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Um passo em falso me fez cair por um plano inclinado e a perder Beatriz de

vista. De início, senti como uma queda vertical que quase parou meu coração. Tentava

desesperado agarrar o ar; sentia-me num escorregar interminável, a uma velocidade

louca, sem pontos de referência: havia somente as bordas, desse plano estreito,

afiadas como lâminas de barbear. No entanto, muito vagarosamente, a inclinação

começou a se suavizar, pendendo para a horizontal.

Meu corpo se contorcia, tentando evitar a queda. O calor do atrito fazia com

que minha roupa rasgasse, me provocando dolorosas queimaduras. Caía de joelhos,

sentado, em posição fetal, deitado, de cabeça para baixo, mas logo me colocava de pé

e corria com os braços abertos até ficar sem fôlego. Um novo escorregão, ou o

cansaço, me impulsionava a cair e girar sobre o plano, a deslizar sobre o estômago

com mãos e joelhos, durante minutos ou séculos de um tempo incalculável. Até que

acabei sem roupa, destruída, e com a pele queimada, um tanto endurecida, quando o

plano se tornou quase horizontal. Deteve-me, enfim, sem um grande impacto, o

vértice superior de um triângulo que apareceu cruzando o plano inclinado.

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Apoiado no vértice daquele triângulo, tratei de descansar; porém, a lembrança

de Beatriz me apertou a garganta com a mão de angústia, me incitou a necessidade

de retornar para ela. O plano do triângulo era de uma solidez aparente, que cedia ao

menor desejo. O atravessei com cautela, passando por debaixo da hipotenusa;

agarrado ao cateto vertical, me ergui e avistei, a poucos metros abaixo do plano

inclinado, um outro, vasto e horizontal, que me parecia firme e seguro. Não se

enxergavam seus limites.

Com as mãos duras como pedra, pude me sustentar sem dor na borda do

plano inclinado. Soltei a mão esquerda e me segurei no cateto vertical do triângulo.

Pensei muito antes de soltar a mão direita e passá-la também ao cateto. A descida foi

rápida e simples, mas também dolorosa; alguns cortes atravessavam a grossa camada

da minha pele, fazendo-me sangrar. Até que enfim cheguei ao vasto plano horizontal,

um verdadeiro deserto. Por sorte, o plano se curvava no horizonte, o que me enchia

de esperanças. Comecei a andar, imaginando que se chegasse a um cansaço final sem

ter encontrado nada, ainda teria o recurso de tentar atravessar a matéria deste plano

que agora me sustentava e cair no desconhecido.

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Não havia nenhuma fonte visível de luz; contudo, o lugar inteiro estava

estranhamente iluminado, de maneira perfeitamente igual, mas nem meu corpo, nem

os outros objetos que encontrei mais tarde, projetavam sombras. Muito difícil falar de

luz, espaço e tempo naquele lugar.

Caminhei bastante, perdi de vista a única referência que tinha, o triângulo

retângulo, minha única conexão com aquele plano inclinado pelo qual havia caído

involuntária e vertiginosamente. No entanto, não lamentei; de qualquer modo teria

sido impossível refazer esse plano ao seu início, até a possibilidade de encontrar

Beatriz novamente. Inclusive, seria loucura planejar uma subida pelas linhas

pontiagudas do triângulo que havia utilizado para descer a este plano horizontal.

Logo, busquei esquecer o triângulo, o plano inclinado e, sobretudo, Beatriz.

Pensar nela ali me desgastava, igual que na superfície, e me impedia de encontrar

soluções.

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Após um longüíssimo trecho, me deparei somente com uma árvore seca, uma

semente que parecia ter cumprido milagrosamente seu ciclo vital nesse plano

desértico, e, muito depois, uma ferradura enferrujada. Mais nada.

A forma de me referir ao tempo é relacionando-o com o espaço percorrido;

porém, nesse espaço homogêneo, aparentemente infinito, esta relação não ajuda

muito. Restava-me apenas a referência do meu próprio cansaço, dos meus ritmos

vitais, de meu envelhecimento. Há pouco, no entanto, notei que nem isso tinha um

significado ali. Não sentia fome nem sede. Meu cansaço físico e envelhecimento se

relacionavam diretamente com minha ansiedade. Quando conseguia apartá-la, sentia-

me jovem e descansado; ao ser atacado pelo desejo de uma vez por todas alcançar a

superfície, contudo, poderia envelhecer anos em poucos minutos.

