Quando as coisas vão erradas não pense que todos os seus esforços têm sido em vão.
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UMA ANÁLISE FUNCIONAL DA MODALIDADE DEÔNTICA NOS CONTOS
DE EDGAR ALLAN POE
Larisse Carvalho de OLIVEIRA
Secretaria de Educação do Ceará
Maria de Fátima de Sousa LOPES
Secretaria de Educação do Município de Eusébio
RESUMO
Em decorrência do crescente fluxo de estudos funcionalistas da linguagem em diversas áreas do
saber, a Literatura nos pareceu uma ótima manifestação linguística para a realização de uma
análise funcional. Dessa forma, prestamo-nos a analisar alguns textos de Edgar Allan Poe, autor
americano do período romântico de seu país. Partindo do pressuposto da importância da teoria
funcionalista para análise linguística e do gênero conto ser uma narrativa breve, propusemo-nos
a investigar a modalidade deôntica nos contos“O Coração Delator” (1843), “O Gato Preto”
(1843), “O Caso do Senhor Valdemar” (1845), “O Barril de Amontilado” (1846) e “A Queda da
Casa de Usher” (1839), a fim de analisarmos as possíveis “argumentações” do narrador, que
aparece, frequentemente, em primeira pessoa, sendo essa uma das principais características dos
contos de Poe. Para a realização da análise, utilizamos uma abordagem funcionalista da
modalidade, partindo da compreensão de que os enunciados comunicativos dependem em parte
das reais intenções do falante/autor em relação ao que espera ser compartilhado pelo
ouvinte/leitor. Embasamo-nos nos trabalhos de Lopes (2009, 2012), Nogueira & Lopes (2011)
Pessoa (2011), Lyons (1977), Palmer (1986), além do aparato funcionalista fornecido por Neves
(1997). Analisamos qualitativamente o uso dos modalizadores, de modo a identificar os valores
modais que as ocorrências adquiriram no texto, comparando-as por caso (narrador, personagem-
narrador e personagem secundário). Avaliamos ainda o nível de obrigação exercido pelos
personagens, priorizando àqueles com a função de narrador-personagem, que exerce maior força
sobre o leitor, transpondo-o para dentro da história e fazendo dele seu narratário. Detectamos 25
ocorrências da modalidade deôntica nos textos observados, e constatamos que o narrador-
personagem se impõe ao leitor indagando qual seria a atitude do mesmo frente aos fatos
narrados, gerando no leitor uma obrigação a tomar o seu lugar dentro da obra. É possível pensar,
assim, que os narradores idealizados de Poe indagam o leitor se as ações da narrativa são certas
ou erradas, mesmo agindo na sua loucura/obsessão. Por fim, esse trabalho contribui para os
estudos funcionalistas da modalidade, fazendo o leitor melhor compreender os efeitos de sentido
que certas expressões modais possuem em textos literários.
Palavras-chave: Funcionalismo, Modalidade Deôntica, Edgar Allan Poe
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Seguindo a ótica de que todo texto produzido por determinado autor tem uma
função, seja ele literário ou não, optamos por trabalhar com os estudos funcionalistas,
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que se encontram em significativo crescimento e com um dos ramos da modalidade, a
deôntica. Esta última nos ajudará a identificar o grau de obrigação imposto pelo
narrador, ou por um personagem nos textos que analisaremos. Para tanto, focalizamos
nossos estudos sobre um conciso corpus, composto de cinco contos de Edgar Allan Poe.
Analisamos qualitativamente o uso dos modalizadores no decorrer dos textos,
de modo a identificar os valores modais que as ocorrências adquiriram no texto,
comparando-as por caso, quais sejam: narrador, personagem central, personagem
secundário, para traçar como esses se correlacionam no transcurso dos contos do autor
americano já citado.
