Um Bonde Chamado Desejo
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8/19/2019 Um Bonde Chamado Desejo
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Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams
Talvez fosse melhor iniciar a análise da obra pelos elementos mais fáceis que ela
nos confere. Começaríamos, então, pela adaptação fílmica de Um bonde chamado
desejo, de Tennesee Williams. Faríamos, inicialmente, uma espcie de fenomenolo!ia
dos "o!os de luzes presentes no filme, de modo desvendar al!um tipo de processo de
si!nificação oculto # mas não tanto # da obra. $eria o caminho mais fácil. %final,
&lanche 'ubois profere duas de suas mais cativantes falas ( )não quero realismo, quero
ma!ia* e )conto a verdade não como , mas como ela deveria ser* # precisamente no
cenário de confronto com a luz da qual passa a narrativa inteira se escondendo. $e!undo
essa fenomenolo!ia, a tentativa de ocultar#se da luz corresponderia, a uma tentativa de
ocultar#se da verdade dura da realidade. % partir daí, os polos tradicionalmente
separados compareceriam aqui atrelados +s suas respectivas metáforas. %ssim, verdade
e luz estariam de um lado ao passo que sombras e mentira estariam de outro, de modo
que seria fácil ao espectador distin!uir quando há um e quando há outro e, no confronto,
tratar#se#ia de confrontar#se, tambm, com a verdade.
ostaria de su!erir que tanto no filme quanto na peça não esse ( ou não só
esse ( o papel da luz e das sombras, sendo a comple-idade do "o!o al!o alm da mera
polarização verdade#mentira ou realismo#fantasia. ostaria de su!erir que, para alm
dessa fenomenolo!ia quase imediata que todo espectador capaz de fazer, está em
operação no filme um "o!o comple-o relativo ao eal trá!ico do dese"o, entendido aqui
como um contraponto absoluto +s e-pectativas falsas de reconhecimento fantástico
nutridos pela persona!em de &lanche e pelo persona!em /itchell. 'ito de modo mais
simples, o que !ostaria de su!erir que o "o!o de luz e sombra simboliza não tanto a
eterna disputa entre verdade e mentira, entendidos esses dois termos em sentido clássico
e pleno 0ou verdade, ou mentira1, mas um tipo diferente de relação no qual verdade ementira se entrelaçam de tal modo no dese"o que se torna impossível de distin!uir bem
quando um se dá e quando outro se dá. 2 "o!o entre luz e sombras seria, então, entre o
eal do dese"o e a fantasia em sentido lacaniano, grosso modo, respectivamente, aquilo
que ine-orável, sem sentido a priori e an!ustiante 0mas deve ser enfrentado1 e al!o
que nos permite construir uma realidade a partir de nossas e-peri3ncias primordiais. 2
se!undo termo serve como uma espcie de cobertura do se!undo, de modo que
hodiernamente operamos no re!istro da fantasia tentando fu!ir do eal. $ua emer!3ncia palpável quando sentimos an!4stia, uma suspensão do mundo cotidiano a partir da
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aparição da aus3ncia de sentido. 5 essa 4ltima operação que di!o estar em "o!o para
ambos os persona!ens na cena de encontro final entre /itchell e &lanche.
6sclarecendo um pouco mais, por )construção de realidade* quero dizer, como
num motto 7antiano, que o su"eito mais ou menos constr8i os ob"etos que v3. 9
diferença de :ant, no entanto, constr8i o ob"eto no sentido de posicionar#se de
determinada maneira frente a ele, ou se"a, a!ir de determinada maneira a partir de certas
e-pectativas que ele tem dos ob"etos de seu dese"o. Fantasia aqui , então, uma certa
forma de lidar com os ob"etos de dese"o que simultaneamente os constr8i, os posiciona,
posiciona o campo de aç;es possíveis do su"eito e o campo de e-pectativas de reação
que esse su"eito tem em relação ao ob"eto. % título de e-emplo, uma educação
e-cessivamente repressora, se bem sucedida, tende a !erar um su"eito altamente inibido,
que se an!ustia ante a mera possibilidade de realização de seu dese"o. 6-plicando esse
e-emplo nos termos precedentes, sua posição de su"eito a posição daqueles que não
podem satisfazer seu dese"o, sua construção de ob"eto de dese"o o leva a construí#lo
como simultaneamente dese"ado e proibido, a posição desse ob"eto a de um ob"eto
interdito ou maldito, seu campo de aç;es frente a esse ob"eto limitado precisamente
por sua inibição 0então dificilmente tentará al!o direto ou, se tentar, será al!o
absolutamente desa"eitado, e seu campo de e-pectativas basicamente ou a repressão
ou a re"eição.
