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    Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,

    entre o Velho e o Novo Mundo

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 278

    Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,

    entre o Velho e o Novo Mundo1

    Mariana de Moraes Silveira

    Mestranda em Histria pela [email protected]

    RESUMO: Este trabalho se prope a discutir alguns aspectos concernentes atuao intelectualdos juristas no Brasil dos anos 1930 e 1940, em especial sua abertura ao dilogo com os pases daHispano-Amrica. Para tanto, tomamos como ponto de partida a obra O ensino e o estudo do Direitoespecialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, de Haroldo Vallado, publicadaoriginalmente de maneira seriada no Jornal do Comrcio entre dezembro de 1937 e junho de 1940.

    Tecemos algumas consideraes sobre o papel intelectual e poltico desempenhado pelos juristasna Amrica Latina. Em seguida, discutimos aspectos da trajetria intelectual de Vallado, para, aofim, analisar as representaes que ele constri acerca de nossos vizinhos hispanfonos.

    PALAVRAS-CHAVE:Juristas, Amrica Latina, Haroldo Vallado

    ABSTRACT: In this paper, we seek to discuss some questions regarding intellectual activities ofthe jurists in 1930's and 1940's Brazil, focusing on the dialogues they established with theHispanic-American countries. Our starting point is O ensino e o estudo do direito especialmente doDireito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo [The teaching and the study of law especially PrivateInternational Law in the Old and in the New World], by Haroldo Vallado, originally published between

    December 1937 and June 1940 as a series of articles in Jornal do Comrcio. We analyze theintellectual and political role played by jurists in Latin America. We then discuss some aspects ofVallado's intellectual trajectory. Finally, we analyze some of the representations he developsabout our Spanish-speaking neighbors.

    KEYWORDS:Jurists, Latin America, Haroldo Vallado

    Embora menes s faculdades de direito como celeiros da intelectualidade brasileira

    e centros formadores de nossas elites ao longo de todo o sculo XIX e nas primeiras dcadas do

    XX sejam recorrentes, a historiografia voltada aos intelectuais raramente se debrua sobre aatuao propriamente jurdica desses homens. Em geral, a viso que os estudiosos das

    humanidades tm a respeito do direito profundamente negativa: ele percebido frequentemente

    como mero instrumento de dominao ou, ao menos, como uma esfera da vida social inexorvel

    1 Gostaria de agradecer aos pareceristas annimos que avaliaram este trabalho, cujos comentrios auxiliaramimensamente no aprimoramento do texto final. Quaisquer erros remanescentes so de minha inteiraresponsabilidade.

    Tambm agradeo professora Eliana Dutra, pela orientao atenta, e aos colegas do Projeto Brasiliana, pelo dilogoconstante e sempre muito frutfero.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    e maleficamente ligada ao conservadorismo2. Isso faz com que o pensamento jurdico pouco seja

    tomado como questo a elucidar e impede que ele seja apreendido em sua especificidade e em sua

    complexidade, deixando de lado toda uma srie de questionamentos que, acreditamos, poderiam

    levar a resultados muito reveladores.

    No caso do Brasil dos anos 1930 e 1940, essa recusa do direito como objeto da histria

    intelectual especialmente grave, uma vez que estiveram em debate, nesses anos, aquelas que,

    muito provavelmente, foram as mais amplas reformas legislativas da histria brasileira,

    contemplando, ao menos em projeto, todos os textos centrais do sistema normativo do pas 3. Ao

    longo da concretizao de tais reformas e mesmo aps o golpe de novembro de 1937, com o

    consequente fechamento do Congresso, havia um interesse em garantir a realizao de debates

    pblicos, mobilizando os detentores do saber jurdico, acerca das novas leis que eram escritas. O

    reparo crtico dos entendidos e tcnicos, magistrados e advogados foi erigido pelo prprio

    Getlio Vargas, no discurso comemorativo do primeiro aniversrio do Estado Novo 4, em

    condio necessria para que os novos cdigos fossem postos em vigor. Embora tenham tido em

    publicaes especializadas, como as revistas Forense e dos Tribunais, seus loci privilegiados, esses

    debates no ficaram a elas restritos, alcanando tambm as pginas de peridicos de grande

    circulao, comoA noiteeJornal do Comrcio.

    Essa foi tambm uma conjuntura em que o direito muito se aproximou daquilo a que seconvencionou chamar pensamento social brasileiro, tendo os juristas se preocupado, em

    especial, com a questo da adequao das leis realidade nacional5.Alm disso, muitos homens

    conhecidos como idelogos do Estado Novo foram tambm e talvez principalmente juristas. Para

    2 Nesse sentido, merece ateno a ressalva feita por Koselleck, de que, dada a relao peculiar que o direitoestabelece com a temporalidade, aspirando durao e repetibilidade, certo grau de conservadorismo seria no algonegativo, mas inerente atuao dos juristas: A durao necessita precisamente de tempo. , talvez, porque osjuristas so to mais conservadores que seus outros colegas: conservadores no por motivos polticos, mas porque seu legtimo direito. KOSELLECK, Reinhart. Histoire, droit et justice. In: L'exprience de l'histoire. Paris: Seuil,Gallimard, 1997, p. 180, traduo nossa.3 Sem mencionar as leis trabalhistas, j muito discutidas pela historiografia, e alm de uma vastssima legislaoesparsa, regulando temas que vo das falncias ao jri, da represso poltica aos incentivos a agricultores,consideramos importante destacar os cdigos, diplomas legislativos marcados pela pretenso completude e centraisna moderna concepo do direito. Trs deles foram elaborados durante o Estado Novo: de processo civil (1939),penal (1940) e de processo penal (1941). Ressalte-se, tambm, que foi elaborado sob a gide do governo varguista umprojeto de cdigo das obrigaes (1941), pensado como uma reforma, no concretizada, de parte da legislao civil.O objeto da pesquisa que estamos desenvolvendo no mestrado, a partir da qual surgiu este estudo pontual, odebate que se desenvolveu nas revistas jurdicas a respeito de tais reformas legislativas, entre os anos de 1936 e 1943.4 VARGAS, Getlio. A nova poltica do Brasil. v. VI Realizaes do Estado Novo 1 de agosto de 1938 a 7 desetembro de 1939. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, s/d. p. 105.5 Segundo Maria Stella Martins Bresciani, a expresso realidade nacional viveu larga voga entre os crticosbrasileiros do liberalismo nas primeiras dcadas do sculo XX, sendo Alberto Torres o autor considerado pioneiro e

    definidor dessa noo. Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da cincia e a seduo da objetividade: OliveiraVianna entre intrpretes do Brasil. So Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 166-169.

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    citar apenas dois exemplos bastante conhecidos, mencionemos que Oliveira Vianna e Francisco

    Campos, alm de bacharis com grande atuao na reforma das leis que acima mencionamos (o

    primeiro foi consultor jurdico do Ministrio do Trabalho na dcada de 1930; o segundo, Ministro

    da Justia durante boa parte do Estado Novo), eram autores de esforos de interpretao do

    Brasil em que o direito ocupava lugar de destaque e presenas constantes nas pginas dos

    peridicos especializados da rea. Essas mesmas publicaes apresentavam, nos anos 1930 e

    1940, outra instigante caracterstica: uma grande abertura ao dilogo com intelectuais de outros

    pases, notadamente os provenientes da Hispano-Amrica6, ainda que os modelos de civilizao

    e cultura no deixassem de ser europeus ou, em alguns casos, norte-americanos.

