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UM LEGADO DE VIOLÊNCIA HOMICÍDIOS PRATICADOS PELA POLÍCIA E REPRESSÃO A PROTESTOS NA OLIMPÍADA RIO 2016

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UM LEGADO DE VIOLÊNCIA

HOMICÍDIOS PRATICADOS PELA POLÍCIA E REPRESSÃO A PROTESTOS NA OLIMPÍADA RIO 2016

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Policiais militares chegam ao protesto realizado na abertura dos jogos, próximo ao estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, 2016.

A Anistia Internacional é um movimento mundial com mais de 7 milhões de apoiadores, membros e ativistas que fazem campanhas para acabar com os mais graves abusos dos direitos humanos em mais de 160 países e territórios. Somos independentes de quaisquer governos, ideologias políticas e interesses econômicos ou religiões, sendo financiados, sobretudo, por doações individuais.

Publicado originalmente em 2016 por

Anistia Internacional BrasilPraça São Salvador, no 5LaranjeirasRio de Janeiro/RJ22231-170Amnesty International Ltd

Peter Benenson House 1 Easton Street London WC1X 0DW United Kingdom ©Amnesty International 2016

Índice: AMR 19/4088/2016 Idioma original: InglêsVersões: Português e espanhol Impresso em português pela Anistia Internacional BrasilTodos os direitos reservados.

Esta publicação possui direitos autorais, mas pode ser reproduzida livremente por quaisquer meios, para fins educacionais, de ativismo e de campanhas, não podendo ser comercializada.Pede-se que tais usos sejam informados aos detentores dos direitos para que sua divulgação possa ser acompanhada. Para a reprodução deste conteúdo em quaisquer outras circunstâncias, ou para sua reutilização em outras publicações, bem como para tradução e adaptação, uma autorização prévia e por escrito deve ser obtida dos editores. Para solicitar permissão ou outras informações, escreva para [email protected].

Ficha TécnicaFotos: Luiz Baltar | Gabriel Paiva/Agência O Globo | Marcelle Gebara | Reginaldo Pimenta/Raw Image Agência O Globo | Carlos Cout | Sérgio Silva | Felipe Varanda

Capa: Ilustração da cidade do Rio de Janeiro Projeto gráfico: REC Design

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UM “MUNDO NOVO”? O LEGADO DE VIOLÊNCIA E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DA RIO 2016 “Essa é a base do movimento Olímpico: mudar o mundo para melhor”.Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI)1

1 Ver www.rio2016.com/en/news/a-new-world-rio-2016-unveils-official-olympic-slogan

O slogan oficial dos Jogos Olímpicos Rio 2016 era “Um Mundo Novo”. Segundo os organizadores, foi inspirado em “novos olhares, novos heróis e o poder transformador dos esportes”.

Em meio a todo o brilho e ostentação, porém, não há nada de novo em relação ao padrão de vio-lações de direitos humanos praticado pela polícia do Rio de Janeiro e outras forças de segurança mobilizadas na cidade para atuar em operações de segurança durante os Jogos.

Apesar de todos os alertas das organizações da sociedade civil sobre os riscos acentuados de vio-lações de direitos humanos no contexto da Rio 2016, tanto as autoridades brasileiras como os or-ganizadores das Olimpíadas falharam em implementar as medidas necessárias para impedir essas violações. Isso levou à repetição do padrão de violações já observado em outros eventos esportivos de grande porte realizados na cidade do Rio de Janeiro, como os Jogos Pan Americanos em 2007 e a Copa do Mundo de Futebol em 2014.

Mais uma vez, as forças de segurança no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras recorreram ao uso desnecessário e excessivo da força para reprimir protestos e manifestações essencialmente pacíficos. Além disso, os direitos à liberdade de expressão e de manifestação foram ilegalmente restringidos com a adoção de leis e políticas contrárias às obrigações internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos.

Ademais, as forças de segurança continuaram a se valer de uma abordagem militarizada da ativida-de policial, inclusive em seu treinamento e tipo de equipamento. Dezenas de milhares de militares e integrantes da Força Nacional de Segurança foram mobilizados para desempenhar tarefas de segurança pública no Rio de Janeiro. As ações resultaram na morte de pelo menos oito pessoas em operações policiais realizadas em favelas no período dos Jogos (5 a 21 de agosto de 2016).