O presente trabalho está dividido em seis partes. A seguinte a esta seção,
aborda concisamente alguns traços da vertente funcionalista ligada aos preceitos de
língua como forma de interação e meio comunicativo propostos por Dik (1989) e sua
importância; em seguida trazemos uma tentativa de definição do que seja a modalidade,
focalizando na modalidade deôntica, explorando os conceitos de Palmer (1986) e Lyons
(1977), além de usarmos os trabalhos de Lopes (2009, 2012); posteriormente é exposto
como nosso trabalho foi realizado. Para melhor compreensão do leitos, abordamos o
que seria conto, com base em Todorov (2004 ), versando sobre algumas peculiaridades
do gênero literário trabalhado em questão.
Terminamos com nossas considerações finais, que cremos ser importantes para
o crescimento dos estudos relativos à modalidade que caminham juntamente com o
texto literário.
2. FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO
Frente a grande preocupação de se trabalhar os aspectos estruturais da língua,
por vezes, esquecemos de verificar as outras características da língua, tanto a falada
quanto a escrita. Nesse artigo trabalhamos a partir da perspectiva da gramática
funcionalista, uma vez que vemos a possibilidade de se associar a teoria à análise da
língua, com base em textos literários.
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A teoria funcionalista prega que as particularidades de cada língua são
classificadas e internalizadas em relação ao papel que desempenham durante a
comunicação, ou seja, qual função representa no discurso, na interação com outro
falante. Desentendimentos entre classificações de termos que existem na gramática
funcionalista, são constantes. No entanto, NEVES (1997, p. 15) traz uma definição de
fácil compreensão acerca do que se entende como uma gramática funcional: “Uma
teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma
teoria global da interação social.”. Assim a gramática funcional acredita na “capacidade
que os indivíduos têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também de
usar e interpretar essas expressões de uma maneira internacionalmente satisfatória.”
(NEVES, 1997, p. 15), o que viabiliza o trabalho com a teoria de forma aplicada, pondo
em prática o aparato teórico proposto.
Concordamos com Dik (1989), que também segue a linha moderada, que o
funcionalismo assume uma abordagem linguística que tem seu alicerce nas propriedades
dos discursos com propósitos comunicativos, ou seja, a interação, o uso e
explicitamente a finalidade, levando em consideração a intenção, do falante.
Partindo do ponto, no qual a teoria funcionalista colabora com a análise
lingüística e do formato contido do conto, utilizaremos como categoria linguística de
análise a modalidade deôntica, a fim de se poder para analisar as “argumentações” do
narrador, o qual aparecerá, na maioria das vezes, em primeira pessoa, outra das
principais características dos contos de Poe.
3. O QUE É MODALIDADE
Sabemos que nosso discurso pode ser entendido de diversas maneiras
dependendo do modo que nos exprimimos. A modalidade diz respeito à forma de como
dizemos algo e de como veiculamos nosso desejo ou opinião a mesma. Quando Lopes
(2009) disserta sobre os diversos autores que trabalha como o tema como Palmer (1989)
e Hengeveld (1988), deparamo-nos com a definição de Lyons (1977), que determina
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modalidade da seguinte forma “um meio de expressar sua opinião ou atitude em relação
à proposição que a sentença expressa ou a situação que a proposição descreve”.
2.1 Modalidade Deôntica
De acordo com Comparini (1991), o termo deôntico é originário do grego
(déon = o que é obrigatório) e faz referência à lógica da obrigação e da permissão.
Assim, a modalidade deôntica diz respeito a todos os elementos linguísticos persuasivos
que impõem sutilmente ao ouvinte noções de obrigação, permissão e proibição (sendo
esta a negação de uma permissão).
Este tipo de modalidade, por vezes instaurada despercebidamente, tanto na
oralidade quanto na escrita, é manifestante de intenções no meio comunicativo, e atua
com bastante relevância na efetividade da interação comunicativa, principalmente
quando a intenção do locutor vai além de informar, chegando a agir sobre o interlocutor,
para fazê-lo proceder como desejado.
