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    Luis Angel Ramil

    BlumenauEditora Hemisfério Sul2016

    Um de tantos

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     Edição

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    Luis Angel Ramil

    BlumenauEditora Hemisfério Sul2016

    Um de tantos

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     Edição

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    Conselho editorialLuiz Carlos Eccel

     Nilson Cesar FragaRaul Fitipaldi

    Urda Alice Klueger 

    TraduçãoLuis Angel Ramil

    RevisãoCidnei Raul soares

    Foto da capaMarcelo Labes

    Foto do autor

    xxxxxxxxxxxxxxx

    Capa e editoraçãoJohnny Kamigashima

    Ficha catalográfica

    Editora Hemisfério Sul Ltda.Rua Ursa Maior, 431 – lote 36Escola Agrícola89.037.510 – Blumenau – SC

    Fone (47) [email protected] no Brasil

    R173u Ramil, Luis Angel

      Um de tantos / Luis Angel Ramil –1. ed. – Blumenau : Hemisfério Sul, 2016.

      127 p. : il.

      ISBN 978-85-86857-48-5

      1. Ditadura militar – Argentina – História. 1. Título.

    CDD 22 – 982.064

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    Aos meus filhos, concebidos entre o final do horrore o começo da esperança.

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    APRESENTAÇÃO

     APRESENTAÇÃO

    Conheci Luis Angel Ramil em dezembro de 2009,visitando as ruínas da cidade de Tiauanaco, na Bolívia. Euestava por lá fazendo a cobertura da primeira reeleição de EvoMorales Ayma para presidente da República Plurinacional daBolívia, o que era um fato de primeira grandeza na imprensamundial, tendo em vista que era a primeira vez na Históriamoderna que um índio era presidente de um país e até sereelegia para tal – o que trouxera para La Paz um verdadeiroexército de jornalistas de todos os lados do mundo, com seusmais sofisticados equipamentos. Eu era uma pequena escritoraque cobria o acontecimento para pequenos blogues e jornaisdo Brasil, meio que perdida no meio de tanta gente importantee tantos microfones sofisticadíssimos, e depois, comparando

    os gloriosos acontecimentos daquela noite de final de eleiçãocom os de Luis Ramil, soubemos que tínhamos estado o tempotodo muito próximos, embora não tivéssemos nos visto.

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    Luis Angel Ramil

    Conhecemo-nos no dia seguinte, na cidade de Tiauanaco,fazendo parte de um pequeno grupo de turistas. Sou uma

    apaixonada por Tiauanaco, e então estava tão envolvida com acidade que nem me dei muita conta de que havia um argentinono grupo. Foi na hora do almoço, quando acabamos sentadosà mesma mesa, que, pela primeira vez, prestei atenção àqueleser humano de olhos meigos e inteligentes, que parecia cheiode doçura e de compreensão diante da vida e que, quando mereferi a meu cachorro Atahualpa, fez uma coisa rara:

     – Oh! Teu cachorro tem o nome do último imperadorInca! – disse, e como de 100 pessoas talvez uma ou duas saibamtal coisa, passei a prestar mais atenção a ele. Ali naquela mesa

     já ficou muito clara para mim a sua intensa preocupação coma América Latina, a ponto de ter se abalado desde BuenosAires até aquelas alturas dos Andes, para ver o que acontecia

    com Evo Morales Ayma. A eleição terminara e estávamoscomeçando a fazer um pouco de turismo – comparamos osnossos roteiros. Descobríamos que íamos fazer, nos diasseguintes, exatamente as mesmas coisas, o que compreendiair a Cochabamba, a Santa Cruz de la Sierra, incluindo umaida a la Higuera – o argentino que também viera por causa dareeleição inspirava confiança e tinha aquela doçura que achoque existe em pessoas que viveram grandes sofrimentos –signos que aproximam pessoas pela vida afora – e num instanteestávamos combinando viajar juntos nos trechos seguintes.

     Naqueles dias, muito fui aprendendo sobre Luis AngelRamil. Nascido e crescido em Buenos Aires, muito amargarana vida desde os 12 anos, quando perdera o pai, e peronista

    de esquerda desde os 14 anos, teve seu norte orientado pelo partido. Aos 17 viveu o que consta deste livro, seguindo-setempos difíceis, de clandestinidade e exílio, e tantas, tantas

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    outras coisas que viveu e sofreu por sua família, seu povo e sua pátria.

    A publicação deste livro no Brasil é só para abriro apetite – outros virão, para você poder descortinarum pouco mais sobre as realidades no nosso paísvizinho e irmão, e de como os direitos humanos podem ser usurpados das pessoas. Não vou entrarmuito no mérito do livro aqui – há que lê-lo. Não é

    um livro – é um aprendizado.

    Boa leitura!

    Blumenau, abril de 2016.

    Urda Alice Klueger 

    Escritora, historiadora e doutora em Geografia.

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     Amanhã talvez deva sentar-me perante meus filhos e deva lhes

    dizer que fomos derrotados. Que não soubemos o que fazer

     para triunfar.

     Mas não poderia olhá-los de frente e lhes dizer que eles vivem

    assim porque não me atrevi a lutar. (Mahatma Gandhi)

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    CAPÍTULO UM

    CAPÍTULO UM 

    Quando ele saiu do serviço, dois homens atravessaram arua, correndo. Um deles o empurrou contra o muro e o outro bateu no seu ombro com uma pistola; provavelmente tenha

    querido bater na sua cabeça e fazê-lo desmaiar, como fazemnos filmes. Mas ele conseguiu esquivar-se, correu e recebeuo golpe no ombro. Nesse mesmo momento um carro cinzafreou no meio da rua e dele desceu outro homem segurandouma metralhadora nas mãos.

    Percebeu claramente o que estava acontecendo – omomento que ele tanto temia finalmente tinha chegado.

    Conseguiu descolar as costas da parede, mas não chegoumuito longe, apenas alcançou o poste do ponto do ônibus,ao que se agarrou fortemente como se fosse uma tábua desalvação.

    Ele gritava pedindo socorro agarrado àquele poste do ponto do ônibus. Os sujeitos batiam nele e o puxavam até o

    carro; um deles mordeu a sua mão até tirar um pedaço de pele,mas ele se fez uma bola aferrado àquele poste e segurou-se

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    com maior força ainda. Nesse momento as pessoas começaram a se juntar na

    saída da fábrica e também apareceram alguns vizinhos; ele viuque o Horácio, que era seu colega de trabalho e companheirode militância, enfrentou o cara da metralhadora e gritandolhe dizia:

     – Você vai ter que nos matar a todos!Também interveio um companheiro da fábrica, um

    homem mais velho e que nem se relacionava com ele, mas

    que ficou junto com o Horácio e gritava: – Quem são vocês? Identifiquem-se!Uma mulher gritava: – Não batam mais nele, não batam mais nele! – outros

    diziam mais ou menos as mesmas coisas, outros xingavam.Justo no momento em que sentiu que as forças o

    abandonavam e achou que não poderia se livrar, chegou umônibus lotado de pessoas, e o motorista, não podendo passar por causa do carro atravessado no meio da rua e vendo o queacontecia, começou a buzinar. Alguns passageiros descerame se uniram ao tumulto, enquanto outros gritavam desde as janelas do ônibus.

    O italiano Zuppone, que era outro companheiro e quetinha uma caminhonete estacionada na esquina, escafedeu-seentre as pessoas, atravessou o veículo no meio da rua e saiucorrendo, deixando assim o carro cinza travado entre o ônibuse a caminhonete.

    Houve um instante de dúvida entre aqueles sujeitos. Oque segurava a metralhadora com força gritou:

     – Somos da polícia, deixem passar!O quarto homem que estava sentado ao volante do carro

    cinza tocou a sirene, mas ninguém se mexeu do lugar. Agora

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    CAPÍTULO UM

    os colegas da fábrica ficavam ao seu redor tentando fazer comque aqueles homens não o levassem embora e o deixassem em

     paz. Ao longe se ouviu outra sirene, todos ficaram expectantes;aqueles cães tão depressa não o soltariam, mas já não batiamnele.Parecia não mais sentir a dor das batidas no corpo... masestava muito assustado.

    Havia um charco de sangue sob seus pés.A multidão continuou protestando e exigindo que se

    identificassem.

    Apareceram correndo dois policiais uniformizados; eraevidente que conheciam os que estavam à paisana, porque nãolhes fizeram perguntas, mas ele não só foi questionado, comotambém algemado, e fizeram as pessoas circularem, gritando:

     – Assunto policial, assunto policial!O ônibus saiu de ré e apareceu uma viatura policial com

    mais dois policiais. – Aonde o levam? – perguntava o povo.Os tipos se olharam uns aos outros... – À delegacia – disse o da metralhadora.Foi enfiado na viatura e sentado entre dois policiais.

    Um deles lhe ordenou para abaixar a cabeça, outro lhe faloucinicamente:

     – Que forrobodó que você armou, garoto!Pôde enxergar, pela janela da viatura, como o pessoal

    ficava ali parado, olhando. Entre eles conseguiu descobrirseu companheiro Horácio; ficou mais tranquilo. Horácio seencarregaria de avisar.

    Durante a viagem, que demorou alguns minutos, não lhe

    falaram nem lhe tocaram, só quando queriam que abaixassemais a cabeça para que não visse aonde estava sendo conduzido.Mesmo assim, quando chegaram ao seu destino e ficaram

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    detidos uns instantes, ele pôde ver que estavam em frente aum velho portão metálico de cor amarela; também viu que o

    mesmo foi aberto por dentro por um policial uniformizado.Quando passou por ele pôde vê-lo claramente; notou que, aoolhá-lo, o policial abaixou seus olhos.

    Escutou como se fechava o velho portão atrás de si comuma batida seca. Assim que a viatura se deteve, apareceu na porta esquerda um dos que tinham batido nele na rua: estavacomo louco, parecia possesso.

     – Dê-me esse filho da puta! – gritava. E quase sem dartempo ao policial uniformizado, puxou o prisioneiro peloscabelos e o tirou para fora da viatura.

     Nesse momento apareceu outro dos homens que estava à paisana e, entre os dois, bateram nele até deixá-lo sem fôlego,xingaram-no e ameaçaram matá-lo, destruí-lo, torturá-lo;

    arrastaram-no pelo chão, levando-o entre chutes até um lugaronde havia vários policiais uniformizados. Em algum momentoescutou alguém dizer:

     – Na cara não!Continuaram a lhe dar socos e pontapés, até que alguém

    os deteve. Conseguiu ver que eram separados dele com grandeesforço, assim como é separado alguém que quer continuarna briga, só que ele não podia brigar – estava com as mãosalgemadas nas costas.

    Antes de ir embora, um deles se aproximou e disse: – Hoje à noite vamos te arrebentar, filho de uma puta!!

     – e, dirigindo-se aos outros policiais, berrou: – Não lhe deemágua, este vai para a “churrasqueira”1.