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/itchell, em sua infinita prisão ao dese"o materno, se v3 incapaz de romper uma certa
ima!em idealizada de mulher e pro"eta#a como dese"o em &lanche.
%ssim, se &lanche sofre por conta uma ruptura violenta de uma relação # ruptura
essa que ocasiona a rachadura numa estrutura psíquica que, do que sabemos, funcionava
bem ( /itch, que apesar de velho ainda vive com sua mãe, sofre por um
aprisionamento a um tipo de relação marcado por uma idealização da fi!ura da mulher.
%s duas fi!uras, aqui, funcionam como polos complementares at certo ponto e isso se
torna evidente para o espectador=leitor em revelaç;es feitas ao lon!o da obra. 6-emplos
disso são as revelaç;es mutuas de ambos )precisarem de al!um*, bem como o pr8prio
dese"o despertado desde o primeiro encontro entre os dois persona!ens. 'i!o at certo
ponto porque uma dis"unção vai e-istir precisamente quando a atualização da
e-pectativa de um for a ne!ação da e-pectativa do outro, ou se"a, quando &lanche tiver
seu passado revelado, perderá quaisquer possibilidades de ter /itch por não ser mais
pura.
5 bom ressaltarmos que o encontro se dá porque &lanche v3 em /itch al!um
diferente dos outros tr3s homens que comp;e o n4cleo principal. %os passo que os >
são, em al!uma medida, broncos, brutos e poderíamos mesmo dizer )do tipo que pe!a o
que quer sem se importar muito*, /itch )um tipo mais sensível* como a pr8pria
persona!em assinala. 6ssa sensibilidade decorre não tanto de um !osto pessoal
cultivado ao lon!o de anos de estudo mas, como a narrativa dei-a entrever, de uma
sublimação constante e contínua de um dese"o se-ual nunca realizável por impulso
pr8prio. /itch, mesmo quando certo de que dese"ado, precisa sempre pedir permissão
+ &lanche para bei"á#la 0com o que ela se irrita eventualmente1, precisa sempre de uma
autorização desta para tocá#la e parece mesmo se!uir todos os planos dela sem
pestane"ar. ?ão se imp;e nem se implica diretamente@ a!e por aceitação tácita.
2 que aqui poderia ser tomado como !entileza ou respeito, não na verdademais do que a impossibilidade de tomar &lanche como um ob"eto de dese"o que tambm
dese"a, precisando sempre elevá#la + condição de ob"eto inatin!ível, não dese"ante e
que, por isso possui sobre ele al!uma autoridade. Asso se manifesto sob o disfarce do
respeito, mas na verdade o que vemos a assunção de uma posição de que se pensa
sempre re"eitado para melhor confirmar o dese"o do outro sobre si. $ua relação com
&lanche não se tece como a relação entre um amante e seu ob"eto amado, ou se"a, sua
relação com ela não parece calcada na satisfação de suas e-pectativas dereconhecimento enquanto amado, mas sim numa e-pectativa de autorização para
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realizar os pr8prios dese"os amorosos. % relação, desde o ponto de vista de /itch, com
uma autoridade que tudo pode, inclusive satisfaz3#lo. ?ão que, para /itchell, &lanche
)se"a sua mãe* ou que ele )a trate como se fosse a sua mãe*, como uma leitura
psicanalítica apressada poderia nos fazer crer, mas que ele a trate de uma forma muito
mediada por essa relação de pro-imidade com um ob"eto proibido. 2 aprisionamento +
relação com a mãe intervm, assim, de modo a impedi#lo de "o!ar#se no abismo do
dese"o, vez que a mãe 0quando boa1 sempre aquele ente que certifica a criança de que
ela dese"ada. %o invs do tal abismo ne!ativo do dese"o, /itch busca sempre al!uma
se!urança ou al!uma certeza que, ef3mera posto ser e-pressa em palavras precisam
sempre de uma nova atualização.
