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DOI: 10.5433/1984-3356.2018v11n22p815 Um agente do Império brasileiro em Londres: William Henry Clark e o fim da política da escravidão saquarema An agent of the Brazilian Empire in London: William Henry Clark and the end of the policy of slavery Saquarema Henrique Antonio Ré 1 RESUMO Em meados da década de 1860, depois dos episódios relativos à “Questão Christie” e do subsequente rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha, agentes do Império brasileiro atuaram internacionalmente para reduzir as hostilidades antiescravistas britânicas dirigidas ao Brasil e pedir a revogação da Lei Aberdeen, ainda em vigor nos statute books britânicos. William Henry Clark, colunista do Jornal do Commercio e homem de negócios em Londres, desempenhou um papel importante na imprensa britânica ao lançar escritos esclarecendo as posições do novo governo liberal que acabara de subir ao poder no Brasil e como ele pretendia dar encaminhamento à sua plataforma emancipacionista. Palavras-chave: William Henry Clark; Questão Christie; imprensa; escravidão; emancipação. ABSTRACT In the mid-1860s, after the “Christie Question” and subsequent disruption of diplomatic relations between Brazil and Britain, agents of the Brazilian Empire acted internationally to reduce British anti- slavery hostilities directed at Brazil and call for repeal of the Law Aberdeen, still in force in the British statute books. William Henry Clark, a columnist for the Jornal do Commercio and a business man in London, played an important role in the British press by publishing writings clarifying the positions of the 1 Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorando no Departamento de História da Universidade de São Paulo. E-Mail: [email protected]

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Um agente do Império brasileiro em Londres: William Henry Clark e o fim da

política da escravidão saquarema An agent of the Brazilian Empire in London: William Henry Clark

and the end of the policy of slavery Saquarema

Henrique Antonio Ré 1

RESUMO

Em meados da década de 1860, depois dos episódios relativos à “Questão Christie” e do subsequente rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha, agentes do Império brasileiro atuaram internacionalmente para reduzir as hostilidades antiescravistas britânicas dirigidas ao Brasil e pedir a revogação da Lei Aberdeen, ainda em vigor nos statute books britânicos. William Henry Clark, colunista do Jornal do Commercio e homem de negócios em Londres, desempenhou um papel importante na imprensa britânica ao lançar escritos esclarecendo as posições do novo governo liberal que acabara de subir ao poder no Brasil e como ele pretendia dar encaminhamento à sua plataforma emancipacionista.

Palavras-chave: William Henry Clark; Questão Christie; imprensa; escravidão; emancipação.

ABSTRACT

In the mid-1860s, after the “Christie Question” and subsequent disruption of diplomatic relations between Brazil and Britain, agents of the Brazilian Empire acted internationally to reduce British anti-slavery hostilities directed at Brazil and call for repeal of the Law Aberdeen, still in force in the British statute books. William Henry Clark, a columnist for the Jornal do Commercio and a business man in London, played an important role in the British press by publishing writings clarifying the positions of the

1 Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorando no Departamento de História da Universidade de São Paulo. E-Mail: [email protected]

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new liberal government that had just come to power in Brazil and how it intended to give way to his emancipationist platform.

Keyword: William Henry Clark; Christie Question; press; slavery; emancipation.

Em meados de 1863 o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Grã-Bretanha. O

imbróglio entre os dois países vinha de alguns anos e era motivado por uma série de fatores, alguns relacionados a problemas comerciais, outros à situação dos africanos escravizados ilegalmente no Brasil e à diretriz antiescravista britânica. Todavia, oficialmente, o estopim

da crise ocorreu com as ordens do então ministro britânico no Rio de Janeiro, William Dougal Christie, quando, nos primeiros dias de 1863, ordenou que os cruzadores britânicos detivessem navios mercantes brasileiros como forma de represália pelo descaso com que as

autoridades ministeriais teriam tratado o naufrágio de um barco britânico no Rio Grande do Sul e um desentendimento entre marinheiros britânicos e policiais brasileiros no Rio de Janeiro. Depois de mediações internacionais, de certa teimosia do Imperador D. Pedro II e de

uma série de esforços diplomáticos frustrados, em junho de 1863, desgostoso com a maneira pela qual o governo britânico lidava com a questão, Carvalho Moreira, então ministro brasileiro em Londres, foi orientado a pedir seus passaportes e se retirar da cidade.

Reciprocamente, o mesmo ocorreu com a Legação britânica no Rio de Janeiro (SILVA, 2003, p. 295-307; GRAHAM, 1962).

A historiografia já questionou as alegações de Christie sobre os motivos que

desencadearam suas ações e apresentou evidências de que o ministro britânico tomara aqueles dois incidentes apenas como pretextos para camuflar seus propósitos antiescravistas (CONRAD, 1978, p. 88-100; GRAHAM, 1962; MAMIGONIAN, 2017, p. 366-376;

PARRON, 2011, p. 322).

De todo modo, depois de Carvalho Moreira se retirar de Londres, Christie, atendendo às ordens do ministro do Foreign Office, retornou à Grã-Bretanha. De fato, a questão era

delicada. Vários assuntos que motivavam a discórdia entre os dois países, mas que vinham sendo tratados de forma relativamente serena, ganharam uma nova dimensão diante da animosidade despertada pela crise. Além de uma reparação à honra do país, que havia sido

afetada pelas represálias, o Brasil passou a reivindicar a revogação da Lei Aberdeen, uma vez que o tráfico de escravos estava extinto há quase uma década, mas a lei continuava em vigor nos statute-books britânicos. A Grã-Bretanha, por seu lado, pleiteava um novo tratado anti-

tráfico e um novo tratado comercial; além disso, motivada provavelmente pelos últimos eventos da Guerra Civil Norte-Americana, ela também agia para forçar o Brasil a encaminhar medidas antiescravistas (CONRAD, 1978, p. 88-100).

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Foi nesse ambiente de crise diplomática e política entre os dois países que um gentleman inglês, com fortes ligações financeiras com o Brasil, passou a atuar na imprensa britânica para difundir interpretações simpáticas ao governo brasileiro e criticar as medidas

repressivas adotadas pelo governo britânico. A atuação desse agente foi emblemática, pois, embora ele recebesse algum tipo de remuneração, não se tratava meramente de um sujeito de renome disposto a alugar seus dotes de escritor para defender uma causa que lhe era

indiferente – aliás, seus escritos geralmente eram lançados sob pseudônimo ou anonimamente. As transações comerciais e financeiras entre os dois países haviam atingido patamares inéditos, e esse agente também representava grupos britânicos que tinham

interesse de preservá-las de qualquer contaminação e idiossincrasia política.

Este artigo explora as ligações desse agente com a política, a imprensa e a diplomacia brasileira. Além disso, procura destacar como seus escritos na imprensa da Grã-Bretanha no

início da década de 1860 auxiliaram o governo brasileiro a criticar os procedimentos britânicos naquela que ficou conhecida como a “Questão Christie” e a pressionar o governo de Sua Majestade a revogar a Lei Aberdeen. Em linhas gerais, esses escritos também já

apresentavam as estratégias que o Partido Liberal brasileiro (ou Progressista) estava colocando em execução para enfrentar a “política da escravidão” montada nas décadas anteriores pelos saquaremas (PARRON, 2011).

Esses elementos permitem afirmar que alguns anos antes do Conselho de Estado brasileiro oficialmente discutir o encaminhamento da questão do “elemento servil”, a diplomacia e um grupo de liberais brasileiros já estavam atuando no campo internacional

para aplacar a hostilidade da diretriz antiescravista britânica e conquistar apoio para a implantação das medidas emancipacionistas brasileiras. (Esse assunto será retomado na conclusão).

