Uma Leitura de Paulo Freire Em Três Eixos Articuladores...

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63 PRO-POSIÇÕES | V. 25, N. 3 (75) | P. 63-81 | SET./DEZ. 2014 Resumo Em três eixos articulados, o presente artigo discute a contribui- ção de Paulo Freire e a atualidade de seu pensamento para a edu- cação, a busca pela superação da consciência ingênua para uma consciência crítico-reflexiva e, consequentemente, a leitura e a ação necessárias para a constituição de sujeitos que mobilizam a história e se mobilizam com ela. No primeiro eixo, “Paulo Freire – o homem”, opta-se por discutir a escolha da luta de Paulo Freire pelo despertamento dos oprimidos, tendo a educação como um dos instrumentos possíveis para a libertação. No segundo eixo, “Paulo Freire e a educação”, são organizadas as principais teses de sua luta pela libertação e emancipação das classes menos favorecidas; e, finalmente, no terceiro eixo, “Paulo Freire – uma janela para o mundo”, discute-se o anúncio de uma voz atual e necessária à denúncia de um jogo político que, negando o seu próprio discurso pela democratização e universalização, é coni- vente com uma escola dualista. Na perspectiva freireana, o texto conclui que a educação democrática não pode existir sem uma sociedade que acompanhe o mesmo adjetivo. Palavras-chave Paulo Freire, educação escolar, democracia. Paulo Gomes Lima* http://dx.doi.org/10.1590/0103-7307201407504 * Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba, SP. Brasil. [email protected] Uma leitura sobre Paulo Freire em três eixos articulados: o homem, a educação e uma janela para o mundo

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Paulo Freire

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  • 63Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    ResumoEm trs eixos articulados, o presente artigo discute a contribui-

    o de Paulo Freire e a atualidade de seu pensamento para a edu-

    cao, a busca pela superao da conscincia ingnua para uma

    conscincia crtico-reflexiva e, consequentemente, a leitura e a

    ao necessrias para a constituio de sujeitos que mobilizam a

    histria e se mobilizam com ela. No primeiro eixo, Paulo Freire

    o homem, opta-se por discutir a escolha da luta de Paulo Freire

    pelo despertamento dos oprimidos, tendo a educao como um

    dos instrumentos possveis para a libertao. No segundo eixo,

    Paulo Freire e a educao, so organizadas as principais teses

    de sua luta pela libertao e emancipao das classes menos

    favorecidas; e, finalmente, no terceiro eixo, Paulo Freire uma

    janela para o mundo, discute-se o anncio de uma voz atual e

    necessria denncia de um jogo poltico que, negando o seu

    prprio discurso pela democratizao e universalizao, coni-

    vente com uma escola dualista. Na perspectiva freireana, o texto

    conclui que a educao democrtica no pode existir sem uma

    sociedade que acompanhe o mesmo adjetivo.

    Palavras-chave Paulo Freire, educao escolar, democracia.

    Paulo Gomes Lima*http://dx.doi.org/10.1590/0103-7307201407504

    * Universidade Federal de So Carlos, Sorocaba, SP. Brasil. [email protected]

    Uma leitura sobre Paulo Freire em trs eixos articulados: o homem, a educao e uma janela para o mundo

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    AbstractThis article discusses the contributions of Paulo Freire and the

    actuality of his thought for education, for overcoming naive

    consciousness, and for the action necessary to the constitution

    of subjects that act with and within history. In the first part, I

    discuss Paulo Freires struggle for awakening the oppressed,

    taking education as one of the possible instruments for this

    mission. In the second part, I discuss the main theses of his

    work regarding the struggle for liberation and emancipation of

    disadvantaged classes, and finally, in the third part I discuss his

    criticism of the dual school. The article shows in the end that a

    democratic education cannot exist without a society that follows

    the same adjective

    KeywordsPaulo Freire, school education, democracy.

    Reading Paulo Freire in three articulated axes: the man, the education,

    and a window to the world

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    IntroduoO pensamento de Paulo Freire indissocivel do principal objeto de sua preocu-

    pao em vida: a educao, pois, como homem, isto , ser capaz de se autoproduzir

    e ressignificar sua existncia a partir do outro, defendia que, embora a educao,

    sozinha, dissociada da vida social, no pudesse efetivamente transformar a realida-

    de por conta dos jogos polticos e ideolgicos de grupos hegemnicos, poderia ser

    uma janela para o mundo. Sua credibilidade na transformao social estava balizada

    pelo posicionamento sociopoltico dos educadores e dos brasileiros e brasileiras que

    descobrissem no somente uma janela, seno o mundo mesmo, inferindo as transfor-

    maes necessrias ao exerccio da cidadania negada historicamente.

    Nesse contexto, como observa Lima (2013b), a educao assume a tarefa social

    de despertar no homem a conscincia de si e do outro no mundo, contribuindo, de

    forma relevante, para o seu crescimento formativo e informativo, favorecendo o seu

    exerccio ativo em todos os processos de sua histria (e implicaes advindas des-

    ses). Consequentemente, ela, cuja finalidade maior a de elevar o homem categoria

    de sujeito de sua prpria histria em construo, mediatizada pela compreenso,

    interpretao e crtica (essas sempre em processo) de sua realidade (envolvendo aqui

    toda a valorao do homem em sua totalidade: social, poltica, econmica, mas aci-

    ma de tudo do homem como homem, propriamente dito), pode desfazer as tramas

    reducionistas dessa realidade histrica (que sobretudo vivida), considerando o seu