Lyons (1977) diz que o termo deôntico é amplamente usado por filósofos para
se referir a um ramo particular ou extensão da lógica modal: a lógica da obrigação e da
permissão. A modalidade deôntica, assim, situada no domínio do dever, é caracterizada
como aquela relacionada aos eixos do obrigatório, do proibido e do permitido, e suas
respectivas negações. Portanto, é possível afirmar que a modalidade deôntica abarca
expressões que fazem referência a uma norma ou critério de julgamento social ou
individual, embasados no registro do dever, da obrigação.
Para Lyons (1977), a origem da modalidade deôntica diz respeito à função
instrumental da linguagem, que de um lado expressa ou indica o querer e o desejo, e de
outro faz com que as ‘coisas aconteçam’ por meio da imposição da intenção, do desejo e
da vontade de seus agentes. Ela está preocupada com a necessidade dos atos
performados por esses agentes moralmente responsáveis. Ressalta ainda a importância
da ‘necessidade deôntica’, que colabora para diferenciar um enunciado deôntico de um
epistêmico. Quando o agente, sob o qual é dirigida a ordem, se propõe a executar o que
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lhe foi requerido, esse reconhece a autoridade do emissor – seja esse uma instituição, ou
um outro falante – e avalia a sua responsabilidade de cumprir o que foi solicitado.
De acordo com Palmer (1986, p. 96), a modalidade deôntica seria o tipo de
modalidade que inclui o elemento da vontade. Ou seja, aquela no qual fosse expressa a
vontade do falante sobre o ouvinte ou sobre alguma coisa. É possível ainda associarmos
as noções de obrigação e permissão ao da modalidade deôntica, e como acrescenta
Pessoa (2011), a modalidade deôntica se insere no que é permitido legal, e social
moralmente aceito.
3.1.1 Meios de expressão
A modalidade deôntica pode ser manifestada por diversas expressões
linguísticas. A mais recorrente, e visível nos trabalhos de Pessoa (2011), Meneses
(2006), Lopes (2009) e Oliveira (2012) é o verbo auxiliar modal, no entanto, vale
ressaltar, que sua manifestação não se restringe somente aos verbos auxiliares modais,
mas a toda expressão que instaura os valores de obrigação, permissão e proibição de
forma a agir sobre o leitor, na tentativa de convencê-lo a determinado posicionamento.
Dessa forma, as expressões linguísticas que instauram a modalidade deôntica
podem ser configuradas por meio dos verbos auxiliares ou modais: tem que/tem de,
precisa, necessita, pode/não pode, deve/não deve, verbos plenos, adjetivos, substantivos,
adjetivo em função predicativa e advérbios.
3.1.2 Valor, fonte e alvo
Os valores deônticos podem ser divididos em obrigação/negação da obrigação;
permissão/negação da permissão; proibição/negação de proibição. A fonte diz respeito
aquele qualificado como enunciador, ou seja, aquele que fará uso de algum dos valores
deônticos em sua expressão. O alvo refere-se aquele que recebe a mensagem, ou a qual
a mesma é dirigida.
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O alvo deôntico, na maioria dos trabalhos voltados para o estudo da
modalidade deôntica, estudam-no de modo bipartido (individuo/instituição). No entanto,
Lyons (1977) faz uma divisão tripartida do alvo, dividindo-o em: instituição, individuo,
não-especificado. Pessoa (2011, p. 86) divide o alvo deôntico em cinco tipos: (i)
enunciador (falante) (ii) domínio comum, (iii) coenunciador, (iv) terceira pessoa
(instituição, indivíduo) e (v) não-especificado/ terceiro-ausente. O alvo do valor
deôntico instaurado pode ser o próprio enunciador; o domínio comum, quando se
percebe a inclusão da comunidade na qual está inserido o leitor; o coenunciador, ou
seja, o leitor com quem o autor dialoga; e um terceiro-ausente, quando não se especifica
o alvo, apenas a ação desejada, como nos casos de adjetivos em posição predicativa.
