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1 Um outro olhar sobre o Recife: O discurso preservacionista nos escritos de Mário Melo. Humberto Rafael de Andrade Silva 1 O início do século XX foi uma época de transformações profundas no Recife. Uma onda modernizadora se espalhou por capitais de todo o mundo, impulsionada pela reforma da cidade de Paris, empreendida no final do século XIX pelo prefeito Georges Eugenne Haussman que, a pretexto de eliminar uma epidemia de cólera, empreendeu uma série de reformas que modificaram a face da cidade e os modos de vida dos seus habitantes. Essa onda modernizadora alcançou, no início do século XX, a cidade do Recife, que sofreu sua primeira intervenção urbana de grande porte com a reforma do Porto 2 e do bairro portuário que previam a modernização e redefinição do traçado do Porto e do Bairro anexo através do alargamento de ruas como forma de facilitar o escoamento da produção, a eliminação das habitações populares, os mocambos, que não condiziam com a imagem de uma cidade moderna e a realocação dos moradores, obedecendo uma política de zoneamento social e mudando de forma irreversível a vida na cidade. Nesse processo ocorreram demolições de edificações que se constituíam em marcos de referencia para a memória da cidade. O cais do Porto do Recife, por ser favorecido pelo elemento natural, com os arrecifes formando um ancoradouro para os barcos que chegavam, além da proximidade geográfica com a Europa foi, durante muito tempo meio principal de escoamento de mercadorias para o continente europeu, até ser suplantado pelo porto do Rio de Janeiro, que possuía um melhor aparato técnico, além de maior profundidade, o que possibilitava a ancoragem dos navios maiores. Sua primeira e única obra de modernização se deu no período da guerra dos holandeses em Pernambuco (1631), no governo do conde João Maurício de Nassau. Ao longo do século XIX, várias tentativas de modernização, com propostas de plano e projetos * Graduando em história pela Universidade Federal de Pernambuco. 2 Segundo Lubambo (1991), as tentativas de modernização vão se dar a partir do século XIX, quando, em 1815, uma comissão do governo imperial foi nomeada com o objetivo empreender as reformas necessárias nos portos do país, desde então, até a primeira década do século XX, nenhum melhoramento havia sido feito no Porto do Recife.

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Um outro olhar sobre o Recife: O discurso preservacionista nos escritos de

Mário Melo.

Humberto Rafael de Andrade Silva1

O início do século XX foi uma época de transformações profundas no Recife. Uma

onda modernizadora se espalhou por capitais de todo o mundo, impulsionada pela reforma da

cidade de Paris, empreendida no final do século XIX pelo prefeito Georges Eugenne

Haussman que, a pretexto de eliminar uma epidemia de cólera, empreendeu uma série de

reformas que modificaram a face da cidade e os modos de vida dos seus habitantes.

Essa onda modernizadora alcançou, no início do século XX, a cidade do Recife, que

sofreu sua primeira intervenção urbana de grande porte com a reforma do Porto2 e do bairro

portuário que previam a modernização e redefinição do traçado do Porto e do Bairro anexo

através do alargamento de ruas como forma de facilitar o escoamento da produção, a

eliminação das habitações populares, os mocambos, que não condiziam com a imagem de

uma cidade moderna e a realocação dos moradores, obedecendo uma política de zoneamento

social e mudando de forma irreversível a vida na cidade. Nesse processo ocorreram

demolições de edificações que se constituíam em marcos de referencia para a memória da

cidade.

O cais do Porto do Recife, por ser favorecido pelo elemento natural, com os arrecifes

formando um ancoradouro para os barcos que chegavam, além da proximidade geográfica

com a Europa foi, durante muito tempo meio principal de escoamento de mercadorias para o

continente europeu, até ser suplantado pelo porto do Rio de Janeiro, que possuía um melhor

aparato técnico, além de maior profundidade, o que possibilitava a ancoragem dos navios

maiores. Sua primeira e única obra de modernização se deu no período da guerra dos

holandeses em Pernambuco (1631), no governo do conde João Maurício de Nassau. Ao

longo do século XIX, várias tentativas de modernização, com propostas de plano e projetos

*Graduando em história pela Universidade Federal de Pernambuco. 2 Segundo Lubambo (1991), as tentativas de modernização vão se dar a partir do século XIX, quando, em 1815, uma comissão do governo imperial foi nomeada com o objetivo empreender as reformas necessárias nos portos do país, desde então, até a primeira década do século XX, nenhum melhoramento havia sido feito no Porto do Recife.

