Um espetáculo vivo > Teatro de bonecos, uma das mais refinadas formas de expressão do ser humano

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Um espetáculo vivo sãopaulo 6 a 12 de junho de 2011 Teatro de bonecos, uma das mais refinadas formas de expressão do ser humano Entrevista exclusiva com Ana Maria Amaral Página 10 Construindo o protagonista Página 12 Página 13 O boneco virou gente grande

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Nosso contato com a arte do Teatro de Bonecos durou intensos 12 meses. O que nos chamou mais a atenção, com toda a certeza, é o impacto que essa manifestação artística provoca em todos os seus espectadores, sem exceção. Se ela é poderosa dessa maneira, por que é tão pouco divulgada pelos grandes canais de mídia?

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Um espetáculo vivo

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Teatro de bonecos, uma das mais refinadas formas de expressão do ser humano

Entrevista exclusiva com Ana Maria Amaral Página 10

Construindo o protagonista

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O boneco virou gente

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Tocados pela arteNosso contato com a arte do Teatro de Bonecos durou intensos 12 me-

ses. O que nos chamou mais a atenção, com toda a certeza, é o impacto que essa manifestação artística provoca em todos os seus espectadores, sem exceção. Se ela é poderosa dessa maneira, por que é tão pouco divulgada pelos grandes canais de mídia?

Dessa dúvida partiu a certeza de que estávamos com o tema certo. A partir do primeiro espetáculo que presenciamos, o encantamento com o trabalho mi-nucioso dos profissionais e o respeito com cada movimento e comportamento que os bonecos faziam foi aparecendo. Desde então, além da admiração com tamanha e rica arte, percebemos o grau de responsabilidade que iríamos ter para que não deixássemos nada daquilo escapar ao nosso leitor.

Como acontece frequentemente no encontro de jornalistas com uma boa história, o trabalho maçante se tornou lúdico, o que era obrigação virou inter-esse e, aos poucos, os integrantes do grupo foram aprendendo a dar vida ao boneco, ver o mundo animado se criando através do inanimado. Foram pouco mais de 20 entrevistas, algumas das quais nem sequer entraram em nossa ma-téria final, porém os atores, diretores, técnicos teatrais, confeccionadores, es-pectadores, e todos aqueles que passaram por nossos gravadores, contribuíram um pouco para que nosso trabalho fosse bem concluído.

Entre os locais visitados, fomos a teatros que incentivam muito essa arte, como o Teatro do Centro da Terra e o Teatro Alfa. Passamos dias inteiros com as principais Companhias de teatro de bonecos, para ver, de fato, qual são as dificuldades cotidianas encontradas por cada integrante, desde o diretor, até um iluminador. Também visitamos lojas de brinquedo dedicadas exclusiva-mente à comercialização dos bonecos; conversamos com gente que tem espe-rança; gente que acredita e se esforça para mostrar para uma criança que um boneco pode ser muito mais magicamente encantador do que um videogame.

Fomos entendendo, após respirar essa arte 24 horas por dia, que nosso grande objetivo teria que ser o de difundir esse espetáculo que, de uma maneira ou de outra, sempre acompanhou o ser humano. Afinal, quem nunca deu vida a um objeto inanimado? Uma grande reportagem acaba envolvendo seus criadores e, hoje, podemos afirmar que a troca existiu. Se temos uma boa história, a arte do teatro de bonecos ganhou cinco apaixonados seguidores.

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Responda rápido: qual foi o último espetáculo de teatro de manipulação que você foi assistir?

Não se envergonhe caso a resposta tenha sido nunca, você não é o único.

Apesar de ainda hoje ser pouco reconhecida pelo grande público brasileiro, principalmente pela falta de divulgação e apoio, o te-atro de bonecos é uma das mani-festações artísticas mais ricas e refinadas, presente entre os seres humanos desde os primórdios na necessidade de se comunicar.

