Um Olhar (Atento) sobre Timor

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Neste livro estão as minhas impressões sobre Timor e sobre os timorenses. Dele constam textos sobre os meus primeiros sete anos, dos dez em que por ali andei, publicados no Jornal “A Voz de Trás-os-Montes”.Em 2004 resolvi fazer um diário da minha estadia em Janeiro-Fevereiro e em Junho-Julho. Nele procurei transmitir fielmente as minhas impressões sobre os meus alunos, sobre o povo, os governantes, os educadores, as ONGs e o seu trabalho, a RTP Internacional, etc. Todos os textos foram consequência de um olhar atento, mas que “filtra” o que não interessa e transmite o quanto há de bom neste país.

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ROTARY CLUB DE VILA REAL

Um Olhar (atento) sobre Timor

Vila Real 2007

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Título: Um Olhar (atento) sobre Timor

Autor: Manuel Cordeiro

Edição do Autor

Composição e Montagem: Manuel Cordeiro

ISBN: 978-972-669-811-1

Depósito Legal: 258173/07

Impressão: Serviços Gráficos da UTAD

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PREFÁCIO

O Professor Manuel Cordeiro ensina em Timor. As suas visitas de trabalho

servem, também, para semear valores.

O Povo de Timor tem muitos valores, como demonstrou em mais de vinte

anos de Resistência, para não sucumbir como Povo, como Nação, como

comunidade cristã. E tem os seus mártires e heróis.

Mas, assim como houve um projecto antes de 1975, para justificar uma

invasão, guerra e anexação, houve, posteriormente, poderes e organizações

que revolveram as cinzas, de que Timor emergia, para incendiar nova

convulsão, talvez mais maléfica.

Como antes, 1975, houve ambições sobre os valores estratégicos e

energéticos, a cobiça foi espreitando oportunidades, e debilidades, no

decorrer da curta experiência de governo soberano.

Talvez, uma das oportunidades exploradas (entre outras também

tentadoras), tenha sido a manifestação de Abril de 2006, com certo tom

religioso, sensível são povo, com imagens e símbolos da sua crença.

Seguiram-se vários episódios de crescente violência que não mais pararam.

Se parece que os agentes do programa do caos para a morte da Nação

continuam activos e peritos, na sua estratégia, felizmente que também se

percebe que há quem persevere em manifestar esperança e coragem na

ajuda ao Povo de Timor, a aguentar esta crise de um ano, para não

desanimar de si mesmo, segurando o imenso tesouro obtido na vitória do

Referendo para a Independência.

O Professor Manuel Cordeiro é desses amigos que sente o novo drama do

Povo de Timor, e quer estar a seu lado, fomentando esperança, cultivando

valores, ensinando os jovens universitários timorenses.

Os acontecimentos que se foram dando em Timor, desde 1999, ano do

Referendo, até 2007, oferecem tumultuoso campo de estudo para

sociólogos, psicólogos e pastoralistas no aspecto religioso.

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Sem dúvida que em cerca de 450 anos de contacto com Portugal, foram as

Missões Católicas que mais terão intentado contribuir para a transformação

da alma dos Povos de Timor, oferendo-lhe os maiores valores humanos

universais e bíblicos, em concreto o Evangelho de Jesus Cristo.

A Administração do Governo, embora lenta também não esteve inactiva.

Sem essa contribuição de 4 séculos, de certo, não teria aparecido Timor

como Nação soberana, em 2002.

No seu Diário de vida e ensino em Timor, o Professor Manuel Cordeiro

apercebeu-se, luminosamente, das lacunas na formação pessoal dos jovens,

a desordem, os movimentos organizados “semi-militarizados”, como ameaça

da ordem pública, igualmente com a brandura ou nulidade da autoridade em

impor a disciplina necessária para o trabalho, o desenvolvimento e o Bem

comum de um Povo soberano.

Assim, as coisas chegaram a uma situação – talvez objectivo dos sinistros

planos – em que a própria soberania corre perigo eminente.

Talvez que, se no final da manifestação do ano passado, tivesse havido um

“árbitro” atento, ele teria levantado o “cartão amarelo” (pelo menos), aos

actuantes em cena, para que os seus responsáveis máximos avaliassem os

perigos em que lançavam o futuro e a soberania do pais que a todos

pertence.

A dedicação dos Professores Portugueses, como o Professor Manuel Cordeiro

é, de certo, dos elementos de mais qualidade e lealdade que hoje o Povo de

Timor tem a seu lado. Certamente que estes professores representam o

Povo Português que, agora, como em Setembro de 1999, está em suspenso,

inquieto, mas solidário com o Povo Timorense.

Oxalá que os Povos de Timor, amando a Pátria acima de tudo, todos unidos

ultrapassem este drama, com o fizeram de 1975 a 1999.

Díli, 7 de Março de 2007-03-09 P. João Felgueiras, S.J.

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ANO DE 2004

JANEIRO - FEVEREIRO

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11 DE JANEIRO - Domingo

Depois de duas noites de viagem cheguei a Díli, pela quarta vez. Pelo

caminho ficaram muitas horas passadas nos aeroportos de Londres,

Singapura e Darwin. Sem dúvida que é uma viagem muito cansativa, mas

tudo se supera quando os motivos que nos levam a tomar certas atitudes na

nossa vida, são nobres, como os da solidariedade e da cooperação. Não

houvera tanta gente pelo mundo desprendida de muitas das regalias que

hoje se podem desfrutar, e não sei o que seria de povos que foram

atingidos pelo vírus da pouca sorte, não tendo os mais elementares recursos

para terem uma vida com dignidade. Timor está no rol desses países. É por

isso que a falta de comodidades que aqui encontramos e a que estamos

habituados em nossas casas, são superadas pela esperança de contribuir

para que alguma coisa na vida destes povos se altere no sentido de tornar

mais dignas as suas gentes.

Quando se aterra no aeroporto Presidente Nicolau Lobato, parece que

mudámos de mundo. O desenvolvimento que se observa nos países que se

tocam durante o trajecto, é um contraste completo com a pobreza das infra-

estruturas deste aeroporto. Acresce que ao aterrar, o nosso pensamento vai

sempre para a Indonésia, pois a arquitectura dos edifícios da gare não

permite qualquer dúvida. Trata-se de típicos edifícios em espiral parecendo

querer chegar ao céu.

O trajecto para casa lembra o estagnamento das estruturas viárias e da

construção civil. Tudo continua como na primeira vez que aqui cheguei em

Novembro de 2001. Todos fazemos votos para que tudo isto se transforme

para melhor, pois só assim se podem criar boas condições de vida às

pessoas.

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Na ausência da carrinha da missão portuguesa usámos o táxi que, em cerca

de 15 minutos percorre o trajecto passando por Comoro onde se pode ver o

antigo aeroporto no tempo de Portugal, embora para pequenas aeronaves.

Hoje é o Heliporto das Nações Unidas. A passagem pela avenida que passa

em frente ao Hotel Timor, Makota no tempo dos indonésios, mantém o seu

nome original, ou seja, Almirante Américo Tomás. Embora não exista

qualquer placa pode confirmar-se pela indicação da placa de um pequeno

hotel que se encontra quando se chega ao final da avenida.

Chegados a casa foram-nos distribuídos os quartos tendo-me tocado em

sortes um pertencente à casa nº 1.

12 DE JANEIRO – Segunda-feira

Devido à diferença de horas e apesar de ter passado duas noites quase sem

dormir, a noite foi muito curta para mim. Uma boa parte foi consumida

acordado. Bem cedo me levantei e me dirigi para a Universidade onde fiquei

a saber qual o horário que me foi destinado. Tenho aulas das 8 horas às 11

horas da manhã de segunda a sexta-feira, pois vou leccionar duas

disciplinas ao terceiro ano. Embora as aulas só comecem amanhã, alguns

dos alunos fizeram-me uma visita pela manhã. Como já sou seu docente

desde 2001, não é de admirar que a minha presença de novo, lhes causasse

algum contentamento. São muitos meses que levamos juntos. Posso dizer

que os conheço muito bem.

Desde sempre tenho batido em pontos que considero fundamentais para a

formação dos jovens de hoje, os adultos de amanhã: a responsabilidade, o

trabalho, o espírito de sacrifício, a vontade de progredir, etc. Confesso que

não é fácil incutir nestes jovens estes valores. Não creio que a culpa seja só

deles. Atribuo-a mais ao modo como cresceram, cultivando o facilitismo, o

deixa andar, o não faz mal, etc. Que parece terem sido apanágio da

educação que os indonésios lhes quiseram impor. Enfim da minha parte vou

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continuar a bater sempre no realce destes valores. Pode ser que alguma

coisa fique.

Depois do almoço fui ao supermercado abastecer-me. Aproveitei para,

atentamente, tentar descobrir algumas mudanças de tudo o que rodeia o

trajecto, feito sempre ao correr do mar, passando pelo complexo do

Sporting de Díli, depois em frente ao Palácio do Governo, e seguindo pelas

traseiras da antiga intendência. O sol abrasador alterna com a sombra

fresquinha dos gondãos ou gondoeiros que se alinham ao longo do passeio,

com os seus troncos de alguns metros de diâmetro.

O dia terminou com o habitual envio de mensagem via telemóvel a dar

conta de que mais um dia passou.

13 DE JANEIRO – Terça-feira

Comecei com as aulas de Instalações Eléctricas. Depois de saudar os alunos,

velhos conhecidos, e depois de fazer as recomendações habituais centradas

na assunção da responsabilidade, da pontualidade, da necessidade de

trabalhar e outras recomendações mais ou menos triviais, iniciei a

transmissão de conhecimentos, tarefa sempre muito árdua, principalmente

quando o alvo são estudantes que pouco compreendem a língua portuguesa

e pouca vontade manifestam em aprendê-la. Aliás esse é um tema que

devia concentrar as atenções não só dos cooperantes portugueses, mas

também dos governantes timorenses. A opção pela língua portuguesa como

língua oficial foi uma decisão ousada e de risco. Para ter consequência na

obtenção dos objectivos em vista vai ser necessário lutar muito para alterar

as mentalidades de quem foi “martelado” durante os anos de ocupação

indonésia com as virtualidades da língua indonésia e com os malefícios da

língua portuguesa. Acrescido a isto temos ainda o facto de o português ter

sido pura e simplesmente proibido a partir de certa altura.

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O dia foi normal. Muito quente e abafado como muitos outros que terei de

passar neste período clima que se faz sentir em Timor.

14 DE JANEIRO – Quarta-feira

Dia perfeitamente normal. Começou com as aulas desde as 8 horas às 11

horas. Seguiu-se o almoço, no restaurante da Dona Eugénia, atascado, mas

limpo e com comida de alguma qualidade. Os legumes que diariamente põe

à disposição dos comensais são de comer e chorar por mais. Pela tarde

descansei, como nos meus tempos de criança na bem transmontana aldeia

de Remondes, olhando de cima para o Rio Sabor que passa bem abaixo dos

olhos dos remondeses. Todos os dias me dirijo para o quarto logo após o

almoço a fim de retemperar as forças para enfrentar o calor que se faz

sentir. Como não podia deixar de ser houve a habitual deslocação ao

supermercado, com dois objectivos subjacentes: abastecimento de bens

alimentares e “matar” o tempo. Pela tarde fui fazer uma visita ao MAC –

Movimento de Adolescentes e Crianças da Irmâ Eliene, para lhe mostrar que

já estava em Díli, com todas as tarefas que tínhamos combinado

devidamente cumpridas. Fui recebido com muito carinho pela Irmã, pelo

senhor Jeremias, tocador de órgão e de viola que normalmente acompanha,

em regime de voluntariado, as canções que as meninas e os meninos

cantam e por toda a criançada.

Despedi-me com tudo combinado para na próxima segunda-feira

comparecer de novo para pormos todos os assuntos em dia. A viagem de

regresso foi já de noite sem que isso constituísse qualquer preocupação da

minha parte tal é a confiança que deposito nas pessoas com quem me cruzo

no trajecto.

Ao fim do dia ainda houve tempo para combinar com um dos guardas de

serviço às casas da cooperação portuguesa onde me encontro hospedado a

forma de receber pão pela manhã. Depois de algumas tentativas de

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entendimento entreguei-lhe 25 cêntimos para o pão, mas pouco convicto de

a tarefa de que ficou incumbido fosse cumprida.

15 DE JANEIRO – Quinta-feira

Apesar de não ter aulas, o meu dia começou pelas 7 horas da manhã.

Levantei-me bem cedinho até para confirmar se as minhas dúvidas sobre se

teria pão ou não ficavam desfeitas. Tal como eu previa não havia guarda

nem pão. Os problemas de comunicação são um dos maiores handicaps ao

bom entendimento entre nós e os timorenses. Sempre respondem que sim.

O que é certo é que se verifica que afinal não compreenderam nada do que

se lhe disse ou se lhe perguntou. Tal como eu previa foi muito fácil trazer

pão para casa. Ainda bem porque o pão, mesmo que não abençoado, é

indispensável à minha alimentação diária.

Hoje não tive aulas. Tinha-me sido dito ontem que assim seria. Os alunos

deslocaram-se à escola técnica de Hera a fim de proceder à escolha dos

seus representantes ao senado da universidade. Pacífico que assim fosse

pois é um dever num país democrático os estudantes participarem

activamente no governo dos órgãos dirigentes da instituição onde estudam.

O que não pode haver é exageros. Inicialmente estavam destinados dois

dias para cumprir este dever cívico. O primeiro dia seria dedicado à

campanha eleitoral e o segundo à votação. Com alguma persistência e

alguma habilidade à mistura foi possível cumprir tudo num só dia.

À noite dirigi-me para o Hotel Turismo a fim de participar na reunião do

Rotary Club de Díli. Em vão. As reuniões foram interrompidas até ao dia 28

porque muitos dos companheiros se encontram fora de Timor. Foi pena

porque levava um pedido do Governador do meu Distrito para seleccionar

um profissional para ir estagiar a Portugal Fica para uma próxima

oportunidade.

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16 DE JANEIRO – Sexta-feira

Bem cedo parti para a universidade para iniciar um novo dia em Díli. Depois

de passar pela sala dos professores, com uma tentativa falhada de imprimir

uma tabela de secções de condutores necessária para a aula que iria dar de

seguida, lá me dirigi para a sala. Ao contrário do que é costume já os meus

alunos se encontravam sentados na antecâmara do corredor que dá acesso

à sala de aulas. Com uma capacidade muito fraca para vencer a inércia, foi

preciso uma chamada de atenção para que todos, ordeiramente, se

dirigissem para a sala. Claro está que o tema da falta de responsabilidade foi

o primeiro que abordei nas primeiras palavras que lhes dirigi.

Como sempre tentei colocar-lhes um problema bem real para assim os

animar a trabalhar. Tratava-se do projecto de uma rede de distribuição de

energia eléctrica a várias casas pertencentes a alguns deles. É mais uma

alternativa de falarmos sobre as naturalidades de cada um deles. Penso que

eles gostam e sentem que o docente, embora tenha como finalidade

principal ensinar, também pode ser um amigo que se interessa pela vida de

cada um dos seus alunos.

Depois de grande expectativa pus em prática o plano de, pela primeira vez

desde há muitos anos, ir para a cozinha e fazer o meu jantar. A ideia já

vinha germinando desde que chegara. De passagem por um vendedor de

rua, comprei batatas e xuxus que preparei para o jantar. Não digo que

tivesse sido um sucesso até porque não convém pois muitas vezes dá jeito

não saber fazer, seja o que for, mas que foi um bom jantar lá isso foi. Até

penso repetir.

17 DE JANEIRO – Sábado

Mesmo não sendo dia de trabalho, às sete da manhã saltei fora da cama.

Depois de cumprir as várias etapas da higiene pessoal, saí para comprar o

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pão que não dispenso na ementa diária. É um hábito alimentar que me

acompanha desde os tempos de juventude.

Os planos que tinha traçado para este dia foram completamente alterados.

Deles fazia parte a caminhada em passo rápido até muito perto da praia da

areia branca. A dificuldade das comunicações via internet que experimentei

na tarde de ontem na sala que a FUP nos tem destinada, muito contribuiu

para a decisão de abandonar essa caminhada. É que tenho vários exames

de Portugal para receber e enquanto não os tiver em minha posse o stress

não me abandonará.

Em consequência dirigi-me à missão portuguesa onde, devido a

conhecimentos antigos, que advêm da minha primeira vinda a Timor

integrado neste projecto, entrei e fui directo à sala onde o acesso à internet

é permitido. Como cumprir horários não é apanágio de um timorense que se

preze, depressa constatei que o horário afixado na porta era pura ficção.

Rezava que esta deveria estar aberta entre as 9 e as 12 horas. Eram cerca

de 10H30m quando o funcionário, meu conhecido desde Novembro de 2001,

chegou com a calma própria de quem tem todo o tempo do mundo para

cumprir a tarefa que lhe está confiada, ou seja, a de abrir a porta. Meus

companheiros (as) de espera eram já muitos. Todos professores

portugueses a leccionar em Timor, no ensino secundário ou na formação de

professores timorenses. Uns vieram de Ailéu, outros do Suai, outros ainda

de terras bem distantes de Díli. Normalmente deslocam-se aqui a fim de se

abastecerem de bens alimentares ou para receberem o correio quer a

tradicional carta quer o actual prático e rápido email. Ou ainda para ler as

últimas notícias de Portugal e do mundo através da internet.

Face à alteração de planos passei o dia por casa, descansando, escrevendo

ou vendo televisão.

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18 DE JANEIRO – Domingo

A minha condição de católico praticante “fez-me” levantar bem cedo para

me deslocar à Igreja de Motael a fim de assistir à missa dominical que

começa às 8 horas da manhã. O modo como a missa se desenrola, a uma

cadência lenta mas segura, faz-nos recordar os tempos de miúdo em que a

sua extensão temporal nos fastidiava muito. Hoje isso já não acontece. A

lógica da necessidade de passar o tempo mentaliza-nos de que tanto faz

passá-lo de uma maneira como da outra. O que é preciso é ocupá-lo. Assim

a duração da missa não traz qualquer sentimento de fastídio. Antes pelo

contrário, retempera as forças de que necessitamos para vencer todas as

dificuldades que o desenrolar da vida nos vão pondo à nossa passagem pelo

tempo.

A concentração e a ordem com que as pessoas a ela assistem são dignas de

realce. Então o momento da comunhão é o mais significativo. Os dois

sacristães encarregados de conduzir a cerimónia colocam-se na ala central

dando indicação aos fiéis que chegou o momento de a sua fila avançar. A

um ritmo constante todos se vão encaminhando para receber a comunhão,

regressando pelas alas exteriores. É digno de se ver, sem dúvida. A missa

termina sempre com a caminhada do Senhor Padre e dos seus ajudantes,

descendo a igreja pela ala central e encaminhando-se para a sacristia.

Terminada a missa e depois de um retemperado pequeno-almoço, comecei

a caminhada de descontracção e consumo de energias excedentárias, que o

exercício faz falta ao corpo. Com um ritmo rápido como convém, aí vou pela

marginal acima a caminho da praia da areia branca. O objectivo da minha

caminhada fica um pouco antes, talvez um quilómetro.

Sucessivamente a passo firme, contemplo o mar calmo onde é possível ver

alguns barcos de pesca e o barco que serve de hotel, desde o ano de 2000,

logo após o referendo. Uma pequena paragem bem junto à água, permite

ver ao longe a igreja de Motael e o farol. Virando para o outro lado podemos

ver o monumento do Cristo Rei.

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Continuando atravesso uma ribeira com alguma água estagnada e com

vestígios de muito lixo doméstico, lançado pelos moradores que se

aglomeram ao longo do seu trajecto.

Mais adiante fica o cemitério de Santa Ana, datado de 1963, podendo ver-se

à esquerda um pequeno monumento e à direita a gruta de Santa Ana.

Continuando passo pelo restaurante Sagres Beach e por outros que se

encontram, de um e outro lado da estrada. Finalmente chego ao meu

destino, depois de passar pelo cruzamento que indica a Praia da Areia

branca, que se pode ver ao longe, bem junto aos pés do Cristo Rei, e

Baucau. Esta placa, como muitas outras coisas aqui existentes, são do

tempo da administração portuguesa. O regresso é feito com uma passada

mais lenta porque o cansaço já aperta e a idade não perdoa. Depois do

almoço, a tarde foi destinada ao descanso. E assim se passou mais um dia

na vida de um docente universitário em Timor.

19 DE JANEIRO – Segunda-feira

Durante a manhã tudo se passou dentro da normalidade, com as várias

tarefas a sucederem-se no tempo ao ritmo do costume: levantar, ir ao pão,

tomar o pequeno-almoço e ir para as aulas. Para quem nunca experimentou

leccionar num curso dado em português a alunos que pouco falam e

compreendem a nossa língua, não imagina a dificuldade de que essa simples

e nobre tarefa de ensinar, se reveste. Ao professor põem-se-lhe

constantemente problemas de como ensinar. A escolha da estratégia

correcta é tarefa hercúlea. Aquela que no momento pode parecer a mais

adequada deixa de o ser quando as circunstâncias se alteram. Ao professor

exige-se uma constante disponibilidade para alterar o modo como transmite

os conteúdos programáticos da disciplina que tem a cargo. E mesmo destes

é necessário extrair em cada instante aqueles que parecem mais adequados

ao interesse dos alunos e deixar outros que, embora importantes, não o são

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para estes alunos. Estou em crer que muitas das dificuldades de

aprendizagem que eles mostram são consequência do desconhecimento da

língua portuguesa. No entanto não se pense que os alunos timorenses são

pouco dotados. Não é o caso. Têm é hábitos de trabalho que não se

coadunam com o ritmo com que tudo hoje em dia se processa. É importante

insistir nas teclas da responsabilização e da necessidade de trabalhar.

Talvez fruto da dificuldade de comunicação entre docentes e alunos, há por

vezes alguns atritos que se torna necessário ultrapassar para bem de uns e

de outros.

A vida de um professor em Timor não é só leccionar. Paralelamente

desenvolvo uma actividade de carácter social que considero muito

importante especialmente para mim: ajuda-me a passar o tempo e dá-me a

satisfação de poder ajudar quem precisa, neste caso algumas crianças de

Timor. Por incumbência das senhoras do Rotary Clube de Vila Real, ao qual

pertenço, fui entregar um rádio, que previamente comprei numa loja de

aparelhos de som, à Irmã Eliene para que as suas crianças possam dar asas

à alegria que irradiam enquanto cantam e dançam. Foi uma tarde cheia de

muito significado para mim. Dar a mão ao próximo é o lema deste ano do

movimento rotário. Foi o que eu fiz. Por isso sinto-me feliz. Apresentei aos

meninos presentes o filme que tinha feito em Vila Real, na festa de Natal da

Escola dos Quinchosos. Foi muito lindo ver os meninos de Vila Real cantar

para os meninos de Timor. Entreguei também o donativo que reuni em Vila

Real, entre os amigos que disponibilizaram algum do seu dinheiro para

permitir que crianças necessitadas sorriam.

20 DE JANEIRO – Terça-feira

Aquele que poderia ser um dia como os outros, acabou por ser um dia com

alguma turbulência. Como todos os dias acontece tive aulas das oito às 11

horas. Tudo correu muito bem, até acima das minhas expectativas pois o

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desempenho dos alunos foi muito bom, o que me satisfez particularmente.

O tema que estou a tratar, redes de distribuição de energia eléctrica em

baixa tensão., com exemplos bem concretos do dia a dia timorense, foi

facilmente apreendido por eles. A areia no andamento da carruagem foi

introduzida por alguma inquietação dos alunos em relação ao funcionamento

de uma das disciplinas. Procedi como era aconselhado, ou seja, transmiti-

lhes a ideia de que tudo se resolve desde que as pessoas estejam

disponíveis para o diálogo. Em consequência deste problema os professores

de electrotecnia presentes em Timor, reunimo-nos pela tarde para trocar

experiências, para falarmos dos problemas inerentes à leccionação e para,

em conjunto, tentarmos arranjar as estratégias mais adequadas à

prossecução dos objectivos que todos temos em vista, honrar o nome das

universidades portugueses através de uma postura o mais exemplar

possível. Foi uma reunião muito interessante porque trocámos algumas

ideias e falámos de alguns factos menos agradáveis que por vezes

acontecem e que, embora marginais ao ensino, podem sobre ele ter alguma

influência na medida em que têm docentes como intervenientes. Como co-

responsável que sou pela licenciatura em Engenharia Electrotécnica,

comprometi-me a introduzir algumas alterações no curriculum das disciplinas

da área. Espero assim contribuir para facilitar a leccionação dos docentes

que delas forem responsáveis. Tudo o que possa ser feito para que as

pessoas se sintam bem em terras tão longínquas, deve ser feito.

O resto do dia correu dentro da normalidade que é possível para quem está

tão longe dos que nos são mais queridos.

21 DE JANEIRO – Quarta-feira

Na sequência da reunião de ontem meti mãos à obra e, depois de cumprir

os rituais normais, ir ao pão, tomar o pequeno almoço e caminhar, sempre a

pé ligeiro, para a universidade e ensinar durante três horas, “arrumei” os

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programas das várias disciplinas da área da electrotecnia, de modo a dar-

lhes uma sequência correcta no sentido de lógica e harmoniosa. Os assuntos

têm que deslizar pelas várias disciplinas de modo a que no final tenhamos

um produto que sirva os interesses dos alunos e os prepare para um futuro

que, em muitos casos, será difícil. Estou certo de que essa melhoria se vai

notar e, especialmente por parte dos docentes, terão os conteúdos

programáticos mais claros. Espero que todos fiquemos a ganhar; os alunos

porque têm uma sequência de assuntos mais natural e mais lógica; os

docentes porque lhes são apresentados com mais clareza os temas que têm

que tratar e eu porque cumpri a obrigação a que me comprometi de tudo

fazer para que o curso se desenrole com normalidade e o melhor possível.

Tive oportunidade de conversar com o Engº Inácio, Decano do curso de

Electrotecnia da UNTL, na companhia do representante da FUP, Dr. Ângelo

Ferreira a fim de conseguirmos sensibilizar colegas da indústria a colaborar

na leccionação do nosso curso. É muito importante que haja docentes que

tenham a experiência do mundo real do trabalho para transmitirem aos

alunos as suas experiências e servirem-lhes de exemplo e de incentivo a

estudarem ainda mais para um dia conseguirem ser como eles.

No regresso a casa ainda tive oportunidade de cumprimentar o senhor

Reitor, o Professor Benjamim Corte Real, que, com a sua natural afabilidade

e simpatia se congratulou por me ver uma vez mais em Timor a colaborar

com a sua universidade.

22 DE JANEIRO – Quinta-feira

As saudades começam a apertar. É natural que assim aconteça. Já são duas

semanas sem ver os que nos são mais queridos. Há que arranjar forças para

ultrapassar estes momentos de grande nostalgia. É por isso que tento estar

sempre ocupado. A ida à internet à missão portuguesa para ver o correio e

ler o jornal, faz parte de todos os meus dias aqui em Díli. No seguimento da

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reunião que tive com os docentes de electrotecnia e a que me referi na

terça-feira, encontrámo-nos hoje de novo para lhes transmitir as alterações

que introduzi nos curricula, depois de ter em conta as suas sugestões.

Durante a aula da manhã tive que ceder um pouco do tempo para que dois

docentes da UNTL tivessem uma reunião com os meus alunos, a fim de

tentar resolver o problema que os aflige e que respeita ao funcionamento de

um das disciplinas que lhes estão a ser ministradas neste trimestre. Espero

que tudo termine em bem, embora ficasse apreensivo pelo aparente

nervosismo dos alunos quando regressei à aula. No que respeita à disciplina

que estou a leccionar, Instalações Eléctricas I, para já, seguida por

Instalações Eléctricas II, tem corrido acima das minhas expectativas. Devo

confessar que os alunos me estão a surpreender positivamente. Já os

conheço quase há três anos e já sinto por eles alguma familiaridade que,

confesso, não é muito normal na minha já longa experiência de vinte e nove

anos de docência.

Hoje comecei a tratar da minha ida à Nova Zelândia no regresso a Portugal,

via Sidney. Estou com alguma expectativa em conhecer a Nova Zelândia.

A vida é feita de objectivos e para mim são estas visitas no regresso a casa

que me dão forças para vir aqui colaborar. Se não fosse a possibilidade que

tenho tido e que vou continuar a aproveitar de conhecer novos mundos,

decerto não viria aqui tantas vezes.

23 DE JANEIRO – Sexta-feira

O aproximar do fim-de-semana desperta sempre um mistura de

sentimentos. Alívio por um lado e expectativa de descanso por outro. Depois

de uma semana de trabalho é sempre bom descansar ao sexto e ao sétimo

dia. As aulas decorreram com normalidade apenas aligeiradas por uns

momentos de descontracção que permitiram aproximar-me ainda mais dos

alunos. Falei-lhes das minhas deambulações pelo mundo, mostrei-lhes

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excertos de um filme sobre Moçambique e o Parque Kruger e algumas fotos

de Vila Real. O relacionamento que tenho com eles já se pode considerar de

amigos. É claro que a autoridade natural do docente dentro da sala de aula,

sustentada no cumprimento absoluto dos seus deveres e no respeito pelos

alunos, nunca deve ser posta em causa. É o que acontece comigo. Desde

sempre tento cumprir a máxima que o meu pai me transmitiu desde muito

pequeno: sê sempre um bom funcionário e cumpre sempre as tuas

obrigações que, em consequência, serás sempre respeitado. Sem dúvida

que a sabedoria que se adquire ao longo de uma vida de muito trabalho e

muito sacrifício, é de muita utilidade para quem tem a sorte de ter alguém

que lhe dê tais conselhos.

Pela tarde integrei-me no funeral da mãe do Presidente Xanana Gusmão. A

cerimónia fúnebre decorreu na catedral e estiveram presentes os

representantes diplomáticos acreditados em Díli, muitos membros do

governo, representantes de instituições públicas e privadas, os familiares e

muita gente do povo. O Presidente Xanana, na sua simplicidade genuína,

orientava a organização do cortejo dando indicações para a colocação das

flores nos carros que acompanhavam o caixão e para alguns pormenores

relacionados com a colocação do caixão no carro que o havia de levar ao

cemitério.

24 DE JANEIRO – Sábado

Durante a manhã nada de importante se passou. Bem cedo saí de casa e fui

à procura da RNTL – Rádio Nacional de Timor Leste. Depois de deambular

por várias ruas e depois de perguntar a várias pessoas lá consegui chegar a

um edifício em frente ao Centro de Estudos Judiciários. Dirigi-me à recepção

e fiquei a saber que chegara ao local que pretendia. Pela tarde ali me

desloquei de novo a fim de assistir à gravação do programa de rádio do MAC

– Movimento de Adolescentes e Crianças. Às três da tarde em ponto estava

Page 22: Um Olhar (Atento) sobre Timor

15

a entrar para os estúdios onde, numa sala de pequenas dimensões,

antecedendo o estúdio de gravação, já se encontravam os microfones

devidamente colocados e o técnico que iria fazer a gravação do programa e

posterior mistura e composição, o Senhor Hélio, timorense bem simpático e

com um sorriso aberto próprio de quem se está a preparar para

desempenhar uma tarefa com gosto. Sem dúvida que esta minha presença

constituiu uma oportunidade óptima para reforçar a admiração que nutro

por pessoas que conduzem adolescentes e crianças a desempenhar com

tanto empenho e, diria mesmo, arte, face aos meios disponíveis que são

escassos, tarefas como esta de levar a bom termo a gravação de um

programa de rádio. Parabéns à Irmâ Eliene e a todas as pessoas que, por

todo o mundo, desempenham tarefas tão nobres.

Assisti à gravação de dois programas que foram da autoria da Estefânia e da

Paula. O tema foi, como é inevitável, os direitos das crianças e a amizade

que deve haver entre os familiares e em geral entre todos os elementos da

sociedade. O entusiasmo com que todos entravam em “cena” na respectiva

vez, aliado ao “profissionalismo” demonstrado, leva-me a acreditar que

todos “sentem” bem fundo o conteúdo das frases que, umas a seguir às

outras, vão debitando em frente aos microfones. Oxalá que quem os ouvir, o

faça com a atenção que eles merecem. Apoiar instituições que conduzem

tão seguramente ao objectivo da formação, da educação e do amor próprio

de cada um, deve ser motivo de orgulho para quem o faça. Estou

plenamente convicto de que assim é. Vim da rádio ciente de que a opção

que muitos daqueles que responderam ao apelo que lhes lancei para apoiar

este grupo de adolescentes e crianças, podem sentir-se orgulhosos porque

estão a contribuir para que muitos deles tenham acesso a uma vida melhor

num futuro incerto e, certamente difícil, que os espera.

No regresso passei em frente ao quartel onde se encontra o nosso Batalhão.

O movimento que presenciei leva-me a crer que havia preparativos para a

apresentação de boas vindas ao agrupamento Hotel que vem de Vila Real.

Page 23: Um Olhar (Atento) sobre Timor

16

Para a semana lá me dirigirei ao Comandante, Tenente Coronel Xavier de

Sousa para lhe apresentar cumprimentos e para com ele combinar a entrega

do equipamento que transportou e que foi entregue pelo Rotary Clube de

Vila Real.

25 DE JANEIRO – Domingo

Para não fugir à regra o dia começou às sete da manhã. Feitas as rotinas

diárias, dirigi-me para a igreja de Motael para assistir à missa. No final dei

uma volta pelas ruas envolventes e encaminhei-me para casa a fim de tomar

o pequeno-almoço. Como é costume preparei-me para o habitual passeio

dominical. Saí em direcção a Becora, mas seguindo a marginal. Parei várias

vezes para apreciar a paisagem que se alcança na direcção do mar. Lá está

a Ilha de Ataúro, tão perto, mas quando para ela nos dirigimos de barco ou

dela regressamos, parecendo uma distância enorme. Observei os

pescadores a retirar as suas redes do mar e alguns deles pescando à linha

sendo o carreto uma garrafa de água vazia. O improviso atinge, por vezes,

proporções inimagináveis.

Sendo um dia de descanso, é propício à observação de imagens

extraordinariamente bucólicas como sejam as cabras e respectivos filhos a

deambular pela rua, acompanhadas pelos búfalos, vacas, galinhas, porcos e

outros. Estas são imagens que nunca se varrerão da minha memória tal é a

raridade e o bucólico que elas representam. Chegado à ribeira, que neste

momento não tem pinga de água, virei à direita encaminhando-me, sempre

a seu lado, passando por debaixo de grandes gondões, de tronco enorme e

de envergadura de deixar qualquer pessoa boquiaberta de admiração, fui

avançando não sem que, de vez em quando, tivesse que limpar o rosto tal a

quantidade de água que por mim corria.

Neste trajecto pode ver-se a Escola Duque de Caxias, reabilitada pelos

militares brasileiros e, por isso, com este nome alusivo a uma importante

Page 24: Um Olhar (Atento) sobre Timor

17

personalidade brasileira. Com o andamento normal, rápido quase sempre,

fui vencendo a distância que me separava da casa, onde pretendia chegar

por volta do meio-dia. Passei pelo cemitério de Santa Cruz e depois pelo

dedicado aos cidadãos indonésios que, em tempos, foi motivo de forte

reclamação por parte da primeira Ministra Sukarno Putri, seguindo pela Rua

das Madres, com passagem pelo Seminário Menor de Balide e pelo Colégio

de S. José, chegando à igreja da paróquia de Balide. Como pretendia

localizar a casa dos Jesuítas, para em breve visitar o Padre João Felgueiras,

fiz uma inflexão no meu trajecto e virei em direcção a Dare, e depois à

esquerda para Becora. Depressa reconheci a casa que pretendia encontrar.

Feito o reconhecimento tomei o trajecto normal que me trouxe a casa. O

resto do dia foi normal, passado em casa a escrever, este e outros textos

que tenho em andamento.

26 DE JANEIRO – Segunda-feira

Pela manhã tive oportunidade de cumprimentar a delegação da FUP,

liderada pelo Professor Meira Soares. Encontrámo-nos casualmente na sala

dos professores. Vinham acompanhados do Reitor da UNTL, Professor

Benjamim Corte Real e do Engº Inácio, decano da faculdade de Engenharia.

Espero, tal como todos os restantes cooperantes, que a sua vinda cá sirva

para fortalecer o projecto e para criar melhores condições de

funcionamento, apesar de as actuais já serem bastante boas. Após o

almoço, hoje no restaurante City Garden, onde antigamente era o D. Aleixo,

fui para casa a fim de descansar. Liguei a televisão e, para meu

contentamento, estava a transmitir o jogo entre o Vitória de Guimarães e o

Benfica, já com a segunda parte a decorrer. O Benfica ganhou, mas tudo

terminou com uma grande tristeza, devido à morte do jogador Feher. Não é

o primeiro caso que acontece. Aliás já aconteceu por várias vezes. Não é

Page 25: Um Olhar (Atento) sobre Timor

18

fácil compreender como estas coisas acontecem a gente jovem e com uma

preparação física tão consistente como é a de um jogador de futebol.

27 DE JANEIRO – Terça-feira

A manhã foi igual aos outros dias, pelo menos até às onze horas. Tive as

aulas do costume, que correram bem. O esforço exigido para que haja êxito,

ou seja, para que os alunos compreendam os conceitos que lhe transmito, é

muito grande. Além das falhas na compreensão da língua portuguesa ainda

tem como handicap um ensino pré universitário muito permissivo e

deficiente. Com esforço, no entanto, lá vou conseguindo levar a água ao

moinho.

Às onze saí da universidade e encaminhei-me para China Rate/Taibesse a

fim de combinar com o Padre João Felgueiras a entrega do material escolar

aos alunos da sua Escola Nova de Santo Aleixo, a erguer em espaço

contíguo à casa onde estão sedeados os Jesuítas. O trajecto passa pelo

antigo Mercado Municipal, agora completamente recuperado, pela Igreja de

Balide, atravessa a ribeira e passado pouco tempo estava a falar com o

Padre Felgueiras. Recebeu-me com a simpatia que lhe é peculiar, tendo-me

desde logo reiterado o pedido de desculpas por não se ter deslocado a Vila

Real a fim de nos falar na sua experiência em Timor, já longa de trinta e

dois anos.

Transmiti-lhe as saudações do Rotary Clube de Vila Real e informei-o do

dinheiro que lhe vou entregar para ajudar à construção da sua escola. A

ligação entre esta e o jardim de sua casa, é feita por uma porta de metal

que, informou-me ele com um sorriso largo, ia ser por mim inaugurada pois

seria eu a primeira pessoa a utilizá-la. Mostrou-me o terreno com cerca de

2000 m2 e transmitiu-me as alterações de planos que teve que fazer. Como

o início da construção da escola está atrasado, começou por recuperar a

casa de habitação que lá se encontra, a fim de poder começar a utilizá-la

Page 26: Um Olhar (Atento) sobre Timor

19

para, nos quartos que serão salas, começar com as aulas, nomeadamente

de língua portuguesa, pois as solicitações para tal têm sido muitas. O

dinheiro que, em nome do meu clube lhe entregarei, servirá para acelerar

esta recuperação.

Ao fim do dia tive uma reunião com a equipa da FUP que aqui se encontra.

Estiveram presentes todos os docentes que neste segundo trimestre aqui

estão a leccionar. Trocámos algumas impressões e foram-lhes transmitidas

algumas preocupações para reflexão, para assim podermos melhorar a

prestação docente. O espírito de que nos encontramos imbuídos, augura

uma boa prestação de todos. Tive oportunidade de alertar para a

necessidade de as universidades estarem dentro do projecto. É preciso que

dêem garantias de que os seus docentes sejam recompensados, não

monetariamente, mas com algumas facilidades, por exemplo, nos horários

ou valorizando a sua participação neste projecto.

Após a reunião e no regresso a casa, foi-me confidenciado por um colega

alguma apreensão por situações de violência vividas na comemoração do

seu aniversário, na praia da Areia Branca, protagonizadas por alguns

timorenses, sobre malaios (brancos). Estes factos alertam-nos para a

necessidade de reforçar as cautelas e moderar as atitudes. É cada vez mais

necessário respeitar a cultura e as tradições deste povo. Festa na praia, com

música e bebidas, pode constituir uma provocação a costumes menos

exuberantes.

28 DE JANEIRO – Quarta-feira

Tudo normal. Apareceu na aula a delegação da FUP, acompanhada pelo

responsável da RDP Internacional em Timor, o jornalista António Veladas.

Foi um momento muito interessante que aproveitei para transmitir aos

ilustres visitantes, o progresso que os meus alunos têm tido desde que com

eles iniciei esta caminhada em direcção à obtenção de um grau superior, por

Page 27: Um Olhar (Atento) sobre Timor

20

que todos anseiam. É muito gratificante para um docente constatar o

progresso que os seus alunos vão tendo, à medida que os conhecimentos

lhes vão sendo transmitidos. Para eles foi motivo de orgulho o facto de eu

os ter apresentado um após outro, pelo nome e pela terra de onde são

naturais.

Durante a visita, muito breve, foi-me solicitado pelo António Veladas, a

minha colaboração no projecto que recentemente abraçou, de publicar

semanalmente um jornal de língua portuguesa a que pôs o título de

Semanário. Aceitei de imediato. Pediu-me para falar sobre os temas que

estava a versar na aula, ou seja, a energia eléctrica. Como é de calcular

esse é um campo onde me sinto muito bem. Vou fazer tudo para

corresponder à confiança que em mim depositou e espero contribuir para o

despertar de mentalidades para a importância do tema.

