniciamos pelo

tema região e desenvolvimento; seguimos adiante, refletindo sobre a

hipótese de o Rio Grande do Sul poder ser considerado uma região-mundo

cosmopolita; e avançamos para a discussão do significado das

administrações estaduais nos últimos 25 anos, suas iniciativas e o alcance

de seus projetos. Nesse percurso, a sociedade gaúcha passou da

originalidade norteada dos republicanos à subsunção sob o nacional-

-desenvolvimentismo, chegando à incapacidade de encontrar um rumo

próprio do período recente.

1 REGIÃO E DESENVOLVIMENTO

Há muitos anos, falamos em economia gaúcha, sociedade sul-rio-

-grandense, Brasil meridional e outros nomes que designam esse pedaço

do arranjo territorial brasileiro que tem sua localização confundida com a

unidade federada Rio Grande do Sul. Um olhar para as muitas reflexões

de intelectuais e instituições de pesquisa realizadas em um passado

recente, no e sobre o Rio Grande do Sul, por mais descuidado que fosse,

confirmaria a permanência de um tema: a especificidade e a relevância

analítica do que, em termos marxistas, poderia ser descrito como uma

formação econômico-social específica ou, na teoria dos sistemas, como

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uma totalidade. Quando a totalidade corresponde a um espaço

identificado como parte de um território nacional, como no presente caso,

estamos adentrando o terreno da análise regional. Neste trabalho,

buscamos também saber se, em relação ao objeto sociedade sul-rio-

-grandense no período histórico entre os anos de 1980 e 2009, há a

possibilidade e a pertinência de analisá-lo como uma formação social

específica, uma totalidade.

Se respondemos não à hipótese referida, adentramos um outro

campo da análise regional, o estudo não de uma totalidade, mas de

fenômenos que ocorrem em um espaço geográfico subnacional, que têm,

no entanto, suas determinações, em última instância, situadas em forças

e movimentos originados alhures. Se o lugar de origem dessa

determinação é a acumulação em escala nacional, como na posição de

Müller (1979),1 ou a acumulação em escala mundial, como defendido por

Wallerstein (2000), sua identificação vai depender, em larga medida, do

tipo específico de fenômeno em vista. No caso presente, como se trata

tanto da acumulação de capital quanto da reprodução social, seguimos a

sugestão de Lipietz, quando diz:

O desenvolvimento do capitalismo em cada país é antes de mais

nada o resultado da luta de classes internas, que acabam

esboçando regimes de acumulação consolidados por formas de

regulação apoiadas no Estado local (Lipietz, 1988, p. 34).

A questão é saber até que ponto, ou até quando, por “país”,

podemos entender um espaço subnacional como o Rio Grande do Sul.

O processo de desenvolvimento histórico desse espaço geográfico no

Cone Sul da América do Sul teria possibilitado a essa parte determinada

do que hoje é entendido como sociedade brasileira seguir uma trajetória

própria e distinta do que se passou em outras latitudes do País. Se isso

1 As ideias de Müller pertencem a toda uma tradição brasileira que teve no Cebrap e na

Unicamp seus formuladores mais conhecidos. Embora tenha adotado um referencial marxista, não deixou de ser tributária das ideias estruturalistas da CEPAL, com quem sempre dialogou na elaboração de uma crítica. Ver, por exemplo, Oliveira (1974) e Cardoso (1980).

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pode ser tomado como algo de relativo consenso, quando se olha para o

período que foi até a primeira metade do século XX, a História, desde

então, tornou problemática a assunção desse espaço geográfico como

uma totalidade sistêmica, quando visto sob a ótica das ciências sociais. No

período que abrange do advento da República, em 1889, até a Revolução

de 1930, o Rio Grande do Sul atravessou um momento histórico

extremamente rico, que muitos autores identificam como de uma

verdadeira revolução burguesa (Targa, 1984; Fonseca, 1983). Se a

tomada do poder por Getúlio Vargas após a breve guerra civil de 1930,

por um lado, possibilitou a extensão da experiência revolucionária sul-rio-

-grandense ao conjunto do País (Fonseca, 1998), por outro deu início ao

processo de perda de especificidade de nossa formação social regional, ao

inaugurar o processo de integração nacional. Toda uma rica literatura foi

produzida nas últimas décadas, em especial na FEE, questionando até que

ponto uma suposta sociedade ou economia gaúcha pode ainda ser tomada

como objeto de análise relevante.2

Mas, afinal, o que vem a ser o Rio Grande do Sul? Como qualquer

outro recorte geográfico, trata-se de um espaço construído, uma

territorialidade, entendido como a fixação de determinadas relações

sociais numa dada dimensão espacial (e temporal também). A questão

que precisa ser respondida é se esse recorte socioespacial pode, e deve,

ser compreendido como uma unidade de análise relevante que tenha uma

dinâmica própria. Se o território é um espaço produzido e a totalidade é

uma estrutura com determinações próprias, a espacialização das relações

sociais precisa identificar qual o escopo geográfico que abrange as

determinações de cada relação. Se nossa região é o Rio Grande do Sul

político, ou a sociedade sul-rio-grandense, ou a economia gaúcha,

estamos diante de três realidades sociais diferentes, objetos analíticos

diversos e com dimensões espaciais muito provavelmente distintas, sendo

2 Ver os clássicos FEE (1976, 1978), FEE (1983) e também o debate em torno deste último trabalho na revista Ensaios FEE, v. 4, n. 1 (1983).

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que, a cada uma delas, podemos, genericamente, atribuir o rótulo de

região.

A análise do fenômeno regional tem, como condição inicial de sua

realização, a necessidade de superar um viés comum às ciências sociais,

que se pode definir como nacionalismo metodológico. No que diz respeito

à dimensão espacial — e com poucas exceções, em especial a

Antropologia —, a unidade de análise geralmente se confunde com o

território do Estado nacional. Essa circunstância nos obriga a um esforço

teórico necessário de elaborar e sistematizar conceitos que sejam

ferramentas analíticas úteis para empreendermos o estudo de fenômenos

que se dão no plano que chamamos de regional. Essa é uma empresa

difícil, particularmente para a Economia: em primeiro lugar, em razão da

herança dos clássicos, que pensaram o sistema econômico como um nível

analítico pertencente à sociedade nacional. No século XX, esse viés foi

reforçado pela preferência à adoção de modelos matemáticos da corrente

neoclássica, para o que a própria metodologia de produção de

informações e estatísticas contribuiu enormemente.

Mas há também uma razão histórica para que isso seja assim. O

desenvolvimento do capitalismo na Europa foi uma das causas da

formação, no Velho Continente, do modelo político dos Estados-nação.

Durante o século XIX, o modelo foi replicado no continente americano,

como decorrência dos movimentos de independência das antigas colônias

europeias. Ao longo do século XX e seguindo adiante na virada do milênio,

essa alternativa se generalizou, com o avanço do processo de

descolonização nos demais continentes. O desaparecimento dos antigos

impérios na África e na Ásia, em grande parte aniquilados pelo

colonialismo europeu, os quais, por milênios, representaram um modelo

de organização política bastante efetivo, favoreceu mais ainda a

universalização do sistema dos Estados-nação. Além disso, outro impulso

veio da necessidade de proteção e autopreservação de grupos étnicos e

culturais ou de formações sociais específicas que veem na constituição de

seu Estado uma garantia de sobrevivência, como o mostram Bósnia-

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-Herzegovina ou Timor Leste. Mesmo os impérios que, de alguma forma,

se preservaram ou se reorganizaram, como Japão e China (ou Rússia?),

adotaram a forma de Estados nacionais.

Nosso objeto, a região, define-se como um espaço subnacional de

mesoescala: um território articulado que é o ponto de partida para uma

análise da dinâmica regional e inter-regional. É um espaço menor e menos

fechado do que o nacional, mas mais articulado e complexo no plano

socioeconômico do que os espaços locais das cidades e dos municípios.

Nesse território, concretiza-se um determinado padrão de

desenvolvimento, caracterizado por uma dialética abertura e fechamento,

a qual vai definir o grau de autonomia desse processo conformador de um

dado regime de acumulação e de uma dada modalidade de reprodução

social. No polo fechamento, a inserção (embeddedness) territorial define

definindo uma identidade e uma coesão específicas desse espaço

socioeconômico, que se plasmam em um dado arranjo institucional de

regulação. No polo abertura, um certo padrão de extroversão estabelece-

-se, quando se consolida um arranjo de trocas e vinculações externas.