No Brasil, há relatos de que o Padre Anchieta se utilizava de pequenos fantoches na catequese dos índios. Tempos depois, os bonecos representativos foram incorporados na cultura folclóri-ca brasileira, sendo centro das atenções em grandes festas popu-lares ou em intervenções lúdicas pelas ruas de cidades como o Rio de Janeiro e interior de São Pau-

lo na época do Brasil colônia, segundo Ana Maria Amaral, professora da USP, criadora de várias companhias de teatro de bonecos e autora de uma série de títulos sobre o assunto.

Em São Paulo, o teatro de bonecos começou a se popu-larizar com mais intensidade por conta de apresentações circenses que rodavam as ci-dades interioranas. Na capi-tal, a arte chegou firme na metade do século passado, já de maneira erudita e edu-cativa, e foi se intensificando com um número cada vez maior de companhias.

Uma das mais importantes delas é a Cia Truks Teatro de Bonecos. Fundada em 1990, a Truks sempre teve como ob-jetivo usar o boneco de forma lúdica e educacional para cri-anças. “Nossa criação se deu por conta de um encontro de

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CIA Truks durante apresentação do espetáculo “ A Bruxinha “

Raniere , ator - manipulador da CIA Circo de Bonecos e o elefante, o grande protagonista

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bonequeiros que já trabalhavam em outros lugares. Eu e Verônica Gerchman trabalhávamos com teatro de luvas desde 1985, e o Claudio Saltini trabalhava na Companhia Cidade Muda, muito importante na década de 1980. E, então, nós nos reunimos para fazer algo nosso, um espetácu-lo que não dependesse de teat-ros, que pudéssemos levar para qualquer lugar”, relata Henrique Sitchin, um dos fundadores e hoje coordenador da Truks. Ele afirma que o primeiro espetá-culo realizado pela equipe foi a adaptação do clássico da litera-tura infantil, A Bruxinha, de Eva Furnari, para o teatro de anima-ção. Aliás, a própria Eva Fur-nari, encantada pela ideia, fez parte da Truks por um tempo e chegou a ser a manipuladora de sua criatura, a Bruxinha, por um curto período. Desde essa apre-sentação, a Truks já performou mais de cinco mil espetáculos

pelo Brasil e pelo mundo. Após anos de sucesso repro-

duzindo criações de terceiros, a Truks resolveu dar um passo adi-ante com obras autorais para crianças, sem-pre com uma r e p e r c u s s ã o muito positiva, o que acabou abrindo portas para que sur-gissem novas companhias.

Sobre as d i f i cu ldades de um setor tão segmen-tado e especí-fico como o de Teatro de Bone-cos, o coordenador da Truks reve-la que, no momento, o cenário já é bem mais favorável do que o encontrado quando o grupo dava seus primeiros passos. “Enfrentá-vamos todo o tipo de preconceito imaginável. Primeiro, escolhemos o teatro, que já não é grande coi-sa. Depois, teatro para crianças e, por fim, de bonecos. O que se

conhecia em 1990 sobre esse tipo de arte era lençolzinho com fan-toche sendo chacoalhado por cima e, para mudar essa imagem, pen-

amos bastante”, recorda. Sitchin também ressalta que as iniciati-vas públicas e privadas, como os SESCs, aca-bam garantindo a sobrevivência e bom funciona-mento de várias c o m p a n h i a s . “Hoje, com o maior conhe-cimento sobre teatro de bone-cos, aparecem os aproveitadores,

gente fazendo coisa muito ruim, mas, se você faz coisa boa, conseg-ue sobreviver disso”, avalia.

