UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A · PDF fileuma mesa redonda no Museu Naval do Rio de...

12
86 Hélade - Volume 2, Número 3 (Dezembro de 2016) Tema Livre UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A MOBILIZAÇÃO PARA A GUERRA NA ATENAS CLÁSSICA E NA PARIS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL * GUILHERME MOERBECK 1 Resumo: Este ensaio definivamente é um pasche, envolve reflexões cruzadas que ve durante o mes- trado, doutorado e por ocasião de um convite para uma mesa redonda no Museu Naval do Rio de Janei- ro, que concernia aos cem anos da Primeira Guerra Mundial. Na primeira parte, discurei aspectos ge- rais sobre os combates bélicos, com ênfase nos pro- cessos de idenficação étnica e como esse elemento se constui como catalizador para as formas de mo- bilização para a guerra. Na segunda parte, focarei os problemas relavos à apropriação, no mundo con- temporâneo, de uma ideologia heroica anga acerca da guerra que foi expressa, sobretudo, em certos cír- culos alemães nos anos que antecederam a Primei- ra Guerra Mundial; foi o que chamei de latência do heroico. Na terceira parte, estabeleço aproximações entre a guerra e as estratégias de idenficação, que ulizam o elemento étnico como fomentador da al- teridade. Palavras-chave: Guerra; Idendade; Grécia Clássica; Primeira Guerra Mundial; Arte; Tragédia Grega. 1 Doutor em História pela UFF e Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University. Pós-doutor em Ensino de História pelo PPHPBC do CPDOC/FGV-Rio. Atualmente, é professor de História da Arte e Arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ e também é pesquisador de pós-doutorado no Laboratório de Estudos Sobre a Cidade Antiga – LABECA/MAE/USP. E-mail: [email protected] A guerra e a humanidade: processos de identificação Para o antropólogo Ernest Gellner (1997, p. 166), é possível dividir a forma como a guerra foi feita pela humanidade em três modelos. No primei- ro, ela seria conngente e opcional – como no caso de sociedades pré-históricas. No segundo, obriga- tória e normava – este diz respeito ao caso das so- ciedades angas. E, no derradeiro modelo, próprio das sociedades contemporâneas define-se um po de guerra opcional, contraproducente e potencial- mente fatal à referida sociedade 2 . A passagem do primeiro para o segundo dá-se quando surge a produção e o armazenamento de alimentos e artefatos de luxo. Concomitantemente, inexiste um programa sistemáco de aprimoramen- to tecnológico. Nestas sociedades, a valorização do guerreiro ocorria devido à riqueza [que] poderia ser 2 Para um debate mais detalhado e da origem do presente tex- to acerca da guerra na Anguidade Clássica, pode-se recorrer a MOERBECK, Guilherme. Guerra, políca e tragédia na Ate- nas Clássica. São Paulo: Paco Editorial, 2014.

Transcript of UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A · PDF fileuma mesa redonda no Museu Naval do Rio de...

  • 86 Hlade - Volume 2, Nmero 3 (Dezembro de 2016)

    Tema Livre

    UM CONTO DE DUAS CIDADES: ENSAIO SOBRE A MOBILIZAO PARA A GUERRA NA ATENAS CLSSICA E NA PARIS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL*

    GUILHERME MOERBECK1

    Resumo: Este ensaio definitivamente um pastiche, envolve reflexes cruzadas que tive durante o mes-trado, doutorado e por ocasio de um convite para uma mesa redonda no Museu Naval do Rio de Janei-ro, que concernia aos cem anos da Primeira Guerra Mundial. Na primeira parte, discutirei aspectos ge-rais sobre os combates blicos, com nfase nos pro-cessos de identificao tnica e como esse elemento se constitui como catalizador para as formas de mo-bilizao para a guerra. Na segunda parte, focarei os problemas relativos apropriao, no mundo con-temporneo, de uma ideologia heroica antiga acerca da guerra que foi expressa, sobretudo, em certos cr-culos alemes nos anos que antecederam a Primei-ra Guerra Mundial; foi o que chamei de latncia do heroico. Na terceira parte, estabeleo aproximaes entre a guerra e as estratgias de identificao, que utilizam o elemento tnico como fomentador da al-teridade. Palavras-chave: Guerra; Identidade; Grcia Clssica; Primeira Guerra Mundial; Arte; Tragdia Grega.