Após o almoço fui visitar o Comandante do agrupamento HOTEL. Confirmou-

se o que eu pensava. Embora já tivesse chegado há quinze dias, só ontem

chegaram os últimos. O material escolar que trazem, entregue pelo Rotary

Clube, ainda não chegou. Contactar-me á por telefone logo que chegue.

29 DE JANEIRO – Quinta-feira

Dando seguimento ao pedido feito pelo António Veladas, escrevi aquele que

será o primeiro texto que publicarei no Semanário de Timor, jornal de língua

portuguesa. É muito positivo que haja um jornal em língua portuguesa num

país onde o português é língua oficial a par do tetum. Pode ser um bom

instrumento de aprendizagem para muitos timorenses que pouco ou nada

falam ou compreendem português. Por vezes interrogo-me se não haverá

timorenses, em número significativo e numa faixa etária entre os 15 e os 35

anos, que fazem alguma obstrução à aprendizagem do português. Pode ser

apenas por preguiça, mas que se sente essa areia na engrenagem, lá isso

sente.

Page 28: Um Olhar (Atento) sobre Timor

21

O meu primeiro artigo sairá para a próxima semana pois nesta já não era

possível inclui-lo. Espero contribuir para o esclarecimento de algumas

pessoas para o tema da energia. Esse é o meu propósito. Se o conseguirei

ou não, mais tarde se verá.

Ao fim da tarde tive uma reunião com a delegação da FUP para tratar de

problemas existentes entre os alunos do 2º Ano e uma das docentes. Tudo

farei para contribuir para que tudo se resolva e as duas partes saiam com a

dignidade que lhes é devida.

Após a reunião fui para o Hotel Turismo a fim de assistir à reunião do Rotary

Clube de Díli. A reunião decorreu nos moldes habituais, embora bem

diferentes dos das nossas reuniões em Vila Real. Entreguei ao Presidente do

clube a carta do Governador do meu Distrito, companheiro Diamantino

Gomes, acompanhada por um resumo em inglês pois é esta a língua oficial

nestas reuniões. Pode parecer estranho, mas assim é. Durante a reunião foi

apresentado um projecto, já implementado, de entrega de uma ambulância

a Timor, incluindo formação técnica de alguns técnicos de saúde que a irão

utilizar, ao serviço das respectivas populações.

No final da reunião tive oportunidade de trocar impressões com um

companheiro australiano que, por coincidência, tinha estado na ilha de Jaco

com um colega docente. Foi muito interessante constatar a alegria com que

a mim se dirigiu e trocámos algumas ideias do dia a dia timorense. Isto é

uma das razões pela qual muito me agrada pertencer a este movimento. As

pessoas que se conhecem, a troca de conhecimentos que se pode fazer, é

um incentivo para continuar a levar à prática as recomendações do nosso

fundador, Paul Harris.

30 DE JANEIRO – Sexta-feira

Hoje a manhã foi diferente do habitual. Durante a aula fui visitado pelo

Professor Meira Soares e pelo Dr. Ângelo Ferreira. Vinham acompanhados

Page 29: Um Olhar (Atento) sobre Timor

22

pelo repórter da RTP, Pedro Valador. Filmaram durante algum tempo a aula,

com esta a decorrer com a normalidade com que decorre todos os dias.

Foram-me solicitados comentários sobre a minha experiência de ensino, aqui

em Timor. Faltaria à verdade se não dissesse que tem sido gratificante para

mim esta experiência, tão longe de quem me é mais querido, minha família

e os meus amigos. A evolução que os meus alunos mostram, em termos de

conhecimentos adquiridos e de postura perante os problemas do dia a dia,

são um incentivo para continuar com esta tarefa. Aproveitei para realçar as

virtualidades do projecto da FUP – Fundação das Universidades Portuguesas

que, espero eu, será um marco na implantação e no reforço da língua

portuguesa em Timor, bem como um impulso no reforço das relações entre

Portugal e Timor.

Espero também que a minha intervenção constitua, com muitas outras, uma

possibilidade de alguns portugueses se tranquilizarem pois o dinheiro que

Portugal está a gastar em Timor está a ser bem utilizado.

Após o almoço continuámos a reunião de ontem agora com a presença da

colega envolvida. A sua abertura para a resolução do problema, o modo

como escutou as recomendações que lhe foram feitas, auguram uma

resolução rápida para o problema. Espero que os alunos cumpram também

a sua parte. Só com empenho das duas partes é que o problema se pode

resolver.

À medida que o tempo passa, melhor conheço a realidade timorense. Por

exemplo fiquei a saber, através dos meus alunos, que Timor não é

homogéneo no que respeita aos processos de resolução dos problemas que,

com maior ou menor escala, aparecem. Em Maliana, Los Palos e Baucau,

dizia-me um aluno, os problemas não se resolvem com a cabeça, resolvem –

se pela violência. Isto faz-me reflectir sobre a nossa estadia aqui. Será que

estamos em segurança? E se este espírito de violência, intrínseco a muitos

timorenses, vem ao de cima? Como actuar numa situação destas? Será que

Page 30: Um Olhar (Atento) sobre Timor

23

estamos preparados? Enfim são muitas questões, com respostas incertas,

que se podem fazer.

A contrapor a estas preocupações, fiquei a saber que Los Palos quer dizer

“jardim do barco” em língua local. A jardim está associada a flor, que não

pressupõe violência. Então porque é que as pessoas o hão-de ser?

A leitura do site da TVI, deixou-me extraordinariamente emocionado. As

palavras da mãe do jogador húngaro morto há dias em Portugal, tão simples

e de um conteúdo tão profundo, trouxeram à minha mente o papel que as

mães representam na vida de todos nós. Dirigiu-se ao filho em conversa

natural como se ele a ouvisse. Repassou todas as recordações que ele lhe

trouxe à memória, desde o seu nascimento até à sua morte. Foi muito

bonito para mim.

31 DE JANEIRO - Sábado

Bem cedinho saí de casa para fazer exercício físico. A idade a isso aconselha

embora todo o cuidado seja pouco, tal é a quantidade de casos de

complicações surgidas na sequência de exercícios físicos feitos sem o

acompanhamento médico devido.

No que me respeita tento fazer tudo com moderação e com muito auto

controlo. O trajecto seguido é o mesmo de sempre: ir até muito perto da

praia da Areia Branca e regressar. Hoje dediquei alguns minutos à gruta de

Santa Ana em Bidau, situada no lado direito da estrada quando se caminha

no sentido do Cristo Rei. Detive-me por alguns minutos e subi ao cimo

podendo observar com mais detalhe a imagem e a placa descerrada

aquando da inauguração deste pequeno, mas muito interessante

monumento A simplicidade da sua construção segue o que se passa com

muitos outros monumentos que existem neste jovem país. Da lápide

respiguei o seguinte: Viva Mãe de Deus. Viva sem fim; São José, Santa Ana,

São Joaquim.

Page 31: Um Olhar (Atento) sobre Timor

24

Na minha ida à missão portuguesa, a fim de ler o correio electrónico,

mandar a minha correspondência e ler os jornais, aproveitei e passei pelo

Instituto Camões, situados no 2º Andar do edifício ACAIT – Associação

Comercial Agrícola e Industrial de Timor. Como não havia internet, sobrou-

me algum tempo até ao almoço que aproveitei para ver alguns livros antigos

sobre Timor. Desfolhei um onde se podem ver algumas dezenas de postais

antigos, desde o início do século XX até ao pós guerra. No texto introdutório

pude confirmar a informação que já tinha: durante a invasão japonesa, em

Díli, só ficaram de pé 10 edifícios. Tudo o resto foi arrasado. O mesmo se

passou em Ailéu, Maubisse, Ermera e outras cidades espalhadas por todo o

território de Timor. O contacto com este livro deu-me uma ideia que vou

tentar pôr em prática já na próxima semana, fotografar alguns dos edifícios

ou ruas que são retractados nos postais. Parece-me interessante, fazer o

confronto do Díli de então com o Díli de agora.

1 DE FEVEREIRO – Domingo

A missa na igreja de Motael, às 8 horas é o meu primeiro acto em cada

Domingo que passa. Pelo caminho fui surpreendido pela voz de alguém que

andava a fazer exercícios matinais, nada mais nada menos que dois militares

do agrupamento HOTEL que me disseram que já podia entregar o material

escolar enviado pelo Rotary Clube de Vila Real. O resto do dia foi o normal.

Ida à internet para pôr a escrita em dia e ler as notícias dos jornais

portugueses. Aproveitei a tarde para descansar pois o calor intenso

acompanhado por uma humidade muito elevada, exige muito esforço a

quem trabalha nestas condições. È preciso recarregar baterias para

enfrentar a próxima semana que, tal como todas as outras, são aproveitadas

por mim para cumprir o serviço docente que me está atribuído e ainda

preocupar-me com o andamento do curso, do qual sou co-responsável.

Page 32: Um Olhar (Atento) sobre Timor

25

2 DE FEVEREIRO – Segunda-feira

As aulas de hoje destinei-as à preparação do exame de amanhã. Penso que

os alunos estão bem preparados. Vamos ver se os resultados estarão de

acordo com aquilo que é o meu desejo.

Telefonei ao Padre João Felgueiras para combinar com ele a entrega do

material escolar à sua Escola. Na próxima Sexta Feira a partir das 11H20 m

lá estarei, assim espero, a fazer a entrega e ver a reacção dos alunos a esta

oferta. Lá estarão as senhoras professoras e eu irei acompanhado de alguns

colegas que manifestaram interesse em acompanhar-me e aproveitar a

oportunidade de conversar um pouco com o Padre Felgueiras. É uma

oportunidade de ouvir alguém que conhece Timor como poucos e cuja vida,

nos últimos trinta e dois anos, está intimamente ligada à trajectória que

Timor tem tido desde os tempos de colónia portuguesa até hoje, o mais

jovem país do mundo.

Vou manhã falar com o Comandante Xavier de Sousa para acertar os últimos

pormenores desta tarefa de que fui incumbido pelo meu clube.

3 DE FEVEREIRO – Terça-feira

Hoje os meus alunos fizeram o exame de Instalações Eléctricas I. O José

Vaz não compareceu por se encontrar doente. Não é a primeira vez que

algum dos meus alunos não comparece nas aulas por estar doente. É muito

frequente isso acontecer. Sem dúvida que há ainda muito a fazer na

prevenção da doença neste jovem país. Pareceu-me que todos enfrentaram

o exame com alguma confiança. Vamos ver os resultados.

Como já tinha mandado para Vila Real a crónica da energia e o texto sobre

Timor, a minha ida à internet foi feita com mais descontracção do que

nalguns dias. A obrigatoriedade que assumi com o jornal, aliada à minha

vontade de cumprir sempre os meus compromissos, não me deixa

alternativa. É necessário ter imaginação e empenho para, dia após dia, ir

Page 33: Um Olhar (Atento) sobre Timor

26

escrevendo textos que, assim o espero, sirvam para que alguns leitores

tenham alguns momentos de descontracção e de cultura. Logo após o

almoço lá fui combinar com os amigos militares o dia de sexta-feira. Fui

recebido com muita simpatia pelo Capitão Almeida que delegou no Sargento

Ajudante M Costa a tarefa de me acompanhar à saída e de me transportar o

equipamento escolar num jipe.

Continuei com a tarefa de marcar transporte para Camberra e hotel para

três noites. Ainda não foi hoje que aconteceu. Espero que o seja o mais

depressa possível porque o dia aproxima-se.

4 DE FEVEREIRO – Quarta-feira

Iniciei as aulas de Instalações Eléctricas II. Para já todos vão frequentar

esta disciplina. Embora tenham possibilidade de escolher entre as opções de

Sistema de Energia e Sistemas de Telecomunicações, não vai ser possível

funcionarem as duas por falta de docentes de telecomunicações. Vamos ver

como tudo vai decorrer.

Às onze saí da universidade e apanhei um taxi na direcção da casa das

Irmãs Dominicanas que aqui se encontram, a Irmã Eliene e a Irmã

Francisca. Já estavam à minha espera a Irmã Eliene e a Dulce, professora de

português em Timor, colocada aqui no âmbito da cooperação portuguesa. O

dia amanheceu com muita chuva, não tendo parado de cair durante toda a

manhã. Por isso foi necessário apanharmos um taxi pois íamos à Escola do

Paiol, do 1º Ciclo a funcionar desde 1982 e assim chamada por estar

construída no local onde, em tempos, era o paiol da pólvora do exército

português. Trata-se de uma escola construída pelos indonésios, com cerca

de 570 alunos e com 12 turmas a funcionar por turnos durante o dia. Tem

quinze professores sendo o seu Director o professor Salvador Vila Nova. A

razão da visita era conhecer os miúdos a quem vamos pagar o ensino que

custa seis dólares por ano a cada um. Possivelmente vão ser os alunos do

Page 34: Um Olhar (Atento) sobre Timor

27

4º Ano da Escola dos Quinchosos que vão ficar com essa responsabilidade.

Pelo menos para cerca de 20 já têm dinheiro que juntaram em colecta que

fizeram antes do Natal. Como choveu sem cessar, não foi possível fazer uma

foto com eles no exterior da escola pois, como pertencem a várias turmas,

só no exterior o podíamos fazer. Terminada a visita fomos almoçar

juntando-se a nós uma amiga da Irmã Eliene também brasileira, da Baía, e

que está em Timor acompanhando o marido que é funcionário das nações

unidas para os refugiados. Foi um almoço simples, mas muito bem

confeccionado pela funcionária timorense que está ao serviço das Irmãs. De

tarde regressei a casa e tudo decorreu dentro da normalidade sem nada que

merecesse realce.

Recebi um email do meu amigo chileno Valderrama que me deixou muito

contente. Dizia-me ele que tinha sido recebido em Vila Real muito bem,

como um amigo. Parabéns ao José Boaventura que se encarregou da

recepção.

5 DE FEVEREIRO – Quinta-feira

Pela tarde dirigi-me a casa do Alô Pereira, mais propriamente, ao seu

estúdio de gravação de CDs. Depois de perguntar a algumas pessoas lá

consegui chegar ao local. Passado pouco tempo passou um táxi de onde fui

chamado por alguns miúdos. Era a Irmã Eliene e alguns dos miúdos do

MAC. A deslocação destinava-se à gravação de um CD. Lá estava o Natalino,

a Mónica, a Estefânia, a Hermínia, a Jaque, a Suzete, e outros cujo nome

não me recordo. O senhor Alo Pereira já os esperava, embora estivesse a

ultimar um trabalho que nos obrigou a atrasar a gravação.

Por algum tempo gerou-se o pânico entre a Irmã e os cantantes. O órgão,

gentilmente emprestado pelo contingente militar brasileiro, tinha ficado na

mala do táxi que os tinha trazido desde o MAC. Desfez-se o acordo com a

Alô, os dólares regressaram à mão da Irmã Eliene e o momento tão

Page 35: Um Olhar (Atento) sobre Timor

28

esperado por todos, de gravar um disco, desmoronou-se como um castelo

de cartas. Por sugestão minha, escolhemos três miúdos, o Natalino, a

Mónica e a Estefânia e metemo-nos num táxi à procura do órgão. Descemos

a longa rua que parte perpendicularmente à ribeira em direcção ao centro.

Passámos pelo City Café, Missão portuguesa, universidade, hotel Timor, e

fomos em direcção ao aeroporto. As probabilidades de encontrar o táxi onde

aquele bem tão precioso, aumentaram quando todos concordaram que o

táxi era de cor branca. A partir desse momento toda a nossa atenção estava

concentrada nesses táxis. Já depois do heliporto, surge a sorte grande, ou

seja, o táxi com o órgão fora reconhecido pelos miúdos e circulava em

sentido contrário. O senhor Atai, assim se chamava o taxista que nos levava,

inverteu a marcha na primeira oportunidade. Devido ao muito transito, foi

muito difícil passar para a outra faixa. Entretanto estavam todos

concentrados no movimento do táxi alvo. Por sorte nossa parou um pouco

adiante num bakso, local onde servem comida indonésia. Aí chegados

depressa os três cantores saltaram do táxi e se dirigiram ao condutor do táxi

branco que, com um largo sorriso, lhes disse que ainda não tinha dado

conta do sucedido. Recuperado o “tesouro perdido” telefonei à Irmã Eliene a

dar a boa nova. Tudo se alterou. Regressámos ao estúdio, os dólares

passaram de novo para o Alô Pereira e deu-se início à gravação, agora com

alguns minutos, que pareceram dias, de atraso. Assisti à gravação da

primeira canção, cantada pela Hermínia e pelo Natalino. As suas vozes

suaves e doces, ecoaram pelo estúdio de dimensões reduzidas, sem meios

sofisticados, mas com um empenho muito grande por parte dos dois

técnicos, Alô Pereira e outro. Nestes momentos é que damos valor àquilo

que temos em excesso. Com meios tão reduzidos como se podem fazer

coisas com tanto valor! A canção era um hino a Timor e intitulava-se “Minha

querida Timor Lorosae”.

Page 36: Um Olhar (Atento) sobre Timor

29

Tudo terminou em beleza. Subi mais um degrau na consideração que estes

miúdos têm por mim. Não posso decepcioná-los. Tudo farei para que

acreditem em mim.

Abandonei os estúdios de gravação logo após esta primeira canção. Fui

descansar para casa e adiantar os textos que tenho que mandar para

Portugal.

6 DE FEVEREIRO – Sexta-feira

Este dia era por mim esperado com muita expectativa pois estava marcada,

há algum tempo, a tarefa de entregar o material escolar à Escola Nova de

Santo Aleixo, Amigos de Jesus, fundada pelo Padre João Felgueiras,

constituído por seis volumes e enviado pelo Rotary Clube de Vila Real.

Terminada a aula, já com a máquina a tiracolo, tomei um taxi e passados

cinco minutos estava à entrada do aquartelamento das tropas portuguesas.

Na minha companhia estavam uma colega e um colega que tinham

manifestado interesse em acompanhar-me. Feitas as formalidades à

entrada, lá me encaminhei, acompanhado do militar de nome Agudo, até ao

edifício do comando. Como civil que sou, compreendo muito bem as regras

que as instituições militares têm, principalmente no que à segurança

respeita. Assim, e depois de vir o chefe de viatura, Sargento-ajudante M.

Costa, natural de Chaves, mas a viver em Vila Real, de enorme e

espontânea simpatia, fomos em direcção a Taibesse. Aí já se encontrava o

Padre João Felgueiras acompanhado de algumas das senhoras professoras e

com os alunos nas respectivas salas, pois as aulas só terminam às 14H00.

De imediato os seis volumes do equipamento foram descarregados do jipe

militar e foram colocados numa das salas. Seguiu-se uma pequena

cerimónia, que foi grande no significado que teve paras as instituições

envolvidas: Escola, Rotary Clube de Vila Real e Agrupamento militar

português HOTEL. Foi colocado nos ombros de cada um de nós uma

Page 37: Um Olhar (Atento) sobre Timor

30

salenda, entregue a pessoas que os timorenses consideram importantes, ou

seja, de dignidade reconhecida.

O Rotary Clube de Vila Real e todos os seus membros e respectivas esposas,

estão de parabéns. Levaram a cabo uma tarefa que muito vai ajudar à

criação de condições para que muitas crianças timorenses tenham acesso ao

ensino. O Agrupamento HOTEL, mostrou que os militares não servem só

para fazer a guerra. Também são capazes de actuar em tempo de paz. A

eles, na pessoa do seu Comandante, Tenente-coronel Xavier de Sousa,

endosso os meus agradecimentos pessoais e os do meu clube, pois estou

certo de que esse é o sentimento do nosso Presidente, Luís Pizarro.

O Padre João Felgueiras fez questão de solenizar o momento e leu um texto

escrito do qual vou transcrever algumas passagens. Começou por dizer,

“vejo na vossa presença uma expressão de grande amizade. É mesmo essa

a grande oferta, o grande presente que nos fazeis”. Mais adiante expressou

o desejo de que “esta amizade entre nós perdure através dos anos, e nos

ligue como amigos. Criar amizade entre as pessoas, foi o plano de Deus”.

Referiu que esse é o objectivo da Comunidade Amigos de Jesus, por si

criada. Terminou a sua intervenção com um voto de que “a nossa amizade

vos tornará membros efectivos desta Comunidade Amigos de Jesus, agora e

para sempre”. No que a mim respeita, sem dúvida que essa amizade por um

homem da envergadura moral do Padre Felgueiras, pela sua obra, por tudo

quanto tem feito pelos timorenses mais frágeis, as crianças, tem vindo a

fortalecer-se.

De seguida fomos visitar o espaço onde vai ser construída a escola nova. Aí

fiz entrega do dinheiro que obtivemos, graças à generosidade dos membros

do nosso clube, no jantar de reis. O nosso clube contraiu mais

responsabilidades pois passou a fazer parte, por desejo do Padre Felgueiras,

do grupo da Comunidade dos Amigos de Jesus. Eu por mim aceito esta

responsabilidade e estou certo de que o mesmo se passa com todos quantos

ao clube estão ligados.

Page 38: Um Olhar (Atento) sobre Timor

31

7 DE FEVEREIRO – Sábado

A manhã foi normal. Saída bem cedo para fazer algum exercício físico e ida

à missão portuguesa a fim de “recolher” o correio electrónico. Com muitas

vezes acontece, e aqui no fim do mundo ainda com mais frequência, não me

foi possível “trazer” o correio. Assim sendo entrei no Instituto Camões e

aproveitei para requisitar o livro Postais Antigos e Outras Memórias de

Timor, da autoria de Luís Loureiro. Já anteriormente falara deste livro. Tem

uma introdução muito interessante onde relata os costumes dos habitantes

de Díli no início do século XX, referindo em especial a modo como decorria o

dia a dia dos habitantes de Lahane. Vai ser uma óptima ferramenta para

algumas ideias que tenho em mente e que pretendo levar a cabo muito em

breve.

Após o almoço fui ao quartel das nossas tropas, em Caicoli, por solicitação

de uma professora portuguesa de que já falei anteriormente, Dulce e que

vinha acompanhada da dona Arcília, senhora timorense. O objectivo era

pedir às nossas tropas ajuda para compor o acesso a uma escola onde a

Dona Ercília trabalha. Quando chove todo o espaço envolvente, incluindo o

peatonal, fica com lama, implicando que os miúdos e quem visite a escola

fiquem com o calçado sujo, arrastando lama para o interior da escola. Com

alguma sorte, ainda antes de fazer as formalidades que permitem a entrada

de pessoas estranhas à instituição, avistei o Senhor Comandante Tenente-

coronel Xavier de Sousa que, de imediato, me chamou. Feitas as

apresentações expliquei ao que ia tendo ele desde logo solicitado a presença

das senhoras que me acompanhavam. Com a amabilidade que o caracteriza,

pelo menos assim o diz a minha experiência, chamou o Capitão Almeida a

quem pediu que tomasse nota das solicitações que lhe estavam a ser feitas

e providenciasse no sentido de, o mais depressa possível, fossem feitas as

diligências necessárias à resolução dos problemas. Ao já referenciado

juntámos o da escola do Paiol, muito prejudicada pelas terras que se

Page 39: Um Olhar (Atento) sobre Timor

32

arrastam ao longo da encosta adjacente à escola pois esta está mesmo no

sopé do monte que lhe está contíguo.

Com mais propriedade posso hoje reforçar o que disse ontem: os militares

também sabem estar em tempo de paz. Estes e outros trabalhos têm sido

desenvolvidos pelos nossos militares aqui em Timor. Muitas escolas têm

bons acessos e condições mínimas de funcionamento por acção directa

destes homens. É necessário dignificar o seu trabalho. Não podemos pensar

neles só na guerra. Na paz são, também, muito úteis. Para completar o

“ramalhete” tudo correu bem. O Capitão Almeida é um lamecense de gema

e, como tal, o empurrãozinho a dar foi mais fácil. Tudo se conjuga para que

os trabalhos que referi sejam feitos muito depressa.

8 DE FEVEREIRO - Domingo

Domingo é dia de prestar contas a Deus. Comecei por assistir à missa e

regressar a casa pois queria assistir ao programa Comunidades onde ia dar

uma reportagem sobre o projecto FUP em Timor. Às onze horas já estava

em frente ao televisor pronto a disparar as duas máquinas de filmar, com

uma característica comum, ambas sony, mas separadas no tempo e nas

tecnologias utilizadas. Uma analógica e outra digital. Começado o programa,

e durante três minutos, em silêncio, ouvi e registei em filme a reportagem

feita pelo correspondente da RTP em Timor.

Os meios de comunicação audiovisual sem dúvida que constituem uma

prova de que o mundo é global, ou seja, é como se fosse uma só

comunidade, um só país, uma só cidade, enfim, uma aldeia. Passado alguns

instantes, recebi indicações de que tinha sido visto por familiares ou amigos,

na Europa e no Brasil.

Ao almoço, correspondendo a um convite feito por telefone, fui almoçar a

casa de um Juíz guineense, Luís Goia de seu nome, onde passei uns

momentos muito agradáveis. Deu para falarmos sobre muitos problemas, da

Page 40: Um Olhar (Atento) sobre Timor

33

Guiné e outros, e permitiu fazer mais uma amizade aqui tão longe da terra

onde nasci e onde, tão necessário é ter alguém com quem conversar.

Terminado o almoço regressei a casa. Pelo caminho passei no ACAIT onde

comprei o jornal Semanário que, pela primeira vez, traz um artigo feito por

mim, sobre a energia eléctrica. Fiquei muito satisfeito porque saiu muito

bem e pareceu-me que o enquadramento com que estava no jornal era o

mais adequado. Oxalá eu possa contribuir para que Timor construa um

futuro com paz e com progresso para que os anseios naturais de qualquer

ser humano, de viver melhor, possam ser atingidos, se não por todos, pelo

menos pela maior parte.

9 DE FEVEREIRO – Segunda-feira

Duas partes distintas neste dia: de manhã as aulas e de tarde visita ao

Centro Juvenil Padre António Vieira a fim de me encontrar com o Padre João

de Deus Pires, para ver a possibilidade de entregar algum dinheiro à sua

instituição. Trata-se do Orfanato de Santa Teresinha, sedeado em Quelicai,

na estrada Díli – Baucau, mas já muito perto desta. Nasceu em 1979 e,

desde então, tem acolhido muitas crianças que têm em comum o facto de

não ter pais. Como qualquer instituição deste tipo, tem tido momentos

difíceis pois como é sabido estas instituições vivem de donativos de

particulares ou de apoios estatais. Foi o que com esta sucedeu. Já foi

apoiada pela UNICEF, pelo governo indonésio e por alguns particulares. Em

conversa com o Padre João decidi pagar materiais de construção que vão

ser aplicados num quarto de banho que servirá para melhorar as condições

de todos quantos ali vivem. É a minha última tarefa no que respeita à

entrega de donativos a instituições timorenses. Neste caso particular trata-

se de dinheiro que foi conseguido na Escola Secundária de Mogadouro, em

venda de Natal levada a cabo por alguns docentes daquele estabelecimento

de ensino.

Page 41: Um Olhar (Atento) sobre Timor

34

A satisfação com que vou fazer esta entrega, é acrescida pelo facto de o

Padre João ser um transmontano bem do interior, mais propriamente de

Morais, concelho de Macedo de Cavaleiros. Sendo eu de Remondes depressa

começámos a conversar sobre coisas que são familiares a um e a outro.

Parte da sua família vive em Brunhoso, terra à qual estou ligado por laços

matrimoniais e mesmo familiares. Foi um momento muito agradável e de

são convívio. Já se encontra em Timor desde 1958, tendo visitado a nossa

terra há cerca de dois anos. Espero que, apesar de pequena, esta

contribuição sirva para minorar o dia a dia de muitas crianças que nada

fizeram para estar na situação em que estão.

10 DE FEVEREIRO – Terça-feira

Hoje foi o dia de conversar com o Engº Inácio, Decano do curso de

Engenharia Electrotécnica ministrado na UNTL. Foi uma conversa muito

agradável em especial pela sua simpatia. Na companhia do Dr. Ângelo,

representante da FUP em Timor, dirigimo-nos para a sala onde ele já se

encontrava. O objectivo da reunião era o de criar condições para haver

alguma colaboração de docentes da UNTL no de electrotecnia ministrado

pela FUP. Apesar da boa vontade e do empenho por si demonstrado

terminei a reunião com a convicção de que tal colaboração será muito difícil

de se concretizar.

11 DE FEVEREIRO – Quarta-feira

Os compromissos académicos foram cumpridos durante a manhã. As aulas

decorreram com normalidade. Os alunos reagiram como de costume, ou

seja, bastante positivamente. Os temas que estou a tratar podem ser

facilmente apreendidos desde que se use uma estratégia de transmissão de

Page 42: Um Olhar (Atento) sobre Timor

35

conhecimentos adequada. Estou convicto de que o caminho seguido está a

ser o mais correcto.

Ao fim da tarde, acedendo a um convite feito pela delegação da Assembleia

da Republica, liderada pelo Dr Mota Amaral, dirigi-me, acompanhado de

alguns colegas, para o Hotel Timor. Quando cheguei já aí se encontravam os

nossos deputados e muitos portugueses que aproveitaram para cavaquear

com concidadãos que aqui se encontram a cooperar nas mais variadas

áreas. Entre os presentes encontravam-se o Padre João Felgueiras, o

responsável pela nossa cooperação, o adido para a segurança, o

Comandante do nosso agrupamento militar, enfim, um sem número de

portugueses que dão parte do seu tempo à causa timorense.

Tive oportunidade de conversar com algumas destas pessoas,

nomeadamente com o Padre Felgueiras com quem combinei uma visita a

sua casa com alguns colegas para conversarmos um pouco sobre a sua

experiência em Timor.

O senhor Comandante do agrupamento HOTEL, informou-me de que as

obras de desassoreamento das escolas que lhe havia solicitado há alguns

dias, estão em andamento, o que me deixou muito satisfeito. Esta

informação foi-me, posteriormente, corroborada pelo capitão encarregado

da ligação do agrupamento com a sociedade civil.

Depois de algumas bebidas consumidas, com a moderação exigida pela

sociedade em que vivemos, e de algumas conversas, mais ou menos,

banais, terminou o convívio e regressei de novo a casa onde, com a

consciência tranquila do dever cumprido, dormi o sono dos justos. O dia

seguinte é um dia de trabalho. É preciso enfrentá-lo com determinação.

12 DE FEVEREIRO – Quinta-feira

Nos meus planos para este dia estava a participação na reunião do Rotary

Clube de Díli, que teve lugar, como habitualmente, no Hotel Turismo, por

Page 43: Um Olhar (Atento) sobre Timor

36

volta das 19H00. A manhã ocupei-a com as aulas e com a ida à internet. Pus

o correio em dia e as leituras dos jornais, com as últimas notícias, ainda bem

fresquinhas.

Às 18H45m saí de casa em direcção ao Hotel. Passado pouco tempo cheguei

e depressa me apercebi da presença de um timorense que ainda não tinha

visto nas reuniões anteriores. Como fala bem português estabeleci conversa

com ele e sentei-me a seu lado para participar na reunião. É funcionário do

Ministério dos Negócios Estrangeiros de Timor e já esteve por duas vezes

em Portugal, tendo visitado grande parte dos nossos monumentos, desde

Guimarães até Lisboa. Falou-me da sua prisão em cadeia indonésia, onde

cumpriu pena de seis anos, tendo saído em liberdade em 1989. Esteve na

montanha durante algum tempo e serve hoje o governo do país que o viu

nascer. Tem dez filhos e cinco sobrinhos cujos pais foram mortos pelos

invasores indonésios. A solidariedade entre membros da mesma família não

é palavra vã. Antes pelo contrário. È prática muito comum. Muitos e muitas

timorenses, sem pais, estão a viver com outros familiares que os acolhem

como se de filhos se tratasse.

Há quinze dias entreguei uma carta do meu Governador para que o Rotary

Clube de Díli seleccionasse um profissional para estagiar em Portugal. Falei

com o Presidente e, como eu já esperava, não tinha feito quaisquer

diligências nesse sentido. Solicitei-lhe permissão para falar com o

companheiro timorense para dar andamento à ideia. Obtida essa permissão

desde logo combinámos actuar. Assim, ele vai pôr-se em campo para não

perder esta óptima oportunidade como ele me confidenciou. Ainda bem que

assim é.

13 DE FEVEREIRO – Sexta-feira

Apesar de ser sexta-feira treze, nada de anormal aconteceu neste dia. As

aulas decorreram com normalidade. Os alunos continuam mostrando que

Page 44: Um Olhar (Atento) sobre Timor

37

vale a pena procurar sempre a melhor estratégia para lhes transmitir os

conhecimentos. É o que tento fazer sempre. Isso implica mais trabalho, mas

aumenta o grau de satisfação no final quando vemos os progressos que os

alunos têm.

Nos momentos de descontracção, essenciais para o bom andamento das

aulas, fiquei a saber que sábado vai haver futebol. Defrontam-se as equipas

de Ciências Agrárias e Electrotecnia. Da turma do 3º ano fazem parte cinco

dos futebolistas de Electrotecnia. Qual treinador coloquei no quadro os

respectivos nomes e as posições que cada um ia ocupar no terreno de jogo.

Prometi que passaria pelo campo, mas já perto do fim do jogo pois sábado é

necessário descansar um pouco. O trabalho desenvolvido durante a semana

assim o exige.

De tarde visitei a internet para retirar o correio da caixa que,

invariavelmente, se enche todos os dias de correio que pode considerar-se

“lixo”. É impressionante o que hoje se passa na sociedade em que vivemos.

Desde vendas ilegais de medicamentos, passando por diplomas

universitários, até à praga dos produtos associados ao viagra, tudo entra na

caixa do correio. Não compreendo como é possível assim acontecer. Pode

“fechar-se” a caixa, mas há sempre lixo que passa. Enfim cabe aos

investigadores da informática descobrir métodos eficazes de impedir que

este “lixo” circule e/ou encontrar os infractores de modo a terem o castigo

que as leis lhes destinam.

Já outras vezes escrevi sobre o serviço público de televisão. Quem está fora

do seu país sabe bem o que representa ter acesso todos os dias a notícias

da sua terra. É pena que as televisões sofram do mal do sensacionalismo.

Porque será que, quase sempre, no flash imediatamente antes do telejornal,

sempre se anunciam desgraças, quer sejam acidentes rodoviários,

ferroviários ou aéreos, casos de pedofilia, assassínios ou outros? Será só

pela preocupação de informar ou será para ter mais audiências?

Page 45: Um Olhar (Atento) sobre Timor

38

Vem isto a propósito da notícia sobre casos de abusos sexuais a menores

num lar de Vila Real, cidade onde desenvolvo a minha actividade de docente

universitário e onde vivo. Apesar de serem notícias de todos os dias,

deixam-me, como a muitos outros, extremamente preocupado. Como pode

a sociedade, feita por todos nós, cometer atrocidades destas sobre seres

indefesos? Não nos esqueçamos que nessas instituições estão pessoas a

quem tudo faltou na vida. São seres muito frágeis que estão à mercê,

muitas vezes, de pessoas sem formação adequada, quer técnica quer moral,

para trabalhar nesses locais. Oxalá as autoridades tomem as medidas mais

acertadas para resolver este e outros problemas.

Não se infira das minhas palavras que sou contra o acto de informar. Mas

será que informar é o que as nossas televisões fazem? Tenho muitas

dúvidas. Também sou de opinião que todos os problemas de que a

sociedade enferma devem ser passados à opinião pública, mas no momento

certo, com o realismo que elas exigem.

14 DE FEVEREIRO – Sábado

Dia muito especial, pois no calendário diz “Dia dos Namorados”. Há quem

diga, e eu comungo dessa opinião, que deve namorar-se durante toda a

vida. Se namorar quer significar cumplicidade entre duas pessoas, dedicação

mútua, troca de amor, apoio nos bons e nos maus momentos, etc, então

digam-me lá se não concordam com a intemporalidade do namoro. Mesmo

quando se está muito longe da pessoa que amamos este dia é um dia

especial. Ainda mais especial do que quando se está perto. É nestes

momentos que a saudade, sentimento tão próprio dos portugueses, mais

aperta e mais nos faz reflectir na nossa vida. Nestes momentos passamos

toda a nossa vida em revista, especialmente os bons momentos que, apesar

de serem do passado, estão sempre presentes no dia a dia. É o nascimento

Page 46: Um Olhar (Atento) sobre Timor

39

dos filhos, os êxitos dos familiares, o casamento dos filhos, enfim, um sem

número de pequenos acontecimentos que nos dão forças para vencer.

Como ontem escrevi, promessas são promessas, lá compareci no futebol.

Estive pouco tempo, mas deu para ficar a saber que Ciências Agrárias

estavam a ganhar a Electrotecnia por 1-0, que seria o resultado final,

segundo informações posteriores. Espero que todos tenham aproveitado

estes momentos de descontracção para relaxar do trabalho da semana e

prepararem-se para a semana seguinte.

Após o almoço fiquei por casa pois tenho deveres de escrita que não posso

descuidar. O texto para o Semanário, a Crónica da Energia e a

Correspondência de Timor que, mesmo sendo feitos com gosto, exigem

trabalho e tempo. Pela tarde lá enviei tudo pelo correio electrónico pois os

leitores exigem que por eles se tenha a maior das considerações.

Pelas notícias da noite confirmei aquilo que alguns analistas políticos andam

a dizer há muito tempo, o Dr Santana Lopes vive com o desejo de se

candidatar à Presidência da República.

15 DE FEVEREIRO – Domingo

Foi um dia sem nada que mereça relevo. Comecei por assistir à missa e fiz o

meu passeio habitual pela cidade de Díli. Assim passei a manhã. De tarde

descansei. È sempre bom aproveitar o domingo para relaxar com o objectivo

de recuperar as forças suficientes para enfrentar a semana seguinte.

16 DE FEVEREIRO – Segunda-feira

Saí bem cedo, como habitualmente, para a universidade. Hoje de diferente

apenas o facto de levar comigo a máquina fotográfica pois ficara de me

encontrar com o Padre João de Deus a fim de comprar alguns produtos para

o orfanato que dirige em Quelicai, para os lados de Baucau. Como os

Page 47: Um Olhar (Atento) sobre Timor

40

procedimentos não foram aqueles que, em minha opinião, são os que

garantem que os donativos chegam a quem se destinam, alterei os planos e

passei para o dia de amanhã a compra e entrega de outros produtos, agora

já devidamente documentados com a ajuda da máquina fotográfica e com a

minha presença. É necessário que tudo o que as pessoas de boa vontade

entregam a instituições que actuam no terreno tenham a garantia de que

chegou ao seu destino. Foi o que fiz com a concordância do meu ilustre

interlocutor.

O tema de garantir que as dádivas cheguem ao seu destino assume, hoje

em dia, uma importância enorme pois há cada vez mais pessoas

necessitadas, nas várias partes do mundo, e, felizmente, também há cada

vez mais pessoas e instituições privadas que querem apoiar. É do interesse

de todos, de quem dá e de quem recebe, estabelecer-se uma relação de

confiança mútua. Só assim o dador tem incentivo para dar mais e o receptor

tem o benefício dessa dádiva. Há, infelizmente, muitas pessoas que se

escudam no facto de se saber que há muitas dádivas que não chegam a

quem se destina, para não colaborar. A essas pessoas eu digo que o que é

necessário é criar mecanismos que aumentem as garantias de que o circuito

começa no dador e termina em quem necessita.

17 DE FEVEREIRO – Terça-feira

Dando seguimento a um pedido de alguns colegas, marquei um encontro

com o Padre João Felgueiras para hoje. Por telefone informou-me, na

semana passada, que nos poderíamos encontrar hoje às 15H45m. Assim foi.

À hora marcada lá estávamos eu e mais quatro colegas. O Padre Felgueiras

já nos aguardava e de pronto nos dirigimos para o seu local de trabalho

onde nos sentámos e nos preparámos para o ouvir. Durante uma hora e

trinta minutos ouvimo-lo com grande atenção e com curiosidade pois

aguardávamos as suas palavras como crianças que se preparam para ouvir

Page 48: Um Olhar (Atento) sobre Timor

41

as histórias de que mais gostam. Fez-nos um relato completo que começou

na sua chegada a Soibada, há cerca de 33 anos até hoje. Historiou-nos a

chegada dos primeiros missionários a Timor, no século XVI, seguiu-se a

chegada dos jesuítas há mais de cem anos e a sua própria chegada em

1971, um pouco antes do 25 de Abril. Em Soibada e pouco anos depois em

Díli, o Padre Felgueiras, quis ir mais além das suas obrigações inerentes à

condição de padre e de missionário. Interrogou-se durante algum tempo

sobre o que poderia fazer para ser útil à comunidade timorense. Uma das

áreas que depressa lhe chamou à atenção foi o estado de quase escravidão

em que as mulheres viviam. Constatou que o papel que à mulher estava

reservado era pouco consentâneo com a dignidade do ser humano. Foi aí

que começou a sua acção, através da catequização de pessoas que

posteriormente iriam ensinar a catequese, mas sem perder de vista os

preceitos da igualdade e da dignidade.

Falou-nos sobre as mágoas que sente pelos mortos, assassinados, muitas

vezes por razões menores, desde o ano de 1975 até há pouco tempo atrás.

Os tempos difíceis, com muita violência e intolerância, vividos logo após

1975, marcaram-no profundamente, perdurando na sua memória muitas

imagens de terror que esses acontecimentos envolveram.