Quem também participou do nascimento da Truks e depois foi alçar voos independentes foi Clau-dio Saltini, que exerce a função de diretor da Cia Circo de Bonecos. O diretor conta que veio do teatro tradicional para só depois conhecer

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CIA Truks durante o espetáculo “ A Bruxinha”

CIA Truks durante apresentação do espetáculo “ A Bruxinha “

“ Na cabeça de muita gente, o teatro infantil é uma es-cada para o teatro adulto, e o teatro adulto uma escada para a televisão. Não é nada disso: são linguagens, são artes, e todas elas existem por elas mesmas”

Claudio Saltini, Cia Circo de Bonecos

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e se apaixonar pela arte do teatro de bonecos. “Aprendi muito na Trucks, o que me deu experiência para fundar, há aproximadamente dez anos, a Cia Circo de Bonecos”, conta, antes de, orgulhoso, reve-lar que o espetáculo Circo de Pul-gas foi considerado a melhor peça de teatro voltado para crianças de 2010 segundo a APCA, Associação Paulistana dos Críticos de Arte.

Atualmente, Saltini é um dos grandes defensores do teatro infantil de bonecos no Brasil, e tenta mudar o que acha ser a barreira que divide uma maior divulgação em cima des-sa manifestação artística. “Na cabeça de muita gente, o teatro infantil é uma escada para o teatro adulto, e o teatro adulto uma escada para a tele-visão. Não é nada disso: são lingua-gens, são artes, e todas elas existem por elas mesmas”, explica.

Na questão da realidade brasileira na área, Saltini teve discurso semelhante a seu amigo Henrique Sitchin. “Quando com-ecei, há 25 anos, meu pai pergun-tou: ‘você tem um plano B para viver, né?’. Mas acabou dando certo para mim, da minha manei-

ra, até porque en-riquecer tem outro sentido para mim”.

Se o espetáculo é para criança, o trabalho deles é de gente grande. Saltini falou um pouco sobre a ex-austiva rotina da companhia para que aqueles 50 minutos saiam perfeitos. “São 7 dias por semana, 24 horas por dia, sem parar”, exag-era entre risos.

No momento, uma das companhias de maior destaque é a Articularte, dirigi-

da por Dario Uzam Filho e criada em 2000. No ano de sua criação, a Articularte já abocanhou o impor-tante Prêmio Panamco de Criação de Bonecos, único voltado exclusi-vamente para o teatro infantil e ju-venil e que conta com importantes jornalistas culturais de diversos veículos, com a peça A Cuca Fresca de Tarsila. O diretor disse ser nítida a diferença de aceitação e entendi-mento do público nos últimos dez anos. “Agora, nosso público já vem

sabendo o que pode esperar, com um olhar crítico também, não compram mais qualquer coisa. Precisa ser con-vincente e, por isso, ralamos muito aqui em tudo que fazemos”, explica Uzman.

Muito trabalho e dedicação, o que acaba sendo reconhecido pelo públi-co. Uma peça de teatro de bonecos pode não estampar uma capa de revista, ter destaque no caderno de variedades no jornal ou, ainda, ser assunto muito difundido em re-des sociais, mas existe um público fiel, cada vez maior, que vai e tenta transmitir e propagar a magia do es-petáculo. Renata Meireles deixava a sala do Teatro Centro da Terra, onde assistiu a Circus – A Nova Tournée, da Cia Circo de Bonecos, acompan-hada de seus dois filhos, estreantes no teatro de animação. “Essa arte tem uma magia capaz de tirar o es-pectador da realidade através da ani-mação. Nós damos vida a algo que não tem. Sempre adorei isso e quero passar esse fascínio para meus fil-hos”, afirmou a mãe de família.

Quem saía da mesma sala era o cineasta Lucas Scandurra, tam-bém satisfeito com o que viu. “É impressionante a técnica desses atores! Uma coisa é você atuar, outra é você dar vida a um objeto que acaba sendo o protagonista do show”, impressionou-se.