    1 Doutor em Histria pela UFF e Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University. Ps-doutor em Ensino de Histria pelo PPHPBC do CPDOC/FGV-Rio. Atualmente, professor de Histria da Arte e Arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ e tambm pesquisador de ps-doutorado no Laboratrio de Estudos Sobre a Cidade Antiga LABECA/MAE/USP. E-mail: [email protected]

    A guerra e a humanidade: processos de identificao

    Para o antroplogo Ernest Gellner (1997, p. 166), possvel dividir a forma como a guerra foi feita pela humanidade em trs modelos. No primei-ro, ela seria contingente e opcional como no caso de sociedades pr-histricas. No segundo, obriga-tria e normativa este diz respeito ao caso das so-ciedades antigas. E, no derradeiro modelo, prprio das sociedades contemporneas define-se um tipo de guerra opcional, contraproducente e potencial-mente fatal referida sociedade2.

    A passagem do primeiro para o segundo d-se quando surge a produo e o armazenamento de alimentos e artefatos de luxo. Concomitantemente, inexiste um programa sistemtico de aprimoramen-to tecnolgico. Nestas sociedades, a valorizao do guerreiro ocorria devido riqueza [que] poderia ser

    2 Para um debate mais detalhado e da origem do presente tex-to acerca da guerra na Antiguidade Clssica, pode-se recorrer a MOERBECK, Guilherme. Guerra, poltica e tragdia na Ate-nas Clssica. So Paulo: Paco Editorial, 2014.

  • 87Hlade - Volume 2, Nmero 3 (Dezembro de 2016)

    Tema Livre

    adquirida mais rapidamente por meio da atividade predatria do que pela produo (GELLNER, 1997, p. 167). No mundo contemporneo h uma clara mudana de orientao na guerra, sobretudo no que diz respeito amplitude dos segmentos sociais envolvidos nos esforos blicos. Alm disso, a capa-cidade de destruio das grandes guerras mundiais quantidade de vtimas em potencial, a atitude de no apenas de vencer o conjunto de soldados ini-migos, mas de destruio do outro. Como em todo modelo, evidente que o autor em questo props uma forma de orientao geral; assim, apenas ao olhar cada um dos casos, seja em que temporalida-de for, conseguir-se- desvelar os conflitos blicos em todos os seus matizes sociais, culturais e eco-nmicos.

    Processo de mobilizao para a guerra: alguns debates

    Para o antroplogo Ren Gallissot no h uma identidade social ou tnico-cultural que guarde seus significados em si, mas sim, a identidade en-contra-se num processo relacional, numa dinmica em que o outro fundamental; o que o antrop-logo francs prope ser chamado de identifica-o. Gallissot sugere este termo, em substituio ao de identidade, por considerar que este ltimo d a impresso de algo fixo, esttico, acabado, e no de uma operao em constante devir (GALLISSOT, 1987, p. 12-27).

    Outro autor fundamental acerca dessas discus-ses Fredrik Barth. Junto tentativa de estabe-lecer uma identificao tnica mediante processos relacionais, encontramos seu conceito de fronteira tnica. Barth percebeu que o estabelecimento de fronteiras entre as etnias utiliza a cultura, isto , toma como base uma seleo de elementos cul-turais, variveis no tempo. Deste modo, agrupa-mentos sociais determinados podem excluir-se mutuamente no sentido tnico. O aspecto mais interessante no conceito de Barth no lidar com culturas completas que se opem, mas sim, afir-mar que os agrupamentos sociais em processo de constituir-se etnicamente podem escolher determi-nados elementos de sua cultura, construindo uma

    relao de alteridade em contraposio a outros agrupamentos. Na criao das fronteiras tnicas assim constitudas, o que est em jogo so as es-tratgias de identificao e os processos relacionais (BARTH, 1998, p. 185-227).

    Um ltimo elemento terico que deve ser le-vado em considerao em nossa abordagem o conceito de etnicidade embutida (nested ethnici-ty), proposto por Jonathan M. Hall. A partir desta noo, podemos perceber como, em diferentes so-ciedades, nos perodos de que tratamos, as estrat-gias de identificao poderiam ser operadas desde elementos maiores (nao), lingusticos (lngua ou dialeto que se fala); religioso ou regional. Isto , es-sas variveis podem servir de catalizadores para a aglutinao ou, ao contrrio de disseno, segundo interesses polticos e econmicos envolvidos nas decises de se fazer a guerra (HALL, 1997).