    A partir de todas essas questes, pretendemos refletir de maneira mais detida sobre uma

    obra que consideramos muito significativa e reveladora acerca da complexidade da atuao

    intelectual dos juristas nessa conjuntura: O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito

    Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, de Haroldo Vallado, ento professor da

    Universidade do Brasil. Escrito como um misto de relato de viagem, guia bibliogrfico e

    manifesto em defesa da disciplina mencionada no ttulo, o trabalho foi publicado originalmente

    de maneira seriada no Jornal do Comrcio, influente rgo de imprensa fundado no Rio de Janeiro

    em 1827, entre dezembro de 1937 e junho de 1940. A partir de setembro de 1938, foi retomado

    na Revista dos Tribunais, peridico jurdico paulistano lanado em 1912 e ainda hoje editado, naseo Pginas Destacadas7, que ocupou de maneira descontnua at maro de 1940. Em

    setembro do mesmo ano, apareceu em forma de livro, editado pelo parque grfico do peridico

    jurdico que o acolhera em suas pginas, ento um dos mais modernos do pas 8. digno de nota

    6 Em levantamento ainda bastante incompleto, conseguimos identificar 80 ttulos estrangeiros citados nas resenhasbibliogrficas das revistas jurdicas brasileiras editadas entre 1936 e 1943. Destes, 66 eram publicados na hispano-amrica, nos seguintes pases: Argentina, Chile, Colmbia, Cuba, Equador, Mxico, Peru, Uruguai e Venezuela.Consideramos importante ressaltar que essas resenhas listavam no todo e qualquer peridico, mas apenas aquelescom que a publicao mantinha permuta, o que aponta para o carter institucionalizado e slido dessas trocasintelectuais.7 Trata-se de uma seo irregular, situada na poro final do fascculo, comumente utilizada para a publicao seriadade trabalhos longos. Pginas Destacadas tambm trazia, muitas vezes, material como discursos e conferncias,textos menos tcnicos, se comparados aos que compunham a seo Doutrina. Rubrica clssica dos peridicos dedireito, voltada para os trabalhos tericos da rea, esta ltima seo ocupava, em quase todos os ttulos ( o caso daRevista dos Tribunais), as primeiras pginas de cada nmero. Em diversos momentos, contudo, a diferena entre asfunes desses dois espaos da revista paulistana no muito clara, levando-nos a suspeitar que a opo por umdeles se ligava mais a escolhas editoriais, buscando dar maior destaque a alguns textos, que a critrios rigidamentetraados.8 Salvo meno em contrrio, utilizamos, para a redao deste trabalho, o texto do livro: VALLADO, Haroldo. Oensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo . So Paulo: Revista dosTribunais, 1940.Sobre o parque grfico da Revista dos Tribunais, fundado em 1927, ver comentrios a respeito de seu emprego na

    impresso de volumes da Coleo Brasiliana, amplo projeto editorial lanado em 1931 com o intuito de reunirconhecimentos sobre o Brasil, em: DUTRA, Eliana de Freitas. A nao nos livros: a biblioteca ideal na coleo

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    que o ttulo tenha sido levemente alterado entre a publicao na Revista dos Tribunais, onde

    apareceu como O ensino e o estudo do direito internacional privado no Velho e Novo Mundo, e aquela feita

    em livro, como uma provvel estratgia editorial, buscando dar ao trabalho a aparncia de estudo

    com escopo geral e, assim, fazer com que interessasse a um pblico mais amplo. Esse fato e a

    multiplicidade de publicaes do texto, se no nos permitem afirmar categoricamente a grande

    circulao ou mesmo o impacto do estudo, apontam, ao menos, para uma inteno explcita em

    difundi-lo por uma variedade de meios, algo que de forma alguma deve ser desprezado em

    anlises voltadas para a produo e o trnsito de ideias.

    Em um primeiro momento e buscando situar o tema em um cenrio mais amplo,

    tecemos breves consideraes sobre a atuao intelectual e poltica dos juristas na Amrica

    Latina. Em seguida, discutimos alguns aspectos da trajetria intelectual de Haroldo Vallado,

    dando destaque a seus protestos contra a supresso da cadeira de direito internacional privado

    nos bacharelados em direito, operada em 1931. Analisamos, por fim, O ensino e o estudo do Direito...,

    com foco no olhar (nem sempre generoso) que Vallado dirige aos nossos vizinhos

    hispanfonos. Com isso, esperamos contribuir, por um lado, para que reflexes historiogrficas

    se voltem para essa figura ainda to desconhecida do intelectual-jurista e, por outro, para

    elucidar, nessa rea especfica do conhecimento, alguns pontos das relaes com essa outra

    Amrica9

    , da qual nos sentimos, a um s tempo, to prximos e to distantes.Juristas e poltica na Amrica Latina: algumas reflexes preliminares

    Ainda hoje, as funes que o titular de um diploma jurdico pode vir a desempenhar so

    muito amplas e no necessariamente relacionadas ao direito. No Brasil, durante o Imprio e ao

    menos at o incio da Repblica, quando eram poucas as formaes superiores disponveis, o

    bacharelado em direito serviu, para muitos jovens, como um trampolim para a poltica ou para

    a vida literria, muito mais que como porta de entrada para uma carreira jurdica propriamente

    dita10. Interessa-nos menos, aqui, discutir essa dimenso da trajetria dos diplomados em direito

    Brasiliana. In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves. (Orgs.). Poltica, Nao e Edio: O lugar dosimpressos na construo da vida poltica. So Paulo: Annablume, 2006, p. 303 .9 A expresso empregada, para pensar a complexa e ambgua insero do Brasil na identidade latino-americana,tanto por Jos Murilo de Carvalho quanto por Ktia Gerab Baggio. Ver: CARVALHO, Jos Murilo de. Brasil: outraAmrica?. In: Pontos e Bordados: Escritos de histria e poltica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 269-274;BAGGIO, Ktia Gerab. A outra Amrica: a Amrica Latina na viso dos intelectuais brasileiros das primeirasdcadas republicanas. 1998. Tese (Doutorado em Histria Social)Universidade de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Histria, So Paulo.10 Nesse sentido, ver as concluses apresentadas por Srgio Adorno, em que dado grande destaque atuaoliterria e poltica dos bacharis formados no Largo do So Francisco durante o Imprio, em especial no que tange

    aos peridicos publicados pelas organizaes acadmicas: ADORNO, Srgio. Os aprendizes do poder. O bacharelismoliberal na poltica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 235-246.

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    que buscar enfatizar uma possvel atuao intelectual desses homens no desempenho de funes

    jurdicas ou, ao menos, que guardem alguma relao com essa rea do conhecimento.

    impossvel, contudo, separar completamente as duas dimenses: no se pode negligenciar, por

    um lado, o carter de polgrafos por excelncia de inmeros dos bacharis latino-americanos e,

    por outro, sua forte e recorrente atuao poltica.