Falando nisso, aí entramos em uma das grandes questões dessa arte. Além da dificuldade e adequa-ção dos bonecos para cada tipo de espetáculo, existe sempre aquela polêmica interminável, uma espécie de dilema que divide opiniões: afi-nal, quem recebe os méritos, ator manipulador ou boneco? Antes de tudo, Gustavo Costabile Di Biasi, dono da Fábrica de Ideias, loja de brinquedo, faz questão de dividir o que é uma coisa e o que é outra. “O fantoche é manipulado, o boneco não, são duas coisas diferentes”.

Segundo o professor e doutor em artes Wagner Cintra, técnico, ilumi-

Mini cenário do picadeiro Circo de Pulgas

“Quando comecei, há 25 anos, meu pai perguntou: ‘você tem um plano B para viver, né? ’ Mas acabou dando certo para mim, da minha maneira, até porque enriquecer tem outro sentido para mim”.Claudio Saltini, Cia Circo de Bonecos

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Hipopótamo: criação da CIA Circo de Bonecos

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nador e diretor de teatro de bone-cos, não existe um boneco certo ou errado, um bonito ou um feio. Para ele, o boneco tem que variar de es-petáculo para espetáculo, de acordo com as intenções do diretor. Por isso, é muito importante que o trabalho da confecção dos protagonistas da peça nunca seja feito por terceiros. “A peça não pode ser adaptada para um ou outro boneco, o boneco tem que se adaptar para se enquadrar nos moldes do espetáculo”, bateu o pé, antes de afirmar que gosta muito de trabalhar com bonecos feitos de papel amas-sado, fita crepe e barbante.

Discípulo de Ana Maria Amaral, boneco e ator estão em grau de igual-dade. “Eu acho que é tudo uma sim-biose, é uma transferência, eu gosto dessa relação. Eu nem gosto de usar o termo ‘ator manipulador’, pois acho que é um jogo entre objeto e ator. O manipulador não é um personagem, ele é apenas alguém que atribui vida ao boneco. Por sua vez, o boneco, o personagem, depende do manipula-dor para ter atitudes reais. É tudo uma

espécie de simbolismo”, ponderou.Já Claudio Saltini, da Cia Circo

de Bonecos, a prática é um pouco diferente. “O trabalho é 100% do ator, é ele quem dá movimentos ao boneco. No fim das contas, o grande protagonista é o espectador, pois é ele que realmente dá vida ao boneco, é sua imaginação que faz tudo aquilo ser real”.

Se o assunto é boneco, Dudu Capellini, confeccionador há aproxi-madamente 30 anos, pode ser consid-erado um especialista. Além de man-ter uma oficina em Santo André, que chega e vender, segundo ele, cerca de cinco mil dedoches em um bom mês,

também ministra aulas sobre a arte da manipulação para crianças. “O fan-toche é uma ferramenta poderosa para se desenvolver a coordenação motora da criança, assim como desenhar, pintar, escrever ou costurar”. Ape-sar de todo o bem comprovado que os dedoches fazem para as crianças, ele admitiu um interesse secundário, porém bem intencionado, para que continue as ensinando. “O Brasil tem essa cultura americanizada, no qual o serviço artesanal não é muito valori-zado; então, com esse meu trabalho, também estou querendo formar re-produtores e disseminadores dessa arte, coisa que já vem acontecendo com sucesso de um tempo para cá”, diz o especialista.

Enquanto grande parte das com-panhias e envolvidos com bonecos no Brasil se voltam para o teatro infantil, existem algumas que en-caram essa expressão artística de outra forma, interagindo com o boneco e atingindo o público de maneira completamente diferente. Uma das companhias mais sig-

Mini cenário do picadeiro Circo de Pulgas

“O trabalho é 100% do ator, é ele quem da movimentos ao boneco.”Claudio Saltini, Cia Circo de Bonecos

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É impossível falar de teatro de bonecos no Brasil e não citar Ana Maria Amaral. Professora de teatro de animação na es-cola de Comunicações e Artes da USP, diretora e dramaturga de teatro de bonecos, objetos e máscaras, ela é considerada a maior sumidade no assunto, re-speitada a nível internacional e com um vasto número de livros lançados. Além dos diversos estudos, Ana Maria Amaral di-rigiu algumas companhias, in-clusive o extinto grupo Casulo, que, em 1978, com a peça Pal-omares, mudou completamente o rumo do teatro de bonecos no Brasil, sendo um espetácu-lo mais erudito, complexo e metafórico, provando que brin-car de boneco é coisa de gente grande, sim. A seguir, confira trechos da entrevista exclusiva com a professora.