As principais fontes utilizadas neste artigo são, em geral, textos publicados na Grã-Bretanha na primeira metade da década de 1860, por ocasião dos debates da “Questão Christie”, e que são praticamente desconhecidos da historiografia. Obviamente, também são

utilizadas outras fontes brasileiras e britânicas para o cruzamento de informações.

Imprensa e ação diplomática na década de 1860

No século XIX, o governo brasileiro lançou mão de uma série de medidas para

influenciar a opinião pública internacional, especialmente a europeia. O objetivo era variado, mas, em geral, visava a angariar a simpatia do público para o único império das

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Américas, cujo imperador ilustrado descendia de importantes linhagens dinásticas do Velho Continente. Mas a atuação na imprensa internacional também tinha a intenção de expressar os posicionamentos do governo brasileiro em relação a questões políticas, diplomáticas e

econômicas, bem como informar minimamente sobre os avanços civilizacionais conquistados pelo país continental da América do Sul.

Em casos específicos, a publicação de textos favoráveis ao Império, e o pagamento de

agentes, escritores e órgãos de imprensa internacionais tinham o propósito de combater visões consideradas pelos brasileiros como distorcidas ou abusivas. Isso pode ser facilmente constatado na década de 1860, quando o Brasil subsidiou quase duas dezenas de órgãos de

imprensa e mais de trinta escritores franceses para melhorar a imagem do Império naquele país, combater alguns autores comprometidos com o abolicionismo radical e apresentar o ponto de vista brasileiro sobre a Guerra do Paraguai. Em outras situações, a propaganda

laudatória, como no caso do material divulgado em regiões da Alemanha, tinha a intenção de seduzir imigrantes a cruzar o Atlântico e se instalar nas terras brasileiras (ZENHA, 2003, p. 435-436; [CHRISTIE], 1863, p. x).

Contudo, o financiamento de publicações internacionais também era uma forma de intervir no debate político desses países, especialmente quando questões relativas ao Brasil estavam em discussão. Numa época em que as revistas e jornais impressos eram os

principais veículos de informação e, por conseguinte, imprescindíveis para a formação da opinião pública, atuar nesses órgãos de imprensa tornava-se quase uma obrigatoriedade para qualificar o debate e apresentar pontos de vista divergentes. Esse expediente, aliás,

estava longe de ser uma exclusividade brasileira. A historiografia há muito já demonstrou como o Foreign Office britânico financiou generosamente jornais e jornalistas brasileiros, especialmente nas décadas de 1840 e 1850, para combater o tráfico de escravos e apresentar

uma visão mais favorável às ações repressivas dos cruzadores da Royal Navy (BETHELL, 1976, p. 296-297; ELTIS, 1987, p. 115; HUGH, 1997, p. 740).

As ações na imprensa internacional, entretanto, envolviam um montante considerável

de verba, que nem sempre podia ser claramente especificado no orçamento imperial. Em 1862, por exemplo, dois senadores brasileiros, Silveira da Motta e Jequitinhonha, interpelaram o ministro da Justiça sobre a falta de clareza nos critérios adotados na

destinação da verba do “fundo secreto”, originalmente voltado para o combate ao tráfico de escravos africanos. Era sabido que o tráfico estava extinto desde meados da década anterior, mas o governo brasileiro ainda mantinha em seu orçamento uma rubrica destinando vários

contos de réis para a repressão desse comércio. Essa anomalia também não passou despercebida a Christie, que acusou o governo brasileiro de acobertar sob aquela rubrica suas ações de propaganda na Europa (Anais do Senado, Sessão de 16 de agosto de 1862, p. 93-

94; [CHRISTIE], 1863, p. x). De fato, a questão envolvia uma soma vultosa de recursos. O orçamento encaminhado para a Câmara dos Deputados em 1862, referente ao exercício de

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1863-1864, previa que 174:000$000 seriam destinados à “despesa secreta e repressão do tráfico de africanos” (Collecção das Leis do Imperio do Brasil, 1862, p. 26).

A crítica de Christie não era desinteressada. Desde que o ex-ministro britânico foi

chamado de volta para a Grã-Bretanha, depois das represálias que ordenou contra navios mercantes brasileiros no início de 1863, ele entrou numa acirrada disputa de versões com o agente patrocinado pelo Império brasileiro. No final daquela década, Richard Burton, então

cônsul em Santos, endossando as palavras de Christie, censurou asperamente “os propagandistas assalariados do Brasil e lacaios de sua legação” (BURTON, 2001, p. 42, n. 21).

A seguir, serão apresentadas evidências de como o governo brasileiro procurou

interferir na opinião pública britânica, por meio de textos escritos por agentes subsidiados, para apresentar pontos de vista mais favoráveis ao Império, defender interesses políticos e econômicos, e se posicionar claramente sobre a nova diretriz antiescravista que estava

sendo implantada.

O agente do Império brasileiro

O desafeto de Christie era seu conterrâneo e chamava-se William Henry Clark. Embora

mantivesse contatos frequentes com os meios diplomáticos, jornalísticos e políticos brasileiros da segunda metade do século XIX, Clark, como era mais conhecido, ainda permanece um personagem relativamente obscuro, sobre o qual há pouca informação

confiável. Não foi possível descobrir se Clark visitou ou morou no Brasil. Todavia, pela maneira como demonstrou conhecer os assuntos brasileiros, é inegável que possuía, além de relativa erudição, um bom conhecimento da história, da política, da situação coeva e dos

problemas do Brasil, bem como fluência no português.

Clark se tornou correspondente do Jornal do Commercio em Londres no final da década de 1850 ou um pouco antes. É praticamente impossível estabelecer com precisão a data em

que começou a enviar suas matérias, pois os correspondentes internacionais não assinavam suas colunas e o jornal fazia questão, na medida do possível, de manter o anonimato. Ele desempenhou essa função até sua morte, que ocorreu em 29 de setembro de 1881, em Dijon,

quando regressava das águas termais de Badenweiler. O Jornal do Commercio mencionou em três ocasiões o seu falecimento, sempre enaltecendo suas virtudes de lealdade aos interesses do Brasil e sua capacidade de trabalho, que era desempenhado à maneira de um culto, pois

dele não necessitava, já que possuía “largos meios de subsistência”. A historiografia mencionou algumas vezes o seu falecimento, pois esse evento abriu as portas para que

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Joaquim Nabuco sucedesse Clark como correspondente do Jornal do Commercio no início da década de 1880. (Jornal do Commercio, 2 de outubro de 1881, p. 1; 25 de outubro de 1881, p. 2; 28 de outubro de 1881, p. 1; MENDONÇA, 2006, p. 328-329; ALONSO, 2006, p. 136-137).

Por meio do cruzamento de informações, é possível saber que em 1859 Clark acompanhou a designação de Christie como ministro plenipotenciário para o Rio de Janeiro. Provavelmente influenciado por Carvalho Moreira, que fez gracejo com a indicação do

ministro, dizendo que ele “aprendeu a diplomacia no território de Mosquito”, o correspondente do Jornal do Commercio informou aos leitores que a recente indicação não era um “bom agouro para o Brasil” (MENDONÇA, p. 164. Jornal do Commercio, 7 de

novembro de 1859, p. 1).2

No ano seguinte, aproveitando-se de uma visita que Christie realizara, em trajes considerados não protocolares, às princesas imperiais em Petrópolis, Clark lançou uma carta

n’ O Correio da Tarde ridicularizando o gesto do ministro:

Na Europa nenhum ministro diplomático teria a lembrança e a sans

façon de ir cumprimentar em seus palácios a membros da família

reinante, de sobrecasaca, calça de cor e gravata encarnada.

