UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da...

97
Caminhadas de universitários de origem popular UFS Universidade Federal de Sergipe UFS

Transcript of UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da...

Page 1: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Caminhadas de universitários de origem

popular

UFS

Uni

vers

idad

e Fe

dera

lde

Ser

gipe

UFS

Page 2: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

UFS

Page 3: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

C183

Caminhadas de universitários de origem popular : UFS / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.96 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção Caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-38-2

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal de Sergipe. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix IanniniThiago Maioli Azevedo

Page 4: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

UFS

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

Organizadores

Jailson de Souza e Silva

Jorge Luiz Barbosa

Ana Inês Sousa

Page 5: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Agnaldo dos Santos

Ana Paula Aragão

Bruno da Silva Santana

Carla Rayane

Carla Vanessa Santos Andrade

Catia Matias dos Santos

Dilma Ramos Lira

Elizangela Nunes de Souza

Emanoela Gonçalves Ramos

Erika Janaina Rolemberg Silveira

Fabiana Bispo de Oliveira

Gilvan Braz Araujo

Helenilza Joelma Costa Santos

Jaqueline Gomes dos Santos

Maria de Fátima Ribeiro Menezes

Maria Lucivânia da Cruz

Marlene Alves dos Santos

Mikele Cândica Souza Sant’Ana

Paula Maria Oliveira Santos

Shirlei Souza Passos

Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues

Tiago do Rosário Silva

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Veleida Anahí da SilvaCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFS

Aldenir Andrade dos SantosCoordenação Operacional

Elizabethe Azevedo de SouzaAssessoria Técnica

Universidade Federal de Sergipe

Josué Modesto dos Passos SubrinhoReitor

Ângelo Roberto AntoniolliVice-Reitor

Ruy Belém de AraújoPró-Reitor de Extensão

Page 6: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimentoem várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

Page 7: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

Page 8: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Sumário

ApresentaçãoVeleida Anahi da Silva ......................................................................................... 9

IntroduçãoAldenir Andrade dos Santos .............................................................................. 11

Quebrando um cicloAgnaldo dos Santos ............................................................................................ 15

Aragão: experiências escolaresAna Paula Aragão............................................................................................... 18

O caminho das mentalidadesBruno da Silva Santana ..................................................................................... 20

Deixe as luzes acesas...Carla Rayane ...................................................................................................... 25

Um dia inesquecívelCarla Vanessa Santos Andrade ......................................................................... 30

Caminhada: caminhar sem olhar para trásCatia Matias dos Santos .................................................................................... 32

Travessias: da cegueira momentânea à noite da liberdadeDilma Ramos Lira ............................................................................................... 34

Assim eu vim ao mundoElizangela Nunes de Souza ................................................................................ 39

Diário de uma estudanteEmanoela Gonçalves Ramos .............................................................................. 44

Uma vida (e) uma liçãoErika Janaina Rolemberg Silveira .................................................................... 49

A chave da vitóriaFabiana Bispo de Oliveira ................................................................................. 55

Page 9: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

InfânciaGilvan Braz Araujo ............................................................................................. 58

Só sei que foi assim...Helenilza Joelma Costa Santos ......................................................................... 60

Que história é essa?Jaqueline Gomes dos Santos .............................................................................. 63

O caminho sou eu quem faço...Maria de Fátima Ribeiro Menezes ..................................................................... 68

Vida: um processo de aprendizagemMaria Lucivânia da Cruz ................................................................................... 72

Minha caminhada: é um orgulho para mim euma homenagem ao meu pai...Marlene Alves dos Santos ................................................................................... 75

Página em construçãoMikele Cândica Souza Sant’Ana ....................................................................... 78

Parte de minha caminhadaPaula Maria Oliveira Santos ............................................................................. 82

Fontes de estímulosShirlei Souza Passos ........................................................................................... 84

A árvore da minha vida.Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues ...................................................................... 87