Quando ocorreram os primeiros registros de repre-sentação artística através de bonecos inanimados?Dizem que a herança é europe-ia, pois quando o padre Anchi-eta catequizava os índios isso acontecia através do teatro, dos gestos. Mais: o que dizem é

que as primeiras manifestações aconteceram no Nordeste do País, mas não eram para cri-anças; eram representações de um teatro mais ligado ao lado social e ao lúdico.

Por que o teatro de bonecos foi levado mais para o lado infantil?A criança vive o inanimado, e o inanimado é parte da vida dela. Assim, ela não consegue distinguir o animado do in-animado. Quando falo em te-atro de bonecos, eu falo em imagens, máscaras, símbolos. Essa é a parte do ritual hu-mano, desde os primórdios até as grandes culturas, como o teatro feito na Índia, na Gré-cia e em todo o Oriente. Havia, inclusive, um tabu, no qual o homem conta que, para que ele fizesse parte de um ritual, ele teria de se disfarçar para falar com os deuses porque ele não é sagrado. Ou seja, já vem desde então uma crença do ritual e da sacralidade do teatro. Só que depois os rituais foram se tornando profanos, e aí entra o lúdico para os adultos. Foi quando a Cia DelArte começa a trabalhar somente com o teatro de atores e começou assim a separação entre as companhias que fariam um trabalho de te-atro tradicional e as que fariam teatro somente para crianças. Graças a essas representações descobriram como as crianças ficavam fascinadas com aq-uilo. A essa altura, é iniciado um trabalho mais didático de teatro de bonecos, no qual o espetáculo ensina as crianças a escovar os dentes, a lavar as mãos, a estudar. E começaram a usar isso como uma forma de atingir as crianças, e o fan-tástico é perceber a poesia e o aspecto lúdico de tudo isso.

na sua avaliação, quais serão os próximos passos para a arte de teatro de bonecos?Então, a pintura se modificou, a es-cultura se modificou, e o teatro ainda demora em se modificar. Hoje, ex-istem muitas manifestações teatrais, mas acho que o teatro tradicional está levando muitos dos elementos do teatro de bonecos, como as más-caras, as sombras, os gestos.

Por que o ser humano se viu na necessidade de se expressar através de bonecos?Os homens se expressavam através da imagem, do totem, através dos desenhos; os ín-dios, por exemplo, faziam isso. Isso acontece desde sempre, com alguma evolução, tornan-do-se lúdica quando surge uma historinha para criança que vira teatro, e assim vai. Além do mais, a gente tem o fascínio da cópia. Não dizem que a gente “foi feito à imagem e semel-hança de Deus?”. Então, acho que a gente busca fazer out-ras imagens da gente mesmo, é como um reflexo. É a busca por se recriar.

Qual é a principal dificuldade que essa arte encontra para re-ceber atenção da mídia?Eu não posso dizer que não tem apoio. Atualmente, temos muito mais apoio que antigamente. A dificuldade, para mim, é realizar projetos experimentais, e eu não tenho esse apoio. Quando você apresenta um projeto aqui em São Paulo, é preciso resolver um problema social ou fazer uma espécie de contrapartida nessa área. Isso é um problema do governo, então é muito mais fácil você ganhar um fomento quando você faz algo ligado à favela, entende? Então, ou eu tenho que fazer de graça, ou ti-rar do meu bolso.