No Brasil, segundo consta, assim praticava ultimamente o Sr. ministro

inglês, com espanto da Sra. condessa de Barral, e grande pasmo de

algumas pessoas que se achavam presentes, e entre elas um ministro de

estado, que não acreditava o que via, e cuidava estar sob a pressão de

um sonho (O Correio da Tarde, 17 de março de 1860, p. 1).

Christie descobriu quem era o autor da carta anônima e alguns dias depois publicou

uma resposta bastante agressiva em três jornais da Corte, sem mencionar o nome do gaiato, mas tratando-o como correspondente. Também procurou Sinimbu, o então ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, para se queixar do artigo e de seu autor, que era agente

pago da Legação brasileira e amigo de Carvalho Moreira. Começava aí a querela que se estenderia por vários anos (MENDONÇA, 2006, p. 164-165; O Correio da Tarde, 27 de março de 1860, p. 1; Jornal do Commercio, 28 de março de 1860, p. 2; Correio Mercantil, de 28 de março de

1860, p. 2).

2 O território de Mosquito era uma referência à Costa dos Mosquitos, também conhecida como Mosquítia, entre as atuais Nicarágua e Honduras, que foi dominada pela Grã-Bretanha até 1894.

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Com efeito, Clark desenvolvia declaradamente trabalhos para a Legação brasileira na Grã-Bretanha, como se pode observar pelo catálogo da Exposição Internacional de Londres, em 1862. Na seção destinada aos “Comissários Estrangeiros em Exercício”, aparece “Brasil –

F. I. de Carvalho Moreira, Ministro brasileiro; Agente, W. H. Clark”.3 Além de trabalhos para a Legação, Clark logo se tornou amigo de Carvalho Moreira, de quem desfrutava momentos de hospitalidade na famosa embaixada de Grosvenor Gardens (International Exibition 1862,

1862, p. xiii; NABUCO, 1963, p. 95; MENDONÇA, 2006, p. 283).

Ele manteve estreitas ligações com companhias inglesas que construíram ferrovias no Brasil e, por vezes, integrou suas diretorias. Nos primeiros anos da década de 1860, em boa

parte de suas colunas no Jornal do Commercio há menções às reuniões da diretoria dessas companhias e críticas aos procedimentos políticos brasileiros, que se preocupavam mais com o atendimento dos pleitos dos grandes fazendeiros do que com o transporte da

população e a saúde financeira dos empreendimentos. Ele também era um observador atento de outros investimentos britânicos no Brasil, como a mineração e a dívida pública. Clark também, segundo Christie, era membro do Reform Club, um clube londrino de

cavalheiros, frequentado por whigs e radicais, que queriam se distinguir da velha aristocracia whig e geralmente estavam comprometidos com o livre-comércio (Jornal do Commercio, 14 de março de 1864, p. 1; Idem, 23 de agosto de 1864, p. 1; The Anglo-Brazilian

Times, 8 de maio de 1878, p. 2; ALONSO, 2006, p. 136 e 139; BURLINGHAM, 2005, p. 39).

As relações de Clark com os brasileiros, contudo, não se restringiram à diplomacia ou aos interesses comerciais e financeiros. Ele seguramente manteve relações com políticos,

principalmente liberais, e também com governos que estivessem dispostos a utilizar seus serviços. Em 1873, por exemplo, João Batista Calógeras, um funcionário do Império, informou que Clark remetera cartas muitos importantes para o ministro da Agricultura, do

governo conservador de Rio Branco (CARVALHO, 1959, p. 256).

Mas foi por ocasião da chamada “Questão Christie” que Clark assumiu um protagonismo incomum dentre os inúmeros agentes europeus patrocinados pelo governo

brasileiro. Depois de ter caçoado dos trajes de Christie em 1860, dois anos mais tarde Clark lançou uma matéria no Jornal do Commercio criticando o governo britânico pela maneira diferente com que tratava o governo brasileiro em relação ao espanhol na questão do tráfico

de escravos. Ele dizia ainda que as investidas de Christie, na questão dos africanos livres e dos escravos importados ilegalmente, estavam sendo contidas por Lorde John Russell, então secretário do Foreign Office. Clark nitidamente estava se imiscuindo na política, atacando as

3 A expressão “agente”, bastante utilizada no século XIX, não guarda correspondência com a noção relacionada à espionagem, surgida posteriormente. O “agente” era considerado como a pessoa que atuava nos, ou gerenciava os negócios de outras pessoas ou empresas. A designação de Clark como “agente” da embaixada brasileira na Exposição Internacional de Londres assume esse caráter.

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ações de Christie e gerando desavenças entre o ministro no Rio de Janeiro e seu superior em Londres. Como correspondente do Jornal do Commercio, ele estava seguramente exorbitando de suas funções (Jornal do Commercio, 26 de maio de 1862, p. 1).

Christie acusou o golpe e, em 6 de junho de 1862, escreveu uma carta furiosa para Russell denunciando o artigo de Clark. Ele chegou a insinuar que informações de sua correspondência com o Foreign Office, assinalada como “private”, haviam vazado. Christie

tinha ainda outra razão para suspeitar que estivesse sendo boicotado: era sabido que Clark mantinha relações políticas e pessoais com o próprio Russell (Christie a Russell, 6 de junho de 1862, National Archives, F.O. 84-1180, p. 182-185) Posteriormente, em decorrência das

investidas de Clark contra Christie e contra as próprias decisões de Russell, a amizade entre ambos se arrefeceu (MENDONÇA, 2006, p. 176).

Esta foi a primeira vez, entretanto, que o ministro britânico no Rio de Janeiro

mencionou o nome do correspondente do Jornal do Commercio, suas conexões com a Legação brasileira em Londres e com os políticos liberais brasileiros. Christie também sugeriu que Clark era editor ou possuía conexões com a administração do Daily News, e sua atuação não

tendia “a beneficiar as relações entre os dois governos”. Definitivamente, Christie não estava entendendo a situação e os motivos pelos quais Clark o atacava:

O governo de Sua Majestade e o ministro de Sua Majestade nesta Corte

poderiam esperar ajuda, em vez de contestação, à diretriz inglesa,

especialmente em questões relativas ao tráfico de escravos e à

escravidão, de um cavalheiro associado aos políticos liberais e a um

respeitável jornal liberal (Christie a Russell, 6 de junho de 1862, F.O. 84-

1180, p. 185. Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas

pelo autor).

É bastante plausível que Christie tivesse aliados entre as fileiras liberais brasileiras, com

quem trocava informações e discutia estratégias. Por isso, ele não conseguia entender o fogo amigo (MAMIGONIAN, 2017, p. 367). Na verdade, Christie não havia percebido que estava começando a ser elaborada uma diretriz emancipacionista liberal brasileira, que não se

alinhava automaticamente à diretriz antiescravista internacional britânica. Isso só ficaria claro um ou dois anos mais tarde.