    Ficou aí mesmo, jogado onde caiu. O frio da laje o

    1 Churrasqueira: no caso, signifca uma cama metálica adaptada para tortura, onde a pessoa fca

    amarrada e levando choques elétricos.

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    CAPÍTULO UM

    reconfortou um pouco. No começo nem se mexeu, ficou aliesparramado no chão.

    Via os pés dos policiais quando se aproximavam paravê-lo, ouvia seus passos, mas não ousava nem olhá-los.Conseguiu, ainda, ver os pés de uma mulher.

    Pouco a pouco foi se ajeitando, ninguém lhe falava nemlhe dava ordens; respirava com dificuldade e começou a sentirenjoo. Tossiu e vomitou algo amargo e sanguinolento. Ajeitouseu corpo para receber mais ar, porque sentia que lhe faltava,

    ficou olhando o teto. Ainda era dia. Se fechava os olhos, sentiaque tudo girava, então tratou de mantê-los abertos.

    A meio metro dele havia uma parede. Foi se arrastandolentamente, tenso, esperando que alguém o chutasse ou batessenele, mas isso não aconteceu.

    “É muito estranho como uma simples parede nua pode

    nos parecer um refúgio, ainda que no inferno” – pensou.Quando chegou perto da parede, primeiramente apoiouo ombro, e dessa posição olhou ao seu redor com o canto doolho. À direita havia um quarto com uma larga porta; por elaentravam e saíam policiais a todo momento; olhavam-no,mas não diziam nada. À esquerda havia outra parede e umas janelas fechadas. Do outro lado escutava-se o barulho dotrânsito – pensou que tinha sido trazido por ali.

    Ao pé da parede havia uma pequena construção que eleachou que seria um lugar para guardar gás.

    A noite foi caindo vagarosamente. Ele continuava ali eos policiais continuavam com os seus afazeres sem ligarem para ele. Alguns se detinham para vê-lo, faziam gestos e

    mexiam a cabeça como sentindo pena pelo que viam; algunstalvez até sentissem compaixão, mas nenhum deles o ajudavaou lhe falava. Quando um dos guardas parou para vê-lo, ele

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     pediu com um fio de voz: – Água.

    O homem mexeu a cabeça negativamente e continuouseu caminho.Lembrou-se da ameaça dos tipos à paisana e se preparou

     para o pior.Primeiramente tratou de ajeitar-se um pouco. Sentia mais

    dor pela má posição que pelos socos e pelos chutes, mas cadavez que se mexia o corpo todo era uma dor viva.

    Fez um grande esforço para não gritar, porém não pôdeevitar soltar um gemido. Imediatamente apareceu um policialque o observou sem dizer palavra alguma.

    Com muitíssima dor, ajeitou as suas costas contra a parede. O policial acendeu um cigarro e ficou no seu lugar.Acabou de se acomodar ficando sentado no chão com as

    costas apoiadas na parede. Sentiu-se um pouco melhor. Sabiaque não devia olhar ninguém, já que isso poderia lhe custara vida. Mesmo assim o fazia, ainda que dissimuladamente.

    O policial entrou no quarto da esquerda.Ficou sozinho e um pouco mais tranquilo. Começou a

     pensar na sua situação. O pátio estava totalmente iluminadoe o lugar cheio de policiais. Ele estava ferido e acorrentado.

    Fugir era impossível.Aquilo era uma delegacia, isso era evidente… E era

     bom. Significava que tinha sido detido legalmente, mas ofato de ser tratado como se estivesse morto podia significarque iriam matá-lo. Provavelmente tivessem ordens de agirdesse jeito para lhe provocarem mais medo e prepararem-no

     para a tortura.Apesar da dor e do medo, sua mente trabalhava com

    sofreguidão, repassava o acontecido pensando:

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    CAPÍTULO UM

    “Fui detido em presença de testemunhas e me trouxeramnum carro identificado, eu não o vi. Mas as viaturas têm um

    número que as identifica e talvez alguém tenha tomado notadele, quem sabe mesmo Horácio. Então não vão me matar – pensava esperançoso –, mas com certeza serei torturado.Mas por que fui trazido? Por que não trouxeram o Horáciotambém? Então eles não sabem que militamos juntos... Nãodevo falar do Horácio. Então estou aqui porque alguém me‘cantou’ na tortura. Mas quem, qual companheiro terá caído?”

     – especulava.“Alguém disse que a tortura pode se aguentar. Ho Chi

    Min dizia que isso era a escola dos revolucionários… Mas,se um companheiro caiu, por que só “cantou” meu nome? Porque não “cantou” o nome do Horácio, se sempre andávamos juntos? Então ninguém me “cantou”, pelo menos ninguém

    que conhece minha atividade atual. Devo negar tudo, devodizer que nada sei de política. Quem sabe fui delatado poralgum velho conhecido de outras épocas... Quem sabe deu omeu nome entre muitos outros, ou talvez meu nome estivesseescrito na sua agenda... Não, nenhum revolucionário levariauma agenda carregada de nomes, e se o meu nome estavanuma agenda, então essa pessoa era mais inocente do que eu...Provavelmente tenha sido torturado, não aguentou e começoua “jogar” nomes à toa, e entre esses nomes, deu o meu. Devomanter a minha inocência, custe o que custar, ainda que pareçaque vão me matar. Enquanto torturam, não pensam em matar, precisam de você vivo, precisam que você fale. Depois sim.Mas… poderei aguentar?” – isso lhe preocupava e muito.

     Nas reuniões, dizia-se que sim, que se podia aguentar.Uma vez tinha conhecido um companheiro do sindicalismocombativo e ele dizia que sim, que era possível aguentar,

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    que era conveniente exagerar a dor, que devia se gritar, sesuplicar porque os torturadores adoravam isso, que também

    era conveniente rezar, que isso os confundia, porque eles pensavam que a gente era toda comunista, ateia ou anticristo.Enquanto o tempo passava, o corpo ia esfriando. Não

    havia jeito de acomodar-se porque doía tudo, as costelas, acabeça, o estômago, e lhe custava muito respirar. Tinha na boca um desagradável gosto de sangue e os pulsos latejavamde dor por causa das algemas. Sentia tê-las em carne viva e

    não podia nem mexer um dedo porque a dor era insuportável – o metal das algemas tinha cortado a pele e se enterrado nacarne. Além disso, estava a mordida daquele sujeito na suamão, quando ele tentou se aferrar ao poste no ponto do ônibus.

    Graças a Deus, os policiais de plantão nem ligavam paraele. Desse jeito ele podia minimamente acomodar seu corpo,

    cuspir o sangue sobre sua camisa e pensar…As ideias passavam a mil quilômetros por hora. Ele pensava, por exemplo:

    “Já é noite fechada, e eu fui trazido entre as seis e as seteda tarde. Já se passaram, pelo menos, quatro horas e aindanão me interrogaram. Bateram em mim, me machucaram,mas ainda não fui torturado. Isso foi um corretivo, uma surra.Mas ainda não me interrogaram. O tempo está jogando aomeu favor. Meus companheiros já devem estar se mexendo,alguém deverá apresentar um habeas corpus denunciando aminha desaparição... Talvez eu nem seja torturado?” – refletia para si mesmo.

    Ou pensava:

    “Minha mãe está me aguardando, ela deve estar preocupada. Coitadinha, ela sabe que eu milito, mas nemimagina os riscos que eu corro...” – então a sua mente viajava

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    CAPÍTULO UM

    até a sua casa e conseguia vê-la na porta, com a sua irmãzinha,olhando preocupada em direção da estrada ou, talvez, chorando

    com a panela de comida sem tocar, inutilmente colocadasobre a mesa.Esses pensamentos doíam-lhe mais do que as feridas

    e tentava tirá-los da sua cabeça. Certamente o tio Ho teriareprovado essa debilidade. Também pensava: “O mais impor-tante é saber quanto eles sabem e resistir.”

    Por volta da meia noite aumentou a atividade na

    delegacia. No começo ele achou que trariam mais detidos,ou que aconteceria alguma coisa com a sua situação, mas pelos comentários que conseguia escutar, só se tratava datroca de plantão. Pernas com roupa de civil saíam com pressa.Algum deles gritou para outro que se apressasse porque senão perderiam o último trem.

    Quanta angustia sentiu! Todos iam embora e ele ficavaali! Era como se os conhecesse, ainda que só os tivesse visto pelo canto dos olhos e eles nem tivessem feito nada por ele.O que aconteceria agora?

     Não teve de esperar muito tempo para sabê-lo.Assim que a atividade foi minguando e que tudo voltou

    ao que ele já conhecia, ou seja, ele jogado no chão e o restoao seu redor fazendo qualquer coisa que devesse ser feita,escutou vindo até ele uns passos firmes e pesados.

    Pelo rabo do olho pode ver que um homem calçandocoturnos deteve-se em frente dele, e ficou ali, batendo com a ponta do calçado sobre a lajota – a ponta era de metal. Comoele não levantasse a vista, o uniformizado deu-lhe um chute

    no tornozelo – a batida seca do metal no osso fê-lo gritar. – Levante-se, bicha! – gritou.Houve risos, o homem não estava só.

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    Tratando de aguentar a dor, tentou mexer o corpo, masfoi impossível. Estava com câimbras e com as mãos algemadas

    às costas, não podia se mover. Recebeu outra coturnada commais força. Flexionando o joelho e apoiando as costas contraa parede tentou levantar-se, mas caiu de lado.

    O sujeito dos coturnos, um cara uniformizado, ergueu-o puxando-o pelos cabelos; apoiou seu rosto no dele, cheiravaa vinho azedo. Ele sentiu nojo.

     – Olhe bem para mim, filho da puta! – disse-lhe. – Eu

    vou fazer você “cantar”.Olhou bem para ele. Era um homem de uns trinta anos,

    magro, moreno, com um bigode fininho muito bem cuidado,os olhos puxados. Seu sotaque era do litoral. Havia trêshomens mais, todos de uniforme e muito jovens. O cara erao chefe deles.

    Carregaram-no até o quarto que ficava à esquerda, que erauma cozinha e, ao mesmo tempo, a sala de plantão. Deixaram-no parado olhando contra a parede, estava sendo segurado por dois policiais, um de cada lado. Um terceiro homem lhetirou a roupa – calças, cuecas, sapatos –, deixando-o quasenu. Só não tiraram a camisa, porque não puderam ou nãoquiseram tirar as algemas. Outro policial olhava-o sorrindoenquanto tomava chimarrão. Parecia estar contente com o queacontecia. Era um jovem um pouco mais velho do que ele,loiro, de cara redonda e feições agradáveis. Tinha um risocontagiante. Quando ele ria, os outros riam em coro juntocom ele. O correntino – ele cismou que era da província deCorrientes – permanecia na frente dele de braços cruzados e

    ele percebeu que a intenção era lhe mostrar as suas insígnias.Era sargento. Reconheceu as insígnias porque eram

    iguais às do sargento Arias, um vizinho de sua quadra, que

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    CAPÍTULO UM

    estava na Polícia Federal. O senhor Arias gostava de andarde uniforme e, como ele mesmo dizia, se fazer respeitar. A

    vizinhança o apreciava.De qualquer forma, a essas alturas, a sociedade estavatão militarizada que qualquer uniformizado se achava umgrande chefão.