As suas visitas às várias prisões, a dar conforto moral aos presos, muitos

deles que com ele tinham convivido, a rezar a missa que servia de conforto

para as dificuldades que a vida numa prisão sempre envolve. Aí ouvia com

atenção os relatos de maus tratos a que alguns eram sujeitos, dando, em

troca uma palavra amiga que aliviava o sofrimento de quem estava preso.

A uma questão que lhe pusemos sobre qual era, em sua opinião, a razão ou

razões para que os timorenses, que no tempo da administração portuguesa,

eram, em pequeno número, seguidores da religião católica e após a invasão

indonésia, quase em bloco, se viraram para ela, o padre Felgueiras deu uma

resposta que corresponde à minha opinião sobre isso. Diz ele que qualquer

ser humano nos momentos de dificuldade, se “agarra” a tudo o que lhe dá

Page 49: Um Olhar (Atento) sobre Timor

42

segurança, atenção, protecção, apoio, etc. Concordo totalmente com esta

ideia. Com a invasão indonésia as pessoas viram os seus valores

ameaçados. A cultura timorense nada tem que ver com a cultura indonésia.

Os valores porque se regem os timorenses são diferentes dos indonésios. O

timorense, desde sempre, tem duas palavras a que dá um significado muito

profundo: maromak e lulik. A primeira quer dizer ente supremo, Deus e a

segunda quer dizer cerimónia, o que é sagrado, intocável. Foi isto que eles

viram na igreja e nos seus representantes, bispos e padres. Acresce a isto

um facto curioso que desconhecia. A indonésia obrigava a pôr no bilhete de

identidade a religião que cada um professava. Como atitude de rejeição do

invasor e demonstração de unidade todos ou quase, mandaram colocar a

religião católica no cartão que os identificava perante os amigos e os

invasores. Este facto teve o efeito contrário ao esperado pelos indonésios

que, por certo, não esperavam esta unanimidade para eles bem difícil de

digerir.

Para lá deste caso em que lhe saiu o tiro pela culatra, houve outras

situações dignas de registo, referidas na conversa. Assim, dizia o senhor

padre, as autoridades indonésias destacadas para Timor, tudo faziam para

cativar os timorenses. Alguns deles, autores de verdadeiras carnificinas,

enviavam aos senhores padres, dezenas de cálices e outros utensílios

usados nas missas. Também mandavam fazer obras nas igrejas, mesmo

sem haver necessidade, construíam monumentos e estátuas alusivas à

religião católica e não só, para “passar” para o seu lado as pessoas, mas o

resultado era precisamente o contrário, mais se afastavam deles. Foi com

este espírito que construíram a catedral, que seria inaugurada por Suarto,

no local ocupado pela empresa de construção civil Moniz da Maia, ao tempo,

em 1975, preparada para iniciar a construção de estradas que iriam rasgar

Timor de lés a lés.

O monumento ao Cristo Rei, inicialmente muito desejado pelos timorenses,

foi apadrinhado pelas autoridades locais representantes da indonésia que lhe

Page 50: Um Olhar (Atento) sobre Timor

43

impuseram uma marca que fica ligada para toda a vida a este monumento.

A sua altura é de 27 m, que simboliza aquela que a Indonésia queria que

fosse a sua 27ª província. Também a avenida que sai do aeroporto foi

baptizada de Avenida Suarto e o monumento, de cor branca, redondo,

guardado por anjos lançando água por um tubo, para uma estátua situada

ao centro, onde iria ser colocada uma senhora simbolizando a sua esposa,

se destinava a lembrar aos timorenses a sua condição de indonésios.

Uma das iniciativas que constituiu a sua actividade foi a concessão de bolsas

de estudo a rapazes e raparigas que assim puderem continuar os seus

estudos no ensino superior indonésio. Muitos dos timorenses a ele devem a

sua formação universitária. O contacto, através das entrevistas que fazia a

quem o procurava para pedir ajuda para prosseguir os estudos, permitiu-lhe

ter um conhecimento profundo das famílias timorenses. Em cada bolseiro

tem um amigo e um divulgador da sua acção. Fala com orgulho dos

encontros que tem com eles e da troca de correspondência que o põe a par

de todas as dificuldades e também dos seus anseios e das suas ilusões para

o futuro.

E sobre a implantação da língua portuguesa em Timor? O que pensa o Padre

João Felgueiras?

É sua opinião de que há forças organizadas em Timor que dificultam essa

implantação. Também a lei do menor esforço que impera na juventude.

Sabe tetum e alguns wasa e o esforço necessário à aprendizagem do

português, serve de dissuasor. Essencialmente atribui a este último factor a

dificuldade de introdução do português.

18 DE FEVEREIRO – Quarta-feira

Nada de relevante aconteceu neste dia, pelo menos na parte profissional, já

que fiquei a saber que em breve terei um novo elemento na família, ou seja,

terei um neto. Quis Deus que o primeiro fosse do sexo masculino. Se a

Page 51: Um Olhar (Atento) sobre Timor

44

vontade terrena tivesse alguma influência sobre o destino, possivelmente

seria menina. Cá o esperamos com todo o amor.

As aulas correram normalmente. Os mesmos alunos a chegarem atrasados,

os mesmos conselhos apelando à responsabilidade sobre os actos que cada

um pratica, etc. Assim se vão passando os dias aqui em Timor, bem longe

de Vila Real. Recebi um telefonema da Irmâ Eliene para combinar a sessão

de filme e de fotografias no MAC. Marcámos para o domingo, dia 22 pelas

quatro horas da tarde.

19 DE FEVEREIRO – Quinta-feira

Ainda não recebi o telefonema do companheiro rotário Caetano Guterres

sobre a bolsa que o Governador rotário pretende oferecer a alguém de

Timor que vá estagiar para Portugal. O tempo está a passar e estou em crer

que não vai ser possível concretizar este projecto. A maior dificuldade está

em que o candidato deverá ter menos de 35 anos e falar bem português.

Aqui está o problema. Nesta faixa etária não há muitos timorenses a falar

português. Esta é uma realidade que tem que ser encarada com muita

determinação pelas autoridades de um país que adoptou a língua

portuguesa como língua oficial, a par do tetum. Não sei como vai ser o

futuro de uma língua que, na faixa etária entre os 15 e os 40 anos, pouca

gente compreende quanto mais falar. Está nas mãos das autoridades

encontrar mecanismos que facilitem a aprendizagem desses timorenses.

Como novidade registo que esta é a última quinta-feira desta minha missão

a Timor.

20 DE FEVEREIRO – Sexta-feira

Chegou a última sexta-feira. Tudo correu dentro do esperado. Na sequência

de uma mensagem que recebi de Portugal, telefonei à Irmâ Eliene a

Page 52: Um Olhar (Atento) sobre Timor

45

combinar uma ida à Escola do Paiol para fotografar os miúdos que vão ser

apadrinhados pelos alunos da Escola dos Quinchosos. No seguimento desta

conversa, e devido à sua dificuldade em distribuir os afilhados pelos

padrinhos, vou ajudar nessa tarefa.

As notícias da nossa televisão sobre a justiça portuguesa mais uma vez me

deram razões para não acreditar nela. O tribunal que solta um preso que faz

a mala, é esperado pela família, ansiosa por tê-lo consigo, sai da cadeia e

dez segundos depois é de novo preso por ordem de um Juiz, deixa qualquer

mortal completamente estupefacto. Deus nos livre de cair nas mãos de uma

justiça assim. Concordo totalmente com o advogado, ainda por cima

acusador desse senhor, que vem dizer que tem vergonha de pertencer a um

país com esta justiça. É claro que nem todos procederão assim. Mas que,

para um leigo, é muita confusão, lá isso é.

21 DE FEVEREIRO - Sábado

De manhã encontrei-me com a Irmã Eliene para pôr em ordem a lista de

padrinhos e afilhados. Foi uma tarefa muito complicada pois dela constam

cerca de 110 afilhados e 35 a 40 padrinhos. À satisfação da Irmã

corresponde uma satisfação muito especial da minha parte. Considero muito

gratificante o trabalho que tenho desenvolvido de dinamização da procura

de apoio para estes miúdos que, estou convicto, tudo merecem. Tudo o que

se possa fazer por crianças e adolescentes cuja vida é cheia de sacrifícios e

de privações será recompensado por Deus na hora de prestar contas. Dizia-

me a Irmã que muitos deles só comem uma vez por dia e dormem no chão

ou sobre estreitas esteiras que a única coisa que poderão fazer é evitar que

estejam em contacto directo com o solo. Conforto é que não dão de certeza.

Qualquer timorense é portador de um certo orgulho que os obriga, por

exemplo, a esconder a realidade que é o seu dia a dia. Por exemplo é muito

difícil obter autorização para entrar no seu quarto, sem as mínimas

Page 53: Um Olhar (Atento) sobre Timor

46

condições quase sempre. A Irmã visitou alguns, pois tinha a incumbência de

fazer um levantamento das necessidades de algumas famílias para fazer a

entrega de colchões oferecidos pelo exército brasileiro. Teve muitas

dificuldades pois a autorização para tirar fotos que documentassem e

provassem as necessidades, era muito difícil de obter.

Da parte da tarde estive em casa a descansar e a pôr em ordem os

relatórios das disciplinas que estou a leccionar. Com algum método, tenho

tudo muito adiantado o que me permitirá cumprir a obrigação de deixar o

relatório feito quando o trimestre terminar.

À noite fui, tal como os portugueses que aqui se encontram, ao quartel do

agrupamento militar português em Caicoli, a convite do Comandante Xavier

de Sousa. Fomos muito bem recebidos pelos nossos militares. Também aí se

encontravam algumas personalidades timorenses, como o Presidente

Xanana Gusmão. É uma personalidade muito interessante, muito amável e

muito bem disposta. Tem sempre um sorriso no contacto que tem com os

outros. Aproveitei para tirar uma foto com ele e com outros colegas. Por

graça ele diz que por cada foto leva 10 dólares, mas aos professores

portugueses só leva 5. Claro que acabou por não nos cobrar nada. Foi um

prazer muito grande ter conversado com ele e ser fotografado a seu lado. O

convívio foi muito bom e proporcionou-me conhecer melhor alguns colegas e

encontrar vários militares oriundos da minha região, Trás-os-Montes. Desde

o chefe da cozinha, natural do Pinhão, passando por dois Majores, um de

Vila Real e outro de Vila Flor, continuando por outros de Chaves e de

Lagoaça, tudo serviu para conviver. Dizia eu por graça que nós,

transmontanos, estamos em todo o lado. No entanto por vezes creio que

isso significa que temos que abandonar as nossas terras para procurar

desenvolver as nossas actividades, por falta de oportunidades para o fazer

lá.

Conheci algumas das docentes que aqui se encontram a ensinar português,

interessando-me mais em conhecer as minhas conterrâneas. Entre elas

Page 54: Um Olhar (Atento) sobre Timor

47

encontrei uma que me transportou até aos meus tempos de estudante em

Bragança. Era filha de um antigo companheiro de estudo. Muito triste fiquei

quando me disse que tinha falecido há alguns anos vitima de cancro. É

sempre triste quando recebemos notícias destas.

Terminado o convívio regressei a casa para dormir pois no dia seguinte era

preciso levantar cedo para cumprir a obrigação de qualquer católico, ir à

missa ao Domingo.

22 DE FEVEREIRO – Domingo

De manhã tudo normal. Fui almoçar ao Hotel Timor, respondendo ao apelo

que me era feito pela ementa dominical, cozido à portuguesa. Longe da

terra onde vivemos, tudo o que nos permita matar saudades é bom. Apesar

de não ter sido um primor, serviu para isso mesmo, matar saudades.

De tarde fui ao MAC a fim de fazer as fotos aos afilhados para levar aos

padrinhos, em Portugal. Às 4 horas da tarde, acompanhado de um colega, lá

apareci. A azáfama já era grande. Os miúdos tinham preparado uma festa

para me receber. E que festa. Apesar de eu já saber muito bem do que

estes miúdos são capazes de fazer, fiquei, tal como o meu colega, siderado

pelo espectáculo por eles apresentado. Com uma qualidade muito grande e

com artistas de 5, 6, até 13 anos, compenetradíssimos do papel que lhes

estava reservado na peça, actuando como verdadeiros profissionais. Não há

palavras para descrever o que eles são capazes de fazer. Só assistindo.

Compareceram também o Luís, Juiz guineense, e a Dulce, professora de

português. Todos fomos unânimes em considerar o espectáculo de superior

qualidade. As danças e as canções, assim como as coreografias, foram da

autoria dos(as) mais crescidos. Os mais jovens saíram-se muito bem dos

papéis que lhes reservaram.

Tirei muitas fotos e filmei os momentos mais marcantes do espectáculo. Fui

obsequiado com duas salendas, que me foram colocadas pela Beth e pelo

Page 55: Um Olhar (Atento) sobre Timor

48

Natalino, em representação dos colegas. São estes momentos tão lindos,

consequência de sentimentos genuínos e espontâneos, que me dão alento

para continuar com estas actividades de índole social, feitas com sacrifício

do meu tempo de lazer e nunca com prejuízo do meu trabalho.

Tenho a certeza que os amigos que me confiaram as suas dádivas, ficarão

muito orgulhosos do trabalho que estes miúdos podem fazer. Podem estar

descansados que o vosso dinheiro dá frutos pois as árvores onde ele é

colocado são sãs e muito boas, apesar da falta de nutrientes para se

desenvolverem.

Tal como aconteceu das outras visitas que lhes fiz, tive que ter alguns

momentos de descontracção. A insistência foi tanta que todos tivemos que

dançar. Também me foi solicitado que desse umas palavras sobre a visita o

que fiz com muito gosto. Apenas levo uma mágoa que é a de que ficaram

10 miúdos sem padrinho. Vamos fazer um esforço suplementar para ver se

para o ano isso já não acontece.

23 DE FEVEREIRO – Segunda-feira

No seguimento da entrega do material escolar à Escola Amigos de Jesus do

Padre João Felgueiras, fui entregar um CD ao Agrupamento Hotel em

Caicoli, com as fotos alusivas ao acto. Feita a entrega fui convidado para

jantar com os nossos militares nessa noite. Foi um jantar em família pois

muitos dos militares são transmontanos como eu. O chefe da cozinha é do

Pinhão; o responsável pelas obras, Major Ferreira é de Vila Real; o Sargento

Ajudante, Manuel, das relações públicas é de Chaves; o 2º Comandante

Major Queijo, de Vila Flor; o responsável pelas relações públicas, Capitão

Almeida, de Lamego, etc.

No bar, antes do jantar, lá encontrei o Senhor Beça, português do tempo em

que Timor era colónia de Portugal. Regressou a Timor após a independência

e por ali passa os seus dias, muitos deles junto dos nossos militares. Após o

Page 56: Um Olhar (Atento) sobre Timor

49

jantar e depois de tomar um café no bar, regressei a casa para descansar e

dormir.

24 DE FEVEREIRO – Terça-feira

Apesar de ter ido despedir-me dos miúdos do MAC, nas suas instalações, fui

surpreendido pela vinda de muitos deles a casa para se despedir de mim.

Vinham acompanhados pela Irmã Eliene e passaram grande parte do dia

comigo. Aproveitei para lhes mostrar as fotos que tinham feito dias antes no

MAC e fiz mais algumas para trazer para os respectivos padrinhos. Foi uma

tarde muito bem passada e cheia de significado. Para mim foi uma

demonstração inequívoca da amizade que estes miúdos nutrem por mim. Já

lá vão quase 3 anos de troca de experiências e de encontros entre nós.

Para os receber comprei vários pacotes de bolachas que depressa “voaram”

pois contava que fossem poucos e apareceram mais de 70.

Ao fim da tarde, depois de os miúdos se terem ido embora, aproveitei ir

renovar o visto pois estava a caducar a validade do que me concedia

legalidade de estadia.

Pela tarde recebi um telefonema da irmã Eliene transmitindo-me a tristeza

de algumas das suas crianças por não lhes ter entregue as prendas que os

padrinhos lhes mandaram. Combinei com ela encontrar-me com elas

amanhã pela manhã.

25 DE FEVEREIRO – Quarta-feira

Antes de sair em direcção ao aeroporto, desloquei-me, como havia

prometido, ao MAC para fazer a entrega das lembranças que ontem não

entreguei. Ali chegado cumpri o prometido. Aproveitei e fiz as últimas fotos

que entregarei em Vila Real aos respectivos padrinhos.

Page 57: Um Olhar (Atento) sobre Timor

50

A partida está a chegar. Antes fui levantar o visto, papelinho mágico

indispensável para poder sair daqui. A ansiedade é muito grande pois

sempre foram dois meses de ausência de casa. As saudades já apertam. A

esposa e os filhos esperam por este dia, possivelmente com mais ansiedade

que eu.

Duas horas antes do horário de partida do avião, parti consciente de que

cumpri o meu dever que se pode resumir numa palavra, cooperação.

Regresso a Portugal com vontade de aqui voltar. Ainda posso fazer muito

mais por estes alunos que já considero meus amigos.

26 DE FEVEREIRO – Quinta-feira

Com escala em Darwin, cheguei a Sidney, com destino a Camberra. No

aeroporto tomei o comboio para o terminal de autocarros onde tomei um

para Camberra. Por momentos, pensei estar em Portugal. A algazarra em

português, feita por meia dúzia de trabalhadores portugueses que seguiam

para o mesmo destino, é prova de que os portugueses andam por todo o

lado.

Esta viagem foi muito atribulada. O excesso de zelo no cumprimento dos

horários, aliado a alguma falta de compreensão da língua inglesa, pela

minha parte, criou-me um sério problema. A paragem, que eu pensava ser

de dez minutos, teve apenas dois. Quando procurei o autocarro, só

encontrei o rasto. Havia-se posto a andar, como se diz em bom português.

Ao longe, com o mesmo problema, avistei uma cidadã das Filipinas, em

desespero, procurando boleia para Camberra. No que me diz respeito, não

me preocupei muito, apesar de ter deixado ir, além da mala, as máquinas de

filmar e fotografar. A sorte esteve do meu lado e beneficiou a colega de

infortúnio. Quando solicitava na caixa do pequeno mercado a vinda de um

táxi, alguém, providencialmente, se ofereceu para nos transportar até ao

destino. Depois de cerca de uma hora de uma tranquila viagem, chegámos

Page 58: Um Olhar (Atento) sobre Timor

51

ao terminal rodoviário de Camberra, situado à direita de quem entra na

cidade. Lá estava o motorista a quem me dirigi com alguma agressividade

própria de quem ficou plantado a meio de uma viagem, num país distante,

pensando que a razão lhe assistia. À minha interpelação sobre o que tinha

acontecido, recebi como resposta que “a paragem era de dois minutos”. Ao

que eu respondi perguntando “para que servem dois minutos numa

paragem a meio de uma viagem?”. A conversa terminou com “dois minutos

e mais nada”.

Em ocasiões como esta é bem melhor a nossa descontracção do que a

rigidez destes australianos.

Pela primeira vez, não marquei hotel com antecedência, o que me trouxe

alguns problemas. Como havia festas nesse fim-de-semana em Camberra,

tive que distribuir a minha estadia por três hotéis diferentes.

27 DE FEVEREIRO – Sexta-feira

Bem cedo saí do hotel para visitar a cidade, capital administrativa da

Austrália. Sendo uma cidade nova, as suas ruas são muito largas e muito

extensas. Visitei o Old Parliament, dos tempos em que a Austrália ainda era

uma colónia inglesa. Em frente pude ver um acampamento de aborígenes

que lutavam pelo reconhecimento dos seus direitos. Estes cidadãos podem

ver-se por todas as cidades australianas, vagueando pelas ruas, sentados

nos bancos e, muitas vezes, deitados na relva dos jardins, quase sempre

ébrios, com garrafas de vinho na mão. São cidadãos muito pacatos que não

se metem com ninguém.

Continuei a visita passando pelo novo Parlamento, de arquitectura moderna,

destacando uma grande parte do telhado que é, simplesmente, um relvado.

Daqui segui para o Memorial, recordando a 1º e a 2ª Guerra Mundial.

Estendendo-se por largas dezenas de metros, de e outro lado de uma longa

avenida, lá se encontram referências à Coreia, aos Boers Sul-africanos e

Page 59: Um Olhar (Atento) sobre Timor

52

muitos outros países que tiveram acção preponderante no desenrolar desses

dois trágicos acontecimentos que marcaram o século XX.

Ao cimo desta avenida encontra-se o Museu de Camberra que também

visitei. Considero-o o melhor museu temático sobre as duas guerras

mundiais que visitei até hoje. O realismo com que são tratados os vários

episódios dessas duas guerras fazem-nos reflectir sobre tais acontecimentos.

A guerra entre as tropas japonesas e as tropas australianas que teve como

palco Timor pode ver-se quer em imagens filmadas quer em fotos. Com

grande realismo podem ver-se imagens da actuação do submarino HMAS.

São imagens que nunca esquecerei.

28 DE FEVEREIRO – Sábado

Este dia dediquei-o a visitar o Camberra Show, responsável pelos problemas

que tive para arranjar hotel. Foi muito interessante e lá pude ver muitos

exemplares de animais que contribuem para a riqueza do grande país que é

a Austrália. Por lá almocei e pude divertir-me com as habilidades com que

alguns destes animais deliciaram todos os visitantes.

29 DE FEVEREIRO – Domingo

Regressei a Sidney, directamente para o aeroporto, em trânsito para

Portugal.

Page 60: Um Olhar (Atento) sobre Timor

53

ANO DE 2004

JUNHO - JULHO

Page 61: Um Olhar (Atento) sobre Timor

54

Page 62: Um Olhar (Atento) sobre Timor

55

4 DE JUNHO – Sexta-feira

Dia da viagem para voltar a Timor para cumprir a 5ª deslocação a essa

longínqua terra, nos antípodas de Portugal.

A viagem a partir do Porto decorreu com normalidade ainda que com o

cansaço próprio de viagens aéreas de longo curso. Nada de anormal se

registou a não ser o atraso da partida de Frankfurt para Hong Kong. Este

atraso acabou por não ter quaisquer consequências pois a partido de Hong

Kong para Banguecoque era mais tarde do eu pensa e como tal não houve

problemas em apanhar o voo para Denpasar.

Foi a primeira que fiz o trajecto pela Indonésia. As formalidades

alfandegárias são bem mais ligeiras do que era de esperar em especial no

caso particular dos portugueses. Isso mesmo me confidenciava o colega que

entretanto encontrei. O seu trajecto havia sido diferente pois veio por

Londres. O trajecto de Hong Kong para Díli foi comum ainda que só nos

encontrássemos em Denpasar.

5 DE JUNHO – Sábado

Cheguei a Denpasar. O transporte para o hotel foi feito num jipe de um

particular a quem, certamente, o serviço foi encomendado. Com a simpatia

que já tinha constatado da primeira vez que visitei Bali em Dezembro de

2001 em viagem feita a partir de Díli, fomos para o hotel conversando com o

guia que depois das saudações normais, demonstrou uma afabilidade muito

grande quando lhe falamos da nossa condição de portugueses. Feitas as

formalidades de entrada no hotel dirigi-me para o meu quarto em edifício

separado muito típico em hotéis de Bali. Para chegar ao quarto fui

Page 63: Um Olhar (Atento) sobre Timor

56

acompanhado de um empregado que me transportou as malas. No trajecto

tive oportunidade de passar pela piscina onde, sem qualquer surpresa,

apenas ocidentais se encontravam aí.

6 DE JUNHO – Domingo

No regresso ao aeroporto, depois de tomar um bom pequeno almoço, ao

contrário do nosso guia que na saudação que nos fez nos interpelou sobre

esse primeiro acto de comer, tendo-nos dito que ele não tinha tomado o

pequeno almoço. Se não estivéssemos num país onde a fome é uma

realidade talvez essa informação nos tivesse parecido descabida. Na

conversa durante o trajecto falando como é inevitável sobre política,

depressa, para surpresa minha, ouvi a opinião do nosso acompanhante

dizendo que a vida está mal ao contrário do que acontecia no tempo do

ditador Suarto. Dizia ele que hoje em dia há muita instabilidade e muita

insegurança ao contrário do que então acontecia. Porque será que as

ditaduras tiveram sempre do lado delas o exercício mais consequente da

segurança dos bens e das pessoas?

Depois de cerca de duas horas de viagem cheguei ao aeroporto Nicolau

Lobato, agora pela costa norte.

A cena repetiu-se. Alguém estava à nossa espera, à saída do aeroporto. As

demarches alfandegárias foram feita pelos polícias timorenses e era vigiada

por polícias portugueses que aqui estão a cooperar com Timor. Fui

encaminhado para o Hotel Vila Verde tendo toda a programação que tinha

feito no que respeita à minha estadia ido por água a baixo. Não fiquei

aborrecido pois esta é uma situação que me permite maior independência,

mais privacidade e me dispensa de fazer algumas tarefas de índole caseira

para as quais a minha vocação e preparação é muito baixa. Pelo fim da

tarde fui fazer algumas das compras indispensáveis à minha estadia, isto

Page 64: Um Olhar (Atento) sobre Timor

57

depois de ter dormido algum tempo para recuperar as horas infindáveis que

tive que passar no avião.

7 DE JUNHO – Segunda-feira

Pela manhã saí do hotel onde fiquei hospedado e dirigi-me para a

universidade. Tive a minha primeira aula com os alunos do terceiro ano que

bem conheço pois já é a quinta vez que lhes vou dar aulas. Depois dos

cumprimentos habituais e da troca de algumas palavras amigas entre nós fiz

a apresentação do programa que lhes vou transmitir. Ao almoço dirigi-me ao

restaurante onde habitualmente almoço quando me encontro em Díli. Um

dia após a chegada deu para ver que se mudanças houve em Díli elas não

são visíveis, coisa que não é de estranhar sendo Timor um dos países mais

pobres do mundo. De tarde tive pela primeira vez aulas com os alunos do

segundo ano. Foi a primeira vez que estive perante eles. Devo confessar que

fiquei com muitas esperanças no sucesso da assimilação dos conteúdos

programáticos que lhes vou transmitir durante este trimestre. Oxalá que

estas minhas expectativas positivas se tornem realidade. Era sinal de que

teria havido êxito na relação professor-aluno que vamos manter durante

algumas semanas.

Depois da aula, já bem tarde, dirigi-me ao supermercado onde comprei

aqueles bens essenciais necessários à alimentação de qualquer ser humano.

8 DE JUNHO – Terça-feira

Mais um dia sem grandes motivos que justifiquem qualquer referência num

texto como este a não ser que fui ao quartel apresentar cumprimentos aos

nossos militares que em breve vão regressar a Portugal depois de alguns

meses de missão de cooperação em Timor.

Page 65: Um Olhar (Atento) sobre Timor

58

Como estava a decorrer uma reunião com um secretário de estado do

governo de Timor apenas cumprimentei e troquei breves palavras com o

segundo comandante que me convidou a almoçar no dia seguinte, convite

que de imediato aceitei por várias razões entre algumas óbvias decorrentes

do facto de me encontrar longe da minha terra e tudo o que substitua essa

falta é bem vindo.

Fui surpreendido ao fim da tarde pelo anúncio da morte do Professor Sousa

Franco. Não somos nada e podemos, sem que nada o faça prever,

deixarmos o mundo dos vivos para ingressarmos num outro onde, assim o

espero e acredito, aqueles que neste mundo cumpriram os preceitos de

moral, amizade e solidariedade sejam recompensados.

Esta notícia tive-a momentos antes de me dirigir para uma reunião com o

nosso adido para a defesa. Esta teve como objectivo transmitir-nos algumas

ideias e normas de segurança indispensáveis à criação de condições que

permitam que exerçamos a nossa actividade sem percalços e em segurança.

A maior parte das linhas mestras de uma boa conduta para ter uma

segurança efectiva já todos as conhecemos: máximo cuidado, não

frequentar locais muito isolados, principalmente à noite, evitar frequentar

locais de diversão nocturna onde tenham acontecido desacatos de origem

racista, etc.

9 DE JUNHO – Quarta-feira

Correspondendo a um convite da parte do Comandante do agrupamento

português Tenente Coronel Xavier de Sousa, fui almoçar a Caicoli. Lá

encontrei os vários militares que já conhecia desde Vila Real ou da

apresentação aos portugueses de Timor feita em Fevereiro último. Tive a

honra de ocupar um lugar na mesa do Comandante, ao seu lado, com a

assessora para o ministro da justiça, do outro.

Page 66: Um Olhar (Atento) sobre Timor

59

Durante o almoço tivemos oportunidade de ouvir as palavras serenas,

tranquilizadoras, ainda que muito sérias sobre aquilo que pode ser a vida em

Díli depois do regresso a Portugal dos nossos militares. É prudente pensar

nos mais variados cenários para aquilo que pode vir a acontecer. Se por um

lado há indicadores que permitem tranquilizar quem fica, por outro há

indícios que podem deixar-nos preocupados.

A falta de preparação da polícia timorense perante cenários de desordem

pública é quase uma realidade. Já se viu isso no último levantamento

popular em Dezembro de 2002. Creio residir aqui o maior foco de

preocupação da parte de quem cá está. Que o povo tem motivos para estar

insatisfeito lá isso tem. Não há trabalho e o que há tem em troca ordenados

extremamente baixos. O dia a dia é feito muito próximo do limiar da

pobreza.

Conjugando estes factos com a maneira de ser do timorense, raiando os

extremos da simpatia, da bondade, da disponibilidade para servir, com uma

agressividade muito forte, estão reunidas as condições para que toda a

gente esteja sempre em alerta para não ser surpreendido.

No dia de ontem os nossos militares entregaram as instalações de Bécora ao

governo de Timor. Ainda a operação de retirada de alguns equipamentos

estava a decorrer e já havia gente no seu interior a retirar tudo o que lhe

dava jeito em casa e outros para vender possivelmente, pois tanto quanto

se houve em surdina, receptadores não faltam. Neste caso, mais uma vez, a

acção da polícia foi de uma ineficácia a toda a prova. Não fora a pronta

entrada em acção de alguns dos nossos militares indo a casa das pessoas

recuperar os equipamentos e trazê-los de volta e mais uma vez a polícia era

ultrapassada.

Page 67: Um Olhar (Atento) sobre Timor

60

10 DE JUNHO – Quinta-feira

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Nestes últimos três anos

faço parte destes últimos. Como habitualmente fomos convidados pelo

nosso embaixador para uma recepção nos jardins da sua residência. Trata-

se de um acontecimento social muito significativo e muito esperado por

todos os portugueses que aqui se encontram.

Entrados no jardim dirigimo-nos para os habituais cumprimentos ao senhor

embaixador e a outros elementos da cooperação portuguesa. Conhecendo já

o senhor embaixador há cerca de dois anos, conversámos uns momentos

que me permitiram confirmar a consideração que por mim tem sempre

demonstrado. Muito obrigado por isso.

Os jardins enchem-se de portugueses. Lá estavam o Tinoco com família em

Vila Real; o Padre João de Deus, de Morais, mas a viver em Quelicai há

quarenta e oito anos; o senhor Reitor da UNTL com quem conversei durante

algum tempo e a quem manifestei vontade de o ter em Vila Real no rotary

Clube aquando de uma das suas deslocações a Lisboa; o senhor Bessa,

vizinho do remondês João Gonçalves, homens que já aqui estavam muito

antes do 25 de Abril; as professoras de português sempre disponíveis para

uns dedos de conversa com a afabilidade que se lhe reconhece; o

representante da cooperação portuguesa, Engº Carlos Macedo, sempre

cordial e bem disposto; e muitos outros que tornariam este texto muito

longo, mas dos quais guardo boas recordações.

Antes de me dirigir à recepção do senhor embaixador apanhei um valente

susto. No regresso a casa, pela tarde, já depois de concluir a segunda aula

do dia, para fugir ao sol encostei-me demais à parede que acompanha a rua

que percorro todos os dias. Esta está protegida por arame farpado invadindo

uma parte do passeio. Fiz um grande rasgão na cabeça que provocou a

perda de abundante sangue. A solidariedade dos miúdos que entretanto

passavam foi notória. Eram de opinião que me devia dirigir ao hospital,

colidindo com a opinião que eu tinha que era de não ir. Eles diziam que eu

Page 68: Um Olhar (Atento) sobre Timor

61

podia morrer se não fosse. Eu pensava que poderia morrer se fosse. Enfim,

opiniões. Valeu-me a pronta intervenção de uma das colegas que, como é

apanágio das senhoras, estava prevenida com uma bolsa de primeiros

socorros.

11 DE JUNHO – Sexta-feira

O dia começou com a normalidade de outros dias. Pena foi que., quando me

dirigi à missão portuguesa para ver o correio electrónico, depressa recebi a

notícia que não esperava, tinha morrido o nosso antigo reitor e colega

professor Torres Pereira. Como é de calcular foi um choque muito grande

para mim. Não que eu não estivesse consciente do seu estado de saúde

débil desde que há cerca de 2 meses deu entrada no hospital de Vila Real.

De imediato enviei um email para lista geral da universidade prestando-lhe a

minha última homenagem. A sua contribuição para a minha carreira

académica foi de importância decisiva. As suas palavras de incentivo, as

suas provas de confiança na minha pessoa e no meu trabalho deram-me

forças para ir vencendo as várias etapas que constituem a carreira

académica universitária em qualquer universidade portuguesa. Daqui, bem

longe da terra que me viu crescer, envio uma palavra de esperança para os

seus familiares e amigos. Por mim peço a Deus que descanse em paz.

12 DE JUNHO – Sábado

Um pouco mais tarde do que acontece nos dias de trabalho que constituem

a semana, saí de casa para o habitual passeio de Sábado. Quando cheguei à

Embaixada fui surpreendido por uma música de muitos decibéis. Era a

comemoração que a RDP Timor, juntamente com outras instituições

portuguesas, promoveu tendo como tema a abertura do campeonato da

Europa de futebol, o também aqui popular EURO 2004. Por lá passaram

Page 69: Um Olhar (Atento) sobre Timor

62

alguns governantes timorenses, nomeadamente o Dr Ramos Horta e o

Primeiro-ministro Mari Alkatiri que demonstraram não ter a pontaria muito

afinada pois não conseguiram introduzir a bola nas aberturas, servindo de

baliza, feitas sobre um painel vertical. Detive-me alguns instantes tendo

aproveitado para fazer algumas fotos e trocar algumas impressões com um

dos organizadores.

Enquanto me encontrava assistindo ao desfilar das músicas e das

intervenções em forma de entrevista e pequenos concursos, tive o prazer de

conversar com um docente português do ensino secundário que, por

iniciativa sua, me interpelou para me falar do seu interesse pelos artigos

sobre energia eléctrica que venho publicando, desde há uns tempos a esta

parte, no jornal de língua portuguesa titulado de Semanário. Dizia-me ele

que compra o jornal muitas vezes de propósito para que os seus alunos

leiam os meus textos pois considera serem um bom veículo da língua

portuguesa e uma boa contribuição para a sua difusão e cimentação num

país que a adoptou como língua oficial.

Para completar e ainda me deixar mais feliz, disse-me que no teste que deu

aos seus alunos colocou um dos meus textos por constituir uma peça bem

escrita e bem demonstrativa da riqueza da nossa língua. Sem dúvida que

quando se diz que “o trabalho, a dedicação, a solidariedade, o bem fazer,

etc “ compensam o que hoje me aconteceu é disso um prova perfeita.

O dia correu em normalidade, apenas alterada pelo resultado de Portugal

com a Grécia. Aqui muita gente se deslocou para o Hotel Timor onde

assistiu, a partir da uma da manhã, ao jogo em directo. Eu por mim fiquei

pelo meu quarto na expectativa de ver o jogo mais comodamente. A

frustração que tive quando constatei que a RCTI não transmitia o jogo sem

ser a pagar foi muito grande. Como o hotel não pagou não vi o jogo.

Page 70: Um Olhar (Atento) sobre Timor

63

13 DE JUNHO – Domingo

Hoje é Domingo. Comecei por cumprir as minhas obrigações de católico

praticante. Após isso fui dar um passeio que acabou por ser bastante curto.

Aproveitei para comprar mais alguns mantimentos para a alimentação diária,

tendo ido almoçar ao City Café. Durante o almoço tive uma surpresa muito

agradável: a Mónica, uma das meninas do MAC, chamou-me e

cumprimentou-me. A sua alegria em ver-me foi a melhor prenda que

poderia ter. Também a Irmã Eliene e a Professora Dulce estavam no

restaurante. A irmã ofereceu-me um CD que combinámos eu pôr à venda na

sala dos professores. O resto do dia foi normal. Passado em casa a escrever

pois tenho compromissos a que não posso falhar.

Tive conhecimento do primeiro assalto a uma instituição bancária em toda a

história de Timor. Aconteceu na Caixa Geral de Depósitos. Porque será que

as más acções não têm fronteiras?

14 DE JUNHO – Segunda-feira

Foi um dia diferente de outros porque, depois de algumas hesitações,

comprei um electrodoméstico que se mostrou um desastre. Pensava eu que

aquecer leite era o mesmo que aquecer água. Rotunda mentira. A

experiência mostrou-se um fracasso. No entanto há que não desanimar. É

nestes momentos que tomamos consciência da nossa pequenês. Que falta

fazem as senhoras!!!.

15 DE JUNHO – Terça-feira

Depois das aulas fui ao MAC. Lá estava a Irmã Eliene e um número cada vez

maior de miúdos. O caminho para lá, apesar de não ser muito longo, não é

fácil de calcorrear principalmente em dias de calor como são os de Timor.

Pouco antes de passar a ribeira para vencer os últimos metros comecei a

Page 71: Um Olhar (Atento) sobre Timor

64

constatar que estava em casa. Muitas saudações de alguns dos miúdos que

se dirigiam para o MAC onde já se encontravam os seus colegas “lideres”

para os acompanhar. À chegada fui brindado com a canção de boas vindas

com que normalmente eles recebem os amigos que os visitam. Nestes

momentos damos graças a Deus por nos dar disponibilidade e vontade para

ajudar crianças como estas, com tantas necessidades e com tanto amor e

carinho para dar. É muito gratificante. Por eles agradeço do fundo do

coração a todos os meus familiares e amigos que, com a sua generosidade,

minoram as dificuldades destes miúdos e proporcionam-lhes as condições

necessárias à sua ida regularmente à escola. Esta primeira visita serviu para

trocar informações com a Irmão no sentido de organizar a entrega das

cartas e das prendas que trouxe para alguns dos afilhados. Também falámos

sobre o futuro do MAC. Em breve terei uma reunião com quem irá ficar no

lugar da Irmã Eliene, aquando do seu regresso ao Brasil. A organização que

a Irmã Eliene idealizou para o MAC, assente essencialmente na

responsabilidade e no trabalho dos mais jovens que estão preparados para

assumir o pesado fardo de dar formação a vários níveis aos mais jovens.

Quando se tem o privilégio de, como eu, observar in loco o modo como se

desenrolam as actividades no dia a dia em Timor decerto deixaria de pensar

que as pessoas com responsabilidades religiosas são ríspidas, com ideias

muito rígidas e que, muitas vezes, não sabem dar valor a quem dirigem, são

autoritárias, etc. Puro engano. O modo como os miúdos se entendem e

organizam, demonstra que têm toda a liberdade para o fazerem. Muito

bonito.

16 DE JUNHO – Quarta-feira

O dia de hoje foi um pouco diferente pois não houve energia eléctrica,

desde ontem à noite até às 15H20m. Costuma dizer-se que quem é pobre é

pobre em tudo. Imaginem o que seria se em Portugal falhasse a luz por um

Page 72: Um Olhar (Atento) sobre Timor

65

período tão longo. Cairia o Carmo e a Trindade. Pois aqui tudo é aceite com

resignação. As pessoas não reclamam ou pelo menos não exteriorizam o seu

descontentamento. Uma falha tão longa pode acarretar prejuízos muito

grandes nos produtos alimentares e outros. Mas tudo é aceite com a

normalidade de quem pouco ou nada tem. A sorte é que no hotel não

sentimos esse problema pois tem gerador eléctrico como acontece com

muitas outras instituições públicas ou privadas.

Na madrugada deste dia, à noite em Portugal, tive uma surpresa muito

agradável, ao ligar a televisão, cerca da 4 da manhã pois estava a começar

o jogo de futebol entre Portugal e a Rússia. Como devem imaginar foi muito

bom para mim. A surpresa resulta do facto de a televisão que deu este jogo

não ter dado o primeiro. Portugal ganhou e deixou-me muito satisfeito.

Sobre este acontecimento no nosso país devo dizer eu, a tantas milhas de

distância, asseguro que a organização do europeu foi uma aposta ganha por

Portugal. Basta ver as televisões estrangeiras para concordar com esta

opinião. Muito se tem falado sobre o nosso país, desde as praias, às

pousadas passando pelo turismo rural o turismo termal, os monumentos,

etc. A DW, a BBC World, a RCTI da Indonésia e muitas outras têm

percorrido Portugal de lés a lés divulgando a nossa gastronomia, a nossa

hospitalidade, os nossos monumentos e muito mais que nós temos e que

muito nos orgulha. Só é pena que a nossa RTPi não transmita os jogos da

nossa selecção. Muitos que estamos tão longe não compreendemos porque

isso acontece.