Tiroteios e outros incidentes de violência armada continuaram ocorrendo diariamente no Rio de Janeiro durante as Olimpíadas, muitos em consequência direta de operações policiais nas fave-las e em outras áreas marginalizadas da cidade. Algumas favelas, como o Complexo do Alemão, Acari, Manguinhos, Cidade de Deus e Complexo da Maré, entre outras, foram atingidas de forma desproporcional.

A estratégia geral de segurança implementada para os Jogos, inclusive o destacamento de milita-res e da Força Nacional de Segurança, além da polícia do Rio de Janeiro, custou muito caro aos moradores das favelas da cidade. A poucos quilômetros dos locais das competições olímpicas fortemente protegidos, as pessoas mais pobres e marginalizadas do Rio de Janeiro continuavam a viver sob o medo constante da repressão violenta da polícia e de outras forças de segurança.

Operação de segurança durante os Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, 2016.

Operação de segurança durante os Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, 2016.

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QUEBRANDO RECORDES: HOMICÍDIOS PRATICADOS PELA POLÍCIA Em 2009, o Rio de Janeiro venceu a disputa para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. As auto-ridades dispunham de alguns anos para adotar medidas concretas que acabassem com os homi-cídios decorrentes de operações policiais ou que, pelo menos, reduzissem significativamente esse tipo de ocorrência. No entanto, como foi demonstrado pelo número de pessoas mortas pelas forças de segurança tanto antes quanto durante as Olimpíadas, as medidas parciais que foram aplicadas falharam em proteger efetivamente o direito à vida ou em assegurar que o uso da força e de armas de fogo pela polícia estivesse de acordo com leis e normas internacionais.

Conforme indicam as estatísticas oficiais, entre janeiro de 2009 e julho de 2016, 2.713 pessoas foram mortas pela polícia somente na cidade do Rio de Janeiro.2 Jovens negros formam o grupo com maior probabilidade de ser morto pela polícia. Ao analisar os dados desagregados de vítimas mortas durante operações policiais na cidade do Rio de Janeiro entre 2010 e 2013, a Anistia Inter-nacional identificou que 99,5% das vítimas eram homens, 79% eram negras e 75% eram jovens (entre 15 e 29 anos).3

2 Fonte: Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro

3 Anistia Internacional, Você Matou Meu Filho: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro (Índice: AMR 19/2068/2015), disponível em www.amnesty.org/en/documents/amr19/2068/2015/en/

O uso de força letal pela polícia aumentou antes da Olimpíada Assim como aconteceu em 2007 e 2014, quando o Rio de Janeiro também sediou grandes even-tos esportivos, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou com a aproximação dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Ao se comparar o número de homicídios registrados às vésperas dos Jogos, em abril, maio e junho de 2016, com o mesmo período do ano anterior, constata-se que o número de pessoas mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro aumentou 103%.

Em seu relatório A violência não faz parte desse jogo4, publicado no começo de junho, a Anistia Internacional observou uma tendência de aumento do uso de força letal pela polícia nos meses de abril e maio de 2016. Nos meses seguintes de junho e julho, esses números permaneceram em alta constante, produzindo muitas vítimas.

Homicídios decorrentes de intervenções policiais no estado do Rio de Janeiro – janeiro a julho de 2015 e 2016

0

20

40

60

80

100

Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho

64

53

83

5459

47

60

7884

74 74

43 44

61

Homicídios decorrentes de intervenções policiais na cidade do Rio de Janeiro – janeiro a julho de 2015 e 2016

0

10

20

30

40

50

2927

48

32

2024 25

35

40

49

44

17

24

30

Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho

4 Anistia Internacional, A violência não faz parte desse jogo: Risco de violações de direitos humanos nas Olimpíadas Rio 2016 (Índice: AMR 19/4088/2016), disponível em www.amnesty.org/en/documents/amr19/4088/2016/en/

Total:

Total:

2015: 408

2015: 200

2016: 470

2016: 244

Operação de segurança no Complexo da Maré durante os Jogos Olímpicos, Rio de

Janeiro, 2016.

Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro

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Os eventos de junho de 2016 foram especialmente preocupantes devido ao alto número de opera-ções policiais realizadas em várias favelas do Rio de Janeiro e que resultaram na morte de diversas pessoas.

• 1º de junho: cinco homens mortos pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) na favela do Juramentinho.

• 2 de junho: duas pessoas mortas em uma intervenção conjunta do BOPE e do Batalhão de Choque no Complexo do Alemão e áreas próximas.

• 11 de junho: duas pessoas mortas pelo BOPE na favela Morro da Serrinha no bairro de Ma-dureira.