Depois desse episódio, entre 1863 e 1864, por ocasião do rompimento das relações

diplomáticas entre o Brasil e a Grã-Bretanha, Clark voltou a investir novamente contra Christie ao lançar quatro artigos no Daily News, sob o pseudônimo “A FRIEND TO BOTH

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COUNTRIES”. Esses artigos foram respondidos por Christie no mesmo periódico, sob o pseudônimo “C.”. Posteriormente, em 1865, sabendo que Christie estava organizando uma coletânea com os artigos publicados no Daily News, Clark então lançou anonimamente um

opúsculo intitulado The relations of the British and Brazilian governments. Embora nenhum desses textos traga a assinatura de William Henry Clark, ele jamais negou a autoria que lhe foi atribuída, embora tenha comentado sobre a publicação deles (Jornal do Commercio, 26 de

março de 1865, p. 1). Portanto, aqui neste artigo, é assumido que tanto os artigos publicados no Daily News quanto o opúsculo lançado anonimamente, que serão analisados adiante, são de autoria de William Henry Clark. Esses textos são praticamente desconhecidos da

historiografia brasileira e, salvo melhor juízo, nunca foram analisados.

A diretriz emancipacionista dos liberais brasileiros

Em meados de 1863, instado pelo Marquês de Olinda, então presidente do Conselho de

Ministros, o imperador dissolveu a Câmara e convocou novas eleições. Depois de um longo domínio, havia chegado o momento dos conservadores cederem o lugar. A despeito das denominações que possam ser atribuídas aos novos detentores do poder (progressistas ou

liberais), o que importa reter é que eles dominaram quase todos os assentos da Câmara em janeiro de 1864. Tão logo os deputados se reuniram, Olinda e seu gabinete renunciaram. Era mais coerente deixar o governo nas mãos dos novos chefes, que, desde 1862, costuravam

com Pedro II uma maneira de derrotar os saquaremas. O imperador chamou, então, Zacarias de Góis para formar o novo gabinete ministerial. O Estado autoritário projetado pelos reacionários de 1837 deveria ser moderadamente reformado (NEEDELL, 2006, p. 218-220).

Em nota enviada a Zacarias um dia antes de ele assumir a presidência do Conselho de Ministros, o imperador lhe chamou a atenção para a necessidade de se pensar “no futuro da escravidão no Brasil, para que não nos suceda o mesmo a respeito do tráfico de escravos”.

Essa nota foi escrita um ano depois do início das represálias autorizadas por Christie e um ano e três meses depois da Proclamação da Emancipação de Lincoln. Todavia, ela antecedia em três anos e meio o debate deste tema pelo Conselho de Estado (LYRA, 1977, v. 2, p. 162;

SALLES, 2008, p. 89).

Se bem explorado, o novo contexto político brasileiro, inaugurado a partir de meados de 1863 com a dissolução da Câmara, a convocação de novas eleições, e a consequente assunção

dos liberais ao poder, poderia dar maior legitimidade aos pleitos brasileiros na Grã-Bretanha. Essa leitura do quadro político foi utilizada diligente e eficientemente pela diplomacia e pelos liberais brasileiros. O antigo partido escravista havia sido apeado do

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poder. Ainda que o breve governo de Zacarias tenha sido substituído em agosto de 1864 pelo de Francisco José Furtado, e este cedido o lugar posteriormente ao de Olinda em 1865, que, por sua vez, foi substituído novamente pelo de Zacarias em 1866, havia claramente uma

orientação na diretriz antiescravista dos liberais. Chegara o momento dos liberais brasileiros negociarem com seus eventuais aliados britânicos.

A primeira concessão brasileira visava a não deixar dúvidas sobre as verdadeiras

intenções dos novos ocupantes do poder. Em 24 de setembro de 1864, por meio do decreto 3.310, o governo de Francisco José Furtado concedeu a emancipação “a todos os africanos livres existentes no Império”. A despeito da incoerência da redação do decreto, que

emancipava pessoas livres, esse ato foi um aceno inequívoco ao governo britânico e encerrou uma disputa que durante vários anos indispusera os dois países (Collecção de Leis do Império do Brasil, 1864, p. 160-161).

Antes mesmo do Conselho de Estado começar oficialmente a discutir o tema das medidas emancipacionistas, era o momento de agir no plano internacional e capitalizar o máximo possível a nova configuração política do Brasil.

Esse breve panorama é importante para se entender os textos lançados por Clark entre 1863 e 1865 na Grã-Bretanha. Por uma questão de honra nacional, o Brasil – e principalmente D. Pedro II – exigiam alguma reparação pelas ofensas de Christie, mas o rompimento das

relações também serviu para o governo brasileiro pressionar diplomaticamente a Grã-Bretanha para que revogasse a Lei Aberdeen. Além disso, todos esses episódios foram habilmente trabalhados para constranger o gabinete britânico e o Foreign Office a reverem

sua postura agressiva contra o Brasil e a concederem aos liberais brasileiros, que haviam acabado de subir ao poder, a chance de apresentar sua diretriz antiescravista.

Os dois primeiros artigos publicados por Clark no Daily News giravam em torno de duas

questões: a necessidade de revogação do Bill Aberdeen para o restabelecimento das relações diplomáticas e as divergências textuais a respeito da convenção que Grã-Bretanha e Brasil tentaram estabelecer para dirimir reivindicações e queixas dos súditos de ambos os países.

Nos dois casos, o autor martelava a diferença no tratamento dispensado ao Brasil em relação aos outros países. A Espanha não havia sido submetida a nada semelhante à Lei Aberdeen e os Estados Unidos estabeleceram uma convenção com a Grã-Bretanha baseada em termos

mais equânimes. O Brasil reivindicava, portanto, um tratamento mais moderado e de acordo com sua posição no comércio internacional britânico (Daily News, 16 de julho de 1863, p. 5; 20 de julho de 1863, p. 3).

Contudo, a Lei Aberdeen foi a questão de maior destaque e à qual Clark dedicou expressões mais duras. Segundo ele, a manutenção dessa lei nos estatutos britânicos azedou as relações entre os dois países. Sem sua revogação, seria inútil esperar que o governo

brasileiro se dispusesse a negociar amigavelmente outras questões com a Grã-Bretanha:

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“tratar-se-ia de um governo mesquinho e indigno se lambesse, como um spaniel, a mão que se levantou para golpeá-lo e feri-lo”. Sem a revogação da referida Lei, pouco adiantaria o restabelecimento das relações diplomáticas, pois ainda persistiriam as desconfianças entre

os dois países (Daily News, 16 de julho de 1863, p. 5).

Desde 1845, quando o bill (Projeto de Lei) de Lorde Aberdeen foi aprovado, era a primeira vez que o Brasil estava em condições de se contrapor de alguma forma à Grã-Bretanha. O

destempero das ordens de Christie, a arbitragem favorável ao Brasil emitida pelo rei dos belgas e uma opinião internacional que viu certo exagero na ação da Royal Navy acabaram por dar ao governo brasileiro legitimidade para questionar os procedimentos dos britânicos

e, ao mesmo tempo, alguma força moral para reivindicar limites às ações antiescravistas britânicas no Brasil.

Se nos dois primeiros artigos, o objetivo foi repudiar o tratamento hostil e desigual que

a Grã-Bretanha conferia ao Brasil, no artigo seguinte, de 1864, Clark começou a apresentar alguns resultados da nova administração brasileira. Contrariamente ao que dizia o Foreign Office, “há evidências de que o governo brasileiro está, tanto quanto possível, cumprindo seu

dever por si mesmo” e libertando os emancipados. Depois de mecionar o número de emancipados que foram libertados nos últimos quatro anos, Clark diplomaticamente sugeriu que a Grã-Bretanha estava exagerando em suas reivindicações. Além disso, ela, de

certo modo, também era responsável pela questão dos africanos emancipados:

[...] repito que foi culpa – inteiramente culpa – do governo inglês que

esses emancipados tenham sido colocados em sua condição atual. A

provisão sob a qual eles foram consignados ao Brasil era uma provisão

britânica, não brasileira. Ela foi imposta forçadamente pelo governo

britânico, em nossos primeiros tratados sobre o tráfico de escravos com

outros países, simplesmente para isentar a Inglaterra de problemas e

despesas. [...] Sem dúvida, Brasil e Espanha são obrigados a respeitar e a

garantir a liberdade desses africanos após o período de aprendizado.