Nossa hipótese de trabalho, a qual, de alguma forma, é um

pressuposto assumido pelo conjunto da pesquisa da FEE, é a de que a

unidade espacial Rio Grande do Sul tem relevância analítica para as

ciências sociais, particularmente para a Economia. E essa unidade

corresponde à dimensão aqui tratada como região, um espaço apropriado

por uma articulação de relações sociais, que, por sua vez, se

interconectam e recebem a influência ou até têm suas determinações

vinculadas às relações que se materializam no espaço nacional brasileiro.

E, por seu turno, as relações sociais que têm suas causalidades definidas

nas instâncias nacionais são sobredeterminadas por forças que operam

numa escala transnacional.

Iniciemos, então, com as definições necessárias para nos

aproximarmos do objeto formação social sul-rio-grandense, objeto

pertencente à categoria região. Essa categoria corresponde, como dito, a

um território de mesoescala, entre o plano nacional e o plano local. O que

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buscamos conhecer nesse objeto é a dinâmica que, nas últimas três

décadas, definiu as características de seu desenvolvimento. O que aqui

entendemos por desenvolvimento não se resume a um processo de

mobilização dos recursos existentes no plano regional para o

enfrentamento competitivo com outras unidades similares, a que se

agregariam as respostas às pressões surgidas nos ambientes nacional e

global e, também, a reação aos movimentos originados no plano local.

Neste trabalho, conceituamos região como um espaço de entrelaçamento,

em que diferentes relações sociais, cada uma com sua dimensão espacial

própria, se articulam para formar uma cristalização espacial única, uma

fixação espaçotemporal materializada num conjunto de estruturas sociais

que se enraízam no espaço e formam o território (Jessop, 2004; Novy,

2002; Swingedouw, 2004).

A abordagem que adotamos é a do institucionalismo territorial

(Jessop, 2004). Seu ponto de partida é a percepção de que as trajetórias

regionais são sensíveis à história e à geografia, os acontecimentos

passados condicionam o presente e seu futuro, os quais estão inscritos em

uma determinada dimensão espacial. Essa trajetória define um processo

de desenvolvimento que é multidimensional em suas determinações.

Tanto a escala regional como as relações inter-regionais importam; é da

natureza do desenvolvimento que se configure uma divisão inter-regional

do trabalho. Outro elemento central nesta abordagem é o do poder, pois o

Estado está necessariamente inserido na dinâmica econômica, política e

socioespacial, sua ação modela as estruturas regionais. Como lembra

Massey (1984), “[...] as estruturas espaciais são estabelecidas,

reforçadas, combatidas e transformadas através de embates econômicos e

políticos travados por empresários, trabalhadores e líderes políticos”.

Dizer que o desenvolvimento é um processo multiescalar significa

dar conta de que a ordem territorial que dele resulta é um arranjo

espaçotemporal que estabiliza a acumulação de capital em um

determinado período por uma dada organização institucional, assegurando

a reprodução social. Esses arranjos plasmam alianças sociais regionais

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que estão permanentemente sob tensão de fluxos de fora, na forma de

investimento, relações de comércio e conexões produtivas com

encadeamentos transregionais. Esses processos sociais, em seus

diferentes desdobramentos, estão permanentemente plasmando e

reconfigurando as relações de poder que se alimentam das disputas

econômicas e políticas em que o entrechoque de atores coletivos vai

produzindo um caminho de desenvolvimento para esse spatial fix.

Podemos identificar três níveis de determinação que dão forma à

fixação espaçotemporal regional. Em primeiro lugar, está a dinâmica

espaçotemporal da acumulação do capital. A definição de uma estratégia

regional de desenvolvimento implica o favorecimento diferenciado de

interesses de classe e grupos econômicos. A dicotomia “para dentro” ou

“para fora” implica uma escolha que altera as relações de poder regionais,

na medida em que são diferentes os benefícios auferidos pelos diversos

grupos em uma ou outra opção.

O segundo nível responde pela dinâmica espaçotemporal da

reprodução social, que põe no meio da cena o outro da acumulação, o

trabalho. Aqui, os temas da identidade regional, da permeabilidade

cultural, bem como as questões de raça, de gênero, de exclusão e/ou

inclusão, enfim, assumem uma importância central, pois a possibilidade

da reprodução social pressupõe sustentabilidade e um grau de

estabilidade sociopolítica que garanta a preservação dos principais

agentes. Também, por isso, o tema da preservação ambiental faz-se

presente. Nesse contexto, abre-se espaço para o acesso aos centros

decisórios de agentes sociais, subalternizados pelas relações de produção

capitalistas hegemônicas. Grupos de pressão e organizações sociais de

trabalhadores, ambientalistas, camponeses, sem-teto, sem-terra e outros

“sem” podem influenciar decisivamente a seleção das políticas e as opções

da sociedade. Esses dois níveis são decisivos na definição da composição

do bloco no poder.

No plano do que, em termos marxistas, chamaríamos

superestrutura, a geometria escalar da regulação e da governança, que

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historicamente plasmou a capacidade de o bloco no poder regional

controlar e dirigir o processo de acumulação do capital e a reprodução

social, vem modificando-se por diferentes processos. Num primeiro

momento, foi a integração nacional, obra inaugurada pela ascensão dos

gaúchos na cena política brasileira com a Revolução de 1930 e que

terminou por mudar, do plano das regiões para o plano do País, a escala

em que se dava o processo de acumulação de capital e em que se

assegurava a reprodução social. Um segundo momento faz concomitantes

dois processos, a integração regional sul-americana (Mercosul, Unasul) e

a globalização e a internacionalização econômicas com seu viés

financeirizado. Nesses dois momentos, determinações de fora passaram

não apenas a se sobrepor aos desígnios do bloco no poder regional como,

inclusive, a modificá-lo, sob a forma da interferência de agentes externos

nos processos regionais (por exemplo, a ação dos conglomerados

financeiros ou das grandes empresas industriais paulistas), do ingresso

desses agentes no tecido socioeconômico sul-rio-grandense (por exemplo,

a Petrobrás ou, mais recentemente, a GM), ou da desterritorialização de

agentes regionais que alcançaram incorporar-se a redes nacionais,

continentais ou mundiais (por exemplo, os grupos Randon e Gerdau), ou

que, por processos de fusão ou aquisição, se internacionalizaram (a

exemplo dos grupos Renner, SLC-Johns Deer e Supermercados Nacional-

Wallmart).

O entrelaçamento desses três planos dá forma a um padrão de

desenvolvimento. Seu desenrolar tem as características de um processo

de dependência do caminho (path dependency), no sentido de as opções

do passado limitarem as escolhas definidoras das possibilidades futuras.

Mais ainda, as contradições sociais em sua dinâmica resolutiva

desenrolam-se num processo que se pode descrever como path shaping,

desenho do caminho. Se é certo que os acontecimentos pregressos pré-

-selecionaram as opções possíveis para as escolhas do tempo presente,

também o futuro resultará da reconfiguração das relações de poder em

processo e está, em larga medida, inscrito nas idealizações que se

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materializam em projetos e bandeiras de luta adotados por classes e

frações de classe que disputam a hegemonia da sociedade. O grau de

autonomia do desenvolvimento regional vai depender do poder relativo

das forças sociais regionais no enfrentamento das pressões e no

estabelecimento de alianças com agentes extrarregionais, sejam

nacionais, sejam internacionais.

2 O RIO GRANDE DO SUL É UMA REGIÃO-MUNDO? UMA RESPOSTA

EM DOIS TEMPOS

Fenand Braudel (1998) cunhou o termo região-mundo (région

monde), para identificar certos espaços geográficos que se apresentaram

como locus especial de entrelaçamento das redes de longa distância que

conformavam a extensão geográfica do que chamou economia-mundo

(économie monde). Uma economia-mundo é uma trama de interconexões

entre atividades produtivas e comerciais distantes, mas interdependentes,

e que conformam um território no sentido de um espaço socioeconômico

fechado. Tais espaços são lugares especiais de transposição não apenas de

fluxos de valores econômicos, mas de costumes, hábitos, conhecimento e

convicções ideológicas, culturais, religiosas e de valores morais.