Também descobri que, apesar da aparente uniformidade do plano, havia certos

lugares mais apropriados que outros para um descanso revigorante. Por alguma razão

de simpatia, certos lugares tiravam de mim a tensão e o cansaço; neles exista

somente o perigo de um rejuvenescimento tão rápido e extremo que me poderia levar

a formas anteriores de vida.

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Um andar lento e regular me permitia caminhar eternamente sem cansaço.

Logo percebi que a única maneira de chegar a alguma parte, quero dizer, a algo

diferente daquela vasta uniformidade plana, era deixar de lado a esperança e, assim,

as recordações. Bastou me livrar da esperança para enxergar ao longe algo que me

pareceu uma vegetação espessa, ou um céu estrelado. Corri para lá, mas a ansiedade

por chegar me cansava e envelhecia. A esperança fazia com que a distância que me

separava daquilo fosse sempre a mesma. Apenas quando pude acalmar a mente,

deixá-la mais ou menos em branco, ao descansar em um lugar “simpático”, encurtei o

caminho. Isto gerou novamente a ansiedade, e assim minha viagem se transformou

numa curiosa batalha contra meus sentimentos, enquanto me aproximava do

objetivo. Consegui ver que se tratava, na realidade, de um imenso lugar repleto de

figuras geométricas, em sua maioria polígonos. Enfim, cheguei a essa zona e pude

avançá-la.

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Muitas das figuras estavam traçadas sobre o mesmo plano horizontal que me

sustentava. Outras eram verticais, cortando o plano, ou oblíquas. Encontravam-se

tangentes ao plano, e logo muitas delas estavam como que flutuando em diferentes

posições, sem nenhum contato com o plano. Essa espécie de bosque geométrico

crescia para cima sem que se pudesse ver até onde. Tampouco me era possível

calcular o perímetro que abrangia essa zona, por mais que a distância me parecesse

muito mais limitada que esta imensidão complexa que agora se exibia diante dos

meus olhos.

Algumas figuras estavam traçadas sobre blocos de planos; porém, de muitas

delas sobravam somente o desenho do contorno, sem a matéria sobre a qual haviam

sido inscritas – essa mesma matéria uniforme que havia encontrado até agora, a que

poderia atravessar caso desejasse, mas das quais devia me precaver de suas bordas

pontiagudas. Havia figuras perfeitamente paralelas ao plano horizontal; se por azar

alguma se postasse na altura dos meus olhos, teria sido impossível notá-la, sofrendo

um corte fatal. Deveria então me mover com o máximo de cuidado.

Na medida em que me enfiava nesse labirinto geométrico reconhecia

pentágonos, hexágonos, triângulos, quadriláteros. Diminuíam-se as linhas curvas, mas

os círculos e as circunferências se encontravam ocasionalmente. Havia também uma

infinidade de figuras irregulares, embora o traço de seus contornos fossem sempre

nítidos e perfeitos.

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Ao me sentir perdido nessa vegetação cada vez mais espessa, refleti que não

chegaria a lugar algum ao continuar dessa maneira. No entanto, em vez de buscar

uma saída, me ocorreu a idéia de subir, mudar de planos, aproveitando as diferentes

figuras separadas do plano horizontal. Não era fácil; óbvio que as figuras não se

achavam de forma escalonada, e, muitas vezes, alcançada certa altura, tinha de descer

porque não havia por perto nenhuma figura a uma altura maior. Minha viagem se

tornou então muito mais complexa. Lembro que comecei me pendurando em um

triângulo quase paralelo ao plano horizontal, passando em seguida a um hexágono

próximo que me permitia manter o equilíbrio, embora integrasse um plano mais

oblíquo. Mais tarde fui obrigado a realizar verdadeiras proezas, subindo de um plano

a outro através de linhas verticais, afiadas, ou por meio de saltos, quando era o único

recurso, de planos consideravelmente altos a pentágonos ou hexágonos de pequena

superfície. Certa vez, a matéria de um trapézio se mostrou de frágil consistência – ou

talvez algum desânimo meu se traduziu em vontade de cair; certeza é que atravessei

a matéria desse trapézio e caí, por sorte, em cima de um dodecágono estrelado, que

me aguentou. Apesar de atortodoado por um momento com o susto da queda, me

recuperei rapidamente.

