Um Anti-racista à Frente de Seu Tempo — Tiedemann

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  Assine 0800 703 3000 SAC  Bate- papo E-mail Not íci as Esport e Ent ret eniment o Mulh er Shop ping BUSCAR Um dos poucos retratos sobreviventes do grande anatomista anti-racista alemão Friedrich Tiedemann. Colun as / Deri va genét ica Um anti-racista à frente de seu tempo Colunista conta como Friedrich Tiedemann defendeu igualdade biológica dos seres humanos em 1836 Por: Sergio Pena Publicado em 11/05/2007 | Atualizado em 11/12/2009 Com a aproximação do dia 13 de maio, nossos pensamentos se voltam para a Lei Áurea de 1888. Nesse aspecto, 2007 é um ano especial, porque no dia 23 de fevereiro comemoramos 200 anos da abolição do tráfico de escravos pelo Reino Unido. Fundamental na promoção desse evento memorável foi  William Wilberforce (1759-1833), membro do parlamento inglês. Ainda foram necessários outros 26 anos de trabalho árduo de Wilberforce e outros abolicionistas até que os escravos no Império Britânico fossem todos libertados em 1833. Mas o bicentenário da abolição do tráfico nos dá uma oportunidade de prestar tributo à coragem e integridade moral de todos –  brancos e negros – que militaram pela extinção da escravatura na Inglaterra, no Brasil e no resto do mundo. O herói de nossa coluna de maio não será o festejado Wilberforce, mas um anatomista alemão menos conhecido, Friedrich Tiedemann (1781-1861), que em 1836 publicou no Philosophical Transact ions of the Royal Societ y of London um admirável e revolucionário artigo intitulado “Sobre o cérebro do Negro, comparado com o do Europeu e do orangotango”.  Antes de discutirmos o artigo de Tiedemann, vale a pena contextualizá-lo. No século 19 a vasta ma ioria dos cientistas era composta de homens  brancos. Não é nenhuma surpresa, po rtanto, que os sistemas classificatórios construído s naquela época para estratificar a humanidade em uma escala de valor elegessem as características físicas dos homens brancos como as mais importantes para definir os níveis intelectualmente superiores. Reza o dito popular que a história é escrita pelos vencedores. Por sua vez, a ciência é escrita pelos cientistas, que também não perdem a chance de se glorificarem. Como detalhadamente descrito pelo meu guru Stephen Jay Gould em seu penetrante livro A falsa medida do homem, nos séculos 18 e 19 o tamanho do cérebro era a principal medida física de inteligência. Praticamente todos os cientistas europeus na primeira metade do século 19 compartilhavam a idéia de que africanos e mulheres pertenciam às formas inferiores de vida humana, porque tinham cérebros menores do que os homens brancos. Tão arraigada era a noção da inferioridade biológica dos africanos na Europa daquela época, que até os próprios abolicionistas acreditavam nela e desejavam a libertação dos escravos por razões humanitárias, sem contudo estarem dispostos a considerá-los intelectualmente iguais aos europeus.  A intervenção de Tie demann  A principal voz que se levantou na Europa contra es se “dogma” foi a de Friedrich Tiedemann, espe cialmente em seu artigo publicado em 1836 (clique aqui para baixar o arquivo, que tem 4,2 Mb), o único que ele escreveu em inglês em toda a sua vida. Ele próprio d á pistas para a razão disso na sua introdução: “Tomo a liberdade de apresentar à Royal Society um artigo sobre um t ópico que me parece de grande importância para a história natural, anatomia e fisiologia do Homem, sendo também interessante do ponto de vista político e legislativo. Naturalistas de renome como Camper, Soemmerring e Cuvier consideram os Negros uma raça inferior à Européia em organização e poderes intelectuais, tendo muita semelhança aos macacos. Naturalistas de menor autoridade têm exagerado essa opinião. Se a idéia fosse correta, o Negro ocuparia uma posição em sociedade diferente da que recentemente lhe foi atribuída pelo nobre Governo Britânico”. Tudo indica então que Tiedemann tenha escrito em inglês para homenagear os esforços de Wilberforce e do Parlamento Britânico na libertação dos escravos! O artigo de Tiedemann é um exemplo da aplicação sistemática e criteriosa de metodologia científica de comparação de grupos. Apesar de certa fragilidade das técnicas estatísticas usadas, apontadas em um ensaio de Stephen Jay Gould, o artigo de Tiedemann usa o método científico moderno, contrastando com o padrão da época, que consistia na utilização de exemplos isolados, considerados “típicos”, para “comprovar” conclusões já tomadas a priori . Um an ti -r acist a à fr ente d e se u te mp o — Ci ência Hoje http://c ie nciahoje.uol.com.br /colunas/deri va-g eneti ca/um-anti- racista-a... 1 de 3 18/07/2015 12:38