    Nesse sentido, eles foram, sem dvida, alguns dos membros centrais da cidade letrada

    de que fala Angel Rama11, atuando desde muito cedo na instaurao de uma estrutura

    administrativa, mas tambm de uma ordenao simblica da realidade. No contexto das

    independncias, segundo Carlos Altamirano, os juristas desempenharam papel decisivo na

    conformao institucional dos novos Estados, na medida em que a elaborao de cdigos legais

    foi um mecanismo importante empregado no processo de construo de identidades nacionais,

    bem como na formalizao da emancipao da metrpole12. No por acaso, Andrs Bello, o

    homem que Julio Ramos toma como grande exemplo da defesa da prevalncia do saber dizer e

    das belasletras, em oposio a uma viso mais moderna da literatura, que lhe buscava conferir

    um estatuto de autonomia (sustentada por Sarmiento), dedicou boa parte dos anos 1840 e 1850

    redao do Cdigo Civil Chileno, que foi pensado e recebido no apenas como obra jurdica, mas

    tambm literria13.

    De maneira semelhante, sustenta Rogelio Prez Perdomo:

    A independncia no apenas significou a separao da Espanha mas tambm abusca de um novo tipo de legitimidade, jurdico-democrtica. Da a enormeimportncia da instrumentao jurdica da independncia, dos congressos, dasconstituies e das leis que acompanharam o processo. Isso o que confereimportncia aos juristas no processo da independncia. Foram os grandes idelogosdo novo regime e tambm os organizadores dos novos estados.14

    Atentar para esse fato especialmente relevante para pensar o caso latino-americano,

    tendo em vista que os intelectuais mantiveram estreitos e complexos laos com o poder estatal,

    ainda que isso cause estranheza a certos olhares europeus preocupados com a independncia e opapel crtico desses pensadores (mas, poder-se-ia argumentar, nem mesmo na Europa a

    11 RAMA, Angel.A cidade das letras. So Paulo: Brasiliense, 1985.12 ALTAMIRANO, Carlos. Introduccin general. In: ALTAMIRANO, Carlos. (Org.). Historia de los intelectuales enAmrica Latina:La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. p. 9.13 Ver RAMOS, Julio. Saber dizer: lngua e poltica em Andrs Bello. In: Desencontros da modernidade na Amrica Latina.Literatura e poltica no sculo 19. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 46-61, em especial o comentrio, feito nap. 61, a respeito da busca pela imposio simultnea da lngua e da lei como forma de conter a barbrie.14 PERDOMO, Rogelio Prez. Los juristas como intelectuales y el nacimiento de los estados naciones en Amrica

    Latina. In: ALTAMIRANO, Carlos (Org.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina, p. 173. Traduo e grifosnossos.

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    autonomia alcanou a plenitude, muito embora tenham sido fortes as reivindicaes por ela) 15.

    No Brasil, essa intensa atuao intelectual dos bacharis em direito tambm se observa, em

    estreita ligao com o protagonismo da educao jurdica na formao das elites polticas.

    Alm disso, no se pode esquecer que, durante um longo perodo, a formao jurdica

    era a nica disponvel para os sujeitos interessados em humanidades, de forma que, outra vez no

    dizer de Perdomo, os estudantes e os graduados em direito faziam tambm periodismo,

    literatura, histria e participavam em reunies polticas e sociedades secretas16. No final do

    sculo XIX e nas primeiras dcadas do XX, observa-se claramente um esforo de autonomizao

    do direito, buscando fund-lo em bases tidas como mais tcnicas e menos retricas. O domnio

    da cultura letrada, contudo, no abandona completamente o mundo jurdico, ocasionando certas

    ambiguidades nas formas de pensar e de atuar no espao pblico desses homens.

    Feitas essas breves consideraes, um esclarecimento se faz necessrio em relao ao

    sentido que daremos ao termo jurista ao longo deste trabalho. A expresso ser empregada

    para nos referirmos no a todo e qualquer bacharel em direito, mas aos homens que se dedicaram

    a uma dimenso especulativa e, no raro, crtica do labor jurdico. Nesse sentido, eles buscaram

    apontar possveis falhas na legislao ou nas prticas forenses e, com isso, engajaram-se em

    debates os mais diversos, muitas vezes recorrendo imprensa de grande circulao o que

    permite uma aproximao frutfera com o domnio da histria intelectual, se aceitas as definiesque enfatizam o papel pblico desses pensadores17. No estamos completamente de acordo com

    a acepo de jurista expressa na introduo de obra coletiva coordenada por Carlos Guilherme

    Mota, inserindo na categoria todos aqueles profissionais dotados de formao jurdica

    universitria, os letrados, que desempenham papis importantes no desenho das instituies

    estatais, assim como na prpria atuao destas18. Consideramos essa definio, a um s tempo,

    excessivamente ampla, por parecer abarcar todo e qualquer graduado em direito, e muito estreita,

    por vincular de maneira inevitvel a atuao do jurista ao Estado. Tampouco aceitamos semressalvas a perspectiva de Gizlene Neder, para quem, em oposio ao simples bacharel, o jurista

    seria aquele que adquiriu notoriedade e respeitabilidade, quer pela via pol tica, quer pelo

    15 Embora trate de um tema mais restrito, a literatura, as reflexes de Julio Ramos so, nesse aspecto, muitopertinentes. Ver: RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na Amrica Latina, em especial o captulo Limites daautonomiaJornalismo e literatura (p. 96-129).16 PERDOMO, Rogelio Prez. Los juristas como intelectuales y el nacimiento de los estados naciones en AmricaLatina, p. 179.17 Nesse sentido, ver, entre outros: SAID, Edward. Representaes do intelectual. Trad. Milton Hatoum. So Paulo:Companhia das Letras, 2005, p. 25-26.

    18 MOTA, Carlos Guilherme. (Coord.). Os juristas na Formao do Estado-Nao Brasileiro. v. I Sculo XVI a 1850.So Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 15.

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    brilhantismo e pela erudio com que pautam sua carreira, geralmente marcando suas atividades

    com a formulao de argumentos notveis sobre a organizao social e poltica do pas 19.

    Consideramos que no a notoriedade alcanada, mas a forma de expresso e de atuao que

    distingue o jurista de outros profissionais do direito.

    Um ltimo conjunto de consideraes preliminares se liga insero dos juristas no

    domnio das culturas polticas. Esse conceito, entendido como complexos sistemas de

    representaes, que congregam valores, vises do passado, prticas sociais e fornecem chaves de

    leitura do mundo, bem como elementos para articulao de projetos de futuro 20, vem sendo

    frutiferamente empregado nos estudos renovados da histria poltica. Acreditamos que, dada a

    natureza das funes que os intelectuais desempenham, pautadas pela produo, difuso,

    apropriao, reapropriao de ideias, tal conceito muito pode auxiliar nas reflexes acerca desse

    grupo social. Quanto aos juristas, entretanto, o problema especialmente complexo, tendo em

    vista a associao comumente feita entre essa esfera e o conservadorismo, a que j nos referimos

    no incio deste texto.

    Reforam esse ponto de vista a defesa da ordem, inerente busca pela estabilidade das

    relaes sociais de que se reveste o direito, e a cooperao direta na construo de aparatos

    estatais autoritrios algo observvel, no caso brasileiro, tanto no Estado Novo quanto na

    ditadura militar instaurada em 1964. Os juristas foram tambm, entretanto, vozes que clamarampela consagrao de garantias fundamentais, militaram a favor dos direitos humanos,

    denunciaram alguns excessos do poder estatal. Percebe-se, assim, o carter ambguo da atuao

    dos profissionais ligados ao direito, ao menos em relao aos aspectos que produzem efeitos para

    alm de seu ofcio propriamente dito. Pode-se dizer, de uma maneira genrica, que eles transitam

    entre as culturas polticas tradicionalista, pelo relevo dado autoridade, e liberal, ao defenderam a

    necessidade do respeito lei21.