17 DE JUNHO – Quinta-feira

A exemplo do que acontece todos os trimestres, os docentes do projecto

FUP foram convidados do Senhor Reitor para um convívio que mais não é do

que uma apresentação de todos nós aos colegas do UNTL e destes a nós

próprios. È sempre agradável participar nestes convívios pois o Senhor

Page 73: Um Olhar (Atento) sobre Timor

66

Reitor é um grande amigo de Portugal não seja ele descendente do Régulo

de Ainaro, D. Aleixo Corte Real. Mais uma vez aproveitou para agradecer às

universidades portugueses o quanto têm ajudado os timorenses na área do

ensino universitário, pois ele considera que os cursos ministrados são uma

referência a nível de Timor. É sempre bom ouvir palavras destas quando se

faz um sacrifício muito grande para se estar deslocado durante cerca de dois

meses e ausente dos que nos são mais queridos.

18 DE JUNHO – Sexta-feira

Foi muito interessante o dia de aulas, especialmente a parte da tarde onde

conversei bastante com os meus alunos que iam, na companhia de um

docente, passar o fim de semana a Jaco. Dos oito que iam apenas um já

tinha estado naquelas paragens, talvez pelo facto de ter nascido perto de

Tutuala.

O fim do dia foi muito calmo pois quase todos os colegas foram passar o

fim-de-semana à linda e despoluída ilha de Jaco, bem perto de Tutuala.

Como já a visitei uma vez, não fui. Fiquei por aqui por Díli.

19 DE JUNHO – Sábado

Hoje é Sábado. Uma boa oportunidade para descansar. Aqui em Timor o

cansaço apodera-se muito facilmente de nós. O facto de os alunos não

compreenderem muito bem a língua portuguesas obriga o docente a um

maior esforço para se fazer compreender. Também o clima com muito calor,

contribui para que duas aulas em Timor cansem muito mais do que 4 ou 5

em Portugal.

Como é dia de descanso, resolvi, pela primeira vez, fazer o meu passeio pelo

trajecto habitual, mas de bicicleta. Sem dúvida que os 8 ou 9 kilómetros são

vencidos com bastante menos esforço e mais rapidamente. Parei nas bancas

Page 74: Um Olhar (Atento) sobre Timor

67

das conchas do mar, mas como não havia nenhuma que fosse novidade

para mim, não comprei. Foi um passeio muito agradável embora deixasse

algumas mossas pois já há muitos anos que eu não me deslocava de

bicicleta.

Depois de almoço, o dia foi normal. Passei-o no quarto do hotel a escrever

os vários textos com que me comprometo. Como sejam o texto para o

Semanário, para A Voz de Trás-os-Montes e ainda os textos sobre a história

do movimento rotário.

20 DE JUNHO - Domingo

Dia do Senhor. Bem cedo, pois a missa em português é em Motael às 8

horas da manhã, saí da cama para me preparar para a missa e para o resto

do dia.

Hoje foi um dia muito especial para mim. Fui ao MAC entregar as cartas e as

prendas que os padrinhos em Portugal mandaram aos seus afilhados. Como

combinado, lá estavam a Joana, a Suzete, a Odete, a Vinígia, o Natalino, a

Ludugarda, a Jaqueline e tantos outros cujo nome já conheço muito bem.

Depois de a Irmã lhes explicar que alguns padrinhos não mandaram prendas

porque não têm contactos frequentes comigo, comecei a entregar as cartas,

as T Shirts e o dinheiro. Em cada caso tirei uma foto que entregarei aos

padrinhos quando chegar a Portugal. O interesse que os miúdos põem

nestes actos tão simples, mas de significado tão profundo, deixam-me com

muito mais alento para continuar com este projecto que, cada vez mais, é o

projecto que mais contribui para o meu bem estar espiritual. Além do mais,

dá-me forças para passar o tempo em alegria e paz, longe da família, mas

sempre com ela no meu pensamento.

Quando se lida com crianças é necessário ter muito cuidado para não ferir

os seus pensamentos. É por isso que coloco um cuidado muito grande

quando se trata de lhes entregar coisas.

Page 75: Um Olhar (Atento) sobre Timor

68

21 DE JUNHO – Segunda-feira

Tudo correu com normalidade. Apenas as obrigações decorrentes do facto

de prestar colaboração a alguns jornais, é que alteraram a monotonia

própria dos dias sem novidades. Leccionei pela manhã e pela tarde como é

costume. Fui ver o correio à missão portuguesa onde encontrei uma

professora de Bragança que já havia conhecido em Fevereiro. Aliás, como

estão em tempos de concursos e no final do ano lectivo é normal

encontrarem-se muitas das professoras e muitos dos professores do

secundário que aqui se encontra na pesada tarefa de ajudar a preservar a

língua portuguesa e de a tornar útil no dia a dia dos timorenses pois apesar

de ser língua oficial, tenho muitas reservas sobre o seu futuro.

22 DE JUNHO – Terça-feira

Hoje na aula da manhã fiquei com muitas dúvidas sobre o futuro de Timor,

no que respeita às duas línguas oficiais. Sobre o português já falei várias

vezes, mas esta é a primeira que falo sobre o tétum. Na disciplina de

Projecto estou a transmitir aos alunos, num total de quatro, os

conhecimentos suficientes e necessários para elaborar um projecto de uma

instalação eléctrica seja de que tipo for. Como em Timor não há

regulamentação, sirvo-me do Regulamento português, explicando-lhes que o

que é necessário é saber interpretar o regulamento pois de uma maneira

geral têm uma estrutura comum. Para dar mais força a esta ideia pedi a um

dos alunos que me trouxesse o regulamento indonésio. Assim aconteceu.

Com a sua ajuda depressa concluímos aquilo que para mim era óbvio, os

regulamentos têm muitas partes iguais e depois têm algumas adaptações

conforme o país onde são aplicados. No entanto onde eu queria chegar não

era aqui. Servi-me deste pretexto para lhes dizer aquilo que constatei na

aula. Disse -lhes que, atendendo a que o português e o tétum são as línguas

oficiais, a memória descritiva dos projectos teria que ser feita numa delas.

Page 76: Um Olhar (Atento) sobre Timor

69

Para meu espanto todos me disseram que se tinham dificuldade em

português o mesmo se passava com o tétum, ou seja, o que eles

efectivamente sabiam era o Wasa, língua indonésia. Por aqui podemos

imaginar quão difíceis vão ser os caminhos desta duas línguas em Timor. Ao

contrário do que pensava, nas suas conversas normais, os alunos e,

certamente, as pessoas em geral, falam wasa e não tétum que, aliás, é uma

língua muito pobre. Recorre muitas vezes a palavras portuguesas para se

complementar.

23 DE JUNHO – Quarta-feira

Em dias como o de hoje as saudades da casa aumentam. Quem não

gostaria de estar junto dos seus no dia de São João? Este ano ainda não

pode ser. A minha disponibilidade para cooperar com Timor continua bem

viva e por isso cá estou de novo este trimestre. Vamos ver quanto mais

tempo durará. Hoje foi noticiado que, pela primeira vez, a recém formada

polícia timorense foi posta à prova em dois acontecimentos de confrontação

violenta entre grupos rivais de artes marciais, para os lados de Ermera. Não

sei como a polícia se saiu desta primeira provação. O que preocupa é o grau

de violência que estes grupos põem nos seus confrontos. Nestes dois

confrontos morreram quatro pessoas e vinte e três ficaram feridas, o que

comprova que são confrontos com um grau de violência a que não estamos

habituados. É claro que esta refrega foi entre timorenses e bem longe de Díli

o que tranquiliza quem aqui vive. E se estes grupos resolvem confrontar-se

em Díli? Como reagirá a polícia? Será que consegue manter a ordem? Vamos

continuar a dar o benefício da dúvida no que respeita à calma com que

ainda se vive em Díli. No que me diz respeito vou continuar a ter o máximo

de cuidado, para não dar trunfos aos que fazem da violência o seu modo de

vida. Vou fazer uma avaliação muito rigorosa durante o período em que vou

estar aqui, até ao dia 27 de Julho. Se a minha análise me permitir concluir

Page 77: Um Olhar (Atento) sobre Timor

70

que continua a haver segurança que me permita desenvolver a minha

actividade de docência, sem pôr em causa a minha segurança, continuarei

nesta labuta para contribuir para o desenvolvimento deste jovem país e para

a preservação da língua portuguesa como língua efectiva do dia a dia dos

timorenses.

24 DE JUNHO – Quinta-feira

É meu hábito, pela tarde, no sossego do meu quarto, enquanto vou

cumprindo as várias metas de trabalho que trago quando venho para Timor,

estar atento às notícias e a alguns programas da RTTL – Rádio Televisão de

Timor Leste. Hoje fui surpreendido por um programa que me deixou muito

satisfeito e com o meu orgulho de português mais forte. O exemplo de

alguns timorenses durante a ocupação de Timor pelos japoneses durante a

segunda guerra mundial deixa qualquer português, não digo envergonhado,

mas ciente de que o sentimento de nacionalidade pode e deve ser aqui

muito profundo. O exemplo dado pelo Régulo de Ainaro, Dom Aleixo Corte

Real que, com o padre Norberto e Dom Boaventura, resistiram até à morte

ao desafio de traição à pátria portuguesa lançado pelas tropas japoneses

que os prenderam em Ainaro. Com eles morreram vários elementos da

família de Dom Aleixo. É muito gratificante e até surpreendente assistir ao

cantar do hino nacional português em evocação a esses momentos de

grande violência e que se traduziram na morte de muito timorenses e da

destruição da quase totalidade das casas de Díli, Maliana, Ainaro, etc. è de

elementar justiça relembrar também o Régulo de Maubisse Fonseca

Benevides que também foi assassinado por não trair o seu sentimento de

português. Enfim, tantos e tantos timorenses que morreram na sequência de

uma invasão japonesa sem qualquer sentido e com um grande sentimento

de culpa, hoje bem demonstrado pelo modo como prestam colaboração ao

povo timorense, quase que a redimirem-se do mal que lhes causaram.

Page 78: Um Olhar (Atento) sobre Timor

71

Hoje é dia de jogo de Portugal. Cá bem longe estou ansioso pela hora do

pontapé de saída. Oxalá que os nossos jogadores saibam honrar as

camisolas que vestem. Honrem todos aqueles que aqui bem longe sentem,

como ninguém, o amor à nossa pátria.

25 DE JUNHO – Sexta-feira

A sexta-feira é o dia da semana que faz a ligação entre os dias de trabalho e

o fim de semana. Pode dizer-se que é um dia especial pois já cheira a fim de

semana. Pode parecer mentira, mas é verdade que o sábado e o domingo

são os dias que, apesar de permitirem descansar depois de uma semana de

trabalho, são dias que custam muito a passar. Como não há a ocupação

laboral, é necessário arranjar maneiras de passar o tempo. É por isso que

normalmente me dedico a dar longos passeios. Espraia-se o espírito e

recuperam-se forças para iniciar a próxima semana. Mas isso é só a partir de

amanhã. Hoje ainda é sexta-feira e, como tal, tudo decorreu dentro da

normalidade de quem tem que leccionar duas disciplinas, uma pela manhã e

outra pela tarde. Pela manhã apenas tive dois dos quatro alunos que

compõem a turma. Um deles aproveitou para se deslocar a Los Palos a fim

de se recensear, pois em Timor está a decorrer o Sensus 2004. Para um país

tão jovem como Timor é imprescindível saber quantos são os cidadãos que

aqui vivem, onde vivem e como vivem. Todos os dias, na televisão, as

pessoas são chamadas à atenção para as vantagens que o sensus tem na

definição de políticas, quer de carácter social quer noutra área qualquer,

para criar melhores condições de modo a que o nível de vida das pessoas

melhore.

As notícias que chegam da possível ida do nosso Primeiro Ministro para

Bruxelas faz-me pensar e concluir que, de facto, os políticos portugueses

têm em comum a falta de capacidade para cumprir as suas obrigações até

Page 79: Um Olhar (Atento) sobre Timor

72

ao fim. É pena pois os portugueses merecíamos ter melhores políticos do

que aqueles que temos.

26 DE JUNHO – Sábado

Por vezes é muito difícil quebrar a rotina. No entanto vou tentando criar

condições para que este tempo em que estou afastado da família passe da

melhor maneira sem perder de vista que, em primeiro lugar, é necessário

dar cumprimento à obrigação inerente à função de professor. Sendo hoje

sábado exige-se um pouco mais de imaginação para que não se repitam as

palavras e as ideias que, dia após dia, vou vertendo para estes textos. Pela

manhã fui ao Instituto Camões onde aproveitei para enviar correio

electrónico. As minhas obrigações de professor não se confinam a Timor.

Em Vila Real na universidade onde lecciono, tenho os meus alunos ansiosos

pela chegada dos resultados dos exames respeitantes às disciplinas de que

sou responsável. Em simultâneo dei uma vista de olhos pelos vários livros

que se encontram nas prateleiras à espera que alguém os folheie. Quase

todos são de história de Portugal, incluindo, como é lógico, as antigas

colónias hoje denominados países de língua oficial portuguesas (PALOP).

Tendo eu um gosto muito grande por tudo o que é passado histórico, é fácil

compreender que faça visitas sucessivas àquele espaço no segundo andar

da nossa embaixada. A história de Timor, desde os tempos de ocupação

portuguesa até hoje, está muito bem documentada.

Tenho vibrado muito, a exemplo do que acontece com os demais

portugueses que aqui se encontram no desempenho das mais variadas

tarefas, com a onda de patriotismo que se criou em redor do EURO 2004 e,

principalmente, da prestação da equipa portuguesa. Nós os portugueses

somos capazes de tudo. Quantos acreditavam na nossa selecção nos meses

anteriores ao início do campeonato? Muito poucos, estou certo. Mas ainda

Page 80: Um Olhar (Atento) sobre Timor

73

bem que tudo mudou. Vamos lá ver se mantemos este espírito patriótico

para lá de EURO.

Hoje houve um momento na televisão que me chamou a atenção. Dizia o

nosso treinador, brasileiro de nascimento, que os portugueses são muito

reservados parecendo que têm vergonha de exteriorizar os momentos de

felicidade que vivem, ao contrário dos brasileiros muito expansivos nesses

momentos chegando por vezes a ser contagiantes. Talvez ele tenha razão.

Mas Deus assim nos criou e não vai ser fácil mudar.

27 DE JUNHO – Domingo

Mais um domingo que passou. Pela manhã, servindo-me da bicicleta de um

colega, saí do hotel para o habitual passeio matutino dominical. Em ritmo

próprio de quem poucas vezes se desloca neste meio de locomoção,

acrescentado as dificuldades inerentes à condução pela esquerda, lá fui

vencendo os vários quilómetros que separam o hotel da Praia Branca. Pelo

caminho o cenário é sempre o mesmo. As bancas das conchas, o vendedor

ambulante, os animais a atravessar a estrada ou a comer pachorrentamente

e com a descontracção de quem considera esse espaço como seu. Há

também os habituais desportistas que se arrastam pela estrada com ar de

quem é muito infeliz, parecendo que estão carregando um fardo muito

pesado. Enfim, as mesmas vistas do mar, do vendedor de cocos, do peixe

colocado nas bancas sempre com o sistema de abanico para enxotar as

moscas que, teimosamente, sobre eles tentam “aterrar”. Lá está o velho

cemitério, a placa indicadora da ida para a Praia Branca e para Baucau.

Tudo rigorosamente o mesmo, semana após semana.

Não se pense, no entanto, que o que acabo de dizer é pura monotonia.

Nada disso. Por exemplo, hoje, resolvi ir, pela primeira vez, ao Cristo Rei.

Chegado à praia situada bem debaixo do morro onde o Cristo foi feito,

chamada de Cristo Rei, encontrei dois colegas, deixando a bicicleta à sua

Page 81: Um Olhar (Atento) sobre Timor

74

guarda. De seguida dirigi-me com muita vontade e com o passo apressado

que caracteriza os meus passeios, para as escadas que conduzem lá acima

ao monumento. Pelo caminho lá está a via sacra que de patamar em

patamar nos conduz a um largo ao fundo do qual se encontra um altar.

Presumo que será aqui que são rezadas as missas nos dias solenes ou nos

dias de romaria ao local. Mais três ou quatro lanços de escadas e a

paisagem começa a ser deslumbrante. Chegado ao cimo, junto aos pés do

Cristo Rei, foi necessário sentar-me durante algum tempo. Não foi para

recuperar do deslumbramento da paisagem, mas sim para recuperar do

enorme esforço que fiz para lá chegar. É de louvar quem teve a iniciativa de

aqui instalar este monumento. Não há palavras, com força suficiente, para

transmitir a beleza que dali se observa. Pode acompanhar-se a estrada

sempre bem junto à borda do mar, desde o Cristo Rei até Díli. A água

límpida e transparente que se vê lá do alto, mesmo na vertical, assim como

quando olhamos para a ponta do sapato, não deixa ninguém indiferente. È

uma vista simplesmente fantástica.

Terminada a visita regressei cá abaixo, tarefa bem mais fácil que a subida. A

descer até os “calhaus” rodam, dizem na minha terra e com todo o

propósito. Montado de novo na bicicleta regressei ao hotel onde o resto do

dia foi passado da maneira habitual, vendo televisão e escrevendo.

28 DE JUNHO – Segunda-feira

Sem futebol e sem novidades, assim se passou este dia. Tudo normal. As

aulas decorreram sem problemas e os alunos vão dando saltinhos de pardal

na caminhada para a aprendizagem das leis da electricidade que tão

importantes são para o bom uso da energia eléctrica. Cá longe vou

acompanhando o problema da construção da barragem no Rio Sabor. Se

algumas dúvidas houvesse sobre a importância que o tema da energia tem

no momento actual, aqui está um bom exemplo para as desfazer. Sem

Page 82: Um Olhar (Atento) sobre Timor

75

dúvida que é um problema que hoje em dia temos que resolver. A

preservação do ambiente é uma preocupação que qualquer pessoa tem. Mas

não podemos pugnar por uma vida com qualidade se não tivermos

disponível a energia eléctrica suficiente ao bom funcionamento de qualquer

equipamento criador de um ambiente de calor ou de frio conforme

estejamos no Inverno ou no Verão. Se queremos bem estar não podemos

ser deliberadamente contra a instalação de centrais hidroeléctricas que,

como qualquer outro meio de produção de energia eléctrica, causa

problemas ao ambiente. Assim sendo é necessário termos uma atitude

pragmática que consiste em conviver com as duas, ou seja, preservar o

ambiente e produzir energia eléctrica. Temos visto que os naturais da região

transmontana são favoráveis à construção da barragem pois, além de

produzir energia eléctrica pode potenciar o turismo numa região com

belezas naturais evidentes, mas com falta de infra-estruturas de lazer. A

regularização do caudal do Rio Douro é um objectivo que não pode ser

conseguido se não forem construídas barragens nos seus afluentes. Tenho

visto, em Invernos rigorosos, a água passar em turbilhão, com um

andamento muito apressado e sem controlo, por sobre o tabuleiro da ponte

de Remondes. Quando toda essa água chega ao Douro não há qualquer

hipótese de a amansar de modo a não causar inundações que, quase

sempre, causam a morte de pessoas e prejuízos os materiais importantes. A

construção desta barragem vai trazer prejuízos para o meio ambiente?.

Vamos então pesar as vantagens que traz para a região que são, sem

dúvidas de qualquer espécie, muito superiores.

29 DE JUNHO – Terça-feira

Confirmou-se a ida do nosso Primeiro Ministro para a Comissão europeia.

Sem dúvida que é uma honra para Portugal que a Comissão Europeia seja

presidida por um português. Estou certo de que neste ponto estamos todos

Page 83: Um Olhar (Atento) sobre Timor

76

de acordo. Já as consequências a nível da política interna me parecem que

podem ser um desastre para Portugal. Vamos assistir ao derrimir de opiniões

que andarão durante algum tempo ao redor da ideia de haver ou não

eleições antecipadas. É claro que, como se sabe, em política tudo muda de

um momento para o outro. Quem está no poder vai bater-se para aí

continuar e quem está na oposição vai fazer tudo para que haja eleições

antecipadas. Escusado será dizer que as opiniões seriam as mesmas mas

com os protagonistas trocados caso quem está no governo estivesse na

oposição e quem estivesse na oposição estivesse no governo. Vou esperar

para ver como este tema vai evoluir.

Em Timor tudo o que se passa a nível de manifestação cultural, junta todos

os portugueses que aqui se encontram. Acontece assim invariavelmente.

Hoje não foi excepção. O CNEFP – Centro Nacional de Emprego e Formação

Profissional na dependência do nosso Ministério do Emprego e Solidariedade

Social vem desenvolvendo um conjunto de actividades na área da formação

profissional que muito devem orgulhar os portugueses. Num país em que a

mão de obra é, quase sempre, não especializada, todas as acções que

tenham como objectivo a formação profissional dos seus trabalhadores tem

um alcance social muito grande. O que se passou hoje ao fim do dia no

anfiteatro da UNTL – Universidade Nacional de Timor Leste é um óptimo

exemplo de como um país pequeno como Portugal tem a capacidade e o

engenho para pôr ao serviço dos que lhe são queridos, todas as capacidades

e o empenho dos seus profissionais. A cerimónia a que assisti encheu-me de

orgulho e satisfação pessoal. Constou na apresentação de um livro de apoio

à aprendizagem de trabalhadores timorenses no âmbito da sua formação

profissional, com o título “A Língua Portuguesa e as Profissões”, sendo a

autora a Professora Otília Oliveira. Já conhecia o trabalho desenvolvido por

esta cooperante portuguesa, a desenvolver a sua actividade há já alguns

anos. Exemplos como o dela muito contribuem para tornar Portugal um país

grande. Só a sua abnegação, o seu empenho, a sua dedicação e o seu amor

Page 84: Um Olhar (Atento) sobre Timor

77

ao próximo, podem justificar o trabalho que vem desenvolvendo aqui. No

seu percurso já esteve na Guiné Bissau onde a bondade e a disponibilidade

das suas gentes e a sua permanente necessidade de procurar terras mais

longínquas e mais apelativas, a conduziram até esta terra do sol nascente,

do sândalo e do pico mais alto daquele que foi o império português, o Pico

do Ramelau. Com pessoas como a Professora Otília, a palavra cooperação

assume toda a sua plenitude, a sua força, o seu significado profundo.

Cooperar é disponibilizar ao próximo todas as nossas capacidades. Pô-las ao

serviço de quem mais precisa, quer ao nível do saber quer ao nível das

necessidades básicas. Pelo mundo há muitos milhões de pessoas que

vegetam, não vivem. Em Timor possivelmente também haverá casos desses.

Tudo o que fizermos para alterar essa situação é bom. Portugal, já o disse

mais vezes, tem tido um comportamento que considero exemplar no que

respeita à cooperação Timo. O CNEFP é um bom exemplo do que acabo de

dizer.

A apresentação do livro foi feita pelo Reitor da UNTL, Professor Doutor

Benjamim Corte Real, linguista de profissão e conhecedor profundo da

língua portuguesa. Na sua apresentação realçou o valor intrínseco do livro,

enquanto peça escrita e o muito valor que tem para a formação dos

timorenses trabalhadores. Aborda várias profissões, apresentando

conversações temáticas sobre cada uma delas. A cerimónia teve momentos

de declamação de poesia e várias canções entoadas pelo grupo de

formandos, em número superior a trinta, que acompanharam toda a

cerimónia tendo sido intervenientes activos na fase seguinte à intervenção

da autora.

30 DE JUNHO – Quarta-feira

Como é natural todos estamos ansiosos porque chegue o momento do jogo

entre Portugal e Holanda. Em jeito de brincadeira eu e os meus alunos

Page 85: Um Olhar (Atento) sobre Timor

78

fizemos, no início do campeonato, um prognóstico sobre quem ganharia o

Europeu Foram todos saindo. Neste momento muitos já estão fora de jogo

pois só cinco é que apostámos em Portugal.

A encarregada de negócios de Portugal convidou a comunidade portuguesa

para assistirmos ao jogo nos jardins da nossa embaixada. Prometi a mim

mesmo que só irei lá para assistir ao jogo da final. A minha fé na capacidade

da equipa portuguesa é muito grande, pelo que espero que hoje ganhemos

para depois ir assistir à final. Por hoje vou ficar, como tenho feito nos jogos

anteriores, pelo sossego do meu quarto onde assisto ao jogo, com mais

liberdade, podendo fazer zapping quando me apetecer.

1 DE JULHO – Quinta-feira

O dia começou com uma grande alegria, a vitória de Portugal sobre a

Holanda. Aqui em Díli o jogo é às 4 da manhã do dia seguinte ao de

Portugal, pelo eu quando me dirigi à Liliana Shop para cumprir o ritual de

todos os dias, ir pelo pão, lá estava o senhor timorense, homem para os

seus sessenta anos, falando perfeitamente português, a cumprimentar-me

efusivamente e a dar-me os parabéns pela vitória de Portugal Esta saudação

tem-se repetido sempre que Portugal tem ganho. Nas aulas os meus alunos

também se manifestaram muito entusiasmados com o jogo dos portugueses,

mesmo aqueles que não apostaram na nossa selecção. O entusiasmo que se

apodera de muitos timorenses quando Portugal ganha, deixa-nos muito

contentes pois é demonstrativo da empatia que têm por tudo quanto seja

português. Penso mesmo que Portugal é um país que está no coração de

muitos dos que aqui vivem. Dos portugueses que aqui estamos nem é

necessário falar. Para quem está longe da pátria todos os motivos para se

juntar com os seus concidadãos são importantes. O papel da televisão é

decisivo na criação deste sentimento de unidade que se apodera de todos

nós.

Page 86: Um Olhar (Atento) sobre Timor

79

2 DE JULHO – Sexta-feira

Leccionar em Timor é um desafio à capacidade de, a qualquer momento, o

docente adaptar-se ao andamento da aprendizagem dos alunos. Quando

cheguei, tinha a incumbência de leccionar um programa que estava

previamente destinado à disciplina que me foi entregue. Por dificuldades de

cumprimento dos programas das disciplinas anteriores devidas por um lado

ao andamento muito lento da aprendizagem, mas por outro à falta de

capacidade por parte de alguns docentes de decidir quais as partes dos

programas das disciplinas que mais interesse têm para o futuro dos alunos.

Se a aprendizagem fosse feita a um ritmo normal, estes problemas não se

punham. Em consequência tive que alterar os conteúdos programáticos que

me estavam destinados. Assim sendo só hoje comecei a dar os assuntos

com que deveria ter começado o semestre. A dificuldade de recrutamento

de docentes em algumas áreas, nomeadamente a da electrotecnia, obriga

ao recurso a docentes que, embora completamente capacitados, não têm a

experiência suficiente para tirar todo o proveito possível da sua actividade

de docência. Aliás todo este tema de recrutamento de docentes tem que ver

também com a parte financeira. O nosso país que, como se sabe, não é rico,

disponibiliza verbas que obrigam quem gere o programa a optar muitas

vezes pelas soluções que não são as mais apropriadas. Apesar de tudo sou

de opinião que com muita força de vontade e alguma arte todos os

participantes neste programa de cooperação têm contribuído para que este

represente uma contribuição importante para a formação de quadros médios

– superiores de um país que muita necessidade deles tem.

3 DE JULHO – Sábado

Um Sábado diferente de outros. De manhã a habitual ida à Internet para pôr

o correio em dia e dar uma vista de olhos pelas edições online dos jornais

portugueses. A parte da tarde foi plena de cultura e de acontecimentos

Page 87: Um Olhar (Atento) sobre Timor

80

marcantes para mim. Comecei por assistir nas instalações do Ex CNRT,

agora Instituto de Formação Contínua, a uma peça de teatro declamado, em

que os actores foram os alunos do 1º ano de Electrotecnia e de Economia.

Tratou-se de u momento cheio de significado cultural, intitulado Fragmentos

extraídos da autobiografia de Xanana Gusmão, Timor Leste Um Povo Uma

Pátria. A vida de Xanana e o que ele significa para o povo timorense é

conhecido de todos. Não é pois de espantar que a assistência tivesse

seguido com grande concentração a actuação dos jovens actores que

desfilavam pelo palco com uma cadência bem ritmada, e com uma

coreografia bem original. Foi uma iniciativa da FUP e do Centro Cultural

Português que deram as mãos e, mais uma vez, contribuíram para a

aprendizagem e treino da língua portuguesa por parte dos alunos do

projecto da FUP e inseriu-se nas actividades extracurriculares integradas nas

aulas de língua portuguesa destes alunos. Sem dúvida que é com iniciativas

destas que se dão passos seguros no sentido de cimentar a utilização da

língua portuguesa no dia a dia dos timorenses. No final do teatro dirigi-me

para o Jardim de Infância Agrupamento HOTEL construído de raiz pelos

nossos militares. Pelo caminho ainda houve tempo para entrar na casa das

Madres de Balide onde se encontra a Irmã Guilhermina e onde se dá abrigo

a muitas crianças timorenses na sua maior parte órfãos e, essencialmente,

do sexo feminino. Conhecer instituições que têm como objectivo principal

retirar da miséria as crianças que não pediram para nascer, e dar-lhes uma

vida com a dignidade que qualquer ser humano merece, funciona como um

tónico que dá forças para nos dedicarmos ainda com mais convicção a

causas que permitem minorar os problemas com que milhares de crianças

vivem diariamente. Nos poucos minutos que aí estive tive oportunidade de

ver imagens da Santa Bachita que os timorenses veneram com muita

convicção. A minha ida ao jardim-de-infância foi para mim um momento que

me deixou muito emocionado. Só após alguns dias de ter chegado a Timor

pala quinta vez, é que soube que a escola que os nossos militares

Page 88: Um Olhar (Atento) sobre Timor

81

construíram foi aquela para quem eu, a pedido da dona Ercília e da

Professora Dulce, solicitou os bom ofícios do Comandante do Agrupamento

HOTEL que havia conhecido em Vila Real nos contactos que então

estabelecemos entre o Rotary Club e o Quartel militar. A Dona Ercília, em

agradecimento à minha atitude de ajuda na resolução dos problemas de

lama no Inverno e de pó no resto do ano do espaço defronte da sua escola,

fez uma pequena cerimónia com os alunos presentes num total de cerca de

45, com idades compreendidas entre os 2 e os 4 anos. Foi muito lindo e

tocou-me profundamente. Anteriormente a escola funcionava debaixo da

varanda da Dona Ercília e agora é uma escola, ainda que pequena, digna de

se ver. É formada por uma sala equipada com os equipamentos necessários

ao funcionamento normal de uma escola, mas com comodidades a que em

países como Timor não estamos habituados a ver. Só por ter contribuído

para a execução desta obra já valeu a pena pertencer a um clube rotário. Se

não tivesse entrado para este movimento de solidariedade que é o

movimento rotário certamente não teria contribuído para esta obra e para

muitas outras às quais tenho dedicado muito do meu tempo. A cerimónia

teve como momento mais significativo, do meu ponto de vista, a colocação

da salenda ao meu pescoço por cinco das crianças todas elas de palmo e

meio. Pode imaginar-se a sua dificuldade em levar a cabo tal tarefa. De

seguida um aluno de uma escola que funciona perto leu um pequeno texto

de agradecimento que passo a transcrever: Nós, as crianças desta

comunidade, agradecemos ao Senhor Professor Manuel pela ajuda que nos

deu através do pedido ao nosso Comandante do Batalhão de Exercito

Português, para ajudar a construir a nossa escola. E agora a nossa escola já

está erguida. Nós as crianças e os nossos pais, não temos nada a oferecer

ao senhor Professor, a não ser um pano tradicional como um símbolo de

amizade entre nós as crianças e o senhor Professor. Depois de lerem este

pequeno discurso estou certo de que ficam a compreender o orgulho com

que fiquei quando abandonei a escola e a tranquilidade de consciência que

Page 89: Um Olhar (Atento) sobre Timor

82

transmite o dever cumprido. A Dona Ercília mostrou-me com muita

satisfação e vaidade, porque não dizê-lo, o diploma que o Agrupamento

HOTEL lhe entregou assinado pelo senhor Ministro da Educação de Timor,

Dr Armindo Maia, por D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas

Portuguesas e pelo Comandante do Agrupamento HOTEL, Tenente Coronel

Xavier de Sousa. Mostrou-me também as fotografias que os nossos militares

fizeram retratando todas as fases da construção, assim como as fotografias

e respectivas moradas de todos os que trabalharam para que a escola fosse

uma realidade. O discurso que fez no acto da inauguração, muito simples,

mas muito rigoroso, aludia ao dia 5 de Fevereiro, dia em que eu, ela e a

Professora Dulce fomos fazer o pedido ao Comandante. O regresso ao hotel,

com o meu ego muito mais forte do que antes, culminou este dia que nunca

mais esquecerei.

4 DE JULHO – Domingo

Este fim-de-semana foi preenchido a cem por cento com iniciativas de

carácter social. Já há vários dias que a Drª Otília, do Centro de Emprego e

Formação Profissional me convidara para fazer uma visita à escola que está

a construir para os lados de Baucau e à qual ela, com muito carinho, chama

“a minha escola”. Hoje concretizou-se essa visita. Bem cedo, logo após a ida

à missa, partimos, na companhia de uma sua amigo vietnamita e outra

amiga portuguesa, em direcção a Uai Lacama, assim se chama a terra onde

fica a escola. A beleza da estrada, sempre junto ao mar e com curvas

apertadas, já eu conhecia de idas anteriores para aquelas bandas. O trajecto

foi feito sem paragens, com a promessa de no regresso termos

oportunidade de fazer fotos nos locais de maior beleza. Chegado a Uai

Lacama, fomos procurar a Professora Neide que depressa apareceu pois

mora junto à estrada onde tem também um “posto” de venda gasolina e

outros produtos. Pessoa afável e simpática dirigiu-se connosco para a

Page 90: Um Olhar (Atento) sobre Timor

83

escola, implantada em terreno cedido pela diocese e feita com dinheiros

angariados em Portugal pela Doutora Otília. O tamanho do terreno permite,

haja dinheiro, fazer espaços de lazer para lá dos espaços destinados à

escola. As três salas que a compõem, duas para um lado do L e outra para o

outro, ligadas por uma pequena, mas funcional sala de professoras que

serve também de biblioteca. Já com duas das três salas mobiladas, com a

terceira em vias de o ser, estão criadas as condições para ser feita a sua

inauguração oficial no próximo dia dezassete. Para chegar a esta fase muitas

canseiras e muitas dores de cabeça passou a sua promotora. A cultura dos

povos é muito diferente conforme o continente em que nos encontremos.

Por exemplo o conceito de fazer bem varia muito. Não tem nada a ver aquilo

que para nós é uma parede bem pintada ou o que ela é para um timorense.

Por isso é preciso uma paciência muito grande e uma força moral ainda

maior para levar uma obra destas até ao fim. Mas parece que isso está

prestes a acontecer. Em frente à escola, do outro lado da estrada, em

Beloki, podem ver-se as paredes daquela que foi uma escola de grandes

tradições em Timor tendo nela estudado o Bispo D. Ximenes Belo. Para

ultimar os detalhes da festa da inauguração, dirigimo-nos a Baucau, com o

objectivo imediato de falar com o senhor Bispo. Como estava doente não

nos recebeu, mas deixámos recado. A sua residência, com uma localização

sobre o mar, dá força, no bom sentido, aos privilégios em que vivem, quase

sem excepção, as autoridades eclesiásticas. Dali saídos, fomos almoçar à

Pousada de Baucau. Lindo lugar, onde se podem passar momentos

relaxantes que bem podem ajudar a esquecer os momentos menos bons

que a vida nos reserva. Fomos almoçar ao Restaurante Monte Perdido, por

certo assim chamado em homenagem ao monte que fica perto de Baucau,

no sentido de Viqueque. O local é magnífico e o ambiente acolhedor.

Terminado o almoço, feitas as fotografias habituais fomos para o centro

onde se pode admirar o mercado, edifício do tempo de administração

portuguesa em forma de U, encimado pelo escudo português com as suas

Page 91: Um Olhar (Atento) sobre Timor

84

cinco quinas. Que pena não ser cuidado! A continuar assim não, os

visitantes de Baucau, no futuro, não vão ter o prazer de dele desfrutar. Após

o almoço regressámos a Díli com paragem em Manatuto para subir ao

monumento a Santo António. As vistas deste ponto são lindas a valer. Os

arrozais, Manatuto com a maior parte das suas casas ainda destruídas, a

planície terminada pela serra e o mar são uma enchente para os olhos de

qualquer um. O monumento data de 1992 e foi inaugurado pelo bispo D.

Ximenes Belo. O regresso a Timor fez-se com o andamento próprio de

Timor, muito devagar. Para um percurso de cerca de oitenta quilómetros

gastam-se, seguramente, três horas. Por aqui se percebe a razão pela qual

em Timor as distâncias são em horas e não em quilómetros. À noite todos

os portugueses estávamos convidados para assistir, a partir da meia noite,

em casa do embaixador, à final do Europeu. Foi o que fiz e muitos outros

portugueses fizeram. À meia noite lá nos dirigimos de táxi para passando

pela avenida do farol e chegando ao local combinado à hora certa.

5 DE JULHO – Segunda-feira

A encarregada de negócios de Portugal em Timor recebeu-nos com muita

simpatia e com uma festa que foi mais um pretexto para conviver.

Dia sem acontecimentos dignos de nota. Apenas que era necessário puxar

por todo o fair play necessário para digerir uma derrota com a Grécia, que

não estava na previsão de qualquer português. Assim teve que ser. O

totobola que fiz com os meus alunos não teve vencedores. Nenhum de nós

apostou na Grécia. Ainda bem. Assim nenhum se ficou a rir. O tema do

futebol e das tendências de apoio de cada um dos timorenses tem algumas

nuances que são difíceis de compreender. Não sei se pela irreverência

própria dos jovens, à qual os timorenses não são excepção, se pela

tendência da geração que cresceu durante a ocupação indonésia, fui

brindado com vivas à Grécia quando, ainda meio a dormir, passava em

Page 92: Um Olhar (Atento) sobre Timor

85

frente ao antigo liceu Sousa Machado em direcção à universidade. Às vais

respondi com um sorriso. Não me era permitida outra atitude. Nos

momentos maus é que temos que mostrar que somos mais fortes que os

outros. Esta atitude contrastava com a tristeza dos meus alunos quando

entrei na sala, tanto de manhã como de tarde. O fenómeno do jogo merece

um estudo bem mais profundo do que estamos habituados a fazer. O

timorense, como asiático que é, tem entranhado o vício do jogo. Houve

pessoas que perderam carros, motas e dinheiro. A descontracção com que

aceitam o resultado das suas apostas, muitas vezes com consequências

desastrosas para a sua vida, deixa-nos estupefactos. Tudo se pode explicar

pelas diferentes culturas dos diferentes povos.

6 DE JULHO – Terça-feira

Dia normal, o que quer dizer que não houve nada digno de realce, a não ser

o que se passou na aula do 3º ano, de manhã. Um dos alunos chegou com

um problema na mão direita, apresentando um inchaço bem visível e

queixando-se de que tinha algumas dores e que pretendia autorização para

ir ao hospital. Entrados na sala, outro aluno prontificou-se a fazer um

tratamento convicto de que o problema desapareceria. Puxou de um

pequeno caderno que tinha na pasta e desfolhou algumas folhas detendo-se

numa delas com uma atenção muito grande. De imediato pensei que se

preparava para fazer uma reza para acabar com as dores do colega. Não foi

isso que aconteceu. Segurando na mão do colega fez deslizar os seus dedos

sobre a zona dorida e, depois de várias fricções, com movimentos suaves

mas convictos, terminou a sua intervenção. À pergunta natural se as dores

estavam a passar, a resposta afirmativa do doente não deixava dúvidas.

Soube depois que já desde os vinte anos, tem agora vinte e sete, que se

dedica a esta actividade. Perguntando-lhe o que tinha no livrinho,

respondeu-me que se tratava de um livro de Jesus Cristo e que nele tinha

Page 93: Um Olhar (Atento) sobre Timor

86

anotado todas as possíveis intervenções, conforme o problema que fosse

necessário tratar. A naturalidade com que respondeu à minha questão

mostra bem a convicção com que faz o bem a quem dele necessita.

Conhecer os alunos para lá das aulas é muito importante para a actividade

docente. Conhecer os seus problemas, os seus anseios, as suas convicções,

as suas dificuldades, enfim, conhecer com alguma profundidade o modo

como vivem, ajuda o docente na tarefa de ensinar. Dos quatro alunos do

terceiro ano já todos se recensearam e responderam ao sensus 2004 a

decorrer em Timor. As autoridades querem saber quantos são, como vivem

e onde vivem todos os cidadãos timorenses. Um deles teve que deslocar-se

a Los Palos e os outros ficaram por Díli. A televisão tem feito uma campanha

muito interessante sobre a necessidade de as pessoas se recensearem e

responderem aos sensos.

7 DE JULHO – Quarta-feira

Exercer a actividade de docência em Timor exige um grande esforço a

qualquer um. O calor, que aperta todos os dias, é um inimigo muito difícil de

vencer pois a sua acção faz com que seja muito mais difícil desenvolver esta

e qualquer outra actividade. O facto de se estar longe da terra e da família

cria em todos nós um stress muito grande que alguns, por vezes, não são

capazes de aguentar. Algumas atitudes tomadas por alguns colegas são

disso um bom exemplo. Vir para Timor pode ser muito bom, mas também

pode ser muito mau. Aqui não há cinema ou teatro para onde uma pessoa

vá descarregar esse stress. Não há quaisquer condições para ultrapassar os

problemas que dia a dia se apoderam de cada um. Por isso há sempre

alguns colegas que descarregam sobre quem com eles priva todos os seus

problemas que, muitas vezes, vão acumulando dia após dia. Para quem

esteja sereno, bem com a sua vida, calmo e sem problemas que o aflijam,

esta terra pode ser o paraíso. A selecção das pessoas, tanto civis como

Page 94: Um Olhar (Atento) sobre Timor

87

militares, que vêm para missões de cooperação para países como Timor

devia ser muito rigorosa no exame emocional de cada concorrente. Talvez

assim se conseguissem melhores resultados com a cooperação.