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foram apresentadas, mas não se efetivaram, até que a reforma que veio a cabo no início do

século XX.

Essas mudanças eram, em grande parte, impulsionadas pelo capital estrangeiro que

migrava para os países da América Latina, como parte do inicial processo de expansão do

capital global. Segundo Lubambo (1991), a partir do ano de 1850 o país se envolveu na onda

modernizadora do capital, o que implicava no aperfeiçoamento de elementos técnicos,

alteração das relações de trabalho, implantação da indústria e mudança da postura do governo

frente à iniciativa privada.

Esse aperfeiçoamento exigiu uma drástica remodelação das cidades. O crescimento da

população, o aumento no número de veículos, e as exigeñcias estéticas e sanitárias que

competiam a uma cidade moderna traziam a necessidade de vias mais largas para comportar o

tráfego, e novos edifícios com mais pavimentos, oque era incompatível com o traçado

desordenado que se encontrava até então. No processo de reforma, muitas quadras, tanto do

beirro de Santo Antônio como de São José, foram completamente destruídas, oque significou

a perda de grande parte da malha urbana antiga, além de edificações que presenciaram

acontecimentos importantes da história de Pernambuco e do Brasil.

As demolições destes edifícios eram embasadas por idéias do urbanismo moderno que

não levava em conta a sua propriedade de registro material da história de Pernambuco.

Concordo com Choay (2006), quanto à consistência que o monumento perdeu como registro

de rememoração3 e marca de processos históricos. Em face das inovações técnicas trazidas

pelo modo de produção moderno, novas formas de captura da imagem e do som viriam

proporcionar formas de lembrança mais palpáveis e acessíveis, uma vez que são meios de

lembrança portáteis, que a qualquer lugar nos transportam as situações do vivido.

Em meio à concordância da maioria em relação à modernização que se dava na cidade,

muitos intelectuais vão agir no sentido da preservação de seu legado histórico. Esses, são os

atores que Pessavento (1995) chamou de “leitores especiais da cidade”; são artistas,

escritores, poetas, pessoas com a condição de gestar um registro material de sua visão sobre a

cidade que pode servir de documento ao historiador. Eles se dividiam em dois grupos: de um

lado, os integrantes do Movimento Regionalista do Recife tendo a sua frente nomes como

Gilberto Freyre Aníbal Fernandes e Arthur Orlando, que, se apoiando no governo Estácio

3 Podemos colocar esse status até fins do século XIX, no caso do Recife.

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Coimbra, se agrupavam em torno da Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais, e, do

outro, o jornalista Mário Carneiro do Rêgo Melo, e o grupo do Instituto Arqueológico

Histórico e Geográfico Pernambucano. Empreendendo debates longos e acirrados em alguns

periódicos da época, esses intelectuais buscavam validar suas concepções no que concerne a

sua representação de cidade, debatendo formas e praticas de conservação dos locais de

memória da cidade.

A reforma do Bairro do Recife foi consequência das mudanças do Porto, lá se

instalaram indústrias estrangeiras, se ampliaram vias para o escoamento da mercadoria, a

eliminação dos mocambos4, construção dos edifícios em estilo eclético, a derrubada de

casarões coloniais e alguns monumentos, para a liberação do tráfego crescente de carros. As

implicações da reforma para o funcionamento da cidade foram muito profundas. Um grande

número de edificações de valor histórico significativo e mesmo a malha urbana colonial foram

completamente demolidas, segundo Cantarelli (2012), o Recife buscava a representação de

uma cidade moderna, condizente com os padrões da modernidade urbanística Européia.

