Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche ao ... · assim irrompe. Esta intuição...

24
www.lusosofia.net Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche ao niilismo Américo Pereira 2010

Transcript of Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche ao ... · assim irrompe. Esta intuição...

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

www.lusosofia.net

Um mundo que teima em

morrer: A crítica de

Nietzsche ao niilismo

Américo Pereira

2010

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

Covilhã, 2010

FICHA TÉCNICA

Título: Um mundo que teima em morrer: A crítica de Nietzsche ao

niilismo

Autor: Américo PereiraColecção: LUSOSOFIA:PRESS – EnsaiosDirecção: José M. S. Rosa & Artur MorãoDesign da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: José M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2010

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

Um mundo que teima em morrer:

A crítica de Nietzsche ao Niilismo

Américo PereiraUniversidade Católica Portuguesa

1 A matriz da posição teórica de

Nietzsche: o par Dioniso-Apolo

Contrariamente ao que uma apressada vulgata insiste em afirmar,Nietzsche é fundamentalmente um pensador da positividade on-tológica. Na matriz de seu pensamento, desde sempre e man-tida em absoluta fidelidade, está a intuição, que prossegue umatradição tão remota quanto a mesma caminhada semântica da hu-manidade, acerca de um absoluto ontológico, a que nada podefazer obstáculo, que se impõe como forma espontânea irruptiva

totalmente incondicionada, absolutamente livre, de manifestação

de pura presença vital, independentemente de qualquer atitude ouposição humana, a favor ou contra.

Radica nesta independência – verdadeiramente metafísica – damatriz ontológica de tudo, a por si proclamada inanidade de qual-quer moral ou outra qualquer forma normativa – não natural, cul-tural, portanto – de condicionamento ontológico do que se man-ifesta. A posição de crítica radical aos fundamentos da culturanasce, em Nietzsche, deste sentido de uma total impossibilidade

5

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

6 Américo Pereira

real, isto é, não ilusória, de moralização da força vital de que tudonasce, que tudo justifica, no que é, como é, sem mais.

Assim sendo, para Nietzsche, há uma infinita e irrepressívelforça ontológica, que constitui não apenas a matriz deste mundo,tal como manifesto, mas de todos os possíveis mundos manifestáveis,de todos os possíveis seres, individual ou universalmente consider-ados. Esta força matriz fundamental, e apenas ela, justifica que hajaalgo e não o nada: em aparente paradoxo com toda uma cosméticapromocional de sua obra, propositadamente adversa a uma formatradicional de pensar, a posição metafísica central de Nietzsche é,ainda, uma posição clássica, no que à compreensão fundamentalda relação do ser como o nada diz respeito. O modo de manifes-tação dessa posição é que é muito diferente, para mais oculto numalinguagem poética de grande beleza.

Só que a posição profunda, por detrás da máscara com que seapresenta, de Nietzsche assume, pretendendo superá-las, todas asposições clássicas anteriores, sobretudo aquela a que mais se opõe,a cristã, na sua forma culturalizada, no que se refere à potência ab-soluta do princípio. Para Nietzsche, esta potência, que é mesmo ab-soluta, isto é, irrestritamente absoluta, não conhece qualquer formade oposição. Mesmo tudo o que parece surgir como sua regulaçãomais não é do que, ainda, uma forma adaptada de manifestação,sendo, mais do que um logro, uma forma de preenchimento on-

tológico de um possível que não pode deixar de ser e, assim, é.Não há leis ou princípios a respeitar, não há um “Deus legal”,que ponha ou imponha princípios normativos quaisquer, anteriorao “Deus criador”, interventor na história, que haja que respeitar,que seguir: tudo é um spielen infinito, em que o divino é o próprio

jogo irrestrito da criação.Não há uma qualquer ortótese prévia possível: o que é é o que

é, no absoluto de seu acto, que a nada obedece, senão ao mesmoprofundíssimo impulso de ser e de vida de que é fruto.

