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QU4RTO

UM R35T0 D3 C4F3 FR10 [volume IV]

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Volmar Camargo Junior Um resto de café frio

volume IV

“QU4RTO”

Serra Gaúcha – RS - Brasil

janeiro a junho de 2010

http://restodecafefrio.blogspot.com

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Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?) (...)

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Tabacaria

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Maria de Fátima Santos*

As palavras dele ficam(-me) como entidades

Fazem (-se) gumes e tranças e cadeiras, alforrecas que sejam, ou mariposas, que a palavra dele, meus senhores tu, aí, criaturinha em busca de significados, velho de rugas repletas de perguntas jovens, crê que a palavra do poeta é diversa, e não há não existe palavra mais palavra do que a palavra do poeta.

Ela atravessa as almas a dizer o que a gente nem sabe que sente. São assim as palavras dele.

E nem se cria tal: eu nem sou poeta eu sou talhado neste chão de serra e acidente o meu é só palavrejar e nem me é veio de longe herdei-o de meus tri(tetra) avós de quem carrego o canto

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E a confirmar-se: eu não sou senão o que penso e o que sei e é tão pouco não me interrogo aos deuses nem aos filósofos.

Ele a esbracejar no universo mago ele a deixar marca fosse oceano ou água de banho, fosse estrela, alma de gente ou alma de escaravelho.

Poeta sim senhora, segredavam-lhe as letras baralhadas, e ele a ensurdecer-se de ouvir a alma que é de onde e soçobrando.

Ele sentado na cadeira duma avó que tinha a beber um mate muito forte.

O homem do olhar grande

O Volm como sempre lhe chamo.

____________ * Maria de Fátima Santos nasceu em Lagos, Algarve, Portugal, em 1948. Viveu a adolescência em Angola e reside em Lagos. Licenciada em Física, é aposentada de professora do Ensino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e por afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas antologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livrinho com pequenas histórias, aquelas que lhe voam no teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilustrações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.blogspot.com. Muito material está publicado nos blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tristeabsurda.blogspot.com.

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1NTR0DUÇ40

Este é o quarto volume que reúne os poemas publicados no blog Um resto

de café frio (http://restodecafefrio.blogspot.com) entre os meses de janeiro a junho de 2010, e é intitulado, simplesmente, QU4RTO. Desde que concluí o terceiro volume de poemas, queria que a coletânea seguinte se chamasse Quarto: por motivo mesmo do numeral; e por causa do substantivo – quarto, cômodo, alcova, dormitório, etc. Gosto de palavras que se inscrevem em mais de um grupo de significados.

O numeral facilmente se explica: trata-se do quarto livro contendo os poemas do blog (o que me surpreende sobremaneira, diga-se de passagem), e tem “algo” de o quarto disco do Led Zeppellin, que não tem nome, mas convenciona-se chamar de “The runas álbum”, ou “4”, ou “The Fourth”, o que também justifica esse formato de encarte de disco. Pensei também em homenagear a Legião Urbana, cujo quarto álbum se chama As quatro estações, mas achei que não têm muito em comum, além da abordagem sexual de alguns dos textos, tanto os meus quanto os do Renato. Já o místico e legendário “4” do Led, no que diz respeito aos temas, não se equivalem. Talvez alguma inspiração, mas nada que se possa (ou que eu possa) observar superficialmente. Fica aí uma deixa para os arqueólogos que encontrarem minha obra no futuro, depois que o mundo acabar, tenham algo para se entreter. Duvido muito que isso algum dia venha a interessar algum estudioso além de meus amigos mais chegados, e no presente; e o único deles que é arqueólogo passa longe de gostar de minha poesia.

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Já a segunda abordagem, o quarto, é de fato a inspiração dos textos desse período: o tanto da vida que se passa dentro de quatro paredes, e, mais especificamente, destas que se convencionou usar para o repouso, mas que acaba sendo o refúgio da intimidade, mesmo que não necessariamente sexual, mas de isolamento, de reflexão, de fuga da convivência. Um apartamento divide, compartimenta, organiza as unidades familiares umas das outras no espaço urbano; mas o quarto faz o mesmo entre as pessoas dentro das residências, definitivas ou temporárias. E ninguém convida outra pessoa para o próprio quarto sem dividir com ela sua intimidade.

Entretanto, esta não é uma coletânea especificamente intimista, ou erótica,

ou sexual, ou, sei lá, numerológica, mística, cabalística ou esotérica. É um número de poemas, que, mais por acaso que por uma meta racional, organizaram-se por conta própria em um grupo de vinte e quatro textos. Divididos entre as seis letras da palavra QUARTO (ou Qu4rto), formam seis grupos de quatro poemas. Números, apenas.

Afinal, retirando-se os habitantes dos quartos, o que resta são apenas as

quatro paredes.