• 18 de junho: duas pessoas mortas em uma operação comandada pelo BOPE na favela de Manguinhos.

• 22 de junho: cinco pessoas mortas durante uma operação policial do 27º Batalhão de Polícia Militar na favela do Rola no bairro de Santa Cruz.

• 24 de junho: três pessoas mortas durante uma grande operação da Polícia Civil no complexo de favelas da Maré.

• 28 de junho: duas pessoas mortas durante uma operação do 41º Batalhão de Polícia Militar na favela do Morro do Chaves no bairro de Barros Filho

• 30 de junho: duas pessoas mortas em duas diferentes operações policiais, uma delas efetuada pelo 9º Batalhão de Polícia Militar na favela Faz Quem Quer e a outra pela Unidade de Polícia Pacificadora na favela do Borel, quando um menino de 16 anos foi morto.

A Anistia Internacional solicitou informações junto às polícias Civil e Militar sobre quais medidas estavam sendo tomadas para investigar essas mortes, mas, até 5 de setembro, as autoridades não haviam fornecido qualquer resposta.

Homicídios cometidos pela polícia durante a Olimpíada Durante a Olimpíada (de 5 a 21 de agosto), várias operações policiais foram realizadas em diferentes áreas do Rio de Janeiro, como Acari, Cidade de Deus, Borel, Manguinhos, Alemão, Maré, Del Castilho e Cantagalo. Nesse período, pelo menos oito pessoas foram mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro, mas esse número pode aumentar à medida que novas informações sobre outras fatalidades sejam confirmadas. Moradores de favelas também re-lataram outros abusos cometidos pelas forças de segurança, como buscas ilegais, ameaças diretas e agressões físicas e verbais.

No dia 11 de agosto, um jovem de 19 anos foi morto durante uma operação conjunta das polícias Civil e Militar, do Exército e da Força Nacional de Segurança no complexo de favelas da Maré. No mesmo dia, dois adolescentes de 14 e 15 anos e um jovem de 22 anos foram mortos por policiais do Batalhão de Choque na favela de Bandeira 2, no bairro Del Castilho. Em 15 de agosto, um homem foi morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora na favela do Cantagalo, em Ipa-nema. No dia seguinte, 16 de agosto, três homens foram mortos durante uma operação da Polícia Civil no Complexo da Maré.

Em uma reunião com a Anistia Internacional, representantes do Comando Geral da Polícia Militar afirmaram que os números iniciais consolidados pela polícia indicavam que 12 pessoas haviam sido mortas em consequência de operações policiais na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 5 e 21 de agosto (período da Olimpíada). Eles também afirmaram que outras 44 pessoas foram mortas em eventos nos quais as forças de segurança não estavam envolvidas. A Anistia Internacional tam-bém foi informada de que, durante os Jogos Olímpicos, a polícia se envolveu em 217 confrontos (troca de tiros) durante operações realizadas no estado do Rio de Janeiro. Apesar disso, a polícia considerou que “tudo correu bem em termos de segurança durante a Olimpíada, especialmente quando se leva em conta o número de pessoas que circulou na cidade”.5

Com frequência, os homicídios cometidos pela polícia no Rio de Janeiro são execuções extraju-diciais. Esses casos raramente são investigados e quase nunca se responsabiliza alguém pelos crimes.6 A impunidade dos homicídios cometidos pela polícia alimenta o ciclo de violência letal das operações policiais.

No Brasil, a abordagem militarizada da segurança pública na chamada “guerra às drogas” põe em risco a própria polícia. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, de janeiro a julho de 2016, 18 policiais foram mortos em serviço no estado, 12 deles somente na ca-pital. Pelo menos dois policiais foram mortos durante as Olimpíadas. Em 11 de agosto, um agente da Força Nacional de Segurança foi morto a tiros quando cruzava o complexo de favelas da Maré com dois outros agentes. Em 22 de agosto, um policial do 7º Batalhão de Polícia Militar foi morto em serviço no município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro.

5 Reunião entre representantes da Anistia Internacional e membros do Comando Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, realizada em 29 de agosto de 2016.

6 Dos 220 registros de homicídios decorrentes de intervenções policiais na cidade do Rio de Janeiro em 2011, quatro anos depois de ocorridos apenas um deles resultou na instauração de processo contra os policiais envolvidos. A grande maioria das investigações sobre os casos jamais foi concluída. Fonte: Anistia Internacional, Você Matou Meu Filho: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro (Índice: AMR 19/2068/2015), disponível em www.amnesty.org/en/documents/amr19/2068/2015/en/

Imagem da Favela Bandeira 2 depois de uma operação policial que matou três pessoas durante os Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, 2016.