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Tiedeman desvela um racismo de sua época superando-o pela pesquisa científica

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    Um dos poucos retratos sobreviventes do grande anatomista anti-racista alemo Friedrich Tiedemann.

    Colunas / Deriva gentica

    Um anti-racista frente de seu tempo

    Colunista conta como Friedrich Tiedemann defendeu igualdade biolgica dos seres humanos em 1836

    Por: Sergio Pena

    Publicado em 11/05/2007 | Atualizado em 11/12/2009

    Com a aproximao do dia 13 de maio,nossos pensamentos se voltam para aLei urea de 1888. Nesse aspecto, 2007 um ano especial, porque no dia 23 defevereiro comemoramos 200 anos daabolio do trfico de escravos peloReino Unido. Fundamental napromoo desse evento memorvel foiWilliam Wilberforce (1759-1833),membro do parlamento ingls. Aindaforam necessrios outros 26 anos detrabalho rduo de Wilberforce e outrosabolicionistas at que os escravos noImprio Britnico fossem todoslibertados em 1833. Mas o bicentenrioda abolio do trfico nos d umaoportunidade de prestar tributo coragem e integridade moral de todos brancos e negros que militaram pelaextino da escravatura na Inglaterra, no Brasil e no resto do mundo.

    O heri de nossa coluna de maio no ser o festejado Wilberforce, mas um anatomista alemo menos conhecido, Friedrich Tiedemann(1781-1861), que em 1836 publicou no Philosophical Transactions of the Royal Society of London um admirvel e revolucionrio artigo intituladoSobre o crebro do Negro, comparado com o do Europeu e do orangotango.

    Antes de discutirmos o artigo de Tiedemann, vale a pena contextualiz-lo. No sculo 19 a vasta maioria dos cientistas era composta de homensbrancos. No nenhuma surpresa, portanto, que os sistemas classificatrios construdos naquela poca para estratificar a humanidade em umaescala de valor elegessem as caractersticas fsicas dos homens brancos como as mais importantes para definir os nveis intelectualmentesuperiores. Reza o dito popular que a histria escrita pelos vencedores. Por sua vez, a cincia escrita pelos cientistas, que tambm no perdema chance de se glorificarem.

    Como detalhadamente descrito pelo meu guru Stephen Jay Gould em seu penetrante livro A falsa medida do homem , nos sculos 18 e 19 otamanho do crebro era a principal medida fsica de inteligncia. Praticamente todos os cientistas europeus na primeira metade do sculo 19compartilhavam a idia de que africanos e mulheres pertenciam s formas inferiores de vida humana, porque tinham crebros menores do que oshomens brancos. To arraigada era a noo da inferioridade biolgica dos africanos na Europa daquela poca, que at os prprios abolicionistasacreditavam nela e desejavam a libertao dos escravos por razes humanitrias, sem contudo estarem dispostos a consider-los intelectualmenteiguais aos europeus.

    A interveno de TiedemannA principal voz que se levantou na Europa contra esse dogma foi a de Friedrich Tiedemann, especialmente em seu artigo publicado em 1836(clique aqui para baixar o arquivo, que tem 4,2 Mb), o nico que ele escreveu em ingls em toda a sua vida. Ele prprio d pistas para a razodisso na sua introduo:

    Tomo a liberdade de apresentar Royal Society um artigo sobre um tpico que me parece de grande importncia para a histria natural,anatomia e fisiologia do Homem, sendo tambm interessante do ponto de vista poltico e legislativo. Naturalistas de renome como Camper,Soemmerring e Cuvier consideram os Negros uma raa inferior Europia em organizao e poderes intelectuais, tendo muita semelhana aosmacacos. Naturalistas de menor autoridade tm exagerado essa opinio. Se a idia fosse correta, o Negro ocuparia uma posio em sociedadediferente da que recentemente lhe foi atribuda pelo nobre Governo Britnico. Tudo indica ento que Tiedemann tenha escrito em ingls parahomenagear os esforos de Wilberforce e do Parlamento Britnico na libertao dos escravos!

