Uma Leitura Do Cotidiano Escolar Com Michel de Certeau

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    International Studies on Law and Education 12set-dez 2012

    CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto

    Uma leitura do cotidiano escolar com Michel de Certeau

    Marlia Claret Geraes Duran1

    Resumo: O artigo tem por objetivo apresentar aspectos da obra de Michel de Certeau e suascontribuies para os estudos e pesquisas em educao. Apresenta e discute os conceitos de poltica,estratgias e tticas e cotidiano escolar, para estimular o debate e pensar em prticas, criaes e artes naescola.Palavras Chave: Michel de Certeau; prticas cotidianas; estratgias e tticas.

    Abstract:This article intends to offer some remarks on Michel de Certeaus ideas and their contributionsto studies and researches in education. Presents and discusses the concepts of policy, strategy / tactics,and everyday life in school in order to simulate to stimulate debates and thinking of practices, creationsand arts in school.Keywords: Michel de Certeau, everyday practices, strategies and tactics.

    Temos um modo de ver dominante no mundo moderno:um olhar distante, neutro que nos ensinaram/ aprendemosa olhar... (Michel de Certeau)

    Introduo

    O contato com os escritos de Michel de Certeau, em 1995, quando dapublicao, em portugus, dos seus livros A cultura do plural e Invenes docotidiano representou um ponto de inflexo em minha formao como pesquisadora.Uma leitura quase solitria de um autor difcil, um jesuta que participou da revoltaestudantil de 1968, na Frana, movimento que, segundo Quadros (2002), no ficourestrito ao poltico, mas teve consequncias culturais profundas, com uma crticaradical ao sistema educacional e ineficcia das instituies sociais.

    A leitura de seus livros2 e das apresentaes de Luce Giard sua principalcolaboradora foi fundamental para que eu pudesse considerar outros modos de

    pensar a escola e o cotidiano escolar, valorizando as contribuies de Certeau para apesquisa e para a Educao. Retomo aqui, em sntese, trs cenrios que chamaramminha ateno, naquele primeiro momento de aproximao com a obra desse autor,caracterizada por uma

    1 Doutora em Educao pela PUCSP. Docente pesquisadora do Programa de Ps-Graduao emEducao (Mestrado) da UMESP.2 Editados no Brasil pela Editora Vozes (Petrpolis): A inveno do cotidiano: 1. Artes de Fazer e 2.Morar e cozinhar (1994); pela Papirus editora (Campinas): A cultura no plural (1995); pela EditoraForense-Universitria (Rio de Janeiro): A escrita da Histria (1982). Ver referncias bibliogrficas.

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    inclassificvel e profunda humanidade, uma densidade potica onde sereconhece [...] um permanente contraponto entre o rigor de sua escriturae a riqueza das metforas que o animam (1994, p.31).

    Um primeiro cenrio refere-se suaconvico tica e poltica, alimentada poruma sensibilidade esttica que justamente lhe d possibilidades de ver diferenas onde

    outros veem obedincia e uniformizao. Os escritos de Certeau mostram umainverso na perspectiva de como o cotidiano tem sido analisado, porque deslocam aateno do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos, para a criaoannima, nascida da prtica, do desvio no uso desses produtos (Giard, L., In:Certeau, M., 1994, p.17). O que chamou particularmente minha ateno na obra desseautor, desde a primeira leitura, no contexto dos meus estudos para o doutorado, em1995, foi justamente essa inverso de perspectiva com que fundamentou sua Invenodo cotidiano, tornando visveis as resistncias do homem comum, resistncias quefundam micro liberdades e deslocam as fronteiras de dominao.

    Um segundo cenrio, o seu compromisso em narrar prticas comuns, asartes de fazer dos praticantes, as operaes astuciosas e clandestinas, que seevidenciam na sua capacidade de se maravilhar e confiar na inteligncia e na

    inventividade do mais fraco, por uma convico tica e poltica que tambmalimentada pela sensibilidade esttica.