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 7

Não é que Nietzsche desconheça a existência histórico-culturalde leis ou nunca tenha ouvido falar das analógicas “leis da na-tureza”, mas, também tudo isto mais não é do que uma forma –apolínea – de a força absoluta da vida se manifestar, subtil e en-ganadora, pois pervade isso mesmo que era suposto controlá-la.Mas, paradoxalmente, neste ímpeto incontrolável de ser e para oser, porque tudo é este mesmo ímpeto em acto, nada é senão bom,não como fruto de um qualquer juízo avaliador, mas como coin-cidência ontológica pura com o que se é, sem mais.

E é o sentido clássico do absoluto do bem de cada acto do queé que renasce com Nietzsche. O nome que se atribui a isso queassim é pouco importa: há um absoluto próprio em cada algo queé, que manifesta precisamente o absoluto de vida que nele e por eleassim irrompe. Esta intuição permanece, mesmo quando se falaem valor, pois a essência própria do valor não reside em qualquerforma psicológica de eleição, mas na aceitação, ao modo da criançainocente, do que há-de vir. O valor corresponde não a um actode avaliação exercido sobre o cadáver de um ser, sempre pretéritoquando passível de ser assim avaliado, mas na disponibilidade paraque isso que tem de vir ao ser venha. Implica um sim absoluto

a tudo, sem qualquer forma possível de condicionamento, sempreforma de morte. Então, se não é a este sentido de bem, como purezaontológica do que é, que Nietzsche se opõe, a que “bem” se opõeele?

Nietzsche opõe-se à redução moral – isto é, cultural, dado quea moral, como toda e qualquer forma de actividade humana, é cul-tural por essência e substância – do bem ontológico, da vida emsua mais auroral forma auto-criadora. Não se trata, nesta redução,de uma mera questão de valoração, em sentido corrente, fraco, masda utilização perversa da capacidade criadora do ser humano: atransmutação de valores que se procura não é uma mudança super-ficial de uns valores por outros, quaisquer, também eles fruto deuma avaliação em sentido comum, isto é, de um acto psicológico,

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

8 Américo Pereira

subjectivista, de alguém, mas a passagem a um regime ontológico

em que o valor seja ele próprio transmutado, quer dizer em que

o valor não seja fruto de uma avaliação, sempre moralizadora de

algo ontológico, mas seja o acto criador de novo ser, possível ape-nas num horizonte de absoluta abertura ao devir.

Este novo ser não é algo de estático ou mesmo de estável, em-bora o estável como apolíneo tenha lugar próprio, em sua essencialinstabilidade – tudo é instável e meramente instante –, mas o actocriador, enquanto tal, isto é, apenas enquanto acto de criação, comoque porta de passagem de algo que transcende quer o acto criadorquer o seu operador, como isso que se manifesta por meio de talacto. O ser humano mais não é do que um acto de portabilidade

manifestante de algo que o transcende e que dele se serve para

ser, efemeramente. É este o amor ao facto, facto que não é algoque transcenda o ser humano como algo que lhe é exterior e quetem de aceitar, amando, mas que o transcende porque a ele não ficaligado, como a água que percorre o rio de Heraclito não fica a eleligado, mesmo que o rio nada seja ou possa ser sem a água queo percorre, criando-o. Mas nada prende coisa alguma e, mesmoque algo dependa absolutamente para ser de outro algo, este nãoo pode reduzir, não lhe pode retirar a sua realidade própria, aindaque efémera: para Nietzsche, nada é redutível a coisa alguma, noque tem inteira razão.

Toda a manifestação é, assim, absoluta: Apolo não é mais oumenos ser do que um grão de pó, enquanto absoluto de manifes-tação: ambos são Dioniso, que se mostra, mas Dioniso só se podemostrar total e absolutamente se puder ser e for Apolo e grão depó.

O amor ao facto não é uma forma estulta de relação com o quese dá, acriticamente considerado, mas o acto de pura aceitação do

absoluto do que não tem outra possibilidade senão ser: o que énão é, assim, bom ou mau, em sentido comum, mas apenas ab-

soluto em seu mesmo ser, em sua mesma absoluta presença. A

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 9

doença é tão boa como a saúde, porque é. E é porque é possível

que fosse. E esta possibilidade de ser é o que há de verdadeira-mente “divino”. Isso que mesmo os cristãos nunca perceberam,segundo Nietzsche. Nasce nesta falha de percepção toda a formanegadora e doentia própria do cristianismo: se tivessem os cristãospercebido a grandeza absoluta do bem de ser, do bem de se ser queproclamam, a sua vida seria a vida precisamente de uma criançaque brinca com o absoluto do possível, como se fosse Deus.