8 DE JULHO – Quinta-feira

O trimestre está a avançar e é necessário proceder à avaliação intermédia

dos alunos. Foi o que aconteceu hoje com a disciplina de Electrotecnia II, do

2º ano de Electrotecnia. Tudo correu dentro da normalidade. Vamos esperar

pelos resultados e concluir se os alunos apreenderam os conteúdos

programáticos que, com muito esforço, lhes tenho transmitido ao longo das

últimas semanas. Tudo o resto foi rotineiro. Almocei, como tenho feito nos

últimos dias, no restaurante Metro acompanhado de um colega da

Universidade do Minho, da área da formação pedagógica dos professores

timorenses. Os almoços têm sido momentos importantes na troca de

opiniões com este colega. Muito tenho aprendido com ele e espero que ele

também tenha aprendido alguma coisa comigo. A troca de opiniões é, por

vezes, muito rica em informações. Só assim podemos estar a par dos vários

acontecimentos que vão ocorrendo. Como neste trimestre há muitos colegas

de Vila Real, ligados à UTAD, quer na condição de docentes quer na

condição de ex-alunos, combinámos um almoço para a próxima terça feira.

Vai ser, assim espero, um bom momento de descontracção e manifestação

de camaradagem entre colegas unidos pelo “amor” que têm à cidade de Vila

Real.

9 DE JULHO – Sexta-feira

Embora já fosse esperado, depois das notícias de ontem, foi com alguma

mágoa que tomei conhecimento da morte de Henrique Mendes. Era sem

dúvida um profissional competente, um homem afável e um cavalheiro,

Page 95: Um Olhar (Atento) sobre Timor

88

como alguns dos seus amigos o apelidaram neste dia em que deixa o mundo

dos vivos. Paz à sua alma. Oferecido pelo colega a que ontem me referi,

recebi um pequeno livro com textos de vários dos docentes timorenses que

tiveram a sua fase de formação, ao nível do estágio, durante este trimestre.

Apesar de simples na forma, revelou-se, como eu esperava, um manancial

de conhecimentos que muito contribuirão para aumentar o conhecimento

que tenho de Timor, ao fim de vários meses de estadia. Conhecer e dar a

conhecer Timor Leste, assim se chama o livro. Trata-se de um bom exemplo

do que pode e deve ser feito ao nível da cooperação de Portugal com Timor.

Não nos esqueçamos de que a preservação da cultura timorense e um

melhor conhecimento da realidade timorense por parte dos nossos

cooperantes, pode ser uma boa ajuda ao êxito dessa cooperação. No

prefácio, da autoria do Lino Moreira, dinamizador e orientador desta

publicação, pode ler-se que “é importante que cada vez mais se valorizem

nas aulas os textos sobre a realidade timorense”. Estou totalmente de

acordo. É muito diferente serem autores estrangeiros a falar sobre a

realidade de um povo ou um país, ou serem os próprios a falarem. Quem

melhor do que os timorenses conhece os costumes, as receitas culinárias, os

pontos de interesse turístico, etc. Desfolhando o livro pode ver-se a

descrição do ilhéu de Jaco, ponto mais oriental de Timor com muita riqueza

natural, ao nível da fauna e da flora. Aliás pode afirmar-se que não há

estrangeiro que visite Timor que não faça uma visita a Jaco.

O papel da RTP internacional é muito importante no dia a dia de qualquer

português que esteja, por períodos mais ou menos longos, fora de Portugal.

Hoje, pela manhã, assisti a um programa do Professor Hermano Saraiva

sobre a vida e obra de Trindade Coelho. Como é sabido este licenciado em

direito, por profissão, mas escritor por paixão, nasceu em Mogadouro, bem

no centro da vila, ao lado do Convento de São Francisco, numa casa que fica

ao fundo da praça central quando caminhamos no sentido do castelo. A sua

casa confina mesmo com as duas ruas paralelas que dão acesso à zona do

Page 96: Um Olhar (Atento) sobre Timor

89

castelo. Homens como Trindade Coelho não há muitos, infelizmente. A sua

capacidade de trabalho aliado ao seu amor por tudo o que fazia em prol da

justiça, no âmbito da sua actividade de Magistrado do Ministério Público, são

dignas de realce e de admiração. O seu desapego aos lugares do poder

levaram-no a não aceitar o lugar de deputado pois, dizia ele, que justiça e

política não eram compatíveis. Seguindo o seu caminho escreveu mesmo um

livro onde criticava, com veemência, os partidos políticos e os seus

membros. Dizia ele que, comum a todos, havia uma coisa muito má que era

a corrupção. No seguimento da publicação deste livro foi convidado a

abandonar a carreira, que muitos consideravam promissora, de magistrado

público. Rejeitou mesmo a ida para Juiz. Caso aceitasse seria o mais jovem

Juiz português até então. Poucos hoje como então, são capazes de tomar

atitudes como as que ele tomou, com prejuízo evidente para a sua vida à

qual poria termo passado muito pouco tempo de abandonar a sua profissão

10 DE JULHO – Sábado

Para fugir à regra, hoje foi um dia diferente dos outros sábados. Pela manhã

fui ao Instituto Camões onde naveguei pela Internet, sem ser incomodado

pois durante toda a manhã não houve concorrentes e assim pude dedicar

toda a manhã a ver as notícias dos jornais portugueses e ver o correio

electrónico. A noite, passeia com muita ansiedade pois deveria ser avô,

durante o dia em Portugal, durante a noite em Timor. Parece que o rebento

se está atrasar pelo que durante todo o dia tenho ansiado por uma

mensagem de telemóvel anunciando a sua chegada. A tarde passei-a todo

no quarto do hotel pondo a escrita em dia. Assumir compromissos tem

custos. É necessário cumprir com o que nos comprometemos. É isso o tento

fazer sempre.

Page 97: Um Olhar (Atento) sobre Timor

90

11 DE JULHO – Domingo

O Domingo tinha que começar pela missa em Motael. De diferente teve o

facto de o senhor padre não ser o habitual. Por esta altura do ano vem um

senhor padre timorense, bastante jovem, que se encontra em Roma a

leccionar na Faculdade de Teologia da Universidade Gregoriana de Roma. Se

alguma dúvida houvesse sobre sua a categoria intelectual, é professor

catedrático daquela faculdade. Representa sempre uma lufada de cultura,

pois já é a terceira vez que assisto a missas ditas por ele. Após a missa fui

dar uma volta de bicicleta. Segui pela marginal em direcção à praia dos

coqueiros, em direcção contrária à da praia da areia branca. É um passeio

diferente e também muito bonito. Passa-se pelo monumento ao Engº Canto

de Resende, português deportado pelos japoneses para a ilha de Calabor,

em frente à marginal, ao lado esquerdo de Ataúro. Seguem-se alguns

restaurantes típicos, a embaixada brasileira, a casa do nosso embaixador e a

futura embaixada dos Estrados Unidos. Sobre a praia podem ver-se os

vestígios dos bares improvisados que funcionam todas as noites, onde se

pode comer vários petiscos timorenses. A marginal termina sendo necessário

virar à esquerda na direcção da estrada que conduz ao aeroporto. De

interessante, ainda que estranho, é o facto de Timor, um país jovem e dos

mais pobres do mundo, ter, para além da universidade pública, cerca de

catorze ou quinze universidades privadas. Tudo isto vem a propósito de ter

passado em frente de uma delas, o IOB – Institute Of Business. É um

fenómeno que não é fácil de compreender, mas provavelmente terá alguma

explicação que me falha. De seguida fui até à rotunda que dá acesso ao

aeroporto. O objectivo era visitar o monumento que os indonésios ergueram

nesta rotunda e que constituía uma homenagem à esposa do presidente

Suarto. Hoje foi alterado tendo-lhe sido retirados os símbolos que o

identificavam com ela, nomeadamente uma imagem feminina colocada bem

lá no alto para onde jorravam água alguns anjos colocados em volta da base

do monumento. O resto da dia foi normal apenas perturbado pela falta de

Page 98: Um Olhar (Atento) sobre Timor

91

notícias sobre o novo elemento da minha família que se negou a nascer

adiando por alguns dias a vinda a este mundo que é o nosso.

12 DE JULHO – Segunda-feira

Mais uma semana que começou. A rotina diária regressa. Pela manhã a aula

de Projecto e pela tarde a de Electrotecnia II. Entre elas a ida à Internet e

depois o almoço. Terminado este, regresso ao hotel para o descanso diário.

As aulas decorreram como de costume. A paciência é uma virtude que aqui

em Timor faz muito jeito. A dificuldade que os alunos têm na compreensão

da língua portuguesa e na expressão torna a nossa vida muito complicada.

Exige muito mais esforço do que em Portugal. No entanto não deixa de ser

muito aliciante o desafio que se nos põe, todos os dias, na procura de

estratégias de transmissão de conhecimentos consentâneas com a matéria

prima que temos em presença, os alunos.

13 DE JULHO – Terça-feira

Não havendo nada de especial a registar, vou reflectir um pouco sobre os

meios de transporte em Díli. As populares microletes percorrem as ruas de

Díli sempre metendo e descarregando passageiros com uma cadência muito

acelerada. O cobrador funciona também como angariador de clientes. Antes,

durante e após as várias paragens faz gala de uma grande capacidade de

malabarismo para desempenhar as suas tarefas com eficiência. Este meio de

transporte, guiado por motoristas com muita habilidade percorrem as ruas

de Díli dando-lhe um ar pitoresco que tem a ver com as garridas cores e as

alusões à religião e aos seus agentes, que ostentam, na maior parte dos

casos na parte da frente.

Page 99: Um Olhar (Atento) sobre Timor

92

Neste dia fiz uma visita ao Senhor Caetano com vista a concretizar a ideia de

trazermos um professor timorense, do ensino básico, a estagiário em

Portugal, com bolsa do Distrito rotário 1970.

14 DE JULHO – Quarta-feira

O dia de hoje foi um dia diferente pois foi um dia de confraternização entre

os docentes que, de algum modo, estejam ligados à cidade de Vila Real.

Fomos todos jantar ao restaurante timorense de nome Maubere. Trata-se de

um restaurante com instalações bastante boas, muito arejadas e bastante

limpas. Como é costume pois o frio aqui não aparece, tem apenas a

cobertura sendo desprovido de paredes laterais. O serviço foi bastante bom,

tendo o jantar constado de camarões grelhados de entrada seguidos de uma

caldeirada de peixe. Tudo estava muito bom. Lá estávamos os docentes da

UTAD e alguns docentes que ali estudaram e fizeram o seu curso. Estes

momentos de camaradagem são muito importantes para quem está longe

de casa. Permitem que nos conheçamos melhor e, por vezes, constituem até

verdadeiras surpresas, agradáveis normalmente. O regresso ao hotel foi

feito em cima de uma carrinha gentilmente cedida pelo dono do restaurante.

Foi um jantar que ficará, estou certo, sempre na retina de todos os que nele

participaram.

15 DE JULHO – Quinta-feira

Além da correcção dos testes de recurso de SEE II e de Máquinas Eléctricas,

dos meus alunos de Vila Real, resolvi escrever um texto para o Semanário

falando sobre o curso de Engenharia Electrotécnica e da importância que

pode ter no futuro de Timor. Pareceu-me importante aproveitar a

oportunidade que representa o facto de ser cronista permanente, já lá vão

24 textos, sem interrupção, para realçar o papel que as universidades

Page 100: Um Olhar (Atento) sobre Timor

93

portuguesas têm tido no desenvolvimento do curso. Não fossem as nossas

universidades cederem os seus docentes e não seria possível tê-los em

funcionamento. Reflecti um pouco sobre as políticas energéticas que me

parecem mais adequadas para o futuro de Timor e qual o papel que os

primeiros licenciados em electrotecnia podem representar para a sua

definição. Não basta definir políticas é preciso que sejam sustentadas e

sustentáveis. Também é muito importante quem as vai executar. É aqui que

os nossos alunos entram. Os primeiros vão ser formadas antes de Natal.

Espera-os um país dos mais pobres do mundo e onde tudo está por fazer.

Faço votos parta que os ensinamentos que os vários docentes que tiveram,

sejam aplicados no exercício da sua profissão.

16 DE JULHO – Sexta-feira

Após a visita que, na terça-feira, fiz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros,

voltei hoje a encontrar-me com o Senhor Caetano. Trata-se de um

timorense que viveu intensamente a turbulência por que passou Timor

desde os longínquos tempo0s de 2005 até hoje. Esteve preso e vive em Díli.

Trabalha no Ministério onde apoia o Ministro Ramos Horta. É membro do

Rotary Club de Díli e conhece as dificuldades e as provações por que passou

o povo timorense. >Tenho0 tido oportunidade de com ele conversar sobre

rotary e sobre Timor e no seu povo.

Neste dia fiz uma curta visita ao MAC para rever a criançada e preparar a

despedida que, em breve, vai acontecer.

17 DE JULHO – Sábado

A correspondência de Timor, textos que escrevo para a Voz de Trás-os-

Montes, ocupa uma parte dos sábados. Foi o que hoje aconteceu. No texto

desta semana escrevi sobre a importância que tem a cooperação portuguesa

Page 101: Um Olhar (Atento) sobre Timor

94

no desenvolvimento de Timor. Falei sobre um livro lançado pelo CNEFP

português, chamado “A Língua Portuguesa e as Profissões” destinado aos

trabalhadores timorenses que se encontram a fazer formação profissional.

Este pode ser um instrumento importante para que o português seja falado

por todos os timorenses já que é uma das línguas oficiais, a par do tetum,

desde jovem país. A autora pertence ao Centro de Emprego e tem

desenvolvido uma actividade muito positiva na formação profissional aqui

em Timor. Já aqui se encontra há cerca de três anos. Este livro é o fruto de

uma dedicação, sem desfalecimentos, à cooperação com Timor. Oxalá os

timorenses saibam aproveitar este e outros contributos da nossa

cooperação. O resto do dia aproveitei-o para rever fotografias da família e

das anteriores vindas a Timor. È necessário ocupar o tempo que aqui anda

pachorrentamente, a passo de caracol.

18 DE JULHO – Domingo

Ao contrário do que tem sido habitual, hoje fui à missa à Igreja de Balide.

Houve duas razões para que alterasse este meu hábito. Uma delas foi a

possibilidade de me levantar um pouco mais tarde. A outra foi a esperança

de encontrar o Padre João Felgueiras, pois tinha a informação que ele

celebra a missa dominical nesta igreja, às nove horas. À hora adequada

dirigi-me para Balide, um pouco mais longe do que a de Motael. Passa-se

pela Rádio de Timor Leste, pelas instalações de Caicoli onde os nossos

militares estiveram aquartelados e finalmente chega-se à rotunda que fica

junto ao estádio de Díli e junto ao ponto de encontro das microletes que

saem para fora da cidade. Virando à direita falta vencer cerca de uma

centena e meia de metros e damos com a linda igreja, centrada no interior

de um jardim, acedendo às escadas principais através de uma ala com

monumentos evocativos de anteriores párocos, com a particularidade de um

deles ter sido oferecido pelo último governador Abílio Soares. Simples

Page 102: Um Olhar (Atento) sobre Timor

95

casualidade, direi que acabou de ser julgado em Jacarta e condenado a três

anos de prisão a cumprir em Cipinang, onde esteve o Presidente Xanana

Gusmão. Esta condenação provavelmente será para mostrar que a justiça

funcionou. É, estou certo, apenas uma condenação de fachada para

esconder outros que serão os verdadeiros culpados das atrocidades que

foram praticadas em Timor. Na missa encontrei vários meninos e meninas a

quem estamos a pagar os estudos. É indescritível a alegria que se apodera

de mim quando sou saudado por eles com sorrisos largos, naturais,

verdadeiros. Só por isso já vale a pena o trabalho que tenho tido para dar

conta do recado nesta empreitada de bem fazer que abracei desde que

entrei para a vida de rotário. Aqui a missa termina com os senhores padres

a descer a igreja, acompanhados pelos jovens ajudantes da missa, entrando

na sacristia. O ritual que se segue é a entrada de muitos dos assistentes à

missa na sacristia para pedir a bênção aos senhores padres. Este hábito já

há muitos anos está afastado do domingo dos portugueses. Entrei e

cumprimentei, com um apertado abraço, o senhor padre. A alegria em me

ver foi muito grande. Vejo nestes gestos uma amizade que considero sincera

e que, como já escrevi noutras ocasiões, tem vindo a crescer. É de realçar a

lucidez e a jovialidade que manifesta. Fiquei a saber que este ano não irá a

Portugal o que me deixou triste e contente. Triste porque assim não poderá

ir a Vila Real falar-nos sobre a sua vida em Timor. Contente porque a

deslocação, a fazer-se, sê-lo-ia por razões de falta de saúde.

19 DE JULHO – Segunda-feira

Um dia que podia considerar-se normal não fossem os problemas que

surgiram ao fim do dia. Um grupo de ex combatentes da FRETILIN,

liderados por um antigo comandante, conhecido por L-7, manifestou-se

junto ao palácio do governo, exigindo que este se demitisse. Estas

reivindicações já vêm desde há algum tempo a esta parte, quando estes

Page 103: Um Olhar (Atento) sobre Timor

96

mesmos ex-guerrilheiros foram recebidos pelo comandante das forças

armadas. Trata-se de antigos combatentes que foram excluídos das forças

armadas regulares e que exigem condições de vida, a que pensam ter

direito pelos muitos anos que combateram, concretamente o ex guerrilheiro

L-7 durante cerca de 24 anos. A reinserção de ex combatentes na sociedade

civil é um problema que qualquer país que tenha passado por um guerra

como Timor, tem. Veja-se o que se passou em Angola, em Moçambique, na

Guiné e em tantos outros. São problemas muito difíceis de resolver e que

podem criar muitos problemas ao normal funcionamento das instituições

democraticamente instituídas. Este tipo de acontecimentos traz sempre

alguma apreensão a quem se encontra tão longe de casa como é o meu

caso e o de muitos colegas que aqui estamos em cooperação na área do

ensino superior. Pode dizer-se, no entanto, que nestes momentos difíceis

somos objecto de solidariedade pronta tanto das autoridades que aqui

representam o nosso país, como das autoridades locais. Destaco a atitude

do Senhor Reitor da UNTL que se deslocou, propositadamente à sala que

nós ocupamos para avisar que iria haver uma manifestação contra o

governo e que era mais seguro não nos deslocarmos à sala onde

habitualmente vamos “recolher” o correio electrónico. Foi o que fizemos.

Ficámos em cavaqueira no hotel onde estive esperando o tempo passar e

desejando que nada de mal acontecesse.

20 DE JULHO – Terça-feira

Depois dos acontecimentos da noite de ontem, a expectativa pelo que se

poderia passar hoje era grande. Chegado à universidade depressa vi que a

movimentação de pessoas estranhas era notória. Na sala fui informado que

a movimentação da noite anterior ia continuar. Os manifestantes investiram

para a entrada do palácio onde os esperava a polícia que usou de todos os

meios para impedir que perturbassem o normal funcionamento das

Page 104: Um Olhar (Atento) sobre Timor

97

instituições eleitas, governo e parlamento. Utilizou gases lacrimogéneos e

balas de borracha para os dissuadir de levarem em frente os seus intentos.

Foram presos alguns dos manifestantes e os restantes dispersaram. É claro

que estes acontecimentos criaram um nervosismo justificável em muitos

alunos e docentes. Algumas das aulas não funcionaram e outras decorreram

com a anormalidade própria de casos como este. De manhã dirigi-me ao

jornal Semanário para que me fossem entregues os exemplares que saíram

no período em que não estive em Timor. Fui, com o seu director, o jornalista

António Veladas, à redacção onde os recolhi. Pelo caminho foi fácil ver que

as pessoas do povo pressentem, com muita facilidade, as consequências

negativas que daí podem vir. Os estabelecimentos comerciais estavam

quase todos com as portas cerradas. Parecia uma cidade em pânico, mas

com todas as pessoas recolhidas em suas casas. Ao fim de algum tempo o

regresso à normalidade aconteceu e pela tarde já foi possível fazer uma

visita de estudo às instalações da central eléctrica da EDTL, localizada em

Comoro. Sem dúvida que foi um visita muito proveitosa e que serviu para

que os alunos sentissem o trabalhar dos geradores, os equipamentos vitais à

produção, ao transporte e à distribuição da energia que aqui se consome no

dia a dia. A visita havia sido programada para ser feita nas aulas de

Máquinas Eléctricas e de Electrotecnia II. Em boa hora isso aconteceu. O

Engenheiro Hélio Ximenes recebeu-nos com uma simpatia que é de realçar e

disponibilizou o seu tempo para explicar pormenorizadamente aos alunos

quer o funcionamento dos vários equipamentos quer as questões de índole

mais geral no que se refere às condições de exploração da central. Entre os

vários equipamentos que foram vistos e “sentidos” pelos alunos estão os

isoladores de cerâmica, os transformadores, os disjuntores, os postes, os

motores, etc. Com a abertura das instituições como a EDTL, públicas ou

privadas, às instituições de ensino superior ficam a ganhar umas e outras.

As primeiras, porque dão a conhecer o seu funcionamento, as suas

dificuldades, o alcance social dos seus serviços. As segundas, porque os

Page 105: Um Olhar (Atento) sobre Timor

98

alunos têm contacto com a realidade que vão encontrar quando um dia

ingressarem no mercado de trabalho. Foi manifesto o interesse de todos os

alunos na visita. Tiraram apontamentos e colocaram questões resultantes

dos conhecimentos teóricos que já têm, ministrados nas disciplinas referidas

e noutras que já frequentaram. Também aproveitei a oportunidade para

tomar conhecimento de alguns dados que me interessam para fundamentar

melhor os conteúdos programáticos que transmito aos meus alunos. Entre

eles está a potência da central de 17 MW que alimenta a cidade de Díli e o

corredor que se estende até Maubara, passando por Liquiçá, assim como o

que se estende até Metinaro, passando por Hera. A linha de transporte é

trifásica de 20 kV. Este nível de tensão é mais de distribuição do que de

transporte, se falarmos com rigor. A explicação do Engenheiro Hélio foi

bastante longa. Em nome de todos os alunos de Electrotecnia do curso FUP

– UNTL, de todos os docentes e dos representantes da FUP em Timor, na

minha qualidade de coordenador do curso, agradeço à EDTL, na pessoa do

seu responsável Eng.º Carvalho Rodrigues as facilidades que nos concedeu

para que a visita se fizesse. Estes agradecimentos estendem-se também ao

Eng.º Hélio, que tão bem nos atendeu e tão bem explicou aos nossos alunos

todos os pontos importantes de uma instalação deste tipo. Estou certo que

os nossos alunos saíram de lá muito mais conhecedores do tema da energia

eléctrica. Esse era o nosso objectivo que considero ter sido plenamente

atingido.

21 DE JULHO – Quarta-feira

Foi dia de confraternização entre todos os docentes que aqui se encontram

no programa de cooperação das universidades portuguesas e da UNTL –

Universi9dade Nacional de Timor Leste. Foi uma boa oportunidade para

conviver e degustar algumas iguarias confeccionadas por alguns colegas.

Tudo correu dentro da normalidade e sem exageros.

Page 106: Um Olhar (Atento) sobre Timor

99

22 DE JULHO – Quinta-feira

Hoje, durante a aula, num momento de descontração, fiz, com os meus

alunos, uma reflexão sobre o momento político timorense. Todos se

expressaram e, com maior ou menor clareza, assumiram as suas tendências

políticas que, como é óbvio e as circunstâncias exigem, não as vou divulgar.

23 DE JULHO – Sexta-feira

Hoje é o último dia de aulas. No final despedi-me dos alunos chamando-lhes

à atenção para aquilo que deve ser a sua postura perante o futuro que os

espera. Formulei desejos de que o futuro lhes sorria.

24 DE JULHO – Sábado

Um Sábado um pouco diferente do normal. Pela manhã saí do hotel em

direcção ao Instituto Camões para “ver” o correio electrónico e dar uma

vista de olhos pelos jornais “on line”. Esta é a única hipótese que temos de

ler a imprensa nacional. Devo dizer que é uma das grandes faltas a quem

está longe. A notícia em “papel” é muito mais marcante do que a online.

Sentir o papel na mão é uma sensação diferente que aqui tão longe não é

possível ter. Como não estava o responsável pela Internet não pude

consultá-la. Como a Dona Jacinta também faltou ao trabalho fiquei sem

possibilidades de actualizar o correio e as notícias. Em alternativa, e a

exemplo do que tenho feito muitas outras vezes, procurei na biblioteca do

instituto alguns livros que falassem da história de Timor, especialmente

sobre o período da 2ª guerra mundial, aquando da invasão dos japoneses. A

procura foi muito produtiva pois encontrei um livro intitulado “ Timor entre

Invasores, 1941 – 1945”. Trata-se de um trabalho final de mestrado de,

……, orientado pelo dr Medeiros Ferreira, antigo Ministro português dos

Negócios Estrangeiros. Havia já muito tempo que procurava alguma menção

Page 107: Um Olhar (Atento) sobre Timor

100

ao Padre Alberto Gonçalves, padre Jesuíta, natural da minha aldeia,

Remondes, em Trás-os-Montes. Finalmente isso hoje aconteceu. Nesse livro

refere-se o seu trajecto e a sua acção em Timor durante cerca de quarenta

anos que aqui esteve. Quando veio para Timor trouxe consigo dois irmãos.

Um deles regressou a Portugal passado algum tempo, mas o outro por aqui

continuou, constituiu aqui família e aqui passou quase toda a sua vida.

Assentou arraiais perto de Maubara, onde viveu sempre, dedicando-se à

produção de café do qual, com muita amizade e consideração, levava aos

meus pais alguns pacotes. Era, sem dúvida, um bom café com um aroma

inconfundível. Recordo com muita saudade o tempo em que era jovem,

quando ajudava a minha mãe a moer os grãos de café que ele nos oferecia.

Bons tempos esses. Este conterrâneo de que estou a falar foi um dos

fundadores da ACAIT – Associação Comercial Agrícola e Industrial de Timor.

Visitando o edifício que foi e creio que ainda é a sede desta associação,

pode ver-se uma placa onde estão gravados os nomes dos seus fundadores,

o senhor João do Nascimento Gonçalves incluído. Tive também oportunidade

de ver como aconteceu o massacre de Aileu. Ao contrário do que pensava,

foram os naturais de Timor, de um e de outro lado, que massacraram os

portugueses que ali se encontravam. Claro está que foram instigados pelos

invasores japoneses a fazê-lo.

Após terminar a segunda guerra mundial, os japoneses, a exemplo do que

ainda hoje acontece, indemnizaram os portugueses a quem tinham

destruído casas, plantações e outros bens. Ouvi muitas vezes a minha dizer

que este meu conterrâneo visitou a nossa terra poucos anos após essa data,

mostrando alguns sinais exteriores de riqueza, resultante das indemnizações

que lhe couberam.

O Padre Alberto Gonçalves regressou, nos meados dos anos cinquenta, à

sua terra natal onde foi pároco até à sua morte.

Do Instituto Camões segui para casa da Irmã Eliene a fim de combinar com

ela um encontro com alguns dos meninos e meninas do MAC, pois ainda não

Page 108: Um Olhar (Atento) sobre Timor

101

fiz entrega de todas as encomendas que me entregaram em Portugal. Como

quero ser um “carteiro” eficiente vou Terça-feira, fazer a última entrega.

Como a Irmã Eliene regressa ao Brasil no final do ano, conversei com a

pessoa que a irá substituir. É a Drª Maria Jardim, de origem sul-africana,

casada com um colega madeirense. Foi muito bom conversarmos pois

alinhavámos algumas ideias para continuarmos com esta colaboração entre

o Rotary Club de Vila Real e o MAC. Estou certo de que vamos continuar a

ajudar muitas crianças que, de outro modo, não poderiam estudar.

25 DE JULHO – Domingo

Fui à missa a Balide, pois queria despedir-me do Padre João Felgueiras. Fi-lo

no final da missa, convicto de que regressaria de novo a esta terra.

A missa em Balide, rezada pelos Padres Felgueiras José Martins, tem uma

particularidade muito interessante que é a de a homilia e outras partes da

missa, serem feitas em Tétum e Português. Para quem como eu que poucas

palavras sei em Tétum, é muito bom. Permite-me uma assistência mais

efectiva.

De tarde fiz o meu último passeio de bicicleta à praia da Areia Branca, com

subida ao Cristo Rei para desfrutar das fantásticas vistas sobre o mar e

sobre Díli.

26 DE JULHO – Segunda-feira

Termino aqui este meu diário. Com ele pretendo deixar o meu testemunho

sobre esta terra e estas gentes que terão, para sempre, um espaço no meu

coração

Page 109: Um Olhar (Atento) sobre Timor
Page 110: Um Olhar (Atento) sobre Timor

JUNHO/JULHO - 2002

CORRESPONDÊNCIA DE TIMOR

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Page 112: Um Olhar (Atento) sobre Timor

105

INÍCIO DA MINHA COOPERAÇÃO COM TIMOR

Acedendo a um convite que me foi feito pela FUP – Fundação das

Universidades Portugueses, encontro-me em Timor para leccionar uma

disciplina do Curso em Engenharia Electrotécnica que começou a ser

ministrado na Universidade Nacional de Timor Lestei. Cheguei Sábado pelas

oito horas locais, depois de uma viagem de vinte e duas horas de avião, e,

as minhas primeiras impressões sobre Timor e as suas gentes são

francamente positivas. Sem dúvida que as estruturas básicas estão bastante

degradadas não só pela falta de manutenção e melhoramentos desde Abril

de 1975, mas também pelos estragos feitos durante os últimos meses de

guerra civil que ocorreu antes da realização do referendo que,

inequivocamente, demonstrou que os timorenses queriam ser um país

independente e não uma província indonésia. Há, no entanto, uma

constatação que facilmente salta à vista; a amabilidade com que os

cooperantes são recebidos por todos. Sem dúvida que é gratificante para

quem vem de tão longe ser recebido assim. O primeiro acto oficial em que

estive envolvido foi a inauguração dos cursos de Engenharias (foto dos

primeiros alunos). Estiveram presentes o Senhor Ministro da Educação e

Desportos, o Senhor Embaixador de Portugal, o Chefe da missão portuguesa

e o Senhor Reitor. A cerimónia foi feita ao ar livre no espaço fronteiro à

Universidade. Foi uma cerimónia simples que começou, a exemplo de outras

cerimónias oficiais, por uma oração de agradecimento a Deus por ter

tornado realidade o significado daquele acto. Intervieram as personalidades

referidas, sendo de realçar a informação dada pelo nosso Embaixador de

Page 113: Um Olhar (Atento) sobre Timor

106

que foi a Câmara de Lisboa que financiou a recuperação das instalações da

Universidade.

O Senhor Ministro referiu a alegria de ver iniciarem-se as actividades

escolares no Ensino Superior tendo contribuído para tal as Universidades

portuguesas, estando nelas incluída a nossa UTAD. Realçou, em comum com

o Senhor Reitor, a presença dos docentes portugueses a quem saudou e

agradeceu o empenhamento, que já demonstraram ao estarem aqui

presentes, que espera se materialize no bom aproveitamento dos estudantes

que agora vão iniciar esta nova e decisiva etapa da sua vida. Aos alunos

incentivou-os a empenharem-se nos estudos de modo a que o esforço feito

pelo Governo de Timor e pelas Universidades portuguesas não seja em vão.

Fazendo o paralelo do que está a ser a cooperação de Portugal no âmbito do

ensino superior com o que se passou com Moçambique, a minha opinião é

de que aqui sim Portugal está com uma política de cooperação correcta e

eficaz. Além do esforço que as nossas Universidades estão a fazer, sabendo

todos nós quão apertados são os seus orçamentos, também o Governo

português tem sido bastante eficaz nessa política. Há bem poucos dias

Page 114: Um Olhar (Atento) sobre Timor

107

saíram daqui cerca de trezentos e quarenta estudantes timorenses que irão

fazer os seus estudos nas universidades portuguesas. Em Moçambique,

durante um período bastante largo, que acabou com o desmoronamento da

União Soviética, a maior parte dos Engenheiros moçambicanos fizeram os

seus cursos aí ou em países da sua esfera de influência política. É muito

importante que os cidadãos dos novos países de língua portuguesa não

percam os laços que os unem a nós. Sem dúvida que, no futuro, constituirão

um pólo de divulgação da nossa língua e da nossa cultura. No caso de Timor

ainda há muito a fazer pois há muitos timorenses para quem a língua

portuguesa não é muito familiar. Com a iniciativa que agora se inicia muito

se espera. O curso de Língua Portuguesa destinado, em especial, a

professores do ensino básico pode constituir o início de uma nova etapa no

fim da qual se espera que, pela acção dos novos licenciados, a língua

portuguesa passe a ser mais um elo de ligação entre portugueses e

timorenses.

TIMOR – 12º ANIVERSÁRIO DO MASSACRE DE SANTA CRUZ

Quis o destino que me encontrasse em Díli no dia 12 de Novembro, dia das

comemorações do 10º Aniversário do massacre de Díli, ocorrido, como bem

se lembram, no dia 12 de Novembro de 1991. Levantei-me bem cedo e

segui, caminhando, em direcção à residência do Bispo D. Ximenes Belo. Não

foi difícil escolher o trajecto tal era a avalanche de pessoas que para lá se

dirigiam. Aí chegado, as primeiras imagens que me vieram à mente foram as

que as televisões de todo o mundo passaram aquando dos acontecimentos

sangrentos que aconteceram antes do referendo que conduziu à

independência de Timor Loro Sae.

É sem dúvida fácil constatar a importância que o Bispo D. Ximenes Belo tem

para o povo timorense. Estando este país numa zona onde a influência

muçulmana é por demais evidente, mais valor temos que dar às opções

Page 115: Um Olhar (Atento) sobre Timor

108

religiosas tomadas pela grande maioria das pessoas que aqui residem. Cerca

de 95% dos timorenses professam a religião católica. Sem dúvida que a

acção dos representantes da Igreja católica, Bispos, Sacerdotes e todos os

leigos que com eles colaboram, muito contribuíram para que isso assim

fosse.

Pelas imagens televisivas que chegavam a Portugal, tenho presente a

ansiedade com que as pessoas esperavam pelas palavras de confiança que

estes lhes transmitiam. A exemplo do que acontece todos os Domingos, a

missa decorreu nos jardins da residência episcopal. O espaço é grande e

tranquilo. Após a missa, o povo dirigiu-se para o cemitério de Santa Cruz,

onde se encontraram com aqueles que fizeram o trajecto a partir da Igreja

de Motael. Seguiu-se uma cerimónia que teve como objectivo comemorar o

12º aniversário da morte de vários timorenses que ali se deslocaram nesse

dia a homenagear os seus familiares já falecidos. Estiveram presentes as

várias personalidades timorenses que intervieram lembrando esse dia e o

seu significado para o povo de Timor. De entre as várias intervenções

destacaram-se as de Xanana Gusmão que, a partir de um cartaz colocado à

entrada de cemitério teve palavras de esperança para todos os presentes,

saudou os familiares das vítimas e exortou, em especial os mais jovens, a

Page 116: Um Olhar (Atento) sobre Timor

109

manterem-se unidos em torno dos ideais que presidiram à criação deste

ainda jovem País. Incentivou-os a praticarem a tolerância e a reconciliação

para com todos aqueles que não trilham os seus ideais. O Senhor Ministro

da Educação, Armindo Maia, dirigiu-se em especial aos jovens,

considerando-os como o futuro de Timor. Na ausência do Chefe da missão

da Onu, Sérgio Vieira de Melo, interveio o seu representante que historiou a

evolução do caso de Timor, referindo as várias resoluções aprovadas pelas

Nações Unidas até esse dia, sem qualquer consequência positiva para Timor.

Considerou os acontecimentos do dia 12 de Novembro de 1991 como um

marco importante e definitivo na alteração da posição da comunidade

internacional para o que aqui se passava. Foi a partir daqui que o rumo de

Timor se alterou no sentido de dar origem a um novo País, que hoje

caminha com as dificuldades inerentes a um jovem com pouco tempo de

vida, mas já com passos dados com firmeza que lhe auguram um futuro

risonho. Sem dúvida que os timorenses merecem que assim seja. A

solidariedade dos países amigos, com Portugal à cabeça, é indispensável

para criar as condições necessárias para que todos tenham uma vida com

dignidade ainda que com as dificuldades que fazem parte da vida de

qualquer país e, consequentemente, de todos os seus cidadãos. Timor vai

consegui-lo assim todos os timorenses o queiram e os países amigos lhe

sejam solidários. Portugal tem cumprido de um modo exemplar. Ainda hoje

o Ministro Mari Alkatiri realçou os acordos que fez em Lisboa para por em

funcionamento a rádio e a televisão de Timor. Dois meios de comunicação

indispensáveis ao desenvolvimento de qualquer país.

VISITA A BAUCAU

Díli estende-se por uma extensa planície encurralada pela montanha e pelo

mar. Partindo do centro temos duas alternativas: caminhar em direcção a

Becora ou em direcção a Comoro, onde se encontra situado o aeroporto,

Page 117: Um Olhar (Atento) sobre Timor

110

cujas infra-estruturas foram completamente destruídas após o referendo.

Em direcção a Becora podemos constatar o grande número de escolas que

Díli tem à disposição dos seus alunos. Nem todas estas escolas são públicas.

Encontram-se algumas de propriedade privada nomeadamente de

instituições religiosas. Se continuarmos o passeio acompanhando a

montanha passamos por ruas com frondosas árvores que nos permitem um

contacto muito íntimo com a natureza. No trajecto temos oportunidade de

parar no monumento aos soldados portugueses da Brigada Montada mortos

durante a ocupação dos japoneses, na parte final da 2ª Guerra Mundial.

Trata-se de um monumento com um significado tão grande quanto a sua

simplicidade. Sim, porque em Timor tudo é muito simples e sóbrio. O

próximo ponto de paragem é o complexo religioso da Paróquia de Balide.

Metida no meio de um grande e lindo jardim, encontramos a Igreja em

forma de cruz, muito sóbria e espaçosa. Contíguo, encontramos o Centro

Paroquial onde se desenvolvem as actividades paralelas que fazem parte da

vida de qualquer instituição católica. Em frente à entrada principal da Igreja

podemos observar como a Administração indonésia no território de Timor

Page 118: Um Olhar (Atento) sobre Timor

111

tudo fazia para conquistar a confiança dos timorenses; trata-se de um

pequeno monumento evocativo da 50º aniversário do Pároco de Balide,

oferecido pelo então Administrador Abílio Osório. Nem mesmo com estas

acções de persuasão, os indonésios conseguiram essa confiança. Antes de

chegarmos a Balide virando à esquerda, alguns metros adiante,

encontramos o antigo Palácio do Governador. Neste momento está sem

ocupação pois necessita de uma completa recuperação; apenas as paredes

se encontram de pé. No entanto facilmente se imagina a beleza que tinha

no tempo em que teve utilização plena. De seguida encontramos o Estádio

Municipal de Díli, construído ainda no tempo da Administração portuguesa.

O futebol é bastante popular aqui em Timor. Recentemente foi criada a

Federação de Futebol de Timor. A outros níveis a cooperação de Portugal

continua activa. Há alguns dias, com a visita do Ministro da Juventude e

Desportos, Engº José Lelo, foi inaugurado o Centro Cultural Padre António

Vieira e assinados dois protocolos na área da formação desportiva.. No que

respeita ao futebol há vários clubes que apenas necessitam de ter existência

jurídica pois na realidade estão em actividade. Só em Díli há cerca de trinta

e cinco, segundo informações do Senhor Ávila, funcionário do Hotel Dom

Aleixo, onde estive hospedado durante o primeiro mês de estadia em Díli.

Não sendo uma área prioritária para o Governo Transitório, vai decorrer

algum tempo até que o futebol e outros desportos ocupem o lugar que lhes

pertence por direito. Depois desta volta estamos de novo no ponto de

partida. Vamos agora caminhar em sentido contrário, ou seja, em direcção a

Comoro. Passamos pelo actual heliporto, outrora funcionando como um

pequeno aeroporto. De passagem encontramos as embaixadas da Austrália

e da Indonésia. É por esta saída que me desloquei à terceira cidade de

Timor, Maliana de que mais tarde lhes falarei. Hoje convido-os a sair pela

primeira vez de Díli. Vamos visitar a cidade Baucau (foto do mercado), a

cerca de duas horas de distância. A distância aqui mede-se em horas de

duração da viagem pois, salvo raras excepções, as velocidades conseguidas

Page 119: Um Olhar (Atento) sobre Timor

112

são muito baixas pelo que é mais seguro falar em horas do que kilómetros.