Mas quando a Inglaterra exige que o governo trace a história de cada

emancipado, isso é impossível, especialmente num império tão grande

como o Brasil, num país até então tão imperfeitamente organizado, e

quando tal exigência vem de um governo que irritou e exasperou até o

último grau (Daily News, 29 de julho de 1864, p. 2).

Clark reconhecia que o Brasil, assim como a Espanha, tinha a obrigação de zelar pela liberdade dos africanos livres. Mas a Grã-Bretanha, na persecução de sua diretriz agressiva,

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desconsiderava as peculiaridades brasileiras mais elementares. Era necessário mais comedimento.

No último artigo da série do Daily News, Clark, por meio da citação de uma discussão

parlamentar na Câmara dos Comuns, pediu novamente que a Grã-Bretanha mudasse a forma pela qual tratava o Brasil.

A questão não é se todos os emancipados foram libertados ou se ainda

existem escravos no Brasil, mas, como observou o Sr. Baring na Câmara

dos Comuns em 18 de julho, “pela conciliação e pela linguagem gentil

não é provável que renovemos as relações de amizade com o Brasil”,

que aumentemos nosso comércio, que obtenhamos justiça para os

ingleses e que sejamos bem sucedidos nas negociações que ainda estão

ocorrendo”. Trata-se, acrescentou Baring, “de saber se devemos

perseverar num curso de ação que traçou uma linha separando esse

país e o Brasil, ou se devemos doravante adotar uma diretriz de

conciliação em vez daquela diretriz insultante e irritante que

perseguimos até agora” (Daily News, 4 de agosto de 1864, p. 3).

Numa questão diplomática e política tão relevante como essa, não se estava pedindo misericórdia. O que o agente estava sugerindo é que a Grã-Bretanha alterasse sua diretriz conflituosa em relação ao Brasil. Não se esperava apenas uma linguagem mais cortês nas

relações diplomáticas; o que se demandava era uma mudança na diretriz antiescravista britânica voltada para o Brasil. Obviamente, numa questão dessa envergadura, Clark era apenas mais um elo de um acordo que estava sendo desenhado conjuntamente nos dois

lados do Atlântico, acordo que necessitava de vários canais de interlocução.

Numa matéria para o Jornal do Commercio, Clark insinuou que os liberais britânicos (os whigs) estavam se movendo em direção à reconciliação, ainda que para isso contrariassem o

gabinete liberal liderado por Palmerston:

A Revista de Edimburgo [Edinburgh Review], órgão trimensal do partido

whig, é de opinião que as relações inglesas com o Brasil estão há

demasiado tempo interrompidas, e que a Inglaterra não tem motivo

razoável de desavença com este Império. Recomenda, pois, que se

revogue o bill Aberdeen e se envie ao Rio de Janeiro um ministro bem

escolhido (competent minister), que, armado daquela concessão,

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facilmente restabeleça em bases verdadeiras as relações entre os dois

Estados (Jornal do Commercio, 17 de novembro de 1864, p. 2).

Mais ou menos nessa mesma época, o Brasil estabeleceu conexões com um dos aliados mais improváveis: a British and Foreign Anti-Slavery Society (BFASS). Em 21 de março, uma delegação do Comitê da BFASS se dirigiu à Embaixada do Brasil, em Londres, para entregar

um Memorial ao Imperador brasileiro. Nessa ocasião, em decorrência do rompimento das relações entre os dois países, a delegação de abolicionistas não foi recebida pelo ministro brasileiro. O secretário da BFASS informou ao Sr. Andrada (Francisco Xavier da Costa Aguiar

de Andrada), funcionário da embaixada, que muitos amigos no país estavam interessados no “movimento que estamos lançando agora para a abolição da escravidão no Brasil [sic]”. A seguir, o Rev. Massie, outro integrante da delegação, preocupado com a suspensão das

relações, afirmou que “na medida em que pudermos fazer qualquer coisa para promover o seu restabelecimento, estou certo de que todos os cavalheiros aqui estarão muito felizes em fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para produzir tal resultado” (The Anti-Slavery

Reporter, 1 de abril de 1864, p. 89-95).

Dois meses depois, a BFASS organizou o seu 25º Encontro Anual, em 20 de maio de 1864. Nesse evento ocorreu, entretanto, um fato inusitado. Antes do início dos trabalhos, um

brasileiro pediu a palavra para tratar da questão da emancipação dos escravos no Brasil e fez claramente uma proposta ao Comitê:

Sr. Almeida Portugal disse que desejava apresentar antes do início do

Encontro algumas palavras sobre o estado da Escravidão no Brasil [...].

Ele não podia deixar de dizer que, na medida em que sua humilde

opinião lhe permitia julgar, os brasileiros estavam ansiosos para ver a

escravidão extinta de suas fronteiras [...] e os líderes parlamentares

haviam apresentado propostas com vistas à extinção imediata da

Escravidão. [...] Seu desejo era que eles [os integrantes do Encontro]

levassem sua opinião sobre esta questão até o Comitê e organizassem

uma reunião pública para apelar ao governo britânico para retirar do

Parlamento a Lei em vigor, conhecida como Bill Aberdeen. [...] O

Parlamento no Brasil agora estava trabalhando, e ele julgava que as leis

apresentadas seriam aprovadas. [...] O governo adotaria outros meios

para alcançar seu objetivo, ou seja, a liberdade dos escravos do Brasil, e

ele esperava que isso fosse realizado com sucesso (The Anti-Slavery

Reporter, 1 de junho de 1864, p. 139-140).

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Segundo Christie, o agente presente na reunião da BFASS, o Sr. Almeida Portugal, era tenente da Marinha brasileira (CHRISTIE, 1865, p. 74). Suas colocações, claramente, sugeriam uma proposta de acordo. O governo brasileiro adotaria medidas emancipacionistas e a

BFASS atuaria pela revogação da Lei Aberdeen. E, de fato, a partir desse momento, a BFASS passou a defender o restabelecimento das relações entre os dois países, a revogação da Lei Aberdeen e o não envolvimento da Grã-Bretanha nos assuntos domésticos brasileiros. Por

outro lado, a entidade antiescravista também passou a pressionar o governo brasileiro para que essas medidas fossem implantadas o mais rápido possível e julgou legítimo tentar interferir no alcance e no vigor delas.

Na sequência dessas ações e negociações, em 1865, Clark lançou The relations of the British and Brazilian governments. Este é um documento privilegiado para se entender o que os liberais brasileiros estavam pleiteando do governo britânico. Conforme o título sugere, o

assunto principal a organizar toda a narrativa era a necessidade, segundo o autor, de se restabelecer as relações diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha. Em suas mais de cinquenta páginas, Clark procurou deslegitimar a agressiva e hostil diretriz britânica contra

o Brasil, e foi enfileirando argumentos, documentos e citações com o propósito de mostrar que tal procedimento não era plausível em vista das relações comerciais e financeiras dos dois países, nem encontrava respaldo na inclinação do povo britânico pelo Brasil. Além da

argumentação favorável ao restabelecimento das relações, Clark também elaborou de forma bastante sutil – como a natureza da questão exigia – a fundamentação de uma diretriz emancipacionista brasileira, que encontraria a sua garantia nos liberais que acabaram de

assumir o poder. A BFASS, seguindo seu acordo de atuar pelo restabelecimento das relações entre Brasil e Grã-Bretanha, repercutiu em seu periódico o lançamento deste opúsculo de Clark (The Anti-Slavery Reporter, 1 de fevereiro de 1865, p. 46-47).

