Um segredo muito bem guardado

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Abril de 2011 29 O agregador da advocacia www.advocatus.pt Um segredo muito bem guardado Nenhuma empresa ou cidadão português nem o Estado Português até hoje foram partes em arbitragens ICSID – um centro para administrar arbitragens de investimento criado em 1965 pela Convenção de Washington. O desconhecimento dos meios empresariais e jurídicos tem prejudicado seguramente o tecido empresarial português Um dos segredos mais bem guar- dados em Portugal é a existência da Convenção de Washington (1) de 1965 que criou o ICSID, um Centro para administrar arbitragens de in- vestimento. Portugal é um dos 145 Estados signatários (2) . Nos primei- ros tempos (até 1996) o número de arbitragens iniciadas em cada ano nunca ultrapassou as quatro, mas daí para a frente o crescimento foi exponencial. Em 31 de Dezembro de 2010 havia 331 em curso. Com base na convenção, e desde que estejam reunidas certas cir- cunstâncias e condições, qualquer empresa ou cidadão pode obrigar um estado soberano, de que não seja nacional, a submeter-se a uma arbitragem internacional. Nenhuma empresa ou cidadão português nem o Estado português, até hoje, foram partes em arbitragens ICSID. Talvez por isso, desde 1997 que Portugal não indicava os quatro membros a que tem direito para integrar as listas de árbitros e de conciliadores da IC- SID, o que só ocorreu, já em 2011. O desconhecimento dos meios empre- sariais e jurídicos tem prejudicado seguramente o tecido empresarial português. A Convenção de Washington visa re- forçar a cooperação económica e o investimento privado internacionais, aumentando a confiança dos inves- tidores. No mesmo sentido, têm sido assinados milhares de Tratados Bila- terais de Investimento (BIT) ou Trata- dos Multilaterais (como a Charter of Energy, o Nafta, etc) que são, aliás, a principal fonte das arbitragens ICSID. No centro do sistema está a noção de “investimento”. A definição, con- troversa, inclui activos mobiliários e imobiliários, direitos derivados de José Miguel Júdice Sócio fundador da PLMJ. Responsável pelas áreas de prática de Contencioso e Arbitragem do escritório “A Convenção de Washington visa reforçar a cooperação económica e o investimento privado internacionais, aumentando a confiança dos investidores” “Portugal é um pequeno país que não pode exercer a ‘política de canhoneiras’ e a própria ‘protecção diplomática’ tem limitações. Os instrumentos de Direito Internacional são por isso muito importantes e devem ser conhecidos” acções, obrigações e participações em joint ventures, direitos imateriais como a Propriedade Intelectual, di- reitos originados de contratos com entidades públicas (concessões, explorações mineiras e de recursos naturais, etc.) e até reclamações de meios financeiros com valor econó- mico. Para determinar a relevância de um “investimento” costuma aplicar-se o chamado Salini Test, que exige uma entrada em dinheiro ou activos, duração e risco. Por vezes adita-se ainda que o investimento seja feito de boa-fé, constitua uma actividade económica, respeite as leis do Esta- do de acolhimento e que contribua para o seu desenvolvimento. Se por tratamento que não seja jus- to e equitativo ( fair and equal treate- ment), um estado lesar uma entidade estrangeira, será condenado a com- pensar os danos que causou, in- cluindo-se lucros cessantes, “perda de chance” ou perda de benefícios económicos. As situações concretas que justi- ficam o procedimento podem ser muito variadas. Por exemplo, confis- co, nacionalização ou expropriação (incluindo a chamada expropriação económica, quando o valor econó- mico diminui por alterações de regras fiscais, ambientais ou regulatórias em geral), medidas discriminatórias, limitações a importações ou expor- tações, tarifas e impostos despro- porcionados ou retirada de subsídios à produção e/ou à exportação não previstos no modelo de negócio de investimentos contratuais, harass- ment ou coacção a empresas por in- vestigações ou inspecções despro- porcionais, corrupção, denegação de justiça por tribunais (3) , efeitos de situações de caos e guerra civil (4) , etc. A evolução da cena internacional, bem patente nos eventos do Norte de África, as restrições orçamentais que provocam redução de subsídios contratados e a própria tendência crescente para a autarcia econó- mica, tornam muito importante a divulgação desta convenção e do sistema ICSID (5) . Até porque Portugal é um pequeno país que não pode exercer a “política de canhoneiras” e a própria “protecção diplomática” tem limitações. Os instrumentos de Direito Internacional são por isso muito importantes e devem ser co- nhecidos. 1 “Convenção para a Resolução de Diferen- dos Relativos a Investimentos entre Esta- dos e Nacionais de Outros Estados”. 2 Também o são Moçambique, Cabo Verde, Timor-Leste e S. Tomé e Príncipe, embora este último ainda não tenha ratificado a Convenção. 3 Por exemplo em “Chevron-Texaco contra Equador”. 4 No muito recente caso “RSM Petroleum contra a República Central Africana”, um tribunal arbitral ICSID considerou relevante a invocação de “força maior” como razão para suspender deveres contratuais em re- lação a esse país africano. 5 A Associação Comercial de Lisboa e a Associação Portuguesa de Arbitragem vai levar a efeito no dia 14 de Abril de manhã, na sede da primeira, um seminário realiza- do pelos membros nomeados por Portugal para as listas ICSID, entre os quais o signa- tário, com a intenção de divulgar o assunto. Arbitragem