Como consequência dessa conjuntura, o período da reforma do Bairro de Santo

Antonio (1927-1943) foi marcado pela reminiscência dos acontecimentos e discussões

ocorridos durante a reforma do Bairro do Recife, através dos meios de mídia, se construiu um

discurso de saudosismo e advertência em relação à repetição das atitudes com relação a

preservação dos edifícios históricos, uma representação de um Recife que tratava com descaso

o seu passado, assim como a retomada dos acontecimentos ocorridos na reforma desse Bairro

para partir na defesa dos bens culturais. É também nesse período que pela primeira vez a

cidade foi pensada como objeto de planejamento urbano como um todo, ao mesmo tempo os

planos urbanísticos eram vistos como método de afirmação dos projetos políticos dos grupos

gestores de sua alteração.

Nesse contexto, começam a entrar em discussão temas ligados à preservação de

registros da cultura material da cidade, como casarões, árvores, templos eclesiásticos, ou

mesmo aspectos da cultura imaterial, como nomes de ruas e festejos típicos da cidade, objeto

dos escritos do intelectual Mário Carneiro do Rêgo Melo em diversos periódicos à época..

4 Em dados de 1931-2, a cidade possuía 23.869 prédios e 23.210 mocambos. Esse tipo de habitação, além de ser considerado infecto não concernia com a imagem de uma cidade moderna. Há época do Estado Novo, a eliminação dos mocambos foi uma das principais Bandeiras do governador Agamenon Magalhães. Durante seu governo, Agamenon empreendeu a reforma (GOMINHO, 1998).

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O objetivo desse trabalho é realizar, através dos periódicos, uma análise conjuntural

das campanhas preservacionistas empreendidas por esse intelectual, que atuou como um

“leitor especial da cidade”. , Este estudo tem como foco o período do processo de reforma do

Bairro de Santo Antônio, iniciada no final dos anos 1930, buscando situar principalmente o

seu discurso no contexto das relações políticas da cidade no período.

Quem foi Mário Melo? Fragmentos de uma trajetória...

Mário Melo morreu. Era a notícia. O fato. E os detalhes? [...] Quem fora esse

Mário Melo, cuja imprensa, unânime já comentava, em luto, a perda irreparável de um dos seus mais legítimos servidores, abalando, o seu falecimento, não só a imprensa pernambucana, mais todos os círculos culturais sociais e políticos de todo o Nordeste e mesmo do país? (TAVARES, 1978:12, grifo nosso)

Iniciamos esse texto a partir da indagação do jornalista Cláudio Tavares, autor de uma

das várias biografias de Mário Mello: “Quem fora esse Mário Melo (...)? ” Para melhor

compreensão do leitor sobre a importância que esse intelectual pernambucano teve nas

discussões sobre o planejamento da cidade, comecemos por esboçar um resumo de sua

biografia e da trajetória jornalística.

Mário Carneiro do Rêgo Melo nasceu a 5 de fevereiro de 1884 no Recife,

Pernambuco, filho de Manoel do Rêgo Melo e Maria da Conceição Carneiro da Cunha. Por

volta dos catorze anos iniciou os preparatórios5 no Colégio Salesiano. Em 1903, se matriculou

na Faculdade de Direito do Recife, onde não pode ser muito aplicado nos estudos, pois tendo

morrido seu pai, assumiu os encargos da família, mesmo com percalços, terminou os estudos

de bacharel em 1907.

Em 1909, ingressou no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano

de onde ocuparia o lugar de secretário perpétuo já em 1912. Viria a dedicar os anos seguintes

ao jornalismo, à história e também ao magistério6, sendo mais famoso nas duas primeiras.

5 Que hoje correspondem ao ensino fundamental e médio. 6 Consta na revista da Escola de Belas Artes de Pernambuco (ano 3, número 1) a presença de Mário Melo no

corpo docente, na cadeira de arqueologia, esta tendo sido extinta em virtude de uma reforma curricular. Ainda, na página 39 da mesma revista é feita a afirmação que este foi um dos fundadores da escola, não constando, no entanto, seu nome na ata de fundação.

