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Uma cabeça maluca António Galrinho
UMA CABEÇA MALUCA
Quanto mais tempo passa, quanto mais velho estou, maior é o fosso
entre aquilo que realmente vivi e aquilo que terei construído, a partir daquilo
que vivi, ou julgo ter vivido, ou a partir daquilo que me contaram. Aquilo que vivi
é, na minha memória, cada vez menos aquilo que vivi e cada vez mais aquilo
que construo. Nessa construção há também desconstrução e destruição. Mas
nem as memórias construídas nem as destruídas são intencionais.
Simplesmente acontecem.
É esquisito! É esquisito! Por que é que nem sempre nos ocorrem as
palavras certas quando nos referirmos às coisas? Nem sempre nos ocorrem as
palavras que se aproximam mais daquilo que pensamos e daquilo que
queremos dizer. Às vezes penso que se trata de um castigo. Mas se for um
castigo, quem nos quer castigar? E que mal fizemos para ter esse castigo?
Outras vezes as palavras surgem com uma nitidez idêntica à da ideia que
queremos transmitir. Aí, sim! Aí fico satisfeito! Mas donde vêm essas palavras?
E porque nos escapam elas tantas vezes? Encontrar as palavras certas é
necessário!
Fico com a sensação de que os nossos pensamentos são, sobretudo,
compostos por palavras, palavras que identificam coisas e ideias. Temos na
nossa cabeça tantas memórias de coisas que vivemos, de coisas que em
tempos sentimos e fruímos. E também de coisas que nunca vivemos nem
nunca sentimos, e mesmo de algumas nunca viveremos nem sentiremos.
Memórias e ideias aparecem nas nossas cabeças enformadas em palavras.
Nas nossas cabeças existem memórias de cheiros, imagens, sons,
tactos, gostos, ideias e múltiplas sensações e sentimentos. Naturalmente
transformadas, revisitadas, porventura melhoradas. Quando as tentamos visitar
surgem, sobretudo, catalogadas por palavras. Palavras que representam as
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coisas que lá estão, que, ao mesmo tempo, as identificam e nos facilitam a
compreensão, mas também, porque irremediavelmente agarradas a essas
coisas, surgem condicionadoras e limitadoras. Porque é que, por exemplo, a
memória do cheiro do pescoço duma mulher de quem se gostou muito não
surge apenas como cheiro do pescoço dessa mulher? Seria mais puro assim.
Mas às memórias das coisas surgem sempre agarradas as palavras, ou as
ideias das palavras, que identificam essa memória. Ou seja, a palavra cheiro, a
palavra pescoço, a palavra mulher e as outras. Também os sons dessas
palavras e os aspectos dessas palavras quando escritas parecem perturbar,
aumentando a distância… Isso não seria problema se as palavras fossem
coincidentes com as memórias. Mas isso é impossível! Palavras são palavras e
memórias são memórias. As coisas são coisas, também. Ou não serão? Ou
serão elas apenas o significado que nós lhes damos? Coisas
irremediavelmente presas às palavras que as definem, como se de um castigo
se tratasse. Como um castigo por nos afastarmos delas e as colocarmos nas
nossas cabeças. Por não as deixarmos em paz e as querermos conhecer e
dominar.
Penso isto só por brincadeira, claro! E por necessidade de ter esta
cabeça maluca sempre entulhada de pensamentos. Que chatice! Ensinam-nos
a entulhar as cabeças, de pequenino. Mas quem nos diz como nos livrarmos
desse entulho?
A história das nossas vidas é, antes de mais, a história das coisas que
revisitamos e que reconstruímos cada vez que para elas olhamos. Aliás, será
que alguma vez olhamos para as coisas que vivemos? Provavelmente o jogo
começa logo por estar viciado a partir daqui. Cada vez que olhamos para trás
vemos as coisas como elas se nos apresentam, como se tivessem vontade
própria e se metamorfoseassem por si, deixando-nos baralhados. Por isso
tenho dúvidas quando olho para trás e penso nas coisas que vivi. Duvido se
realmente as vivi, ou, pelo menos, se as vivi da maneira como elas se me
apresentam. Também não percebo por que me deva preocupar com isso. É,
apenas, curioso pensar nisso, nada mais.