    O sargento começou com o seu discurso: – É melhor você falar porque senão vou te arrebentar!

    Você é comunista?

     – Não, senhor. – E em que você anda metido? – Eu não ando em nada, não senhor, eu só trabalho. – Aham, tu és subversivo? – Não, senhor, eu não sou nada. – Agora tu vais ver! – abriu uma gaveta que estava sob

    a mesa e tirou uma enorme faca de açougueiro. – Agora tu vais ver! – disse, e apoiou a faca na chamado fogão que estava acesa.

    O sargento olhava-o fixamente como querendo enxergardentro dele. Ele desviou o olhar, o sujeito que tomavachimarrão sorria como um imbecil. Ele achou que, de fato,era um imbecil.

    Quando a faca ficou suficientemente quente, o sargentoa pegou pela empunhadura, sorriu com deboche e fez umsinal aos que o sujeitavam. Eles colocaram a sua cara contraa parede e o sargento tornou a dizer:

     – Agora tu vais ver, vou te queimar o cu! – e foi seaproximando com a faca fumegante.

    O detento começou a forcejar, tentando fugir com ocorpo. O terceiro cara, o sorridente, uniu-se aos outros. Orosto do agredido ficou preso contra a parede, mas quando

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    Luis Angel Ramil

    conseguiu mexer a cabeça, deu de cara com o do bigodinho,que com um sorriso de dentes podres tornou a lhe dizer:

     – Agora tu vais ver!Quando apoiou o ferro candente sobre a sua nádega, berrou de tal forma, que até ele mesmo ficou surpreso, eseu corpo reagiu tão violentamente, que até conseguiu sedesembaraçar dos policiais e apoiar suas costas na parede. Aoseu redor, eles riam com estrondosas gargalhadas; um delesaté segurava a barriga de tanto rir. O correntino, parado em

    frente dele, olhava-o com deboche, mostrando duas facas, umaquente e fumegante, e a outra fria e que ele não tinha visto.

    Demorou um pouco em perceber a sinistra piada, comele tinham usado a faca fria.

     Não o haviam queimado, porém sua mente transmitiua mesma dor que teria sentido se o houvessem feito. Seu

    esfíncter se afrouxou, sujando a cozinha toda, e aí o sorridenteo sacolejou pelos cabelos e, berrando palavrões, o arrastouaté o pátio novamente.

    Aí o deixaram jogado enquanto eles discutiam. Unsminutos depois, um deles lhe jogou um balde d’água. Logodepois o sargento tirou-lhe a algemas e disse:

     – Tu vais limpar essa merda toda, ou eu vou fazer comque tu a engulas!

    Como não pudesse levantar-se só, lhe jogaram outro balded’água. Isso o reanimou e conseguiu ficar de pé. Tomaram-no por um braço e o conduziram até a cozinha, onde ficou diantedo que ele tinha feito.

     – Com que limpo? – perguntou-lhes.

    Ficaram um pouco em dúvida. – Com a camisa – disse o sargento. Nu, ajoelhado no chão, tentou juntar tudo o que pôde

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    CAPÍTULO UM

    com a sua camisa. Aquela camisa era o seu orgulho, tinha poupado moeda por moeda para comprá-la; era feita de um

    tecido que não precisava ser passado a ferro, era cara, mas eraideal para ele, porque, às vezes, entre a fábrica, as reuniões eas manifestações, não tinha tempo para trocar de roupa. Assimsendo, ele a lavava no tanque da fábrica, vestia a roupa detrabalho e pela tarde estava pronta para ser usada novamente.

    Sentiu pena pela camisa, mas, na verdade, antes disso,a camisa já estava toda rasgada e manchada com seu sangue,

    assim como ele também.Levaram-no até os fundos, para jogar fora a camisa numa

    lixeira enorme que havia ali.Era incrível perceber como esses tipos que nada sentiam

    quando torturavam um ser humano sentiam nojo por um poucode merda.

    Aproveitou para dar uma olhada e verificou que aqueleera o portão por onde ele tinha entrado.Quando terminou seu trabalho, eles jogaram um pouco

    d’água no chão e passaram um rodo. Ele ficou no meio do pátio, nu e observando.

    O sargento lhe ordenou: – Contra a parede!Virou-se e foi algemado novamente; depois, com o

    cassetete, o empurraram pelo pátio até essa construção que eletinha visto à direita e que ele achava que fosse um lugar paraguardar bujões de gás, mas, na verdade, era uma minúsculacela de um metro quadrado.

     – Entra aí! – ordenaram-lhe.

    Deteve-se um instante porque pensou que não iria caber, já que ele media quase um metro e oitenta, mas o fizeram entrarcom um empurrão. Sua cabeça bateu contra a parede, ainda

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    que não com muita força; ele apoiou as costas e escorregouaté o chão. O sargento ajeitou as pernas dele com um chute

    e fechou a porta.O detento ficou em posição fetal uns minutos, semprecom as mãos algemadas atrás de si. O fedor do chão eranauseabundo. Tratou de ajeitar-se com as costas na parededo fundo e o rosto virado para as grades, mas seus pés saíam para fora e teve medo de ser pisado. Assim, ficou de lado,apoiando os pés numa parede e a cabeça contra a parede do

    fundo. Dessa forma ele podia enxergar o movimento do pátioatravés da grade. Estava com frio e a dor nos pulsos aumentavaa cada movimento – essa dor o estava matando.

    Ainda não tinha visão direta do que acontecia na cozinha,mas, se pudesse escutar alguma coisa que era falada e ver oque acontecia, poderia fazer uma ideia do lugar.

    Pouco depois de estar nesse lugar, começou novamenteo movimento no pátio. Via as pernas das pessoas passando – algumas dessas pessoas paravam para olhá-lo, e, nessemomento, ele se apertava contra o fundo da cela. Escutou comoo sargento contava aos outros “a piadinha” que lhe fizeram, ecomo os outros riam à gargalhada solta. Um deles exclamou:

     – Por que você não me chamou? Na próxima me chame,meu!!!

    Depois disso, entraram todos na cozinha e se escutou barulho de pratos, talheres, garrafas. A sua cela se encheu decheiro de comida, sentiu fome e se lembrou do cachorro dePavlov – nesse preciso momento reconheceu o cheiro quelhe provocava náusea. Aquela não era uma cela para seres

    humanos, era para cães. Mas ele não era um cão, era umrevolucionário.

    Estava golpeado, lastimado, sangrando e dolorido, mas

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    Tentou obedecer com grande esforço. Primeiro tirou acabeça para fora e pôde ver que tinha quatro policiais olhando

     para ele; o cara que parecia recém-barbeado ajudou-o a sair pegando-o pela axila; um outro policial ajudou-o do outro lado.Colocaram-no em pé, tiraram as algemas e lhe devol-

    veram sua calça e seu calçado para que os vestisse – um deleslhe perguntou se não tinha camisa e ele respondeu que não.

    O recém-barbeado, que era o sargento de plantão, lhe perguntou se queria ir ao banheiro.

     – Sim, obrigado – respondeu.Levaram-no até um lugar onde podia entrar atravessando

    uma grade situada à esquerda da sala de plantão. O banheiroficava ao final de uma fileira de celas, uma das quais eramaior e estava lotada de pessoas detidas, e eles, os detentos,olhavam-no com os olhos muito abertos, como admirados.

    Aí não havia espelho, por isso achou que o seu aspecto seriahorrível. No banheiro, conseguiu urinar muito pouca quantidade

    de um líquido sanguinolento, a sua bexiga doeu. Ao sair dalatrina viu, a um lado, uma grande pia. Pediu-lhes para se lavare deram-lhe permissão. Abriu a torneira e molhou as mãos,que estavam inchadas como luvas de boxe. A água acalmavaa dor dos pulsos que estavam em carne viva. Os policiais nãoo apressavam para nada, e assim, aproveitou a ocasião e pôsa cabeça embaixo da torneira. A água que escorregava da suacara até a pia era uma mistura de sangue e lama. Mesmo assim, bebeu um pouco. Quando acabou de molhar-se, voltaram pelocorredor de celas. Andava com dificuldade pelos ferimentos,

    mas a sua mente viajava a mil por hora.Achou que aquelas pessoas eram delinquentes comuns

    e pensou que se lhes gritasse seu nome e endereço, alguns

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    CAPÍTULO UM

    deles poderiam avisar que ele estava ali. Porém não quisser malquisto por aqueles policiais, que até esse momento

    tratavam-no com certa consideração, tinham tirado as algemase tinham lhe permitido ir ao banheiro, lavar-se e beber água.Um dos policiais se adiantou e abriu a porta de uma das celasmenores que estava desocupada.

     – Entre – lhe disse.A cela era bastante ampla, achou que de uns dois metros

    de largura por uns três de comprimento. No fundo havia uma

    cama ou banco feito de cimento; não tinha nem colchão, nemmanta, nem janela. Foi até o fundo e sentou-se apoiando ascostas na parede e ficando de frente para a porta, que era degrade, mas tinham soldado uma chapa metálica que a cobriatoda, ficando assim uma porta cega. Possuía, no entanto, umaabertura na altura da cabeça de uma pessoa – achou que seria

     para vigiar os presos ali detidos. No teto, a mais ou menostrês metros de altura, havia uma lâmpada, protegida por umengradado de ferro, que ficou acesa enquanto ele permaneceuali. Também viu que não tinha privada na cela, pelo quededuziu que, se tivesse vontade de ir ao banheiro, deveriachamar os guardas. O ar estava rarefeito, porque a cela estavasuja e a única ventilação que existia era através dos poucoscentímetros que separavam a porta do chão.

    Um pouco depois, enquanto apalpava seu corpomachucado e ferido da cabeça aos pés, ouviu que dos fundosalguém lhe perguntava:

     – Cara, por que você está aqui? – Cara, você é político?

     Nada respondeu, sentiu pavoroso medo de que entreessas pessoas houvesse algum informante da polícia.

     – Cara, não tenha medo, estamos a sós – essa era outra

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    voz. Ele não confiava em ninguém, mas era regra que, sealguém era sequestrado, devia gritar seu nome ou dar-se

    a conhecer de alguma forma, para que seus companheirossoubessem onde estava ou que tinha caído preso. Não o fizeradiante dos policiais; agora tinha uma nova chance.