Por essa razão, podemos afirmar que, nessas regiões-mundo, se

cria e consolida um espírito do mundo, compartilhado pelas sociedades

locais, regionais ou nacionais de diversas origens ou matrizes

socioculturais, mas representativas dos polos mais dinâmicos sob a

perspectiva histórica da economia-mundo. O espírito do mundo é o

movimento ideológico e cultural que conduz a transformação das

estruturas socioeconômicas e o arranjo institucional da regulação no

sentido de promover a acumulação de capital e assegurar a reprodução

social, preservando a coerência entre regulação e acumulação, que

definem um modo de desenvolvimento bem-sucedido historicamente. O

liberalismo livre-cambista foi o espírito do mundo durante o período da

hegemonia britânica na segunda metade do século XIX e no começo do

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século XX. Nas regiões-mundo da periferia do sistema, como Buenos

Aires, Rio de Janeiro ou Montevidéu, as elites compartilharam esses

valores como a direção necessária para ordenar a governança

estabilizadora do estilo de desenvolvimento que adotaram e que fazia o

processo de acumulação na periferia ser não apenas dependente, mas

comandado pelos impulsos oriundos do centro hegemônico. Esse modelo

lhes trazia, como contrapartida, as benesses de um regime

agroexportador subordinado à expansão industrial da Inglaterra, que lhes

permitia apropriar-se de uma parcela do excedente econômico. Se, para

sua geração, labutavam os trabalhadores na produção destinada ao

mercado externo, o excedente apenas se realizava nos fluxos do comércio

internacional, onde se convertia em dinheiro.

Na fase de declínio de sua hegemonia, o liberalismo inglês viu-se

desafiado e finalmente derrotado por um outro movimento ideológico

contraposto, inspirador de transformações políticas profundas, ao ponto

de mudar o lugar de algumas dessas regiões periféricas na divisão

internacional do trabalho. Com grande influência do pensamento

positivista francês, mas também sob outras roupagens progressistas e

cientificistas e com forte viés autoritário, os novos valores cosmopolitas

encontraram uma tradução regional ou nacional isolacionista e

protecionista, adepta de um Estado forte, indutor e regulador de um

desenvolvimento não só autônomo como — às vezes, como no caso

alemão — desafiante à posição hegemônica do Reino Unido.

Nesse espaço meridional, o progressismo positivista veio dividir o

bloco no poder em Buenos Aires e Montevidéu, onde se iniciaram os

processos de modernização social e econômica que estão na raiz do

desenvolvimentismo latino-americano, nas primeiras duas décadas do

século XX (Faria, 2004).3 O caso brasileiro foi diferente e mais retardado

3 No Uruguai, foi um dirigente do oligárquico Partido Colorado, José Batlle, que iniciou o processo de modernização a partir de 1904. No caso da Argentina, Hipólito Yrigoyen, da UCR, foi eleito, em 1916, como oposição à oligarquia rural. Ambos representaram o ingresso da sociedade urbana e industrial e das classes médias no protagonismo político de seus países.

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no tempo, tendo sido inaugurado após 1930. Esse atraso tem a ver com a

grande resistência da oligarquia agroexportadora a qualquer alteração do

status quo, a qual bloqueou a possibilidade de mudança por meios

políticos e institucionais. O peculiar da forma brasileira foi a

impossibilidade de uma opção progressista ascender ao centro nacional do

poder (Rio de Janeiro como locus de seu exercício e São Paulo como sua

fonte) até que tal desfecho fosse promovido, manu militari, por uma

insurgência revolucionária. Entretanto a organização política federalista da

República, nascida como forma engenhosa de abrigar as diferenças entre

as oligarquias regionais, deu oportunidade ao surgimento de um processo

político absolutamente novo no espaço subnacional sul-rio-grandense.

A partir da Constituição de 1891 e consolidado com a vitória sobre

o levante federalista de 1893, teve início um ciclo histórico extraordinário

que transformou o Rio Grande do Sul numa região-mundo cosmopolita e

progressista, precursora do que só foi possível no plano nacional sob a

força das armas na Revolução de 1930. As mudanças assemelhavam-se

ao batllismo uruguaio e ao radicalismo argentino e tiveram como

principais características um aspecto redistributivo, principalmente pela

reforma tributária (imposto sobre a propriedade); pela ascensão do

Estado ao comando do processo de desenvolvimento, com estatizações na

área de infraestrutura (ferrovias, portos); por, de alguma forma, tratarem

de incluir as classes trabalhadoras na vida social, com o reconhecimento

de suas demandas e a proteção aos pequenos proprietários rurais; e por

alcançarem alijar a oligarquia exportadora pastoril da posição hegemônica

mantida até então sobre a política regional. Além de uma forte presença

das classes médias, a participação de empresários do comércio e da

indústria, com fortes vínculos com a agricultura familiar da zona colonial,

e um apoio pouco efetivo politicamente desses pequenos agricultores, os

quais, por serem imigrantes, em geral não votavam, conformaram o novo

bloco no poder.

Se, num primeiro momento, o regime autoritário implantado logrou

impor a exclusão da oligarquia pastoril e avançar no processo de

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transformação radical do modo de desenvolvimento regional, a resistência

desse setor acabou por provocar uma guerra civil, pacificada através do

Acordo de Pedras Altas, em 1923. A partir de então, inaugurou-se um

período novo, marcado pela conciliação e pelo retorno da oligarquia ao

bloco no poder.4 Os interesses dos agropecuaristas exportadores voltaram

a receber atenção das autoridades estaduais. Apesar desse resultado,

podemos defender a ideia de que, nisso que se configurou como um

primeiro tempo da História regional, a experiência sul-rio-grandense pode

ser interpretada como a de constituição desse território como uma região-

-mundo.

O segundo tempo de nossa análise é o tempo presente, tempo

produzido pelo percurso histórico nacional-desenvolvimentista, quando —

subsumido ao processo de acumulação e reprodução social que passou a

se desenvolver em escala nacional — o Rio Grande do Sul foi perdendo

suas especificidades. Mais ainda, como ficou escancarado na crise de

1981, o próprio caráter nacional do desenvolvimentismo precisa ser

relativizado (Furtado, 2003) não apenas pela alienação ao exterior de uma

parcela importante do poder decisório sobre a economia brasileira, mas

pela dependência financeira em razão da permanência da fragilidade

externa em todo o período, o que fez sua crise assumir a forma de crise

de endividamento internacional. Integração nacional e internacionalização

são as marcas a descaracterizar as “excelências regionais” gaúchas, para

citarmos uma expressão de Braudel (1998).

Nesse novo tempo, o retorno da questão regional surge de forma

difusa no debate intelectual, nos debates legislativos, no bojo do debate

sobre incentivos fiscais, sobre a crise fiscal e sobre o federalismo

4 Fenômeno semelhante ocorreu no plano nacional e em prazo bem menor como resultado do acordo que pôs fim ao levante paulista de 1932. Se, por 30 anos, os republicanos gaúchos controlaram sozinhos o Estado regional, sua tomada do Governo Federal foi bem mais difícil, e a conciliação teve de ser realizada muito de início. Isso não impediu que uma expressiva modernização tivesse lugar, mas sempre pagando um preço à permanência da oligarquia rural no bloco no poder. Permanência esta esvaziada de poder econômico pelo próprio novo padrão de desenvolvimento então iniciado, mas encruada nas estruturas de poder até hoje.

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brasileiro e decorre de mudanças nos ambientes mundial e brasileiro que

afetaram profundamente a dinâmica regional, colocando novos problemas,

que escapam, em certa medida, da forma como se pensava, até então, o

processo de integração nacional. Os elementos estruturais que afetam a

dinâmica regional são: (a) o processo de internacionalização do capital e

das finanças, que refaz a lógica de gestão nacional relativamente

soberana, vigente até meados dos anos 70; (b) a crise do regime de

acumulação; e (c) a crise do Estado nacional e de suas bases de

financiamento.

A nova dinâmica regional reflete-se em inúmeros debates, entre eles

os referentes à concentração e/ou desconcentração, à centralização e/ou

descentralização; ao tema da competitividade espacial seletiva de

investimentos; ao tema das diferentes frações burguesas e suas

conexões, ou não, com circuitos internacionais no espaço regional; e ao

tema da fragmentação do território nacional, bem como à questão dos

movimentos sociais e identitários de diferentes colorações.