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INSISTINDO NO ERRO: REPRESSÃO POLICIAL A PROTESTOS PACÍFICOS E RESTRIÇÕES INDEVIDAS À LIBERDADE DE EXPRESSÃOEmbora os protestos realizados no Brasil antes e durante as Olimpíadas tenham sido significativamente menores do que os ocorridos em 2013 e 2014, o padrão de repressão das forças de segurança foi similar.

Durante a passagem da Tocha Olímpica por diferentes regiões do país, vários protestos foram reprimidos pela polícia com uso desnecessário da força. Em 27 de julho, na cidade de Angra dos Reis, estado do Rio de Janeiro, manifestações contrárias ao fechamento de um centro de saúde foram reprimidas com força excessiva pelo Batalhão de Choque, que usou gás lacrimogêneo, balas de borracha e bombas de efeito moral contra os manifestantes. No dia 3 de agosto, em Duque

de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, uma manifestação pacífica de professores foi reprimida com força desnecessária pelo Batalhão de Choque. A polícia usou gás de pimenta, balas de borracha e bombas de efeito moral de modo indiscriminado contra manifestantes pacíficos e transeuntes, inclusive crianças.

Em 5 de agosto, dia da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, aconteceu um protesto para chamar atenção sobre os impactos negativos das Olimpíadas. Diferentes unidades foram destacadas para fazer o policiamento do protesto – o batalhão local da Polícia Militar, o Batalhão de Choque e a unidade de cavalaria –, mas a maioria dos policiais não estava devidamente identificada ou não usava qualquer tipo de identificação.

Os policiais começaram a intimidar os manifestantes assim que eles chegaram à praça onde aconteceria o protesto, cercando-os e revistando-os sem motivo. Embora o trajeto da marcha tivesse sido acertado previamente com as autoridades, os policiais impediram a passagem dos manifestantes sem qualquer razão aparente. Os policiais então perseguiram alguns manifes-tantes, que entraram numa padaria, espancando-os e depredando o local. Um adolescente de 17 anos que participou do protesto acompanhado da mãe foi detido de forma arbitrária e está sendo acusado de desacato.

Mesmo quando o protesto estava terminando e os manifestantes já se dispersavam, a polícia usou a força desnecessariamente e lançou gás lacrimogêneo na praça, onde crianças brincavam em um parquinho. Uma jovem de 19 anos desmaiou por causa do gás e teve que ser hospitalizada.

No mesmo dia, outro protesto pacífico contra os impactos negativos das Olimpíadas foi realizado próximo ao Museu de Artes (MASP) em São Paulo. A maioria dos manifestantes era de adolescen-tes e estudantes do ensino médio, inclusive menores de 18 anos. A polícia militar reprimiu o pro-testo desde o início usando uma técnica conhecida como “caldeirão de Hamburgo” (“kettling”), que consiste em cercar e encurralar um grupo de manifestantes por tempo prolongado sem per-mitir que ninguém deixe o “caldeirão”. Cerca de 100 pessoas foram detidas, a maioria com menos de 18 anos. A polícia também empregou força desnecessária contra os manifestantes, inclusive bombas de efeito moral, cassetetes e gás de pimenta.

No dia 12 de agosto, um protesto essencialmente pacífico, organizado principalmente por estu-dantes, foi realizado no bairro do Meier, no Rio de Janeiro, e o evento foi reprimido com violência pela polícia militar, que usou força desnecessária e excessiva contra os manifestantes, inclusive bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha. Aproximadamente 50 manifes-tantes foram detidos e um ficou ferido. Mais da metade dos detidos era menor de 18 anos e um deles era um jornalista independente que cobria a manifestação. Alguns dos detidos estão sendo investigados com base no Estatuto do Torcedor, que define como crime a prática de tumulto ou violência num raio de 5 quilômetros do local de evento esportivo.7

A Anistia Internacional considera preocupantes as denúncias de que infrações menores da lei, tais como colar cartazes ou jogar lixo no chão, assim como danos leves à propriedade, por um indivíduo específico ou por um grupo de pessoas, no contexto de manifestações, possam levar à decisão das autoridades de dispersar uma manifestação, uma vez que tal decisão possa ser uma medida desproporcional que impede outras pessoas que se manifestam de exercer seus direitos. A polícia deveria assegurar que quem protesta possa continuar se manifestando, ao invés de usar as infrações de algumas poucas pessoas como pretexto para restringir ou impedir que uma maioria exerça seus direitos.