O mundo de Nietzsche é, assim, um mundo em que não hábem ou mal, em sentido comum, mas apenas manifestações de um

poder sem limites, em que tudo o que pode vir ao ser vem ao ser,sem que seja possível qualquer forma de restrição. Tal implica quenão haja qualquer forma de eleição que seja superior a uma outraqualquer, pelo que tudo se equivale quanto ao seu valor ontológicofundamental, pois tudo é inalienável presença de uma potência cujaúnica alternativa é o nada. Na eleição que limita o poder – que tema ilusão de limitar – da potência geradora de tudo, reside uma

radical vontade de morte: toda a limitação do poder ser do pos-

sível é uma forma de eleição do nada, uma forma de morte, umaforma de condenação da realidade do mundo à fraqueza e à morte.Toda a cultura, se fosse produto de um ser criador que entendesseprofundamente o seu papel ontopoiético, seria um hino criador àcriação, isto é, mais não seria do que um puro acto de criação, umaode alegre ao absoluto do poder ser e do ser, em sua permanentetransiência.

A única forma de niilismo presente em Nietzsche corresponde àsua vontade de aniquilar todas as formas de niilismo – e de niilistas– que atentam contra o absoluto da vida em manifestação livre.Como é óbvio, Nietzsche inclui os cristãos neste grupo que há quedestruir, pois, para ele, são os niilistas por excelência. A própria“morte de Deus” significa a necessidade e depois a realidade damorte de tudo o que atenta contra o divino direito de a potência deser poder ser. Neste sentido, “Deus”, este deus da fraqueza, é o

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

10 Américo Pereira

maior obstáculo à pura emergência inocente da força vital, isto é, omaior assassino de possibilidades ontológicas, pelo que tem de, emnome do absoluto da vida, morrer. Trata-se de matar o deus menorda fraqueza valorativa e electiva em favor de uma total liberdade

metafísica.Não se trata, em Nietzsche, primacialmente, de libertar o ser

humano, o que será sempre uma tarefa secundária comparada coma grande tarefa de libertar a realidade do ser humano, seu opres-sor, mas de libertar o movimento expressivo, poético-ontológicodo todo da realidade, incluindo o que passa pelo ser humano, que,quanto mais livre for, melhor dará expressão a esta mesma possi-bilidade de onto-auto-poiése da matriz da realidade.

Radica aqui a sua metafísica de artista, em que a matriz do tododa realidade se revela como um infinito poeta do ser, sem qualquerrestrição de qualquer tipo. Mas a grande obra metafísica é semprepertença não do ser humano, mas da força que o ergue e atravésdele se expressa, a mesma força criadora de tudo, a mesma vida,que recebe várias designações, ao longo da obra de Nietzsche.

A mais radical, porque coincide com a própria matriz da intu-ição fundamental, é a de “Dioniso”. Independentemente da formacomo surgiu na cena cultural helénica, a figura do deus Dionisoincarna tudo o que diz respeito, não a algo de novo importado deum oriente sempre abstracto, mas ao que de fundamental encerravaa matriz mítica cosmológica e cosmogónica das gentes abrangidaspelas grandes narrativas fundadoras do espaço noético helénico.

Assim, Dioniso assume tudo o que nos antigos mitos funda-cionais era formalmente pertença da parte irracional da ontologiageral da realidade total: se todo o esforço de pensamento mítico setinha norteado pela vontade de discernir no real o que era racional-mente enquadrável do que o não era, relegando para o campo dointocável, por ontologicamente perigoso, tudo o que não fosse en-quadrável por categorias racionais, tal não significava que tivesse

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 11

conseguido aniquilar isso que não foi capaz de enquadrar racional-mente.

Pelo contrário, uma análise cuidadosa dos mitos – por exemplo,como contados por Hesíodo – revela que o mais importante, o ver-dadeiramente essencial e substancial do ponto de vista ontológico,ficou por enquadrar racionalmente, tendo a cultura helénica plena-mente manifestado quer a sua presença inconsequentemente abafadaquer o terror que tal presença inculcava.