A dialética nacionalização e/ou internacionalização afetou

profundamente os interesses organizados no plano regional. A oligarquia

pastoril exportadora transformou-se em caudatária do processo de

crescimento do mercado interno, decorrente da urbanização e da extensão

do regime de trabalho assalariado. A agropecuária colonial passou por um

processo de diferenciação intenso, internacionalizando-se, inicialmente,

através da produção de soja e, mais adiante, pela notável expansão da

avicultura e da suinocultura, embora tenha mantido seu foco tradicional

na produção de alimentos para o mercado interno.5 O fenômeno hoje

chamado de agronegócio resultou tanto dessa diferenciação da

agropecuária colonial, em que um contingente de agricultores alcançou

ascender economicamente, quanto de mudanças trazidas pelos chamados

granjeiros, empreendedores de origem urbana que investiram em

lucrativos negócios rurais, e pelos arrozeiros, que, na região central do

5 Ver De colonos a agricultores familiares: uma trajetória de resistência no volume 2 desta obra.

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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010

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RS, foram pioneiros daquela que foi a primeira cultura da chamada

agricultura empresarial sul-rio-grandense. Esse processo alcançou um

novo patamar de profundidade após a abertura e a desregulamentação

dos anos 90, que provocaram o virtual desaparecimento de um sistema de

preços nacional para as culturas agropecuárias.6

O capital industrial manteve seu processo de acumulação em

associação subordinada à indústria concentrada em São Paulo, como

fornecedor principalmente de bens intermediários e, nesse processo,

perdeu relevância no cenário brasileiro (FEE, 1976). A crise e a abertura

neoliberal que se seguiram mudaram o quadro na direção da

internacionalização subalterna.7 Primeiro, como parte do esforço

exportador iniciado na segunda metade dos anos 70, houve uma reação

ao desequilíbrio do balanço de pagamentos e à impossibilidade de

continuar a financiá-lo com recurso ao endividamento. Disso, resultou o

grande crescimento do segmento de couro e calçados, que chegou a ser o

mais importante da indústria regional nos anos seguintes. A partir de

1990, a internacionalização se aprofundou como uma reação à intensidade

da crise no âmbito regional.8 O processo de fusões e aquisições traduziu-

-se em redução da participação de proprietários gaúchos no comando do

capital industrial e comercial aqui localizado, principalmente pelo ingresso

de capitais estrangeiros, bem como pela crescente importância desses

capitais nos novos investimentos realizados no Estado. O fenômeno foi

particularmente intenso nos ramos metal-mecânico, redes comerciais e

supermercados, infraestrutura, energia e comunicações, produção de

commodities industriais e beneficiamento de produtos agropecuários.

Ao par dessa extroversão ainda maior da economia regional, os anos

90 deram lugar a uma grande mudança da relação entre o Estado regional

6 Ver O agronegócio gaúcho entre os anos 1980 e 2008 no Volume 2 desta obra

7 Ver Reestruturação da indústria gaúcha sob a ótica da reordenação da economia mundial e também A evolução dos investimentos diretos de empresas gaúchas no exterior no volume 2 desta obra.

8 O desempenho da economia do RS ficou abaixo da média nacional por todo o período 1980-99. Ver Economia gaúcha na visão das contas regionais — 1985-2009 no Volume 2 desta obra.

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e a economia. Um primeiro passo foi dado ainda na década de 80, com o

comprometimento do Tesouro Estadual no movimento de criar subsídios

ao setor privado, tanto para mitigar os efeitos da crise, quanto para

favorecer a internacionalização. A crise fiscal aprofundou-se como

consequência e, mesmo com a ampliação da base tributária em razão da

nova Constituição Federal, tornou-se crônica. O segundo passo foram as

privatizações e a mudança do marco regulatório, que transferiram para

capitais privados o controle de boa parte da infraestrutura no Estado,

através de contratos externamente vantajosos para os concessionários.

Desses dois movimentos, resultou uma importante mudança de posições

relativas dentro do bloco no poder, com a ascensão de novos grupos (por

exemplo, comunicações) e o declínio de alguns tradicionais (por exemplo,

calçados).

Ao final do processo, o desmonte do Estado desenvolvimentista era

quase absoluto. Diferentemente do que se dera no plano federal, a

capacidade de intervenção, já reduzida pela ditadura militar

centralizadora, ficou ainda mais comprometida — e não que os grupos

dominantes tenham relegado à irrelevância o exercício do poder no plano

regional, como comprova o continuado crescimento do volume de

subsídios.9 O que o a crise financeira internacional revelou foi a

interpretação equivocada do espírito do mundo em sua leitura neoliberal.

Mas isso não foi privilégio das elites gaúchas, cujo pecado maior foi seu

menor grau de compreensão de seus próprios interesses a longo prazo.

Sua adesão quase unânime a um liberalismo radicalizado10 serviu como

ideologia dessa segunda rodada de perda de importância econômica e

social relativa, decorrente da internacionalização. Segunda, pois a

primeira havia sido a causada pela integração nacional.

Na cena internacional, desenrolava-se a escalada da

contrarrevolução neoliberal, a qual buscava definir um novo conteúdo

9 Ver A crise das finanças públicas gaúchas no Volume 2 desta obra.

10 Ver Novas formas de ação política do empresariado gaúcho nas últimas décadas no Volume 3 desta obra.

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para o espírito do mundo na era da globalização. Ao neoliberalismo,

confrontava-se o que veio a se constituir como uma nova referência para

a esquerda internacional, desorientada desde a queda do Muro de Berlim,

o movimento por alguns chamado de alter-globalização. Organizado sob a

bandeira de “Outro mundo é possível”, em oposição ao “Não há

alternativa” formulado pela líder dos conservadores britânicos Margareth

Thacher, uma grande rede internacional de organizações da sociedade

civil constituiu-se em agente político internacional. Símbolos da

globalização, o Fórum Econômico Mundial de Davos e sua principal

criatura, a liberalização comercial e financeira mundial, tendo como ícone

a OMC, foram escolhidos como seus alvos principais, denunciados numa

onda de protestos mundo afora.

Como eco desses movimentos, à época, instaurou-se, no Rio Grande

do Sul, um confronto político que dividiu a sociedade quase ao meio. Sua

manifestação mais aguda foi a oposição entre petismo e antipetismo,

iniciada em 1989, quando Olívio Dutra inaugurou sua gestão à frente da

Prefeitura de Porto Alegre, sucedida por quatro mandatos consecutivos

nos quais representantes do Partido dos Trabalhadores ocuparam o Paço

dos Açorianos. A experiência da Administração Popular na capital sul-rio-

-grandense foi apropriada por esse processo, que a apresentava como a

prova de que havia lugar para alternativas. Não por outra razão, Porto

Alegre foi escolhida para sediar o Fórum Social Mundial, primeiro evento

de uma sequência que vem articulando a continuidade desse movimento

mundial desde então.

Nesse processo histórico, um participante sobressai-se pela

importância, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Originado das mobilizações pela reforma agrária no interior do RS, cujo

marco é o legendário acampamento da Encruzilhada Natalino, o MST é

parte central da proposição do espírito do mundo alternativo que ganhou

contornos mais precisos na experiência de democracia participativa em

Porto Alegre. A essa emergência de novos atores na cena regional,

levantou-se uma contraposição com contornos radicalizados,

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principalmente em sua resistência às iniciativas de transposição da

experiência porto-alegrense para o plano do Estado entre 1999 e 2002.

Compreender essas circunstâncias leva nossa análise a dar conta do

papel cumprido pela administração pública na solução e na condução

dessas contradições. Para tanto, na seção a seguir, buscamos uma maior

aproximação da etapa recente do desenvolvimento regional, analisando o

significado e o alcance das políticas públicas adotadas no período como

resposta à crise do desenvolvimento e na busca de alternativas para

superá-la. Nesse itinerário, os projetos e as iniciativas das sucessivas

coalizões políticas que ocuparam o Palácio Piratini no período fornecem

um mapa para o entendimento dos interesses contemplados e daqueles

preteridos nas diversas tentativas empreendidas. Mais ainda, para além

das opções políticas, a própria efetividade das propostas no sentido da

capacidade de significar uma alternativa historicamente possível também

deve ser considerada, mais ainda pela presença, ao longo de todo o

período, de uma insuficiência crônica de financiamento do setor público,

raiz de um endividamento crescente e de difícil gestão.

3 O ESTADO REGIONAL E A CONDUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

A crise econômica, fiscal e financeira do Estado brasileiro,

persistente desde meados dos anos 70, as tentativas de sua

reestruturação, a globalização econômica, as novas formas de inserção na

economia internacional e o processo de descentralização entre diferentes

esferas de poder são temas que passaram a ser incorporados pelas

classes dominantes regionais e por suas elites dirigentes nas instituições

políticas e econômicas. Os efeitos da incorporação desses temas são

claros na dimensão subnacional, aparecendo na redefinição das formas de

intervenção do Estado central, no aumento de responsabilidades locais,

com o processo de descentralização, e na abertura econômica, que força a

discussão, nesse espaço, de alternativas de desenvolvimento por parte

das elites locais.