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A Pioneira

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nificativas desse segmento é a Cia Caixa de Imagens, que trabalha na área há aproximadamente 17 anos. O teatro de bonecos erudito no país anda briga para se estabelecer como agora começa a acontecer com o infantil. Mesmo assim, Monica Simões, diretora da Caixa de Ima-gens, afirma que vivem momento privilegiado e, ao contrário do que muitos pensam, por um pouco de sorte e muita competência, desde os primeiros passos a companhia caminhou na direção certa e sempre encontrou seu público e apoiadores. “Uma das grandes ferramentas que mantêm a classe viva hoje é a Lei de Fomento ao Teatro, que hoje tem sua distribuição feita de maneira bem democrática. Nós tentamos manter sempre o diálogo aberto para que isso continue assim”, co-menta Monica, explicando que as comissões responsáveis pelo direc-ionamento de verbas são formadas, em sua maioria, por colegas de pro-fissão, o que é um benefício, pois todos entendem muito bem do as-sunto. Sobre o estilo da companhia, Monica diz que nunca trabalhou com o objetivo de realmente fazer algo erudito, que se diferenciasse do teatro de bonecos infantil, mas que aconteceu naturalmente. Em relação à divulgação da mídia, a diretora da Cia Caixa de Imagens tocou em um ponto crucial, pouco abordado pelos outros entrevista-dos. “Nunca me importei em fazer média com críticos teatrais, ceder um lugar privilegiado ou coisas do

tipo, algo que sabemos que a c o n t e c e bastante no teatro, em troca de uma crítica posi-tiva”.

E se engana quem pensa que apenas São Paulo cria suas Compan-

hias de Teatro de Bonecos. Tem coi-sa muito boa sendo feita em outros estados, em especial na região sud-este. Um bom exemplo é a Cia So-brevento, original do Rio de Janeiro, criada em 1986, e testemunhando em suas turnês o grande público que a capital paulistana possuía. A Cia Sobrevento resolveu abrir a filial por aqui há aproximadamente dez anos.

Luis André, diretor da Companhia, afirma que o teatro de bonecos no Brasil não só está cada vez mais es-tabelecido em nosso território como também atrai atenção e curiosidade no restante do mundo. “Nossa Cia faz duas turnês internacionais por ano. Não conheço uma companhia de teatro tradicional que faça isso. Já visitamos quatro continentes. Ano passado, estivemos no Irã, Chile e Espanha, e esse ano iremos para Sué-cia, Estônia e Chile novamente. O mundo conhece o teatro de bonecos do Brasil como uma arte exponen-

cial”, analisa. Além da direção, mui-tas vezes André também trabalha na manipulação dos bonecos, trabalho que ele define de maneira sucinta. “É como tocar um instrumento, uma habilidade que adquirimos e evoluí-

mos com muito trein-amento e es-forço diário, mas, claro, também de-pende muito do talento e sensibilidade de cada um”.

André tam-bém relata uma nova re-alidade e con-stituição de

público nos últimos anos. Por conta de incentivos e iniciativas públicas, os moradores de zonas periféricas da capital estão se tornando muito mais próximas da arte do que as classes mais favorecidas. “O pessoal da per-iferia teve a oportunidade do contato com nosso trabalho e gosta muito, daquele teatro de origem, ao ar livre mesmo. Se tiver caindo uma chuva torrencial, eles pegam um guarda chuva e vão nos assistir. Já para quem mora no Morumbi ou no Itaim, isso não acontece assim”. Analisou, afir-mando que é constatada a drástica

“É como tocar um instrumento, uma habilidade que adquirimos e evoluímos com muito treinamento e esforço diário, mas, claro, também depende muito do talento e sensibilidade de cada um”luiS andRÉ, Diretor da CIA Sobrevento

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CIA Truks agradece ao público ao final de mais um espetáculoFo

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Imaginação, gestos e sentimentos tudo em um único objeto: o boneco

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diminuição de ocorrências policias em comunidades carentes nos mo-mentos em que eles estão em cartaz nesses determinados locais.