Clark inicia seu opúsculo retomando ideias já expressas em seus artigos anteriores, como a suposta excepcionalidade do tratamento dispensado ao Brasil pela Inglaterra. Além disso, na visão do correspondente, ela deveria conter sua ingerência nos assuntos

domésticos brasileiros:

O objetivo deste texto é promover o estabelecimento de relações boas e

permanentes entre a Inglaterra e o Brasil, a partir do preceito da não-

intervenção do governo inglês nos assuntos domésticos de outros

países, que o Parlamento e o povo da Inglaterra parecem cada vez mais

inclinados a obrigar o governo a adotar ([CLARK], 1865, p. 3)

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A estratégia de Clark era argumentar que o governo britânico estava tomando decisões que o isolavam de seu próprio “povo” e de seus representantes parlamentares. “A diretriz do governo inglês em relação ao Império brasileiro [...] deve se adequar às conexões que o povo

inglês estabeleceu com o Império”. Mas quais seriam essas conexões? Para Clark, sem dúvida, as comerciais e financeiras. O autor usou alguns parágrafos para expor os avanços do comércio e das finanças (empréstimos e financiamento de ferrovias) entre os dois países

e o montante de libras nele envolvido. Com isso, Clark isolou a diretriz agressiva do Estado britânico, e afirmou que ela não estava conectada aos interesses do povo: “A peculiaridade, entretanto, das más relações entre os dois governos é que elas não mantêm nenhuma

conexão com, nem derivam das relações comerciais e financeiras do povo inglês com o Brasil, mas as prejudicam” ([CLARK], 1865, p. 4-5).

De fato, no quinquênio 1860-64, o Brasil quase triplicou suas importações de produtos

ingleses em relação ao quinquênio anterior. Também houve um aumento expressivo dos empréstimos públicos brasileiros concedidos pela Grã-Bretanha (GRAHAN, 1973, p. 81 e 106).

Já o segundo argumento de Clark, o de que o governo também estaria se afastando de

seus parlamentares, carecia de maiores fundamentações. O que certamente havia, principalmente na Câmara dos Comuns (mas também na Câmara Alta), era o alinhamento de alguns parlamentares liberais – do mesmo partido do governo – com defensores do livre-

comércio, que julgavam desastrada a diretriz agressiva do gabinete. Havia também uma aproximação desses parlamentares com a British and Foreign Anti-Slavery Society, que havia estabelecido um acordo informal com o governo brasileiro e passou a pressionar por

medidas favoráveis ao restabelecimento das relações diplomáticas e à revogação da Lei Aberdeen. O circuito de oposição à ação hostil do gabinete também passava por inúmeros periódicos, inclusive o Times, que publicou um artigo extremamente favorável ao Brasil, e

que Clark reproduziu quase na íntegra no seu opúsculo. É difícil, no entanto, avaliar até que ponto houve ingerência do governo e da diplomacia brasileira em todas essas manifestações, ou, então, se elas eram “espontâneas” e simplesmente indicavam uma

preocupação com a possível perda de capitais que a manutenção das hostilidades poderia gerar ([CLARK], 1865, p. 4 e 5, 18-20).4

De todo modo, o que Clark frisou é que a agressiva diretriz britânica estava

contrariando interesses mercantis e financeiros dos próprios britânicos, e o governo precisava revê-la.

4 Ainda está para ser realizada uma pesquisa nos arquivos do Itamaraty para avaliar a extensão da interferência diplomática brasileira na imprensa e nos grupos britânicos com interesses financeiros e comerciais no Brasil, especialmente na década de 1860, no tocante à questão da diminuição da interferência antiescravista do Estado britânico no Brasil. Também é necessário proceder a uma avaliação mais circunstanciada dos impactos da ação brasileira na imprensa britânica naquela época. O artigo em tela puxa apenas um fio dessa meada, que necessita da averiguação de muitas outras fontes.

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Na sequência, Clark traçou uma breve história da formação do Império. De 1822 a 1844, o Brasil passou por uma fase revolucionária, em que

[...] um grande sistema de tráfico de escravos foi organizado por

capitalistas estrangeiros associados às antigas influências políticas e

sociais, suplantando a inclinação anterior do governo e da sociedade

nativa do Império que pretendia se livrar desse tráfico. O executivo

estava sem recursos pecuniários, legais, policiais ou marítimos

adequados para reprimi-lo ([CLARK], 1865, p. 6).

Perceba-se a estratégia. O sistema de tráfico transatlântico não era obra de brasileiros nativos nem do governo imperial. Toda a “política da escravidão”, montada durante o

período do Regresso, e que internalizou ilegalmente centenas de milhares de escravos era jogada na conta dos estrangeiros (portugueses), que possuiriam naquela época enorme ascendência sobre a administração brasileira. Os anos de contrabando de escravos foram

explicados pela incapacidade do governo brasileiro reprimir esse comércio, incapacidade cuja principal responsável era a própria Inglaterra:

Durante este período – de 1827 a 1845 – os principais produtos do Brasil

foram rigidamente excluídos, por impostos proibitivos, do consumo na

Inglaterra; ao passo que, em decorrência do tratado com a Inglaterra, os

manufaturados e os produtos do Reino Unido foram admitidos no

Império com taxas tão baixas que lhes conferiam praticamente um

monopólio, impedindo o aumento das receitas do Império e mantendo

suas finanças num estado de déficit contínuo (a vigência do Tratado

inglês obrigou o Brasil a reduzir suas tarifas igualmente para todos os

outros Estados) e, desta forma, limitando o meio pecuniário do governo

brasileiro para reprimir o tráfico de escravos ([CLARK], 1865, p. 8).

Já em relação à efetiva supressão do tráfico de escravos no início dos anos 1850, Clark

preferiu não tomar partido a respeito das suas motivações, porém elencou as versões inglesa e brasileira. O que mais lhe interessava era apontar que longe da supressão do tráfico de escravos representar o declínio da produção brasileira, ela veio acompanhada de uma

grande prosperidade, que se refletiu enormemente nas trocas mercantis e financeiras entre Brasil e Inglaterra:

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As melhorias materiais entraram na ordem do dia no Brasil; foram

feitos empréstimos na Inglaterra para obras públicas; as companhias

públicas inglesas encarregaram-se da formação das ferrovias

brasileiras; duas dessas linhas já foram construídas, e uma está em

processo de conclusão, inteiramente pelo trabalho livre; grandes somas

de capital inglês foram investidas no Império; a opinião pública neste

país é fortemente favorável ao Brasil; a influência inglesa do melhor

tipo aumentava rapidamente; quando, de repente, a Inglaterra ficou

surpresa ao saber das sérias disputas entre os governos inglês e

brasileiro, surgidas em dezembro de 1862, acerca de questões

inteiramente desconectadas de suas desavenças anteriores ([CLARK],

1865, p. 13).

Mais uma vez, Clark insistiu na estratégia de timbrar de anômalas as atitudes tomadas pelo gabinete inglês no início de 1863 contra o governo brasileiro, uma vez que eram

totalmente contrárias aos interesses mercantis e financeiros da Grã-Bretanha. Depois de resumir os fatos oficiais que teriam levado àquelas desinteligências, ele passou a criticar a “ação maliciosa” que incessantemente estava trabalhando para azedar as relações com o

Brasil e centrou fogo no ex-ministro britânico, William D. Christie, e nos gabinetes que se recusaram a revogar a Lei Aberdeen ([CLARK], 1865, p. 20-21).