% pureza parece ser o traço fundamental da visão que /itch tem de &lanche.,
'esde o começo da obra, momento no qual o encontro dos persona!ens se dá por um
acaso providencial que leva /itch a reconhecer em &lanche certa doçura infantil, at o
final da obra, momento no qual uma reação violenta de /itch contra seu ami!o $tanleB
acompanhada de uma insinuação de que este havia estuprado &lanche, o que marca a
leitura de /itch e-atamente essa pureza que, sempre parece ameaçada de ser
manchada evoca o"eriza e 8dio. ?ão outra coisa que o leva at seu apai-onamento por
ela que não essa suposta in!enuidade.
Tal leitura de /itchell encontra respaldo no comportamento fantasioso e
e-cessivamente infantil de &lanche, comportamento esse que parece insistir numa
postura infantilizar com vistas + sedução de todos + sua volta. ue por sedução não
entendamos, aqui, al!o necessariamente se-ual, al!o pr8prio daquelas que t3m
características da estrutura histrica mais acentuadas, ou se"a, que entendamos aqui uma
sedução marcada por um descuido calculado e uma certa necessidade do dese"o do outro
sobre si que tende a levar a busca desse dese"o de todas as formas ao alcance do
indivíduo. 5 notável que esse modo de a!ir aponte para uma constituição decomportamento que se faz em resposta a um trauma, de modo que toda sua realidade
acabe por não ser mais que sedução. % sedução e-cessiva, nesse caso, não apenas um
traço característico da persona!em, mas uma decorr3ncia de um acontecimento
traumático em sua hist8ria pessoal, uma resposta de sua estrutura, portanto. 5 necessário
que se"a a sedução, posto que em seu passado, quando os maridos ( para &lanche,
palavra intercambiável por )amores* ( das mulheres ao seu redor morriam, essas se
tornavam amar!as e ressentidas. % reação sintomática de &lanche não s8 uma reação +e-peri3ncia traumática vivida, mas tambm uma reação a um passado mais primordial,
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passado cu"a repetição tenta escapar.
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apenas a tiara por ela usada. 5, então, um retorno + "uventude áurea, momento no qual a
sedução não era uma preocupação ou uma construção, mas al!o natural. Asso porque não
seria suficiente criar ex nihilo um pretendente@ seria necessário que ele fosse feito a
partir de uma e-peri3ncia vital real, e-peri3ncia na qual não apenas foi dese"ada por um
homem, mas provavelmente por vários e pDde escolher o quanto quis. ?ecessário era
uma e-peri3ncia que confirmasse o sucesso da conquista do dese"o do outro em sua
vida, posto que o trauma de ruptura com /itch reatualiza e potencializa o trauma
anterior da morte do outro amante. $ua estrutura, a!ora em fran!alhos, tenta se reer!uer
trazendo de um passado remoto um amante que, esse sim, estaria disposto a reviver um
amor que esteve presente desde o passado.
$e &lanche tem sua estrutura rompida no encontro final entre ela e /itch, /itch
parece revelar#se um obsessivo, ou se"a, al!um e-cessivamente preocupado com a
pureza encarnada pela ideia de castidade. $eu problema com &lanche não que ela lhe
tenha mentido a idade, mas que tenha sido capaz de dizer a ele que havia sido educada
)+ moda anti!a* ao passo que "á havia dormido com outros homens. $eu problema com
ela , ao fim, que ela "á tenha sido !ozada e "á tenha !ozado outras vezes, "á tenha tido
outras e-peri3ncias com outros homens, ao passo que ele, como todo seu
comportamento frente a ela demonstra, buscava nela uma princesa que pudesse salvar.
?ão tanto o !olpe na fi!ura real de &lanche ( para a qual ele pouco li!a ( que o
incomoda, mas o !olpe na idealização por ele promovida. Tanto assim que o momento
no qual diz )querer ser realista* ( que abre espaço para a frase de &lanche # o
momento no qual ele mesmo revela que "á sabia que ela mentia a idade, ou se"a, seu
realismo tem a estrutura de uma confirmação e não a de uma revelação.