    A primeira dessas facetas aponta no sentido de um afastamento da figura do intelectual,ao menos nas definies que enfatizam seu papel de crtico e sua autonomia face ao Estado. A

    segunda sinaliza, contudo, na direo exatamente contrria, podendo at mesmo ser identificada

    19 NEDER, Gizlene. Discurso Jurdico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 99.20Cf., entre outros : BERSTEIN, Serge. IntroductionNature et fonction des cultures politiques. In: BERSTEIN,Serge (Dir.). Les cultures politiques en France. Paris: ditions du Seuil, 1999, p. 7-31; MOTTA, Rodrigo Patto S.Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto S (Org.).Culturas polticas na histria: novos estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 13-37.21 Apropriamo-nos das reflexes de Jacques Prvotat e Nicolas Roussellier sobre a Frana, que, claro, mereceriamcorrees para serem aplicadas realidade brasileira, por isso destacamos apenas dois elementos, mais genricos. Ver

    PRVOTAT, Jacques. La culture politique traditionaliste, p. 33-67; e ROUSSELLIER, Nicolas. La culture politiquelibrale, p. 69-112, ambos em BERSTEIN, Serge (Dir.). Les cultures politiques en France. Paris: ditions du Seuil, 1999.

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    Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,

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    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 286

    arca santa do justo e, a jurando como jurastes e como jurei, afirmamos aeternidade da ordem jurdica, assumimos o compromisso sagrado de defender ajustia, o direito de viver com liberdade, dignidade e independncia, para todosos homens, pequenos ou grandes, pobres ou ricos, fortes ou fracos, e de lutarpara tal fim contra a prepotncia, contra a arrogncia, contra a violncia.24

    Descontados alguns exageros retricos prprios tanto disciplina quanto ao tipo de

    ocasio em que foi proferido, esse trecho uma instigante porta de entrada para pensar a

    trajetria intelectual de seu autor, bem como para formular indagaes acerca de suas conce pes

    no apenas jurdicas, mas tambm polticas e sociais. Filho do tambm jurista e professor de

    direito Alfredo Vallado, ele se graduou em direito em 1921 na ento Universidade do Rio de

    Janeiro, instituio em que se tornou livre-docente de direito internacional privado25em 192926.

    Por uma srie de questes de ordem burocrtica e administrativa, somente em 1940 Haroldo

    Vallado ascenderia condio de professor catedrtico27. Antes disso, porm, ele se engajara em

    um embate pblico fundamental para a compreenso da obra que analisaremos em maior detalhe

    na seo final deste texto.

    Trata-se da supresso do ensino obrigatrio da disciplina que lecionava pela reforma dos

    cursos jurdicos de 1931, a partir da distino entre o bacharelado e o doutorado, sendo o direito

    internacional privado deslocado para esta ltima modalidade de formao. No dizer irnico do

    professor, os reformadores consideraram que o direito internacional privado no tinha utilidade

    profissional, era matria de luxo, de simples aperfeioamento28. No argumento de Vallado,

    tratava-se de algo inadmissvel, dado o carter de pas de imigrao do Brasil, fazendo com que

    fossem encontradas diariamente no foro situaes em que a disciplina se tornava necessria.

    O internacionalista resolveu, ento, combater por duas frentes. A primeira delas, o

    contato direto com os ento ministros Francisco Campos e Oswaldo Aranha, no rendeu os

    frutos esperados. Embora Haroldo Vallado tenha enviado diversas mensagens a ambos e tenha

    24 VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia. Rio de Janeiro: Livraria Jos OlympioEditora, 1943, p. 27-28.25Apenas para esclarecimento do leitor pouco familiarizado com as letras jurdicas, o direito internacional privadopode ser definido, em termos bastante genricos, como o ramo jurdico que se ocupa de questes com conexointernacional relacionadas a indivduos, buscando solucionar conflitos de lei no espao em relao a temas comopropriedade, situao familiar, sucesso. Ope-se, assim, ao direito internacional pblico, ligado a questes maisamplas, como a relao entre os Estados, os tratados e organismos internacionais, o direito de guerra, o direitohumanitrio etc.26 As informaes biogrficas seguem, fundamentalmente, salvo meno em contrrio, o verbete em: ABREU,Alzira Alves de et al. (Coords.). Dicionrio histrico-biogrfico brasileiro: ps-1930. Rio de Janeiro: Ed. FGV : CPDOC,2001, 5v. Disponvel em: . Acesso em: 09 mai. 2012.27 No pretendemos nos deter sobre a questo, que foi exposta minuciosamente e com tons de glorificao de suaprpria trajetria no discurso de posse na ctedra, reproduzido em: VALLADO, Haroldo. Realizao de um idealjurdico. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 7-15.

    28VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 254.

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    urgente a reconstitucionalizao do Brasil, devastado h mais de sete anos,desde 10 de novembro de 1937, por um regime de arbtrio pessoal e feio totalitriaque violentou a conscincia jurdica nacional do Brasil, ansiosa de retomar o rumosecular de suas tradies de democracia e de liberdade.33

    J em 1940, porm, o professor da Universidade do Brasil se valera de sua tribuna deparaninfo para tecer crticas bastante sutis e sofisticadas ao regime ento vigente. As primeiras

    palavras de seu discurso foram uma saudao ao Presidente da Repblica, que presidia igualmente

    a cerimnia. A insistncia no fato de Vargas ser um bacharel e ter prestado o mesmo juramento,

    de defender o Direito e de aclamar a Justia faz suspeitar de uma censura aos aspectos ditatoriais

    do regime estabelecido em 1937, bem antes do contexto de franca crise em que o governo se

    encontrava quando o mesmo jurista ascendeu ao cargo mximo do IAB.

    Essa impresso se refora por uma longa digresso de Vallado sobre o discurso queproferira como orador de sua turma, em 1921, no mbito do qual se batera pe la socializao do

    direito, criticando o sistema jurdico individualista. Aps reconhecer que muitas das

    reivindicaes de ento se haviam transformado em realidade, sobretudo quanto s leis

    trabalhistas, o professor homenageado pela turma de 1940 passa a criticar os excessos a que

    movimento semelhante levara em certos pases da Europa (significativamente, no nomeados),

    chegando a chamar de totalitarismo (qualificativo que, como visto acima, ele retomaria quase

    meia dcada depois como acusao a Vargas) as experincias ali vividas. A afirmao feita logo

    depois, conclamando os formandos a repensar e a reconstruir o direito, refora nossa leitura de

    que, criticando a Europa, Vallado tinha como intuito atingir algum bastante prximo, presente

    no mesmo salo:

    De um tradicionalismo enquistado passou-se a um reformismo sem orientaoe sem limites, e dos abusos do individualismo caminhou a cincia jurdica paraos exageros do estatismo. Pediu-se e se obteve que o interesse de cada um sesubmetesse ao da sociedade, mas depois ultrapassou-se a meta e chegou-se absorocompleta do indivduo pelo Estado.