    universo relacional, que possui essencialmente um carter multidimensional. Essa

    promoo do homem como ser social adquire, como diz Freire (1980, p. 34), um car-

    ter libertador, pois um ato de conhecimento, uma apropriao legtima da realidade

    que considera a vocao ontolgica do homem vocao de ser sujeito e as con-

    dies em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto. Nesse

    sentido, a educao no pode ser dissociada de um posicionamento poltico pelo

    professor, que, como sujeito recorrente, apropria-se dos fundamentos epistemolgi-

    cos, articula-os de forma reflexiva realidade, sem fragmentaes, e cresce, de forma

    solidria e cidad, junto com o sujeito cognoscente. Desse modo, o professor precisa

    assumir um papel interventivo especial, pois, como lembra Lima (2000), a prtica

    reflexiva da realidade deve estar presente no dia a dia do educador como algo sem-

    pre novo, dinmico, em construo e como processo multidimensional. O professor

    no apenas ensina a aprender, mas aprende a ensinar com seus alunos, com outros

    professores, com as situaes vivenciadas, discutidas com perguntas e respostas ad-

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    vindas de situaes problematizadoras diversas, enfim, aprende com a socializao

    dos saberes e tal disposio deve ser o ponto central de sua prtica cotidiana. Por-

    tanto, o professor, como agente facilitador do processo ensino-aprendizagem, pode

    viabilizar o despertamento dos sujeitos participantes desse processo, possibilitar,

    por meio de sua prtica, a efetuao de inovadoras leituras de mundo e as contri-

    buies significativas de vida e para a vida, se e to somente se, estiver imbudo da

    responsabilizao de fazer sua opo poltica em prol dos no reducionismos so-

    ciais e da aceitao de polticas compensatrias que destituem o direito e alienam

    homens e mulheres do conceito e da materializao da cidadania.

    Essa preocupao com o ser do homem no mundo e o papel da educao, como

    instrumento de transformao de ambos, a partir de Paulo Freire e debatida no I

    Ciclo de Debates Universidade e Educao Bsica: a atualidade do pensamento

    de Paulo Freire, organizado por mim e desenvolvido por um grupo de professores

    da FAED e uma professora da FCH da Universidade Federal da Grande Dourados

    (UFGD), levou-me, inicialmente, a apresentar Paulo Freire o homem, como um

    indivduo que fez uma escolha em favor dos oprimidos, tendo a educao como

    instrumento; Paulo Freire e a educao, listando as principais teses orientadoras

    de sua luta pela libertao e emancipao das classes menos favorecidas; e Paulo

    Freire uma janela para o mundo, como o anncio de uma voz atual e necessria

    denncia de um jogo poltico que, negando o seu prprio discurso pela democrati-

    zao e universalizao, conivente com uma escola dualista.

    Paulo Freire atual porque, mais do que nunca, como educadores, necessi-

    tamos revistar o status e o sentido de nossa ao interventiva na transformao

    social, considerando a situao histrica da humanidade, as estruturas sociais,

    a vida poltica, a vida econmica, as concepes de educao e escola, o perfil

    necessrio de um educador libertador, dentre outros, pois a educao, quer em

    sentido amplo, quer em sentido especfico, um processo social. E, como tal, se

    d num contexto de interaes sociais, sendo uma das interfaces que possibilita

    entender a realidade social, formas de organizao da sociedade e o modo como

    esses elementos influenciam a vida do indivduo. Paulo Freire, inteirado da ne-

    cessidade de uma ao consciente do papel da educao e da mobilizao social,

    convida-nos a no somente refletir, mas a viver e a transformar os processos ma-

    teriais da existncia humana.

    Este texto prope-se a debater algumas de suas percepes aqui listadas, recor-

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    rendo ao posicionamento de cada leitor do mundo quanto ao mbito de equidade e

    justia social que se quer para um mundo cuja teoria social precisa ser transformada.

    Paulo Freire: o homemPaulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife. Graduou-se em Direito

    pela Universidade Federal de Pernambuco, mas no seguiu a profisso de advoga-

    do. Tendo optado pela carreira da educao, foi professor de portugus entre 1941

    e 1947. A partir da, ocupou alguns cargos sempre vinculados rea educacional:

    Diretor do Departamento de Educao e Cultura do SESI/PE (1946-1954), onde desen-

    volveu suas primeiras experincias com educao de trabalhadores, o que o condu-

    ziria mais tarde para o desenvolvimento de seu mtodo, iniciado em 1961. Lecionou

    histria e filosofia da educao na Universidade Federal de Pernambuco (1957-1963).

    No governo Goulart (1963), presidiu a Comisso Nacional de Cultura Popular e coor-

    denou o Plano Nacional de Educao de Adultos. Em 1964, acusado de subverso, foi

    condenado a 15 anos de exlio pelo governo militar.

    Pernambucano, era filho de um oficial da polcia militar, Joaquim Temstocles Frei-

    re, e de uma dona de casa, muito temente a Deus, Edeltrudes Neves Freire. Ao lon-

    go de suas obras, Paulo Freire registrou que, com seus pais, aprendera o dilogo,

    tema recorrente em toda a sua trajetria militante na educao. Aos 23 anos de idade

    (1944), o casamento com a professora Elza Maia Costa iria influenci-lo significati-

    vamente como pensador e educador brasileiro, pois do comprometimento e da mili-

    tncia da esposa colecionara os testemunhos da realidade e a necessidade de uma

    escola transformadora.