No caso da fonte deôntica, apoiada em Lyons (1977), Pessoa (2011) também
faz uma divisão tripartida da fonte, consistindo em (i) enunciador (falante), (ii) terceiro-
reportado (instituição, individuo ou não-especificada), (iii) inexistente. A mesma ainda
complementa que “a fonte do valor deôntico pode ser o próprio falante, o que marcaria
sua subjetividade; um terceiro que é reportado pelo enunciador, podendo ser uma
instituição ou um indivíduo, ou não-especificada, cuja escolha visaria à criação de
efeitos de sentido na construção discursiva; ou inexistente, nos casos em que algo de
ordem externa, como leis da natureza, impõem-se por si mesmas.” (PESSOA, 2011, p.
86).
4. METODOLOGIA
Como trabalhamos com textos literários, especificamente o conto, já que é uma
narrativa curta, escolhemos, para a nossa análise, alguns dos contos de Edgar Allan Poe.
O autor é considerado um dos maiores representantes do romantismo americano, além
de ser reconhecido por modificar os moldes do conto, transformando o gênero ao que é
hoje, como diz H.P. Lovecraft (2008).
Julgamos necessário considerar os critérios explicitados por Lakatos (1991,
2003) e Gil (2008) quanto aos passos metodológicos que foram usados, para melhor
compreensão por parte do leitor.
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Desta forma, classificamos o nosso método de abordagem como método de
abordagem indutivo/descritivo, declarando que nosso estudo teve como base, inicial, a
análise e a descrição dos dados de nosso corpus, cinco (5) contos do autor jpa citado,
para assim conseguirmos, cientificamente, pela análise dos meios linguísticos, amparar
empiricamente nossos resultados.
De acordo com a classificação de Gil (2008) e Lakatos & Marconi (2003),
incluiremos nossos estudos no campo das pesquisas descritivas e bibliográficas. Como
nosso objetivo é analisar e descrever expressões linguísticas levando em consideração o
valor intencional dessas a partir dos atos de fala que carregam.
Uma vez que Poe se destaca com seus contos de horror e mistério,
escolhemos cinco de seus contos, que totalizam 19.130 palavras. O Quadro 1 nos
mostra os títulos com os quais trabalhamos, bem como a quantidade de palavras em
cada um deles.
CONTOS1 Nº DE
PALAVRAS
C12- O Coração Delator (The Tell-Tale Heart) 2022
C2- O Gato Preto (The Black Cat) 3642
C3- O Caso do Senhor Valdemar (The Facts in the
Case of Mr. Valdemar)
3298
C4- O Barril de Amontilado (The Cask of
Amontilado)
2191
C5- A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House
of Usher)
7977
TOTAL 19130
Quadro 1: Quantidade de palavras nos contos de Edgar Allan Poe
Depois dessa contabilização, passamos a análise do corpus:
a) Leitura do corpus
1 Todas as obras em português são referentes aos livros virtuais organizados pela Virtual Books
Online M&M Editores Ltda., 2003. 2 Utilizaremos a numeração a seguir para evitar a repetição excessiva dos títulos.
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Primeiramente, selecionamos os cinco contos, já citados, da obra de Edgar
Allan Poe. Após a leitura, retiramos as possíveis ocorrências que diziam
respeito à modalidade deôntica, não atentando para os valores de cada uma.
b) Identificação das ocorrências de modalizadores deônticos no corpus.
Após a contagem e qualificação das ocorrências, identificamos aquelas
concernentes à modalidade deôntica, isto é, aquelas que traziam alguma
intenção do narrador ou de suas personagens impostas a outros.
c) Estabelecimento das variáveis: I Valor deôntico – aquelas que exprimem
ideia de obrigação, proibição e/ou permissão; II Meio de expressão – são as
variáveis em forma de auxiliar modal, verbo pleno, adjetivo, substantivo e
ou advérbio; III Tipo de personagem (narrador-personagem ou
personagem) (Fonte deôntica) – será o enunciador da mensagem, a qual
exprime valor deôntico a outrem; IV Alvo deôntico (narrador-personagem
ou personagem) – o qual será dirigido a mensagem.