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Q quatro doces

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I

com o tempo e o verão e os mosquitos vem a sensação gostosa da eficiência divina a cada ano somos mais e mais doentes e cheiramos pior o lixo e o horror inundam as ruas e ninguém mais chora de fome

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II

ah, que honra e que delícia viver nos tempos da candura da doçura que é ser penitente mas, ai de nós, quanto mais dura esse frescor e essa rapadura doce e repugnante mais os mosquitos nos rodeiam e mais chegados à beira do açucareiro

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III

que verbo haverá daqui a cem cento e vinte anos, mais ou menos que diga o que houve hoje? quem sabe nem em vernáculo mais se fale e isso seja ultrajante ou repulsivo e até, quem sabe, seja o atrevido punido e será assim tão bom falar dos doces que houve que ninguém lembrará que já nasceu sem dentes

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IV

por pouco muito pouco eu ouvi dizer que o sino não bateu e não havia mais horas o tempo sumiu e ontem e hoje, agora são doces de outrora ninguém viu o tempo, viu, não viu e o gato comeu

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U quatro quartos cada um com três janelas

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primeiro quarto

festa de fogos e de promessas que faz bem e faz mal e faz zerar as horas que deixa um em silêncio funesto enquanto outro rompe a bolsa do calendário e nasce para o mundo com estardalhaço gozará o nasciturno de boa ou má fama existirá à revelia da própria vontade será breve e morrerá como nasceu: ao som de fogos

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segundo quarto

quem nas terras do sul do mundo conhece o espetáculo que nos dá o tempo priva-se mesmo de seus bons modos ante o recital das águas e dos ventos atrasa-se para o primeiro ato e cochila um minuto antes da cena patética ultraja-se o tempo com facilidade ressente-se com a resposta ao seu monólogo e novamente esbraveja, troveja e cospe no público

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terceiro quarto

ai! terra de olhos verdes que dó que me dá olhá-los tenho medo só de pensar que de tanto olhar o verde gaste e ficar sem uma palavra que diga dessa terra a beleza dos olhos os meus que são olhos bugres não veem senão as coisas que são de ver choram uma saudade triste que ainda nem começou

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último quarto

eis outra vez o verão, é o que vês murmura aos quatro quartos da frente alguém que chegou pelos fundos esparrama-se sem cerimônias pelos corredores e tasca logo um beijo no pescoço da dona da casa (ui! que calor! é o que ela fala) bom de papo é esse mulato que entra pelas janelas antes das festas e só vai embora depois do melhor feriado

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4 quatro vértices

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cama

durmo acordas um pouco e me olhas de cantinho olhos e boca com um sorriso - aquele me arrebata e intimida e intima íntimos risos e gozo

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mesa

pão água e pouco sal põe farinha e açúcar e fermento e um pouco de calor temos pão sobre a mesa com um naco de amor língua, sabor, saliva malícia e pudor com raiva e paixão pão

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chão dois só porta e paredes e da janela além, o mundo e bilhões de gentes inexistem por milissegundos milhares de genes muitos cheiros dois sabores misturam-se e são só um

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janela

abro um furo no tempo olho e admiro o infinito termo o universo inteiro pleno contentamento volto-me para dentro parados no tempo do nosso quarto teus cabelos e teus seios contemplo

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R quatro horas

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3:00

dorme-se mal e é preciso preciso acordar de manhã amanhã, que horror, é outro dia

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4:00

o mundo não cabe na rua a rua não cabe nas mãos das mãos, tudo se esvai

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5:00

a terra ergue e sustenta a dor e o medo enrijecem o desespero ri um riso amarelo

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6:00

levanta-te e vê com teus olhos ígneos lambe tua cria com tua ígnea língua e enquanto for dia, sol, ai de ti

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T quatro indrisos

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1.

nudez desejo desatino desamparo despedida desmando destino lucidez

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2.

caso se case se cale se acabe acasale-se acalme-se caiba-se cause

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3.

desperdício desdeoinício desdenhaseolícito desseidílio desígnios dezdedosmínimos dadesmesuradamente descoradadatez

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4.

à importância da ânsia azia à mudança da dança asa à constância stanza

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O quaisquer

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apanágios da noite preta

noites são tecidas como casas e gatos que tomam água na beirada de suas calhas a noite preta joga-se sobre as soleiras das portas nem bem cai já se esparrama colada à tua porta pendurada na tua janela quase sem se mexer olha-te sem que dela te apercebas à tua volta é só ela em tua casa, nem penses não estás livre é tão noite aí dentro quanto lá fora

no arrabalde e no subúrbio a noite é música eventualmente só eventualmente é dia nas ruas da vizinhança das estrelas no todo do Universo ah, meu amigo! é uma noite grande musical, atemporal e preta toda preta

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doce filosofiazinha besta

a felicidade é uma panela grande de brigadeiro pra comer de colher de cafezinho às vezes pra se comer sozinho às vezes pra dividir por inteiro na verdade é uma delícia pra fazer e comer na hora mas se esfriar e grudar na panela, melhora

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muito prazer, poesia

prazer estranho, misturado como deve ser o prazer que se preze um que é um pouco de culpa de egoísmo de “eu no centro do universo” de redenção divina daquela sensação de objetivo alcançado meta cumprida porra, de gozo mesmo! de um desejo que é muito dele de ao mesmo tempo parir um instante que dure para sempre e de engolir sem mastigar os minutos só pelo prazer de começar de novo

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ao Saramago

... e não posso nem desejar que vá com deus, porque eles andavam brigados há quase um século, Vá bem, eu disse, ao que o velho responde sem disfarçar a ironia que divertia tanto a mim quanto a ele mesmo, Vou e te espero, Não esperes muito, Fique então com deus porque me vou, nem tarde nem cedo, mas no tempo justo. E foi. Não sei se fiquei com Deus, porque também nós, eu e Ele, não nos andamos entendendo, mas sei que, por ironia, fiquei sem ele.

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Sobre o autor

Inconformado com a própria inaptidão para dizer algo sem ser através de subterfúgios, Volmar Camargo Junior abdicou de parte de suas horas diárias de sono, tentando domar a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambular pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa, fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por um cenário natural de extrema beleza – Canela, na Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e

doce, descendente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indígenas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio, é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo, torcedor do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. É autor do blog Um resto

de café frio.

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