    Mesmo tendo se licenciado em Direito, percebeu imediatamente sua no compati-

    bilidade com a rea. Deveria haver para ele um trabalho que o encantasse e justificasse

    sua ao na histria, mobilizada por um sentido maior de justia e liberdade que a ad-

    vocacia no lhe despertara. Assim, a educao escolar, que fora sempre um desafio aos

    seus olhos, aos poucos foi se tornando o principal objeto de seu cuidado. Estimulado

    pela esposa, foi trabalhar no Departamento de Educao do SESI (1946-1954), o que

    lhe possibilitou a consolidao de sua escolha e seu propsito de vida profissional.

    Entre os anos de 1961-1962, as condies de vida e educao das populaes cam-

    pesinas passaram a ser tema de sua indignao e busca de encaminhamentos para a

    construo de uma sociedade mais igualitria e alicerada na justia. Propunha que

    seria necessria uma leitura de mundo do sujeito cognoscente, de sua situao como

    protagonista, e isso s seria possvel por meio de uma educao problematizadora. A

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    partir desses pressupostos, criou o seu mtodo de ensino, tendo significativa expres-

    so no Movimento de Cultura Popular do Recife. O mtodo em si no era o objetivo

    de sua razo de luta, mas uma forma de despertar, para a leitura da palavra, o grande

    contingente de analfabetos entre a populao adulta. Vale dizer que, por essa poca,

    a educao de adultos comeou a ter uma relevncia como nunca tinha tido anterior-

    mente, ao ponto de, em 45 dias, os trabalhadores serem alfabetizados, refletindo a

    sua prpria situao de classe.

    Ao invs de denominar simplesmente de sala de aula, as classes de alfabetizao

    eram chamadas, por ele, de Crculos de Cultura/Leitura, principalmente porque sua

    finalidade no era somente instrumental, mas sobretudo, uma forma de provocao

    da conscincia das massas, isto , nesses Crculos, os processos histricos de exclu-

    so social denunciados entre a leitura de mundo e a leitura da palavra passavam

    a ser objeto de estudo, temrio do contedo de seu mtodo.

    Essa proposta ganhou expresso, quando, em 1963, foi convidado pelo governo

    Joo Goulart para realizar a formao de coordenadores de Crculos de Leitura, entre

    junho de 1963 e maro de 1964. Entretanto, com a ecloso da ditadura militar, em

    1964, Paulo Freire foi preso por 70 dias e, imediatamente depois, exilado, por ser

    considerado um subversivo internacional. A acusao era a de que seu mtodo,

    comparado s perspectivas de Stlin, Hitler, Pern e Mussolini, provocava movimen-

    tos antipatriotas.

    Estando no Chile, recebeu o reconhecimento de educador por excelncia, cujas

    ideias e mtodo, por conta de seu histrico, eram vistos com resistncia pelos mi-

    litantes governamentais, uma vez que o seu iderio se dirigia s massas oprimidas,

    despertando-lhes a percepo da necessidade de sua emancipao. Mas, ainda as-

    sim, obteve respaldo para o desenvolvimento de suas ideias e suas contribuies

    para a educao. Seu trabalho avanou tambm em outros pases, via o Instituto de

    Ao Cultural (IDAC), que ajudou a fundar na Sua no perodo de 1972-1974. Como

    exilado, esteve na Universidade de Harvard (EUA), na Tanznia, em Guin-Bissau,

    dentre outros e retornou ao Brasil, em 1979, por ocasio da anistia.

    Recebeu inmeras premiaes, no Brasil e no exterior, depois do exlio, em reco-

    nhecimento pela sua contribuio na rea educacional. Foi secretrio municipal da

    educao na cidade de So Paulo (1989-1991) e desenvolveu docncia e pesquisas na

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUCSP) e na Universidade Estadual de

    Campinas/SP (Unicamp). Faleceu em 1997, deixando significativa produo literria,

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    da qual se destacam: Pedagogia do oprimido (traduzido em 18 lnguas), Conscienti-

    zao, Educao como prtica da liberdade, Pedagogia da esperana, Pedagogia da

    autonomia, Ao cultural para a liberdade, A importncia do ato de ler, Educao e

    mudana, dentre outras.

    A preocupao de Paulo Freire com a formao do homem para a cidadania no

    mbito da escola era recorrente quanto ao domnio de todo o instrumental possvel

    para o despertamento do sujeito cognoscente. Assim, a ao pedaggica do educa-

    dor se origina numa leitura de mundo, da realidade de sua turma, do conhecimento e

    das trocas entre os sujeitos cognoscentes. O professor, como ator social que tambm

    aprende ao ensinar, deve ter sempre em vista que o trabalho com a realidade envolve

    uma responsabilidade pontual: o planejamento de aes que favoream o desenvol-

    vimento de seus alunos num movimento de ressignificao de conhecimentos.

    Esse movimento ser orientado por um grau de sistematizao da interveno

    do profissional da educao, mas no de forma inflexvel, antes como um objeto

    que pode desdobrar-se pelas mltiplas interaes nas atividades. O desdobra-

    mento ou a explorao dos elementos que aparecem evidenciados em aula no

    deve ser entendido ou confundido com uma caixa de improvisaes que pres-

    cinde da preparao da aula, da reflexo de possveis atividades significativas

    para o grupo, parecendo que o espao pedaggico se preocupa somente com

    assuntos especulativos ou subjetividades. Pelo contrrio, ele deve ser encami-

    nhado com o objetivo de desenvolver aes que contribuam para que as metas

    ou finalidades da educao sejam alcanadas. Assim, compreendemos que, ao

    considerar a leitura do real, temos que pensar em desenvolver as competncias

    e as habilidades dos alunos e em estabelecer as interconexes necessrias para

    a valorizao do ator social e a produo do seu conhecimento. A sensibilizao

    do professor para o aproveitamento, as indagaes e as recorrncias podem con-

    tribuir para uma interveno pedaggica ressignificada (o desenvolvimento das

    hipteses e dos conhecimentos por meio da leitura do contexto real) e intencional

    (atividades possveis para o desenvolvimento das atividades mediadas pelo ma-

    terial fornecido pelas interaes).