4.1 O Conto
Resumindo a abordagem feita por MOISÉS (2004), podemos dizer que o
conto é uma narrativa curta, que remonta aos primórdios da arte literária. O vocábulo
“conto” sofreu variações ao longo da história: antes designava o relato de casos, sem
propriamente vincular-se a expressão literária. Dentre todas as suas mudanças uma das
mais importantes será a sua autonomia perante o romance e a novela, por volta do
século XIX.
Como já havíamos dito, o conto é uma narrativa breve, que, sendo curta,
contém apenas um só drama/história/conflito, a partir do qual decorreram os fatores
problemáticos da narrativa. É conciso e possui os mesmos caracteres do romance, no
entanto evita as explicações e análises psicológicas dos personagens, seu enredo não
permite maiores complicações. Majoritariamente veremos que o conto se desenvolverá
em torno de uma só personagem.
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5. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Para facilitar a compreensão da nossa pesquisa, dividimos a análise em quatro
partes: meios de expressão, valor deôntico, fonte deôntica, alvo deôntico. Mostraremos
algumas partes do nosso corpus de modo qualitativo, uma vez que nossos estudos são
ainda iniciais.
5.1. Meios de expressão
Na análise parcial do corpus, constatamos o uso de diversos meios para
expressão: (i) auxiliares modais (poder, dever); adjetivos (necessário); verbos plenos e
imperativos.
Meios de expressão Resultado
Verbo auxiliar 21
Verbo pleno 4
Adjetivo 1
Total 26
Quadro 1 – Meios de expressão da modalidade deôntica
O primeiro conto (C1) traz a história de um jovem que obsecado pelo olho de
seu patrão que tinha catarata, tenta livrar-se de sua ‘perseguição’ matando-o. Ao fim
história é preso e condenado a morte. A narração da história é feita em flashback, tudo
já tem acontecido, quando o jovem começa a nos contar os fatos.
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(1) Deveria ter visto como procedi cautamente! Com que prudência...com que
previsão. . . com que dissimulação lancei mãos à obra! (C13).
Na ocorrência (1), percebemos o uso do auxiliar modal “dever”, no futuro do
pretérito do indicativo para instaurar uma obrigação. O personagem-narrador, como
comumente aparece nos textos do gênero fantástico4, é de primeira pessoa. Nos
trabalhos de Edgar Allan Poe isso é comum. Na ocorrência (1) é como se o narrador-
personagem trouxesse mais e mais o leitor para dentro da obra, fazendo-o pensar como
ele, narrador.
(2) Prestais-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso, sou. [... ] Julguei que o
coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser
ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado!
Em (2), é possível notar como o narrador se porta diretamente ao leitor,
utilizando-se de um imperativo para chamar sua atenção. Este é o exato momento em
que o narrador-personagem está no quarto de seu patrão e decide matá-lo, depois que o
velho acorda. Após ter espreitado por dias no silêncio do quarto da vítima sem ter sido
percebido.
Em C2, temos um narrador tomado pela raiva, que decide se vingar de seu
‘amigo’ Fortunato. O narrador não nos conta o que aquele fizera, fala-se de insultos.
Sem suspeitar de nada Fortunato bêbado, acompanha o narrador até a sua casa. O leitor
é surpreso pelas ações do narrador que o empareda sem nenhum problema se deliciando
com os últimos suspiros de Fortunato.
(3) Eu devia não só punir, mas punir com impunidade. (C2)
Em (3), o mesmo auxiliar (devia), aparece para mostrar o grau de obrigação
que o narrador se impõe. Essa passagem acontece logo no início do conto quando o
3 Numeração referente a numeração dos contos.
4 Gênero literário conhecido por fazer o leitor hesitar sobre se o que está lendo seja verdadeiro
ou não. Uma das obras mais conhecidas sobre o gênero é da autoria de Tzvetan Todorov –
Introdução à literarua fantástica.