    Por tudo isto os juristas de 1940 se encontram numa atitude paradoxalmenteaproximada daquela de 1921, na necessidade de pregar outra reforma jurdica, de apararagora os excessos de um estatismo absorvente.34

    Mesmo que o elogio feito mais frente ao Estado Novo portugus35 mas no,

    33 Apud LIRA, Ricardo Csar Pereira. (Org.). Instituto dos Advogados Brasileiros. 150 anos de histria: 1843-1993.Disponvel em: . Acesso em: 23 jul. 2012. p. 200.(Grifos nossos).34 VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 31.35 Vallado cita o caso portugus como um exemplo de que o Estado pode ser forte sem extinguir o indivduo

    como unidade moral e afirmou que, embora fosse um dos menores pases da Europa, Portugal era o mais acatadoe respeitado de todos. Qualifica, ainda, de sntese admirvel o seguinte trecho da Constituio portuguesa: A

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    ressaltemos, ao brasileiro complique ainda mais a tarefa de promover o enquadramento

    poltico de Vallado, a censura feita aos excessos do estatismo deve ser tomada como uma

    provocao para pensar o carter complexo das crticas ao liberalismo que se difundiram no

    Brasil a partir das primeiras dcadas do sculo XX. Maria Stella Martins Bresciani demonstrou,

    com muita propriedade, como os ataques ordem liberal e Constituio de 1891 se

    constituram, notadamente a partir dos anos 1920, em uma espcie de lugar-comum, onde se

    encontravam muitos dos representantes do pensamento social brasileiro, inclusive nomes to

    dspares quanto Srgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna. Em alguns momentos, contudo, a

    associao feita pela mesma autora entre essas crticas e propostas de estabelecimento de

    governos autoritrios parece-nos demasiadamente estreita36.

    Embora seja inegvel que ideias desse tipo tenham desempenhado papel crucial na

    formulao da doutrina do Estado Novo, fato ampla e facilmente comprovvel pela leitura das

    obras e pela atuao pblica de, por exemplo, Francisco Campos, o que temos observado, no

    mbito do pensamento jurdico (e que nos parece bastante claro no trecho do discurso de

    paraninfo ora comentado), um panorama bem mais complexo. Havia uma srie de nuances, de

    graus de aproximao e de afastamento em relao a propostas autoritrias entre aqueles que se

    puseram a atacar as instituies liberais. A ttulo meramente exemplificativo, mencionemos uma

    passagem encontrada em artigo de Cunha Barreto, ento desembargador do Tribunal deApelao de Pernambuco, publicado na Revista dos Tribunais em fevereiro de 1939. Discutindo a

    interferncia estatal na formao dos contratos, instrumentos por excelncia do individualismo

    dentro do direito, afirma ele: O dirigismo deixa de ser um bem e passa a ser um mal de grande

    extenso, se deixar de ser um fim, para transformar-se em um instrumento de opresso,

    ultrapassando os limites da ordem jurdica. Dirigismo fora da lei ou da interpretao

    jurisprudencial, ilegalidade37.

    Essa preocupao com os limites da ordem jurdica pode ser lida como um indcioque d respaldo proposta terica de E. P. Thompson a respeito do direito, exposta ao fim da

    Nao Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania s reconhece como limites, na ordem interna, amoral e o direito. Ver:VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 34.36 Um exemplo de tal postura pode ser encontrado no seguinte trecho: Esses crticos das instituies liberaisdefendiam a implantao de uma democracia autoritria, mais condizente com a populao brasileira, consideradadestituda dos rudimentos da educao poltica; portanto, incapaz de pautar sua vida pelos princpios ticos do self-governmentanglo-saxo.BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da cincia e a seduo da objetividade..., p. 167.37 BARRETO, Cunha. O dirigismo na vida dos contratos. Revista dos Tribunais. So Paulo, Ano XXVIII, Vol.CXVII, fascculo n 465, fevereiro de 1939, p. 462. Inmeros textos de teor semelhante, preocupados com a

    socializao do direito, mas tambm com o estabelecimento de limites ao poder do Estado, podem ser encontradosnos peridicos jurdicos das dcadas de 1930 e 1940.

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    obra Senhores e caadores: A origem da lei negra.Recusando-se a enxergar o universo jurdico como

    mero instrumento de dominao, como era a regra na tradio marxista, o historiador ingls

    atenta para o possvel papel de limitador dessa mesma dominao que o direito pode

    desempenhar. Afirma ele: Devemos expor as imposturas e injustias que podem se ocultar sob

    essa lei. Mas o domnio da lei em si, a imposio de restries efetivas ao poder e a defesa do

    cidado frente s pretenses de total intromisso do poder parecem-me um bem humano

    incondicional38.

    Voltando complicada, mltipla e varivel relao com a recusa do liberalismo (ou, ao

    menos, de seus excessos) entre os juristas na conjuntura aqui estudada, podemos dizer que ela

    nos remete, por um lado, postura oscilante de inmeros desses homens face ao Estado Novo e,

    por outro, a seu trnsito por diversas culturas polticas, valorizando simultaneamente a legalidade

    e a ordem, a justia e a autoridade (o que tambm pode ser associado dupla natureza do direito

    na supracitada proposta de Thompson). As duas questes, j sugeridas em diversos momentos

    deste texto, constituem, a nosso ver, chaves preciosas para, a partir da aproximao com a histria

    dos intelectuais, elucidar a atuao dos juristas no Brasil dos anos 1930 e 1940. Quanto a esse

    tema, resta indagar sobre outro aspecto tambm j brevemente sugerido: a abertura ao dilogo

    com os pases da Hispano-Amrica. Tentaremos faz-lo a partir de questionamentos sobre o

    olhar que Haroldo Vallado direcionou, em um de seus escritos, aos mais diversos pases e, emespecial, s vizinhas ex-colnias espanholas.

    O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado

    no Velho e no Novo Mundoe o olhar de Vallado para a Amrica Espanhola

    Como mencionamos no incio deste trabalho, O ensino e o estudo do Direito especialmente do

    Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo foi originalmente publicado no Jornal do

    Comrcio, em trechos seriados. Devemos ressaltar que esse dirio, cujo primeiro nmero circulou

    em 1827, era, no momento aqui estudado, um dos mais tradicionais rgos de imprensa do Riode Janeiro39, alm de contar com bom trnsito entre juristas. Indcios deste ltimo fato so o

    lanamento por seus proprietrios, em 1927, de uma publicao quinzenal voltada para o direito,

    38 THOMPSON, E. P.. Senhores e caadores. A origem da Lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1987, p. 357.

    39 O ttulo publicado ainda hoje, embora nem de longe conte com o prestgio que alcanara em outros tempos.Em nota a respeito de sua trajetria disponvel na pgina da internet do jornal, a publicao se vangloria de ser omais antigo ttulo de publicao ininterrupta da Amrica Latina. Ver: Jornal do Commercio: quase dois sculos de

    histria. Disponvel em: . Acesso em: 23 jul. 2012.

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    o Arquivo Judicirio, e a frequncia com que se republicavam textos do Jornal do Comrcio em

    peridicos jurdicos, como ocorreu com a obra aqui discutida na paulistana Revista dos Tribunais.

    Conforme tambm sugerimos brevemente, o texto de Haroldo Vallado tem estrutura hbrida,

    pouco se parecendo com um tratado de direito em moldes tradicionais e mesclando elementos

    dos relatos de viagem, de resenhas bibliogrficas e da militncia em favor de uma disciplina, para

    a qual o recurso biografia dos grandes mestres frequente.

    Nesse sentido, interessante perceber que, na nota introdutria aposta publicao em

    forma de livro, feita em setembro de 1940, ao explicar como fora construdo o trabalho, Vallado

    no estabelece grandes distines entre os textos elaborados pela observao direta e aqueles

    baseados em outros autores. Isso nos remete valorizao da palavra escrita entre os juristas,

    como se o recurso s bibliotecas fosse tambm uma forma de viajar: Vo ser lidas impresses de

    visitas s grandes Universidades e Bibliotecas do Mundo e de passeio em nossa prpria livraria,

    modesta, mas produto de mais de um decnio de dedicao ao ensino e ao estudo do direito 40.