    Paulo Freire, o homem, no se distanciava de Paulo Freire, o educador. Antes con-

    siderava que educao no poderia ser simplesmente confundida com preparao

    para a vida, mas deveria envolver a prpria vida em processo no aprender e no ensi-

    nar a partir da construo do real. Da a temtica central de suas ideias sobre educa-

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    o ser conscientizao, como observaremos na seo seguinte, pois, segundo sua

    perspectiva: [...] a educao como prtica da liberdade um ato de conhecimento,

    uma aproximao crtica da realidade (Freire, 1980, p. 25).

    Paulo Freire: a educaoA grande contribuio de Paulo Freire centra-se na educao como prtica da li-

    berdade, tomando a conscientizao como mola propulsora da realidade social, da

    realidade do ato de ensinar-aprender e intercambiar conhecimentos da vida e para a

    vida, uma vez que:

    A conscientizao implica, pois que ultrapassemos a esfera espontnea de

    apreenso da realidade, para chegarmos a uma esfera crtica na qual a

    realidade se d como objeto cognoscvel e na qual o homem assume uma

    posio epistemolgica. A conscientizao , nesse sentido, um teste de

    realidade. Quanto mais conscientizao, mais se des-vela a realidade,

    mais se penetra na essncia fenomnica do objeto, frente ao qual nos en-

    contramos para analis-lo. Por esta mesma razo, a conscientizao no

    consiste em estar frente realidade assumindo uma posio falsamente

    intelectual. A conscientizao no pode existir fora da prxis, ou melhor,

    sem o ato ao-reflexo. Esta unidade dialtica constitui, de maneira per-

    manente, o modo de ser ou transformar o mundo que caracteriza o homem

    (Freire, 1980, p. 26, grifos do autor).

    A educao formal, para Freire, deve ser sensvel ao desdobramento da liber-

    tao do indivduo de uma educao bancria, de uma educao que aliena e

    oprime perversamente no processo de produo do conhecimento. Observa-se,

    na orientao da educao bancria, que: a) o professor ensina, os alunos so

    ensinados; b) o professor sabe tudo, os alunos nada sabem; c) o professor pensa

    para si e para os estudantes; d) o professor fala e os alunos escutam; e) o profes-

    sor estabelece a disciplina e os alunos so disciplinados; f ) o professor escolhe,

    impe sua opo, os alunos submetem-se; g) o professor atua e os alunos tm a

    iluso de atuar graas ao do professor; h) o professor escolhe o contedo do

    programa e os alunos que no foram consultados adaptam-se; i) o professor

    confunde a autoridade do conhecimento com sua prpria autoridade profissional,

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    que ele ope liberdade dos alunos; e j) o professor sujeito do processo de

    formao, enquanto os alunos so simples objetos dele.

    Freire prope uma educao problematizadora, balizada pelo respeito, pelo dilogo

    e pela construo do conhecimento por meio de temas geradores da realidade, explo-

    rando-se a criticidade, a criatividade dos alunos, instrumentalizando-os para o exerccio

    da cidadania propriamente dita, pois teriam como reivindicar sua libertao da opres-

    so, do domnio ideolgico de interesses sociais particularistas. O trabalho pedag-

    gico, proposto por Freire, revolucionrio: no nega o conhecimento historicamente

    construdo, mas enfatiza sua forma de explor-lo na escola por meio da realidade dos

    sujeitos. No enfatiza a indisciplina como ato de educao natural, mas salienta a mani-

    festao do pensamento, como ato libertador dentro de espaos democrticos e ticos.

    A esse respeito Paulo Freire afirma que, do ponto de vista tico e democrtico, a

    prtica educativa no neutra em relao prpria formao humana, uma vez que

    implica opes, rupturas, decises, posicionamentos. Nessa diretriz, a eticidade do

    educador e o respectivo exerccio democrtico exigem-lhe a vigilncia permanente

    da coerncia entre o discurso e a ao pedaggica, sendo incuo um discurso bem

    articulado, com uma prtica negadora do direito justia social, a uma educao de

    qualidade, emancipao do sujeito. Assim, a

    [...] natureza formadora da docncia, que no poderia reduzir-se a um

    puro processo tcnico e mecnico de transferir conhecimentos, enfatizar

    a exigncia tico-democrtica do respeito ao pensamento, aos gostos, aos

    receios, aos desejos, curiosidade dos educandos. Respeito contudo, que

    no pode eximir o educador, enquanto autoridade de exercer o direito de

    ter o dever de estabelecer limites, de propor tarefas, de cobrar a execuo

    das mesmas. Limites, sem os quais, as liberdades correm o risco de perder-

    -se em licenciosidade, da mesma forma como sem limites, a autoridade se

    extravia e vira autoritarismo (Freire, 1997, p. 39).