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Abril de 2011 29O agregador da advocacia

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UmsegredomuitobemguardadoNenhuma empresa ou cidadão português nem o Estado Português até hoje foram partes em arbitragens ICSID – um centro para administrar arbitragens de investimento criado em 1965 pela Convenção de Washington. O desconhecimento dos meios empresariais e jurídicos tem prejudicado seguramente o tecido empresarial português

Um dos segredos mais bem guar-dados em Portugal é a existência da Convenção de Washington(1) de 1965 que criou o ICSID, um Centro para administrar arbitragens de in-vestimento. Portugal é um dos 145 Estados signatários(2). Nos primei-ros tempos (até 1996) o número de arbitragens iniciadas em cada ano nunca ultrapassou as quatro, mas daí para a frente o crescimento foi exponencial. Em 31 de Dezembro de 2010 havia 331 em curso.Com base na convenção, e desde que estejam reunidas certas cir-cunstâncias e condições, qualquer empresa ou cidadão pode obrigar um estado soberano, de que não seja nacional, a submeter-se a uma arbitragem internacional. Nenhuma empresa ou cidadão português nem o Estado português, até hoje, foram partes em arbitragens ICSID. Talvez por isso, desde 1997 que Portugal não indicava os quatro membros a que tem direito para integrar as listas de árbitros e de conciliadores da IC-SID, o que só ocorreu, já em 2011. O desconhecimento dos meios empre-sariais e jurídicos tem prejudicado seguramente o tecido empresarial português.A Convenção de Washington visa re-forçar a cooperação económica e o investimento privado internacionais, aumentando a confiança dos inves-tidores. No mesmo sentido, têm sido assinados milhares de Tratados Bila-terais de Investimento (BIT) ou Trata-dos Multilaterais (como a Charter of Energy, o Nafta, etc) que são, aliás, a principal fonte das arbitragens ICSID.No centro do sistema está a noção de “investimento”. A definição, con-troversa, inclui activos mobiliários e imobiliários, direitos derivados de

José Miguel Júdice

Sócio fundador da PLMJ. Responsável pelas áreas de prática

de Contencioso e Arbitragem do escritório

“A Convenção de Washington visa reforçar a cooperação económica

e o investimento privado internacionais,

aumentando a confiança dos investidores”

“Portugal é um pequeno país que não pode

exercer a ‘política de canhoneiras’ e a própria ‘protecção diplomática’

tem limitações. Os instrumentos de Direito Internacional são por

isso muito importantes e devem ser conhecidos”

acções, obrigações e participações em joint ventures, direitos imateriais como a Propriedade Intelectual, di-reitos originados de contratos com entidades públicas (concessões, explorações mineiras e de recursos naturais, etc.) e até reclamações de meios financeiros com valor econó-mico. Para determinar a relevância de um “investimento” costuma aplicar-se o chamado Salini Test, que exige uma entrada em dinheiro ou activos, duração e risco. Por vezes adita-se ainda que o investimento seja feito de boa-fé, constitua uma actividade económica, respeite as leis do Esta-do de acolhimento e que contribua para o seu desenvolvimento.Se por tratamento que não seja jus-to e equitativo (fair and equal treate-ment), um estado lesar uma entidade estrangeira, será condenado a com-pensar os danos que causou, in-cluindo-se lucros cessantes, “perda de chance” ou perda de benefícios económicos.As situações concretas que justi-ficam o procedimento podem ser muito variadas. Por exemplo, confis-co, nacionalização ou expropriação (incluindo a chamada expropriação económica, quando o valor econó-mico diminui por alterações de regras fiscais, ambientais ou regulatórias em geral), medidas discriminatórias, limitações a importações ou expor-tações, tarifas e impostos despro-porcionados ou retirada de subsídios à produção e/ou à exportação não previstos no modelo de negócio de investimentos contratuais, harass-ment ou coacção a empresas por in-vestigações ou inspecções despro-porcionais, corrupção, denegação de justiça por tribunais(3), efeitos de situações de caos e guerra civil(4), etc.

A evolução da cena internacional, bem patente nos eventos do Norte de África, as restrições orçamentais que provocam redução de subsídios contratados e a própria tendência crescente para a autarcia econó-mica, tornam muito importante a divulgação desta convenção e do sistema ICSID(5). Até porque Portugal é um pequeno país que não pode exercer a “política de canhoneiras” e a própria “protecção diplomática” tem limitações. Os instrumentos de Direito Internacional são por isso muito importantes e devem ser co-nhecidos.

1 “Convenção para a Resolução de Diferen-dos Relativos a Investimentos entre Esta-dos e Nacionais de Outros Estados”.

2 Também o são Moçambique, Cabo Verde, Timor-Leste e S. Tomé e Príncipe, embora este último ainda não tenha ratificado a Convenção.

3 Por exemplo em “Chevron-Texaco contra Equador”.

4 No muito recente caso “RSM Petroleum contra a República Central Africana”, um tribunal arbitral ICSID considerou relevante a invocação de “força maior” como razão para suspender deveres contratuais em re-lação a esse país africano.

5 A Associação Comercial de Lisboa e a Associação Portuguesa de Arbitragem vai levar a efeito no dia 14 de Abril de manhã, na sede da primeira, um seminário realiza-do pelos membros nomeados por Portugal para as listas ICSID, entre os quais o signa-tário, com a intenção de divulgar o assunto.

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