    Essa constatao se torna ainda mais significativa se aliada percepo de que trecho

    praticamente idntico j se encontrava nas publicaes anteriores noJornal do Comrcioe na Revista

    dos Tribunais, dentro da introdutria seo Preliminares, que acompanhou a primeira das partes

    em que fora dividido o longo trabalho em ambas as ocasies. Mais que isso, a passagem serviu,

    no jornal carioca, como uma espcie de epgrafe, nas edies que trouxeram a continuao dotexto do professor da Faculdade Nacional de Direito, sendo transcrita com recuo logo abaixo do

    ttulo e seguida de breve explicao (Do artigo inicial) 41.

    Deixamos intencionalmente de lado, no incio deste trabalho, uma informao relevante:

    a obra no apareceu em um s fluxo de publicaes no Jornal do Comrcio, mas em dois blocos

    separados por um perodo bastante extenso. O primeiro deles, construdo em torno das viagens

    de Haroldo Vallado Europa, realizadas em 1935 e 1936, mas contemplando tambm pases

    asiticos, africanos e regies europeias que o autor no visitara diretamente, apareceu entre 25 dedezembro de 1937 e 23 de abril de 1939. Tendo a srie de artigos sido inaugurada em nmero

    40 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. VII. (Grifos nossos).41 Conseguimos consultar apenas parte das edies originais do Jornal do Comrcio em que apareceu a obra aquidiscutida, mas tudo leva a crer que idntica epgrafe acompanhou todos os trechos que se seguiram ao primeiro. Ver,exemplificativamente: VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito Internacional Privado no Velho e no

    Novo Mundo.Jornal do Comrcio. Rio de Janeiro, 23 de abril de 1939, p. 6.

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    comemorativo de Natal42e sado em seguida sempre aos domingos, em edio tradicionalmente

    nobre da imprensa diria, pode-se concluir que o jornal carioca conferiu ao empreendimento

    de Vallado prestgio considervel. O segundo conjunto de textos, iniciado apenas em 11 de

    fevereiro de 1940 e estendendo-se at 16 de junho do mesmo ano, inteiramente dedicado s

    Amricas, com destaque para a viagem feita aos Estados Unidos em 1937. Acreditamos que essa

    pausa, justamente na conjuntura da ecloso da guerra que Vallado chamara de total no

    discurso de paraninfo acima discutido brevemente, no casual. Face ao severo lamento do

    conflito feito pelo autor na supracitada nota aos leitores da verso em livro43, possvel supor que

    a escrita do segundo bloco, lanando um olhar atento ao Novo Mundo, tenha sido

    impulsionada pela inteno de apresentar uma alternativa barbrie em que se vira mergulhado

    o Velho Mundo.

    Essa impresso se refora pela narrativa profundamente elogiosa feita de sua estadia nos

    Estados Unidos e encontra uma eloquente sntese no trecho com que encerra a nota sobre a

    nova-iorquina Universidade de Columbia. Haroldo Vallado a considerou mais cosmopolita do

    que suas rivais, Harvard ou Yale e mesmo, mais moderna nos seus docentes e mtodos de

    ensino, e arrematou, de maneira muito significativa: um mundo novo44. Na representao do

    professor da Universidade do Brasil, esse mundo novo estaria repleto de bibliotecas

    esplendorosas, juristas eruditssimos, alunos e professores exemplares, alm de ser marcado porlouvveis impessoalidade e respeito s leis:

    Ali se respeita o verdadeiro valor pessoal e se tem em grande conta o exatocumprimento do dever. O incompetente, o malandro, o mal educado no gozam deconsiderao. A lei e o regulamento tm uma existncia concreta, real, que todos sentem,indistintamente, e so aplicados por funcionrios e guardas agindo com muitaurbanidade, no se furtando, mesmo a uma certa camaradagem com o pblico.45

    42 Um quadro na primeira pgina de tal edio explicava: Publicamos hoje, dia de Natal, como de costume, umnmero especial do Jornal do Comrcio com variada e interessante cpia de artigos de colaborao, conforme osleitores vero pelo sumrio que damos abaixo. [...] o nmero especial de hoje, comemorativo do Natal, contmtambm a colaborao habitual dos domingos, devendo vender-se pelo preo de 400 ris.

    Seguia-se uma longa enumerao dos textos presentes no jornal, em que o trabalho de Vallado ocupava a p. 12.Embora a explicao do jornal no seja explcita a esse respeito, parece-nos que o texto do jurista de que nosestamos ocupando foi considerado colaborao habitual dos domingos, e no parte propriamente dita do especialde Natal. De toda forma, no deixa de ser significativo que ele tenha sido publicado em uma edio de destaque. Ver:Jornal do Comrcio. Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1937, p. 1.

    43 Ver VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. VIII-IX.44 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo

    Mundo, p. 174, grifos nossos.45 ______.______, p. 171. (Grifos nossos).

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    No difcil perceber nesse trecho uma crtica s prticas brasileiras, algo que tambm

    se pode entrever, de maneira um pouco mais sutil, quando o jurista discute a questo da regulao

    profissional nos Estados Unidos. Trata-se de um tema que, em relao ao direito, suscita

    controvrsias no Brasil desde, ao menos, a fundao do Instituto dos Advogados Brasileiros, em

    184346. Essa agremiao de juristas que, como mencionamos brevemente, Haroldo Vallado

    presidiria em meados dos anos 1940 tinha como um de seus objetivos expressos, desde seus

    primrdios, a formao da respectiva Ordem, encarregada de estabelecer os critrios para

    exerccio das profisses jurdicas. A OAB somente seria organizada quase um sculo depois, no

    incio dos anos 1930, mas a batalha pelo monoplio dos bacharis em direito, a despeito das

    fortes mobilizaes a seu favor, seria vencida em definitivo apenas algumas dcadas mais tarde,

    com a extino da figura dos solicitadores, indivduos sem educao jurdica formal autorizados aadvogar em determinadas circunstncias, e a instituio da obrigatoriedade do exame de ordem.

    Vallado se coloca claramente ao lado dos defensores desses procedimentos que acabariam por

    prevalecer, quando v com bons olhos a insuficincia do diploma para o exerccio da advocacia e

    a consequente seleo social dos alunos das grandes Universidades operada pelo grande rigor

    do Bar exam, espcie de equivalente norte-americano da avaliao hoje aplicada pela OAB 47.

    Ironicamente, o jurista brasileiro no parece perceber a contradio entre essa postura

    nitidamente elitista e a busca pela socializao do direito de que se dissera partidrio ao

    discursar para os formandos da Faculdade Nacional de Direito em 1940.

    Quanto aos comentrios sobre os Estados Unidos, mencionemos, por fim, um

    interessante elogio s prticas acadmicas yankees, que deixa entrever uma crtica Amrica do

    Sul, vista como uma regio atrasada do ponto de vista intelectual:

    O meio universitrio norte-americano detesta, et pour cause, as massudasconferncias e calhamaos, com longas citaes, muitas palavras e poucas ideias,lidas com nfase, profundamente montonas, esse gnero, sculo XIX, que aindaconsegue produzir efeitos em alguns pases sul-americanos. A Europa de hoje tambmno as suporta.48

    justamente o olhar para esses pases facilmente impressionveis pelos exageros

    verborrgicos acusao relacionada ao debate sobre o bacharelismo, recorrente nos combates

    intelectuais brasileiros desde, ao menos, o incio da Repblica que nos interessa analisar em

    46 Para uma leitura profundamente crtica da luta pela regulamentao profissional no Brasil e um relato de seuspercalos desde a Independncia, ver: COELHO, Edmundo Campos. As profisses imperiais. Medicina, Engenharia eAdvocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.47 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 204.