Retalhos do eu... por mim mesmoTiago do Rosário Silva ....................................................................................... 89

Page 10: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Apresentação

Universidade Federal do Sergipe 9

Veleida Anahi da Silva

Coordenadora Geral do programa Conexões de Saberes da UFS

Memórias de luta dos jovens do programa Conexões de Saberes :

quando a universidade federal é um sonho

Vamos encontrar, neste livro, histórias fortes de luta de jovens em busca daoportunidade de ser o primeiro membro de suas famílias a ter curso superior. Com muitagarra, esses jovens conseguiram entrar na universidade federal, com suas próprias iniciativas.

Hoje, porém, para nela permanecerem, eles podem contar com o programa Conexõesde Saberes, cuja política e filosofia é ajudar esses jovens, oriundos de espaços populares, arealizar o seu sonho.

Este programa pretende contribuir para que esses estudantes universitários sejam bem-sucedidos nos seus estudos, tornem-se lideranças comunitárias e, assim, fortaleçam ascomunidades, proporcionando melhor qualidade de vida para os indivíduos desses espaços.

Os jovens escrevem, aqui, as suas memórias das experiências nesse programa. Ospovos mais antigos, como os gregos, por exemplo, consideravam a memória uma entidadesobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegia as Artes e aHistória. Mnemosyne conferia aos poetas e advinhos o poder de retornar aos acontecimentospassados e fazê-los serem lembrados por toda a coletividade.

Então, convido vocês a apreciar essas memórias reconstruídas por esses jovens“conexistas”, como eles mesmos se designam, e a acompanhar as histórias reais, movidaspor um sonho que se concretizou graças à luta.

Page 11: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões
Page 12: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Introdução

Universidade Federal do Sergipe 11

O programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidadespopulares, foi adotado pela Universidade Federal de Sergipe no ano de 2006.

O foco central desse programa é o empoderamento de jovens universitários oriundosdas camadas populares, para que possam contribuir no desenvolvimento dascomunidades de origem.

Permanecer na universidade e poder concluir seus estudos, são os desafios que osestudantes de origem popular enfrentam.

Este livro é o relato de 23 (vinte e três) estudantes da Universidade Federal de Sergipeque participaram desse programa, em linguagem simples, sem pretensão de apresentar-secom formas literárias rebuscadas e corretas.

Não são poetas, mas alguns deles chegaram a emocionar, pela clareza como trataramos acontecimentos aqui relatados.

Alguns nem acreditavam que seriam capazes de escrever suas histórias, outros não sabiamcomo começar. Uma coisa é certa: lê-los, veremos um pouco das histórias de milhões de brasileirosque não tiveram oportunidade de contar as suas, no entanto, para os que passaram por essesmomentos, fica a compreensão de que tudo valeu a pena. É o que nos dizem, nos perfis abaixo:

Ana Paula AragãoPrimogênita de uma família de três irmãos, sergipana de origem, cursando Pedagogia

e apaixonada pelo curso que freqüenta;

Agnaldo dos SantosNascido em Porecatu – Paraná, residente em Macambira-SE, estudante do curso de

Geografia, curioso para ver aonde irá chegar;

Bruno da SilvaLevado por idéias filosóficas, resume na sua história momentos de indagações,

incertezas, encontrando no curso de História sua realização pessoal;

Carla Rayanne Menezes SantanaDesde o nascimento foi uma criança de saúde frágil, natural de Itabi-SE, mas tem

consciência do esforço para cursar Filosofia da UFS;

Carla Vanessa Santos AndradeAcredita que pode fazer a diferença, porque traz consigo o sentimento de transformação

e de sonhos iniciados pela alegria de ter passado no vestibular de Letras Vernáculas;

Page 13: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

12 Caminhadas de universitários de origem popular

Cátia MatiasDescrita por ela mesma como criança rebelde, nascida em Malhador-SE, poderia ter

desistido da Universidade. Barreiras financeiras, emocionais permearam sua caminhada.Construiu os seus sonhos com os seus familiares e hoje é estudante do curso de Pedagogia;