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Os projetos regionais não podem ser vistos sob uma perspectiva

autárquica, mesmo porque, a partir da Revolução de 1930, se efetivou

uma centralização real do poder na União Federal, que desencadeou uma

relativa integração econômica do espaço territorial nacional. Se, como já

mencionado, na chamada República Velha havia a coincidência dos

espaços jurídico-constitucionais com os espaços de dominação

socioeconômica e política, o que fazia desses espaços regionais territórios

no sentido de seu fechamento, no pós 1930 essa ordem territorial se

alterou. Emergiu, então, uma constelação de estados com um centro

estabelecido, cujo motor econômico está localizado na Região Sudeste,

particularmente em São Paulo, e teve início a modernização capitalista,

que não segue um curso relativamente homogêneo, do centro econômico

para a periferia. Não obstante isso, a crescente nacionalização da

economia brasileira parecia justificar o discurso da progressiva irradiação

do chamado modelo paulista. Mercados regionais foram, pouco a pouco,

integrados por meio da política de substituição de importações. O projeto

industrialista impôs-se no País a partir de então, originando o Estado

desenvolvimentista, que, sob diferentes formas políticas, sobreviveu até

os anos 80. Sob a égide desse Estado, no período democrático e com

cores populistas, procurou-se incentivar a integração social e territorial,

veículo da dominação do capital monopolista sobre os diferentes espaços

regionais que foram sendo convertidos em periferia do centro hegemônico

do País, São Paulo.

3.1 A elite econômica e o Estado regional

A história da industrialização no âmbito regional presidiu a

construção de uma perspectiva industrialista hegemônica no plano das

ideias, mesmo que efetivada sob um pacto conservador com as frações

oligárquicas rurais. Definido na década de 20, após processo

revolucionário cruento, no Rio Grande do Sul, o pacto conservador

emprestou ao imaginário social a falsa representação de uma identidade

agrária absolutamente divorciada da realidade socioeconômica. O Estado

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acompanhou o mesmo processo de mobilidade populacional que

transformou o Brasil, entre os anos 40 e 80, de uma sociedade agrária em

uma sociedade urbana,11 viu, nesse período, a participação da

agropecuária no PIB declinar aceleradamente, enquanto a indústria

alcançava um peso acima da média nacional.12

Na República Velha — sob a condução de elites modernizantes de

inspiração positivista, portanto antiliberal, como visto —, o Rio Grande do

Sul antecipara em seu espaço socioeconômico projetos políticos de

intervenção estatal indutora do desenvolvimento industrial. Levando-se

em conta o que foi referido na primeira seção, isto é, que estruturas

econômicas, sociais e políticas possuem a resistência do tempo, é a

sedimentação desses processos que condiciona o presente. É nesse

sentido que se compreende o quanto o desenvolvimentismo possui fundas

raízes no Rio Grande do Sul e, também, como o projeto modernizante

regional se articulou à economia nacional, processo que teve como

resultado a especialização da economia gaúcha na produção de bens

intermediários. O caminho que se abriu, se se revelou dependente dos

acontecimentos passados, conduziu a uma condição subalterna o espaço

regional, não desejada pelos dirigentes do processo, na medida em que,

como resultado, ficou reduzida sua capacidade de poder definir o percurso

do caminho à frente.

Em meados dos anos 50, o crescimento de disparidades

intrafederativas era visto como um problema nacional. A criação da

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1956,

foi uma tentativa de reverter o processo centrípeto de quebra da

Federação. Todavia já aí não havia coincidência entre regiões e

administração política, instaurara-se uma nova geografia, tratava-se, de

fato, de uma federação de regiões. Esse processo levou à criação do

11 Ver Tendências demográficas e perspectivas futuras da população Gaúcha ,no Volume 3 desta obra.

12 Ver Economia gaúcha na visão das contas regionais — 1981-2009 no Volume e desta obra.

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Conselho de Desenvolvimento do Sul (Codesul) e do Banco Regional de

Desenvolvimento (BRDE), em 1961, instituições voltadas para o

desenvolvimento da Região Sul. Nessa época, no RS, discutia-se a

estagnação econômica e social, uma vez que o Estado vinha perdendo

participação na economia nacional. Para a superação dessa situação, era

vista como imprescindível a ação da União.

A crise de 1964 não deu solução de continuidade a essa articulação,

limitando-se a afastar os transbordamentos populares indesejados,

mantendo a autonomia dos grupos dominantes. Porém, ao mesmo tempo,

ao aprofundar o grau de concentração e centralização do capital, produzia

limites ainda mais estreitos ao exercício dessa autonomia. Foi, pois, no

período autoritário que ocorreu o processo de desregionalização da

economia, sob a égide do “capital financeiro em geral”, conduzido por

mecanismos fiscais e financeiros concentrados na União e pelo papel

incentivador das estatais federais, o que provocou, paradoxalmente, um

processo relativo de desconcentração industrial e de redefinição de pactos

políticos regionais, continuado mesmo no decorrer da crise dos anos 80.

O esgotamento da forma de Estado desenvolvimentista, dada a crise

no regime de acumulação13, exigiu, por parte das frações hegemônicas, a

redefinição do tripé capital monopolista estrangeiro, capital nacional e

setor estatal, que sustentava o Estado até então vigente, o que conduziu,

como consequência, à reorganização da sua estrutura e de sua incidência

sobre as formas institucionais, com evidentes repercussões no plano

regional. Desde o primeiro momento, o capital financeiro teve não apenas

preservada como ampliada uma posição dominante no bloco no poder

nacional, situação que a financeirização global só veio a reforçar no

período subsequente.

Em terras sul-rio-grandenses, o processo de repactuação entre

diferentes frações burguesas foi mais tardio e cristalizou-se com o

13 A crise é multivariada, mas tem como eixos centrais a queda do crescimento pelo esgotamento do processo de substituição de importação e a fragilidade externa resultante do excesso de endividamento. Em síntese: o padrão de crescimento tornou- -se incapaz de se reproduzir endogenamente.

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governo de Antônio Britto, do PMDB, entre 1995 e 1998, estreitamente

ligado aos setores empresariais locais, representados pela Federação das

Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) e pela Federação das

Associações Comerciais do Rio Grande do Sul (Federasul), que abrange o

setor comercial e o de serviços, e também aos meios de comunicação e à

imprensa. A FIERGS tivera participação discreta nos debates, nos anos 70,

quando da crise do regime militar, sustentáculo do Estado

desenvolvimentista pós 1964, porém, nos 80, procurou escapar de seus

limites meramente corporativos de defesa de interesses específicos. Nesse

sentido, foram criados o Instituto de Estudos Empresariais do Rio Grande

do Sul (IEE), com a finalidade de aproximar a burguesia gaúcha do ideário

neoliberal, e o Instituto Liberal, voltado à divulgação junto ao público dos

princípios neoliberais (Gros, 1990).

A FIERGS procurou articular a defesa de seus interesses com outras

entidades representativas da burguesia gaúcha: a Federasul e a

Federação da Agricultura (Farsul), representante dos grandes

proprietários rurais — tradicionais e aqueles ligados ao “agribusiness” —,

visando renovar, sob os novos tempos, o pacto conservador regional.

Nesse sentido, buscou influir no processo constituinte que se abriu com a

redemocratização, agindo, juntamente à Confederação Nacional de

Indústria (CNI), nos capítulos atinentes aos direitos trabalhistas e sociais.

Sua opinião era a de que a ampliação desses direitos então debatida era

anacrônica e não compatível com a modernidade. Posteriormente, tentou,

na reforma constitucional de 1993, tornar a Constituição mais próxima aos

interesses empresariais. Sua capacidade de mobilização foi exemplar, ao

organizar o Movimento pela Liberdade Empresarial, que foi criado em

1987 e reuniu 105 entidades representativas de diferentes setores

empresariais em torno da pauta da defesa irrestrita da “livre iniciativa”.