    48 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 204. (Grifos do autor na expresso francesa e nossos no trecho destacado).

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    maior detalhe.

    As impresses de Haroldo Vallado sobre a Amrica Espanhola, ttulo com o qual

    designa o artigo/captulo dedicado aos pases das pores central e sul do continente em O ensino

    e o estudo do direito internacional privado no Velho e no Novo Mundo, publicado originalmente em 31 de

    maro de 1940, no foram, em regra, colhidas in loco. As excees so Cuba, Haiti e Repblica

    Dominicana, visitados brevemente em trnsito rumo Amrica do Norte. Tambm os

    comentrios sobre a Argentina, desenvolvidos ao longo de quase dez das 23 pginas da seo,

    baseiam-se em vivncias diretas, mas a partir de uma viagem anterior quelas que compem o

    corpo principal do trabalho, realizada em 1927. Isso pode ser visto como uma evidncia, por um

    lado, de descaso (ao menos relativo) com a regio e, por outro, do peso desigual concedido aos

    diferentes pases.

    O fato de Vallado dividir o estudo do continente americano em trs captulos,

    Amricas Estados UnidosCanad, Amrica Espanhola e Brasil, carregando somente o

    primeiro deles a designao que deveria encobrir todos esses espaos, pode ser lido, luz da sua

    descriocomo vimos, bastante simpticada realidade norte-americana, como um sinal, ainda

    que bastante sutil, de que o autor tomava esses pases, notadamente os Estados Unidos, como um

    modelo a ser seguido pelo restante do Novo Mundo. A separao entre Brasil e Amrica

    Espanhola pode ser lida, primeira vista, como uma recusa de insero na identidade (bastanteproblemtica, diga-se de passagem) latino-americana, em relao qual os pensadores brasileiros

    apresentaram, ao longo do tempo, posturas mltiplas, cambiantes e, no raro, contraditrias.

    Embora seja inegvel que se trata da afirmao de uma diferena, igualmente razovel, contudo,

    supor que tal diviso se deu em atendimento a critrios histrico-culturais, lingusticos ou mesmo

    por mera convenincia da organizao do texto.

    Uma leitura mais atenta da obra aponta, justamente, para matizes e aproximaes com

    os pases vizinhos. Ao descrever sua visita Universidade de Columbia, por exemplo, Valladoelogia o professor Philip C. Jessup, ilustre internacionalista, por falar um ingls facilm ente

    acessvel aos latinos49. Em outra passagem, relatando um luncheon, misto de almoo e de reunio

    de congregao a que assistira, afirma que a rpida deciso a respeito do posicionamento dos

    professores sobre a reforma da Suprema Corte que Roosevelt tentava aprovar fora um

    espetculo indito para os latinos50. Em ambas as ocasies, est claro que Vallado se considera

    49 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo

    Mundo, p. 173.50 ______. ______, p. 196.

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    Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,

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    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 295

    inserido na categoria de latino, embora, especialmente na segunda, haja um tom de crtica em

    seu emprego.

    A prpria inspirao do trabalho que ora analisamos, enunciada na seo Preliminares,

    teria sido colhida no ilustre internacionalista argentino Estanislau S. Zeballos, autor de uma

    srie de artigos publicada a partir de 1903 sobre o ensino do direito internacional privado na

    Europa e na Amrica51. O curioso notar que esse jurista fundou e dirigiu o Bulletin Argentin de

    Droit International Priv, publicado em francs com o objetivo expresso de atender necessidade

    patritica e cientfica de incorporar a Repblica Argentina ao movimento progressivo do Direito

    Internacional Privado52. Ainda que a autora trate da literatura e no do direito, difcil no

    estabelecer um paralelo entre essa proclamao do patriotismo feita em lngua estrangeira e os

    paradoxos do nacionalismo latino-americano identificados por Leyla Perrone-Moiss, em

    especial quanto idealizao da Frana, que no colonizara esses pases e podia aparecer, no

    sculo XIX da conquista da independncia poltica na regio, como a ptria da Revoluo e da

    Liberdade53.

    Quanto desigualdade no tratamento dos pases, ela nos parece mais verdadeira e

    profunda. Em Amrica Espanhola, a primeira realidade a ser discutida a mexicana, em trecho

    j iniciado com um lamento sobre a pouca quantidade de mestres de direito internacional privado

    que alcanaram projeo para fora de seu territrio. O tom se torna ainda mais crtico quando oautor se volta para os processos de divrcios de estrangeiros, aprovados indiscriminadamente no

    Estado de Chihuahua. Essas decises estariam sendo rejeitadas pelo Supremo Tribunal no Brasil

    e por seus equivalentes em diversos outros pases, sob a acusao de serem contrrias ordem

    pblica54. Esse trecho deixa entrever traos de um conservadorismo de fundo catlico,

    valorizador da famlia, j manifestado por Vallado no relato, profundamente laudatrio, de sua

    visita ao ento recm-fundado Estado do Vaticano e no voto de confiana no fim da guerra

    europeia que fizera na nota aos leitores (O esprito edifica para sculos e o cristianismo parasempre55).

    Ao falar, em seguida, de Cuba, Vallado s reserva elogios a Sanchez de Bustamante,

    51 ______. ______, p. 5. No tivemos acesso a esses textos, mas, pela descrio que deles faz Vallado, parece-nosse tratar de esforo intelectual bastante prximo ao que ele prprio empreende.52 ApudVALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e noNovo Mundo, p. 5.53 Ver PERRONE-MOISS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literrio. So Paulo:Companhia das Letras, 2007, em especial p. 36-41.54 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo

    Mundo, p. 208-209.55 ______. ______, p. IX. Sobre o Vaticano, ver, na mesma obra, p. 152-155.

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    autor do Cdigo Pan-Americano de Direito Internacional (1928), chamado por ele de grande

    especialista do sculo na disciplina que lecionava56. Sobre o pas, sobram ironias: a reticente

    afirmao de que talvez fosse melhor ver Cuba antes da terra de Lincoln, a pilhria sobre as

    cinzas de Colombo, que j [lhe] haviam sido apontadas na Catedral de Sevilha e ainda o seriam

    em S. Domingos, a descrio da biblioteca, que, embora mui moderna, tinha pouco material e

    era pouco frequentada. Sob o ponto de vista das representaes construdas acerca desse outro

    to prximo e com pontos de contato to fortes com a histria brasileira, o comentrio mais

    significativo nos parece estar, porm, alhures, em afirmao que remete a uma ideia de longa

    durao e frequentemente instrumentalizada tanto pela monarquia brasileira quanto pelos

    defensores republicanos de um Estado forte e centralizado , aquela que opunha a ordem

    brasileira ao caos hispano-americano. Explicando o fechamento da Universidade, que frustraraem parte o seu propsito de realizar uma visita de estudos, afirma o professor brasileiro:

    Histria de greves, de poltica, de revolues, coisas comuns nos pases hispano-americanos...57.