Uma vez preparado o terreno, Clark retoricamente perguntou: “Quais são, então, as

questões brasileiras que levaram o governo inglês a alimentar sérias divergências com o Brasil, a interferir nos assuntos brasileiros, e em decorrência das quais surgiu a inimizade geral entre os dois governos?”. De imediato, ele eliminou a questão do tráfico de escravos,

pois esse comércio estava extinto há mais de uma década, como atestavam as próprias autoridades britânicas. Nenhuma divergência relevante havia, portanto, para justificar medidas tão agressivas.

A partir desse ponto, Clark começou a apresentar uma interpretação da escravidão brasileira, sempre frisando suas diferenças em relação aos dois outros grandes sistemas escravistas americanos. A ideia era mostrar que a diretriz britânica era inconsequente, pois a

escravidão no Brasil não era uma instituição indispensável ao funcionamento da sociedade.

A escravidão, é claro, ainda existe no Brasil. Mas a escravidão não é

defendida no Brasil como um bem positivo, como uma condição da

sociedade que, se não existir, deve ser estabelecida como uma questão

de política e de dever; ela não é justificada no Brasil por motivos de

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humanidade, ou apoiada a partir das Escrituras; ela não está associada à

vida e à existência nacionais, como ocorre nos estados sulistas dos

Estados Unidos. [...] Atualmente, a escravidão no Brasil não é

alimentada, mantida e aumentada pelo tráfico de escravos africanos

como ocorre em Cuba, em violação decidida e obstinada dos tratados

com a Espanha ([CLARK], 1865, p. 21-22).

Essa distinção do caráter da escravidão brasileira em relação a outros países já vinha sendo desenvolvida pela diplomacia brasileira pelo menos desde 1860. O mesmo Andrada

que recebeu a delegação da BFASS, funcionário da Legação brasileira em Londres, escreveu ou deu informações para a confecção de um artigo que apresentava argumentos muito semelhantes a estes usados por Clark (The Brazilian Empire, 1860, p. 303-342). No periódico, o

artigo não trouxe o nome do autor e nem subtítulo, entretanto, ele foi republicado em forma de panfleto (TREMENHEERE, 1860).

Ou seja, Clark definiu a escravidão brasileira de forma negativa, por aquilo que ela “não

é”; novamente, de forma negativa, ela não tinha perspectivas de perpetuação, pois deixou de ser alimentada pelo tráfico. A mensagem era clara, embora a linguagem fosse diplomática e comedida: a escravidão poderia ser eliminada mais facilmente no Brasil do que em outros

lugares. Associados a essas não-características, Clark também registrou os avanços na eliminação dessa instituição:

Uma grande proporção dos escravos das cidades no Brasil tem

permissão para trabalhar por própria conta, pagando salários aos seus

senhores e tem a oportunidade de acumular lentamente os meios para

comprar sua liberdade. A legislação do Brasil oferece-lhes excelentes

facilidades para alcançar a liberdade; o sentimento público no Brasil é

propício a isso. [...] são frequentes as manumissões voluntárias de

escravos por seus proprietários. O Imperador, por ocasião do casamento

da Princesa Imperial com o Conde d’Eu, libertou todos os negros que

eram ligados à princesa. Quando, recentemente, o Comitê da Sociedade

Antiescravista entregou ao funcionário do Brasil em Londres um

Memorial ao Imperador em favor da emancipação, ele declarou estar de

acordo com seus pontos de vista; e, embora tenham se passado alguns

meses e suas observações tenham circulado por todo Império, ele ainda

conserva a confiança do governo imperial, e não apareceu na imprensa

brasileira nenhuma censura sobre as observações que ele fez ([CLARK],

1865, p. 22-23).

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Retome-se a argumentação. A escravidão não era considerada pelos próprios brasileiros como um elemento essencial de sua sociedade; o tráfico que a alimentava estava extinto; diferentemente de outros países, no Brasil as manifestações antiescravistas, de acordo com o

arrazoado de Clark, eram toleradas e até incentivadas pelas autoridades e pelos dispositivos legais. Restava, entretanto, explicar a mudança em relação às décadas anteriores:

E de onde veio essa mudança de sentimento no Brasil? A Independência

não emancipou imediatamente o Brasil da influência estrangeira

retrógrada. Durante anos, o velho partido continuou a influenciar o

curso do Império. Ele estava no gabinete do Imperador, nas

deliberações do Legislativo, nos governos provinciais, nos tribunais, na

coletoria de impostos, na magistratura, na polícia, em todos os lugares.

Ele possuía experiência na administração, justiça, legislação, em todos

os departamentos do Estado. Ele continuou o tráfico de escravos

africanos, e foi o gênio maligno do país. Todavia, o velho partido não

foi eliminado do dia para a noite, a sua redução e repressão gradual tem

sido o trabalho do tempo, do crescimento e da consolidação do poder

nativo, do aumento do patriotismo e de uma moralidade mais pura, do

progresso da educação. E agora que o governo do Brasil em todos os

seus ramos se tornou cada vez mais brasileiro, e está cada vez mais nas

mãos de homens que olham para o Brasil como o único objeto de suas

fortunas e esperanças, o Império está forçando seu caminho entre essas

má influências, e está se tornando um Estado realmente livre e

independente ([CLARK], 1865, p. 23-24).

Mais claro, impossível. O governo brasileiro havia mudado de mãos. Os velhos escravistas, de origem estrangeira, perderam terreno e influência diante das mudanças

pelas quais passou a sociedade brasileira. Os brasileiros nativos assumiram o poder e não entendiam que a escravidão era um elemento essencial da vida do país. Com o fim do tráfico e as manifestações antiescravistas da própria sociedade, o novo governo tinha plenas

condições de colocar o país no rumo da liberdade. Nas palavras de um historiador, diante dos avanços econômicos e sociais produzidos pelo fim do tráfico, os arranjos montados pelos fazendeiros escravistas já não davam conta das novas necessidades do país. Um novo

grupo havia assumido o poder e estava disposto a levar adiante uma diretriz comprometida com a liberdade (BLACKBURN, 2013, p. 451).

É preciso ainda apontar que Clark, para fundamentar sua análise, utilizou uma carta do

ex-ministro britânico no Rio de Janeiro, James Hudson, que viu na Câmara quase unânime

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de 1848, o motivo da formação do “partido antiescravista” brasileiro (um dos responsáveis, em última instância, segundo o próprio Hudson, pelo fim do tráfico). Ao serem alijados do poder pelas baionetas dos saquaremas, só teria restado aos liberais a possibilidade de se

aglutinar em torno de uma causa que tivesse força suficiente para enfrentar o poder oficial. O governo brasileiro subestimou a força do “Partido anti-tráfico de escravos, do Rio Grande ao Pará” ([CLARK], 1865, p. 24-25). Breve parêntese: Clark parece não ter percebido a

incoerência entre essa carta e seu argumento anterior. Se a adesão ao sentimento antiescravista foi decorrência do alijamento do poder político, então não se podia depositar muita confiança nos liberais em relação às medidas emancipacionistas depois que

reconquistassem o poder.

Clark ainda desautorizou algumas iniciativas individuais de parlamentares brasileiros que apresentaram moções ou projetos sobre “questões menores relacionadas à escravidão”.

Tal como acontecera na Inglaterra, essas iniciativas, embora merecessem reconhecimento, não conseguiam ser bem-sucedidas e corriam o risco de precipitar soluções não-coordenadas. Em suma, o que Clark parecia querer dizer com sua linguagem diplomática e

cautelosa é que cabia só ao governo, com toda sua energia e planejamento, organizar a investida contra a instituição. Mesmo uma intenção boa e meritória, quando mal avaliada, poderia colocar a perder todos os esforços para solucionar o problema. Numa palavra,

poderia desencadear uma revolução.