    Mas sentia muito medo, já começava aquele medo aapertar seu estômago. Seu corpo doía demais; agarrava-seàquele banco de cimento como se estivesse a salvar a vida;achava que se falasse ou fizesse barulho, as coisas ficariam

     pior para ele. A angústia fechou-lhe a garganta e começou achorar – no começo bem baixinho. Chorar, primeiro devagar; porém, pouco a pouco, os soluços foram crescendo e se achouchorando aos prantos. Quase que aos gritos, um preso dosfundos lhe disse:

     – Bom, cara, acalme-se, senão “eles” vão vir para ver

    o que acontece.Então ele falou, fez o discurso que tinha preparado eque haveria de repetir sempre.

     – É que eu não fiz nada, não sei por que fui trazidocá. Trabalho na fábrica tal, moro em tal lugar, minha mãedeve estar me procurando, me chamo fulano de tal e não fiznada, eu juro que não fiz nada – isso tudo foi dito aos gritose entremeado de soluços. Foi um desabafo, repetiu a mesmacoisa diversas vezes, até que veio um guarda. Entrou batendoas grades com um cacete:

     – Que acontece aqui, que acontece aqui? Ninguém respondeu. Ouviam-se passos que iam e vinham

     pelo corredor; repentinamente, houve um golpe forte contra

    a sua porta, um chute, talvez. – O que acontece com você? – vociferou o guarda. – Nada, senhor – lhe respondeu imediatamente, outra

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    CAPÍTULO UM

    vez na defensiva.Os passos seguiram pelo corredor até a saída; o guarda

    deteve-se e dali berrou uma ameaça: – E fiquem bem quietinhos, está bem? Que eu não precise voltar!

    Depois os passos se afastaram. Por um tempo, ninguémdisse palavra alguma, depois os do fundo começaram a falar baixinho entre eles. E ele se aproximou da janelinha da porta,instintivamente – queria ver se podia enxergar para fora,

    mas nada viu a não ser a parede cinzenta. Não soube por queficou apoiado na porta, quando, repentinamente, escutou quealguém o chamava:

     – Cara… Cara… – Sim – respondeu. – Fique tranquilo que nós avisamos.

     – Obrigado – só pôde balbuciar.Quando a gente espera, desespera. É um refrão, e éverdade em quase todos os aspectos da vida, mas na militâncianão é assim.

    Para os militantes o tempo era vital, se havia um encontrocom um companheiro; a tolerância era de cinco minutos.Passados esses cinco minutos, poder-se-ia ir embora ouaguardar outros dez minutos, mas a uma distância tal que permitisse observar o lugar do encontro e o que aí acontecia,e facilitasse a fuga se chegasse a polícia em vez do compa-nheiro. Sempre deviam ser procurados pontos de encontro quereunissem essas características e, se acontecesse o contrário, seo militante fosse preso, deveria ganhar todo o tempo possível,

    mesmo durante a tortura, para que os seus companheirostivessem tempo de saber o que acontecia e pudessem tomaras medidas necessária para essa situação.

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    Este era o seu caso. Afastou-se da porta vagarosamente.Depois de cada momento de tensão, a dor no corpo aparecia

     brutalmente. Era como receber socos. Sofreu em cada passoque deu até chegar ao banco; sentou-se e não teve as forçasnecessárias para deitar-se, ficando assim meio deitado, fazendocontas, calculando. Repassou mentalmente:

    “Eu saí do trabalho aproximadamente às 18h30, meatacaram em seguida, porém houve uma demora devida àintervenção do povo que saiu para me defender. Entre os

    incidentes e o tempo que demorou a chegar a polícia deuniforme para me prender legalmente devem ter passadode vinte a vinte e cinco minutos e outros dez ou quinze prachegar até aqui, talvez meia hora. Nesse tempo Horáciodeve ter avisado a alguém. Depois disto, ficou escuro, já eranoite, depois amanheceu, teriam passado umas doze horas e

    eu ainda não fui torturado... Quem sabe nem o façam, mas...O que farão comigo? Por que fui trazido aqui? Eu militodesde meus catorze anos, mas há um ano que estou na frentesindical, circunstancialmente vou à unidade básica do bairroou participo de debates em algum fórum, mas isso não é nadaque os outros não façam. Também a juventude de BuenosAires está muito politizada, agora um pouco menos. Desdeque o general Perón morreu, muitos foram embora e outrosmudaram sua forma de pensar. Mas eu continuo na frentesindical, porque esse é meu lugar por natureza. Eu não souum ‘proletarizado’3, eu sou um verdadeiro trabalhador, filhode trabalhadores e sem o segundo grau feito. Minha mãe éviúva, e eu sou quem mantém a família. Será que eles terão em3 Os militantes vindos da classe média e inclusive da classe alta deviam conseguir trabalhoassalariado e viver de acordo com essa condição, ou seja, viver a vida de um proletário. Isso é serPROLETARIZADO.

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    CAPÍTULO UM

    conta isso? Será conveniente admitir isso ou é melhor negartudo?” – decidiu negar tudo. Muitas vezes, conversando sobre

    isso nas reuniões, os companheiros diziam que, se a gente dáuma pontinha, depois eles puxam dessa ponta até fazer umnovelo. Dessa ninguém pode se salvar.

    Ele pensava e tornava a pensar isso mil e uma vezes.Porém, à medida que o tempo ia passando, a angústia tomavaconta dele. Já não havia nada que pudesse fazer. Supunha queseus companheiros tiveram tempo de terem se resguardado

    e sua família já sabia do que lhe ocorrera. Com certeza, játinham feito um habeas corpus, que é uma denúncia que sefaz quando há o desaparecimento de uma pessoa, o que obrigaa justiça a averiguar onde poderia estar detida essa pessoa.

    Afinal, ainda se estava em uma democracia.Sentia seu ânimo decair. A verdade é que depois da crise

    de choro que teve na cela, qualquer pequeno barulho fazia pular seu coração como um tambor. Começou a rezar e pediua Deus que o levasse.

    Estava pensando nisso quando um forte ruído de passoso fez reagir. Aconchegou-se no fundo da cela, mas foi em vão.Escutou a porta sendo aberta e o guincho do metal enferrujadoao abrir-se, não teve coragem de olhar para cima.

    Alguém lhe disse amavelmente: – Vamos, rapaz, levante-se!Obedeceu e ficou em pé no meio da cela. O recém-

    chegado se aproximou e, levantando-lhe o queixo com umdedo, olhou-o com atenção. Ele também o olhou.

    Era um homem de uns quarenta anos, muito elegante,

    finamente vestido, com paletó e gravata. – Está bem – disse, e dando meia-volta saiu da cela.

    O policial uniformizado que veio com ele saiu logo atrás e

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    fechou a porta.Percebeu que o homem à paisana era um chefão, e o

    fato de tê-lo tratado bem fez com que as suas esperançasrenascessem. Chegou a pensar que tinha sido preso por erroou que algum juiz teria atendido seu habeas corpus.

    Sentou-se na cama de cimento e começou a coçar asferidas. Quando eles abriram a porta, ele pôde ver que aclaridade da manhã era intensa. Achou que devia ser por voltado meio-dia e ficou mais tranquilo.

    Sentiu-se afortunado, tinha cumprido com a sua parte, porque o tempo tinha passado e ele não tinha “cantado”4,mesmo tendo sido muitíssimo machucado e aterrorizado.

    Quase que imediatamente ecoaram passos no corredor.A porta foi aberta com violência, com um chute. Dois homensà paisana entraram na cela, e antes que ele conseguisse pensar

    em alguma coisa, um deles deu-lhe um tremendo tapa no rostoque o fez perder o equilíbrio. O outro, ou talvez o mesmo,deu-lhe um soco nos rins que o deixou sem fôlego. Botaramum saco na sua cabeça que quase o asfixiou e o algemaramnovamente com as mãos às costas.

    Enquanto tentava recuperar a respiração, sentiu que oarrastavam pelo corredor. Depois percebeu que o levantavamno ar e foi atirado num lugar que parecia ser um poço ou umagrande lixeira. Mas quando abaixaram a porta, percebeu queera o porta-malas de um carro que partiu às pressas, com umafumaceira que o fez sufocar. Pensou que ia morrer. O carrofez guinchar os pneus. Provavelmente tenha desmaiado porcausa da fumaça e do constante sacolejar, e por isso não soube

     bem o que aconteceu. Depois só lembraria que o carro ia agrande velocidade e que seu corpo batia de um lado para o

    4 Não havia delatado ninguém.

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    CAPÍTULO UM

    outro do porta-malas. Não soube bem durante quanto tempo foi levado assim,

    não conseguiu calculá-lo.Finalmente o carro se deteve. Novamente houve gritos

    e barulho de portas. Pegaram-no pelas pernas e braços,levantaram-no no ar e seu corpo acabou caindo no chão comoum saco de batatas. Dois homens o pegaram pelas axilas,arrastando-o pelo corredor; sua cabeça foi batendo na paredee eles foram dando gargalhadas por isso.

     – Caminhe bem, filho da puta! – disse-lhe alguém e o

    obrigou a ficar em pé, porque ele ia com o corpo dobrado para frente.

    Sentiu que o capuz estava úmido; intuiu que era seu próprio sangue. Levaram-no andando uns passos e um deleslhe disse:

     – Levante o pé, tem um degrau – ele obedeceu.Ficou com um pé no ar por uns instantes e recebeu um

    grande empurrão que o fez voar pelo ar. Foi um momentoincrível, sentiu a sensação de voar, demorou a chegar ao chão,e quando chegou, continuou rodando. Haviam-no empurrado pela escada.

    Jogado ali, no chão, alguém se aproximou dele e lhedisse algo assim:

     – Não vamos perder tempo com você, fale ou morre – e

    apoiou uma arma na testa. Ele ouviu o inconfundível ruídodo gatilho. Já o ouvira antes.

    ***

    Começara sua militância aos catorze anos. Naqueletempo, trabalhava como aprendiz de operário, que era uma

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    forma de trabalhar sem carteira assinada, sendo menor deidade. Seu pai morrera um ano antes e era seu dever “encher

    a panela” numa família onde os irmãos mais velhos já tinhama sua vida organizada em outro lugar e só ficaram a sua mãe,uma irmã mais nova e ele.

    Foi ali, na fábrica, onde, pela primeira vez, ouviu falarem política.

    Foi num horário de almoço: dois rapazes “mais velhos”, para seus catorze anos, discutiam um pouco afastados do resto

    dos operários durante o almoço.Quase sem perceber, achou-se na ponta daquela mesa

    onde eles conversavam em voz baixa. Olharam-no com certoreceio, mas continuaram a falar.

     Naquela fábrica costumava-se levar uma marmita coma comida para o meio-dia. Como havia um forno no local, o

     pessoal botava as marmitas ali e num minuto ficava quente;se ficasse dois minutos, a marmita se derretia...A sala de almoço eram cinco tábuas colocadas sobre

    cavaletes e alguns bancos de madeira ou tachos de lata vaziosque se usavam como cadeiras. Cada vez que ele podia, sentava-se perto daquele grupo e o escutava falar sobre Perón, ou doCordobazo5, ou do sindicato.