No mais profundo das origens do mundo helénico, que tantofascinou e deu que pensar a Nietzsche, estava a intuição de quea mais profunda origem do real era algo de incomensurável como modo comum de realidade: no princípio de tudo está não umadivindade definida qualquer – um qualquer Zeus, bem pobre “deusdos deuses” –, mas o Khaos. Este abismo hiante, este nada deforma, em que toda a possibilidade de forma reside e de onde toda aforma emerge, não conhece realidade anterior e está absolutamenteonde como que ocupa o “lugar metafísico” da única “alternativa”possível, o nada absoluto.

Deste confuso infinito informal surge toda a forma e todas asformas, mediadas primeiro por um Eros, que se manifesta na formaprimeira da mãe terra, depois passa pelo Céu, pelo tempo e out-ros titâs e monstros primevos vários, terminando na geração, jáaparentemente apolínea, dos olimpianos. Mas, como se pode verno comportamento constante do próprio Zeus, a marca da infor-malidade caótica permanece, tendo como consequência uma sériede percursos trágicos, de que se pode relevar o da família desseque vai ser Édipo, marcada, desde o início, pela hybris do Zeusque seduz enganosamente Europa.

As grandes narrativas helénicas, sem excepção, nelas incluindoa mesma lírica e também a filosofia em seus inícios, são o repositóriopúblico desta preocupação e da reflexão que provoca acerca do fun-damento último e primeiro da realidade como algo que não obe-dece a uma lógica apolínea, isto é, humanamente dominável. Re-

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

12 Américo Pereira

side aqui a própria essência do sentido do trágico da vida, nestaimpossibilidade de humano controlo de uma actividade real, quetranscende necessariamente todas as formas de tentativa de moral-ização. Todas.

Ora, também no mundo dos povos bíblicos, este sentido deuma força desmesurada e humanamente impossível de governarestá clarissimamente presente: o Deus que se lhes manifesta nãocessa de mostrar as razões pelas quais não é dominável, redutível.Aliás, só vale como precisamente Deus isso que está para lá detodo o controlo. Mas esta constatação surge em todas as tradiçõesreligiosas de todos os tempos: o divino é exactamente isso que nãoé redutível, de modo algum, a uma qualquer função humana.

O divino, isto é, o que na realidade é o absoluto fundamentomotor, independentemente da caracterização cultural particular, éo que nunca é moralizável. E tal é válido mesmo quando umareligião parece não ser mais do que a tentativa de violentação destarelação, tentando o ser humano controlar o divino através dos maisvariados processos litúrgico-rituais.

A história da humanidade pode ser vista como esta dialécticaentre a recepção de uma manifestação de força, que tudo de hu-mano transcende, e uma contra-manifestação de força humana, quetenta funcionalizar aquela mesma força transcendente. Esta dialéc-

tica corresponde a um processo de morte da força vital. Numasuprema ironia, trata-se da própria força vital que, numa expressãoperversamente fraca, se volta contra si própria e tenta, neste movi-mento negativo anti-vida, aniquilar-se.

Ora, para Nietzsche, passados os momentos aurorais em que ahumanidade se constituiu una com o movimento vital que a erguia,a vida do ser humano passou a ser uma luta contra a própria vidaque o ergue. E é contra este niilismo que Nietzsche se ergue, esteniilismo que Nietzsche combate. Deste ponto de vista, Nietzscheé a antítese perfeita de um niilista. O interesse próprio de Niet-

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 13

zsche reside em refundar uma humanidade que volte a ser o vasode eleição da manifestação da vida, não o seu esquife.