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Em determinado instante, tendo já perdido de vista o extenso plano horizontal

pelo qual havia me movido no começo, encontrei-me diante de um círculo completo

e perfeito que me atraiu intensamente. Eu estava parado sobre um losango amplo e

seguro, a poucos metros de distância, mas não havia entre ele e o círculo nenhuma

figura que me levasse diretamente até este. Tive que dar uma volta comprida, que

quase me fez perder de vista o círculo, mesmo que a essa altura não houvesse tantas

figuras como lá embaixo. Entretanto, de imediato, o plano do círculo estava de perfil e

se mostrava invisível para mim, ou algumas outras figuras se interpuseram.

O círculo estava inscrito em um plano quase vertical, embora eu tivesse

perdido referências objetivas de horizontalidade e verticalidade. Refiro-me a como

via do losango quando o descobri. Nesse tempo, havia já reparado nas mudanças

que se produziam na gravidade, segundo meus deslocamentos. Se saltasse a um

plano inclinado, de um outro horizontal, lentamente esse plano se tornava para mim,

horizontal. Tenho a certeza de ter ficado, mais de uma vez, de um ponto de vista

objetivo, totalmente de cabeça para baixo; contudo, minha posição, do meu próprio

ponto de vista, era sempre vertical.

Assim, quando me encontrei próximo ao círculo, saltei até ele de um hexágono,

transformando-o em um círculo inscrito sobre um plano horizontal. Sem saber o

motivo, senti como se houvesse chegado a uma meta, ou pelo menos a uma marca

importante em meu caminho para o desconhecido. Acabei por decidir ficar ali, por

simpatia, para repor as forças e com a vaga sensação de que algo iria acontecer.

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Durante minha primeira permanência nesse círculo, obtive certa informação

que não posso afirmar que vinha do próprio círculo ou se era o produto de

inconscientes meditações minhas. De qualquer modo, a informação chegou com

a precisão e a força necessárias para me encorajar no experimento que tinha me

sugerido. À minha comprovação anterior de que renunciado às esperanças era

possível reduzir em muito a distância que me separava dos objetos, somou-se a

intuição – a certeza – de que alcançando certo estado de ânimo, certa atitude, que

incluía algo como perder os pontos de referência, conseguiria me mover exatamente,

com um mínimo de esforço, para o vazio do vazio; bastava apenas antes fixar na

mente, sem ansiedade e esperanças, o lugar ao qual deseja ir. Depois, era apagá-lo e

saltar.

Assim, pensei em um dodecágono que havia visto já não recordava onde, e

logo, esquecendo tanto o círculo como o dodecágono, saltei com os olhos fechados

em qualquer direção: me vi parado exatamente no dodecágono desejado. Pratiquei

muitas vezes esta espécie de jogo, que tinha seu lado divertido, até ter a firmeza

absoluta de seu funcionamento. Visitei muitas figuras já transitadas, voltei outras

tantas vezes ao círculo ou mesmo experimentei saltar para figuras desconhecidas,

inventadas, que desenhava excessivamente, antes, em minha imaginação. O sistema

também funcionava dessa maneira.

Isto me encheu de coragem para tentar um salto para junto de Beatriz, no

parque verde. Imaginei o lugar e a figura de Beatriz; apaguei tudo isso e o círculo de

minha mente, saltei. O vértice de um triângulo próximo me atravessou o ombro

direito, me provocando imensa dor e um breve desmaio. Perdia muito sangue e

estava muito assustado. Porém, consegui utilizar outra vez o sistema para retornar ao

círculo. Ali, após um ligeiro descanso, a ferida cicatrizou e a dor, passou. O sistema

não servia para alcançar lugares tridimensionais. Pareceu-me que devia aceitar a idéia

de nunca mais poder abandonar esse lugar geométrico, essa solidão eterna, essa

uniformidade que já me fazia desejar a morte.

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Em um dado momento, descobri algo que me pareceu impossível: o círculo

estava um pouco enrugado. Foi uma sensação física, já que visualmente não dava

para perceber, devido à homogeneidade da luz e carência de sombras. Com os dedos

confirmei a indicação da perna esquerda; de fato, a superfície do círculo parecia estar

ligeiramente enrugada.