    No que se refere ao mundo contemporneo, no so poucos os trabalhos que podem ser aqui citados. Desde os esforos de Eric Hobsbawm em seus Naes e Nacionalismos e tambm em A In-veno das Tradies, mas tambm Benedict Anderson, que fez invulgar anlise acerca das for-mas pelas quais as diferentes Comunidades Imagi-nadas estabeleciam estratgias de pertencimento; at mesmo Anthony Giddens que, em seu Estado--Nao e violncia mostra os processos que levaram ao desenvolvimento capitalista e industrializao da Guerra.

    Todos esses autores, em diferentes matizes te-ricos acabaram por jogar luz ao tema ora discuti-do. Note-se, por enquanto, apenas que, naquilo que podemos afirmar de maneira bastante breve acerca das configuraes dos Estados-nao no pr-guerra, a famosa equao nao=Estado=povo nem sem-pre funciona stricto sensu. Portanto, a ideia poltica de autodeterminao dos povos, to em voga no ps-guerra, de maneira alguma consegue dar conta dos emaranhados culturais, multilingusticos e tni-cos por meio dos quais se configuravam os pases e Imprios de ento.

    Pierre Bourdieu ressalta como, em situaes de conflito, ocorrem choques entre as represen-taes identitrias, e, alm disto, sublinha a fora

  • 88 Hlade - Volume 2, Nmero 3 (Dezembro de 2016)

    Tema Livre

    mobilizadora que constituiria uma oposio do tipo ns versus eles, deveras pertinente para a anlise que faremos. Diz o socilogo:

    [...] os indivduos e os grupos investem nas lu-tas de classificao todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que fazem de si mesmos, todo o impensado pelo qual se constituem como ns por oposio a eles, aos ou-tros, a que se ligam mediante uma adeso quase corporal. Isto explica a fora mobilizado-ra excepcional de tudo aquilo que tem a ver com a identidade3. (BOURDIEU, 1980, p. 69).

    Como bem lembra Pierre Bourdieu, muitas ve-zes as encenaes nas grandes cerimnias coletivas que, sabidamente fazem parte da mobilizao para a guerra em diversas temporalidades, tem

    [...] a inteno sem dvida mais obscura de ordenar os pensamentos e de sugerir os sen-timentos mediante o ordenamento rigoroso das prticas, a disposio regulada dos cor-pos, e especialmente da expresso corporal da afeio, como risos ou lgrimas. (BOURDIEU, 2009, p. 113).

    Considerando os aspectos relativos ao jogo de poder identitrio e a excepcional mobilizao hu-mana que se deve fazer em momentos de guerra, farei a exposio, a seguir, de duas possveis abor-dagens que une, num sentido transcultural de apro-priao seletiva, a cultura helena e aquela da Pri-meira Guerra, na Europa.

    3 Valria Reis mostrou bem o processo em que uma identidade helnica forjada na tragdia Os Persas. Cf. SANTOS, Valria Reis. Entre ser e fazer: A construo de uma identida-de poltica ateniense nas tragdias de squilo. Niteri, 2002. Dissertao. (Mestrado em Histria) - PPGH, Universidade Fe-deral Fluminense, Niteri, 2002, bem como: SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. Atenas e a inveno dos Brbaros. Disserta-o de Mestrado. UFF, 1992. E ainda: MOERBECK, Guilherme. Guerra, poltica e tragdia na Atenas Clssica. Jundia: Paco Editorial, 2004. Recentemente em artigo, cf. FERNANDES, Pierre Romana. squilo e Os Persas: repensando a repre-sentao do brbaro. NEARCO Revista Eletrnica de Anti-guidade, ano VII, n. 1, 2015. Por fim, trabalho clssico: HALL, Edith. Inventing the barbarian: Greek self-definition through tragedy. London: Claredon Press Oxford. 1989.

    A guerra como honra

    Jean-Baptiste Duroselle, definiu a guerra como um valor [o problema tico na guerra] de diversas formas, seriam elas: 1) a guerra como fresca e feliz uma atitude de fanfarronice em relao ao confli-to. 2) A guerra aceitvel considerada como justa, vista como resposta a uma injustia, mesmo que a ideia de que a ns foi causada uma injustia varias-se profundamente segundo os discursos polticos proferidos em cada pas. 3) A guerra condenvel, salvo em caso de defesa um tipo de atitude pa-cifista moderada que considera a guerra como uma doena e que deve ser evitada a todo custo. 4) A guerra como absolutamente condenvel - o caso em que a paz considerado um valor superior e/ou em que h interdies religiosas para faz-la.

    E, por fim, a noo da Guerra como um ele-mento nobre, de honra. Esta concepo est base-ada na noo em que existe um grupo social res-ponsvel por fazer a guerra. Sendo assim, ou ela o mais belo dos