É desse período a formação do Mercosul — o Tratado de Assunção

foi firmado em 1991 —, a qual foi recebida com muitas reservas. Em que

pese ao discurso favorável à abertura da economia, ao afastamento do

Estado da economia e a uma maior inserção na economia mundial, houve

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um movimento de rejeição e desconfiança, tendo em vista a percepção de

que interesses importantes pudessem ser afetados pela abertura do

mercado local aos vizinhos sul-americanos. Tal atitude não foi apenas

dirigida ao Mercosul, mas também aos demais estados federados, na

medida em que a integração nacional também ganhava novo ímpeto

dentro da reconfiguração de interesses provocada pela crise. Nesse

movimento, explicita-se ser o neoliberalismo mais um ideário que apenas

solda ideologicamente diferentes interesses e menos uma prática efetiva,

pois a posição das diversas frações da burguesia gaúcha frente a um

mercado competitivo pode variar, oscilando entre pressões no sentido de

medidas protecionistas ou posições favoráveis ao livre comércio, a

depender da capacidade de cada setor (Cadoná, 2002).

O Estado desejado pela burguesia gaúcha foi, portanto, o Estado

que não se colocasse como obstáculo à livre iniciativa e que fosse “leve”,

como se evidenciou nas propostas de revisão constitucional em 1993,

quando concentrou suas críticas no “peso da carga tributária” e no “custo

Brasil” dos direitos trabalhistas e sociais, vistos como um herança

retrógrada. Mas também deveria ser o Estado capaz de promover e

favorecer seus interesses, portanto, com margem de intervenção efetiva

na economia. No centro disso, o orçamento público mantém-se como

objeto de cobiça.

Não bastasse a crise do Estado desenvolvimentista e a necessidade

de se realizar uma reforma de Estado adequada às novas implicações da

acumulação e da territorialidade, a forma de atuação do Estado regional

como ente político tornara-se mais complexa após a Constituição de

1988, dada a presença, no cenário político, de questões referentes ao

plano do poder local, cujo raio de intervenção fora ampliado pela

Carta14 — o municipalismo sempre foi expressivo no Rio Grande do Sul —,

além da participação civil nas demandas regionais, participação, de resto,

reconhecida pela Constituição. A isso se acrescem reivindicações sindicais,

14 A nova constituição, pela primeira vez na história do País, reconheceu os municípios como entes da Federação.

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partindo do próprio Estado em crise — o movimento dos professores é o

mais vigoroso —, e do plano da sociedade civil, visando a uma

reorientação da ação do Estado no sentido de redistribuição da renda e de

expansão e universalização das políticas sociais de educação, saúde,

assistência e segurança.

À época, houve, também, a emergência dos movimentos sociais

rurais, mobilizados a partir do final dos anos 70 e início dos 80, com sua

pauta específica de resistência ao processo de concentração e

internacionalização da agricultura: Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem-Terra, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento das

Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) — hoje, Movimento das Mulheres

Camponesas — e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Esses

atores procuraram criar formas alternativas ao modelo rural empresarial

de desenvolvimento com base na grande propriedade, através de

agroecologia, associações de cooperação, assentamentos de reforma

agrária, dentre outras formas, ao mesmo tempo procurando influir nas

políticas de Estado (apoio técnico, financiamento, obras de infraestrutura).

3.2 O tema do desenvolvimento regional nas administrações

estaduais

O debate dos impasses do desenvolvimento regional já se

encontrava no Governo Pedro Simon, do PMDB, entre 1987 e 1990, tendo

continuidade com Alceu Collares, do PDT, entre 1991 e 1994. O final dos

anos 80 revelou, com toda clareza, as razões mais profundas do

endividamento estadual, que remonta aos anos 50 e que teve, como

causa principal, a quase ausência de investimentos federais no Estado,

forçando o poder público a responsabilizar-se por iniciativas e obras

necessárias ao projeto de desenvolvimento regional. A essa realidade,

somou-se a redução da arrecadação, em razão do baixo crescimento e de

uma evolução desordenada das despesas. Na sequência, a crise financeira

foi reforçada pela política econômica federal voltada à estabilização de

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preços, que lançou mão da elevação da taxa de juros, fazendo crescer os

serviços da dívida (Faria, 1994). As estatais acabaram por ser afetadas

pela fragilidade financeira e pelo endividamento crescente, à medida que

serviram no combate à inflação através da política de ajuste de preços e

tarifas públicas subavaliados, benéficas ao setor privado. As dificuldades

financeiras agravaram-se com a recorrência do financiamento do déficit

público regional junto ao setor financeiro estadual (Banrisul), que emitia

moeda na forma de crédito ao Tesouro do Estado com a contrapartida da

oferta de mais títulos da dívida pública. Além disso, a margem de

manobra era ainda mais reduzida, devido à dependência da receita

praticamente a um único tributo, o ICMS, à centralização da política

tributária e à política de isenções. Os Governos Simon e Collares, numa

gestão que pode ser descrita como apenas paliativa da dívida pública,

puderam beneficiar-se da inflação, que reduzia os salários reais e as

demais despesas e permitia ganhos no mercado financeiro. A criação, em

1991, do Sistema Integrado de Administração do Caixa Único (SIAC)

facilitou conjunturalmente a gestão.

Em que pese às dificuldades da crise financeira, caberia

ressaltarmos, no Governo Simon, algumas iniciativas, como a criação da

Secretaria Especial Para os Assuntos Internacionais (SEAI), que tinha os

propósitos de assessorar o Governador nas relações com outros países

(em particular, com os da Bacia do Prata) e com organismos

internacionais e de captar recursos e apoiar o setor privado em projetos

com participação externa, conforme o Decreto nº 32.515, de 15.03.1987

(Salomon; Nunes, 2007). A inciativa mostrava uma percepção correta da

importância de uma ação na frente externa face ao processo de

transformação profunda decorrente do fenômeno da globalização. A

Secretaria foi mantida pelo Governo Collares e até fortalecida, apesar dos

conflitos de competência com outras esferas da Administração, como foi o

caso do setor voltado à negociação de recursos com agências

internacionais no âmbito da Secretaria de Coordenação e Planejamento.

Já no Governo Antônio Britto, ocorreu a fusão das áreas de indústria e

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comércio e de assuntos internacionais, dando origem à Sedai em 1995,

voltada precipuamente à atração de investimentos e à promoção da

indústria e do comércio. A manutenção dessa estrutura paradiplomática

do Governo Simon até o Governo Britto evidencia a crescente

complexidade da ação estatal no âmbito regional, rompendo com os

limites clássicos de suas competências — um elemento de fato estrutural,

pois teve continuidade mesmo em governos com outra compreensão do

desenvolvimento regional, como o governo de Olívio Dutra, do PT, de

1999 a 2002. O que variou foi o enfoque dado à atração de investimentos

estrangeiros: para quais setores, sua forma de financiamento, países a

serem considerados, montante de subsídios por conta do Tesouro do

Estado e sua integração na estrutura produtiva regional.

No plano da gestão pública, ocorreu a emergência de uma nova

configuração regional, conformadora de uma nova escala espacial, surgida

da agregação de comunidades locais. Impulsionada por uma miríade de

organizações interessadas na fixação dessa escala como definidora de um

processo de desenvolvimento regional local ou endógeno, a inciativa

concretizou-se na experiência dos Conselhos Regionais de

Desenvolvimento (Coredes) — reconhecidos pelo Governo Collares em

1994 — e correspondeu à passagem que articulou propostas

democratizantes da Constituição Federal de 1988 e da Constituição

Estadual de 1989 com processos de descentralização e propostas de

reforma do Estado, processos nem sempre congruentes em seus

propósitos.

Todavia o que havia sido essencialmente novo nesse período fora o

trânsito de setores do PMDB a uma visão liberalizante no plano regional,

em adesão à linha que se fizera hegemônica no plano nacional desde o

Governo Collor, no início dos anos 90. Esse passo significou o

afastamento, para um plano secundário, de setores peemedebistas de

corte nacional desenvolvimentista, com apoio na média burguesia. A crise

local, agravada pelas políticas de estabilização nacionais (Plano Real),

provocou o deslocamento, num primeiro momento não explícito, da

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hegemonia política e econômica para setores industriais monopolistas

locais com expressão além do circuito regional, caso do setor siderúrgico,

do setor de material de transporte e da burguesia agrária exportadora,

cujos interesses se coadunaram com a perspectiva liberalizante do

Governo Britto. A Mensagem do Governador à Assembleia

Legislativa de 1999 (RS, 1999) explicitou os propósitos dessa

perspectiva, de resto coerente com as políticas do Governo nacional,

quando anuncia a intenção de

[...] dar início a um vigoroso programa de modernização

institucional, concessões e reforma patrimonial, para cuja

concepção buscou auxílio nas melhores experiências disponíveis,

dentre elas a do Banco Mundial, com o qual foi contratado um

projeto específico, denominado, justamente, de Projeto de Apoio à

Reforma de Estado (RS, 1999).