7 Estatuto do Torcedor, art. 41B, parágrafo 1, inciso I, diz: “promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento”.

Repressão policial aos protestos durante a abertura dos Jogos

Olímpicos, Rio de Janeiro, 2016.

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Sérgio SIlva, São Paulo, 2014.

NÃO HOUVE JUSTIÇA PARA O FOTÓGRAFO QUE PERDEU UM OLHO

O fotógrafo Sérgio Silva perdeu o olho esquerdo após ser atingido por um dispositivo de impacto cinético disparado pela polícia durante uma manifestação na cidade de São Paulo em 13 de junho de 2013. A polícia não abriu investigações sobre o caso e ninguém foi res-ponsabilizado pelo que aconteceu. Sérgio Silva então moveu uma ação judicial requerendo indenização do Estado pela lesão que sofreu. Em 10 de agosto de 2016, o tribunal julgou sua demanda improcedente e não reconheceu a responsabilidade do Estado. A sentença afirmou, em vez disso, que o próprio Sérgio foi responsável pela lesão que sofreu, e que ao participar de um protesto ele estaria aceitando o risco de ser ferido pela polícia.8

Desde a aprovação da chamada “Lei Geral das Olimpíadas” (Lei Nº 13.284/2016 de 10 de maio de 2016), a Anistia Internacional manifestou preocupação de que a lei pudesse impor restrições indevidas aos direitos à liberdade de expressão e de manifestação pacífica, contrariando as leis e normas internacionais.

Nos primeiros dias dos Jogos Olímpicos, com base nas disposições da nova lei, dezenas de pesso-as foram expulsas de estádios esportivos por portarem diferentes mensagens de protesto expres-sas em camisetas, cartazes e faixas.

Em 8 de agosto, uma decisão da justiça federal proibiu a repressão às manifestações dentro dos locais de competições olímpicas. O Comitê Organizador local da Rio 2016 recorreu da decisão, argumentando, entre outras coisas, que as arenas olímpicas oficiais não eram lugar de protestos ou manifestações políticas. Em 3 de setembro, o recurso ainda não havia sido julgado.

Entretanto, mesmo após a decisão da justiça federal de proteger o direito à liberdade de expressão, alguns manifestantes foram intimidados por agentes da Força Nacional de Segurança dentro dos estádios por portarem cartazes e faixas ou por usarem camisetas com slogans. Em 13 de agosto, no estádio Maracanãzinho, seguranças proibiram uma mulher iraniana de mostrar um cartaz de-fendendo os direitos das mulheres. Em 20 de agosto, Carlos Henrique entrou no estádio Maracanã carregando uma faixa em que pedia justiça para seu filho Carlos Eduardo, de 16 anos, morto ano passado pela polícia militar do Rio de Janeiro. Ele foi abordado por agentes da Força Nacional de Segurança dizendo que não permitiriam que ele mostrasse a faixa em local público, ameaçando apreendê-la e expulsá-lo do estádio. Ele só teve permissão de mostrar a faixa no final do evento.

8 O texto integral da sentença pode ser acessado em: http://s.conjur.com.br/dl/fotografo-culpado-tiro-deixou-cego.pdf

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES Com o encerramento da Olimpíada de 2016, o Rio de Janeiro fecha um ciclo de 10 anos como anfitrião de megaeventos esportivos internacionais. Infelizmente, o prometido lega-do olímpico de uma cidade segura para todos não foi cumprido. Em vez disso, o que permanece é um legado de violações de direitos humanos.

O aumento acentuado dos homicídios pela polícia, tanto antes quanto durante os Jogos Olímpicos, a repressão aos protestos pacíficos, inclusive com restrições indevidas dos direitos à liberdade de expressão e manifestão, e a militarização ainda maior da segurança pública na cidade do Rio de Janeiro são os resultados concretos desse megaevento esportivo global. Agora que os olhos do mundo não estão mais voltados para o Brasil, as vítimas de violações de direitos humanos e suas famílias não podem ser abandonadas em sua busca por justiça e reparação. As autoridades brasileiras têm a obrigação de investigar corretamente e levar à Justiça os responsáveis por essas violações, bem como garantir que as vítimas tenham acesso à Justiça e a reparações adequadas.