Como ocorria na Inglaterra, está ocorrendo no Brasil. A questão da

escravidão, para ser tratada com sucesso, deve ser retomada e dirigida

pelo governo, não por indivíduos independentes. A abolição da

escravidão num país que possui certamente não menos de três milhões

de escravos é percebida por todas as pessoas sensatas como uma grande

questão prática, que envolve no Brasil uma revolução industrial, senão

social, na qual o governo do Império pode evitar encorajar tentativas

espasmódicas de precipitar uma solução ([CLARK], 1865, p. 26).

Provavelmente, a crítica de Clark endereçava-se a parlamentares como os senadores

Jequitinhonha e Silveira da Motta, e o deputado Madureira, que ultimamente haviam apresentado projetos individuais sobre questões colaterais à escravidão. Em 1867, Zacarias de Góis, o então presidente do Gabinete, se expressou quase nos mesmos termos: “o governo

entendeu, pois, que devia prevenir a iniciativa individual, declarando às câmaras, ao país e ao mundo que trata deste objeto” (Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 7 de junho de 1867, p. 66).

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Em linhas gerais, essa passagem de Clark reafirmava o grande medo dos reformistas brasileiros, tão claramente formulado por Tavares Bastos em 1862: “como se poderá chegar à abolição sem revolução?”. Ainda que não plenamente formulado, o grande mote do Centro

Liberal, defendido a partir de 1868, “reforma ou revolução”, também já pode ser palidamente vislumbrado nessas linhas de Clark. Além de ser necessário, era do interesse do novo grupo que assumira o poder dar encaminhamento à questão da escravidão – a reforma era

imperiosa. Mas o problema era imenso e extremamente delicado, e se houvesse precipitação poderia colocar em perigo todos os esforços de edificação do Império. Por outro lado, se nenhuma iniciativa fosse tomada no sentido de se encaminhar as reformas

emancipacionistas, certamente também estourariam revoltas ou revoluções. Portanto, ainda que projetos antiescravistas apresentados individualmente por parlamentares fossem dignos de respeito, o encaminhamento das medidas deveria caber exclusivamente ao

governo (BASTOS, 1938, p. 459; ARAÚJO, 1979, p. 100).

E o governo brasileiro, segundo Clark, estava ciente e comprometido com elas. Tanto assim que o

[...] gabinete brasileiro, então presidido pelo senhor Zacarias, subiu ao

poder em 15 de janeiro de 1864, e, de imediato, procedeu para garantir a

liberdade dos emancipados [...] Além disso, esse Ministro [...] instruiu os

Presidentes de várias Províncias para que emitissem cartas

semelhantes a todos os emancipados que reivindicassem sua liberdade.

[...] Um novo gabinete, presidido pelo Senhor Furtado, que ocupava

cargos similares aos ocupados pelo senhor Zacarias, foi formado em 31

de agosto de 1864. Mas a mudança de ministros não envolveu nenhuma

mudança neste assunto e dentro de quatro semanas após sua

instalação, o novo Gabinete submeteu ao Imperador um Decreto, pelo

qual a liberdade era concedida de imediato a todos os emancipados do

Império, independente a quem estivessem submetidos ([CLARK], 1865,

p. 32).

Embora tivesse havido uma mudança do chefe de governo, a diretriz antiescravista brasileira foi mantida. Os novos detentores do poder a endossavam, ela não era a causa de um único homem.

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Conclusão

No âmbito interno, a ascensão dos liberais ao poder em 1864 favoreceu o início das discussões sobre a adoção de medidas antiescravistas e a consequente implementação de algumas delas. No âmbito internacional, por sua vez, a “Questão Christie” e o rompimento

das relações diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha facilitaram o encaminhamento de algumas reivindicações brasileiras, dentre elas a revogação da Lei Aberdeen, a alteração da hostil diretriz antiescravista britânica e o pedido para que a Grã-Bretanha deixasse de

interferir acintosamente nos assuntos domésticos brasileiros. A direção dos negócios do Estado havia mudado de mãos, alegavam os liberais. Eles queriam que lhes fosse concedida a oportunidade de mostrar que eram capazes de levar adiante as medidas antiescravistas. Mas

também desejavam que a Grã-Bretanha levasse em consideração as peculiaridades do Brasil e a dificuldade de se implantar tais medidas. Em última instância, o que os liberais pediam é que o caráter e o alcance das medidas escravistas deveriam ser estabelecidos exclusivamente

pelos brasileiros. Essa, aliás, era uma antiga reivindicação, já claramente formulada na década de 1850 pela Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas (SCT), quando essa entidade manteve contato com a BFASS (RÉ,

2017, p. 311).

Na “negociação” da década de 1860, o Brasil deu o primeiro passo e promulgou em 1864 o decreto que emancipou os africanos livres. A Grã-Bretanha tomou a iniciativa para que as

relações diplomáticas fossem restabelecidas em 1865 e, inegavelmente, mudou sua linguagem e maneira de tratar o Brasil. Em 1869, por iniciativa do governo britânico, a Lei Aberdeen foi revogada quase na surdina, praticamente sem debates parlamentares.5 Mais ou

menos dois anos antes, o Conselho de Estado brasileiro começou a discutir a questão do “elemento servil”, que culminaria na Lei do Ventre-Livre de 1871.

Os artigos que Clark publicou no Daily News e, principalmente, seu opúsculo de 1865

indicam que antes mesmo que as discussões acerca das medidas antiescravistas fossem oficialmente abertas no Brasil, políticos, agentes e representantes diplomáticos brasileiros estavam se esforçando internacionalmente para garantir o apoio britânico e um ambiente

político favorável tanto interna quanto externamente.

5 Os Lordes evitaram debater o projeto de revogação da Lei Aberdeen, pois “não valia a pena discutir toda a questão, mais particularmente porque o único efeito prático desses discursos seria despertar na mente dos brasileiros a ideia de que eles tinham razão de fazer fortes reivindicações contra a injustiça internacional cometida contra seu país” (Hansard, HL Deb 02 March 1869 vol 194 cc471-81).

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Os eventos narrados também permitem apontar o equívoco da interpretação historiográfica que sustenta que as leis emancipacionistas do final da década de 1860, mas principalmente a Lei do Ventre-Livre de 1871, foram decisões totalmente domésticas:

Em 1871 o jogo foi todo interno: não havia pressão material externa e não havia mais traficantes. A iniciativa foi sem dúvida da Coroa, secundada pelo gabinete conservador e apoiada na imprensa abolicionista e parte do Partido Liberal. [...] O impacto de fatores externos foi determinante até 1850. Em 1871 ele foi mais fantasiado do que real (CARVALHO, 2003, p. 314).

A historiografia já começou a rever essa posição (MARQUESE e SALLES, 2016, p. 121). A Lei do Ventre-Livre de 1871, na verdade, foi o lance final de um jogo que teve início nos primeiros anos da década de 1860. Seguramente, o desfecho poderia ter sido antecipado, mas

a Guerra do Paraguai parece ter verdadeiramente atrapalhado a movimentação das peças no tabuleiro. Mas os conhecimentos historiográficos atuais permitem asseverar com bastante confiabilidade que o apoio internacional foi vital para o fim da “política da escravidão”, tal

como montada pelos saquaremas no final da década de 1830.

Referências

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Recebido em 20/09/2018

Aprovado em 21/11/2018