    A educao em Freire, reunindo a necessidade de conscientizao, problemati-

    zao, leitura do real e contedos via temas geradores, enfatiza a necessidade de o

    educador considerar, em seu processo de despertamento, algumas ideias-fora que

    lhe possibilitaro realizar uma interveno pedaggica substancialmente transforma-

    dora, dentre as quais esto:

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    a) Toda ao educativa, para ser vlida, deve, necessariamente, ser precedida

    de uma reflexo sobre o homem e de uma anlise do meio de vida concreto de um

    homem concreto. Freire defendia que no a ideia sobre o homem que o torna um

    homem melhor, isto , uma noo contemplativa de um homem utpico o afasta de

    qualquer mudana estrutural dele mesmo e de sua histria.

    b) O homem s constri a si mesmo pela conscientizao de seu papel de ser e

    estar no mundo. Dentre os desafios que a escola deve enfrentar, podemos destacar: o

    rompimento com o reducionismo tecnocrtico no desdobramento da educao formal

    e a solicitao da viso de conjunto no conhecimento da vida escolar; a interao e a

    interveno dos professores, aluno e comunidade, como atores sociais, que reivindi-

    cam a sua cidadania, o encampamento da realidade propriamente dita para resoluo

    de conflitos e formulao de orientaes que sejam viveis vida social e escolar; e a

    formao de uma conscincia coletiva como meio de conscientizao da historicidade

    de seu papel e do seu posicionamento diante de desigualdades e injustias sociais

    (Lima, 2013a).

    c) O homem fazedor da histria. A conscincia coletiva aprimora os relacio-

    namentos na consecuo de objetivos comuns, pois coloca como ponto de partida a

    participao de todos os atores sociais envolvidos com a escola e seu entorno. Essa

    conscincia gerada num espao democrtico, em que os sujeitos se sentem parte

    indissocivel da histria e da tomada de deciso sobre o seu destino. Nesse quadro,

    as solicitaes so analisadas em profundidade, e a participao se materializa por

    meio do exerccio do direito de vez, voz e voto. a partir da conscincia coletiva que

    surgem e so encaminhados os seguintes questionamentos: quem somos? Onde es-

    tamos e qual a finalidade do desenvolvimento do nosso trabalho? Como aperfeioar

    a nossa ao interventiva de forma a promover a melhoria de qualidade do que reali-

    zamos? Como nos posicionamos politicamente diante das crises do mundo contem-

    porneo e, por meio de seus condicionantes, provocamos a crtica-reflexiva? Em que

    grau e em que medida o trabalho do educador contribui para a formao do indivduo

    para o exerccio pleno de sua cidadania? As questes norteadoras, emersas de uma

    conscincia coletiva, no se esgotam nessa formulao, mas so indicadoras de que

    h necessidade real do desenvolvimento de uma outra forma de reivindicar a legiti-

    midade de ao sobre o real, que, embora disponvel, muitas vezes no explorada,

    por conta do velamento do poder que o coletivo, como fruto da prpria formao

    continuada, pode provocar.

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    d) A educao deve contribuir para a constituio do homem como pessoa, como

    ser histrico, no como ser passivo, simples consumidor. Como afirma Lima (2000),

    essa educao crtico-reflexiva pode transformar os sujeitos e as condies materiais

    da existncia humana, cujo resultado favorecer a produo de conhecimentos recor-

    rentes, lidos numa perspectiva de mudana, rompimento e ou ratificao de seus

    pressupostos e, dessa forma, contribui para a formao de uma conscincia coletiva

    no espao social, do qual a escola parte indissocivel. A nfase no se d somente

    pela importncia do trabalho desenvolvido na escola, por meio de uma conscincia

    coletiva que se caracteriza como prerrogativa nas relaes humanas e assume lugar

    de relevncia na construo da totalidade educacional , mas tambm pela constata-

    o de que o si e o outro reconhecem-se humanos e tornam-se atores sociais por

    meio das trocas e das produes de conhecimento que os humanizam, que os tornam

    participantes da mesma histria, necessariamente articulando o desenvolvimento das

    contribuies de sua individualidade s construes socializantes que acontecem en-

    tre o si e o outro. No estamos considerando faces isoladas da construo do hu-

    mano como humano, a despeito do espao que estamos tratando: a escola , mas as

    interfaces da individualidade que construda na interao entre sujeitos (a famlia ou

    grupos responsveis) com a socializao, construda pelo encontro de distintos sujei-

    tos que convivem e participam da vida social ativa. Assim, a identidade individual no

    se perde na coletiva e nem a identidade coletiva marginaliza a individual (Lima, 2013b).

    O pensamento educacional de Paulo Freire leitura contextualizada no somente

    a partir de literatura especializada, mas de vivncias na escola como um todo edu-

    cao bsica e educao superior , articulando o embasamento epistemolgico e a

    leitura do real. Nesse sentido, constitui-se uma contribuio para posicionarmo-nos

    como atores sociais de uma escola que aspira a transformaes significativas. Se o

    nosso compromisso depende de tomar a histria como seus produtores, ento vale

    a pena crer que as mudanas so possveis e podemos verdadeiramente primar por

    uma educao de qualidade para uma realidade concreta. Lembrando Paulo Freire

    (1997, p.118, grifos do autor) em sua Poltica e educao:

    Me plenifico na minha misso de educador quando, brigando para conven-

    cer os educandos do acerto de minha desocultao, me torno transparente

    eu mesmo ao revelar o meu respeito, primeiro, recusa possvel dos edu-

    candos a meu discurso, segundo, o meu respeito sua antiverdade, com a

  • 74 Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    qual recuso a conviver. Me plenifico na minha misso de educador quando

    revelo, finalmente minha tolerncia em face dos diferentes de mim. Ao con-

    trrio, desmereo minha misso de educador e a mim mesmo se, em nome

    do respeito aos educandos, silenciar minhas opes polticas e meus sonhos

    ou se, em nome de minha autoridade de educador, pretender impor a eles

    meus critrios de verdade. O que me parece fundamental neste respeito s

    diferenas o testemunho, por um lado, de que possvel pensar sem pres-

    cries, no s possvel, mas sobretudo necessrio, e, por outro, que fact-

    vel aprender sob o desafio de diferentes formas de ler o mundo. Este respeito

    sobre que tanto insisto, no pode ser reduzido a uma deciso irresponsvel,

    a um afrouxamento licencioso, a um vale tudo. Da que eu tenha falado na

    briga legtima do educador ou da educadora em defesa de seu sonho como

    em defesa da verdade por que se bate ou da utopia que o move ou a move.

    sabido que somente podemos mudar a histria da educao que temos pela

    mobilizao de esforos, pelas mudanas de paradigmas, pela coragem do posiciona-

    mento no coletivo escolar, pela necessidade da revisitao diria dos nossos saberes

    e por uma leitura e reorientao sincera, que tenha como objetivo o desenvolvimento

    de todos os atores sociais e de cada um envolvido no processo da educao na esco-

    la, da educao da escola, da educao da vida e para a vida. exatamente por isso

    que a interveno do educador precisa ser consciente e sistematizada, construda

    num espao dialogal, que prime pelo respeito s diferenas e s diversidades em to-

    das as suas manifestaes, mas, ao mesmo tempo, considere a unidade como mbito

    totalizador de multidimensionais leituras.

    Paulo Freire: uma janela para o mundoDe uma janela podemos enxergar somente parte de um mundo complexo, entre-

    tanto, a frao apresentada sempre um convite para o conhecimento pleno do mun-

    do, para a sua provocao, para a sua problematizao. Uma janela nos desafia a en-

    xergar e relativizar as parcialidades quando h necessidade do todo, e indo alm, as

    motivaes e os interesses que constituem o desvelamento do mundo e do homem.

    As ideias freireanas certamente como uma janela, como um convite, nos impulsionam

    para laborar por uma sociedade democrtica, humana e universal, por meio de posi-

    cionamento, reivindicao por direito e luta por princpio.

  • 75Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    Veja-se, a esse respeito, a viso de mundo que se tinha, nos anos de 1960, sobre

    a educao escolar, recortando a alfabetizao de adultos. Quando se entendia o

    processo de alfabetizao guiado por uma mecnica e uma ao simplesmente ins-

    trumentais, Freire o considerava como ato de criao e no de repetio, isto , con-

    duzido por meio da proposio de temas geradores e ainda, naquela poca, utilizan-

    do a aprendizagem silbica, delimitava palavras significativas para que a ao sobre

    o mundo da leitura fosse gerada pelo mundo vivido. Isso porque o seu mtodo era

    apenas um instrumento de interveno, uma janela, que favoreceria a conquista de

    algo maior, centrado na libertao e emancipao do homem. Ao observarmos hoje,

    seu mtodo constitui-se de uma abordagem simples e de fcil aplicao, como segue:

    Primeira fase: descoberta do universo vocabular com o grupo que se h de trabalhar.

    Segunda fase: seleo de palavras significativas dentro do universo identificado.

    Terceira fase: criao de situaes estruturais tpicas, a partir do mundo vivido,

    reflexionando-as no coletivo.

    Quarta fase: elaborao de fichas indicadoras que auxiliam os coordenadores no

    debate a ser trabalhado.

    Quinta fase: elaborao de fichas nas quais aparecem as famlias fonticas corres-

    pondentes s palavras geradoras.

    Em sntese, partindo do mundo vivido ou do mundo do trabalho em que o indiv-

    duo estava inserido, as palavras ganhavam fora, porque refletidas e trazidas para

    a problematizao da situao do trabalhador numa sociedade delimitada por inte-

    resse de classes. Essas palavras, tomadas como objeto, separadas em slabas, por

    anlise e sntese, formao de novas palavras e frases, em si, eram a mecnica da

    qual lanava mo para favorecer o despertamento do trabalhador, apenas um ins-

    trumento, uma janela que abriria, a posteriori, portas e mobilizaria outros homens e

    mulheres por uma educao transformadora no Brasil. Freire conseguiu enxergar e

    erguer a voz a favor das classes oprimidas, dizer o quanto precisvamos entender o

    sentido do termo justia social e da libertao das desigualdades sociais. A prxis

    da libertao, no decorrer da obra de Paulo Freire, trouxe-nos luz a ressignificao

    ou o sentido, dentre outras, de trs palavras: a) opresso: os oprimidos no alcana-

    ro a liberdade por concesso e nem mesmo sero justiados por polticas pblicas

    compensatrias que trazem em si o mascaramento da opresso velada e alienam o

    homem de se reconhecer como protagonista; b) dependncia: se existe a tendncia

    de sua perpetuao, o convite de Freire por sua superao, pois, ser submisso no

  • 76 Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    no ter uma palavra, mas seguir as determinaes daqueles que falam e impem

    a sua voz (Lima, 2012) e, o pior de tudo, como eivadas de verdade; c) marginalidade:

    os excludos, os oprimidos devem considerar sua situao como sujeitos expropria-

    dos, como sujeitos que podem mudar a histria em prol de muito mais que de seus

    direitos, ou seja, de uma sociedade que no trate a opresso de forma naturalizada e

    torne comum o que ilegtimo perante o processo civilizatrio humano.