A Gestão Britto procurou efetivar o ajuste fiscal com base em amplo

processo de privatizações e realizar uma política agressiva de atração de

capitais, fundada em incentivos fiscais e monetários concentrados em

alguns setores. Emblematicamente, pode-se citar a instalação da

montadora General Motors em Gravataí, significando uma aposta na

mudança do perfil da economia regional. Foram extintas algumas estatais

que eram consideradas concorrentes da iniciativa privada, como a Cohab,

a Cedic e a Crtur, atuantes nos setores de habitação, fomento regional e

turismo, e, a seguir, realizaram-se processos de concessão ao setor

privado de terminais do Porto de Rio Grande e de polos rodoviários.

Culminado o processo, foram vendidas as “joias da coroa”, a grande e

altamente rentável Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações

(CRT), monopolista das telefonias móvel e fixa no Estado, e a maior parte

da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a qual, na preparação

de sua privatização, fora desmembrada em quatro partes, das quais duas

foram alienadas por meio de leilão de privatização, e outra, responsável

pela geração, entregue ao Governo Federal como compensação de

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dívidas, restando em mãos do Estado a parte mais comprometida

financeira e operacionalmente.

Coerente com a visão de que forças locais não teriam capacidade de

impulsionar o desenvolvimento regional, o Governo deu novo impulso à

“guerra fiscal”15, no sentido de atrair grandes capitais que, nessa visão,

mudariam sensivelmente a economia regional, dando-lhe a

competitividade necessária para uma inserção vantajosa na economia

globalizada. Concretamente, o Fundo Operação Empresa (Fundopem),

criado em 1972, transformou-se de mecanismo de política industrial em

mecanismo de renúncia fiscal, projetando dificuldades futuras ao Tesouro

do Estado, dificuldades agravadas pela política macroeconômica federal,

que isentava as exportações do ICMS, e pela renegociação da dívida

pública com o Governo Federal, através do Programa de Reestruturação e

Ajuste Fiscal dos Estados de 1998, o que resultou em um

comprometimento de uma parcela significativa das receitas com o

pagamento da dívida, tendo o Tesouro Nacional como credor16. De

qualquer forma, os resultados concretos dessa opção não foram

animadores sob o ponto de vista das contas públicas. De acordo com a

Mensagem do Governador à Assembleia Legislativa de 1999,

ocorreu um sensível aumento do estoque da dívida pública, os fundos

resultantes das privatizações não foram aplicados nas áreas sociais e

apenas parte foi utilizada para o pagamento da dívida pública. Ipsis literis,

“[...] o governo decidiu trocar patrimônio por desenvolvimento”, em

outras palavras, “[...] usar os recursos da privatização na atração das

maiores empresas automobilísticas do mundo” (RS, 1999). Nessa fase,

portanto, foi dada ênfase aos aspectos patrimoniais da reforma do Estado.

Na sequência, deveria ser implementada a chamada “segunda

geração de reformas”, a gerencial, iniciada pelo Governo Federal através

da implementação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado,

15 Incentivos fiscais e outras benesses foram instrumento amplamente utilizado pelos estados e mesmo pelos municípios em boa parte dos anos 90 e início do século XXI.

16 Ver A crise das finanças públicas gaúchas no Volume 2 desta obra.

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em 1995, a qual acabou concretizando-se em um conjunto de emendas

constitucionais e leis entre 1998 e 2000, as quais incorporavam ao serviço

público critérios de gerenciamento privado, instituíam as parcerias

público-privadas para ocupação de espaços de prestação de serviços ou

fornecimento de infraestrutura e realizavam reformas no sistema de

previdência, além de normatizarem procedimentos administrativos sob a

diretiva da responsabilidade na gestão fiscal.

Acompanhando esse processo de repactuação entre classes e

frações dominantes, tinha lugar um crescimento da atuação dos

movimentos sociais no campo e na cidade, que encontraram canal de

expressão política em partidos vinculados à esquerda do espectro político.

O Governo seguinte, de Olívio Dutra, do PT, entre 1999 e 2002, expressou

uma inflexão ao eleger justamente essas forças sociais ascendentes como

suas interlocutoras privilegiadas. Foi então inaugurada uma nova relação

do Estado com os movimentos sociais, do que fez parte, por exemplo, a

criação da Secretaria Especial de Reforma Agrária, a qual buscou influir,

em que pese a limites inclusive institucionais, na política de reforma

agrária, procurando articular ações com o Governo Federal.

O projeto da Frente Popular, dirigida pelo Partido dos Trabalhadores,

apontava num sentido diverso ao que fora iniciado na gestão anterior e

que poderia ser descrito, no plano da economia, como de promoção das

“excelências regionais”. Buscou reforçar os sistemas locais de produção

com ênfase nas pequenas e médias empresas, criou incentivos à

agricultura familiar, estabeleceu um programa de reforma agrária, definiu

diretrizes para a política científica e criou a Universidade do Estado do Rio

Grande do Sul, dentre outras iniciativas. As políticas de fomento e seu

principal instrumento, o Fundopem, foram redirecionadas para as

pequenas e as médias empresas, para a alta tecnologia, para

complementação de lacunas na estrutura produtiva regional e para as

“vocações gaúchas”, como o setor de couro e calçado ou a agroindústria.

No plano administrativo, a maior novidade foi a incorporação

adaptada — com base nas experiências municipais de governo em Porto

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Alegre — do Orçamento Participativo (OP) estadual. Inicialmente, a

proposta sofreu resistência de parte dos Coredes, pois viam uma

justaposição de finalidades. O projeto, entretanto, visava oportunizar a

participação universal dos cidadãos, através das Assembleias Públicas

Municipais, que tratavam fundamentalmente da decisão sobre obras e

serviços públicos e aproveitavam a regionalização dos Coredes em sua

organização. Com base nessas assembleias no plano municipal — ou de

bairro, no caso de alguns poucos grandes municípios —, prioridades

decididas eram consolidadas no nível microrregional dos espaços

geográficos definidores dos Conselhos Regionais, nos quais eram eleitas

as prioridades e os delegados do Conselho Estadual do Orçamento. Não

chegou a ocorrer uma fusão de procedimentos entre o OP e os Conselhos

Regionais de Desenvolvimento, bem mais uma espécie de intersecção.

Ainda nesse âmbito da gestão, o Governo estabeleceu novos

critérios para algumas carreiras de servidores públicos, como os policiais

militares e o magistério, onde procurou diminuir a distância salarial entre

os estratos burocráticos.17 Outra proposta foi a tentativa de mudança da

matriz tributária, que visava, além de reforçar as receitas, incidir tanto no

âmbito distributivo como no do desenvolvimento, ao estabelecer

diferenciais de alíquotas do ICMS e de outros tributos. Nesse caso, a

iniciativa esgotou-se como projeto, pois foi rejeitada pelo Legislativo

O Governo seguinte, de Germano Rigotto, buscou restaurar a

agenda de Antônio Britto, embora sem o mesmo ímpeto. Uma série de

iniciativas o demonstra, a começar pela retomada da guerra fiscal para

atração de investimento externo. Seguiram-se a revisão dos critérios do

Fundopem, transformado em Fundopem-integrar, cujos benefícios

voltaram a se concentrar nas grandes empresas (96,5% do total) e na

Região Metropolitana; o recuo no fomento aos sistemas locais de

produção; o esvaziamento dos programas de apoio à agricultura familiar;

e o abandono do projeto estadual de reforma agrária.

17 Ver O impasse da burocracia estadual gaúcha no Volume 2 desta obra.

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Além disso, sua base social pressionava por uma segunda etapa da

reforma do Estado. As quatro grandes entidades empresariais do Estado,

Farsul, Fiergs, Federasul e Fecomércio, mais a Polo RS — uma agência de

desenvolvimento em parceria público-privada —, lançaram o documento A

Crise do Estado: Reformas Para Racionalizar a Máquina Pública

(FARSUL, 2004), onde um conjunto de medidas era proposto. Sem

disposição de enfrentar o ônus político de várias dessas propostas, as

mudanças mais importantes adotadas no campo da gestão pública

resumiram-se à descontinuação do Orçamento Participativo, o qual foi

substituído por um sistema de consulta popular em urna para eleição de

obras prioritárias no âmbito de cada um dos Coredes, numa iniciativa que

reforçava as alianças do Palácio Piratini com as lideranças municipais.