Pensei que na possibilidade de que algo enrugado supusesse três dimensões;

contudo, cheguei à conclusão de que não era absolutamente necessário, se assim

permitisse a natureza da matéria da superfície. Imaginei um jogo de planos de duas

dimensões, com diferentes graus de inclinação, muito próximos entre si. Logo, não

havia como confirmar minha teoria e de qualquer modo, nesse instante, me interessei

mais em retirar essa superfície aparentemente enrugada, para averiguar a existência

de algo abaixo. Talvez, pensei também, que a ruga não fosse mais que um chamado

de atenção, do lugar ou de minha própria mente, para que fizesse exatamente isso.

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Não tive muito trabalho, embora tenha rasgado alguns lugares. Apesar da

resistência da matéria, ainda que lhe faltasse espessura, conseguia rompê-la com

as mãos. Encontrei abaixo uma camada semelhante a que ocupava o espaço da que

havia retirado. Tratei também de tirar essa outra camada, que saiu inteira; minha

única dificuldade era o fato de estar parado em cima. Seria como retirar um tapete

redondo debaixo dos próprios pés. Por sorte, não sofri nenhuma queda, já que

sempre havia outra camada por baixo. Ao continuar com a prática, adquiri um grande

manejo em tirar essas camadas imateriais (para chamar de algum modo a essa classe

de matéria sem espessura) que pareciam se suceder uma a outra infinitamente.

Conseguia arremessá-las para fora do círculo com muita facilidade, e ali ficavam

flutuando, perfeitos círculos carentes de circunferência. Na tarefa de retirá-las, minha

rapidez e habilidade aumentavam, com a ajuda de certo truque mental que contava

obviamente com os ingredientes de não-esperança, não-temor e não-ansiedade, e

assim foi até que em uma das camadas encontrei Beatriz.

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Na verdade, o processo havia sido mais gradual e complexo. Após ter retirado

um número incalculável de camadas, notei a existência de desenhos sobre elas.

Primeiro havia pontos, escassos e dispersos, de pouca nitidez; em seguida, algumas

linhas e conglomerados de pontos mais visíveis; por fim, desenhos, cada vez mais

complexos e perfeitos. As figuras obedeciam a uma certa ordem no início: pontos,

linhas frouxas que logo se fizeram retas e curvas e muitas camadas depois, desenhos:

raros, abstratos, difusos, que camada a camada foram lentamente substituídos por

figuras geométricas, algumas bastante complexas, até alcançar formatos

inverossímeis. Também apareceram letras: a princípio, de formas isoladas, junto aos

desenhos inexplicáveis; mais tarde, formaram palavras inteiras – lembro

de “coelho”, “flor”, “ímã”, “tachinha”, “lúpulo”, “cisterna”. Logo, vieram frases, junto aos

desenhos ou alternadas: no início, eram simples, como “folhas amassadas” ou “salta a

cabra”, que me recordaram as primeiras lições de datilografia.

Em seguida, as imagens apareciam desordenadamente, mas crescendo em

graus de complexidade e realismo: automóveis, recortes de jornais, caminhões, a

história da Grécia através de gravuras, capítulos inteiros da Bíblia, contos, animais,

panôs, histórias em idiomas estrangeiros, fotografias de pessoas – algumas famosas,

outras desconhecidas – e muitas outras coisas.

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Parei um instante para ler um conto. Era protagonizado pelo clássico mago de

capa e capuz negros, com um gigantesco serviçal negro. O conto tinha uma trama

policial mais complicada; ao chegar ao final da leitura, a lógica do argumento não me

satisfez. Este conto me deu chaves para compreender algumas coisas; porém,

desgraçadamente, não soube aproveitá-las e evitar, mais adiante, uma tragédia.

Decidi recomeçar a leitura, a fim de detectar os erros e as armadilhas do

roteirista. Me surpreendeu encontrar as coisas fora do lugar. Tive que reconhecer a

variação sensível dos primeiros quadrinhos, incluindo seus diálogos; segui lendo e me

encontrei com um conto bem diferente do que tinha acabado de ler, embora se

parecessem em muitos aspectos e com estrutura idêntica.

Comecei a lê-la mais uma vez e novamente encontrei uma aventura

ligeiramente diferente das duas anteriores. Perplexo, acabei por fixar toda atenção

em um quadrinho apenas, para descobrir o momento exato em que se produzia a

mudança. Observei com surpresa que se tratava de algo similar ao cinema: cada

quadrinho era como uma tela cinematográfica que reunia a projeção de um filme.