    Como observado por Lima (2013a) essa uma das interfaces do posicionamen-

    to poltico que o educador assume. Poltico porque possibilita a emancipao de si

    como pessoa, como cidado que forma outros cidados e como profissional que re-

    ne o compromisso de aperfeioar-se, de aprimorar-se por conta do desenvolvimento

    de habilidades e competncias dos outros (alunos e professores e outros atores so-

    ciais). um ato poltico porque transforma e se transforma em dilogo na busca de

    reivindicaes legtimas de melhoramentos pessoais e coletivos dentro do universo

    cultural, social, econmico, poltico, etc.

    Por meio da janela proposta por Freire, percebemos que o ato de educar deve

    prescindir da autossuficincia, pois o reconhecimento do outro e de si so dimenses

    indispensveis das necessrias intervenes sobre os interesses histricos daqueles

    que lutam por justia. Nenhum dos movimentos, entretanto, se d isoladamente e

    sem porqus. Se considerarmos a totalidade do equilbrio universal, o mesmo ocor-

    re quando do reconhecimento de si no mbito social. Importa que o homem se

    reconhea como ser humano, como cidado, como pessoa e como profissional da

    educao. Todos esses reconhecimentos, no mbito da formao da individualidade,

    tambm no se do isoladamente, embora o ator social apresente particularidades

    que so s suas. As interaes pelas quais passou ao longo de sua vivncia contri-

    buram para o desenvolvimento de sua personalidade, de sua individualidade. Mas,

    ao mesmo tempo em que exerce sua individualidade, o si deve buscar no reconhe-

    cimento do outro, de sua importncia e papel na ao comunicacional a afirmao

    da busca de propsitos, o compartilhamento das contribuies geradas a partir de

    sua individualidade e o desenvolvimento do eu e do ns na recorrente trajetria

    histrica. A esse respeito, vale lembrar que:

    A autossuficincia incompatvel com o dilogo. Os homens que no tm

    humildade ou a perdem, no podem aproximar-se do povo. No podem ser

    seus companheiros de pronncia do mundo. Se algum no capaz de sen-

  • 77Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    tir-se e saber-se to homem quanto os outros, que lhe falta ainda muito

    que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de

    encontro, no h ignorantes absolutos, nem sbios absolutos: h homens

    que em comunho buscam saber mais (Freire, 1987, p. 46, grifo do autor).

    Essa concepo do homem como ser poltico-social adquire, como lembra Lima

    (2008, p. 467), um carter libertador, pois um ato de conhecimento, uma apropria-

    o legtima da realidade que considera a vocao ontolgica do homem vocao

    de ser sujeito e as condies em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento,

    em tal contexto (Freire, 1980, p. 34). Nesse sentido, a educao no pode ser disso-

    ciada de um posicionamento poltico pelo professor, que, como sujeito recorrente,

    apropria-se dos fundamentos epistemolgicos, articula-os de forma reflexiva reali-

    dade, sem fragmentaes, e cresce, de forma solidria e cidad, junto com o sujeito

    cognoscente.

    A integrao de mltiplas vozes constitui a dimenso de totalidade das aprendiza-

    gens do homem, quer na escola da vida, quer na vida da escola ou no afrontamento

    de realidades promotoras de desigualdades e injustias sociais. Esse processo, no

    sendo linear, exige dos homens o viver junto em ressignificao de valores, isto , por

    meio do estabelecimento do que importante e/ou prioritrio para o grupo humano

    ou sociedade, vo sendo eleitos os pressupostos que orientaro a prtica social, bem

    como a noo de tica e moralidade entre os sujeitos. Acerca dessa observao, vale

    destacar que os valores convencionados entre os homens surgem de suas trocas en-

    tre o si e o outro como expresso da leitura coletiva e em respeito a ela (Lima, 2008).

    Em relao ao papel do professor, por meio do olhar freireano, podemos inferir

    que a tomada de conscincia para uma prtica pedaggica ressignificada na e pela

    convivncia um exerccio de aprendizagem que aprimora o reconhecimento de que

    os conhecimentos, os valores, os sentidos das aes docentes so construdos por

    mltiplas vozes que solicitam encontros dialticos permanentes, que, em si, esto

    sempre em estado de novidade de encaminhamentos e propsitos, no pelo inedi-

    tismo de temticas da escola e seu entorno, mas pelo acuramento do olhar sobre os

    fundamentos, as consequncias e as implicaes que tais objetos demandam dian-

    te de interesses identificados que inquietam os interlocutores por seu ocultamento.

    Dessa maneira, a prtica pedaggica, ressignificada na convivncia, possibilita uma

    outra forma de aprendizagem para os alunos, para o professor e para toda a comuni-

  • 78 Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    dade escolar. O espao de convivncia no o espao onde os conflitos no existem,

    muito pelo contrrio, tambm o espao onde se possibilita a exposio dos confli-

    tos. Longe de se constituir um muro de lamentaes, caracteriza-se como uma pon-

    te onde ningum poder atravessar no lugar dos interlocutores, porque a travessia,

    sendo personalizada, um caminho de todos. Assim as resolues dos conflitos so

    encaminhadas, pensadas e discutidas a partir da evocao das inquietaes dos su-

    jeitos. Sabe-se que as respostas podem at no ser consensuais, respeitada a diver-

    sidade das individualidades, mas podem alcanar uma dimenso democrtica signi-

    ficativa em relao unidade (uno) dos objetivos que todos compartilham, mesmo

    que de ponto de vista diferenciado. Mudam os sujeitos, consequentemente, a prtica

    pedaggica ser orientada por uma autoridade legitimada em mltiplas leituras, em

    que todos, ao mesmo tempo, so atores e protagonistas da vida real da escola.