2 A fraqueza como forma anti-dionisíaca

por excelência – o ressentimento como

origem de toda a morte

Esta atitude niilista é uma atitude que manifesta uma forma de vidafraca. Como o camelo, patente nas metamorfoses de Assim falava

Zaratustra, toda a forma de vida que se limita a carregar-se a siprópria –sem alegria porque, em vez de ser uma forma poética, emalacre poema de si própria – sobrevive como real negação do im-pulso vital fundamental. No mais íntimo de si própria, a dinâmica,que poderia e deveria manifestar abertamente a pura alegria de ser,procede antiteticamente, negando essa mesma manifestação comoalgo de pleno: esta diferença entre a plenitude possível – a plenairrupção do Dióniso presente em cada ser – e a real concretização

constitui uma forma de morte e é a matriz de todo o niilismo.Esta incapacidade de aceitação da plenitude da força que em

cada ser clama por se expressar, esta real fraqueza do ser que mor-aliza a vida, vida que é sempre excessiva em si, dá-se sempre naforma de um acto que se confunde com um sentimento, precisa-mente o ressentimento. Este nasce da evidência da diferença vitalmanifestativa e manifestada entre o acto fraco do ser que moral-iza a manifestação da vida em si e o acto do ser que tal não faz.Este último, no qual a vida se manifesta em todo o seu esplendor,constitui a nobre estirpe dos aristocratas; os primeiros constituema estirpe dos escravos.

Ora, constata-se que os escravos são em número muito superioraos aristocratas. Contra estes, erguem aqueles uma muralha de

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

14 Américo Pereira

preceitos morais, que invertem os verdadeiros valores de força evida: impostos a partir da sua bem amada fraqueza, os novos eanti-vitais valores de fraqueza tornam-se na medida absoluta dos

padrões de vida doravante considerados como “bons”. Assim,tudo o que disser respeito à livre expressão da vida passa a sercondenado, triunfando tudo o que suportar manifestações fracas edoentias de vida. Por exemplo, a nobre compaixão do corajoso édegradada numa forma de tolerância para com a fraqueza alheia,numa ânsia de transcendentalizar a mesma fraqueza como valorhumano.

Todas as virtudes consideradas por Nietzsche como “dadivosas”,gratuitas, outorgadas a partir da simples e pura grandeza ontológ-ica da força vital do aristocrata, passam a ser substituídas por for-mas meramente comerciais de troca de favores, que impedem qual-quer real nobreza de acto, pois a mera troca anula o excesso de

grandeza de acto que o dom gratuito implica e carrega. Com taisgrandes virtudes dadivosas, perde-se o específico da grandeza pro-priamente humana, ficando a humanidade presa de e a uma uni-formidade activa, que a torna num pântano de indiferenciação on-tológica, onde tudo se equivale e o próprio de cada pessoa se tornarealmente impossível, pois apenas a diferença própria pode erguero traço apolínio formal de um acto de vida dionisíaco, efémero,sim, mas propriamente diferenciado nessa mesma forma. O reinoda fraqueza é o reino da morte quer de Apolo e de toda a formaprópria quer da mesma possibilidade de Dioniso.

O ressentimento, o ódio ontológico à grandeza ontológica própriado acto alheio é, assim, a forma matriz de toda a morte e o inimigode toda a vida, o inimigo mortal de Dioniso. Mas, como não háforma alguma de vida que não seja manifestação qualquer de Dion-iso, tal significa que a possibilidade e a realidade da morte estãopresentes no seio mais profundo da excessiva dinâmica ôntica e on-tológica da própria vida. É a forma que Nietzsche tem de interpre-tar a funda intuição mítica acerca da matricialidade aparentemente

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 15

paradoxal do khaos, de um khaos que é concomitantemente abso-luta erótica vivencial, mas que, nesta mesma erótica, em seu plenodesenvolvimento, transporta a possibilidade da morte. Ironizando,podemos dizer que aqui é o ponto em que Nietzsche descobre asua versão do “pecado mortal”, que não é coisa de homem, mas dopróprio núcleo matricial da mesma vida.

3 O caminho metamórfico da vida

humana, desde Dioniso à criança

O que se diz acerca da realidade profunda de tudo como formavital matriciada pelo excesso radical de acto que é Dioniso valemesmo para tudo: todas as formas são manifestações de Dioniso.Tal é válido também para o ser humano. No que precisamente aeste diz respeito, há uma evolução possível, em que a força dion-isíaca se formaliza, isto é, ganha dimensões apolíneas, que passampelas metamorfoses necessárias, que vão desde a negatividade emacto de passividade querida e assumida do camelo, ao acto de neg-atividade activa do leão que mata o dragão – senhor dos valoresnegativos, “Deus” do “tu deves”, que é uma forma de mortal “não”–, à forma definitiva da criança, forma ainda apolínea, mas pura,em que Dioniso se revela formalmente, mas já como puro amor desi mesmo, em que a forma mais não é do que um puro sim ao quehá-de vir. A criança é Dioniso que se ama brincando a ser-se.