    O artigo de Tiedemann um exemplo da aplicao sistemtica e criteriosa de metodologia cientfica de comparao de grupos. Apesar de certafragilidade das tcnicas estatsticas usadas, apontadas em um ensaio de Stephen Jay Gould, o artigo de Tiedemann usa o mtodo cientficomoderno, contrastando com o padro da poca, que consistia na utilizao de exemplos isolados, considerados tpicos, para comprovarconcluses j tomadas a priori .

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  • Superfcie ventral do crebro do negro Honor, usado por Tiedemann para verificar que a arquitetura enceflica de africanos e europeus era amesma.

    Podemos dividir o artigo em duas partes, com objetivos e metodologias distintos. A primeira comparava o tamanho do crebro entre os sexos.Tiedemann confronta diretamente o peso do crebro de 28 homens e 11 mulheres europias, chegando sua primeira grande concluso, quepasso a traduzir literalmente:

    Embora Aristteles tenha registrado que o crebro da mulher menor que o do homem em termos absolutos, ele no menor em comparaocom o corpo, porque o corpo feminino geralmente mais leve do que o masculino. O crebro feminino, na maioria das vezes, at maior que odos homens, em relao ao tamanho do corpo.

    Tamanho do crebro e raas

    Tiedemann inicia a segunda parte do texto fazendo a comparao do tamanho do crebro entre as diferentes raas, com nfase para africanos eeuropeus. Para tal, ele identificou em vrios museus crnios de 38 homens africanos, 77 europeus, 24 asiticos, 38 ocenicos e polinsios e 24amerndios (incluindo um ndio Botocudo do Brasil). Atravs do forame magno ele encheu completamente a cavidade de cada crnio compequenas sementes de um cereal (o milhete) e depois as esvaziou. Pesando o cereal, ele obteve uma medida do volume intracraniano e chegou sua segunda grande concluso:

    evidente pela comparao da capacidade craniana do Negro com a do Europeu, Monglico, Americano e Malaio que a cavidade do crnio doNegro no menor do que a do Europeu nem que as de outras raas.

    Ele tambm comparou a anatomia do sistema nervoso central de um nico negro com a de europeus e a do orangotango, atingindo assim a suaimportante concluso final:

    O crebro sem dvida o rgo da mente. Ele a parte de nosso corpo que nos d a conscincia de nossa prpria existncia e atravs dele querecebemos as impresses sensoriais, conduzidas at o crebro pelos nervos. No crebro, as percepes so comparadas e combinadas paraproduzir idias. [...] Em resumo, o crebro o instrumento atravs do qual todas as operaes chamadas intelectuais so exercitadas [...]

    E mais importante: Como os dados que fornecemos simplesmente provam que no h diferenas substantivas ou essenciais entre o crebro doafricano e do europeu, podemos concluir que no possvel admitir que existam diferenas inatas em faculdades intelectuais entre eles. Isto temsido negado por filsofos, naturalistas e exploradores, que afirmam que a raa Etipica naturalmente inferior Europia em poderes morais eintelectuais. Os dados nos quais estas opinies se baseiam so suposies errneas ou dedues anatmicas ou fisiolgicas falsas, ou observaessuperficiais feitas por viajantes preconceituosos.

    Maravilhoso, no? Principalmente se considerarmos que mesmo nos dias de hoje, em muitos lugares, ainda persiste o infame e nocivo paradigmaracista da inferioridade biolgica dos africanos. Poderamos perguntar qual foi a repercusso do sensacional artigo de Tiedemann no resto dosculo 19.