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Sua afinidade com as letras, contudo, já vinha de antes do término do curso de Direito.

No dia 1º de junho de 1900, ainda garoto, criou juntamente com amigos o jornal O Álbum,

pertencente a Sociedade Literária Bernardo Vieira de Melo que fundara com os amigos

Mário Rodrigues, Samuel Valente, Alcebíades de Lima, Eusébio de Souza e Adalberto

Ribeiro (MELLO, 1915: 101-102). Em 1901, colaborou no jornal O Estudo e, em 1902, foi

admitido na Folha do Povo, tornando-se um dos seus redatores.

Em 1903, colaborou em um novo jornal, o Correio do Recife. Foi nesse jornal que

inaugurou temas sobre história, política e economia e começou a se consolidar como

jornalista. Em 1905, atuou no Jornal Pequeno onde manteve a coluna Ontem, Hoje e Amanhã

na qual tratava dos mais diversos assuntos relacionados a capital pernambucana.

Paralelamente, escrevia para A Província7 jornal pelo qual nutria grande afeição,

considerando-o o mais bem escrito do Recife (TAVARES, 1978: 46).

Em 1914, quando foi trabalhar no Diário de Pernambuco, tornou-se, pela primeira

vez, um redator fixo. Nas páginas do Diário conviveu lado a lado com homens de destaque no

meio intelectual do Recife como, por exemplo, Gilberto Freyre, Mário Sette, Aníbal

Fernandes e outros, de lá só saiu quando de sua incorporação aos Diários Associados8.

Desempregado, aceitou surpreso o convite de F. Pessoa de Queirós9 para trabalhar no

Jornal do Comércio, com a condição de que suas reportagens não deveriam passar por

nenhum tipo de censura. Por 25 anos colaborou nesse periódico e a ele se dedicou até a sua

morte, em 1959.

Conciliava a função de jornalista com as de historiador, ecologista, telegrafista,

numismata, geógrafo, filólogo, crítico literário e etc. Foi um intelectual polivalente, que

marcou de forma profunda a paisagem da cidade, imprimindo as suas concepções, culturais,

ideologicas e políticas através de suas colunas e livros, um “leitor da cidade” (PESAVENTO,

1995). Sua escrita era a de um grande polemista, como nos fala Costa Porto citado por Paraíso

7 Não se sabe com certeza a data de entrada de Mário Melo neste jornal, tendo sido situado por Luiz do

Nascimento como o ano de 1908. 8 Foi Mário Mello ajudou a trazer o jornalista Aníbal Fernandes para o Diário, com quem viria a cultivar uma futura inimizade, por desavenças pessoais e políticas, até o fim de sua vida. Paraíso (1997) aponta o episódio da saída de Mário Melo do Diário como o início de suas desavenças com Aníbal Fernandes porque o mesmo teria prometido pedir demissão também e faltou com a palavra. 9 Desafeto político de passado recente tendo sido o responsável pela sua demissão em 1922 do telégrafo

nacional, onde permaneceu de 1904-1945, Mário Melo aceitou o convite com a condição de que não deveriam, suas reportagens, passar por nenhum tipo de censura.

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(1997, p. 23, grifo nosso):

Dava tudo por uma briga; [...] possuindo, como poucos, a arte de irritar o antagonista [...]. Todo santo dia, e, não raro, muitas vezes no mesmo dia, lá estava Mário com uma pendanga10 que ameaçava não acabar nunca, pois, segundo me revelou um dia, aconselhando-me a seguir-lhe o exemplo, gostava de “guardar munição”, atirando, índio amestrado, seta por seta, em termos de eternizar a luta por semanas e meses. [...] Seria capaz mesmo, chego a pensar, de, faltando-lhe com quem brigar, ele próprio escrevesse alguma coisa e, no dia seguinte, saísse a campo para refutar esta ou aquela assertiva: seu prazer consistia em polemicar [...].