Cada quadrinho era uma aventura completa, que entretanto se encaixava de alguma

maneira na estrutura geral da aventura plana. A dificuldade de apreciação deste fato

surpreendente se apoiava no movimento extremamente lento, muito mais lento, por

exemplo, que o ponteiro de um relógio, e, se não me concentrasse muito, restava-me

somente reparar no desenrolar da ação.

Isto me deixou cansado e com um monte de idéias e perguntas, embora tenha

percebido um fato inquestionável: nesse círculo havia tempo, um tempo vertical; os

desenhos não eram estáticos, tinham certa forma de vida, algo que até esse momento

não havia encontrado nesse lugar.

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Quase me pus louco ao tentar imaginar a estrutura total daquele conto, a

combinação de tempos e argumentos que formavam a trama parecida a uma

sucessão de relhas metálicas horizontais e verticais que tinham a forma exterior como

a de um cubo. Ao fim, arranquei esta camada do círculo onde o conto estava e me

apareceu a imagem de um leão.

Ao me concentrar, consegui comprovar que o leão também estava “vivo”: fazia

movimentos; porém, com uma lentidão que parecia imóvel. Assim se deu com todo o

resto das figuras que foram surgindo. As cores se mostravam, a cada nova camada,

mais naturais, mais nítidas; algumas contavam até com luzes de brilho próprio.

Depois de arrancar uma nova camada, me deparei com Beatriz.

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Fiquei paralisado, fascinado, estático, com a boca aberta durante um tempo

imenso. De vez em quando, abria-se em minha mente a compreensão de que essas

imagens, todas elas, haviam sido criadas por mim, de algum modo inexplicável, ou

talvez furtadas, absorvidas da minha mente nesse círculo mágico. Percebi que Beatriz

respirava. Devo tê-la observado com muita atenção, durante muito tempo, para notar

este movimento tão leve, tão mínimo.

A contemplação me levou ao desejo; não pude evitá-lo. Havia passado

absolutamente só toda uma eternidade, nesse lugar. Ainda mais que a imagem de

Beatriz, em tamanho natural, estava nua. Apoiei minhas mãos em seus seios.

Imaginária ou real, tive uma sensação de calor, de uma particular e conhecida

aversão. Então, diante do meu espanto, a imagem gritou.

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Um grito que ressoou em câmera lenta. Primeiro, o terror que refletiram seus

olhos, nos quais pude ver claramente, ponto a ponto, um processo que de sempre

muito rápido não se pode comprovar na vida cotidiana: o assombro, a incredulidade,

o temor; logo, o medo sincero, o terror. Os lábios se curvaram para baixo, abrindo-se

com lentidão, para então aparecerem os dentes, a língua, a boca completamente

aberta, os olhos quase desorbitados pelo pavor e finalmente o grito, que me veio

muito fraco, mais pressentido que escutado, um chiado agudo, terrível, agonizante,

mas como que afogado por um muro de distância infinita.

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Ela está viva. Não é uma imagem: está viva, viva. Ali, desmaiada sob meu corpo,

seus seios em contato com as palmas de minhas mãos.

A consciência do que estava acontecendo tornou mais grave minha culpa. O

que fosse aquilo que havia produzido essa imagem, ela tinha vida; essa Beatriz,

autêntica ou imaginária, era um ser vivo, que não conseguia me enxergar com seus

olhos bidimensionalmente limitados a um plano, que era capaz de ficar aterrorizada

até desmaiar ao se sentir tocada por um ser invisível.

Eu, em vez de aguardar pacientemente os séculos necessários para ela que

voltasse a si e planejar uma estratégia de aproximação sem assustá-la, em vez de agir

como me aconselhava o bom senso, me deixei levar pela libido, desesperada e

imprudente.

Minhas mãos, lentamente, começaram a acariciá-la sobre seus seios; deitei

meus lábios contra os seus. Ela respondeu, adormecida, de maneira automática; seus

seios endureceram, o ritmo do seu coração acelerou, seus lábios se separaram num

tímido sorriso, passei minha língua por esses lábios entreabertos e descontrolado ao

tratar de enfiar minha língua na camada dessa matéria, tive a impressão de beijá-la;

quando suas pernas começaram a se abrir vagarosas, um tanto vagarosamente,

minha mão acariciou o desenho de sua penugem e possuído passei a penetrá-la.