    Essas palavras não lhe eram estranhas. Na sua casa, oseu pai declarava-se peronista e, ainda que se lembrasse deletrabalhando por conta própria, sempre o escutava falando dosindicato da carne ao qual pertencera.

    O Cordobazo acontecera só quatro anos antes e, mesmosendo ele uma criança, assistira a tudo na TV. Na época,

    seu pai ainda estava vivo. Quanta raiva sentia seu pai vendoaquelas imagens! Xingava e batia na mesa.

    5 Insurreição popular na Província de Córdoba/Argentina.

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    CAPÍTULO UM

    E agora, nesta outra mesa, falava-se da mesma coisa. Não demorou em ficar amigo daqueles rapazes.

    Um dia, durante o almoço, lhe disseram que queriam falarcom ele, mas não na fábrica. Combinaram em se encontrarnum bar perto, a cinco quarteirões dali.

    Foi seu primeiro encontro de política.Começaram conversando sobre a fábrica, lembraram

    algumas anedotas, depois falaram da necessidade de seorganizarem, de terem delegados sindicais e de participarem

    dentro do sindicato. Perguntaram-lhe se ele era peronista eele respondeu que sim. Eles lhe perguntaram o porquê e elelhes falou do seu “velho” e das fotos escondidas do generalPerón e de Evita, e também da sua madrinha e de um livroque tinha a capa falsa e que era o maior tesouro dela: “A razãoda minha vida”6.

     – Você já o leu? – perguntou um deles. – Sim – respondeu. – Você gostou? – Sim. – Entendeu o que diz? – Emmmm… sim. – Gosta da Evita? – Sim!Ele não era muito conversador naquele tempo. Só tinha

    catorze anos! Depois de se olharem entre si, um deles lhe disse: – Queremos te convidar para assistir a um filme. – No cinema? – Não, na casa de um companheiro. É um filme proibido.

    Você topa? – É um filme do Perón?

    6 Livro escrito por Eva Perón, mais conhecida como Evita.

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     – Mais ou menos isso. – Está bem… Mas vocês são peronistas, né?

     No dia seguinte, na saída da fábrica, foram os três àestação de San Martin, e daí, de ônibus até um lugar pertoda rodovia 8.

    Durante o caminho foram conversando e fazendo piadas,foram enchamigando-se7 , como disse Aldo, que era o maisvelho do grupo. Tinha 24 anos.

    Quando desceram do ônibus, os esperava uma garota,

    Mirtha.Depois das apresentações foi combinado que ele iria

    andando na frente com a jovem, enquanto Aldo e o Tucu, quenão conheciam o lugar, os seguiriam a cem metros de distância.

    Chegaram a um lugar que parecia uma oficina mecânica.E era isso mesmo, só que estava fechada. Entraram pelo lado

    e, uma vez dentro, pôde ver que tinha mais de vinte pessoas detodas as idades. Mirtha o apresentou como um companheirotêxtil e todos lhe deram um aperto de mão.

    Logo chegaram Aldo e o Tucu.Os que aí estavam falavam em voz baixa. Notava-se

    certa ansiedade. Estavam aguardando os rapazes que trariamo filme.

    Subitamente, bateram à porta, duas batidas curtas... Todosficaram em silêncio. Perto dele se escutou um “click”. Dolado de fora alguém chamava: “Dom Carlos, Dom Carlos!”

    Um homem idoso, que estava sentado perto da porta, selevantou da cadeira e fez um gesto com as mãos.

     – Não é nada – disse num sussurro. – É um cliente.

    E saiu para atendê-lo, gritando: – Já vou, já vou!

    7 Em língua Guarani, chamigo é amigo.

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    CAPÍTULO UM

    ***

    Clack! – fez o revólver, quando o policial disparou emvazio contra a sua têmpora.

     – Xi! Falhou a arma! – disse um deles, divertido. – Deixe que eu o faça! – disse o outro, e apoiou a arma

    no peito do prisioneiro. – Você vai falar? É a sua última oportunidade!

     – Não sei, senhor! O que o senhor quer que eu diga? – Se você é montonero8! – Não, senhor, eu não sou nada disso! – Morreu, filho da puta! – e apertou o gatilho. Dessa vez

    ele sentiu sobre seu peito a vibração do cano da arma quandodisparou em falso e sentiu que desmaiava. Perdeu os sentidos.

    De novo, jogaram-lhe outro balde d’água. Arrastaram--no pelo chão e o levaram a um lugar que logo reconheceu.Era um desses velhos engradados de metal que se usavamantigamente para pôr o colchão na cama. Aí o amarraram de pés e mãos e começou o interrogatório.

    Eram três ou mais, percebeu pelas vozes, e com o correrdos minutos começou a reconhecê-los. Um deles perguntavaquase que com bondade:

     – Bom, magrelo, em que você anda? – Em nada, senhor – levou um primeiro choque elétrico,

    que se espalhou por toda a estrutura de metal da cama. Sentiucomo se seu corpo explodisse, como se os ossos tentassematravessar a pele. Gritou e não reconheceu a sua própria voz,

    8 Montonero: organização político-militar, de resistência à ditadura argentina.

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    como se quem gritasse fosse outra pessoa9. – Então? – segundo choque elétrico.

     – Você é montonero? – Não, senhor – choque; gritos e choques. – Fale, rapaz, fala ou vamos matar você! – diziam os

    torturadores maus. – Pare, pare… Dê um tempo – dizia o torturador “bom”.Assim continuaram por um longo tempo. Ele já nem

    lembrava o que lhe perguntavam, mas era mais ou menos o

    mesmo. – É montonero? É comunista? É de esquerda? É

    cachorro10? – Não, senhor, eu não sou nada! – mais choques e mais

    golpes.Ou havia propostas de salvação:

     – Se você nos disser onde estão as armas, você irá embora. – Quais armas? Eu não sei de nada! – choques elétricos,socos e pauladas com os cassetetes de borracha.

     – Se você entregar seu responsável, você se salvará.

    9 Ilustração explicativa de como é uma cama dechoque. Todas as partes são de metal e a eletricidade se propaga por ela toda.10 Cachorro – em espanhol, perro – apelido que se dava aos membros do PRT, PartidoRevolucionário Trabalhista.

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    CAPÍTULO UM

     – Responsável de quê? – pauladas e xingação. – Não se faça matar à toa, garoto – torturador “bom”

    . – Vamos arrebentar – os outros.Uma pergunta o alertou: – Você parou a fábrica? – Não, senhor! Qual fábrica? – A fábrica onde você trabalha! – Eu não trabalho em nenhuma fábrica!

     – Não trabalha numa fábrica de gamulanes11?  – Não, senhor, não, senhor! – E onde você trabalha? – Numa fábrica de curtume, na fábrica Granouski. – E aí não fazem gamulanes? – Não, senhor, isso é na fábrica ao lado.

     – E você não trabalha com os gamulanes? – Não, senhor, eu trabalho ao lado!Por alguns minutos os torturadores falaram entre eles.

    Ele sentia as lágrimas cair de seus olhos, sob o capuz, mas nãoqueria se mexer. Tinha cãibras no corpo todo, mas suportava-asem silêncio, porque não sabia o que viria depois, caso elesdescobrissem que lhes mentira.

     Na verdade, a fábrica de couros e a fábrica de gamulanes(casacos de couro) pertenciam ao mesmo dono, mas eramdiferentes tarefas e diferentes operários, os quais só seviam ao meio-dia, no horário de almoço e descanso. Em talmomento, eles se jogavam à sombra de um grande muro parase recomporem do cansaço da labuta.

    Porém a informação que a polícia tinha era correta, eleesquecera daquilo, porque depois disso houvera muitas outras

    11 Casacos de couro de ovelha.

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    ações. Ao que os homens de uniforme se referiam, no entanto,era do que se lembrou nesse momento.

    ***

    Aconteceu que lá pelo mês de setembro, houve umlevantamento militar de um setor da Força Aérea contra o

    governo democrático da Sra. Isabel Martínez de Perón, que,sendo vice-presidente, havia ficado com o Poder Executivoapós a morte do seu marido, o general Perón.

     Naquele momento, a determinação que veio para a juventude trabalhadora peronista, à qual ele pertencia, eraresistir ao golpe e parar as fábricas, para obrigar à CGT(Confederação Geral do Trabalho) a declarar greve, já que, por aqueles dias, a CGT procurava manter-se neutra. E assimfora feito. Ele participara da greve na fábrica e de outras dazona. O levantamento militar durou poucas horas, porque amaioria das forças armadas não aderiu a ele.

    Esse fato, no entanto, acontecera há quase seis meses – contou rapidamente tal tempo, pois fora sequestrado exata-

    mente no dia 5 de março.Aqueles homens voltaram e, sem dizerem uma palavra,

    voltaram a torturá-lo, até que o “bonzinho” lhe perguntou: – Que problema teve no depósito? – Nenhum, senhor – e outra vez aquela máquina dando

    choque.

     – Force a memória, com o chefe do pessoal? – Não sei – outro choque elétrico. – E então?

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    CAPÍTULO UM

     – Não sei… acho que uma… por causa de um cachorro. – Um do PRT?

    Acontece que ele tinha um cachorro que morreu e, porcausa disso, não fora trabalhar e o italiano ficara bravo! – Qual italiano? – O chefe do pessoal é chamado dessa forma. – E ficou bravo por essa bobagem? – Eu não sei… Talvez porque eu lhe tenha dito que o

    cachorro era como da minha família e que não fui trabalhar

     porque fui lhe dar sepultura e que estava muito triste. Isso éa pura verdade, foi assim mesmo!

    Bateram nele novamente e tornaram a lhe dar choques;queriam saber os nomes dos montoneros da zona.

     – Não sei! – Dos do teu bairro...

     – Não sei – Dos do PRT. – Não sei – Onde se reúnem? – Não sei, não sei, não sei!Por um longo tempo continuou o interrogatório. Entre

    cada pergunta havia mais choques e mais pancadas. Ele eraum só grito de dor, já nem escutava, estava como louco, aúnica coisa que fazia era gritar. Até que ficaram cansadose deixaram de torturá-lo. Quando aqueles homens foramembora, ele ficou ali por longo tempo, amarrado, os braçose pernas em cruz.

    Em algum momento desamarraram-lhe os braços e

    as pernas, e entre dois, um de cada lado, arrastando os pés,levaram-no até um lugar onde, sem dizer nada, jogaram-nono chão. Atrás dele escutou uma porta se fechar. Ficou ali

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     jogado no chão por várias horas. Os choques elétricos o haviamexaurido, como que nocauteado.

     Na primeira vez, tendo os pés e as mãos livres, pôde seajeitar melhor, mas teve medo de tirar o capuz. É bem provávelque, depois de chorar muito em silêncio, tenha dormido.