A revolução de 1930 foi um fato um fato marcante na trajetória política de Mário

Melo. . Com a tomada de Pernambuco pelas tropas favoráveis ao presidente Vargas e finda a

República Velha, os aliados políticos do então governador Estácio Coimbra passaram a ser

perseguidos . As tropas da nova ordem reuniram-se contra o Governador de forma rápida.

Com poucas chances de defesa, o governador resolveu fugir de Pernambuco e com ele foram

o seu assessor de gabinete, Gilberto Freyre, Aníbal Fernandes, Antônio Gonçalves, o chefe de

polícia e o inspetor geral de polícia Ramos de Freitas, (CAVALCANTI 2011: 90 apud

CANTARELLI 2012: 116). Procurava-se uma ruptura com as práticas do governo anterior o

que levou, naturalmente, a que todos os partidários da antiga administração fossem destituídos

de seus cargos e tivessem revogados os seus privilégios políticos.

A política e o discurso preservacionista

Mário Melo se posicionou de modo favorável à nova ordem política desde o início,

alegando que a mesma parecia ser “o remédio para o descalabro que havíamos atingindo”

(Melo, [193-?] [s.p.]). Ocupou, dentre outros, com o advento do movimento revolucionário de

1930, os cargos de Inspetor de Monumentos Nacionais, (CANTARELLI, 2012: 118), além de

ter prestado serviços ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao inicio da

organização turismo no estado, á comissão que cuidava da questão dos nomes das ruas e a

Comissão do Plano da Cidade. Com a redemocratização, candidatou-se a deputado estadual

pelo Partido Social Democrata (PSD), cumprindo o mandato de 1947 a 1951.

10 O mesmo que discussão,bate boca.

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Nesse período, Melo desempenhava a função de uma voz pública do Estado Novo em

Pernambuco de forma eficaz, em função de sua notoriedade como jornalista. Outro fator que

favoreceu o aumento de seu prestígio político, além de seu apoio declarado ao regime, foi sua

proximidade com Agamenon Magalhães, novo interventor do Estado e um nome de tragetória

política destacada no Brasil, um dos maiores apoiadores da revolução de 1930, com quem

declarou ter relações de longa data. . Quando Agamenon assume a Interventoria do estado de

Pernambuco, após a saída de Carlos Lima Cavalcanti11, Melo faz ao seu antecessor pesadas

críticas, declarando seu descaso para com as “coisas espirituais” de Pernambuco, durante toda

a sua administração

[...] o chefe de Estado nunca foi ao Instituto Arqueológico, nunca assistiu a uma reunião da Academia de Letras, nunca visitou as coleções que continham o Museu do Estado, creio também que nunca viu o Museu Regional de Olinda, não compareceu a ato algum das festas comemorativas, não compareceu ao centenário da fundação da Villa de Duarte Coelho. Para o atual governo, a inteligência tem o relevo que o anterior dava as coisas triviais. Dir-se-á que só pode admirar o Belo quem de Belo entende; que para dar a inteligência é preciso possuí-la. (MELO, 1938c: 1)

Apoia o discurso de posse de Agamenon, um homem “que crê no primado do espírito

sobre a matéria”, uma semelhança com o nosso biografado, que vive “pelo espírito e para o

espírito, ouvindo o ladrar de uns e o incitamento de outros” (MELO, 1938c:1).

Quanto à tipologia do discurso, o discurso de Melo remete com frequência o valor de

preservação a locais e edificações que apresentam vínculo com os “grandes acontecimentos”

da história do estado. Vinculando os locais a episódios significativos da história colonial

pernambucana, ao mesmo tempo, adotando noções modernas no que diz respeito ao valor de

conservação, como a de patrimônio ambiental12, e intangível13. São muito recorrentes os

artigos em que se abordam a historia das localidades do Recife remetendo a seu passado

colonial, traçando o histórico das alterações sofridas por elas ao longo do tempo.