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Ao dilacerar com meu pau a matéria do círculo, senti todo o peso da culpa

e me perdi por completo: arranhei a imagem com as unhas, mordi a imagem dos

lábios com meus dentes; o tempo da imagem coincidiu, na dor e na morte de

Beatriz, com meu próprio tempo. Abraçados e envolto em um grito insuportável,

já não distante e apagado, mas desesperadamente próximo e forte, coberto pelo

seu sangue bidimensional e pegajoso e quente e vermelho, me senti cair, cair, cair

interminavelmente, com o grito que não silenciava e o coração que palpitava contra o

meu ao mesmo ritmo detendo-se, interrompendo-se para sempre, e a dor e a culpa, o

corpo dilacerado que se desfazia com a facilidade de uma seda de cigarro, dissipava-

se e já não havia nada entre meus braços, rasgos de matéria intangível que simulavam

sangue, como sedas vemelhas grudadas em meus braços, minha boca e minhas

pernas, o gosto dessa boca inexistente, o eco do seu grito, o vazio abaixo de mim, a

queda no vazio até perder o sentido e seguir ainda caindo.

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Acordei no interior de uma estrutura metálica, que parecia fechada e enorme,

embora não fosse exatamente uma jaula. Era um lugar incômodo, mas que tinha uma

certa liberdade de movimentos, liberdade esta que me obrigava a retorcer entre as

barras de um emaranhado complexo e que não parecia conduzir a nenhuma parte.

Passava a perna por cima de uma barra horizontal, aparafusada por dois ferros

verticais, muito pertos entre si; tinha que abaixar a cabeça para não bater num outro

ferro mais acima, a fim de logo passar a outra perna para me encontrar em um lugar

tão emaranhado como o anterior.

Após um tempo, me sentei numa outra barra horizontal para pensar. Não havia

conseguido em nenhum momento me inteirar de tudo, o corpo me doía por causa das

posições ingratas que estava obrigado a adotar.

Encontrava-me em um lugar tridimensional; havia recuperado todas as minhas

sensações físicas e o sentido do passar do tempo: cheguei, por exemplo, a me

entediar e a sentir fome.

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Foi a fome, mais que o aborrecimento, que me levou a abandonar minha

passividade e a buscar uma saída. Comecei a subir, enfrentando ainda mais

dificuldades que para me mover na horizontal. Assim cheguei à conclusão de que essa

estrutura tinha uma forma esférica, porque minha movimentação lhe faziam variar

seu centro de gravidade e se mexer. Ao fim de grandes esforços e quando pensava

haver adiantado a maioria do trecho da minha subida, a estrutura passou a se mover

lentamente, como se girasse, e fiquei de cabeça para baixo. Fez alguns movimentos

oscilatórios e acabou por se aquietar. Então, aproveitei para me agarrar as barras

ferro e retomar minha subida, até que novamente fiz com que a suposta esfera se

desequilibrasse, fazendo-na girar, e fiquei mais uma vez de cabeça para baixo.

Buscando suportar a cara inchada pelo sangue que descia para minha cabeça e

de conter a vertigem, tentei sair dali por debaixo; descer era muito mais difícil que

subir, e constantemente batia meu corpo contra as barras metálicas. Me sustentava a

idéia de que a esfera já não se moveria e que logo conseguiria escapar dali. No

entanto, meus cálculos falharam; num momento de minha descida, a estrutura se

moveu outra vez. Depois de breves oscilações, aquietou-se, deixando-me de cabeça

para cima, sentado em uma barra, perplexo e abatido.

Agora sim não desejava outra que coisa a morte.

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A fome não me permitiu que eu morresse numa espécie de abandono pacífico.

Cheio de raiva e desespero derradeiro, me lancei contra uma das barras de ferro, na

intenção de destroçar minha cabeça.

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Desta vez despertei em um lugar horrível, embora fosse mais cômodo que

a estrutura metálica; porém, ainda era um lugar horrível. Estava acompanhado,

contudo.

O pastor que estava ao meu lado me ofereceu um sanduíche de queijo. Peguei

sem pensar em nada, com as mãos sujas de merda, e o devorei em silêncio, sem olhar

para outra coisa que não fosse o próprio sanduíche. Depois me inteirei dessa espécie

de leito enlameado e observei ao redor. O piso, as árvores e os pequenos montes

que enxergava através da janela, o lugar mesmo onde me encontrava, tudo parecia

estar coberto de barro e merda, ou talvez constituído por essa matéria barrenta e

mal cheirosa. Apenas o pastor tinha uma aparência limpa em sua batina negra. Sua

serenidade era extraordinária.