Dilma Ramos LiraNascida em Ilhéus-BA, filha de pai militar, prestou vestibular, primeiro, para

Jornalismo, e pela segunda vez, para Artes Visuais. Provar que os artistas não são merosartesãos é uma luta pessoal e defende a idéia de que os mesmos são capazes de trabalharem diversas áreas do conhecimento;

Elizângela Nunes de SouzaDécima oitava filha de uma família de agricultores do município baiano de Fátima,

divide com 11(onze) pessoas, em Aracaju, um apartamento mantido pela Prefeitura.Dificuldades não diminuíram a vontade de cursar Enfermagem;

Emanuela Gonçalves RamosFilha de pais agricultores em Lagarto, nasceu em Aracaju. As longas caminhadas

que fazia para ir à escola alimentaram o sonho de seguir em frente, lutando por uma vidalonge da realidade em que vivia. Perder o primeiro vestibular também não a desmotivou,passar na UFS em Física foi uma realização pessoal;

Érika Janaína Rolemberg SilveiraO estilo cordelista foi uma forma irreverente de contar suas histórias. A Universidade

tornou-se para ela casa, trabalho e vida, motivos que a impulsionam a lutar pelo curso deLetras Vernáculas;

Fabiana Bispo de OliveiraFilha de pai militar e mãe cabeleireira, dar uma chance a si mesma foi uma forma de

chegar à Universidade mesmo enfrentando, segundo ela, preconceitos;

Gilvan Braz AraújoNatural de Aracaju, filho de pais evangélicos, apesar de todas as dificuldades

conseguiu entrar no CEFET e no curso de Engenharia Civil da UFS;

Helenilza Joelma Costa SantosVencer a barreira de que mulher é para casar e ter filhos não é uma tarefa fácil, para

quem vive no interior. Pior ainda é perder quatro vestibulares e parentes queridos. Masnada conseguiu afastar o sonho de ser universitária;

Jaqueline Gomes dos SantosNascida em São Paulo e vindo morar em Aracaju por questões de saúde, a autora,

apesar de reconhecer a dificuldade em escrever, relata com clareza sua vida. Felizmente,isso não a impediu de entrar para a Universidade cursando Letras Português;

Page 14: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 13

Júnior SouzaOriundo de comunidade popular, desde cedo partilhou com os outros sua

vida. Música e futebol permearam sua existência. Ser aprovado em LetrasVernáculas afastou-o da banda, mas abriu as portas para outra dimensão:“ser professor”;

Maria Lucivânia da CruzNascida em Aracaju, a autora apresenta, em seu relato, um texto inteligente,

claro e objetivo. A decepção por não ter passado no vestibular de Jornalismo levou-aa buscar Letras Vernáculas, por ter também afinidade com esse curso;

Marlene Alves dos SantosA autora faz um relato de sua vida, que é um retrato de milhões de moradores do

sertão. A época das chuvas, alternadas com a seca, marca a trajetória e a pele daspessoas. Talvez por isso o relato, apesar de emocionante, está centrado na família,especialmente no pai;

Maria de Fátima Ribeiro MenezesEntrar na UFS não foi uma tarefa fácil. Após várias tentativas o sonho foi

realizado. O curso de Estatística tem preenchido o espaço onde antes havia desesperoe mágoa;

Mikele CândidaNatural de Estância-SE a autora apresenta com clareza traços delicados de

sua existência. Otimista, escolheu o estudo como caminho para chegar ao seuobjetivo: “Engenharia Química”;

Paula Maria de Oliveira SantosNascida em Capela e residente em Aracaju, espelhou-se na família para enfrentar

todos os obstáculos.Entrar para o curso de Pedagogia foi a maior felicidade para ela e todos os

seus familiares;