    O terceiro aspecto a destacar: seu rigor conceitual e a crtica exigente que tmcomo fontes uma reflexo sobre a histria, sua formao filosfica e o interesse pelaepistemologia. Rigor e reflexo que o levam a dedicar sua obra ao homem ordinrio,ao heri comum, heri annimo que o murmrio das sociedades. Referindo alinguagem, na linguagem ordinria, apreendendo-a como conjunto de prticas, elemuda o lugar da anlise, definido agora por uma universalidade que identicamenteuma obedincia ao uso ordinrio. Para De Certeau, a linguagem ordinria o lugarcomum para movimentos estratgicos e tticos (1990, p.13), como comentaJosgrilberg (2004, p.17):

    As narrativas disciplinadoras passam a ser vulnerveis, j que osignificado est ligado ao uso que o receptor faz da linguagem. apartir desse pressuposto que se deve entender a famosa metfora doindivduo, [...] sentado no topo do World Trade Centre, em Nova York,e a dinmica dos transeuntes ao nvel da rua (Certeau, 1990, p. 139). Acidade o lugar comum. Como cada um a entende ou a utiliza dependede situaes contingenciais. O fato de estar no topo de um edifcio noinvalida sua posio. Ela uma entre outras. O estar no topo(panoticismo), no entanto, pode no ser a melhor posio paradescrever a dinmica social da cidade, embora possa representar aposio mais poderosa. O problema surge quando outros usos da cidadeso ignorados.[...] De Certeau, quando apresenta essa metfora, estpreocupado justamente em chamar a ateno para os transeuntes - aanlise sobre o indivduo no topo do prdio ele deixa para MichelFoucault.

    Retomar leituras de Michel de Certeau, reler escritos anteriores, significou ummovimento de retomar as anlises sobre a vida cotidiana, de reler pesquisas sobre ocotidiano, de retomar discusses sobre as astcias dos consumidores e refazer omovimento que encaminha para uma aproximao aos conceitos estratgias etticas, nos espaos desse autor.

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    Estratgias e tticas

    O conceito de estratgias refere-se a uma ao que supe a existncia de umlugar prprio, como algo prprio e ser a base de onde se podem gerir as relaes comuma exterioridade (1990, p.99).J a ideia de ttica leva interioridade, visto que, emrelao s estratgias, ele define tticascomo:

    a ao calculada que determinada pela ausncia de um prprio. Entonenhuma delimitao de fora lhe fornece a condio de autonomia. Attica no tem por lugar seno o do outro. E por isso deve jogar com oterreno que lhe imposto tal como o organiza a lei de uma foraestranha.

    A distino entre os dois conceitos reside principalmente no tipo de operaoque se pode efetuar. As estratgias postulam um lugar, um prprio, um lugar dopoder e do querer prprio, de onde se podem gerir as relaes com umaexterioridade de alvos ou ameaas os clientes ou os concorrentes, os inimigos, ocampo em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa etc. (1994, p.99). Em

    sntese, as estratgias so capazes de produzir e impor. J as tticas s permitemutilizar, manipular e alterar algo. Como sistematiza Josgrilberg (2005), espao e lugarno so termos opostos, mas dois aspectos de um nico tema, extremamentecomplexo: a organizao dinmica de uma sociedade!

    Espaos e lugares: o espao como um lugar praticado

    Certeau estabelece uma distino entre espao e lugar para indicar um lugarprprio e delimitar um campo. Diz ele que Um lugar a ordem (seja qual for)segundo a qual se distribuem elementos nas relaes de coexistncia (1995, p. 201).Um lugar indica uma configurao instantnea de posies e representa uma vitriasobre o tempo que uma configurao instantnea de posies. E o espao umlugar praticado. Exemplifica: a rua geometricamente definida por um urbanista transformada em espao pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura o espaoproduzido pela prtica do lugar constitudo por um sistema de signos um escrito(p.202).