Embora representadas por outra sigla, o PSDB, as mesmas forças

sociais seguiram dirigindo o Estado no Governo Yeda Crusius, iniciado em

2007. Essa continuidade, entretanto, deu lugar a uma clara mudança de

atitude, inaugurando-se um estilo de gestão bem mais disposto a

enfrentar resistências e desgastes políticos. Com isso, foi posta em

marcha o que se poderia classificar como uma tentativa tardia de dar

consecução à segunda etapa da reforma do Estado. Tardia, em primeiro

lugar, pela própria conjuntura da época, mormente na América do Sul,

onde a crise do neoliberalismo dera oportunidade ao surgimento de um

movimento político alternativo, causador de uma sequência de mudanças,

que empurraram o continente para a esquerda. Em segundo, também

tardia, porque as condições estruturais da administração pública deixavam

exígua margem à continuidade dessas políticas. Pouco espaço restara para

as privatizações, a manutenção dos serviços públicos já tão precarizados

restringia a possibilidade de ampliar a renúncia fiscal, além de o ciclo de

crescimento iniciado em 2005 requerer não apenas um aumento da taxa

de investimento do Estado, como também representar mais demanda pela

ampliação de serviços públicos.

As prioridades do Governo, entretanto, concentraram-se na

implementação dessa segunda etapa da reforma do Estado, que teve

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como foco principal a busca obstinada de equilíbrio orçamentário, o déficit

zero. Para tanto, empreendeu-se uma renegociação da dívida estadual

com o Banco Mundial, na qual uma parcela significativa, aquela

classificada como “extralimite”, foi refinanciada com redução de custo, e,

concomitantemente, foi posta em prática uma política dura na área da

receita pública, contrariando uma antiga prática de perdões e anistias aos

devedores de impostos. Também foi adotada uma iniciativa de reforma

nos métodos de gerenciamento, com vistas à sua adequação a objetivos

privados de eficiência. Além de mudança nos critérios de controle e

execução de despesas, um tema delicado foi abordado, o elevado

comprometimento do orçamento com gastos de pessoal. No final de 2009,

uma proposta foi apresentada, com vistas a uma mudança profunda dos

planos de carreira dos servidores, proposta que tinha por finalidade uma

total reformulação dos critérios de progressão funcional e remuneração,

substituindo o quase automatismo impessoal vigente pelo princípio da

meritocracia sob avaliação de desempenho.

É difícil a aferição da relevância dessas iniciativas para o processo

de desenvolvimento regional. Um orçamento equilibrado não tem efeito

sobre a demanda efetiva além de, se seu equilíbrio cobrar baixo

investimento, reduzir o efeito multiplicador do gasto. Quanto à adoção de

critérios privados para a gestão, há que se considerar a própria

especificidade do serviço público, cujos parâmetros de eficiência são, por

sua natureza, distintos dos do setor privado18. O reduzido alcance dessa

visão empresarial do Estado acaba por ser um limitador do próprio alcance

das políticas públicas, dos investimentos sociais e das iniciativas que

serviriam para alavancar o desenvolvimento. Sua insuficiência, decorrente

18 Embora a corrente da chamada “escolha pública” se tenha proposto a analisar a ação do Estado sob a perspectiva da maximização de retornos da microeconomia, sua contribuição à ciência é vazia de qualquer significado. O apego ao individualismo metodológico apenas consegue reduzir a prática política ao clientelismo. Desconhece que a política é essencialmente um campo da ação coletiva, dominado por princípios morais e interesses difusos, hegemonizado por ideologias, convicções às vezes pouco racionais e fantasias utópicas, onde o papel dos indivíduos é absolutamente restrito. É o lugar do poder, um conceito absolutamente desconhecido da economia convencional desde que retirou o aposto política de sua denominação.

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da subordinação à premência da contenção de gastos, é um efeito

concreto dessas políticas restritivas mantidas ao longo do tempo. A

própria busca do déficit zero está integrada nessa visão. Uma eventual

redução de custos deveria estar condicionada aos objetivos e às

necessidades da consecução das atividades-fim da administração com

maior eficiência. Da mesma forma, o difícil enfrentamento do elevado

custo da dívida pública foi tentativamente solucionado através de um

empréstimo junto ao Banco Mundial, que, se teve custos inferiores aos

cobrados pelo contrato anterior com o Tesouro nacional, envolveu outras

condicionalidades, que retiraram raio de manobra à administração

estadual.

Um pergunta que fica para a compreensão do real significado dessa

gestão estadual é se ela apenas reflete um processo truncado, uma

disputa extemporânea pela preservação de uma agenda superada pela

história, ou se nasce de um aspecto estrutural ao RS, dado seu grau

maior de internacionalização. Aparentemente, o retorno da lógica dos

incentivos e da guerra fiscal não traz, de resto, novidade, mas, na medida

em que não parece claro um projeto de desenvolvimento, tampouco indica

um horizonte definido. Nessa perspectiva, a proposição do tema irrigação

talvez seja a maior originalidade da administração nessa área, na medida

em que o déficit hídrico climatológico é, reconhecidamente, um grande

obstáculo ao avanço da agropecuária empresarial no Estado.

Os riscos diante de um horizonte nebuloso são, como já visto na

história recente, uma completa perda de perspectiva de longo prazo,

causadora de uma situação anômica em que cada setor das elites locais e

seus representantes políticos defendem, junto ao aparato de Estado, seus

interesses imediatos. Essa circunstância é a própria definição da crise

política e da ingovernabilidade.

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CONCLUSÃO

Os últimos 30 anos da história sul-rio-grandense presenciaram uma

reestruturação liberalizante do Estado, que rompeu com práticas de

intervenção pública de origens longínquas, posto que inauguradas nos

fundamentos da República positivista gaúcha. A crescente adoção de

critérios privados na forma de condução dos negócios públicos veio negar

princípios estabelecidos desde o final do século XIX, como a

impessoalidade, o bem comum, a separação público-privado e a

autonomia da administração, diante dos interesses mais imediatos das

classes sociais em que se organiza a população.

Em seu lugar, a noção de competitividade fez-se cada vez mais

presente. No limite, buscou-se, a partir de fins dos anos 80 em diante e

em consonância com o processo nacional, criar as condições de

instauração de um modelo regional competitivo. Nesse percurso, apesar

da cobertura do grande véu ideológico da “modernidade”, assistiu-se a um

verdadeiro assalto ao Estado por parte de grupos de interesse

ascendentes, seja oriundos das classes dominantes regionais, seja vindos

de fora do RS. O orçamento público, por sua importância econômica, foi

redefinido, valores neoliberais foram impostos à administração, grupos e

frações de classe articularam-se para estabelecer um novo spatial fix

entre as relações sociais e a territorialidade, definidor de uma nova

articulação social controladora do território gaúcho.

A análise da reconversão da ação estatal entendida como a

capacidade de gestão e intervenção do Estado na organização da

sociedade e da economia está relacionada aos conceitos de espaço e de

formas institucionais, compreendidos como força estruturante de

regulação do regime de acumulação e da reprodução social. A depender

da forma concreta do Estado em sua escala, criam-se pressupostos

institucionais adequados a diferentes regimes de acumulação do capital.

Assim, o Estado regional articula, em maior ou menor grau, seus

compromissos não apenas com os processos de mercantilização da

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economia local, como também com sua maior inserção na economia

nacional e internacional.

A trajetória do Estado do Rio Grande do Sul, no período aqui

considerado, revelou a profundidade da fratura que rompeu toda a rede

de articulações entre atores sociais regionais, nacionais e internacionais,

estabelecida inicialmente na República Velha e transformada pelo

processo de integração nacional do pós 1930. Desde a crise de 1981 e

passando pela tentativa de estabelecer um novo modelo nos anos 90, o

rumo do desenvolvimento regional permanece indefinido.

Se a rota apontada pelo neoliberalismo mostrou-se incapaz de

orientar a navegação através das águas revoltas da globalização, o mapa

proposto pelos movimentos sociais ainda não teve seu desenho

terminado. O que parecia ser o novo espírito do mundo a iluminar as

pretensões sul-rio-grandenses de continuar sendo uma região-mundo no

limiar do novo século, a contrarrevolução neoliberal, soçobrou

definitivamente na crise de 2008, e, em seu rastro, ficaram incertezas. Os

pilotos do futuro terão de esperar a ação dos reais protagonistas das lutas

sociais que definirão a nova rota. De momento, podemos apenas esperar

que alguns sinais auspiciosos, como a redução das desigualdades, o

crescimento econômico e a inclusão social, sejam traços definidores do

amanhã.

Mas o leme está partido, e o mapa, borrado pelas águas da

globalização.

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