Pode, assim, verificar-se que todo o percurso apolíneo, isto é,formal, da emergência de Dioniso na forma de ser humano, con-templa uma série de etapas em que a mesma vida se experimentasob todas as formas matriciais possíveis, sempre no limite, e nolimite mais extremo, como possibilidade de morte, isto é, como

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

16 Américo Pereira

negação absoluta de si própria. O significado de tal escolha de Ni-etzsche é profundo: nenhuma vida se pode experimentar em toda a

sua grandeza se não for capaz de se experimentar no limite termi-

nal de si mesma, no extremo do abismo em que vida e não-vida sãotangenciais, mas que é o único topos em que o ser humano podesaborear o real travo da grandeza de algo como a vida, que é tudo,mas que só se pode inteligir como tal precisamente no limiar dasua total perda, da sua mesma aniquilação.

O momento, não da morte, mas da contemplação ante-fácticada sua possibilidade, é o único momento em que o ser humanopode dizer que está verdadeiramente vivo, pois pode contrastar oabsoluto da vida que é com o absoluto da morte que pode ser. Oniilismo tenta por todos os meios evitar este mesmo momento e,por tal, limita-se a viver uma vida sem grandeza, uma meia-morte,sempre invejosa da grandeza vital dos que assumem a possibilidadedo abismo da aniquilação, o olham bem nos olhos e não desviamdele o seu olhar. Evitando o confronto com a morte, o ser humanofraco recusa-se a viver a vida em toda a sua plenitude, pelo queacaba por ser uma forma de activa negação da vida, não da vidaem seu sentido comum, que coincide com o que se é, mas da vidacomo o máximo possível de grandeza própria. Tal é o homem quequer morrer, não apenas num qualquer fim derradeiro, mas quequer morrer em cada acto que realiza. Quando o realiza, faz semprealgo que está abaixo do máximo possível, pelo que constantementemata o possível, contribuindo para a morte da vida como um todo,em sua manifestação.

3.1 Todas as formas anteriores à criançacomo formas de negação da vida

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 17

Deste modo, todas as formas de vida anteriores à criança são for-mas em que a vida como possibilidade máxima de ser – toda estavida é formal, apolínea – é constantemente negada, pelo que, sendotodas elas formas propriamente “morais”, se percebe que toda equalquer forma de moralidade é uma forma de morte. A vida, emseu puro surgimento, desconhece a moral: está “para lá de bem emal”, em sentido moral.

A graça absoluta da manifestação de Dioniso não é compatívelcom qualquer forma de constrangimento. Não se quer com istodizer que não é possível constrangê-la; pelo contrário, é o comum.Mas quer-se dizer que todo o constrangimento sobre esta irrupçãogratuita de vida, na forma do ser, significa um Apolo mais fraco,menos luz, menos ser. Dioniso continua sendo o que é, a sua forçacontinua manifestando-se, mas é pervertida pelo “não”.

Todo o “não” desvia a vida do seu caminho próprio, parasitando-a, absorvendo a força vital. O não cresce à medida que vai negandoa vida. Mas, como forma de vida que também é, vai acabar por nãoaguentar tanta vida negada, mas impossível de eliminar, vai ter deexplodir. Esta explosão de vida acaba por ser a própria criançanascendo. Por isso tem o leão – que assume, negando-a, a negaçãodo camelo, mas que assume também a negação do que o camelonega – de ser negativo, como fase extrema da possibilidade de con-stituição da criança.

Percebe-se, assim, que a criança é o florescimento dionisíaco –vestido com as roupas do belo Apolo – de toda a afirmação, masde toda a afirmação negada, pois, suprema ironia da vida, aindaa negação, mesmo auto-complacente, é uma forma de a vida semanifestar. A negação constitui, assim, uma etapa necessária paraa afirmação final, sendo que a afirmação final não é algo como oculminar de uma dialéctica, por exemplo, ao modo hegeliano, masum salto ou ressalto da própria vida, que, neste salto, acaba porcoincidir, sem solução de continuidade possível, consigo própria.