— Obrigado – disse-lhe, referindo-me ao sanduíche e mirando-o com atenção.

Não parecia velho, ainda que meio envelhecido. Seu rosto era duro e ao mesmo

tempo, agradável. O envelhecimento revelava uma tortura íntima, uma tortuosa

lucidez que agora parecia tranquila, apenas um rastro. Sobre o nariz de gancho tinha

umas lentes arredondadas.

Meu corpo estava coberto por uma espécie de manta; uma manta de tecido e

merda. Passamos um longo momento sem dizer nada, até que depois de pensar

muito, lhe disse:

— Me estranha vê-lo aqui.

— É minha vontade – respondeu. Sua voz tinha um timbre grave e agradável.

Arrumou-me umas roupas simples, do mesmo material que a manta, com que pude

cobrir, pela primeira vez em muito tempo, meu corpo nu.

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Demos um passeio pelo pequeno planeta. Achei que entardecia, mas logo notei

que a luz era sempre assim, soturna, pantanosa, suja. Esse planeta sujo não me

agradava, onde até a luz parecia haver sido afetada pela merda.

— Por que tudo é assim? – perguntei cheio de pesar.

— Porque você quer – respondeu. Porém, não tinha tom de reprovação.

Devagar me veio a compreensão, ampliada e ratificada, de que aquilo que havia

intuído no círculo mágico: eu não era uma simples vítima das circunstâncias.

— Pastor – disse-lhe. — Você me ajudará?

Não respondeu diretamente a minha perguntar. Falou de si mesmo. Não era

um “pastor”; havia sido alguma vez. Vestia a batina como pudesse vestir qualquer

outro tipo de roupa. Disse-me algumas coisas que não compreendi totalmente; sua

fala era como se tivesse que ser compreendida em outro tempo. Supus que como

ajuda contaria somente com sua presença, que o trabalho era exclusivamente meu.

Não tinha, entretanto, menor idéia do que devia fazer.

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Passou-se muito tempo, equivalente à convalescência de uma enfermidade.

Predominava uma tristeza monótona, a melancolia diária e constante, o silêncio.

Não fazíamos nada além de esperar. O homem que estava comigo esperava

sem ansiedade, sem exigência. Minha espera era torturante às vezes e outras,

resignada, ainda que fosse difícil a resignação naquele lugar onde a repugnância era

permanente.

— E os outros? – perguntei um dia.

— Não existem outros – respondeu-me.

Senti-me invado pela urgência. Esse homem estava perdendo seu tempo

comigo, este ser desprezível, num lugar imundo. Mordi meus lábios e senti que algo

começava a se retorcer, enroscar-se dentro de mim.

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Essa breve conversa me obrigou a sair pouco a pouco da melancolia. A

princípio, impulsionado pela circunstância muda do homem da batina, por esse

testemunho sem reprovações, essa silenciosa paciência; depois, um certo entusiasmo

por mim mesmo. Algo devia haver em mim para que esse homem estivesse ao meu

lado e me esperasse. Por que não acreditar?

Ele previniu.

— Está disposto – perguntou, sem sinais de interrogação.

— Sim – afirmei.

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No bosque, a voz de Beatriz.

— Te machuquei?

Eu havia dado um passo em falso e por um instante havia ficado em silêncio,

apoiado com o ombro numa árvore, a mão esquerda na frente, os dedos polegar e

indicador nas têmporas.

— Não – respondi logo. — Não.

Comecei a me afastar rapidamente entre as árvores. Ouvi que Beatriz me

chamava, que dizia para que não me apressasse tanto, que não conseguia me seguir.

Fiz um ziguezague entre as árvores. Sua voz me chegava cada vez mais de longe e

repleta de angústia.

Não demorou para que tenha deixado de escutá-la e respirei profundamente.

Era uma bela tarde de primavera. Havia muito oxigênio nesse parque e os raios de sol

filtrados pelas copas das árvores tangiam benignamente minhas pupilas, despertando

em mim um sentimento de plenitude. Meu passo foi ficando mais lento. Saí devagar

do parque. Peguei um ônibus.

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Tradução: thiago luna

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LEVRERO, Mario. ‘Novela geométrica’. In: El portero y el otro. Arca, Montevideo. 1992.