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narrador chega ainda a se portar ao leitor “Vós, que tão bem conheceis a natureza de
minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi alguma ameaça.” (C2).
5.2. Valores deônticos
Como já explicado na seção 4, valor deôntico são as ideias expressas pelos
meios de expressão.
Valores modais Resultado
Proibição 5
Obrigação 14
Permissão 7
Total 26
Quadro 2 – Valores deônticos e seus resultados
Em (C4), encontraremos o caso de Roderick Usher e sua irmã gêmea Madeline.
O narrador, que não é nomeado contanos como foi contactado por Usher. A casa que
sempre pertencera a família parecia ter vida própria, os irmãos pareciam presos.
Madeline sofria de epilepsia e Usher de hipersensitividade, ambos agiam estranhamente.
Certa noite, Usher conta ao nosso narrador que sua irmã está morta. Pede ajuda para
colocá-la numa espécie de porão da mansão. O narrador suspeita que ela esteja viva,
mas não se opõe. Dias depois Madeline aparece coberta de sangue, Usher consternado
morre, talvez de um ataque cardíaco (no conto, o narrador relembra o medo que Usher
sentia). Quando os irmãos morrem nos braços um do outro, a casa desmorona. O
narrador sai correndo e a história chega ao fim.
Em (4), estamos diante de uma fala de Usher, quando fala do seu terrível medo
do futuro, dos efeitos que esse traga “Tenho medo dos acontecimentos futuros, não por
eles mesmos, mas por seus efeitos. [...]. Na verdade, não tenho aversão ao perigo,
exceto no seu efeito absoluto – no terror. ” Ou seja, a sua morte é tratada pelo mesmo
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como uma obrigação. Ele tinha que morrer de uma deplorável loucura, que ao fim
sabemos que o medo, o terror que sentiu ao ver sua irmã ‘ressuscitar’ e encaminhar-se
para os seus braços.
(4) Vou morrer, disse-me ele, tenho de morrer desta deplorável loucura. (C5)
De acordo com Pessoa-Prata (2011), e Almeida (1988), temos que:
“os valores deônticos de obrigação e proibição podem ser
internos/morais, quando envolvem o dever de consciência,
profissional[...]ou externas/materias, que se fundamentam numa
necessidade natural, física, biológica ou fisiológica, decorrentes,
portanto, de circunstâncias externas.” (p. 59)
Quando Roderick utiliza-se do ‘ter de’ esprime uma obrigação para consigo de
ordem externa. Podemos nos perguntar como isso é possível, mas ao analizarmos o
conto profundamente, percebemos que Roderick e Madeline eram como um só, assim
também como a casa dos Ushers. Todos estavam conectados, e os efeitos tão temidos
por Roderick o levaram a morte.
5.3. Fonte deôntica
Tendo em vista que a fonte deôntica condiz com o responsável por emitir o
conteúdo comunicado, identificamos em todas as ocorrências a predominância da fonte
enunciador, visto que o texto é escrito, na sua maioria, em primeira pessoa, deixando o
narrador-personagem guiar a narrativa. Assim, visualizamos 26 ocorrências com o tipo
de fonte enunciador, totalizando 100% do corpus analisado.
Fonte Resultado
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Enunciador 26
Total 26
Quadro 3 – Fonte deôntica e seus resultados
Vejamos um recorte para aclarar o exposto:
(5) Eu devia não só punir, mas punir com impunidade. (p. 1 – pf 01)
Vê-se claramente a presença da primeira pessoa no recorte acima, marcando a
presença de uma fonte enunciadora, em que o narrador enuncia os feitos focalizados na
narrativa a um determinado alvo, na maioria das vezes prevalecendo a primeira pessoa.