O professor de teatro Guilherme Sant’Anna fez questão de enfatizar

que os bonecos representativos estão entre nossas camadas popu-lares há muito tempo, mesmo que às vezes não reparemos. “Os pro-gramas de televisão sempre explor-aram isso, tinha aquela zebrinha que anunciava os números de uma lotérica. Se for ver hoje, o Toy Sto-ry (famosa animação da Disney), nada mais é do que uma animação de seres inanimados em formato tridimensional, bebe da mesma água que o teatro de bonecos. Nada vem do nada, tudo depende uma

gênese”, ponderou. Dario Uzam, da Articularte, citou até o Louro José, do programa Mais Você, apresen-tado por Ana Maria Braga, porém de maneira negativa, falando que ele

ajuda a desprestigiar a verdadeira arte do teatro de bonecos. “Aquilo é muito apelativo, não existe aquela coisa artesã que acaba dando vida ao boneco. A verdade é que, infeliz-mente, a TV exige uma velocidade que acaba comprometendo o desen-volvimento de todo o espetáculo”.

O cenário é positivo para a evolução e maior conhecimento nacional de uma das expressões artísticas mais nobres e naturais desenvolvidas até hoje. Mas a verdade é que é preciso muito cuidado e calma para que a popu-larização aconteça em seu devido tempo, sem forçar barras ou pular etapas, para, enfim, darmos vida para nossos bonecos.

Construindo o protagonista

Originalmente, os bonecos eram feitos de madeiras com cabeças confeccionadas em cera, mas as técnicas foram se aprimorando e, atualmente, infinitos tipos de materiais podem ser utilizados na sua produção, onde cada detalhe o tornará único e singular.

Hoje em dia, há muito mais oportunidade de escolha na hora de fabricar um boneco, indo desde as bonecas de pano e retalhos – que tanto podem ser simples como as feitas em casa, ou complexas, como fantoches que possuem deli-cados detalhes que os diferenciam um dos outros –, até as de porcela-

na que, frágeis, podem ser usadas também para decoração, visto o modo como são pintadas.

Mesmo assim, há aqueles que continuam praticando técnicas milenares, como o Bunraku, no seu processo de criação. Nesse caso, é necessário até dez anos de aprendizado para que se esteja habilitado a encenar uma peça utilizando-o, já que é projetado para que todas as partes do seu corpo se movi-mentem indepen-dentemente, ne-cessitando de até quatro pessoas para manipulá-lo. De acordo com Claudio Saltini, diretor da Cia Cir-co de Bonecos, “cada movimento do boneco significa alguma coi-sa, não existe um movimento à toa. Tudo isso é estudado”.

Existem, ainda, os bonecos de sombra, cuja imagem é projetada do outro lado da tela. É algo que pode ser feito mesmo em casa, com uma luz como contraste, um

lençol bem esticado e silhuetas a serem expostas por suas sombras. O custo de cada boneco pode variar de R$1,50 até R$100,00, pois “nenhum dos artistas plásti-cos cobram justo pelo trabalho, existe muito amor no processo de cada um”, afirma Gustavo Costa-bilie, dono da loja de brinquedo Fábrica de Ideias.

A magia dos bonecos pode ser explo-rada não só em cena, mas também na sua monta-gem, que é extremamente i m p o r t a n t e para que se crie um indi-vidualismo do objeto e uma aproximação

com seu manipulador. Esse processo acaba dando uma variedade de significados ao personagem, em que um sim-ples rosto desenhado em um palito de picolé expressará toda a história que já é pen-sada na cabeça do ator.