Quando revejo memórias já com muitos anos, sinto que lhes falta luz.
Mesmo que as situações me apareçam nítidas…, falta-lhes luz, falta-lhes o Sol
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que brilha lá fora. Tudo parece nublado. O Sol do meu cérebro não consegue
ter a luz nem o calor do Sol que está lá fora. Que me desculpem os artistas
pela comparação que vou fazer. A diferença entre aquilo que vivi e aquilo que
visito na minha memória é assim mais ou menos a diferença entre uma
fotografia ou um quadro que mostram, por exemplo, uma paisagem, e a
paisagem ela própria, impregnada de intensa luz. Por mais bela que seja a
fotografia ou o quadro… falta-lhes emanar aquela luz que dá vida às coisas. Na
Arte sugere-se, simula-se, o que conduz à poesia e ao sonho.
Às vezes olho-me ao espelho e não me vejo a mim, como disse algum
poeta, vejo alguém mais velho do que eu. É um drama! Por que é que havia de
ser um poeta a dizer isso? Qualquer pessoa se lembra duma coisa destas, até
porque isso acontece com todos os que envelhecem!
Dói-me a alma ver a terra revoltada, esfolada, ver montes alagados e
rios desviados ou impedidos de seguir o seu rumo, ver florestas arrasadas.
Esfola-se a terra um pouco por todo o lado, sem dó nem piedade, mas nas
cidades esconde-se a terra. Os homens olham cada vez menos para a terra. É
uma recusa colectiva de encarar aquilo de que somos feitos e medo de encarar
aquilo onde nos voltaremos a integrar. É assim mesmo! Qual é o problema?
Nas cidades tapa-se a terra, humaniza-se a coisa. Estranho! Impede-se
o contacto com a terra. Alcatrão, cimento, pedra transformada. Mesmo nos
jardins não se deixa a terra à vista. Toda a terra se tapa com plantas, relva,
água, e caminhos. A terra suja-nos, agarra-se aos sapatos, à roupa. Sujamo-
nos daquilo de que somos feitos e isso chateia-nos.
Também já não se olham as estrelas, nem a Lua. Viramo-nos para
baixo, para dentro, e cada um de nós se transforma num buraco negro. Poucas
pessoas se apercebem de que a Lua muda, de que a luz que nela incide varia
ao longo de ciclos certos. As pessoas das cidades nem se apercebem de que a
luz da Lua ilumina a noite, às vezes quase até parecer dia.
Afastamo-nos da Terra, dos astros, dos animais, das plantas e,
inevitavelmente, uns dos outros e de nós próprios. Preferimos andar a correr
como autómatos, até porque parece que já não temos hipótese de escolher
outra coisa em alternativa Parece!
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Soa-me a parvoíce (mais uma!), mas tantas vezes me ocorre a minha
aldeia, a terra onde nasci, a minha terra, todo aquele envolvimento como o
cenário mais aprazível do mundo. É também o sítio onde nasceram as minhas
memórias mais antigas. As primeiras recordações do cheiro a erva e a terra
molhada, do cheiro a farinha e lenha, do pão acabado de sair do forno, do rio
que era transparente e das suas margens que eram frescas, húmidas e verdes,
onde se pescava, nadava e bebia. Tantas outras! Os cheiros de algumas
pessoas. As suas vozes. Os seus gestos e olhares. A fruta que se apanhava
aqui e ali. Os poços enigmáticos. As hortas viçosas. Tantas outras
recordações, tantas outras! Esse sítio, mesmo sem grande graça, é o melhor
do mundo. A poeira daqueles campos e o pulsar daqueles ritmos estão-me nas
veias. Sou parte daquilo. É aquela a única paisagem do mundo que me faz
mesmo chorar, que contemplo sem pestanejar, respirando-a bem fundo para
que me invada por dentro, e possa assim levar mais um bocadinho daquele ar,
daquele pó, daquele cheiro e de outras coisas que lá existem, que eu sinto, que
não têm forma nem nome. E ainda bem! Desgraçados nomes, desgraçadas
palavras! Os meus olhos varrem vagarosamente aqueles lugares, e evito
pensar para não os estragar. Estupidamente, algo parece dizer-me que era ali
que eu devia ter sempre ficado, ou que é ali que eu devo voltar sempre.
(…)