?ão + toa, o momento do realismo tambm o momento que a bei"a e
simultaneamente ne!a poder se casar com ela por ela não ser pura para )entrar na casa
de sua mãe*. 5 como se ela, nas condiç;es atuais, pudesse ser dese"ada e fruída, masnunca possuída, posto que possuir si!nificaria uma união com uma mulher pura, digna
de entrar na casa da mãe. Earado-almente, possuí#la nesses termos aniquilar
precisamente a fru!alidade e a leveza sedutora da pessoa por quem ele apai-onou. 6la,
para ser tal e qual era, dependia de uma con"untura específica de sofrimento e dese"os
com as quais ele não era capaz de conviver. 2 eu ele dese"ava, i.e. sua sedução e sua
fru!alidade, deveriam ver independentes da mulher que os sustentava, posto que quem
sustenta esse comportamento "ustamente essa mulher real que sofre e lida com osofrimento dessa maneira. /itchell, sabendo forma adotada por ela para lidar com seu
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sofrimento e seus dese"os, incapaz de manter o que disse outrora, a saber, que a
dese"ava tal e qual ela era e a abandona, não sem antes finalmente bei"á#la e ser
correspondido. etira, assim, o má-imo que pDde da relação, sem nunca ter dado nada
em troca.
% terceira e 4ltima su!estão que !ostaria de fazer tem a peculiaridade de
encaminhar o te-to por seu encerramento. ostaria de su!erir al!o muito pr8-imo do
que al!umas feministas su!erem ou dei-am implícito quando condenam al!umas obras
por e-por cenas de estupro, viol3ncia física contra a mulher, subalternização, etc.
ostaria de su!erir que, alm ser a representação de práticas cotidianas que
encontramos na sociedade 0leitura realista1, obras de ficção t3m a peculiaridade de nos
ensinar modos de lidar com essas mesmas questões. ?ão possível precisar um 4nico
sentido apreendido por todos, mas possível situar linhas !erais se!undo as
e-peri3ncias dos persona!ens frente a determinadas situaç;es.
?o caso específico dessa obra, o que parece estar sendo problematizada uma
certa forma fantasiosa de lidar com o dese"o que v3 no outro uma certa perfeição
0/itch1, ou v3 o dese"o desse outro como a solução para um problema de quebra
traumática de e-pectativas de reconhecimento social. Eara dar suporte + primeira
afirmativa, ancoro#me na estranha confi!uração da cena de re"eição de &lanche por
/itch. ?ão há nada faltando em &lanche desde que ele a conheceu, salvo a ideia de
pureza, que foi tão construída quanto ele pareceu demandar. %o fim e ao cabo, o que a
separa dele seu passado que, esse sim, a retira da ideia )retidão* que !ostaria que ela
tivesse.
?esse sentido, fundamental compreendermos a frase )nunca menti para voc3
em meu coração*, proferida por ela a ele, em seu sentido mais pleno@ a posição que ela
adotou quando demonstrou uma fra!ilidade, construiu um puritanismo e, a partir disso,
o seduziu, não possui o mesmo !rau de implicação sub"etiva daquela postura que adotouquando dormiu com o sem n4mero de homens na outra cidade, ou quando seduziu o
belo rapaz em um dado momento da obra. á, na tentativa de sedução de /itch, o
mesmo sentimento que havia na relação com seu falecido amante, ou se"a, há um
retorno a uma posição !enuína de dese"o, fazendo com que o dese"o de /itch por ela
se"a um dese"o especial, sin!ular e, portanto, 4nico.
6stou supondo aqui, a partir da densidade que &lanche confere ao amante que
morreu e pela comparação que ela dei-a implícita em sua fala entre /itch e seu amantemorto, que a relação com /itch marcadamente diferente das relaç;es que teve nas
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outras cidades. Asso porque /itch , aos olhos de &lanche, vulnerável , característica
sempre ressaltada por ela em seu falecido amante e característica que ela diz, lo!o ao
começo, ter perdido. Tal vulnerabilidade de /itch lembra + ela de sua pr8pria, num "o!o
de espelhos que a fez ver, na vulnerabilidade de /itch, )um abri!o na rocha do mundo*.
6sse abri!o, no entanto, se mostra não mais que uma mira!em e o trmino da obra, com
&lanche sendo levado a um hospital de alienados, mostra o quão encarcerada na sua
fantasia ela se manteve. Eois que, o persona!em do psiquiatra s8 conse!ue convenc3#la
a ir na medida em que fin!e ser um cavalheiro que vai leva#la a um passeio. Triste
destino de al!um que, como ela mesma diz, sempre contou com )a !entileza de
estranhos*.