    A esttua de Carlos Drummond de Andrade, localizada no passeio do Leblon,no Rio de Janeiro, por exemplo, sempre transformada pelos passantes, que parecemconversar com ela. Na verdade, muito comum pessoas sentarem ao seu lado,relacionando-se com a esttua, tirando fotos, acariciando-a, depredando-a! A esttuade Drummond foi restaurada vrias vezes. Muitos passantes sentam-se com ele no

    banco de pedra, choram, ou riem, ou brincam, ou conversam e estabelecem relaescom o poeta. E tiram fotos da maneira como acham que deveriam tirar as fotos,sentados ou em p, ao lado dela, mais prximos, mais distantes. Ou seja, a esttua deDrummond, instalada em um banco do Leblon, sempre transformada em espaopelos pedestres.

    Ser possvel estabelecer analogias entre os acontecimentos relacionados esttua de Drummond, na relao espao/lugar e na relao estratgias/tticas, numaperspectiva certeauniana, e uma discusso a respeito do currculo da escola e deprocessos de construo desse currculo? Isto porque, para alguns, o currculo seconfigura como uma construo esttica, perene, como parece ser primeira vista, a

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    esttua de Carlos Drummond. Contudo, h uma relao dos transeuntes com a esttua,um movimento, e a esttua parece ser amada por uns e odiada por outros; a esttua apedrejada e acariciada, respeitada e incompreendida. E o currculo da escola?

    Uma anlise interessante, formulada por Josgrilberg (2005) interlocutorcrtico de Certeau contribui com a anlise, quando afirma que as tticas somentepodem operar a partir de um lugar. Comenta, a partir de sua leitura de Certeau:

    Os espaos abertos pelas tticas so, na verdade, a prtica de um lugar,um lugar submetido organizao dinmica e complexa. As tticas nopodem ser pensadas sem um lugar, da mesma forma que a fala nopode ser pensada sem lngua, ou enunciado sem enunciao. O objetivoda crtica de Certeau um tipo de lugar onde h dissociaes,realizadas por operaes tcnicas, que no leva em considerao asoutras prticas que organizam a sociedade (p.71).

    O currculo no pode ser pensado como uma coisa, como um programa oucurso de estudos e, sim, como um ambiente simblico, material e humano que

    constantemente reconstrudoenvolve aspectos tcnicos, estticos, ticos e polticosrespondendo tanto ao nvel individual/pessoal como social. Ou seja, envolvecompromissos relacionados ao discurso poltico e ideolgico, s polticas de Estado,ao conhecimento que ensinado nas escolas, s atividades dirias de professores eestudantes nas salas de aula e, de como entendemos tudo isso. Nesse sentido, no socompromissos que se do entre ou no meio de iguais!

    O currculo no alguma coisa que se traduz num movimento esttico, e simdinmico: entre estratgias e tticas; entre espao e lugar a vida dinmica; a vidada escola dinmica. H uma relao do coletivo da escola com o currculo, ummovimento, e o currculo parece ser amado por uns e odiado por outros; o currculo ignorado e respeitado, problematizado e incompreendido. Ento, pensar no currculoda escola significa pensar um currculo que se reorganiza cotidianamente, que se faz erefaz, entre estratgias e tticas cotidianas, e que se reconstroi a cada dia, a cadamomento, considerando o conjunto de educadores que se apropriam dele. O currculoda/na escola tem uma representao oficial, mas tambm se apresenta em suamaterializao cotidiana de cada escola, num movimento das tticas, lance por lance(Certeau, 1994, p.100).

    E a escrita? Certeau pergunta o que escrever?

    Certeau designa por escritura a atividade concreta que consiste em construirum texto, sobre um espao prprio, a pgina, e que tem poder sobre a exterioridade daqual foi previamente isolado (1994, p.225). Aponta para trs elementos decisivos,nesse primeiro nvel, que considera como nvel elementar.

    O primeiro elemento a pgina em branco, ou seja, um espao prprio aespera da produo de um sujeito. Gesto cartesiano de um corte instaurador, com umlugar de escritura, do domnio (e isolamento) de um sujeito diante de um objeto. Oque fazer diante de uma pgina em branco? Como gerir esse espao? Onde execut-lo?