    Os olhares mais benevolentes parecem ter sido reservados por Vallado para o Chile e a

    Argentinafato que pouco surpreende, pois eram justamente esses os pases da regio, ao menos

    nas representaes correntes a respeito de suas capitais, considerados ento os mais prximos do

    modelo europeu de civilizao. Quanto ao primeiro, ele destaca a proximidade intelectual do

    Brasil, apesar da ausncia de fronteiras entre os dois pases:Desta nica Repblica sul-americana que no limita com o Brasil [sic] e quenem por isto deixa de ser um dos nossos velhos e caros amigos, diremos que aglria de ter possudo um jurista do tom de Andrs Bello, se junta com a obradeste, 'Princpios de Derecho das Gentes', 1 edio, Santiago 1832 teroferecido o primeiro livro sobre o direito internacional da Amrica do Sul.58

    A Argentina, por sua vez, chamada de grande repblica irm e tem a descrio

    marcada por notas de apelo emocional, em que o autor rememora sua j distante estadia naquelas

    terras, em 1927: tantas coisas amveis com que nos brindaram os argentinos e que tornaram a

    breve estadia em seu grande pas, a passagem, de uma encantadora fita cinematogrfica...59.

    O trecho sobre o Peru iniciado com a elogiosa afirmao de se tratar de um Estado

    56 Merece destaque, nesse sentido, o valor que Vallado atribui ao reconhecimento internacional no elogio aBustamante, como se somente ele pudesse dar um verdadeiro atestado da grandeza do jurista: Pertence, sgrandes associaes cientficas do Novo e Velho Mundo, colabora nas principais publicaes internacionais, emsntese, um legtimo valor da Amrica e do Mundo.VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmentedo Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, p. 211.57 ______. ______, p. 210.58 ______. ______, p. 218-219.

    59 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 220-221.

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    que ficou, para sempre, ligado histria do direito internacional privado pelo 'Congresso

    Americano de Jurisconsultos', reunido em Lima em 1877 e culminando na assinatura de um

    tratado que buscou uniformizar o direito internacional privado. Embora apenas o prprio Peru

    tenha ratificado o documento, levando sua ineficcia, Vallado o comenta em termos ufanistas,

    afirmando que, de qualquer maneira, a Amrica do Sul tivera a primazia inconteste, na obra

    mundial de codificao do direito dos conflitos de leis no espao60. Comentrio de teor

    semelhante se encontra no incio da seo dedicada ao Brasil, logo aps a rubrica Amrica

    Espanhola, em que Vallado sustenta a possibilidade de o pas

    [...] vangloriar-se de ter produzido o primeiro Projeto orgnico e com basecientfica, de legislao de direito internacional privado, quer nas Amricas, querno mundo, o Esboo de Teixeira de Freitas, 1860, e a primeira obra sistemtica,

    precisa e completa sobre o assunto, Direito Internacional Privado de PimentaBueno, Rio de Janeiro, 1863.61

    Isso nos remete a outro dos paradoxos nacionalistas discutidos por Perrone-Moiss,

    ao falar das vanguardas latino-americanas, que pretendiam ser, a um s tempo, nacionalistas e

    cosmopolitas62. Estudioso militante do direito internacional em tempos de exacerbao de

    sentimentos nacionais; intelectual fascinado pelos modelos vindos da Europa e, em verses

    modernas, (pretensamente) pacifistas e muito sedutoras, dos Estados Unidos; homem

    preocupado em afirmar as belezas e o lugar do Brasil entre os povos civilizados ou em pensar,

    como em diversos dos trechos que discutimos, na identidade mais ampla de latino-americano, o

    autor sobre o qual viemos nos debruando parece ter vivido essas ambiguidades com especial

    intensidade.

    Exemplos que confirmem esse fato poderiam ser multiplicados tanto na obra sobre a

    qual nos detivemos, quanto em outros escritos de Vallado. Destacaremos, nesse sentido e guisa

    de concluso, apenas uma significativa mudana observada entre a verso publicada na Revista dos

    Tribunais e as outras duas aparies do trabalho, nas pginas do Jornal do Comrcio e no livro O

    ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo. Noltimo trecho publicado no peridico jurdico paulista, integrante do fascculo de maro de 1940,

    mas datado pelo autor em dezembro de 1939, o tom de otimismo quanto disciplina e ao

    direito:

    Da longa caminhada feita, dessa peregrinao pelo Velho e Novo Mundo,colhemos uma observao: nenhuma das cadeiras do curso jurdico despertou

    60 ______. ______, p. 215-216.

    61 ______. ______, p. 231.62 PERRONE-MOISS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo:paradoxos do nacionalismo literrio, p. 39.

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    entre o Velho e o Novo Mundo

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    no sculo XIX e no sculo XX maior interesse, obteve dedicaes to grandes,apaixonou mais fortemente os sbios, professores, diplomatas, homens deEstado, juzes e advogados dominou o ensino das Faculdades do que o direitointernacional privado.

    Essa afirmao ficou comprovada, de modo a espairecer quaisquer dvidas,com o presente trabalho.63

    A passagem desapareceu por completo da consolidao em livro, que, assim como

    ocorrera na verso do Jornal do Comrcio,encerra-se abruptamente com o final da seo anterior.

    Em tal passagem, o autor, ao justificar a ausncia de discusses sobre o direito internacional

    pblico, afirma que, caso o tivesse feito, a concluso seria de que sempre a conduta internacional

    do Brasil foi uma e nica aquela de nossa tradio. A tradio que Vallado reivindica seria

    eminentemente pacifista e estaria, segundo ele, expressa de maneira lapidar no art. 4 da ento j

    revogada Constituio de 1934: O Brasil s declarar guerra se no couber ou malograr-se orecurso do arbitramento; e no se empenhar jamais em guerra de conquista, direta ou

    indiretamente, por si ou em aliana com outra nao64.

    Esse encerramento do texto, ainda que desprovido do tom otimista do fechamento da

    verso que ocupou as Pginas Destacadas da Revista dos Tribunais,ganha notas menos sombrias

    quando conjugado a outra passagem, extrada de um dos primeiros captulos da obra. Relatando

    sua surpresa ao encontrar, nas universidades italianas, inmeras homenagens ao s professores e

    alunos, juzes e advogados, que tombaram pela ptria na Grande Guerra, afirma HaroldoVallado:

    Espetculo que imps admirao e respeito, mas surpreendeu a um sulamericano, vindo de um continente pacifista, onde nas Universidades seencontram ao lado dos nomes de sbios nacionais, outros de grandes vultosamericanos, como vimos na Argentina e no Uruguai com o nome do imortalcivilista brasileiro, Teixeira de Freitas.65

    Para um jurista marcado por tantas ambiguidades, esse curioso internacionalista em

    tempos de guerras contra a supresso da disciplina que lecionava, os excessos da ditadura

    varguista ou, ainda, no combate ao mais literal dos seus sentidos, observvel na situao em que

    se via imersa a Europa talvez fosse a defesa do pacifismo a nica concluso desejvel. Talvez,

    em sua concepo, os sul americanos, para usar a expresso do trecho citado, enfim tivessem

    algo a ensinar ao tantas vezes reverenciado Velho Mundo.

    Recebido em: 15/05/2012Aprovado em: 14/08/2012

    63 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do direito internacional privado no Velho e Novo Mundo , p. 268.

    64 ______. ______, p. 258.65 ______. ______, p. 19-20.