    Essa situação de ser levado, torturado e jogado na celarepetiu-se várias vezes, durante diversos dias. As perguntaseram, basicamente, as mesmas. Ele chorava o tempo todo naida e na volta. Só uma ou duas vezes não o fez.

    Uma vez, não o deixaram na “churrasqueira”. Em vezdisso, amarraram-no pelos pulsos e o penduraram do teto.Enquanto isso, um homem (ele achou que fosse um homem) batia nele com os punhos fechados, como se praticasse boxenum saco de areia. Escutava aquele personagem dando pulinhos ao seu redor e, de repente, recebia um soco, o que

    era festejado com risos pelos outros que aí estavam. Às vezes,o corpo do boxeador ficava junto do seu, aproveitando então para socá-lo nos rins ou no estômago. De repente, aquelehomem parou, provavelmente para recuperar o fôlego ou

     porque os espectadores falavam alguma coisa. Quando retomoua prática, dando pulinhos ao seu redor, ia explicando aosouvintes ou a ele mesmo o que ia fazer e dizia, por exemplo:“isto se chama um, dois” e seu estômago recebia dois socos;ou dizia: “esquerda, direita”, e a sua cabeça recebia um golpeem cada lado. O soco de que mais gostavam os ali presentesera o ”gancho”: era um soco que impactava em seu estômagoe que ele sentia que o fazia voar pelos ares, ou seja, seus pésdeixavam de pisar no chão. No começo, os socos eram mais

    espaçados e pareciam menos violentos, amortecidos talvez pelas luvas de boxe que aquele homem vestia, mas depois,foi como se o outro tivesse ficado mais excitado ou cansado

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    CAPÍTULO UM

    e começou a bater sem parar, um soco após o outro. Assim,aquele “boxeador” praticava seus “cross” ou seus “uppercat”

    sobre aquele corpo totalmente indefeso. Provavelmente tivesse praticado também o nocaute, porque ele acordou em sua celasem lembrar como chegara até lá.

    Em outra oportunidade, trocaram o capuz por uma vendasobre os olhos e se divertiam colocando um saco plástico emsua cabeça, sufocando-o até quase asfixiá-lo. Quando ele jáquase não conseguia respirar, com a boca aberta dentro do

    saco, como peixe fora d’água, um daqueles carrascos rasgavao saco plástico com seus dedos, produzindo uma pequenaexplosão, fazendo um “pop”, enfiando-os até a sua garganta,machucando-a e lhe produzindo ânsia de vômito. Outrasvezes estouravam o saco plástico com um cigarro, o que faziacom que o ar aspirado com desespero fosse uma fumaça acre

    e quente que lhe queimava os pulmões e o asfixiava aindamais. Eles achavam muito engraçado e riam às gargalhadas,festejando cada “pop”. Logo em seguida, colocavam-lhe outrosaco plástico e continuavam com a “brincadeira”. Colocaramoutro saco na sua cabeça, só que dessa vez nada lhe pergun-taram – só por puro divertimento... ou treinamento?

    Provavelmente tenha desmaiado, porque depois, já nasua cela, acordou no meio de um pesadelo que, desde aqueletempo, tornou-se recorrente e que o persegue até os dias dehoje.

     Nesse sonho ele é um menino, esse menino está no meiode um pátio de recreio de uma escola, brincando com outrascrianças, quando, de repente, o sol desaparece e quando ele

    vira para ver o que acontece, vê uma figura imensa, coma forma inconfundível do diabo – chifres, barba de bode,cara afilada, olhos vermelhos – que, descendo do céu, vem

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    andando até ele com a mão estendida e ele nada pode fazer.Fica imobilizado, olha para todos como pedindo socorro,

    mas, assim como ele, todos estão aterrorizados e imóveis.O capeta vai se aproximando e quase toca a sua mão, mas,de repente, estica o braço e pega um menino que está atrásdele, o menino grita e ele acorda. Os gritos continuam, elenão consegue entender que, embora às escuras por causa docapuz, ele continue vivo.

     Numa primeira vez, ouviu gritos e golpes um pouco

    distantes. Ele percebeu a distância porque a voz dos inquisi-dores, dos que perguntam, era ouvida como um murmúrio.Ficou tenso, parado, tentando afinar o ouvido, mas não pôdeouvir o que diziam, só os gritos e os socos. Acreditou quedessa vez era uma mulher, mas não tinha certeza. Aquilodurou muito tempo; tentou medir quanto, contando um,

    dois, três e assim até três mil, e dizia a si mesmo que isso,contando com as interrupções para escutar e os momentosem que ficou distraído por outras coisas, deve ter completadouma hora. Contou até dez mil e parou; pouco depois eles pararam também. Tal coisa se repetiu muitas vezes. Uma primeira vez ouviu passos atravessando o corredor diante dasua cela; depois disso, silêncio total. Quase sem perceber foise ajeitando; tentou escutar alguma coisa. Fez tanto esforçoque achou até ter ouvido as batidas do seu coração. Quandoteve certeza de que não havia ninguém por perto, levantouum pouco o capuz. A cela estava às escuras, mas um poucode luz filtrava-se por baixo da porta. Quando seus olhos seacostumaram à escuridão, percorreu com os olhos aquele lugar.

     Não havia muito para ver além de uma porta que, pelossons ouvidos anteriormente, achou que fosse de ferro. Não tevecoragem para chegar perto e comprovar tal coisa. O teto quase

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    CAPÍTULO UM

    nem se enxergava pela escuridão, as paredes eram de tijolo semreboco, não tinha banheiro nem cama, nem nada. “Eu meço

    um metro e oitenta” – pensou. – “Minha cabeça toca a parededo fundo e, se estico um pouco os pés, quase chego a tocar a porta. Os lados, eu alcanço esticando meus braços”. Entendeuque a cela devia medir dois metros de comprimento, por ummetro de largura e três de altura. Ajeitou o capuz e continuoua esperar. A espera é a pior das torturas, as tripas doem e seretorcem, fica-se sem fôlego. Ele sentiu que sujou as calças

    e ficou com pavor, porque ele achava que, se isso aconteceu,iriam castigá-lo. Passou por momentos de resistência moral e por muitos outros momentos de rendição. Se aqueles homens otivessem interrogado num desses momentos, ele teria delatado,teria entregado os companheiros, e não porque quisesse viver,não, o que ele queria era que o matassem de uma vez.

     Não podia mais resistir àquela horrível angústia.Pouco depois (já não sabia que outro advérbio de tempousar), ouviu passos em frente à sua cela. O coração bateuacelerado e sem compasso ao mesmo tempo em que os passosse aproximavam. Pararam na sua porta, e ouviu uma forte batida, achava que eles vinham para buscá-lo, e entrou em pânico, mas quem caminhava continuou em frente. Pareciaque o coração parava. Sentia falta de ar. Pouco depois, ouviuos passos se aproximando novamente; ficou tenso e percebeuoutro som, provavelmente o ruído de um corpo sendo arrastado.

    Passaram diante da sua cela e, nesse momento, escutouabrir uma outra porta próxima da sua. Ficou atento, ouviu umcorpo caindo e alguém a gemer; ouviu a porta se fechando;

    logo em seguida, uma batida na sua porta e os passos indoembora. Depois disso, tudo ficou em silêncio. Tentou imaginaro lugar. Eles estiveram torturando alguém no mesmo lugar

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    onde o torturaram e trouxeram-no arrastando até a cela vizinha,o que queria dizer que havia mais prisioneiros.

    O silêncio, que só era interrompido pelos passos doscarrascos indo e vindo, e os gritos dos torturados, lhe fezentender que não estava detido numa delegacia comum, masnum lugar muito pior, mais sinistro. Jogado no chão, dobradosobre si mesmo, tentava não se mexer nem produzir sons.Por momentos, a sua respiração pareceu adquirir um ritmoasmático. Achou que era muito ruidosa e se amaldiçoou por

    isso. Tinha a louca ilusão que se não fizesse barulho seriaesquecido. Ouviu ruídos muito leves na cela ao lado, comose alguém se arrastasse pelo chão e devia ser verdade. Derepente, tudo de novo. Passos, gritos, palavrões e golpes.Sua mente e seu corpo aprenderam, nesse lugar, a definir assituações acontecidas pelos ruídos. Não existe outro som que

    se pareça com o som produzido pelos socos aplicados sobreum corpo humano. É único, não pode ser comparado comnenhum outro som.

    Estavam trazendo outra pessoa, talvez duas.Quando passaram pela cela vizinha, bateram com força

    na porta, depois fizeram o mesmo com a sua.Ao longe se ouviam batidas e gritos, alguém na cela

    vizinha chorava.Muitas vezes lhe perguntaram o que se sente quando

    lhe davam choques elétricos com aquele aparelho de tortura,mas nunca conseguiu explicar a verdadeira sensação daquelador, porque é muito mais que dor. Não dava para explicar.Era o horror. Fazia pouco tempo, lendo um gibi, uma das

     personagens explicava o suplício do esfolamento. É assim:corta-se um pedaço de pele e deixa-se pendurado, depois ocarrasco o pega com um alicate e vai puxando até rasgar toda a

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    CAPÍTULO UM

    fatia de pele da vítima, tantas vezes quantas sejam necessárias,até a vítima ficar totalmente esfolada. O verdadeiro suplício,

    no entanto, é que o torturado não morre. Provavelmente estaseja a sensação mais próxima do que ele sentia quando lhedavam choques elétricos.

    Aquelas pessoas, as recentemente chegadas, foram tortu-radas durante muito tempo e, em certo momento, trouxeramum deles até a cela ao lado e lhe perguntaram:

     – Você o conhece? Você o conhece?

     Não ouviu a resposta, mas os socos continuaram espaça-damente, por diversas vezes. A cada momento traziam oulevavam um ou outro. Apesar do horror que estava vivendo,sua mente trabalhava febrilmente. Lembrava ter lido emalgum livro, que nesses casos há três pontos de resistência: aresistência física, a moral ou ideológica e o apoio dos pares,

    dos companheiros. Seus pares estavam aí, do outro ladoda parede e nem ele e nem eles pareciam ter condições deconsolar ninguém; a resistência moral parecia estar prestes aquebrar-se, mas ainda não tendo delatado ninguém. Quantoà resistência física, havia algo que o horrorizava ainda maisdo que aquilo que já tinham feito com ele até esse momento,e eram as mutilações.

    Entre os militantes, comentava-se, e ele o tinha lidona imprensa clandestina, que alguns companheiros tinhamsido castrados. Dizia-se que lhes cortavam os membros comserras, lhes arrancavam as unhas ou cortavam seus dedos comalicates, ou pior ainda, quebravam e esmagavam os ossos commartelos. Nas mulheres, lhes cortavam os bicos dos seios ou a

    cara, eram violentadas com ferros quentes ou lhes queimavamo rosto com maçarico. Sabia-se dessas práticas porque foramachados corpos de companheiros com essas características.