    O segundo momento construir um texto! Ou seja, na pgina em branco,uma prtica itinerante, progressiva e regulamentada uma caminhada! E escreve-senum no lugar, a folha de papel. E o terceiro elemento: A ilha da pgina um local

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    de passagem onde se opera uma inverso industrial: o que entra nela um recebido, eo que sai dela um produto (p.226).

    Constroi-se um texto, sobre o no-lugar da folha de papel. Ento, escrever produzir o texto. Ler receb-lo de outrem, sem marcar o seu lugar, sem refaz-lo,e revela uma passividade frente ao texto. um efeito (uma construo) do leitor e,nesse sentido, a operao do leitor pode ser considerada como uma produo prpria

    ele no toma o lugar do autor! J observava Marguerite Duras: Talvez se leia sempreno escuro... A leitura depende da escurido da noite. Mesmo que se leia em pleno dia,fora, faz-se noite em redor do livro (cit. por Certeau, p. 269)...

    Consideraes Finais

    Michel de Certeau nos convida e nos desafia!

    Ocupando-se em evidenciar, nas pesquisas do cotidiano, as astcias dosconsumidores, as criaes annimas, o rumor da vida coletiva, a realidade depoderes e de instituies, micro resistncias que fundam micro liberdades, De

    Certau nos convida a mudar o foco, a inverter o modo de interpretar as prticasculturais contemporneas, recuperando o que chama astcias annimas das artes defazer esta arte de viver a sociedade de consumo. Com sua teoria das prticascotidianas, chama a ateno para as tticas (usar, caminhar, ler,...) que compem umaartea arte do fraco, a arte que a teoria das tticas e suas prticas de dizer, e queoperam dentro do lugar (cf. Josgrilberg, F. 2005, p.75).

    A grande contribuio das pesquisas de Certeau se expressa no sentido deevidenciar que escapando s totalizaes imaginrias do olhar, existe uma estranhezado cotidiano que no vem superfcie e que, nesse conjunto, Michel de Certeau seocupou das astcias dos consumidores, rompendo com todas as formas deuniformizao e obedincia, interessando-se pelas maneiras de marcar socialmenteprticas cotidianas. Como lembra Certeau, o estudo de algumas tticas cotidianas nodeve, no entanto, esquecer o horizonte de onde vm e, no outro extremo, nem ohorizonte para onde poderiam ir (1994, p.105). A ttica a arte do fraco, sem lugarprprio, comandada pela ausncia de um poder e consider-la na pesquisa docotidiano significa inscrever-se na viagem de uma maneira de ver as coisas, paraoutra. Este o desafio que De Certeau nos faz: captar as artes de fazer um caminho deinvestigao pela sondagem das vias da lucidez e da ao.

    Referncias Bibliogrficas

    CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1994.

    ________________.A cultura no plural. Trad. Enid Abreu Dobrnszky Campinas:

    Papirus, 1995.Coleo Travessia do sculo.

    DURAN, Marlia Claret Geraes. Ensaio sobre a contribuio de Michel de Certeau

    pesquisa em formao de professores e trabalho docente. Educao & Linguagem.

    Ano 10. N.15, p. 18-42, jan.-jun. 2007.

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    GIARD, Luce. Histria de uma pesquisa. IN: CERTEAU, M. de. A inveno do

    cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994.(p.09-32).

    JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e inveno: os espaos de Michel de Certeau.

    So Paulo: Escrituras Editora, 2005.

    _____________________. Michel de Certeau e mdia: tticas subvertendo lugares ou

    lugares organizando tticas? Comunicao & Sociedade. 2004 (p.14-21).

    QUADROS, Eduardo Gusmo de. A experincia vivida: uma introduo a histria

    religiosa de Michel de Certeau. (mimeo)

    SILVA, Toms T.Documentos de Identidade: uma introduo s teorias do currculo.

    Belo Horizonte: Editora Autntica, 1999.

    SOUSA FILHO, Alpio de. Michel de Certeau: fundamentos de uma sociologia do

    cotidiano. (mimeo).

    Recebido para publicao em 17-11-11; aceito em 06-12-11