A estrada segue, durante grande parte do trajecto, junto ao mar parecendo

por vezes que nele vamos mergulhar. Logo à saída encontramos, salpicando

os montes, eucaliptos autóctones que, pelo branco dos seus troncos, lhes

conferem grande beleza. A primeira localidade é Metinaro. Segue-se

Manatuto que, como todas as localidades timorenses, se encontra bastante

danificada. O monumento a Santo António, bem no alto de um pequeno

monte à saída para Baucau, é um ponto de paragem obrigatória. Ali se

chega por uma estreita e íngreme estrada de terra batida, numa extensão

de cerca de duzentos metros. Não é propriamente o monumento que

justifica esta paragem, mas sim a beleza de tudo o que dali podemos, com a

vista, alcançar. Seguindo viagem entramos numa zona com grandes

extensões de palmeiras que se estendem por alguns kilómetros ao longo de

quase todo o trajecto. Seguindo viagem encontramos Laleia que tem como

cartaz principal o facto de ser a terra de onde é natural o Comandante

Xanana Gusmão. Só por isso já se justifica uma breve paragem. A próxima

cidade é Baucau que, como acima referi, é o destino do nosso passeio. A

sua importância é agora maior pois é a segunda Diocese de Díli, presidida

pelo Bispo D. Basílio. Tem características que a distinguem de Díli como seja

o facto de não ser uma cidade assente numa planície. As ruas são inclinadas

e de traçado bastante irregular, especialmente na zona baixa da cidade. O

antigo mercado, pela sua arquitectura, é um ponto onde se deve parar.

Vamos fazer uma pequena incursão, de cerca de quarenta e cinco minutos,

caminhando em direcção a Viqueque. Detenhamos um pouco em Venilale,

antigamente designado o Reino de Venilale, onde vale a pena visitar a casa

de Santa Maria Mozarello e respectiva igreja, assim como uma Escola, de

cores bem visíveis à distância, que foi completamente recuperada pela

fábrica de relógios Swatch. Alguns minutos adiante podem ver-se os

terraços de produção de arroz, fazendo lembrar as típicas paisagens do

Vietnam. Daqui já se pode observar a imponência do monte “O Mundo

Page 120: Um Olhar (Atento) sobre Timor

113

Perdido”, assim chamado por ser um local de abrigo de portugueses e

timorenses aquando da invasão da ilha pelos japoneses. Devido à existência

permanente de nevoeiro foi-lhes possível sobreviver à sua investida. Por

hoje terminamos a nossa conversa e na próxima quinta-feira cá estarei de

novo.

VISITA A MAUBISSE

Sair em passeio para fora de Díli implica ter de decidir entre alternativas

com um denominador comum: a beleza da paisagem timorense e a sua

diversidade. Seja qual for o trajecto escolhido teremos sempre à disposição

uma paisagem de um verde carregado e uma floresta constituída por lindas

e frondosas árvores. Podemos admirar a madre cacau assim chamada por

proteger os cafezeiros das intempéries do tempo. Das palmeiras, da teka e

dos eucaliptos autóctones já lhes falei em conversa anterior. O nosso

passeio de hoje vai ser a Maubisse, de passagem por Ailéu. Logo no início

da viagem é necessário prepararmo-nos para subir a serra que circunda Díli,

por uma estrada que faz lembrar a travessia do Marão pela estrada antiga.

O panorama que se avista do ponto mais alto é sem dúvida deslumbrante.

Pode observar-se Díli em toda a extensão e ainda o grau de destruição de

que a cidade foi alvo por parte dos indonésios quando, depois de derrotados

no referendo, abandonaram Timor. Depois de ultrapassar a montanha

desce-se e entra-se numa zona pouco acidentada. Pelo caminho podem ver-

se os melhoramentos que a Brigada de Engenheiros do Bangladesh(!) tem

feito na estrada de modo a evitar desmoronamentos de terras. Antes de

chegar a Maubisse passamos por Ailéu onde paramos para, à saída,

visitarmos um monumento muito interessante e de grande significado

histórico. Presta homenagem aos “massacrados de Ailéu em 1942”. De

seguida seguimos para Maubisse onde desde logo se avista a Pousada.

Trata-se um edifício de rés-do-chão situado no cume de um pequeno monte.

Page 121: Um Olhar (Atento) sobre Timor

114

Serviu de instalação para o posto administrativo no tempo em que Portugal

administrou os destinos de Timor. Dos seus jardins avista-se para qualquer

lado um monte verde e salpicado de casas harmoniosamente distribuídas. É

sem dúvida um ponto de visita obrigatória. Para quem queira descansar das

agruras da vida é um lugar a recomendar pois o ar puro e o silêncio de que

se desfruta ajudam a relaxar, permitindo esquecer os momentos menos

bons que a vida nos reserva.

À pousada chega-se por uma estrada de terra batida e de difícil acesso para

um veículo que não seja de todo o terreno. No desvio para esta estrada

encontra-se o monumento ao Régulo Benavides morto pelos japoneses

durante a 2ª Guerra Mundial. Na lápide que o homenageia pode ler-se: por

Portugal contra o invasor. São palavras de um patriotismo exagerado, no

dizer de alguns, mas que traduzem a oposição que os timorenses fizeram à

invasão japonesa, sem dúvida, de consequências muito trágicas para os

timorenses. Muitos foram mortos e Díli ficou quase despovoada. Talvez por

isso o governo japonês está muito empenhado em cooperar na reconstrução

de Timor.

Page 122: Um Olhar (Atento) sobre Timor

115

Em Maubisse visitei o aquartelamento português. Em conversa com militares

ali colocados logo ressaltou que alguns deles, quando vêm cumprir a missão

de ajudar na reconstrução em Timor, não estão bem informados sobre as

condições que os espera. É necessário, já o disse noutras ocasiões, ter não

só um pouco de aventureiro mas também possuir capacidade anímica e

moral elevada para desenvolver, seja que actividade for, em terras onde não

há cinemas, cafés, restaurantes, telefones, correios, ginásios, etc. É nestas

condições que os militares e os professores desenvolvem a sua actividade.

Por essas e por muitas outras razões tenho uma grande admiração pelo(a)s

jovens, especialmente os professores, que de Portugal vieram para terras

tão distantes das respectivas famílias, privando-se de tudo o que teriam se

não abraçassem estas causas. O seu trabalho é reconhecido pelo Ministro da

Educação através da mensagem que enviou a cada um deles por ocasião do

Natal. Com a oferta do livro “Rostos de Esperança” da autoria de José Revez

e legendado por José Jorge Letria, uma homenagem a Timor através de

fotografias de crianças timorenses, veio a seguinte mensagem: “neste Natal,

com novas perplexidades e angústias mas, simultaneamente, com renovada

esperança na vitória dos valores universais do humanismo e da

solidariedade entre os povos, é-nos muito grato saudar o grupo de

professores portugueses que em terras de Timor-Leste se empenham na

nobre e exaltante acção de difusãp da língua portuguesa e reforço dos laços

afectivos entre os dois povos irmãos. Separados pela distância que os

nossos corações unem, importa nesta quadra expressar-vos o grande

orgulho que sentimos pelo exemplo de dedicação, profissionalismo e espírito

de missão que estais a dar ao mundo. Numa quadra caracterizada pela

partilha de sentimentos como a fraternidade e a amizade, queremos, em

nome da comunidade nacional, endereçar-vos um forte abraço de estima e

reconhecimento, incentivando-vos a prosseguirem, com renovado empenho,

na construção dos alicerces duma união duradoura entre o povo português e

Page 123: Um Olhar (Atento) sobre Timor

116

o povo de Timor-Leste, através da utilização comum da língua e dos valores

da lusofonia”.

Em Maubisse os professores vivem paredes meias com os nossos militares.

As vantagens são evidentes; têm segurança garantida e refeições fornecidas

pelo aquartelamento. Trata-se sem dúvida de uma vivência em comunidade

muito interessante. O esforço que Portugal está a fazer é de facto muito

grande. Timor não deixará de o reconhecer. A aprovação recente pela

Assembleia Constituinte da Língua Portuguesa como língua oficial, é uma

demonstração clara e inequívoca desse reconhecimento. As instalações da

Embaixada de Portugal, gentilmente cedidas pelo Governo de Transição são

outra prova. Trata-se de instalações na zona mais nobre de Díli, no Jardim

Infante D. Henrique, do lado oposto ao da antiga Intendência e junto à

antiga fazenda, ao Palácio do Governo, onde hoje funciona a UNTAET e à

ACAIT – Associação Comercial e Agrícola de Timor, onde funciona a Missão

Portuguesa, embaixada incluída.

FALANDO DE DÍLI

Díli é uma cidade situada entre duas fronteiras naturais; por um lado a

montanha, que é necessário vencer por estradas com muitas curvas e

desenhadas por entre uma vegetação bastante densa, fazendo lembrar as

curvas da antiga estrada do Marão, que tão familiar nos é a nós

transmontanos; pelo outro o mar. Iniciemos o nosso passeio partindo do

edifício onde se encontra a Missão portuguesa, no Largo Infante D.

Henrique. Logo em frente encontra-se o mar onde o navio Timor acostava

nas suas longas e rotineiras viagens entre Portugal e a então colónia

portuguesa de Timor. Como não fiz tropa não tive a possibilidade de um dia

fazer essa viagem que se prolongava por dois longos meses, com paragens

em Luanda, Lourenço Marques, agora Maputo e Beira. O navio Timor e as

suas viagens, adquiriram uma importância tal que, à época, destronaram o

Page 124: Um Olhar (Atento) sobre Timor

117

dia, o mês e até o ano, na contagem do tempo de estada dos militares

portugueses de então, no cumprimento da sua comissão militar. Como o

Timor demorava cerca de dois meses a percorrer o trajecto Portugal-Timor,

que se repetia no regresso, a comissão militar tinha a duração de seis

barcos, o equivalente a dois longos anos. A estadia do Timor em Díli

representava uma revolução completa na cidade. Nesses dias a ACAIP, o

Palácio do Governo, contíguo, iluminavam-se, assim como a marginal e as

ruas circundantes, beneficiando da energia produzida pelos geradores do

barco.

Em frente ao local de acostagem encontra-se a sede da ACAIP – Associação

Comercial, Agrícola e Industrial de Timor, fundada em 1952. É-me muito

grato ler a placa comemorativa da sua inauguração, que se pode ver quando

se sobem as escadas que dão acesso ao primeiro andar. Da lista dos

fundadores consta um meu conterrâneo, João do Nascimento Gonçalves,

que aqui esteve durante muitos anos desenvolvendo a sua actividade

agrícola, na localidade de Maubara, dedicada à produção de café (foto).

Seguindo a marginal, para um lado encontramos, depois de percorrer

algumas centenas de metros, a igreja de Motael, nome muito popular pois

está muito ligada a tudo quanto aconteceu durante a ocupação dos

indonésios e, por um facto muito positivo e que nos deixa muito satisfeitos,

que é o de a missa ser dita em português. Se caminharmos em sentido

contrário encontramos adiante a casa do Bispo D. Ximenes Belo onde, todos

os Domingos, muita gente se junta para dar cumprimento às suas

obrigações de católico. Mais adiante, visível desde muito longe, encontra-se

o monumento ao Cristo Rei, feito pelo governo indonésio possivelmente com

o objectivo de acalmar os timorenses que, em grande maioria, professam a

religião católica.

Em Timor todos os edifícios, públicos ou privados, ligados a interesses

indonésios, foram destruídos. Esta acção destruidora deve-se, por um lado

aos militares indonésios e às milícias e por outro àqueles cidadãos

Page 125: Um Olhar (Atento) sobre Timor

118

indonésios que nunca conseguiram identificar-se com o povo timorense e a

sua cultura tendo, em consequência, regressado às suas terras de origem, a

Ilha de Java na maior parte dos casos. Quando passei pela primeira vez

junto ao Hotel Makota, onde apenas as paredes se mantêm de pé, pois todo

o seu interior foi destruído, vieram-me à memória as terríveis imagens de

violência extrema, que ali ocorreram, perante a passividade das autoridades

indonésias, e que nos chegaram através das cadeias de televisão. Podia falar

de outros locais onde homens praticaram actos de extrema violência que

nos obrigam a reflectir. Os homens muitas vezes têm comportamentos que

não se podem admitir. É necessário que todos contribuamos para que não

voltem a acontecer, em Timor ou em qualquer outra parte do mundo.

O povo timorense, simpático e hospitaleiro, merece que lhe sejam dadas

condições que lhe permitam caminhar para o futuro com a dignidade devida

a qualquer ser humano. Aqueles que, de algum modo, contribuem para isso,

Page 126: Um Olhar (Atento) sobre Timor

119

ou seja, que convivem com realidades como as de Timor, passam a dar

muito mais valor às comodidades de que dispõem quando confrontados com

situações de grande precariedade. Basta falar com timorenses ligados à

igreja ou a outras instituições de carácter humanitário para se concluir que

aquilo que nós consideramos falta de condições, não são nada quando

comparadas com a realidade da vida de um povo como o de Timor.

Como já referi, no edifício da ACAIP, em frente à antiga manutenção militar,

funciona a Missão portuguesa, o Instituto Camões, a Embaixada e os Adidos

de Portugal em Timor. Os docentes da FUP, onde eu me incluo, também

partilham estas instalações. É aqui que preparamos a nossa actividade

docente e daqui partimos para ministrar as aulas na Universidade, localizada

muito perto. Todos os dias cumprimos o mesmo ritual.

Se me permitem vou aproveitar esta conversa que tenho com os leitores

para falar da actividade paralela, que sempre desempenho com muito

prazer, que me é devida pelo facto de ter o privilégio e a honra de pertencer

ao Rotary Clube de Vila Real. A exemplo do que tenho feito quando me

desloco no âmbito da minha actividade profissional, uma das primeiras

acções que desenvolvi quando aqui cheguei foi saber se haveria algum

Clube Rotary em Díli. Até à data todas as indicações que tenho conduzem a

que não haja. No entanto já tive a oportunidade de ver uma carrinha com o

símbolo da Rotary International Foundation. Este facto deixou-me muito

satisfeito porque significa que os Clubes Rotários de todo o mundo estão a

contribuir para que o futuro do povo de Timor seja melhor. Na última quinta

feira esteve de visita ao Rotary Clube de Vila Real o nosso Governador. Sei

que tudo correu muito bem. Está de parabéns o nosso Clube. Aproveito

para, daqui bem longe, saudar todos os companheiros, na pessoa do nosso

Presidente, companheiro Manuel Sanfins. Aproveito também para lembrar a

todos os leitores que, a exemplo do que tem ocorrido nos últimos anos, o

Rotary Clube de Vila Real, através das esposas dos seus membros, está na

FERVIR, que decorre até ao dia 9, sensibilizando os visitantes da feira a

Page 127: Um Olhar (Atento) sobre Timor

120

serem solidários para com aqueles que necessitam de ajuda lembrando a

todos o lema do rotário: dar de si antes de pensar em si. Os fundos

recolhidos destinam-se à APAV – Associação de Apoio à Vítima, à APPC –

Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e à Liga dos Amigos do

Hospital, todas elas instituições que desenvolvem a sua actividade em Vila

Real. Estou confiante em que os leitores não ficarão indiferentes.

REGRESSO A TIMOR

Cá me encontro de novo em Timor a dar a minha contribuição ao país mais

jovem do Mundo. Mesmo sendo uma viagem longa, com paragens em

Londres, Singapura e Darwin, a expectativa de ver a evolução que houve

desde fins de Dezembro até hoje, ameniza todos os incómodos que essas

paragens constituem. Como primeiras impressões vê-se que alguma coisa

aconteceu durante estes seis meses. As ruas e avenidas de Díli foram

melhoradas. Em todas elas foi colocada uma camada de alcatrão que

reduziu consideravelmente o número de buracos e fez com que a circulação

automóvel se faça com mais segurança. O Hotel Makota(foto), destruído no

período de guerra civil após o referendo, foi recuperado e aí está de novo

pronto a receber quem visitar Timor. A restauração foi alargada com o

aparecimento de novos restaurantes permitindo assim uma maior e mais

seleccionada escolha. Os efectivos das Nações Unidas diminuíram num

número apreciável e restituíram à situação de desempregados alguns

milhares de timorenses. As consequências de carácter social que esta

situação implica, facilmente se podem avaliar. São de um alcance dramático

em países com o nível de pobreza como Timor. Muitas famílias que durante

os últimos 2 anos tiveram um nível de vida ainda que baixo no conceito

ocidental, elevado no contexto da região e ainda mais no contexto

timorense, vêem-se privadas do garante da sua sobrevivência. As

autoridades timorenses sabem que este e outros problemas necessitam de

Page 128: Um Olhar (Atento) sobre Timor

121

resolução rápida e, estou certo, têm competência para procurar soluções

que amenizem o seu impacto. Estes são apenas alguns dos problemas com

que inevitavelmente serão confrontados durante o tempo que demorarão a

percorrer o caminho que os levará à condição de um país que saiba

dignificar os seus cidadãos. Foi para mim muito gratificante rever os alunos

do Curso de Engenharia Electrotécnica com que iniciei a minha experiência

de colaboração docente com Timor. O domínio que neste momento já têm

da língua portuguesa permite que o diálogo nas aulas já seja possível sem a

presença de intérprete. Este facto é resultante da conjugação do esforço

que os alunos fizeram nos últimos meses para se tornarem autónomos ao

nível da língua e da actuação dos professores de português muito bem

“comandados” pela Adida para a Educação, Drª Maria José. Portugal deve

orgulhar-se daquilo que tem feito para que Timor se consolide como país

livre e justo que, certamente, os seus governantes pretendem que venha a

ser no futuro.

Estar longe não é estar ausente. As novas tecnologias permitem que o

longe se torne perto. Para que isso aconteça é decisiva a contribuição da

televisão. A circunstância de me encontrar tão longe de casa obriga-me,

enquanto cidadão responsável, a dizer algumas palavras sobre um tema

Page 129: Um Olhar (Atento) sobre Timor

122

que constitui uma preocupação de todos os portugueses, quer se

encontrem dentro quer fora do país. O serviço público de televisão. A RTP

Internacional constitui para os portugueses que estão fora, um elo de

ligação muito forte com a cultura e o desenrolar do dia a dia no nosso país.

Tudo o que seja feito para a preservar e até alargar, em termos de

programação, a sua intervenção, nunca é demais. Espero que os nossos

governantes saibam encontrar soluções que tenham em conta a nossa

cultura, a nossa identidade, a nossa história, os nossos costumes, etc. Se

assim for estou certo de que terão o reconhecimento de todos os que,

dentro ou fora de Portugal, a consideram indispensável ao desenrolar das

suas vidas. Acresce a isto o facto de servir de veículo de propagação da

nossa língua nos países de língua oficial portuguesa. Em Timor, onde os

representantes dos governantes indonésios tudo fizeram para a erradicar,

ainda mais importante se torna. Termino esperando que a nossa selecção

no próximo jogo com a Coreia tenha um comportamento positivo para dar

alegrias a todos nós que muito vibramos com os seus feitos.

VISITA À COSTA LESTE

O passar do tempo faz aumentar as saudades. Para amenizar as suas

consequências não há nada melhor que estar ocupado em permanência. É

isso que eu faço. O dia começa sempre pelas oito horas da manhã e

desenrola-se ininterruptamente: são as aulas, os elementos de estudo para

os alunos, as crónicas da energia, os muitos e variados trabalhos que me

impus fazer enquanto estou por cá, etc. O que resta á aproveitado para

conhecer melhor Timor e as suas gentes. Fiz, no fim-de-semana, uma

deslocação ao extremo nordeste, concretamente à Ilha de Jaco. Trata-se de

uma pequena ilha não habitada mas com praias de grande qualidade, com

a água límpida e as areias muito finas, onde se podem encontrar conchas

que são autenticas obras primas da natureza quer pela sua raridade quer

Page 130: Um Olhar (Atento) sobre Timor

123

pela sua beleza. O acesso à ilha é feito por barco demorando cerca de 10

minutos para percorrer a distância entre a praia, a 8 quilómetros de

Tutuala, e a ilha. É um lugar que recomendo vivamente a quem tiver o

privilégio de aqui se deslocar, quer a gozar férias quer em missão de

cooperação com Timor. Os amantes do mergulho têm aqui em Timor locais

magníficos para fazerem aquilo que muito, certamente, gostam: mergulhar

em águas puras e com uma variedade grande de peixes, espécies raras

algumas delas, exóticos e coloridos quase todos. Desde Díli a Tutuala são

cerca de cinco horas de distância. A estrada até Baucau é bastante boa. O

mesmo acontece na grande parte do trajecto até Los Palos. A estrada

acompanha o mar durante grande parte do trajecto e está em qualidade

aceitável. A vegetação é linda e variada. Cabras e búfalos, uns e outros

indispensáveis à vida dos timorenses, podem observar-se em grande

quantidade.

Neste trimestre há uma contribuição extra e muito importante na ocupação

do tempo: o futebol. Apesar da desgraça que foi a nossa participação no

mundial, tem sido uma ajuda suplementar para que o tempo voe. Assisti,

com vários colegas cooperantes, primeiro no Restaurante D. Aleixo e depois

no recuperado Hotel Makota, agora Hotel Timor, aos jogos de Portugal.

Tudo começou com uma desilusão, passou por um momento de euforia e

terminou com uma grande fracasso. Refiro-me aos três jogos de Portugal:

derrota com os Estados Unidos, vitória com a Polónia e derrota com a

Coreia. Como em cada um de nós há um treinador, direi que não

compreendo como é que uma equipa com a categoria e as aspirações da

nossa, começa o jogo remetendo-se à defesa. Assim não se podem ganhar

jogos. Assim não se dão alegrias aos portugueses que tanto orgulho têm na

sua selecção.

Antes do jogo com a Polónia comparecemos à recepção oferecida pelo

nosso Embaixador nos jardins da embaixada. Foi um momento muito

agradável. Grande parte dos cooperantes portugueses estiveram presentes

Page 131: Um Olhar (Atento) sobre Timor

124

o que permitiu trocar impressões com muitos deles, rever alguns que já não

via há algum tempo e conhecer outros que entretanto vão chegando. Como

convidados especiais estava o Presidente da República de Timor, Xanana

Gusmão e outras individualidades timorenses. O nosso embaixador usou da

palavra para lembrar a todos o significado que o dia 10 de Junho tem na

história de Portugal. Interveio também Xanana Gusmão para realçar o

orgulho que representou para ele associar-se às comemorações deste dia e

agradecer a Portugal tudo o que tem feito para que Timor construa com

segurança o seu futuro. Como bom desportista que é, fez votos para que,

no jogo a que todos a seguir íamos assistir, a nossa equipa nos desse uma

grande alegria para assim culminarem em beleza as comemorações do dia

de Portugal. Terminada a recepção, de imediato todos desapareceram.

Inevitavelmente todos se dirigiram para os locais onde habitualmente se

encontram os cooperantes e que já referi acima. Em qualquer destes locais

se vibrou com as peripécias do jogo. Os nossos jogadores portaram-se

muito bem. Embora não fazendo um grande jogo, souberam aproveitar as

oportunidades que tiveram e brindaram-se com uma vitória expressiva. Não

podíamos terminar melhor o dia 10 de Junho.

GERTIL: O SEU PAPEL NA RECONSTRUÇÃO DE TIMOR

Decorre a terceira semana de permanência em Timor. Afastada a nossa

selecção, o interesse pelo mundial diminuiu. Continua, no entanto, a ser

parte importante na ocupação do tempo. A circunstância de a nossa

selecção estar ausente permite ver os jogos com a isenção necessária e

suficiente para desfrutar da beleza que o futebol encerra. A participação em

actividades de carácter cultural e técnico são uma boa oportunidade para se

tomar conhecimento da realidade de Timor. Dando sequência a esta ideia,

assisti a duas palestras apresentadas pelo GERTIL – Grupo de Estudos para

a Reconstrução de Timor Leste, em que foram apresentadas algumas das

Page 132: Um Olhar (Atento) sobre Timor

125

ideias que este grupo pensou para Timor. A primeira, aliás muito

interessante, versou o tema “Do trabalho ao salário”. Embora seja um tema

sem sentido para nós, para países como Timor, onde nem sempre a

trabalho está associado salário, é uma realidade. É premente criar

condições para que esta situação se altere para que a trabalho esteja

sempre associado um salário. Em Timor cerca de 75% das pessoas vivem

em condições de extrema pobreza. Dessas, cerca de 80%, sobrevivem com

cerca de meio dólar por dia. Há então que procurar soluções que

aproveitem o saber e as ferramentas existentes para que, muito

rapidamente e sem grandes investimentos, se possa dar a quem trabalha o

justo salário. É necessário quebrar o ciclo vicioso da pobreza – baixo

rendimento, baixa poupança, baixa produtividade, baixo investimento.

Aumentar a produtividade pode constituir uma boa solução para quebrar

este ciclo e passar para o ciclo de desenvolvimento. Como Timor está a

nascer como país independente, aquilo que são grandes desvantagens

podem transformar-se em vantagens importantes. Parte do zero. Com

pequenas medidas de gestão, sem recorrer à formação profissional, podem

ser criadas condições que melhorem a produtividade e consequentemente o

rendimento das pessoas que implicará um incremento na sua qualidade de

vida. A associação entre vários artesãos é uma hipótese que pode ajudar a

consegui-lo. Pode tirar-se partido daquilo que foram os erros cometidos por

outros nas mesmas condições. Como ilustração o GERTIL apresentou o

desenho de uma cadeira e uma mesa para salas de aula. Seguindo uma

estratégia muito interessante e original, para mim a mais adequada, a

cadeia e a mesa foram o resultado de contactos com os carpinteiros de

Baucau, durante cerca de um mês. Foi tido em conta o saber, as

ferramentas utilizadas e o ritmo de trabalho de cada um. Além disso, este

estudo teve outra vertente muito importante: alertar para o facto de ser

necessário preservar a floresta, altamente debilitada, e sugerir formas de

trabalho em associação.

Page 133: Um Olhar (Atento) sobre Timor

126

No seguimento desta, realizou-se outra sobre “Os recursos naturais de

Timor”. No que aos produtos agrícolas diz respeito, existem aqui óptimas

condições para fazer culturas biológicas pois o uso fertilizantes e/ou

herbicidas é praticamente nulo. Esta circunstância pode aumentar

significativamente o rendimento dos timorenses e, em consequência, o do

estado, que assim terá mais recursos para investir em infra-estruturas que

tão necessárias são. Torna-se necessário tomar medidas no sentido de

melhorar as sementes utilizadas para que a qualidade dos produtos

aumente. Mais uma vez Portugal está a prestar uma ajuda preciosa. A

quinta Portugal, em Ailéu, está a desenvolver um trabalho experimental,

digno de realce. Várias espécies agrícolas e florestais estão a ser estudadas

no sentido de melhorar a qualidade dos produtos e dar indicações sobre os

métodos mais apropriados para o conseguir.

Os recursos energéticos foram também objecto de análise. Sendo uma área

que me é muito querida, fiz uma pequena intervenção onde dei a minha

opinião sobre aquilo que poderá ser o futuro energético de Timor. A solução

actual, recurso aos geradores alimentados a gasóleo, é uma má solução por

dois motivos: polui o ambiente e desequilibra a balança de pagamentos do

país. É um facto que as alternativas não são muitas: a hidroelectricidade

poderia ser uma delas. Tem, no entanto, dois inconvenientes – 1º o

Page 134: Um Olhar (Atento) sobre Timor

127

assoreamento das barragens que é extremamente rápido, devido à

constituição do solo; 2º a orografia do terreno que dificultaria muito o

traçado das linhas de transmissão de energia. Outra pode ser a energia

solar. Há radiação solar suficiente. O consumidor não é muito exigente em

termos de consumo, ou seja, a potência a instalar em cada habitação seria

de valor muito baixo. Poderia ser instalado um painel solar com a respectiva

bateria de acumulação de energia, em cada uma. Quanto à energia eólica

seria necessário primeiro um estudo de medição da velocidade do vento.

Locais com condições parece que há. No entanto esbarra-se aqui com o

problema da dificuldade no estabelecimento do traçado das linhas. Esta

dificuldade “empurra-nos” para soluções que contemplem abastecimento à

muito pequena escala ou então individual. Há que agir depressa e procurar

a/as solução (ões) mais adequadas. Os governantes certamente que o

farão.

ACTIVIDADE CULTURAL EM DÍLI

A actividade cultural em Díli é muito intensa e variada. Nos últimos dias

decorreram duas conferências organizadas, uma pela Universidade de Díli

“Os Descobrimentos portugueses e a história de Timor” proferida pelo

Professor José Matoso, historiador português bem conhecido.

Uma das ideias que retive foi aquela de que os “descobrimentos não são

sinónimo de colonialismo”. Mais uma vez aqui se constata que as ideias e os

actos muitas vezes são aproveitados para fins que não têm nada a ver com

os fins que quem os idealizou e levou à prática tinha em vista. Sem dúvida

que quando se associa o colonialismo aos descobrimentos se está a cometer

grande injustiça a quem, certamente, nunca teve o colonialismo como meta.

No entanto muitos se aproveitaram das facilidades concedidas pelo

conhecimento de novas terras, novas gentes e, muito importante, novas

matérias primas.

Page 135: Um Olhar (Atento) sobre Timor

128

Novo evento cultural aconteceu 24 e 25 no Centro Juvenil Padre António

Vieira, inaugurado em Dezembro pelo então Ministro José Lelo. O tema

principal era “Ao timorense meu amigo – Ruy Cinatti e Timor”.

Assisti ao primeiro mas ao segundo apenas assisti à parte final. As aulas e o

teste de avaliação da disciplina de que me responsabilizei não me

permitiram assistir a toda a conferência, com muita pena minha. No entanto,

pelo relato feito por quem esteve presente, pelos textos que foram

distribuídos e pelo período de tempo em que estive presente, é-me possível

transmitir aos leitores alguns dos episódios relatados por pessoas que, de

algum modo, a ele estiveram ligadas.

Rui Cinatti foi “uma personalidade fascinante e autor obra de vulto no

panorama da cultura portuguesa contemporânea”, palavras que um dos

oradores da conferência, o Padre Peter Stilwell escreveu na sua tese de

doutoramento que intitulou “A condição Humana de Rui Cinatti”. Relatou

alguns episódios da vida de Cinatti e realçou a sua personalidade,

temperamental mas de grande generosidade, que lhe permitiu ganhar a

consideração e a amizade de muitos timorenses. Na sua intervenção ficou-

Page 136: Um Olhar (Atento) sobre Timor

129

me na retina o seguinte: a forma arredondada das casas, encimadas por

telhado de colo, parte da tradição e cultura dos timorenses, foram

substituídas, indiscriminadamente, por casas com telhado em chapa de

zinco. Esta atitude é reveladora do desprezo a que os governantes

indonésios votaram Timor e as suas gentes.

Cinatti dizia que se tinha apaixonado por Timor, “Timor prendeu-me com

cadeias de ferro”. Sem dúvida que o seu legado é a prova real de que foi

uma paixão por si assumida em todas as suas consequências.

Outro dos oradores foi Jacinto Tinoco(foto), filho do antigo Administrador

Tinoco, que falou sobre as relações entre o seu pai e Rui Cinatti. Recordou

as longas conversas que mantiveram, fruto de uma sólida amizade que

desenvolveram entre si durante os vários anos de convivência. Muitas

dessas conversas tinham por tema a censura, – Rui Cinatti convictamente

contra e o Administrador Tinoco, em situação difícil devido à sua condição

de funcionário do estado, sempre desculpando e minimizando os seus

efeitos. Um dia, ao serão, o Jacinto escutou, de ouvido encostado à porta,

uma conversa entre o pai e Cinatti em que este dizia em tom solene –

desculpas a censura mas por causa dela não podes ler o Crime do Padre

Amaro, do Eça de Queiroz, autor de que tu tanto gostas. No dia seguinte o

Jacinto foi à biblioteca do liceu procurar o livro. Tendo-o encontrado, levou-o

consigo. Descoberto o “roubo” seguiu-se a sentença natural – a expulsão do

Liceu. Um dado muito interessante que lhes posso dar é que parte da família

do Jacinto Tinoco vive na nossa cidade de Vila Real. Tive oportunidade de

conhecê-lo na minha primeira vinda, tendo-me oferecido um exemplar do

Boletim editado pela Associação Cultural de que faz parte. Nesta minha

segunda vinda já tive oportunidade de com ele trocar algumas impressões

numa das conferências de que falei na semana passada. Estas breves

referências a ele e a seu pai, são uma pequena homenagem que eu lhe

presto, pois, com a sua atenuação exemplar, dignifica também a terra dos

seus antepassados.

Page 137: Um Olhar (Atento) sobre Timor

130

ENCONTRO COM O REITOR DA UNTL

Do programa da estadia dos docentes da FUP em Timor, neste quarto

trimestre, fez parte uma reunião com o Reitor da UNTL – Universidade

Nacional de Timor Lorosae, Professor Doutor Benjamim Corte Real, com os

decanos de departamento e com o representante da FUP, Dr. Ângelo

Ferreira. Tratou-se de uma reunião informal onde, além de ser uma boa

oportunidade para conhecer o representante máximo da UNTL, os docentes

tiveram também a oportunidade de relatar as suas experiências de

leccionação em Timor. As dificuldades apresentadas pelos alunos e

realçadas pelos docentes são muito parecidas com as que os alunos das

nossas universidades têm. Acresce, contudo, o facto de se tratar de alunos

para quem a língua mãe é outra que não a portuguesa. Sem dúvida que

este facto constitui o maior handicap para estes alunos.

As aulas de português que, em paralelo tem havido, são, sem qualquer

dúvida, importantes ainda que não suficientes para colmatar essa falha.

Talvez uma maior adequabilidade, do programa de língua portuguesa que

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131

lhes é ensinado, às circunstâncias de se tratar de alunos para quem esta é

uma língua nova, seja suficiente para ultrapassar este problema. A edição de

um manual de língua portuguesa adaptado à realidade timorense, feito por

alguém que conheça a realidade cultural de Timor, pode constituir uma boa

solução. O Senhor Reitor interveio várias vezes, quase sempre no sentido de

procurar as soluções mais adequadas para que os problemas se vão

esbatendo e os alunos possam sair bem formados quer técnica quer

culturalmente para assim poderem ajudar a sua terra a caminhar no sentido

do progresso sem descurar o aspecto cultural e humano. No final seguiu-se

um jantar convívio que serviu para todos nós saborearmos alguns dos pratos

da cozinha timorense. Sem dúvida que esta iniciativa constituiu uma

oportunidade única para cimentar o bom relacionamento que,

inequivocamente, existe entre a UNTL, na pessoa do seu Reitor e Decanos

de Departamento, e a FUP. A este encontro sucedeu um outro evento onde

a cultura foi rainha. Refiro-me à festa que decorreu no dia 1 de Julho,

intitulada “Festa dos Sentidos: palavra, música & dança”, organizada pelo

curso de Formação de Professores de Português, sob a responsabilidade da

Drº Maia Elisa, professora da Escola Superior de Educação do Instituto

Politécnico do Porto, com o apoio do Instituto Camões, da UNTL e da FUP.

Sem dúvida que as vedetas da festa foram os alunos que, juntamente com

alguns docentes, declamaram poemas de autores bem conhecidos entre os

quais destacaria Fernando Sylvan, Jorge Lautem, João Pedro Mésseder,

Álvaro Magalhães, Vinicius de Morais, Manuel Rui e Sofia de Mello Breiner

Andresen. Sem dúvida que cantando e declamando também se aprende a

falar português. Foi muito interessante ver como é que os timorenses se

empenham para aprenderem a língua que querem que seja também sua.

No Domingo, dia 30, participei com alguns colegas portugueses numa festa

popular que decorreu na magnífica praia de Liquiçá. Assistimos à exibição de

grupos de danças tradicionais. Em algumas delas era fácil reconhecer a

influência do nosso folclore, nomeadamente o algarvio. As danças tiveram

Page 139: Um Olhar (Atento) sobre Timor

132

como palco a terra e como tecto as folhas de uma enorme árvore que

pendiam dos seus longos ramos. De entre as várias danças destaco a

“Dança de emancipação das mulheres” de Baucau. Não podendo manifestar-

se por palavras contra a opressão que os maridos sobre elas exerciam,

faziam-no utilizando a dança e o batuque. Foi muito lindo de se ver. A festa

terminou com um almoço típico: água de coco, arroz em canas de bambu,

cabrito no espeto, etc. Esta festa teve lugar de destaque, cerca de dez

minutos, nas notícias da televisão local.

Pergunto-me se não deveria ter começado por falar na motivação principal

da minha ida a esta festa. Não tem que ver com lazer mas tem que ver, isso

sim, com acontecimentos tristes, mesmo dramáticos, que vi e muitos de vós

também viram, na televisão. Tratou-se do massacre da igreja de Liquiçá. No

seu interior, onde se tinham refugiado, fugindo da actuação de pessoas de

maus instintos, foram assassinados dezenas de homens, mulheres e crianças

timorenses que tinham em comum o amor à sua terra, aos seus costumes, à

sua cultura, à sua religião. Li há dias no Diário de Notícias um relato sobre o

julgamento de pessoas ligadas a este acontecimento. O Procurador concluiu

que houve a participação de pelo menos doze soldados e dois polícias. Já

que não é possível trazer à vida os que então morreram, ao menos que se

faça justiça e se punam os responsáveis.

VISITA AO PADRE JOÃO FELGUEIRAS

O encontro com o Padre Jesuíta João Felgueiras, natural das Caldas das

Taipas, Guimarães, estava marcado para as 16 horas na nova residência dos

Jesuítas em Díli. A expectativa era grande pois constituía a oportunidade de

me encontrar com uma pessoa que já conhecia dos meios de comunicação

social portugueses, intimamente ligado à evolução de Timor desde 1974.

Aqui chegou em 1971 e hoje, com os seus 81 anos, mostra uma boa forma

física e uma capacidade intelectual dignas de realce. Feitas as apresentações

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133

de circunstância, o Padre Felgueiras relatou-nos alguns acontecimentos

trágicos, acontecidos após as eleições, como seja o assassínio de dois

sacerdotes jesuítas, um de origem alemã e outro de origem indonésia.

Personalidade culta, de um jesuíta não é de esperar outra coisa,

apresentando um grande vigor físico e uma pujança intelectual digna de

registo, correspondeu à imagem que dele tinha, depois de ter ouvido alguns

dos seus pensamentos expressos na televisão e rádio em Portugal

O convite teve como objectivo participarmos num encontro com mais de 20

senhoras timorenses que ensinavam nas escolas primárias em Díli e em

outros pontos de Timor.

O Padre Felgueiras interveio explicando qual a importância que a nossa

presença na reunião poderia ter no sentido de cimentar as relações entre

uns e outros de modo a rentabilizar a nossa presença em Timor. A sua

intervenção, simples mas de grande alcance, permitiu-nos imaginar o

quanto pessoas como ele, são responsáveis pela dignificação de povos que,

como o de Timor, tanto têm sofrido, não só fisicamente mas também

culturalmente. Retive uma afirmação sua que considero de um alcance

Page 141: Um Olhar (Atento) sobre Timor

134

muito grande: “a cultura triplica o valor humano de qualquer pessoa”. Ora o

que aconteceu durante a invasão indonésia foi, entre outras coisas, a

aculturação dos timorenses quer não lhes dando condições de acederem à

cultura quer proibindo-os de exteriorizar os seus sentimentos e os seus

hábitos culturais.

Dando consequência ao espírito evangelizador e à capacidade que os

Jesuítas têm para espalhar cultura, o Padre Felgueiras pôs em marcha, em

1988-89 uma iniciativa que, pelas suas palavras, ultrapassa hoje as

expectativas de então. Trata-se de um FACSI – Fundo de Ajuda Caritativa

Social da Companhia de Jesus – COMUNIDADE AMIGOS DE JESUS. Estes

projectos são uma forma de o Superior Geral da Companhia de Jesus

atender e ajudar alguns trabalhos especiais, quase sempre orientados por

Jesuítas. O que ele orienta tem tido como objectivo principal a formação de

jovens timorenses. Desde a sua fundação já beneficiaram deste fundo cerca

de 3000 jovens o que, num universo como o de Timor, assume um

significado muito grande. Neste momento há jovens licenciados, oriundos de

todas as partes de Timor, que beneficiaram de bolsas que cobriam, muitas

vezes, a totalidade das despesas nas instituições de Ensino Superior ou

Politécnico. Do ponto de vista histórico é interessante recordar que, um

século atrás, os Jesuítas tiveram um projecto de desenvolvimento para as

missões de Timor, sedeado em Soibada, interior de Timor Leste. A obra do

Padre Felgueiras tem ainda em funcionamento uma escola do ensino básico,

frequentada por cerca de 450 alunos com 35 professoras. A constatação,

depois destes cerca de 10 anos de acção, é de que o ambiente de

familiaridade criado entre a obra e os seus beneficiários ultrapassa muito

aquilo que era à partida um sonho. Criou-se uma sincera e salutar amizade

entre centenas de jovens e crianças.