Dedoches, criação de Dudu dos Dedoches

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CIA Articularte confeccionando bonecos

Produção que virou arte

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O boneco virou gente grande

As companhias de teatro de bonecos no Brasil passaram por in-úmeras transformações no decorrer das últimas décadas, e isso foi resul-tado de um casamento entre o gosto do público, que se envolveu mais por esta arte e a linguagem sofisti-cada e detalhada que as companhias desenvolveram nos espetáculos.

De modo geral, tem-se a im-pressão que o teatro de bonecos nunca vai sair do universo e do propósito de encantar o público infantil, mas a manifestação foi aprimorada, evoluiu e hoje encanta a todas as faixas etárias. “Há dez anos não tinha esse nível de recep-tividade. Nas nossas peças, existem vários elementos, e cada um de nós tentamos focar uma particulari-dade, uma coisa que só o persona-gem tem. Isso vai gerar uma leitura de comportamento. Nós fizemos um espetáculo, “Trenzinho Villa lobos”, no Morumbi, e lotou. Ali tem um comportamento fraterno, o relacionamento do filho com o pai dele, que é brabo, severo, e isso as pessoas vão sentindo”, comenta Dario Uzam, diretor da Companhia paulista Articularte de teatro de ani-mação sobre a aceitação do público diante da arte do teatro de bonecos.

O respeito e a consideração pe-las pessoas como sendo uma das principais linguagens nos espe-táculos é o que torna a proximi-dade cada vez mais apaixonante do teatro de formas inanimadas com o público em geral.

E não pense que é fácil trabalhar com teatro de bonecos. Para con-quistar adultos e crianças, os profis-sionais da área têm de focar nos det-alhes, como movimentos, som, luz, sombra e a criatividade, que faz a plateia chegar ao ponto de imaginar que o boneco é real e é dotado de

vida e sentimentos. Toda essa riqueza não veio de graça, até mesmo por que o teatro de bonecos surgiu com outro propósito na humanidade. “Em Roma, na comédia romana, eles ironizavam muito os gov-ernantes e faziam caricatu-ras dessas personalidades públicas de personificação de bonecos para poder ridicularizar e isso era per-mitido na época, pois era uma forma de popularizar os governantes. Eles mal-havam o boneco, batiam no boneco para poupar os governantes, isso é uma manifestação muito inter-essante”, explica o espe-cialista Guilherme Sant’Anna.

Portanto, a ideia de que o teatro foi desenvolvido para crianças é consequência das intensas transfor-mações em que vivemos hoje. “No século 19, era muito difundida essa coisa de bonecos para crianças, pois existia uma adultização da so-ciedade e elas já assumiam respon-

sabilidade muito cedo, então larga-vam os bonecos de mão. O boneco ficou sendo uma coisa infantil, e isso se alastrou por uma sociedade que adotou isso como um meio de expressão infantil, e acabou preju-dicando o boneco como uma for-ma realmente adulta que ele tem”, analisa Sant ’Anna.

O mais incrível, em meio a tantas transformações sofridas pelo teatro de bonecos, é que os costumes dos povos da Antiguidade estão sendo vivenciados novamente em nossa sociedade e está despertando a at-enção do público mais intelectual e formador de opinião. As com-panhias de teatro de bonecos per-cebem a sensibilidade da plateia e estão sempre desenvolvendo seus espetáculos com o objetivo de pas-sar uma mensagem positiva, que desperte a reflexão para uma so-ciedade mais justa e sem precon-ceitos. “É uma conversa sonora e amigável com o público. Temos que ter um termômetro humano e é tocante isso. A companhia apre-nde essa delicadeza, esse respeito com o público. O teatro de bonecos é como uma FM que tem que sin-tonizar”, explica Uzam.

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“É uma conversa sonora e amigável com o público. Temos que ter um termômetro humano e é tocante isso. A companhia aprende essa delicadeza, esse respeito com o público. O teatro de bonecos é como uma FM que tem que sintonizar”daRio uZaM, Diretor da CIA Articularte

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Fotos 1, 2 e 3: CIA Truks

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