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    Evidentemente, esse livro lido entre tantos outros sereferia a uma situação diferente, mais clássica, como os campos

    de concentração nazistas. Aí, os comunistas ou os religiososou outros grupos se organizaram e se ajudaram para resistirou sobreviver até ficarem livres.

    Ele não esperava sair vivo daquele lugar. Só esperava,aterrorizado, que viessem buscá-lo. Até que finalmente,vinham.

    Enquanto esteve naquele lugar, permaneceu numa vigília

    constante. Ficou sabendo que dormia porque passava de um pesadelo a outro e à realidade de forma intermitente. Era tãoterrível, que levava alguns minutos para se dar conta de quenão estava sendo torturado de verdade. Além disso, qualquer barulhinho, por mínimo que fosse, o punha tenso, estivessedormindo ou acordado. Por exemplo, contava os passos que

    vinham em sua direção e sempre eram cinco. Ouvia quandoalguém se dirigia à sua cela e contava os passos desde quecomeçava a ouvi-los. Depois passavam batidos ou se detinhamna anterior e, então, eram só quatro passos. Pensou que nesselugar só havia duas celas.

    Quando pararam em frente à sua porta de novo, sóconseguiu fechar os olhos sob o capuz, seu corpo se fez umnovelo apertado contra o chão e esperou. Eles abriram oferrolho e abriram a porta de um chute. Ficaram uns instantessem falar nada e, depois, jogaram-lhe um balde d’água.

     – Levante-se – disse um deles.Tentou fazê-lo e quando, com grande esforço, conseguiu

    ficar ajoelhado, jogaram-lhe outro balde d’água que o fez cair

    de bruços. Então, entre dois, o colocaram de pé, segurando-o pelos braços. Fizeram com que botasse as mãos na parede elhe ordenaram que ficasse desse jeito, sem se mexer.

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    CAPÍTULO UM

     – Fique ai! – lhe disseram.Através do capuz conseguiu ver uma tênue luminosidade.

     Notou que a cela estava iluminada. Jogaram-lhe outro balded’água, só que, desta vez, foi devagar. Depois, fizeram-norolar e ficar de frente para eles. Ordenaram-lhe que fechasseos olhos, mesmo estando com o capuz e repetiram a operação,como se estivessem lhe dando um banho.

    Ficaram a observá-lo por uns minutos sem fazer nada,depois tocaram suas pernas e braços e tiraram o capuz. Ele

    continuava com os olhos fechados. Viraram-no com a cara para a parede e colocaram-lhe uma venda de pano. Um deleslhe disse:

     – Aí há um balde com água, você pode beber e lavar orosto.

     Não disseram mais nada e saíram. Ouviu os passos, a

     porta se fechando e o ferrolho sendo travado pelo lado defora. Só nesse momento relaxou, apoiou as costas na paredee não soube o que fazer. De repente, sentiu uma sede que nãosentira nunca antes: é que simplesmente esquecera que não bebera nada fazia já um bom tempo e a água, como tantasoutras coisas na vida, era algo que não existia desde queestava ali. Procurou com o pé tateando no chão até que achoualgo novo. Aproximou a mão e tocou a água. Experimentou bebê-la, estava muito boa.

    Duvidou um tempo até que, finalmente, se animou etirou um pouco a venda dos olhos, se agachou e, fazendo asmãos em concha, bebeu toda a água que quis, depois lavou acara e tornou a colocar a venda nos olhos.

     No começo não soube o que pensar, a esperança tentavaabrir caminho na sua mente, mas ele mesmo a combatiarepetindo num fio de voz: “Abandonai toda esperança vós que

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    entrais aqui”. Era uma frase da “Divina Comédia”. Nunca a leucompleta, somente numa dessas versões de bolso. A solidão e

    a sua condição de abandonado faziam-no divagar e, por algummotivo, acabou relacionando essa frase com aquela outra dogeneral Perón: “Tudo na sua medida e harmoniosamente”.Perón sempre dizia que os gregos escreviam esta frase nosfrontispícios de seus templos. Como na unidade básica ninguémsabia o que era um frontispício, procuraram seu significadonum dicionário e resultou ser que era a frente, na parte de

    cima, da entrada dos edifícios. A outra inscrição estava nofrontispício do inferno.

    Perón sempre encerrava com esta frase aquela liçãoque tão inteligente e reiteradamente lhes dava. Ele dizia:“As revoluções se fazem com tempo ou com sangue, seapressarmos os tempos, haveremos de perder muito sangue,

    se pouparmos sangue, demoraremos mais tempo, mas mesmoassim, a revolução será feita de qualquer jeito. Deveríamosfazer como os gregos, que nos frontispícios escreviam…”

     – Por que não o escutamos? – pensou.O tempo continuou a passar, sentia muita dor. Não achava

    a posição do corpo para que doesse um pouco menos; puxaraum pouco a venda, pouco mais de um centímetro e isso lhe permitira ver as sombras.

    Ainda que pareça que é a mesma coisa ficar na escuridãoou com a venda nos olhos, não é assim. Com as mãos livrese conseguindo ver onde se está, mesmo que seja no escuro, asensação era diferente. Esse centímetro de venda corrida dosolhos deixa perceber que existe um “fora” onde acontecem

    coisas e um “dentro” onde ainda não acontecem, onde podese pensar, onde pode se resistir.

    Com o capuz estamos todos juntos, não há espaço, nem

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    CAPÍTULO UM

    distância, nem diferenças entre torturados e prisioneiros. Ocapuz é um inferno onde nunca deixamos de arder.

    Parece pouco, mas é muito.Ele escutava que ali perto se torturava, mas via, sentia queentre eles e ele havia uma porta, uma distância. Era uma trégua para ele quando os outros eram torturados e, provavelmente,isso fez com que não ficasse louco.

    Vieram três vezes mais. Quando abriam o ferrolho, elecobria seus olhos e se ajeitava no fundo da cela. Eles entravam

    chutando a porta, de modo tal que, se ele estivesse perto dela,seria brutalmente golpeado. Entravam gritando:

     – Contra a parede! As mãos para traz! – Duas vezesapalparam seu corpo, como se o revisassem, jogaram no chãoo resto de água do balde e encheram-no com água fresca.Essas duas vezes foram poucos minutos, nem bateram nele,

    nem o xingaram. A terceira vez foi diferente.Entraram como sempre, mas dessa vez eram vários. Em primeiro lugar, verificaram que a venda dos olhos estivesseno lugar e a apertaram um pouco mais; depois o levaram atéo corredor e, sob uma luz muito forte que ele podia percebersob a venda, levantaram seus braços, apalparam suas costelase revisaram sua cabeça e seus genitais. Um deles fez umcomentário que lhe gelou o sangue:

     – Este vai para “boleta”.12  Não pôde evitar que seu corpo tremesse e seus dentes

     batessem. Passaram-se uns instantes que lhe pareceram séculos,e um dos homens sussurrou em seu ouvido com tom cúmplice:

     – Magrelo, esta é a tua última oportunidade. Fala e

    legalizamos a tua presença aqui. Por enquanto, ninguém sabeonde estás.

    12 Boleta: morte, execução.

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    CAPÍTULO UM

    calça e a venda nos olhos como única vestimenta, foi levadoao corredor. Atrás dele ouviu fechar-se a porta.

    Empurraram-no pelo corredor. Pensou em contar os passos, mas uma de suas pernas quase não lhe respondia.Arrastando-a e batendo com seu ombro na parede, foi andando.De repente, alguém o segurou com força pelo pescoço e lhedisse:

     – Vai com cuidado que há uma escada.Ficou tenso e parou no lugar lembrando aquela vez

    quando foi jogado pela escada. Esperou o empurrão. – Continue andando – disse quem o tinha segurado pelo

     pescoço.Ele adiantou o pé e bateu o dedão contra o degrau. A

    dor lhe fez levantar o pé e, por uns segundos, perdeu a estabi-lidade. O homem o segurou. Apoiou o pé e achou o degrau,

    foi empurrado e foi achando um degrau após o outro. Assimfoi subindo enquanto pensava:“Aonde me levam?”O desânimo o fazia pensar no pior.“Talvez me levem pela escada acima para me jogar

    novamente até o fundo. Tomara que me matem de uma vez.” No que ele achou que fosse o último degrau, percebeu

    uma brisa fresca percorrendo a sua pele, mas não pôdedesfrutá-la porque, imediatamente, umas mãos pegaram assuas. Sentiu o frio do metal em seus pulsos, algemaram-nonovamente. Outra vez acorrentado, alguém o pegou pelas pernas e, tomando-o como um saco de batatas, o carregounos ombros. O enjoo e a tontura nublaram a sua mente.

     Novamente sentiu que era lançado pelo ar. Mas, dessa vez,chegou ao destino no mesmo momento… Seu corpo bateuviolentamente sobre uma superfície de metal. Escutou risos

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    e zombarias, mas não entendeu o que estava acontecendo.Outra batida sobre o metal e outra e outras mais. Quando

    alguém ligou o motor enchendo o lugar com um forte cheirode gasolina e fumaça, entendeu: estava no porta-malas de umcarro. Vomitou o pouquinho de água que bebera.

    O movimento, primeiro por uma rua irregular, provavel-mente de terra, e depois por uma rua lisa, fez com que a suamente ficasse ocupada. Estranhamente, se sentia tranquilo.Encerrado aí, em posição fetal, longe daquelas bestas que iam

    na parte da frente do veículo, achava-se em segurança, como seestivesse no útero de um monstro. Desejava que a viagem nãoacabasse nunca, “porém” – pensou – “quando o carro entrarnuma rua de terra outra vez, serei morto”. Lembrava-se dofilme “Operação Massacre”. Nele havia uma cena em que sevia como atiravam no lixão de José León Suarez (localidade

    da Grande Buenos Aires) um ator que representava um jovemchamado Carlitos Lisazo, da Juventude Peronista, que foramorto daquela forma. Essa ideia também o tranquilizava.Achava ser uma boa forma de morrer.

    Ele não tinha segredos de muita importância, porém, emseus anos de militância, conhecera muita gente. Alguns lhe brindaram a sua amizade e lhe abriram as portas das suas casas.

    Depois daquele dia na Praça de Maio, em que o generalPerón os provocou chamando-os de imberbes e de estúpidos,e eles reagiram abandonando a praça e deixando-o sozinhocom os setores da velha direita, muitos dos jovens sentiram-sedecepcionados e abandonaram a militância; outros, prevendoque a direita começaria uma caça às bruxas, trocaram nomes

    e endereços, mas, mesmo assim, ele ainda estava em contatocom alguns deles, e o simples fato de pensar que não poderiasuportar as torturas e que pudesse denunciá-los para que

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    CAPÍTULO UM

    fizessem com os outros o que faziam com ele só aumentavaa sua vontade de morrer.