O intelectual atribuía grande importância á herança holandesa, como podemos ver em

11 Tendo sido acusado por ex- aliados políticos de favorecer o levante ocorrido em Recife, Rio de Janeiro e Natal liderado pela Aliança Nacional Libertadora em 1935, é retirado da Interventoria de Pernambuco dois anos depois, quando decretado o Estado Novo para o cargo de embaixador da Colômbia. 12 Quando defende as arvores da cidade e a importância de algumas delas como marco de uma sociedade que já inexistente ou mesmo como algo de importância afetiva para determinado grupo de pessoas. 13 Nesse caso podemos colocar, de forma destacada, as campanhas relacionadas à conservação dos nomes das ruas, da não colocação de nomes de pessoas vivas em logradouros públicos e da campanha relacionada a conservação do carnaval tradicional.

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um trecho de discussão travada com Antônio Dias a respeito da construção do Brasão do

Recife14, onde contraria o antagonista quanto à opinião que o mesmo tem a respeito da

imagem invasor holandês

Tripudiar sobre a memória dos nossos maiores – falo como brasileiro - seria acênder uma vela a Bernardo Vieira, porque sonhou a liberdade de Pernambuco,e outra aos algoses que o encrceraram no Limoeiro de Lisbôa, onde morreu; seria endeuzar Felipe dos Santos, porque se revoltou contra o domínio de Portugal, e reverenciar o governo que mandou esquarteja-lo vivo,[...] (MELO, 1931c.)

É preciso distinguir, foi oque se procurou fazer no escudo do Recife. Mostrar que, em pleno período da colonização luso-espanhola, foi a cidade do Recife fundada por estranhos. Sei bem que isto equivale a uma espécie de censura, porque os colonizadores não se haviam apercebido duma situação de tal ordem para a cidade que é o Recife de hoje. Mas esta é a verdade histórica: não foram os portugueses; foram os holandeses que fundaram o Recife (MELO, 1931c, grifo nosso).

O discurso que construía em relação à defesa da preservação dos monumentos, estava

sujeito a certa flexibilidade política em razão de sua proximidade com o novo governo,

inclusive como membro da Comissão do Plano da Cidade15. Um exemplo é o seu

posicionamento quanto à derrubada da Igreja do Paraíso, importante componente da malha

urbana colonial, onde, tomando inicialmente posição contrária, alegou posteriormente:

Não há razão nenhuma para que as demolições do pátio do paraíso poupem a igrejinha... O que havia de interessante era o antigo templo, reformado, ao que parece, no mesmo tempo em que se perpetuou a infeliz restauração( ou coisa parecida) da velha sé de Olinda [...] mas desde que o que era bom e antigo desapareceu, não há razão para que se conserve a aberração arquitetônica. (MELO, 1944; apud SANTANA, 2012: 12).

Com a mesma motivação política se pode enxergar a sua posição contrária à colocação

do Busto de Manuel Bandeira16 em logradouro público, quando alegou, em artigo

contemporâneo as discussões com relação ao busto, não ser radical ao extremo com a questão

14 Que permanece até a atualidade. 15 Assumiu a Comissão do Plano da Cidade, que ficaria encarregada de auxiliar o engenheiro Nestor de Figueiredo na construção do plano a ser elaborado mesmo da qual era secretário geral, e integrante da subcomissão de História, Tradição e Monumentos da Cidade, responsável por emitir um parecer a respeito do “valor” histórico dos diversos monumentos no perímetro de Santo Antõnio e em outras partes da cidade (OUTTES, 1997:90). 16 O fato da proximidade do poeta com o centro Regionalista do Recife pode ter sido implicador na tomada de posição de Mário Melo, uma vez que o argumento da relevância do ponto de vista artístico, se tratando dos aqui citados, torna-se um critério subjetivo.

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da colocação dos nomes de pessoas vivas, externando ter idealizado homenagens para Santos

Dumont e Oliveira Lima com os mesmos em vida, considerando que os mesmos deveriam ser

enquadrados nas exceções à lei. Como a mesma também impedia o governo colocasse

fotografias de pessoas vivas em repartições publicas, o Interventor pediu ao instituto que

interpretasse esse acto, sendo o mesmo deferido (MELO, 1930b).