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

18 Américo Pereira

Finalmente, Dioniso assume-se na forma eternamente lúdica deum Apolo, que sabe que é o brilho do mesmo Dioniso, assumindo-se como brilho que é, efémero ou perene, tanto monta. Finalmente,o ser coincide com o seu acto e a realidade mais não é do que a con-templação de seu mesmo acto, sem distância ontológica, sem judi-cação ou sua possibilidade. Note-se que, aqui, não há, já, qualquerpossibilidade de discurso acerca de valores ou da sua transmutação:a criança não cria propriamente valores, é uma pura emergência

ontológica da vida. Tal não tem ou pode ter qualquer valor. Épuro ser. Apolo, em sua pureza, como Dioniso, não são valores. Agrande transmutação de todos valores corresponde à aniquilação dapossibilidade de todo o valor, substituída pela simples coincidênciacom a gratuidade dadivosa de Dioniso, da vida.

3.2 A vida como Wille zu Macht e esta

como um brincar

Assim sendo, a Wille zu Macht corresponde ao mesmo jorrar ir-repreensível da vida. Como forma pura de manifestação de Dion-iso, Macht não remete para uma qualquer forma de “poder”, antespara um sentido muito profundo de “potência”, de “possibilidade”,mas de uma possibilidade e de uma potência que são como que“acto antes do acto”, que são tesouro de todo o acto possível. Oque se quer, o que esta Wille quer, o que esta Wille é, pois não háuma Wille anterior ao querer que, depois, queira, é tanto a possi-bilidade em seu absoluto – que seja possível! – como o acto dessamesma possibilidade.

Assim, a criança quer, melhor, coincide com o acto de von-tade de querer que a vida, como um todo e em cada uma de suasmanifestações contínuas, seja, sem mais. Mas quer também que

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 19

seja como forma sua de consentimento. A criança, como formaapolínea da Wille zu Macht, mais não é do que a possibilidade detudo que se assume como tal, isto é, como possibilidade de tudo naforma apolínea de manifestação, e que, assim se assumindo, ime-diatamente se transforma na mesma vida que se dá. A criança é aforma solar de a Wille zu Macht se manifestar em sua mesma plen-itude. Tudo o que não é criança, é também forma de manifestaçãoda Wille zu Macht, mas de forma não plena, isto é, afectada porum índice de morte. Esta morte não afecta a Wille zu Macht, queé também a mesma morte como acto, mas isso que, pela morte,não pode atingir uma plenitude possível, plenitude possível que éa mesma Wille zu Macht como possibilidade.

Toda a acção em que a Wille zu Macht não é assumida emsua mesma plenitude possível, sendo, assim, actualizada, é umaforma de vida marcada pela morte que, em última análise, sig-nifica uma vontade perversa não de vida – que só é mesmo vida, seplena –, mas de aniquilação da mesma. A vida ou se vive em sua

mesma plenitude ou caminha inexoravelmente para a sua mesma

aniquilação. Mas pensar que tal afirmação tenha um alcance uni-versal é laborar em ilusão: a sua suposta universalidade aplica-seapenas ao campo apolíneo da vida humana, pois, com esta ou semesta, Dioniso é sempre. O que deixa de ser, o que deixa mesmode ser possível é a humanidade, pois negou em seu mesmo acto, adádiva de possibilidade que a vida lhe outorgou. A vida humanapoderia e deveria ser apenas um consentimento gratuito à graçadadivosa da própria vida matriz. Não é.

3.3 A contemporaneidade de Nietzsche

Para além de toda a importância da influência superficial que opensamento de Nietzsche exerceu na contemporaneidade, mesmo

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

20 Américo Pereira

quando involuntariamente inspirou néscias gentes a nele se fun-damentarem a fim de produzirem uma qualquer estrutura teóricapara seus delírios perversos de poder que nada dizem respeito àgrandeza dadivosa do poder como o pensador a entendia, permanecea sua análise – rigorosa, por sob uma camada poética de grandebeleza, mas, por vezes, enganadora – da acção humana, no panode fundo de uma cosmologia em que há um predomínio absolutodo movimento e da vida sobre tudo o mais e em que o vetusto ter-ror do nada marca o limite abissal para toda a acção e para toda areflexão.