Foi muito gratificante participar neste encontro com as voluntárias da

Comunidade Amigos de Jesus do Padre Felgueiras. Deu-se a feliz

coincidência de, durante o nosso encontro, se fazer a despedida da

Page 142: Um Olhar (Atento) sobre Timor

135

professora Liliana, natural de Barcelos, que terminava um curso de

Formação às professoras da Comunidade. Não foi para mim qualquer

surpresa o grau de profunda amizade que transpareceu no momento em

que se fez a despedida. Acontece com muita frequência, fruto, em minha

opinião, da grande afinidade que o povo timorense tem com o povo

português. Não creio que entre professores de outras nacionalidades e os

timorenses isso aconteça. Como homenagem ao Padre Felgueiras e à

amizade entre a Liliana e as senhoras professoras da Comunidade,

apresento um excerto de um poema escrito e lido pela professora Maria

Luísa Corte-Real. Reza assim: professora diz-me porque deixaste a tua terra

natal, deixaste a tua escola, diz-me professora porquê; professora diz-me

porque deixaste os teus queridos pais para vires para Timor, diz-me

professora porquê; eu sei professora eu sei porquê. Vieste com uma nobre

missão ao serviço de um país irmão. Já sei professora, já sei porquê; porque

um dever te chama porque o teu coração palpita por uns irmãos que

sofreram a guerra, por um Timor que por ti grita”. Assim termino.

O PADRE ALBERTO RICARDO No âmbito da disciplina de Cultura e Línguas Timorenses, do Curso de

Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas, ministrado na Universidade de Díli

em parceria com o Instituto Camões, assisti a uma conferência do Padre

Alberto Ricardo, antigo pároco de Motael (foto) e actual Reitor do Seminário

Maior de Fatumeta – Díli. Em boa hora resolvi deslocar-me ao antigo Liceu

Francisco Machado, pois esta conferência constituiu um dos momentos mais

importantes da minha estadia, permitindo-me incrementar os meus

conhecimentos sobre a grandeza e a importância que a língua tetum, a par

da língua portuguesa, teve na união de um povo em torno da sua história.

O Padre Alberto Ricardo foi um grande resistente aos intentos dos

indonésios que passavam por introduzir a língua indonésia nos hábitos

Page 143: Um Olhar (Atento) sobre Timor

136

religiosos dos timorenses. Sempre se opôs a esta pretensão lutando sempre

para que a missa fosse rezada em tetum e não em língua indonésia. Em

1989 era pároco de Motael e todos os comandantes militares indonésios o

conheciam bem – faziam-lhe frequentes visitas para comprovar se de facto a

língua utilizada na missa era a indonésia ou a tetum. É claro que esta

posição contrária aos interesses indonésios lhe trouxe alguns dissabores.

Considerou que o tetum é a língua materna do povo timorense pelo que

tudo o que seja feito para a expandir e divulgar deve ser apoiado. O tetum

já vem de há longos anos. Já em 1885 a 1889 um missionário português fez

um catecismo e um dicionário em tetum. Muito interessante é a opinião do

orador de que tanto a língua tetum como o povo timorense têm uma origem

da qual pouco se sabe. Apenas se sabe que já em 1970 o Bispo D. José

Rebelo, com a ajuda de seminaristas timorenses em Fátima, tentaram

traduzir a bíblia de português para tetum. Foi então que se rezaram as

primeiras missas em tetum. No entanto, com a revolução em Portugal, todo

o cenário que se começava a construir no sentido de dar a esta língua o

relevo que ela merecia, foi posto em causa.

Em 1975 passou-se a uma nova realidade política, com a invasão de Timor

pela Indonésia, seguida da imposição do wasa como língua oficial. A partir

Page 144: Um Olhar (Atento) sobre Timor

137

daqui o tetum passou a estar em risco de desaparecer. Ciente do seu dever,

a igreja decidiu fazer frente ao invasor e a todas as consequências que essa

sua posição acarretou. Tudo fez para desenvolver o tetum, havendo mesmo

um grupo de sacerdotes timorenses que dedicaram parte do seu tempo a

fazer um missal para rezar a missa, acção aprovada pelo Vaticano. Viria a

ser a igreja a ter um papel decisivo na resistência e posterior incremento

desta língua que hoje, a par do português, é língua oficial de Timor.

Na segunda visita a Díli, na década de 80, o Núncio Apostólico de Jacarta,

participou, com alguns padres timorenses, incluindo o Padre Alberto Ricardo,

numa missa em Díli. Minutos antes de dar início à cerimónia, virou-se para o

Padre Ricardo e disse-lhe: Padre Ricardo, em Timor a missa tem que ser

rezada em tetum quer as autoridades indonésias gostem quer não gostem.

Assim aconteceu. perante a estupefacção dos indonésios presentes e o

regozijo dos timorenses. A partir deste dia o tetum passou a ser considerado

como língua oficial da igreja timorense.

Aquando da visita do Papa, muitos portugueses criticaram a sua atitude de

não beijar o solo timorense, considerando-se assim como uma atitude de

reconhecimento da soberania de Timor Leste pela Indonésia. Isso não

acontece com os timorenses. A “contrapartida” que dele receberam teve,

para eles, um valor e um significado muito superior. Na preparação da visita

papal os representantes oficiais indonésios querem que a missa seja rezada

em wasa, língua oficial indonésia. Os timorenses querem que seja rezada

em tetum. Um mês antes da visita, a Irmã Domingas, de Ermera, deslocou-

se a Roma, a pedido do Papa, onde lhe deu aulas de tetum. A expectativa

era grande aquando da primeira missa que rezou em Timor Leste, em

Tacitolo, perto de Díli. Para alegria dos timorenses o Papa iniciou a missa em

tetum perfeito. Foi o delírio de todos os timorenses presentes. Foi uma

espécie de declaração deste como língua oficial da liturgia católica em

Timor. Durante os 24 anos de resistência depressa suplantou a língua

Page 145: Um Olhar (Atento) sobre Timor

138

indonésia, ensinada à força. O resultado desta política está à vista. De um

modo geral os timorenses não morrem de amores pelos indonésios.

No dizer do Padre Ricardo, a língua é a rampa de lançamento para

desenvolver entre as pessoas outros laços de amizade. “É preciso convencer

as pessoas de que o tetum é a sua língua, Timor Leste é dos timorenses e a

independência também. Que identifica o verdadeiro timorense. Em boa hora

o governo decidiu que as línguas oficiais são o português e o tetum. É

imperioso aperfeiçoar estas duas línguas”.

No final falou o Professor Doutor Benjamim Corte ReaL, Reitor da

Universidade de Díli. Considerou o orador como um prestigiado estudioso e

um homem com uma visão de futuro sobre Timor. Curiosa foi a afirmação

de que, em sua opinião, se tratou de uma “aula de estratégia militar em que

a igreja desempenhou o papel do General, comandando os timorenses na

defesa do tetum, na identidade de Timor e na resistência ao invasor”

DE NOVO EM FATUMACA

A exemplo do que aconteceu na primeira vez que aqui estive, desloquei-me

a Fatumaca, a uma das casas dos salesianos em Timor. Trata-se de uma

instituição que, por certo, todos conhecem, desenvolvendo a sua actividade

nos vários cantos do mundo. Para lá chegar passa-se por Baucau e, alguns

quilómetros depois, na estrada para Viqueque, em desvio para a direita,

chega-se a Fatumaca. Local aprazível, com grande actividade, onde funciona

uma escola técnica, muito bem apetrechada, um seminário e uma casa de

noviciado. Na estrada que dá acesso às instalações pode ver-se, à direita, a

gruta com Nossa Senhora e à esquerda, o monumento oferecido pelos

antigos salesianos de Portugal(foto). Além de matar saudades, levava como

incumbência uma proposta para a entrada da escola numa rede de escolas

técnicas de língua portuguesa.

Page 146: Um Olhar (Atento) sobre Timor

139

Oxalá se concretize esta pretensão, encomendada pelo meu amigo Eng.

Castro Vide, relações internacionais do INEGI, Porto. Na impossibilidade de

deslocação do Decano de Electrotecnia, Eng. Inácio, fui acompanhado por

três jovens colegas da UNTL, os Eng.ºs Constâncio, Gabriel e Adalfredo. Foi

uma viagem muito agradável e, acima de tudo, muito importante para mim

pois permitiu-me conhecer algumas peripécias que aconteceram desde o dia

12 de Novembro de 1999, relatadas por alguns dos principais protagonistas,

os meus colegas de viagem. Ao Engº Constâncio já lhe conhecia a sua veia

de homem extremamente empenhado na causa de Timor. A admiração e

estima que por ele nutria incrementaram-se significativamente. Foi ele que,

sete dias após o 12 de Novembro, massacre de Santa Cruz, organizou, a 19,

a primeira manifestação de timorenses a estudar nas universidades

indonésias. Não foi fácil, pois partilhava a residência universitária com vários

estudantes indonésios. Para evitar que estes soubessem o que se passava,

comunicavam em Tetum e aumentavam o volume do seu transístor.

Reuniram cerca de 70 estudantes naquele que foi o primeiro abanão na

política de Suharto para Timor Leste. Conseguiu escapar à polícia indonésia,

o mesmo não acontecendo com os restantes, que foram condenados por

períodos que foram de 15 dias a 10 anos. A esta manifestação seguiram-se

outras das quais sempre escapava, pois tinha um feeling no momento certo

que lhe dizia para fugir. Invariavelmente, passados alguns instantes, a

polícia aparecia. Dizia ele que era o São Gabriel Arcanjo que o protegia e o

levava debaixo das suas asas. Nunca foi preso, estando no entanto, sempre

na linha da frente. A vida destes três colegas e companheiros de viagem

começou no longínquo ano de 1975, logo após a invasão de Timor pela

Indonésia.

A exemplo do que aconteceu com muita gente, alguns relativamente jovens,

como é o seu caso, fugiram para as montanhas para esclarecer,

politicamente, s pessoas. O local de paragem variava muito. Durante cerca

de quatro anos, até 1979, aí se mantiveram. Abandonaram a montanha na

Page 147: Um Olhar (Atento) sobre Timor

140

convicção de que as pessoas a partir daí estavam preparadas para resistir,

em todos os aspectos, à investida dos indonésios. Pelo presente parece-me

que a sua tarefa foi coroada de êxito. Típico de regimes de ditadura é o

facto de serem banidos dos cargos públicos, ou ser vedado o acesso a eles,

a pessoas com determinados apelidos. Qualquer timorense de apelido Belo,

Gusmão ou Lobato era eliminado em qualquer concurso de instituições do

estado. É claro que, astuto como é, e na ausência de bilhete de identidade,

o povo timorense depressa se encarregou de eliminar esses apelidos.

Em Fatumaca tive o prazer de rever o Diácono Baltazar, natural de Genísio,

Miranda do Douro, a passar férias em Portugal. Está em Timor há cerca de

trinta e um anos.

Tive também oportunidade de cumprimentar o Irmão Carlo Gambina,

italiano de Torino, bem como o Irmão Marçal Lopes. No regresso a Díli

passámos pela terra natal do Bispo Ximenes Belo, Bukoli, onde ainda se

pode ver a estrutura de um antigo colégio onde ensinou seu pai. Era

também natural desta terra Vicente Reis Sáhe, professor de Xanana Gusmão

e que, certamente, teve influência na sua formação, vincadamente

democrata e humanista. Em jeito de ilustração relato um pequeno mas

significativo episódio, bem demonstrativo da grandeza que caracteriza o

Page 148: Um Olhar (Atento) sobre Timor

141

Presidente Xanana. Na companhia de um colega cruzámo-nos com ele

quando saía da casa onde se vai instalar a sede da Associação dos Antigos

resistentes. Ao entrar para a viatura esboçou um sorriso franco e familiar

parecendo que éramos amigos de longa data.

VISITA A AINARO E AO RAMELAU

Foi aquilo a que se chama um fim-de-semana bem passado. Sábado pela

manhã saímos de Díli, tendo como destino final o Monte Ramelau. Aileu foi a

primeira paragem. O monumento aos mártires do massacre perpetrado

pelos militares japoneses aquando da invasão de Timor na 2ª Guerra

Mundial, constituiu o primeiro momento de descontracção. Trata-se de um

monumento recentemente restaurado pelas tropas portuguesas a prestar

serviço em Timor. É formado por várias campas dedicadas a militares e civis

portugueses que então aí se encontravam. Seguindo em direcção ao destino

traçado surgiu, uma hora depois, Maubisse, onde é obrigatória uma

paragem na praça principal para visitar o monumento de homenagem ao

Régulo Fonseca Benevides também sacrificado pelo amor a Portugal,

claramente traduzido pela placa aí colocada aí colocada e onde se pode ler:

por Portugal contra o invasor. Uma subida à Pousada tem que fazer parte de

qualquer roteiro turístico que englobe esta cidade. Trata-se de uma

estrutura hoteleira instalada num antigo posto administrativo do tempo da

administração portuguesa. De lá pode ver-se, a toda a volta, a encosta

serpenteada por casas típicas timorenses metidas entre as árvores de várias

espécies. É sem dúvida um local onde se pode descansar e onde se sente

uma paz interior dificilmente traduzível por palavras. Como é costume, e

pela segunda vez, inscrevi o meu nome no livro posto à disposição dos

visitantes. Foi aberto pelo representante das Nações Unidas, Sérgio Vieira de

Melo, e nele muitas pessoas famosas, como o jornalista australiano Max

Stall, deixaram a sua mensagem que, maioritariamente, destacam a beleza e

Page 149: Um Olhar (Atento) sobre Timor

142

a sua privilegiada localização. A curiosidade natural levou-me a desfolhar o

livro. Ocupando uma folha inteira e, possivelmente impulsionado pela raiva

que lhe ia no seu interior, alguém escreveu: ao meu pai barbaramente

assassinado neste local no ano de 1975.

A viagem seguiu em direcção a Ainaro. A exemplo do que acontece com

quase todas as localidades timorenses, fica numa planície com montes em

volta. Sem dúvida que é das localidades de que mais gostei. As razões não

serão devido à sua beleza natural ou ao facto de ser bem arejada e com as

ruas bem desenhadas e enquadradas. Foi aqui que nasceu o Régulo Aleixo

Corte Real, sem dúvida uma das pessoas mais importantes e carismáticas de

Timor. Foi executado pelos japoneses, com vários elementos da sua família

e com outros cidadãos portugueses, entre os quais dois padres católicos. A

não abdicação do estatuto de cidadão português e a recusa de submissão ao

exército japonês foram os pecados que justificaram a sua execução.

Portugal prestou-lhe uma justa e merecida homenagem erigindo um

monumento em sua memória, instalado na zona central da cidade

Page 150: Um Olhar (Atento) sobre Timor

143

Ainaro é uma cidade em crescimento, beneficiando da existência do Pré

Seminário São Luís Gonzaga, onde os candidatos a padres começam a sua

preparação. Muito interessante é a capela dedicada a Nossa Senhora de

Fátima (foto), construída em 1951, aquando da visita a Timor, da sua

imagem.

A paisagem desde Maubisse até Ainaro é deslumbrante. Lembra muito as

paisagens da Suiça ou Áustria. A estrada, a exemplo de quase todas as

outras de Timor, é bastante sinuosa e tem que ser percorrida com a máxima

atenção. A beleza compensa o esforço e os abanões a que se está sujeito.

Antes de chegar a Maubisse, vindo de Ainaro, é necessário virar à esquerda,

seguindo por uma estrada por onde só de jipe se pode circular. Os cerca de

18 km até à pousada de Hato Builico, demoram uma hora e trinta minutos o

que dá uma média de 2,5 km por hora. A estrada desenvolve-se toda em

altitudes entre 1850 m e 2100 m. Passa por várias aldeias onde a actividade

agrícola é muito favorecida pelas qualidades naturais do solo e pela

abundante água que corre pelos vários ribeiros existentes. A subida ao pico

do Ramelau deve ser feita à noite, com consequente dormida lá no alto, ou

então muito cedo. A ideia é assistir ao nascer do sol, a cerca de 2880 m. O

local de estacionamento do jipe está a cerca de 650m do pico. Antes de

começar a subida parece uma tarefa muito fácil. Ao fim de uma hora de

caminhada muitos daqueles que, como eu, não dedicam parte do seu tempo

ao exercício físico, depressa chegam à conclusão que a tarefa da subida

afinal é muito difícil e complicada. A mim só me restou a opção de desistir e

fazer, num futuro próximo e depois de uns tempos de treino, uma nova

tentativa. Mesmo assim pude desfrutar de uma panorâmica simplesmente

deslumbrante que a vista alcança. O meu insucesso foi compensado pelas

novas tecnologias que me “puseram” no alto mesmo sem lá chegar.

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JUNHO/JULHO – 2003

CORRESPONDÊNCIA DE TIMOR

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147

REUNIÃO NO ROTARY CLUB DE DÍLI

Como é que os nossos antepassados conseguiram chegar a terras tão

longínquas como Timor? Faz todo o sentido pôr esta questão e render

homenagem a mais este feito dos portugueses. Com os meios de transporte

de que hoje dispomos são cerca de 22 a 23 horas de permanência no

interior do avião. Se juntarmos o tempo passado no aeroporto podemos

contar que de 27 a 28 horas não nos livramos. A tudo isto acresce a

diferença de fusos horários e a viagem percorre duas noites. Saindo Sexta

ao princípio da tarde chegar-se-á a Díli, na hipótese mais rápida, no

Domingo pelas 9 ou 10 horas da manhã. Como a minha viagem foi feita por

Sidney teve o acréscimo de mais 8 horas no interior do avião.

Chegado a Díli, depois dos procedimentos alfandegários normais, com a

novidade do pagamento de um visto, passei, sem grandes demoras, os

vários passos legais e depressa me encontrei no hall fronteiro à porta de

saída.

Dili não mudou muito desde há um ano para cá. As diferenças situam-se,

essencialmente, nos edifícios que foram destruídos em Dezembro passado.

De resto está tudo na mesma. Nota-se um ambiente muito calmo, indiciador

de que se pode desenvolver a actividade da docência com calma e com

confiança de que tudo correrá bem.

Neste primeiro contacto, para lá destas primeiras impressões, vou dedicar a

minha atenção à minha qualidade de elemento do Rotary Clube de Vila Real.

Mandam os preceitos rotários que qualquer membro de um clube pode

(deve?) comparecer às reuniões de outro clube em qualquer país do mundo

onde se encontre. Sabedor, desde há algum tempo, da formação do clube

de Díli, depressa tentei saber onde eram feitas as reuniões semanais. Depois

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148

de consultar o hotel Timor dirigi-me, por indicação de alguém deste, ao

hotel Turismo, junto à marginal e logo depois da casa do Bispo D. Ximenes

Belo, quando caminhamos do centro de Dili em direcção ao Cristo Rei.

Pelas 18H30m cheguei ao hotel onde, desde logo, notei a presença de um

companheiro brasileiro que, depois de com ele entabular conversa, soube

ser do Rotary Clube de Ipanema, Rio de Janeiro, Osvaldo Raimundo de seu

nome. Como a língua preponderante era o inglês facilmente me familiarizei

com ele e com o companheiro Câncio, um dos três timorenses do clube. A

reunião foi muito interessante e decorreu, apesar de se tratar de um clube

jovem, de acordo com as normas próprias do movimento rotário. É muito

gratificante constatar que pertencer a este movimento ajuda a transpor

muitas barreiras. O espírito de solidariedade torna-se muito importante, diria

que, muitas vezes, decisivo, para nos ajudar a vencer a saudade de todos os

que nos são queridos. Ocupei um lugar entre os dois companheiros de

língua portuguesa, o brasileiro e o timorense, muito perto da companheira

que presidiu à reunião, a vice-presidente em substituição do presidente,

ausente em Sidney, na Convenção Rotária Mundial. Após a apresentação

rotária foi-me oferecida uma flâmula do Rotary Clube de Díli que, no meu

regresso, entregarei ao presidente do meu clube. O companheiro Osvaldo

Page 156: Um Olhar (Atento) sobre Timor

149

Raimundo, com o calor humano que caracteriza qualquer cidadão do país

irmão, entregou-me, como homenagem ao nosso encontro e ao Clube de

Vila Real, um poema que a seguir transcrevo:

Timor, Timor, quando voltarei

Se nem sei se irei ou se voltarei....

Longe de tudo, perto de ti, cá estou Timor.

Vivendo tua vida, de novo, teu povo, os gemidos, heróicos gemidos, de teus

mortos da resistência e o canto lindo, lindo canto de teus filhos cantantes e

amigos.

Timor, Timor quanto tempo demorei para conhecer-te e o mundo estava

inerte e omisso diante da tua dor e do teu chorar distante.

Agora cantas ó Timor, enquanto ouvindo o teu canto, curto uma saudade

imensa do meu Brasil e a tristeza antecipada, já agora, por te deixar mais

uma vez, chorando por ti Timor, Timor, Timor, por te deixar Timor!

A transcrição deste poema é, também, uma homenagem, bem merecida,

que eu presto ao Rotary Clube de Ipanema, na pessoa do Óscar. Termino

com satisfação acrescida pelo facto de ter recebido a visita de alguns

companheiros de Portugal, entre os quais o companheiro Manuel Cardona e

esposa. A minha presença no aeroporto foi, para eles, motivo de grande

alegria. O movimento rotário permite estes encontros em terras tão

distantes mas que muito dizem a todos nós portugueses.

O ROTARY CLUB DE JARNAC EM VILA REAL

Fui surpreendido, já em Timor, pela realização de um cerimónia realizada no

passado dia 30 de Maio no Rotary Clube de Vila Real, aquando da visita do

Clube de Jarnac, França, Clube gémeo do de Vila Real. Como nessa ocasião

fui alvo de uma homenagem gostava de, com a permissão de quem me lê, a

ela dedicar alguns parágrafos desta minha escrita semanal e feita de tão

longe.

Page 157: Um Olhar (Atento) sobre Timor

150

Logo após a minha entrada no movimento rotário, já lá vão 3 anos, tive a

sorte de ser incumbido da tarefa de fazer a ligação com o Clube de Jarnac

no sentido de levar a cabo a realização de um projecto, muito interessante e

ambicioso, que consistia na implementação de infra-estruturas para práticas

desportivas num bairro de Maputo, na paróquia do Bom Pastor, em terreno

cedido pelos Salesianos. Os primeiros contactos a partir de Jarnac foram

feitos por um companheiro, Bruno Martin, que desde logo vi tratar-se de

uma pessoa muito dinâmica, determinada, persistente e de trato

extremamente correcto e afável. Como devem imaginar a minha tarefa ficou

desde logo facilitada. A pedido do Bruno Martin fiz os primeiros contactos

em Maputo com a Veronique, cooperante francesa de uma organização não

governamental, no sentido de o clube de Maputo ser nosso parceiro local.

Por impossibilidade deste, escolhemos o Clube da Matola, que logo agarrou

a ideia com toda a determinação.

A sua aprovação pela Rotary Foundation, há cerca de um mês, deixou-nos a

todos muito satisfeitos, por podermos dar consequência aos objectivos do

movimento rotário, ser solidário e ajudar quem precisa. Com este projecto,

que o companheiro Bruno Martin gostaria que estivesse pronto antes da

época das chuvas em Moçambique, muitos jovens passam a ter condições

Page 158: Um Olhar (Atento) sobre Timor

151

mínimas para praticar desporto e assim ocuparem os seus tempos livres da

melhor maneira.

Para nós, Rotary Clube de Vila Real, este projecto é ainda mais gratificante

porque a pessoa de contacto em Maputo é o Padre José Duro, natural do

concelho de Vila Real.

A sua implementação só é possível graças ao empenho de outros clubes

portugueses (Algés, Póvoa de Varzim, Vila da Feira, Guimarães, Figueira da

Foz) e de França (Angouleme, Jonzac, Nord-Blayais L’Isle Jourdain).

Por cumprir, na opinião do meu companheiro e, porque não, amigo, Bruno

Martin, os meus deveres de rotário, fui feito Membre d’Honeur do seu clube,

Rotary Clube de Jarnac. Esta distinção dá-me mais força para me empenhar

ainda mais naquilo que tenho feito. Tudo farei para honrá-la.

Daqui para o futuro, tudo o que fizer, sê-lo-á, também, em nome deste que

passará também a ser o meu clube. Espero que todos os companheiros de

Jarnac se tenham sentido em Vila Real como em sua casa. Tive muita pena

não estar presente. A presença da minha esposa foi, certamente, uma

demonstração do meu respeito e da minha gratidão por este acto. Em seu

nome e em meu próprio, agradeço a todos esta homenagem, sobre a qual

falo porque a considero também como homenagem ao Rotary Clube de Vil

Real, que tem vindo a dar passos firmes no sentido de, por um lado, honrar

o seu passado e por outro, tornar-se cada vez mais útil aos mais

desfavorecidos, através das acções que tem levado a cabo ano após ano.

Daqui de longe dou os meus parabéns a todos quantos fazem parte deste

clube, na pessoa do seu Presidente, Fernando Martins. O crescente

dinamismo que tem caracterizado a actuação do clube nos últimos anos,

demonstra que tem havido uma correcta filosofia de admissão de novos

membros e, ao mesmo tempo, um melhor aproveitamento das capacidades

de cada um.

Page 159: Um Olhar (Atento) sobre Timor

152

RAÍZES DE TIMOR – EVENTO CULTURAL EM DÍLI

No dia 25 de Junho, a RDP – Rádio Difusão Portuguesa, secção de Díli,

organizou, em conjunto com a INDE – Intercooperaçao e Desenvolvimento,

um evento cultural que denominou de “Raízes de Timor”. A RDP tem

desempenhado um papel muito importante no consolidar da cooperação que

Portugal tem tido com Timor. Se há quem duvide da importância do estatuto

de serviço publico que lhe é atribuído, que venha a Timor e acompanhe tudo

o que nesta linda e longínqua terra tem feito. Tenho tido o privilégio de

acompanhar os seus passos, firmes e convictos, desde Novembro de 2001,

ainda que com grandes intervalos pelo meio, e posso testemunhar quão

importante é para quem está longe da sua casa e dos que lhe são mais

queridos, existir um elo de ligação como a RDP tem sido aqui. Aproveitando

a estadia de muitos professores portugueses tem, desde há algum tempo,

um programa diário, das 10H00 às 12H00, de Segunda a Sexta Feira, com o

sugestivo e forte título de “Conversas em Português”, da autoria das

Professoras Ana Olívia e Selma Silva. Todos os dias estas cooperantes

portuguesas dão parte do seu tempo à causa da divulgação da língua, da

música e dos costumes portugueses. Exemplos destes devem ser divulgados

e reconhecer-lhe, dando-lhe consequência, o papel importantíssimo que têm

na ajuda aos timorenses para aprender, relembrar ou melhorar a língua que,

a par do Tetum, é a língua oficial deste jovem e sofrido país. Não esqueço

que uma das várias pessoas que foram entrevistadas durante o evento,

Ângela Carrascalão, considerou mesmo que “a língua portuguesa deve ser o

veículo que conduzirá os timorenses ao progresso”. António Veladas,

conhecedor do Timor profundo e sentido, responsável pela delegação da

RDP em Díli e a quem se deve tudo o que esta aqui tem feito,

confidenciava-me, com grande alegria, convicção e esperança, que é

necessário que “a língua timorense e a língua portuguesa caminhem lado a

lado, de mãos dadas”. Assim darão mais força ao povo de Timor para atingir

o progresso e o bem-estar.

Page 160: Um Olhar (Atento) sobre Timor

153

Também é de realçar o papel que as ONG – Organizações Não

Governamentais Portuguesas, têm tido no implementar da política de

cooperação, em meu entender exemplar, que o Estado português tem

delineado para Timor, país que hoje está tão perto de nós ao contrário do

que acontecia em tempos longínquos. A atestar isto está a observação que

há dias uma cidadã australiana, ligada à Caritas, me fez quando, passando

pelo City Café, lhe disse que era ali que muitos portugueses se encontram

para conversar e matar saudades de Portugal. Secamente disse-me que

agora se vêem muitos, ao contrário de outros tempos. Mais vale tarde que

nunca. Hoje a cooperação que Portugal está a desenvolver deve orgulhar

qualquer português. Dando consequência aos objectivos que tem em vista, a

INDE tem desenvolvido vários trabalhos em Timor sendo este, divulgação do

folclore timorense, um deles.

As actuações dos grupos folclóricos começaram bem cedo, pelas oito horas,

no hall exterior da sede de Díli da RDP. Vieram de várias localidades

timorenses, Bobonaro, Los Palos, Liquiçá e Maubara. Das várias canções e

danças a que assisti, durante cerca de quatro horas, juntamente com muitas

outras pessoas, com o mesmo entusiasmo desde o início até ao fim, vou

destacar algumas ainda que esta escolha seja uma tarefa difícil.

Page 161: Um Olhar (Atento) sobre Timor

154

O grupo de Los Palos cantou e dançou duas canções de um significado

profundo para um povo que dá os primeiros passos no sentido da

consolidação da independência, do caminho do progresso e da criação de

condições de vida digna de todos os seus cidadãos. Uma intitulava-se

“canção da independência” e transmitia a mensagem de que “Timor já é um

país independente e vamos todos trabalhar para que o seja para sempre”. A

outra, “canção da bandeira”, dizia que “a bandeira de Timor já está içada.

Vamos todos respeitá-la e vamos olhar para ela com honra e admiração”.

Da actuação do grupo de Liquiçá merecem destaque duas canções: boas

vindas ao Governador e tarabando. A primeira, talvez aquela que mais fundo

me tocou, relata a visita do Governador português de Timor ao Suco

(freguesia) e a maneira calorosa como era recebido. As prendas mais

variadas eram-lhe oferecidas. A mama, massa que se faz na boca

mastigando folhas de betel, um pedaço de areca e um pouco de cal, tinha

presença assegurada.

A outra canção, tarabando, é um chamamento à conservação do meio

ambiente. Fala da proibição de colher frutos fora de tempo e da necessidade

de tratar bem todas as árvores e plantas.

A cultura e o folclore de Timor são tão ricos que continuaríamos desfilando

canções e danças em páginas sucessivas de palavras, mais ou menos

rebuscadas, sem esgotarmos o rol. Vou terminar por hoje referindo uma

outra dança do grupo de Los Palos que muito nos diz, a nós, rotários

portugueses. Trata-se de uma canção sobre a construção das casas

tradicionais de Los Palos. Nela se apela à unidade, pois cantando se junta

gente e em conjunto se fazem mais e melhores casas. Um fio azul ao qual

todos se agarram, simboliza a união de todos na prossecução do objectivo

que é a construção da casa. Para os meus leitores direi que o movimento

rotário português, no dia 7 de Junho, inaugurou duas destas casas

tradicionais completamente recuperadas com dinheiro angariado em

Portugal.

Page 162: Um Olhar (Atento) sobre Timor

155

PRIMEIRA VISITA AO MAC – MOVIMENTO DE ADOLESCENTES E

CRIANÇAS

Plante sementes de amor é o lema do movimento rotário para este ano. Tão

importante como plantar sementes é criar condições para que aquelas que

já nasceram germinem com vigor suficiente para enfrentar as dificuldades

que a vida lhes colocará no dia a dia. Vem isto a propósito do trabalho que

as Irmãs Elliene e Francisca, brasileiras de nascimento, tem desenvolvido em

Timor desde há dois anos e meio para cá. Ambas pertencem à Congregação

das Irmãs Dominicanas de Nossa Senhora do Rosário de Monteils. São

trabalhos em áreas distintas: formação profissional de técnicos timorenses e

ocupação dos tempos livres das crianças. Aquando do nosso encontro no

Rotary Clube de Díli, o companheiro de Ipanema Osvaldo teve a feliz ideia

de me sugerir que me inteirasse do trabalho que elas estão a desenvolver.

Foi o que fiz. Numa primeira visita de imediato vislumbrei o alcance enorme,

do ponto de vista social, do trabalho que as Irmãs desenvolvem. Visitei as

instalações onde a Irmã Francisca pretende pôr em prática as suas ideias:

ministrar em simultâneo 4 cursos de formação profissional, com a duração

de cinco meses cada um. As áreas cobertas são a panificação, a costura, a

computação e a electricidade. Dar mais dignidade à vida de algumas famílias

é o principal objectivo destes cursos. Que imaginação é necessário ter para,

num espaço tão pequeno, implementar ideias de alcance social tão grande.

O trabalho desenvolvido pela Irmã Elliene tem como principal objectivo

ocupar os tempos livres das crianças e dar-lhes voz para poderem fazer

ouvir os seus anseios e as suas mágoas, entre outras o não reconhecimento

dos seus direitos. MAC – Grupo Crianças Unidas, Movimento de Adolescentes

e Crianças, assim se chama o movimento por ela liderado.

Em segunda visita que fiz ao MAC, fui acompanhado da minha amiga Bia,

vila-realense tal como eu, que me confessou ter ficado deslumbrada e

positivamente surpreendida com a alegria e o entusiasmo com que fomos

recebidos por todas as crianças. Depois de uma canção de boas vindas, a

Page 163: Um Olhar (Atento) sobre Timor

156

Irmã Elliene deu a palavra às crianças que, com um ritmo bem célere, nos

comunicaram o constante atropelo e o não reconhecimento dos seus

direitos. Sem excepção, todas elas exteriorizaram a mágoa que sentem por

isso. A começar pelos pais e a acabar nos professores timorenses, todos

contribuem para que elas não tenham o tratamento que lhes é devido.

A Clarisse que “quer um Timor melhor, que todos os timorenses sejam

unidos e dêem as mãos”; o Natalino que diz que os professores “batem para

educar e pergunta se nós concordamos com este tipo de educação”; a

Suzete que falou do problema que por vezes invade as famílias quando os

pais são de partidos políticos diferentes, situação que se passa em sua

casa”; a Paula que pede “para que o governo olhe para as crianças que

trabalham na rua, na venda de produtor vários, que ponha as escolas

gratuitas para todos”; a Jaquelina que se diz “muito contente com a

conquista da independência mas muito triste pela situação de fome que se

está a viver, pelas crianças que não vão à escola porque precisam de

trabalhar”; a Solange e a Hermínia que falaram do “programa de rádio que

todos fazem para a Rádio Timor Leste onde cantam, dançam, fazem

entrevistas, etc.”; a Augusta que diz que “as crianças lutam pelos seus

Page 164: Um Olhar (Atento) sobre Timor

157

direitos e que os adultos não as respeitam”; a Mónica que fala na “carta dos

seus direitos e que os professores timorenses os castigam por no programa

de rádio chamarem à atenção da violência que é exercida sobre eles”; o

Maximino que agradeceu, em nome de todos, a nossa presença, frisando

que “quer aprender connosco e, (porque não?) ensinar-nos tudo o que ele

sabe” da vida difícil e madrasta que muitas crianças têm em muitas partes

do mundo. A Estefânia, a Júlia, o Avelino e tantos outros que, diariamente,

comparecem voluntariamente, com a alegria de quem vai para um local

onde os seus direitos lhe são reconhecidos, podem fazer ouvir a sua voz e

onde eles são o pólo de todas as atenções da Irmã Elliene e da Cármen,

professora portuguesa a trabalhar para o Instituto Camões que, do tempo

que rouba aos seus tempos livres, dá apoio na tarefa de ocupar e ensinar a

língua portuguesa a todas estas crianças.

Tudo isto que lhes estou a contar deve-se à minha condição de membro do

Rotary Clube de Vila Real. É nisto que entronca a grandeza destes

movimentos. Fazer bem sem olhar a quem, é lema do movimento rotário

que tem um alcance universal. Nesse espírito vamos procurar boas vontades

no sentido de arranjar padrinhos para estas crianças. As responsabilidades

são as inerentes ao papel de padrinho nomeadamente assegurar a

frequência da escola. A contrapartida é enorme: o amor de crianças que

muito têm para dar.

VISITA À ESCOLA AMIGOS DE JESUS

A Escola de Santo Inácio, Amigos de Jesus, não dirá muito aqueles que me

lêem. No entanto se lhes disser que se trata da escola do Padre João

Felgueiras a situação, por certo, se altera. Quem não conhece este padre

jesuíta que, apesar dos seus oitenta e tal anos de idade, mantém uma

lucidez de espírito e uma fluência no pensamento que provoca inveja a

muitos? E a sua obra em Timor? Desde há 32 anos, começando em Soibada,

Page 165: Um Olhar (Atento) sobre Timor

158

luta pela dignificação dos timorenses, dando-lhes oportunidades de se

apetrecharem cultural e tecnicamente, através da criação de bolsas que já

permitiram que, sem exagero, alguns milhares de rapazes e raparigas

estudassem, para assim poderem ter melhores condições de vida na

companhia dos seus familiares.

Com muito gosto visitei esta escola, cuja existência conhecia desde o ano

passado. Trata-se de instalações provisórias que, tão depressa quanto o

Padre Felgueiras consiga reunir os meios financeiros necessários, passará a

funcionar em terreno contíguo à casa dos jesuítas, já adquirido para o efeito

e com projecto de arquitectura aprovado. A minha visita, na companhia da

colega Fátima, bem conhecedora das iniciativas do Padre Joao Felgueiras,

provocou, naturalmente, o alvoroço de toda a pequenada. Comentava a

minha colega que “os miúdos são iguais em todo o lado”: a mesmo

vivacidade, o mesmo entusiasmo, o mesmo olhar penetrante e denunciador

das privacidades que muitos passam, mas também da esperança num futuro

melhor.

A escola actual é composta por 6 salas, construídas em madeira, abertas

lateralmente, com todos os inconvenientes que isso implica a começar pela

falta de privacidade de alunos e professoras. Em cada turma há entre 30 e

40 alunos que vêm, diariamente, dos vários bairros de Díli. O terreno é

cedido gratuitamente por um cidadão a viver na Austrália. Num país onde o

ensino não é ainda gratuito, muitas destas crianças não teriam a

oportunidade de aprender a ler e a escrever se não existissem escolas como

esta. Além da tarefa de ensinar, aqui aprendem os seus direitos que, como

já mais de uma vez escrevi, são constantemente atropelados.

Tem 20 Professoras, 12 a trabalhar exclusivamente aqui, num regime

denominado de voluntariado, e 9 são professoras do estado. A directora é a

Professora Maria de Fátima Corte Real, professora do Ensino Oficial. Este é

um requisito a que as escolas particulares têm que obedecer para poderem

funcionar: a Directora tem que ser professora do Ensino Oficial.

Page 166: Um Olhar (Atento) sobre Timor

159

Está estabelecido um funcionamento por turnos, um entre as 7H30m e as

10H30m, para o 1º e 2º Ciclo, outro entre as 7H30m e as 12H30m, para o

6º Ano e, finalmente, um terceiro entre as 10H30m e as 15H00m

As Senhoras Professoras contavam-nos, com a satisfação do dever cumprido

bem estampada no rosto, que os seus alunos, nas provas finais já

realizadas, obtiveram muito boas classificações destacando-se o Português e

a Religião e Moral. Aliás o Português foi a disciplina onde os resultados

foram melhores ao nível das várias escolas de Díli. A escola de Santo Inácio

representa a capacidade empreendedora das instituições religiosas que, a

par de outras, substituem o estado, mais vezes que o desejável, naquilo que

é uma obrigação deste, consequência do direito que todos os cidadãos têm

a levar uma vida com dignidade. Aquando da visita tive oportunidade de ver

as várias salas de aula onde decorriam algumas actividades, próprias de um

final de ano lectivo e, portanto, já desenvolvidas com a descompressão

natural de quem cumpriu o seu dever. Assim, não espanta que numa das

salas os alunos estivessem cantando uma canção que, por me parecer

Page 167: Um Olhar (Atento) sobre Timor

160

interessante, a seguir transcrevo: A escola tem mais encanto; Na hora da

despedida; E por lhe queremos tanto; Nunca mais será esquecida

Só restam dela saudades; E as doces recordações; E esta tão grande

amizade; Cá dentro dos corações

Assim termino esta conversa convosco. Desde aqui bem longe de Portugal,

onde o Padre Felgueiras se encontra a recuperar forças, lhe envio uma

saudação muito especial pois, conhecendo tudo o que tem feito por Timor e

pela preservação da língua portuguesa nestas paragens, nunca é demais

felicitá-lo embora saiba que tudo o que ele faz por Timor o faz com alegria e

prazer.

Page 168: Um Olhar (Atento) sobre Timor

JANEIRO/FEVEREIRO – 2006

CORRESPONDÊNCIA DE TIMOR

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163

CORRESPONDÊNCIA DE TIMOR

Mais uma vez me encontro em Timor a falar com os leitores de A Voz de

Trás-os-Montes. Depois de uma viagem atribulada que começou com um

atraso de um dia, na partida do Porto, devido a avaria no avião e culminou

com o atraso das malas, aqui me encontro de novo num espírito de missão.

Pode parecer excessivo, nos tempos em que o egoísmo faz parte do dia a

dia de muitos, chamar missão a esta minha colaboração. No entanto devo

dizer que assim é. Timor e os timorenses precisam muito da cooperação de

todos, muito em especial dos portugueses. Não nos esqueçamos que a

nossa presença nestas terras do sol nascente vem de há algumas centenas

de anos. É certo que deixámos algumas marcas da nossa presença, mas é

legítimo questionar-nos se teríamos feito tudo o que era nossa obrigação.

Sendo Timor uma nação que tem tanto de jovem como de pobre, é com

muito agrado que leio nos jornais locais e ouço na televisão o regozijo das

autoridades timorenses no acordo que estabeleceram com a Austrália no

que ao petróleo diz respeito. Oxalá Deus ilumine a consciência dos actuais e

futuros governantes para que sejam todo os timorenses a beneficiar dessa

riqueza natural com que Ele próprio os brindou. Experiências noutros países

não são muito encorajadoras no que a essas expectativas respeita.

Infelizmente há muitos exemplos, maus no meu ponto de vista, que

aconselham muita prudência. Faço votos que em Timor sejam todos a tirar

proveito dessa riqueza de modo a que a qualidade de vida dos timorenses

melhore significativamente para podermos ver as pessoas a viverem com a

dignidade a que qualquer ser humano tem direito.