    Orientados pelo pensamento freireano, considerando a sua janela para o mun-

    do, Lima (2009) pondera que o conhecimento da vida escolar, de suas relaes, in-

    dagaes, xitos, fracassos, completudes e incompletudes em relao s polticas

    pblicas para a educao; em relao dimenso das relaes interpessoais; em

    relao organizao, metas e projetos da escola, solicita uma viso de conjunto

    para que seus contextos e condicionantes sejam suficientemente entendidos e pro-

    blematizados. Dessa maneira, a educao, em sua finalidade primordial, poder

    encontrar encaminhamentos significativos como indicadores de seu norteamento.

    Na sociedade do conhecimento em que vivemos, que se caracteriza pelo processo

    ensino-aprendizagem permanente e continuado (mundo globalizado e em processo

    de globalizao), se houver comprometimento democrtico e justia social em sua di-

    menso plena, no possvel entender a escola e suas relaes, cujo dever formal se

    completa na formao de sujeitos determinados para uma sociedade impessoalizada

    e alienante, como se estivessem desvinculadas da totalidade social, materializando

    seus esforos simplesmente como transmissora de conhecimentos.

    A viso de conjunto toma a totalidade como fio condutor, a fim de acompanhar

    todo um processo que se torna revolucionrio no afrontamento ao reducionismo e

    fragmentao, que ruma proposio de delineamentos coerentes e consistentes

    com o real social e educacional, reviso essa que no mais admite padronizaes

    dos prprios saberes e fazeres da escola, nem de verdades e viso de homem de-

    terminadas pela manuteno de vontades particularistas. Da a importncia de uma

    educao compreensiva, balizada em valores sociais, antropolgicos, polticos, filo-

  • 79Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    sficos, culturais e, sobretudo, valores humanos universalizados. Esse norteamento

    o veculo que vai situar a escola como elemento de transformao social; assim,

    importa que o professor, em seu processo de formao continuada, conhea, inclua

    em seu comprometimento pela educao a totalidade da leitura, contexto pelo qual

    atravessa o mundo, o planeta, o Pas, o estado, o municpio, o bairro, a comunidade

    extraescolar e a escola como objeto indissociveis do conhecimento. Esse primeiro

    momento pressupe o conhecimento das reais condies e possibilidades da escola

    e, convertendo-se em vetores significativos, apontam a escola que temos e fornecem

    elementos para a planificao da escola que esses queremos.

    Consideraes finaisA leitura do mundo antecede a leitura da palavra, e importa que, uma vez feita

    a primeira, a segunda d ressignificao ao seu contedo, ao seu texto e contex-

    to, evocando da memria aqueles elementos imprescindveis que tornam o homem

    um sujeito construtor de sua prpria histria. na articulao dessas leituras que o

    professor deve se orientar para o desenvolvimento da interveno pedaggica, no

    numa leitura linearizada, como se todas as leituras das situaes e dos registros fos-

    sem predeterminadas e prontamente direcionadas a tomadas de deciso.

    A leitura do mundo caracteriza-se pelo conhecimento das relaes estabelecidas

    pelos homens na sua construo de sociedade, portanto, do seu mundo concreto e

    do imaginrio que o cerca: seus valores, vises, expectativas, etc. Por outro lado,

    a leitura da palavra sobre o mundo caracteriza-se pelos registros realizados da/na

    histria e a partir de que olhar o so. Nesse entrecruzamento est o homem, aqui

    personificado no papel do professor, que precisa realizar uma leitura ressignificada

    do mundo e da palavra, o que exige dele um posicionamento dialtico e poltico. O

    posicionamento dialtico permite-lhe ler o mundo de uma maneira no linearizada,

    isto , analisa os ditos e os contra-ditos da histria do homem e da educao;

    assim, medida que conhece a realidade, identifica os elementos necessrios para a

    contestao de posturas e a ratificao de explicaes do mundo e do homem em seu

    processo de constituio. No mbito poltico, os posicionamentos so analisados,

    tendo em vista a finalidade social do objeto de estudo: se est sendo alcanada ou

    no; se h a reivindicao dos direitos simultaneamente aos deveres do cidado; se,

    no processo da vida social e escolar, h ou no nfase para o desenvolvimento de es-

    paos democrticos. Ambos, poltico e dialtico, so interfaces de uma sensibilizao

  • 80 Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

    de uma leitura de mundo e da palavra que devem ser efetuadas, tendo em vista os

    desafios que no so poucos da escola contempornea. Tais desafios perpassam

    o interesse de toda a sociedade, e a escola, como instituio educadora, no pode

    ficar alheia.

    Paulo Freire foi um dos mais importantes representantes da educao popular do

    sculo XX. Para ele, um dos pontos importantes da educao popular a percepo

    de que no existe ningum mais culto que o outro. No acredita numa pedagogia,

    nem em nenhuma transformao revolucionria feita para as massas populares, mas,

    sim, com elas e por meio delas. Diz que necessria uma postura humilde do edu-

    cador para o exerccio consciente de sua ao interventiva no processo pedaggico,

    mas no humildade de fazer favor, de pura ttica, uma vez que fundamental respei-

    tar o princpio de que a dimenso educativa um processo coletivo, no qual o educa-

    dor tem que se apropriar dos mecanismos pedaggicos de expresso e explicitao

    das lutas, das dvidas, das incertezas, com senso crtico para a problematizao e a

    transformao da realidade.

  • 81Pro-Posies | v. 25, n. 3 (75) | P. 63-81 | set./dez. 2014

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    Submetido avaliao em 13 de julho de 2013. Aprovado para publicao em 28 de agosto de 2014.