    O carro continuou pela estrada até que se deteve. Imedia-tamente, houve portas que se abriram e se fecharam, passosse aproximando. Chegaram até o porta-malas e o abriram. Novamente mãos desconhecidas o pegaram pelos ombros e pelas pernas e o jogaram no chão. Alguém se aproximou doseu ouvido e lhe disse:

     –Fala, meu!! É a tua última chance!

    Outras mãos forcejavam as suas para tirarem as algemas. – Então? – insistiu o primeiro. Não lhes respondeu. Colocaram-no de pé. O ar frio tornou

    a acariciá-lo... trac-trac, ouviu-se o ruído de uma arma sendo preparada para atirar. Uma forte batida nas costas e outra vezele se sentiu voando pelos ares. Logo em seguida, bateu no

    chão, e continuou a rodar até se deter.Ficou aí, quieto, e a primeira coisa que percebeu foi ocheiro da grama fresca. Estendeu as mãos pela superfície eentendeu que estava sobre terra e grama. Ainda tinha os olhosvendados. Pensou num túmulo, ouviu um carro que aceleroue partiu. Estava de bruços, ajeitou-se sem sair dessa posiçãoe aguardou… Nada aconteceu.

    Pouco depois escutou um veículo se aproximando;apertou-se com força sobre a terra, pensou que era o seufim, que iriam atirar nele, mas o carro passou sem parar e foiembora. Silêncio.

    Ele continuou ali, quieto, com seus sentidos em alerta nomeio da escuridão. Estava de bruços, com seus braços abertos

    em cruz. Lembrou-se da venda nos olhos. Vagarosamente,aproximou a mão e tirou a venda alguns milímetros. Viroua cabeça, certo de receber um golpe e a primeira coisa que

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    enxergou foi um céu escuro salpicado de estrelas. Percebeuo silêncio, e sem tirar toda a venda, liberou um pouco os

    olhos… Estava sozinho!Mas onde estava? Ficou de pé como pôde. Não conseguiuse levantar totalmente e olhou em volta. Ouviu um carro vindo,mas o som era por cima da sua cabeça, a uns dez metros deonde ele estava. Viu um ônibus passando e indo embora.Era uma imagem irreal, no meio do nada, um ônibus comtodas as luzes acesas, uma aparição festiva que velozmente

    desapareceu. Olhando em volta percebeu que estava numaterro, embaixo dele havia uma rua asfaltada que brilhavasob a luz das estrelas. Um pouco além de onde estava, podiase ver o que parecia ser um campo baldio. Tentou levantar-see correr, mas esbarrou em algo, caiu e começou a rodar atéchegar à beira da rua.

    “Devo chegar até aquele campo” – pensou. Quandoconseguiu ficar em pé, um Fiat 600 passou rapidamente àsua frente e perdeu-se na distância. Por um momento, ficouolhando o carro indo embora e pensando que, embora fosse umamáquina, era a primeira coisa viva que via em muito tempo.

    Finalmente, atravessou a rua e chegou àquele campo baldio, com muita dificuldade, andando rapidamente, tentandoficar longe do lugar onde o deixaram seus raptores. Ouviu passar outros veículos, mas não ligou para eles. Começou aescutar outros ruídos, um cachorro latiu ao longe, algumasvozes. À distância, viu uma luz se acender, depois outra.A cidade estava acordando. Uma árvore caída lhe fechoua passagem. Parou e deixou-se cair ao lado. Olhou para

    trás vendo o lugar onde o deixaram, e de longe conseguiureconhecê-lo. Era a Avenida General Paz.

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    CAPÍTULO DOIS

    CAPÍTULO DOIS 

    Deitado contra a árvore no chão, viu sumir aos poucosas estrelas que deixam seu lugar ao amanhecer. Ainda queem pleno verão, sentia frio. Estava caindo o orvalho e o céu

    mostrava uma cor acinzentada. O cheiro da grama frescaencheu seus sentidos e transportou sua mente até um lugarmais feliz, que o levou até um dia antes da primavera, unstrês anos antes…

    Ele estava apaixonado – secretamente, é claro – poruma garota que morava pertinho de sua casa. Ela era filhade trabalhadores, assim como ele o era, mas o pai dela, queera empregado dos correios, era um fervoroso comunista,mais por ser antiperonista do que por ter estudado nas fontesdo marxismo. Todas as manhãs ele a esperava, só para vê-la passar por uma das esquinas da praça. Então, correndo pelarua paralela, chegava novamente até um ponto onde tornava avê-la, perto da escola onde ela estudava e assim “casualmente”

     poder passar perto dela e cumprimentá-la e, talvez, até trocaralgumas palavras. Ela se chamava Susana.

    Um dia, Susi lhe disse que, para o dia do início da

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     primavera, iria haver um piquenique. – Posso ir? – perguntou, ansioso.

     – Não sei... Acho que é só para comunistas. – E você é comunista? – Sim, claro. Eu sou da FEDE (Federação Juvenil

    Comunista). – Ah!!!Esse era o tipo de conversa que eles costumavam ter.

    Eram dois adolescentes que gostavam um do outro.

    Ele passou a semana toda averiguando como fazer parair ao tal piquenique. Estudava, então, numa escola noturna, porque trabalhava durante o dia. Daí ninguém era da tal FEDE,mas um colega seu conhecia outro rapaz de outra escola queera da tal federação, e uns dias depois conseguiu um encontro.O rapaz da FEDE tinha alguns anos a mais do que ele; era

    filho de um engenheiro da estrada de ferro. Eles já se haviamcruzado casualmente algumas vezes, quando foram jogarfutebol e basquete no aterro da estrada de ferro e coincidiramestar no mesmo lugar, cada um com seu grupo, é claro.

    A primeira coisa que o rapaz da FEDE lhe disse foi: – Você quer se filiar? – Não sei… – Como que não sei?! E para que você pediu o encontro? – Quero ir ao piquenique – disse, e o outro o olhou de

    cima a baixo.Com muito custo ele explicou seu problema, seus desejos.

    Como ele e Susi eram mais ou menos do mesmo bairro, o rapazda FEDE conhecia a Silvia, a irmã mais velha da Susi – parece

    que militavam no mesmo comitê. O rapaz lhe perguntou: – E o que a Silvia diz? – Não sei – foi a resposta mais do que óbvia.

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    CAPÍTULO DOIS

     Novamente teve de explicar que ele não militava emnenhum grupo, pois a sua família era peronista, mas que ele

    não sabia bem o que queria ser e, finalmente, tornou a explicarque o que ele queria era ir àquele bendito piquenique.Finalmente o cara da juventude comunista lhe falou: – Bom, vou ver o que posso fazer, depois você vem

    militar conosco.Uma semana depois, um novo encontro e a concretização

    do tão almejado convite.

    Embora tivesse visto Susi várias vezes, não comentoucom ela sobre o convite para o piquenique. Queria surpreen-dê-la, e conseguiu fazê-lo. Quando ela o viu parado ao ladodo ônibus, abriu os olhos, admirada. Ele não disse nada,simplesmente se olharam, em silêncio.

    Aos 14 anos, nascidos e criados na ditadura, já conheciam

    os rudimentos da conspiração. Durante a viagem, ficaramafastados – ela ia na frente e ele mais ao fundo do ônibus,mas compartilhavam as canções e os slogans que surgiam para fazer mais amena a viagem.

    Quando chegaram a seu destino, foram repartidas astarefas. Armar as barracas, limpar o terreno, ajeitar tudo quefora trazido etc. Ele e mais dois jovens foram designados para cavar uma latrina, que acabou não sendo usada, pois alionde estavam era um lugar de veraneio e contava com todaa infraestrutura necessária para o caso. Porém, os dirigentesachavam que essa cavação era um exercício ótimo para forjaro espírito, conhecer as ferramentas usadas pelos trabalhadorese assim sentir-se mais perto da trilha do “Che” nas montanhas,

    ainda que estivessem a não mais do que vinte quilômetros dagrande cidade.

    Ele não disse nada, simplesmente pegou a pá e começou

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    a cavar. Pouco depois o poço tomou forma e, quando já tinhauma profundidade de 50 ou 60 centímetros, os companheiros

    o fizeram parar. – Já está bom– disse um deles. – Aí, meu, parece que você sabe mesmo usar a pá! – disse

    outro com admiração. Nesse momento percebeu que os outros rapazes, filhos

    de famílias de classe média alta, jamais haviam mexido numa pá. Aproveitando a ocasião, comentou com os colegas, que um

    ano atrás, quando seu pai morrera, ele tinha deixado a escolade segundo grau para trabalhar como ajudante de pedreiro,ajudando assim a sua mãe que ficara sozinha. A históriacorreu pelo campo todo e, mais tarde, quando se organizaramos grupos de doutrinamento e reflexão, ele foi apresentadocomo “um novo companheiro, um proletário”. Esta distinção,

    num grupo comunista, é altamente honrosa, e ele se sentiumuito lisonjeado.Ele e a Susi ficaram em grupos diferentes. Ele participou

    de um grupo “para novatos”.Estiveram lendo e explicando alguns temas, como a

    “mais valia” (benefício que obtém o capitalista com a vendadas mercadorias produzidas pelo trabalhador, mas que não érepassado a este último), a luta de classes, a União Soviética,Cuba. O futuro.

    Depois de os mais jovens almoçarem alguns sanduíches ede beberem alguns refrigerantes, e de os adultos responsáveiscomerem alguma carne com algum vinho, e depois da faxinafeita para limpar tudo que ficara do almoço, lhes foram dadas

    duas horas de folga.Perto do lugar onde se jogavam os sacos de lixo, uma

    trilha descia até o rio e era um convite para fugir. E assim o

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    CAPÍTULO DOIS

    fizeram, ele e Susi, de mãos dadas.Sobre um tronco igual ao que ele está deitado agora, os

    dois se sentaram. Ele lhe falou de seu amor e, ela, abaixandoo olhar, disse que pensaria a respeito. Porém, quando ele a beijou, ela respondeu com um beijo comprido, carregado deamor e de desejo. Mas ficaram só nisso. A culpa, o medo,seus catorze anos puderam mais; se levantaram e, sempre demãos dadas, voltaram ao acampamento pela mesma trilha.

     Não conseguiram chegar.

     Na metade do caminho, foram surpreendidos peloresponsável dela. Com um gesto severo, lhes deu uma bronca,disse que ela era uma vergonha para Sílvia, a sua irmã, e paraseu pai, “um verdadeiro comunista”. Depois do sermão inicial,ordenou a ela que seguisse para o acampamento. Com elefoi diferente: encurralou-o contra uma árvore e o destratou,

    chamou-o de aproveitador, ignorante dos conceitos morais docomunismo e até de infiltrado, mas o que o marcou muito foio que aquele homem lhe disse depois: “Aqui há níveis e vocênunca chegará a atingir o nível de um comunista”. Depoisdisso, ordenou que ficasse à margem de toda atividade até ahora da partida e