Os homicídios decorrentes de intervenções policiais e outros abusos cometidos pelas forças de segurança devem ser plenamente investigados, e quem quer que tenha cometido uma violação de direitos humanos deve ser levado à Justiça. As autoridades precisam assegurar que os militares e os agentes da Força Nacional de Segurança destacados para atuar na cidade somente permaneçam nessa função caso seja necessário. Além disso, os militares destacados para desempenhar tarefas de segurança pública devem estar subordinados às autoridades civis e sob seu comando, bem como providos de todas as instruções, treinamentos e equipamentos necessários para que atuem com total respeito às leis e normas internacionais relativas ao uso da força por agentes encarregados de fazer cumprir a lei.

Violações de direitos humanos não devem ser varridas para baixo do tapete da Olimpíada. A Rio 2016 deixa um legado sombrio para uma cidade em que a marginalização e a discriminação são endêmicas, com uma abordagem profundamente militarizada da segurança pública e um histórico de violações de direitos humanos. No Rio de Janeiro, a violência continua fazendo parte do jogo.

RECOMENDAÇÕES SOBRE O USO DE FORÇA LETAL DURANTE INTERVEN-ÇÕES POLICIAIS

As autoridades federais e do Rio de Janeiro devem: • Assegurar investigações completas, independentes, ágeis e imparciais de todos os homicídios

decorrentes de intervenções policiais, a fim de possibilitar que os envolvidos sejam levados à justiça e responsabilizados penalmente quando apropriado.

• Garantir recursos humanos, financeiros e estruturais à Divisão de Homicídios, a fim de possibili-tar o cumprimento de seu dever de investigar — de forma ágil, eficaz, independente e imparcial — todos os homicídios resultantes de intervenções policiais no estado do Rio de Janeiro.

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• Oferecer apoio psicológico a todas as vítimas de abusos policiais e a suas famílias, assegurando o direito a reparações adequadas, as quais devem incluir indenização, reabilitação, medidas de satisfações e garantias de não repetição.

• Assegurar que a Polícia Militar adote e torne públicos protocolos operacionais para o uso da força e de armas de fogo que cumpram as diretrizes e normas internacionais, além de oferecer treinamento periódico aos policiais sobre a adoção desses protocolos.

• Suspender os policiais militares envolvidos em ações que resultem em mortes até que as investi-gações necessárias tenham sido realizadas. Especialmente nesses casos, o policial deverá rece-ber apoio psicológico e treinamento adicional específico sobre o uso da força e de armas de fogo.

• Assegurar que o Ministério Público cumpra sua função constitucional de exercer o controle ex-terno da atividade policial, promovendo ações efetivas que monitorem o uso de força letal pela polícia.

• Incorporar ao direito nacional os princípios e normas internacionais relativos ao uso da força na aplicação da lei, principalmente aqueles estabelecidos no Código de Conduta da ONU para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e nos Princípios Básicos da ONU sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei.

RECOMENDAÇÕES SOBRE O POLICIAMENTO DE MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS:

As autoridades federais e do Rio de Janeiro devem: • Estabelecer e pôr em prática mecanismos públicos de prestação de contas claros e eficazes

para investigar denúncias de violações cometidas por agentes de todas as forças de segurança responsáveis pelo policiamento de protestos e manifestações públicas, garantindo que os res-ponsáveis por violações de direitos humanos sejam submetidos aos procedimentos disciplinares e penais apropriados.

• Assegurar que as polícias Civil e Militar, assim como outras forças de segurança, recebam treina-mento eficaz e adequado para o policiamento de protestos e manifestações públicas, inclusive as de grande porte. Os agentes das forças de segurança devem principalmente receber treinamento sobre o uso apropriado das armas chamadas “menos letais” e sobre as normas internacionais relativas ao uso da força.

• Criar regulamentos para o uso de armas chamadas “menos letais”, que sejam compatíveis com as leis e normas internacionais relativas aos direitos humanos e à aplicação da lei.

• Assegurar que as pessoas não sejam detidas ou processadas criminalmente por simplesmente exercerem seu direito de participar de manifestações pacíficas.

• Assegurar que os agentes da polícia e de outras forças de segurança, inclusive as forças arma-das, sejam identificados individualmente durante operações de manutenção da ordem pública, por meio do uso de crachás de identificação claramente visíveis e contendo o nome ou o número de cada agente. Equipamentos de proteção não devem ser usados de forma que oculte a iden-tificação individual dos agentes.

Ação da Anistia Internacional chama a atenção para o risco de violações de direitos humanos antes e durante os jogos, Praça Mauá, Rio de Janeiro, 2016.14

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