Acabado de chegar já deu para notar alguma diferença. O edifício na

esquina da praceta João Soares, bem junto à universidade, foi objecto de

Page 171: Um Olhar (Atento) sobre Timor

164

uma intervenção e está agora ocupado pelo Museu da Resistência. Logo

que o visite reservar-lhe-ei algumas palavras num próximo texto.

A FUP - Fundação das Universidades Portuguesas, em parceria com a UNTL

– Universidade Nacional de Timor Leste, arrancou este ano lectivo com o

curso de Direito. A exemplo do que se passa com os outros cursos já no

terreno, este é leccionado por docentes vindos de Portugal e decorre no

âmbito da cooperação portuguesa. O seu arranque deu-se no dia 16 pela

manhã, pelo que não tive oportunidade de assistir à sessão solene de

abertura. Tive muito pena porque teria sido uma óptima oportunidade para

conviver com algumas das personalidades timorenses mais conhecidas,

incluindo ministros, secretários de estado, o Presidente Xanana Gusmão e

muitos outros ilustres timorenses incluindo o Professor Benjamim Corte

Real, actual Reitor e pessoa com quem tenho um relacionamento bastante

cordial. Devo dizer que se tratou de um acontecimento muito badalado aqui

em Timor. Se lhes disser que entre os alunos se encontram várias

personalidades do meio político e social de Timor, como um ministro, o

presidente da Assembleia Nacional e muitos outros, facilmente

compreendem que este acto tivesse despertado tanta atenção. O que

Page 172: Um Olhar (Atento) sobre Timor

165

moverá tais pessoas a “correr” para um curso superior de direito? Estou

certo de que muitas delas pensam apenas na sua valorização pessoal e na

possibilidade de ter novas oportunidades a outros níveis, que agora não

têm. A ser assim aplaudo a sua decisão pela coragem e determinação

demonstrada pois não é fácil, com a vida mais ou menos estável, tomar

decisões destas.

Uma informação da qual já tinha conhecimento e que confirmei quando

cheguei foi a de que 200 estudantes timorenses foram estudar medicina

para Cuba, onde permanecerão sete anos, pelo menos. Oxalá tudo corra

bem e de acordo com as expectativas que eles e as respectivas famílias

têm. Oxalá nunca se arrependam desta decisão, que me parece de risco

elevado. Na próxima semana prometo regressar ao vosso convívio.

RTP INTERNACIONAL

Um dos hobies temporários que tenho enquanto estou em Timor é ver a

RTP internacional. Os programas que transmite são, em grande parte,

programas da RTP 2, o que dá, desde logo, alguma garantia de que têm

algum conteúdo. Há, no entanto, alguns programas que são exclusivos para

os portugueses espalhados pelo mundo. É interessante ver o que os nossos

antepassados, do século XX e dos finais do século XIX, representaram no

contexto do desenvolvimento de alguns países. Vem isto a propósito do

Hawai, onde eu não imaginaria o quão importante foi a emigração de

portugueses, predominantemente madeirenses e açorianos, nos finais do

século XIX, para trabalhar nas plantações da cana do açúcar. Tudo

começou quando, o então rei, quis implementar a plantação da cana do

açúcar e não tinha trabalhadores especializados para o fazer. Sabedor de

que na Madeira já se dominava a técnica da produção do açúcar de cana,

resolveu mandar lá um seu enviado para observar como os madeirenses já

conseguiam produzir açúcar de cana em qualidade e quantidade. Não foi

Page 173: Um Olhar (Atento) sobre Timor

166

difícil convencer uns tantos a mudarem-se, muitas vezes com a família, para

terras havaianas. Por norma iam com contractos de três anos, com viagem

e estadia pagas. Aí se encontravam com japoneses, filipinos e outros. De

realçar que os portugueses tinham um estatuto mais elevado que todos os

outros, pois eram considerados especialistas e eram pagos e tratados como

tal. As escolas funcionavam com miúdos de origens várias, mas eram dadas

em inglês o que fazia com que em casa eles fossem os professores dos

pais, de modo a minorar o grande inconveniente de não falarem todos a

mesma língua. Como consequência da presença de tantos portugueses há

hoje muitos pratos portugueses que são muito populares no Hawai, assim

como os enchidos como a morcela e a linguiça, sem esquecer o pão doce. O

facto de muitos destes emigrantes serem católicos fez com que se

construíssem igrejas nas localidades onde existiam as plantações o que fez

com que passassem a comemorar-se as festas do Espírito Santo. Também

na música há muitas influências da nossa presença. A música tradicional

hawaiana tem como acompanhamento a braguinha e o cavaquinho, ainda

que adaptados à sonoridade e melodia da canção do Hawai que parece ser

muito parecida com a nossa. Muitos dos descendentes destes emigrantes

vivem hoje no Hawai, perfeitamente integrados na vida do país que acolheu

os seus antepassados.

Não é por falta de assunto que lhes estou a falar de Timor sobre o Hawai.

Apenas lhes quis mostrar como é importante a presença da nossa televisão

nas casas dos portugueses espalhados pelo mundo. Aqui em Timor a tarefa

de manter viva a língua portuguesa é de todos os dias. A nossa cooperação,

com a ajuda do Instituto Camões e da RTP, desenvolve acções que me

parecem apropriadas à obtenção desse objectivo. Na RTTL – Rádio e

Televisão de Timor-leste passa um programa muito interessante chamado

“Conversas em português”. Exemplifica conversas em português retratando

situações do dia a dia dos timorenses. Há também o Jornal da Noite,

notícias de Timor em língua portuguesa, embora com duração muito curta.

Page 174: Um Olhar (Atento) sobre Timor

167

Parece-me, no entanto, que é um bom ponto de partida para notícias cada

vez mais alargadas, com o passar do tempo.

A cooperação com países do terceiro mundo como é Timor, é muito

baseada em problemas económicos. Se custar dinheiro ao erário público,

vingará aquela que menos custar. Vem isto a propósito do que se está a

passar com a saúde. Neste momento há algumas centenas de médicos

cubanos a exercer a sua actividade em Timor. À parte a competência que

seguramente terão, há o problema da língua que, embora parecida, não é a

mesma. Em entrevista, em português, ao Jornal Diário, dizia o Vice-Ministro

da Saúde(foto) que a cada médico cubano Timor paga 100 dólares. Se for

de um outro país terão que pagar-lhe entre dois mil e quatro mil dólares.

Resulta evidente para onde “cai” a decisão.

A influência cubana estende-se também ao ensino. Parece que virão

algumas centenas de professores cubanos a alfabetizar os timorenses.

Sendo o português uma língua oficial, a par do tétum, a tarefa desses

professores parece-me difícil pois vão ensinar uma língua que não é a deles.

No entanto, as autoridades timorenses estão muito confiantes no êxito

Page 175: Um Olhar (Atento) sobre Timor

168

desta iniciativa pois o Presidente do Parlamento disse, ao Jornal da Noite,

que aprovou a proposta pois conhece bem o método cubano de

alfabetização e está optimista de que esses professores porão todos os

timorenses a falar português em três anos. Ainda que me seja difícil

concordar, cá estarei, se Deus quiser, daqui a três anos para ver os

resultados.

Até para a semana, a partir do país do sol nascente.

O PALÁCIO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Em quase todas as conversas que tenho com quem me lê, o tema da

cooperação está presente. Eu próprio me encontro aqui em Timor no

âmbito de um programa de cooperação, neste caso, das universidades

portuguesas com a Universidade pública de Timor, da qual já tive

oportunidade de falar em conversas anteriores. Para lá da cooperação

institucional do governo português, há várias instituições portuguesas que

se têm distinguido no apoio a este jovem país. A Câmara Municipal de

Lisboa é uma dessas instituições. O resultado da cooperação que, desde

2001 tem tido com Timor, é bem visível quando nos deslocamos pela plana

e muito extensa cidade de Díli. A primeira grande intervenção que levou a

cabo foi a recuperação do antigo Liceu Francisco Sousa Machado, onde hoje

funcionam as Ciências da Educação da UNTL – Universidade nacional de

Timor-leste. É um edifício emblemático de Díli, situado bem no centro da

cidade e na sua zona nobre. A presença de calceteiros de calçada à

portuguesa para ensinar timorenses nessa importante e difícil arte de

embelezar espaços públicos, é uma consequência do empenho que os

vários presidentes têm posto na ajuda a Timor. Neste momento está em

curso aquela que será a intervenção com mais significado político.

Trata-se da recuperação do antigo Palácio do Governador, onde residia até

ao 25 de Abril o Governador de Timor, autoridade máxima da então

Page 176: Um Olhar (Atento) sobre Timor

169

província portuguesa de Timor. Em relação ao edifício original há algumas

alterações nomeadamente no seu interior. A parte que então era uma

residência, hoje vai ser um amplo salão para recepções. Tive oportunidade

de o visitar hoje, pois englobei-o na rota do meu passeio de Sábado. Saí

bem cedo do hotel onde me encontro instalado, em direcção à montanha, a

caminho de Ailéu. Passei pelo antigo matadouro, pelas instalações da

UNOTIL – United Nations Office in Timor Leste, pela igreja de Balide

seguindo em direcção Lahane, zona muito privilegiada pelo clima, onde

antigamente vivia a nata da sociedade timorense e onde estava instalado o

hospital de Díli, hoje apenas maternidade. Chegado ao palácio solicitei uma

visita às instalações, prontamente concedida e guiada pelo Eng.º Luís

Carvalho, responsável pela obra e pelo Arquitecto João Guimarães autor do

projecto. Em relação ao primitivo edifício, a intervenção da Câmara de

Lisboa vai materializar-se na construção de uma habitação contígua para

residência oficial do Presidente da república de Timor-leste, ficando o antigo

edifício para as recepções oficiais. Não tenho quaisquer dúvidas em afirmar

que se trata de mais um resultado da cooperação portuguesa, que muito

Page 177: Um Olhar (Atento) sobre Timor

170

nos deve honrar. Devo acrescentar que o branco, cor original das paredes

do edifício, foi substituído pelo rosa, bem lisboeta e bem portuguesa.

A exemplo do que tem acontecido em estadias anteriores, o Reitor da

UNTL, Professor Benjamim Corte Real, organizou um jantar de

confraternização entre todos os que colaboram com a sua universidade. Lá

estivemos todos os docentes da FUP – Fundação das Universidades

Portuguesas, os docentes do Instituto Camões e uma representação da

Universidade do Minho que aqui se encontrava no âmbito de outro projecto

de cooperação. O contingente português era o maior, logo seguido pelo

brasileiro, o cubano, o neozelandês e o japonês. É muito interessante

constatar a orientação de cada país no que respeita à cooperação. Assim, o

Japão está neste momento muito ligado aos cursos de engenharias a

funcionar em Hera em instalações destruídas pelos indonésios e

reconstruídas por eles. Cuba concentra as suas energias na área da saúde e

do ensino. O Brasil tem a sua maior concentração, tal como nós, no ensino

da língua portuguesa. A acção de todas estas comunidades tem sido

relevante no objectivo de libertar os governantes timorenses para outras

tarefas da governação.

No exercício diário da medicina feito pelos médicos cubanos, tenho tido

referências muito elogiosas em relação ao seu trabalho. A primeira página

do jornal em língua portuguesa “Semanário” é disso um exemplo bem

elucidativo, ao dizer que “os médicos cubanos trouxeram aos timorenses

cuidados de saúde e carinho”. Uma boa contribuição para que o seu

trabalho seja reconhecido

TRÊS MISSIONÁRIOS COM OBRA FEITA

Já por mais de uma vez realcei o papel que os portugueses desempenharam

pelas várias paragens dos quatro cantos do mundo. Hoje vou falar sobre

três deles cujo denominador comum é o facto de serem missionários.

Page 178: Um Olhar (Atento) sobre Timor

171

O padre João de Deus Pires (foto) é transmontano, da freguesia de Morais,

concelho de Macedo de Cavaleiros. Estudou no Seminário de Mogofores,

seguindo depois o trajecto normal de qualquer rapaz que decida ser padre

salesiano. É neto de Maria Joaquina Cordeiro e de José Joaquim Pires e está

há cerca de quarenta e sete em Timor-Leste, para onde veio passados

poucos anos de ser ordenado padre. Tem desenvolvido a sua actividade no

apoio aos mais desfavorecidos, especialmente as crianças órfãs da diocese

de Baucau, onde tem em actividade o Orfanato de Santa Teresinha, na

localidade de Quelicai e outro em Baguia. Estou particularmente à vontade e

feliz por estar a falar-vos sobre este transmontano, por duas razões: a

primeira porque o nosso clube, Rotary Club de Vila Real, apoiou o Orfanato

de Quelicai com a entrega de um gerador eléctrico e de géneros alimentícios

há dois anos; a segunda razão prende-se com os laços familiares que nos

unem.

O Padre José Martins, é salesiano e está em Timor-Leste desde o longínquo

ano de 1975 e tem feito todo o seu percurso por estas terras, lado a lado

com o Padre João Felgueiras, bem conhecido de todos vós, pois já várias

vezes escrevi sobre ele. Os Padres João de Deus e José Martins foram

Page 179: Um Olhar (Atento) sobre Timor

172

condecorados pelo Presidente da República Portuguesa com as insígnias da

Comenda da Ordem de Mérito, em cerimónia realizada na nossa Embaixada

em Díli, no passado dia 10 de Fevereiro e presidida pelo nosso Embaixador

João Ramos Pinto. Estas condecorações tinham sido atribuídas no passado

dia 10 de Junho e foram justificadas pelos serviços que os dois religiosos

prestaram "como cidadãos portugueses, a Portugal e ao povo de Timor-

Leste, no exercício de funções ao serviço da Igreja, do ensino e da

assistência social".

O terceiro missionário de que vos vou falar é o Padre José Afonso Moreira.

Foi ordenado sacerdote a 23 de Dezembro de 1950, em Braga, era

Missionário Espiritano e foi assassinado em Angola, no Bailundo, na terra

que considerava sua e junto das pessoas a quem dedicou mais de quarenta

anos da sua vida. Falo no Padre Moreira porque era natural de Vila Real, era

irmão do Dr Armando Moreira, antigo presidente da Câmara e Governador

Civil e tio do meu colega e amigo Professor Nuno Moreira. Além disso,

apesar de não o conhecer pessoalmente, tive oportunidade de conhecer a

sua obra, numa reunião de aniversário do Lions Club de Vila Real, onde foi

apresentado um projecto seu, muito interessante e muito útil para as

famílias do Bailundo. Tratava-se da angariação de fundos para a compra de

enxadas para serem entregues a essas famílias, para melhor poderem tratar

das suas pequenas hortas. Ideias tão simples com um alcance social tão

grande. Nos países em guerra o dia a dia de muitas pessoas faz-se com

pequenos passos como este. O Padre Toni Neves, porta-voz da congregação

espiritana lamentou a sua e afirmou que “ o Padre Afonso Moreira era uma

referência para todos os que viviam no Bailundo”.

A zona onde o Padre Moreira desenvolvia a sua actividade pastoral foi palco

dos grandes combates durante a guerra civil angolana que culminaram com

a tomada do Andulo e do Bailundo. Nas palavras do director da Rádio

Eclesia “era um padre muito amado pelas populações rurais”. Era o pastor

de uma comunidade católica de cerca de 58 000 pessoas que muito o

Page 180: Um Olhar (Atento) sobre Timor

173

orgulhava. Após ter terminado a guerra nessa zona, aquando da visita do

Embaixador português, já tinha esquecido todas as dificuldades porque tinha

passado e apenas pediu canetas, lápis e outro material escolar para os seus

alunos. Para os professores pediu um livro de leitura.

Com este texto presto a minha homenagem a estes três portugueses cujo

trabalho desenvolvido muito nos orgulha a todos nós.

À família do Padre Moreira, em especial ao Dr. Armando Moreira e ao

Professor Nuno, apresento os meus sentidos pêsames. Que Deus o tenha

em descanso.

HOMENAGEM AO PROFESSOR AGOSTINHO DA SILVA

No dia do centenário do nascimento do Professor Agostinho da Silva teve

lugar no Auditório do antigo Liceu Francisco Sousa Machado, uma sessão

comemorativa organizada pelo Professor José Carlos Oliveira e pelo Dr.

António Borges, ambos docentes da FUP – Fundação das Universidades

Portuguesas e pela Drª Isabel Gaspar, do Instituto Camões, e que foi

apoiada por estas instituições e pela UNTL - Universidade Nacional de Timor

Leste. Foram oradores o Padre Apolinário Guterres, a Drª Flávia Ba,

Directora do Instituto Camões, em Timor e o Dr. António Borges. O primeiro

falou sobre o período em que privou com o professor no Vale do Jamor

onde, então, prestava apoio aos refugiados timorenses que ali se

encontrava, resultado da guerra civil que se instalou em Timor após o 25 de

Abril, seguida da invasão levada a cabo pela Indonésia. A Drª Flávia Ba, fez

um resumo do curriculum do Professor Agostinho da Silva que nasceu a 16

de Fevereiro de 1906 e faleceu a 3 de Abril de 1994. O Dr. António Borges

falou sobre a missão de Portugal nas mensagens de Fernando Pessoa e

Agostinho da Silva.

Em 1929 doutorou-se em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras do

Porto, com a tese “O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, após o

Page 181: Um Olhar (Atento) sobre Timor

174

qual partiu para Paris, como bolseiro, para estudar na Sorbonne e no

Collége de France. Tratando-se de uma pessoa amante da liberdade em

toda a sua extensão, foi afastado de ensino público e obrigado a emigrar

para o Brasil, em 1944, tendo estado também no Uruguai e na Argentina.

Em 1947 regressa ao Brasil para leccionar na Faculdade Fluminense de

Filosofia. Posteriormente vai para docente da Universidade de Paraíba,

ajudando a fundar a Universidade de Santa Catarina, onde criou o Centro de

estudos Afro-Orientais. Em 1962 colaborou activamente na fundação da

Universidade de Brasília e na criação do Centro de Estudos Portugueses.

Timor e Macau cruzaram-se com ele no ano de 1963, após uma visita como

bolseiro da UNESCO ao Japão.

No contacto directo que com ele manteve o Padre Apolinário, o professor

revelou-se uma pessoa simples, conversadora, transparente e amigo.

Apresentava o seu pensamento com uma visão ampla e projectada para o

futuro. Era um poço de sabedoria no dizer do Padre Barros, de Same.

Escrevia regularmente cartas para Timor onde partilhava as suas ideias e os

seus pensamentos. O Padre Apolinário formou, em Lisboa, um Centro de

Page 182: Um Olhar (Atento) sobre Timor

175

Cultura timorense, para apoiar e dar oportunidade aos timorenses para

conviveram e manterem vivas as suas tradições. O professor Agostinho da

Silva solicitou a entrada para o centro, tornando-se seu membro efectivo.

Dizia ele que assim já tinha um local onde podia falar e ouvir falar sobre

Timor. Como idealista que era, o optimismo fazia parte do seu dia a dia. Já

então falava de Timor como se fosse uma nação livre e independente. Na

sua opinião Timor seria um ponto de convergência onde se encontrariam os

falantes da língua portuguesa e castelhana. No dizer do Padre Apolinário,

olhando para a realidade timorense de hoje, o professor tinha razão sobre

aquilo que ele achava que seria o futuro de Timor.

Faleceu sem concretizar um desejo de sempre: regressar um dia a Timor, ir

viver para Tutuala e por lá morrer. Acabou por falecer em Lisboa e não na

terra que ele tinha eleito como a sua última morada. O Padre Apolinário

oficiou o seu funeral para o cemitério do alto de São João.

Dele disse Gilberto Gil, cantor e actual Ministro da Cultura do Brasil, que

“sonhava pelo pensamento e pensava pelo sonho”. Era uma personalidade

muito controversa pelas suas opiniões e, por isso, amado por muitos, mas

criticado por outros. Uma sua antiga aluna, no documentário que sobre ele

apresentou a RTP internacional, dizia que nas aulas do professor, eram

tratados todos os temas, sem excepção e, muitas vezes, ficavam para trás

os temas da disciplina em questão.

Com este texto presto a minha homenagem ao professor Agostinho da

Silva, que apenas recordo das “Conversas Vadias” que ele protagonizou na

Televisão e que tinham como singularidade o facto de não serem objecto de

qualquer programação prévia, ou seja, eram feitas de improviso e com

temas aleatórios. Para terminar aqui fica um poema seu: Eu não quero ter

poder; Mas apenas liberdade; De falar aos do poder; Do que entenda ser

verdade.

Page 183: Um Olhar (Atento) sobre Timor

176

VISITA DO DR. JORGE SAMPAIO A TIMOR

O texto de hoje vai ser dedicado à visita do nosso Presidente da República,

Dr. Jorge Sampaio. Coincidência ou não, no seu segundo dia em Timor,

realizou-se o iudicium académico, uma cerimónia de preparação para a

graduação dos alunos, ou seja, para a concessão do grau de licenciado. O

Professor Doutor Benjamim Corte Real, Reitor da UNTL – Universidade

Nacional de Timor Losae, realçou o papel de Jorge Sampaio no processo

que conduziu à independência de Timor e aproveitando a sua presença

destacou o papel da nossa cooperação na área do ensino superior

consubstanciada na graduação de mais de cem alunos dos cursos

ministrados pela FUP – Fundação das Universidades Portuguesas.

O Dr. Jorge Sampaio agradeceu à UNTL o convite que lhe foi dirigido para

estar presente numa cerimónia com grande significado para Timor pois é a

primeira que se realizou desde que Timor se tornou independente. Mostrou-

se muito sensibilizado pelas palavras que lhe dirigiu o Reitor e mostrou

satisfação pelo apoio que a FUP e o Instituto Camões têm prestado na

divulgação do português. A recente constituição da Faculdade de Direito da

UNTL que arrancou com o curso de Direito ministrado pela FUP no âmbito

da cooperação portuguesa, é mais um exemplo do empenho que Portugal

tem posto no apoio a Timor. A criação deste curso deu-lhe um prazer a

dobrar pelo facto de ser jurista e pelo papel que a aplicação da justiça tem

na evolução de qualquer país. Manifestou o seu apreço a todos os

portugueses que, com o seu trabalho, têm assegurado o ensino da língua

portuguesa

Ele que sempre lutou pela instalação da democracia pluralista em Portugal,

chamou a atenção de todos para as dificuldades acrescidas na consolidação

dos organismos democráticos. Fez um voto de confiança na instalação da

democracia em Timor e referiu o papel da comunidade internacional que

sempre reconheceu aos timorenses o direito à independência. Disse que

Portugal não tem qualquer interesse material nem imperialista em relação a

Page 184: Um Olhar (Atento) sobre Timor

177

Timor. Os timorenses devem decidir livremente o seu destino. É nisso que

Portugal se empenha. Aconselhou os responsáveis políticos timorenses a

evitar os escolhos provocados pelos conflitos e pela instabilidade

consequência, quase sempre, da existência de governos não transparentes.

Enfatizou algumas ideias que podem servir de orientação para a definição

das políticas correctas que conduzam à criação de condições que permitam

uma vida condigna a todos. É preciso não esquecer que assim como a

riqueza gera mais riqueza também a pobreza gera mais pobreza. Também o

conceito de desenvolvimento deve estar presente no momento da tomada

de decisões que não se resume ao crescimento económico, embora este

seja fundamental, mas com instrução e respeito pelas normas da

democracia e dos direitos humanos. Aproximam-se tempos de grandes

exigências, mas com sabedoria e sentido de responsabilidade as

autoridades timorenses saberão ultrapassá-los. A cerimónia terminou com a

imposição das insígnias do Grau de Comendador da Ordem de Mérito ao

Professor Benjamin Corte Real pela defesa e empenho que tem posto na

implantação da língua portuguesa em Timor.

Page 185: Um Olhar (Atento) sobre Timor

178

Da parte da tarde seguiu-se a visita à Escola Portuguesa, após uma

passagem pelo cemitério de Santa Cruz onde o Presidente Sampaio depôs

uma coroa de flores em homenagem aos mortos de 12 de Novembro de

1999. A Escola portuguesa tem quatro anos de existência, tem vinte e

quatro professores portugueses e é frequentada por cerca de quatrocentos

alunos, a maioria dos quais é timorense. Tem dado uma grande

contribuição para a introdução e consolidação da língua portuguesa em

Timor sendo, alas, um dos 3 pilares da cooperação portuguesa. O seu êxito

deve-se à dedicação do seu corpo docente e da Subdirectora, a professora

Ana Maria Ferreira. Jorge Sampaio considerou-a mesmo um

estabelecimento exemplar e felicitou a comunidade educativa que ali exerce

a sua actividade docente pela qualidade do trabalho desenvolvido e o

esforço que têm posto na implantação da língua portuguesa. Na ocasião o

Dr. José Revez, responsável pela cooperação portuguesa em Timor e

responsável da Escola Portuguesa, foi agraciado com Grau de Comendador

da Ordem de Mérito, premiando o modo como tem desempenhado as

tarefas inerentes ao lugar que ocupa. No final da visita houve uma reunião

informal com os vários docentes a leccionar em Timor, tendo o Presidente

Sampaio aproveitado o momento para realçar publicamente o trabalho que

todos têm desenvolvido em Timor em prol da consolidação da língua

portuguesa.

A visita terminou com uma recepção no Hotel Timor.

DOUTORAMENTO HONORIS CAUSA DE XANANA GUSMÃO

A atribuição de doutoramento honoris causa ao Presidente de Timor Leste,

Kay Rala Xanana Gusmão foi, pode dizer-se, um acontecimento de âmbito

nacional. A presença das autoridades civis, militares e eclesiásticas é disso

prova inequívoca. Foi a primeira vez que uma cerimónia destas se realizou

neste jovem país, pelo que a importância de que se revestiu foi ainda maior.

Page 186: Um Olhar (Atento) sobre Timor

179

Foi uma cerimónia simples, mas de grande significado para a UNTL –

Universidade Nacional de Timor Leste. Apenas estiveram presentes, para lá

do laureado, os reitores das duas universidades, a de Takushoku, que

concedeu o grau e a UNTL. O Professor Benjamin Corte Real agradeceu a

presença de todos num “momento importante para todos os timorenses em

geral e para o mundo académico em particular”. O reitor da universidade de

Takushoku justificou a atribuição deste elevado grau académico a Xanana

Gusmão porque “com a sua liderança destacada conseguiu levar Timor à

independência e contribuiu muito para a estabilização da Ásia e para a paz

mundial. É imensamente respeitado e estimado em muitos países e

contribuiu bastante para o estabelecimento de relações diplomáticas entre o

Japão e Timor Leste e promoveu as relações amistosas entre os dois

países”. A universidade de Takushoku, já centenária, tem tido sempre como

preocupação “formar pessoas capazes de se dedicarem à causa da paz e

prosperidade das sociedades internacionais” pelo que o seu reitor referiu “a

grande honra em conferir o título de doutor honoris causa a personalidade

tão ilustre, homenageando as suas actividades altamente meritórias”

estando certo de que com este título “ se tornarão cada vez mais fortes os

laços de amizade entre o Japão e Timor”.

O Presidente Xanana deu à sua dissertação de doutoramento o título “

Timor-Leste, um jovem estado – o peso do passado e os desafios do

futuro”. Começou por realçar que “a construção física de qualquer país

depende essencialmente de três factores: um plano concreto e claro de

desenvolvimento; recursos humanos habilitados e muito dinheiro”. Quem

conhece Timor facilmente conclui da dificuldade imensa que os seus

governantes têm tido e continuarão a ter no futuro. Pelo menos os dois

últimos factores Timor ainda não tem. O primeiro pode ser que sim.

Na opinião de Xanana “a edificação dos pilares da Nação já pressupõe o

compromisso político sobre valores democráticos e a participação consciente

da sociedade e do povo”. Disse também que “há que perceber o sentimento

Page 187: Um Olhar (Atento) sobre Timor

180

e a reacção da colectividade ou parte dela, há que estudar o pensamento e

as atitudes da sociedade ou parte dela, inseridos num contexto temporal

capaz, que permita fundamentos lógicos de análise”. Para transmitir as suas

ideias, leu a sua dissertação em português e em tétum o que demonstra a

importância que dá à língua portuguesa como língua oficial de Timor, e

dividiu-a em três partes: a história, a liderança e o poder, a sociedade e o

futuro.

Da longa dissertação permito-me destacar alguns pontos que considero os

mais importantes. O primeiro é o de que “o estado de Timor é um estado de

direito democrático e tem que ser baseado na vontade popular e respeitar a

dignidade humana”. A determinada altura referiu-se à confusão que muitos

fazem entre ditadura e comunismo que muitas vezes não têm nada em

comum. Deu como exemplo o ex-Presidente da Indonésia Suharto que tinha

tanto de ditador como de anticomunista. Advertiu para a tentação que

muitos têm de “considerarem o partido como algo de sacrossanto que não

se pode ofender”. Em Timor, de certo modo, isso passou-se quando esteve

sob o domínio indonésio e era, então, considerada a sua 27ª província.

Page 188: Um Olhar (Atento) sobre Timor

181

Alguns que recebiam benesses do partido do poder, veneravam-no e

impunham os seus próprios interesses em prejuízo dos interesses do povo.

No final da sua intervenção referiu-se ao facto de “a democracia ser um

processo mais lento ou menos lento, dependendo isso do esforço de todos”.

Oxalá, acrescento eu, que os timorenses saibam canalizar muito do seu

saber e do seu trabalho para que Timor se torne um exemplo de um jovem

país que atingiu a democracia pelo seu próprio pé.

A cerimónia, muito diferente das cerimónias do mesmo tipo a que estamos

habituados a ver em Portugal, terminou com a actuação de um grupo

musical local que cantou poemas de Xanana, dos quais destacaria o

seguinte: Pudesse eu Sentir nos dedos O beijo da espuma e ouvir risos De

crianças.

Concluída a cerimónia seguiram-se as felicitações ao novo doutor, por todos

os presentes. A simplicidade, a simpatia e a boa disposição do Presidente

Xanana ficaram aqui bem patentes. Sem dúvida que é um presidente muito

querido pelo seu povo.

5º ANIVERSÁRIO DO MAC – CRIANÇAS UNIDAS

No passado dia 27 de Fevereiro o MAC – Crianças Unidas completou cinco

anos de vida. A Irmã Eliene Damasceno, Dominicana brasileira, lançou as

sementes do que hoje é um movimento com provas dadas no

acompanhamento de adolescentes e crianças, com predominância

originárias de Taibessi, Balide e Bécora. O trabalho desenvolvido por este

movimento tem sido muito importante na ocupação dos tempos livres de

algumas centenas de adolescentes que, de outro modo, estariam à mercê

de muitas solicitações que, muitas vezes, os levam a desviarem-se daqueles

que são considerados comportamentos normais.

A fundadora do movimento, por razões que têm a ver com as regras de

funcionamento da instituição a que pertence, teve que regressar ao Brasil o

Page 189: Um Olhar (Atento) sobre Timor

182

que trouxe, como consequência, a necessidade de fazer alguns ajustes na

sua organização e funcionamento. Neste momento asseguram o regular

funcionamento algumas pessoas de boa vontade entre as quais destacaria a

Professora portuguesa Dulce Barão.

Correspondendo ao convite que me foi formulado, lá compareci nas actuais

instalações, na companhia de um colega, também docente da FUP –

Fundação das Universidades Portuguesas. A azáfama dos intervenientes da

festa já era grande e pressupunha que iríamos assistir a uma festa com a

qualidade das que já assistíramos anteriormente. Entre os presentes

estavam vários elementos da cooperação do Brasil destacando-se o

responsável por essa cooperação, acompanhado da esposa e de outras

pessoas que, de um ou de outro modo, colaboram nas actividades do MAC,

destacando-se, entre todos, o António Osório, Procurador em Baucau e

esposa.

A festa teve como apresentadores o Natalino e a Estefânia que, mesmo sem

serem profissionais, tudo fizeram para que tudo decorresse como o

previsto. O Natalino começou por saudar todos os presentes fazendo, de

seguida, um historial do que foi o movimento desde o seu nascimento até

Page 190: Um Olhar (Atento) sobre Timor

183

hoje. Realçou o facto de tudo ter começado só com a Irmã Eliene,

alargando-se o número de colaboradores à medida que o trabalho

desenvolvido ia dando frutos. As actividades desenvolvidas têm sido as mais

variadas destacando-se a dança a psicologia, a rádio, a capoeira, a

ginástica, as artes plásticas, o desenho, a pintura e outras.

Em nome dos colaboradores falou o António Osório que destacou o papel

que o MAC tem desempenhado no acompanhamento de todos os jovens

que a ele pertencem. A mim foi-me pedido que falasse em nome dos

padrinhos de Portugal e do Rotary Club de Vila Real, que muito os têm

ajudado. Destaquei o modo como a Irmã Eliene incutiu nos jovens o espírito

de responsabilidade e liderança. Sem dúvida que bastava assistir a esta

festa para ver como todos são responsáveis e cientes de que o se

desempenho e postura são indispensáveis à credibilização do seu

movimento. Em nome dos pais falou a Senhora Filomena, mãe da Suzete

que agradeceu a todos os que têm ajudado o MAC, mas destacou a

importância que a Irmã Eliene teve na educação e formação de todos os

jovens que o frequentaram desde a sua fundação até agora.

O Hino nacional de Timor foi a canção que abriu a festa. Seguiram-se

outras das quais destacaria duas: a primeira que serviu para homenagear a

Irmã Eliene e a segunda para homenagear a Joana que faleceu no passado

dia 27 de Dezembro, afogada numa vala a cerca de cem metros de sua

casa. Foram dois momentos de grande significado para todos os presentes

em especial para a Irmã Eliene e para a mãe da Joana. As duas

homenagens tiveram em comum a emoção que se instalou nos presentes,

em especial nos que interpretavam as canções. Com um retrato da Irmã

Eliene bem agarrado ao coração e à vista de todos cantaram uma canção

brasileira das muitas que ela lhes ensinou. No caso da Joana, a canção

“Amigos para sempre”, serviu para todos mostrarem que, ainda que

ausente fisicamente, a Joana está presente no pensamento de todos. Para

mim constituiu um momento de profunda tristeza pois conhecia a Joana

Page 191: Um Olhar (Atento) sobre Timor

184

desde a primeira visita que fiz ao MAC, em Junho de 2002 e era uma das

minhas afilhadas.

Terminada a intervenção do grupo de danças e cantares seguiu-se um

pequeno lanche para todos os presentes.

O MAC tem sido um movimento que muito tem feito pela dignificação dos

jovens de Díli. Tem desenvolvido actividades que vão desde actuações de

dança e música até à gravação de dois DVDs de música. Durante algum

tempo tiveram também um programa na Rádio Nacional de Timor Leste

onde os direitos das crianças eram o assunto principal. Trata-se de um

movimento que deve ser ajudado, mesmo pelas autoridades nacionais

timorenses, pois a sua acção muito ajuda as instituições públicas a apoiar

os jovens no seu desenvolvimento.

A presença do Presidente Xanana na parte final da festa pode considerar-se

como o reconhecimento da importância do movimento. Todos os que

contribuem com o seu esforço diário para que tudo corra bem, agradecem a

sua presença. Termino transcrevendo as palavras que o Presidente deixou

no livro de honra: “Muito satisfeito por vir hoje ao Centro do MAC e muito

impressionado com as actividades desenvolvidas aqui pelas crianças e pelos

pais e Conselheiros que têm participado num regime voluntário e generoso.

Dou os parabéns pelo 5º Aniversário do MAC – Crianças Unidas e faço votos

de muito boas realizações no futuro. Não me esquecerei de explorar as vias

que se apresentarem para dar um apoio mais concreto a esta magnífica

iniciativa”.

APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE PAULO BRAGA

No dia 2 de Março, às 18H00,no auditório da Fundação Oriente, foi

apresentado o livro de José Paulo de Oliveira Braga sobre os anos que

passou em Timor, nos já longínquos anos de 1930 a 1932. O meu interesse

na publicação deste texto é acrescido pelo facto de o autor ter nascido em

Page 192: Um Olhar (Atento) sobre Timor

185

Vila Real, no dia 29 de Junho de 1905. Frequentou o Liceu Camilo Castelo

Branco tendo prosseguido os estudos na Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa. Ainda muito novo, em 1931, foi deportado, por

razões políticas, pois defendia ideais socialistas, para a então província

ultramarina de Timor, onde permaneceu até 1933. Durante a sua estadia

forçada em Timor, para conseguir proventos para a sua subsistência,

exerceu a profissão de professor do ensino particular. Tratando-se de uma

pessoa com cultura acima da média, podendo considerar-se um erudito,

facilmente se compreende que a realidade timorense lhe não passasse

despercebida. Teve sempre uma atenção especial ao modo de vida e aos

costumes dos timorenses pelo que, após o seu regresso a Portugal, entre

1935 e 1937, publicou vários textos a que chamou “Cadernos Coloniais”

onde versou vários temas alusivos a Timor destacando-se os aspectos

económicos, os políticos e os sociais. Em consequência do seu ideal

socialista todos estes textos tiveram que ver com o desenvolvimento de

Timor, com o bem estar dos timorenses, pugnando por uma distribuição da

riqueza mais justa e equitativa, e pela chamada de atenção para a

observância dos direitos políticos de cada um. Nos seus escritos esteve

sempre presente a crítica às instituições oficiais e à política administrativa

que então vigorava em Timor.

O título do livro, da responsabilidade do editor, é bem demonstrativo daquilo

que ele pensa sobre Timor. Nada melhor que “País de Sonho e

Encantamento” para traduzir o que pensam muitos dos que aqui chegam,

em passeio ou em trabalho. Quem aqui vem dificilmente deixará de

regressar tal é o chamamento e a atracção que estas paisagens exercem

sobre todos.

O livro é dividido em cinco capítulos, cada um correspondendo a um

Caderno. No primeiro fala sobre “a terra, a gente e os costumes”. Na

introdução que fez a este Caderno fala sobre “a mais distante e

desconhecida colónia de Portugal”. Os aspectos da vida indígena de então, o

Page 193: Um Olhar (Atento) sobre Timor

186

contraste entre a vida calma e descontraída que aqui se tem quando

comparada com a vida ruidosa e conturbada de Portugal. A descrição que

faz sobre os bazares (mercados), umas vezes instalados em edifícios, alguns

monumentais como é o caso do de Baucau, outras vezes à volta dos

gondoeiros(foto), enormes árvores com uma copa com um diâmetro de

muitos metros, é bem demonstrativa da importância que tinham no

desenrolar da vida dos timorenses. Ainda hoje isso acontece. Basta passar

pela marginal de Díli, em frente à antiga intendência em direcção à areia

branca, para constatar que ainda hoje se transaccionas as mais diversas

mercadorias à sombra dessa árvores.

No Capítulo segundo faz uma síntese da vida timorense. No Capítulo

terceiro, a que chamou “nos antípodas” fala sobre as mulheres timorenses,

a sua vida, o casamento e o divórcio, as lutas de galos e as árvores que

povoam o território.

No Capítulo quarto fala da “ilha dos homens nus”, conhecida por Atauro e,

também, ilha das cabras.

Page 194: Um Olhar (Atento) sobre Timor

187

O Capítulo quinto dedica-o à descrição da vida e paisagem de Timor, em

particular sobre Ermera, terra onde se produz o melhor café de Timor.

Terra entre montanhas de onde se avista o pico do Ramelau. Para quem se

interessa por Timor tem aqui um bom meio de conhecer mais sobre este

jovem país e sobre as suas gentes.

O editor desta obra é o Dr. Rui Fonseca que tem dedicado muitos dos seus

anos a Timor onde tem desenvolvido uma actividade de cooperação digna

de realce. Conheci-o na minha primeira vinda a Timor, em Novembro de

2001. Foi ele que me deu as primeiras informações sobre estas terras,

sempre tão longe de Portugal. Talvez por isso quase sempre esquecidas pelo

poder instituído em Portugal. A sua atenção permanente e atenta a tudo o

que nestas terras se passa, fez com que o Dr. Rui Fonseca tenha editado até

hoje vários livros sobre a vida e a história de Timor. O facto de ter estado

aqui como militar português nos tempos de administração portuguesa dá-lhe

uma visão privilegiada sobre tudo o que aqui se passa. A ele o meu muito

obrigado pela oferta que me fez de um exemplar deste livro.

Page 195: Um Olhar (Atento) sobre Timor

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AGRADECIMENTOS

Com este livro pretendo homenagear o povo de Timor. Desde

Novembro de 2001 tenho dedicado parte da minha vida a

leccionar em Timor. Tenho-o feito com muito empenho e com

a convicção de que é minha obrigação, enquanto cidadão

responsável, contribuir para que Timor e os timorenses

caminhem com segurança em direcção ao futuro, tanto deles

próprios como do seu país.

Espero que o meu testemunho e o olhar atento com que sempre

vi Timor e os timorenses, contribua para despertar noutros o

interesse por esta terra e estas gentes.

Agradeço ao CRUP – FUP – Conselho de Reitores das

Universidades Portuguesas - Fundação das Universidades

Portuguesas a oportunidade que me deu para leccionar e

coordenar o curso de Electrotecnia.

O meu agradecimento vai também para todos os que têm

contribuído para o sucesso deste projecto, em que tenho estado

inserido, assim como para todas as pessoas e instituições que

permitiram que este livro fosse publicado.