Clássico nestas preocupações, segue Nietzsche a luta pela afir-mação do sentido da vida como único absoluto. Único absolutopossível. A realidade é movimento. Contra o horror do nada e ne-gando a realidade metafísica de um absoluto pessoal divino, teráde ser, na falta de melhor, movimento de movimento, um eternoretorno sem razão. Mas o que não pode ser admitido é o clamordos que vociferam contra a vida. O que não pode ser admitido é oblasfemar contra a única realidade, o movimento vital, pai e mãede tudo.

Muito se tem discutido o carácter supostamente profético decertas partes do pensamento de Nietzsche. Para lá de discussõessempre em perigo de bizantinização, há que reconhecer que a análisede Nietzsche suscitou o relevo teórico de fases de negação da vidapor parte da própria vida, fases que podem ser aproximativamenteentrevistas na realidade ética e política do século XX e também doainda incipiente século XXI.

O fenómeno do nazismo, e dos fascismos em geral, em quese podem incluir formas tipicamente fascistas ditas de “esquerda”,representou e representa ainda a maior experiência de negação davida, por vezes disfarçada de formas celebrativas da mesma, servi-das por liturgias políticas de uma grandeza ímpar. No entanto, to-das estas formas terminaram em literalmente imensos massacres deseres humanos – mas não só, há uma dimensão ecológica negativa

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

A crítica de Nietzsche ao niilismo 21

implicada que é de grande monta –, no que constitui precisamenteo acto litúrgico culminante de uma verdadeira celebração não davida, mas da morte.

A ideia com que se fica, depois de muitos anos a estudar ofenómeno do nazismo, é que, de facto, há nele uma celebraçãoda vida, que se pode inocentemente intuir como forma de cele-bração da vida de todo um povo eleito, mas que, numa visão maisatenta, parece ser apenas a celebração da vida de uma oligarquia,terminando por ser, após o testamento de Hitler, perceptível ape-nas como a celebração do absoluto de vida do tirano e de nadamais: perdendo o tirano a vida – tirano que se julgava a fonte detoda a vida de seu povo –, há que condenar todo o povo à morte etoda a nação à simples aniquilação, sendo expedidas ordens nessesentido, o que faz com que esta interpretação não seja uma meraespeculação.

Mas o interesse maior de Nietzsche, para lá do folclore da es-pectacularidade literária da imagética que usa, reside não na análisede movimentos éticos e políticos já havidos, mas nas lições quepode antecipar relativamente a movimentos possíveis, a haver.

A denúncia de todo o movimento que é contrário à vida pelavida deve imediatamente centrar a reflexão e a atenção do ser hu-mano em todas as propostas em que a vida seja, directa ou indirec-tamente, posta em causa: todas elas representam formas de aten-tado contra a única realidade que humanamente há, a da vida, todaselas devem ser rejeitadas, em nome da mesma vida.

Todo o movimento no sentido da indiferenciação da pessoa,todo o movimento no sentido da sua diluição social e política, todoo movimento que atente contra a sua liberdade ética profunda, istoé, que mate nela a capacidade de brincar ontologicamente comopoeta de si própria, deve ser imediatamente anulado ou irá anular avida, mais tarde ou mais cedo.

A questão que fica é a de saber se o evidente mal-estar espiritualem que se vive hodiernamente nesta suposta aldeia-global, muito

www.lusosofia.net

✐✐

✐✐

✐✐

✐✐

22 Américo Pereira

longe de ser materialmente redutível a inquietações económicas ououtras, não se deve precisamente à noção, ainda que difusa – mastanto mais inquietante porque impossível de definir – de que a vidaestá constantemente a ser negada e que, assim, estamos todos acaminhar para uma forma superior de aniquilação, talvez indolor,mas, ainda assim, inexorável?

Esta questão só tem uma resposta boa e não é, de modo algum,uma resposta teórica.

www.lusosofia.net