Outro traço importante a se resaltar seria a tentativa de atenuar as imagens

construídas de alguns membros do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico

Pernambucanoquanto às discussões travadas durante a década de 1920. Em matéria tratando

do caso da Demolição do Corpo Santo, necessitava do beneplácito da igreja, por se tratar de

terreno eclesiástico, na pessoa do Arcebispo Dom Luiz de Brito, Mário Melo cita um

depoimento de Joaquim Amazonas, advogado da causa em favor da conservação da Igreja,

alegando que o clérigo sofria grande pressão do governo de Herculano Bandeira, assim como

das instancias federais que apoiavam a demolição, terminando por ceder.

Uma ressalva importante pode ser feita quanto a gênese do discurso preservacionista

em Pernambuco. Melo faz referencia ao fato de não ter sido Aníbal Fernandes o seu iniciador

e sim o engenheiro Saturnino de Brito, . narrando uma ocasião em que o mesmo foi ao

Instituto protestar em razão da tentativa de derrubada do forte do Brumquando oengenheiro se

pronuncia sobre o seu entendimento de monumentos naturaes:

“Chamam-se monumentos naturaes as localidades, as florestas, uma arvore, uma pedra,

todas as coisas naturaes que se imponham ao nosso respeito, ou a nossa admiração, pelo

grandioso, pelo belo efeito, ou pelas evocações históricas.” (MELO, 1930c). Assim como da

idealização da criação de um órgão, fruto ação conjunta de várias entidades que teria como

responsabilidade a conservação dos monumentos pertinentes a história de Pernambuco,

[...] não me parece difícil, antes reputo fácil de proveitoso para a nossa pátria, que o Instituto Arqueológico e outras associações congêneres compreendam em seus programas mais uma sessão: a conservação dos monumentos naturaes. Atraentes pela beleza, pelo pitoresco, pela função atingida nas aglomerações e pelas evocações do passado assinalado por uma etapa do progresso na ordem, ou por uma conquista heroica da nacionalidade [...] (MELO apud BRITO, 1930c).

Considerações finais

O campo de trabalho que trata compreensão do contexto histórico através da trajetória

individual dos “leitores da cidade”, na primeira metade do século XX é ainda pouco

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explorado pelos historiadores. Shmidt (1997) coloca, a respeito da retomada do gênero

biográfico que

[...]a massificação e a perda de referenciais ideológicos e morais que marcam a sociedade contemporânea têm como contrapartida a busca, no passado, de trajetórias individuais que possam servir como inspiração para os atos e condutas vivenciados no presente.. (SHMITH, 1997: 4)

Cremos que a fragmentação oferece um novo aspecto de compreensão das influencias

que perpassam os meios de expressão dos leitores da cidade, assim como dos processos pelos

quais as mesmas passaram e suas peculiaridades. Melo, assim como outros intelectuais que,

patrocinados por determinadas elites políticas, vão assumir um papel de destaque na

construção de representações de cidade que atendesse a necessidade do projeto político com o

qual concordavam.

Este estudo procurou compreender as influências que agiam sobre o discurso do

intelectual Mário Carneiro do Rêgo Melo com vistas a um melhor entendimento do fluxo de

idéias a respeito da preservação dos monumentos no período do Estado Novo. Para atingir

esse objetivo procuramos situar seu lugar e influencia na estrutura política e como as relações

entre o mesmo e o poder instituído e a interferência do projeto de cidade que o novo regime

detinha nas suas idéias.

Referências: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. (Org.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. BONFIM, Andréa; PONTUAL, Virgínia. A força da tradição entre os intelectuais do InstitutoArqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. 1900-1960. Recife: Relatório Final de Pesquisa de Apoio Técnico / CNPq/ UFPE, 2006. CANTARELLI, Rodrigo. Contra a conspiração da ignorância com a maldade: a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais e o Museu Histórico e de Arte Antiga do Estado de Pernambuco. 2012. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

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