Filha, Lopes e Oliveira (2014), constaram em seu trabalho com o discurso midiático-
médico, que “a manifestação deôntica de proibição e de permissão (pode) ser mais
significativa do que a de obrigação, uma vez que a personagem principal tem o poder
de permitir e/ou proibir as ações [...]”. Ou seja, é o narrador que instrui o leitor sobre
o deverá ser levado em consideração, ou não.
5.4. Alvo deôntico
Com relação ao alvo deôntico, verificamos a ocorrência predominante do tipo
domínio comum, com 65,3%. Fato este motivado em decorrência do público com o qual
o narrador interage. Esse público ora se mostra como domínio comum, em que o
discurso é dirigido ao leitor, de forma geral, ora o narrador faz referência a uma terceira
pessoa do discurso e, por vezes, interage dentro da narrativa, com o que configuramos
coenunciador. Vejamos a tabela abaixo:
Alvo Resultado
Domínio comum 17
Coenunciador 4
Terceira pessoa 5
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Quadro 4 – Alvo deôntico e seus resultados
Com base nestes dados, expomos os sintagmas abaixo:
(6) Torna-se agora necessário que eu exponha os fatos - até onde alcança minha
compreensão dos mesmos. (p1 pf 2)
(7) Prestais-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso, sou. [... ]. Julguei que o
coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser
ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! (p.03 pf. 2)
(8) Você pode bem vir agora. D… e F… concordam em que não posso durar além
da meia noite de amanhã, e penso que eles acertaram no cálculo com grande
aproximação. (p2 pf 03)
Em (6), notamos que a conteúdo comunicado está direcionado ao leitor, de
forma generalizada, não ocorrendo isso em (7), visto que o enunciador promove uma
interação, estabelecida pela interrogação. Já em (8), estabelece-se a dúvida entre terceira
pessoa e coenunciador, uma vez que, embora haja interação, o discurso se volta também
a um destinatário direto. A modalidade deôntica, como relata Oliveira (2014), parece
“acarretar maior carga semântica aos modais, transportando o teor volitivo de sua
fonte para com seu alvo, por vezes mitigando ou asseverando aquilo exposto.” Nessa
citação, não há mitigação, no entanto, a permissão dada é branda.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Total 26
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Ao londo dese estudo tratamos dos conceitos referentes à modalidade deôntica,
aquela da conduta, para tratarmos da postura do narrador-personagem de cinco contos
de Edgar Allan Poe. Expomos nas seções anteriores, conceitos que suportam a nossa
análise, o percurso metodológico seguido para tando, e também os resultados obtidos.
Assim, é possível concluírmos que o narrador-personagem nos trabalhos
analisados de Poe, excerce sem dúvida inclinação de teor deôntico quando tenta
comunicar-se com o leitor. Encontramos em Poe um direcionamento maior para com
aquele que lê os seus contos, do que para com um personagem secundário que
contracene com o mesmo, isso é claramente observado pela presença do alvo domínio
comum.
Dessa forma, a interação com os personagens se faz de forma limitada,
prevalecendo a relação narrador-leitor. Pode-se até pensar que o narrador indaga ao
leitor se o que faz é certo ou errado, mesmo agindo na sua loucura, perseguindo suas
obsessões. Vemos, assim, como a modalidade deôntica nos auxilia na compreensão
semântica do texto literário, ampliando o campo de estudo linguístico-funcional.
REFERÊNCIAS
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GELNE, Natal, RN, 01 a 03 de outubro de 2014 / organizadores Marco Antonio
Martins,Lucrécio Araújo de Sá Júnior e Sulemi Fabiano Campos. Realização Grupo de
Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste- GELNE. - Natal, RN : EDUFRN, 2014. p.695-
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LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2001.
LOPES, M. F. V. A modalidade deôntica na aula de inglês ministrada em português. 2009.
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Ceará, Fortaleza, 2009.
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