    Para obter uma estimativa rpida (e superficial) de seu impacto, procurei referncias sobre ele em trs livros: A descendncia do homem , deCharles Darwin (1871), Evidence as to man's place in nature [Evidncia do lugar do homem na natureza] ,de Thomas Huxley (1863), e umterceiro texto menos conhecido, que garimpei em um sebo de Londres, The races of man and their geographical distribution [As raas do homeme sua distribuio geogrfica], de Charles Pickering (1854). Nenhum dos trs cita o trabalho de Tiedemann, sinal de que o anti-racismo do grandeanatomista alemo estava realmente muito frente do seu tempo!

    Um pequeno mundo de conhecimento geral que vivemos em um pequeno mundo. Uma manifestao desse conceito (no incontroversa, diga-se de passagem)originou-se h exatamente 40 anos com o psiclogo Stanley Milgram, que postulou que dois americanos escolhidos ao acaso estavam conectadosem mdia por uma cadeia de seis pessoas conhecidas. Na Inglaterra do sculo 19 os graus de conectividade eram bastante mais prximos. Osprotagonistas desta coluna, por exemplo, esto todos intimamente relacionados entre si, como veremos a seguir.

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  • Camafeu abolicionista produzido por Josiah Wedgwood a pedido de William Wilbeforce no final do sculo 18. O texto diz: "Am I not a man anda brother?"(No sou tambm um homem e um irmo?).

    William Wilberforce convenceu seu amigo Josiah Wedgewood (1730-1792), criador das famosas porcelanas inglesas, a produzir camafeusabolicionistas (ver figura) com a efgie de um negro em grilhes e com os dizeres: Am I not a man and a brother? (No sou tambm um homeme um irmo?). Josiah Wedgwood era av de Emma, a esposa de Charles Darwin.

    A publicao do livro de Darwin A origem das espcies em 1859 causou grande furor na Inglaterra. Com sade frgil, o autor permaneceu isoladoem sua residncia rural e a defesa da causa evolucionista foi assumida pelo jovem Thomas Huxley (1825-1895), apelidado de o buldogue deDarwin. Huxley tambm era um brilhante pesquisador e tornou-se um grande especialista no estudo da anatomia comparada dos grandesprimatas, incluindo o Homo sapiens . O grande precursor desses estudos foi Friedrich Tiedemann, com sua descrio pioneira do crebro doorangotango em 1826 e seu magnfico artigo de 1836.

    Em 30 de junho de 1860 houve um debate legendrio de Huxley com o arcebispo de Oxford que ironicamente indagou se o evolucionistadescendia dos macacos pelo lado de sua av ou de seu av. Huxley respondeu que no tinha nenhuma vergonha de ser descendente de macacos,mas que teria vergonha de ser descendente de um homem que usasse retrica e falcias para esconder a verdade! A partir desse incidente Huxleypassou a se intitular um episcopfago (ou seja, um comedor de bispos). O nome do reacionrio arcebispo de Oxford era Samuel Wilberforce eele era o terceiro filho do grande abolicionista William Wilberforce. Ciclo fechado QED.

    A luta continuaTermino com uma coda melanclica, em escala menor. Enquanto o mundo comemora 200 anos da abolio do trfico de escravos no ReinoUnido, infelizmente precisamos nos conscientizar de que em 2007 ainda h milhes de pessoas vivendo em regime de escravido. No se trataapenas de gente com salrio nfimo ou em condies subumanas, mas de trabalho no-remunerado sob ameaa de violncia fsica. A BBCproduziu uma srie de quatro programas de rdio, chamados Escravido Hoje , que demonstra dramaticamente a magnitude do problema nomundo.

    Aqui nos nossos tristes trpicos tambm temos milhares de pessoas sujeitas prostituio infanto-juvenil e ao trabalho forado no campo. E deprimente constatar que periodicamente a imprensa noticia que conhecidos membros de nossa sociedade e at alguns polticos esto envolvidosnessa vil explorao do nosso povo. Precisamos urgentemente de um Wilberforce no Congresso Nacional.

    Sergio Danilo PenaProfessor Titular do Departamento de Bioqumica e ImunologiaUniversidade Federal de Minas Gerais11/05/2007

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