Shirlei Souza PassosNascida em Lagarto-SE, apoiou-se na família para buscar seus ideais (curso de

Matemática).Sendo de origem humilde e residindo no interior do Estado, a sua permanência

na universidade só foi possível graças ao programa de residência da UFS;

Thais Feitosa Teixeira RodriguesPara uma criança do interior estar entre dois mundos é uma situação

desconfortável; a discriminação por ser de uma família carente, no entanto, nãoafastou o sonho de cursar Serviço Social;

Page 15: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Tiago do Rosário SilvaImpulsionado pelos pais, concluiu os estudos sempre voltado para fazer o

vestibular para Filosofia.O seminário foi decisão pessoal, pelo fato de ter convivido com religiosos.Filosofia na UFS, hoje, é sua realidade.Às histórias que irão conhecer poderão ser, na sua maioria, tristes, mas foram

elas que deram sustentação e significado a todos os seus autores.

Aldenir Andrade dos Santos

Coordenadora Operacional do programa Conexões de Saberes da UFS

Page 16: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 15

Quebrando um ciclo

* Graduando em Geografia.

Agnaldo dos Santos*

Nasci no dia 6 de novembro de 1981, em uma sexta-feira, na cidade de Porecatu noestado do Paraná. Não moro com os meus pais e sim com meus avós: meu avô é um torneiromecânico aposentado e minha avó é uma dona-de-casa aposentada como trabalhadorarural. Mudamos para Macambira no Estado de Sergipe no dia 2 de abril de 1986, eu estavana época com quatro anos de idade.

Macambira é uma cidade típica do agreste, com hábitos e costumes tradicionais. Nestacidade eu estudei e terminei todo o ensino fundamental e médio.

Todo o meu ensino fundamental foi concluído na Escola de 1º Grau Marcolino CruzSantos, nome de um dos prefeitos da cidade. Não tenho do que reclamar do meu ensinofundamental: a escola era boa e com alguns professores comprometidos. Macambira é umacidade de agricultores, que na maioria dos casos eram e são por subsistência, mas o que maismarcou essa cidade foi o controle que exerciam sobre ela algumas famílias tradicionais,controle esse nos cargos públicos, inclusive na diretoria da escola. Até 1993 (eu então na 6a

série) não era permitida outra vestimenta na escola além do uniforme tradicional (uma calçasocial e, no caso das meninas uma saia de pregas e uma camisa que parecia com um uniformede marinheiro; não era permitido o jeans, por exemplo), eu até gostava desse uniforme e em1996 com o término da construção de uma segunda escola na cidade, foi possível aimplantação do ensino médio com a colaboração do governo do Estado em um projetodenominado de SOMEM (Sistema de Organização Modular do Ensino Médio) Como otítulo do programa bem diz, ele era organizado em módulos os quais com duração média de45 dias cada módulo, em que se deveria passar todo o conteúdo do ano letivo normal. Comoisso é possível? Não é possível, como não foi. O objetivo era passar, a qualquer custo, osalunos, e os professores eram coagidos para esse fim. Como eram eles ainda universitários,tinham muita vontade de fazer um bom trabalho, mas confrontaram-se com políticosinfluentes que não tinham o compromisso com as pessoas. O projeto fracassou, ou melhor,cumpriu o que tinha para cumprir, mas formou ainda algumas turmas antes de ser formadoum ensino médio “normal”.

Eu fiz parte da primeira turma formada pelo projeto SOMEM, com todas as deficiênciasque se poderia ter. No ano de 2000 fiz um concurso para supervisor do Censo 2000 do IBGE,embora não tendo muita esperança de passar, pois não tive um ensino médio que me permitisseter, mas passei e trabalhei nele por quatro meses. Logo depois que meu contrato com o IBGE

Page 17: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

16 Caminhadas de universitários de origem popular

acabou eu me mudei para minha cidade de origem (Porecatu-PR). Lá eu trabalhei por doisanos em uma usina de álcool e açúcar, a mesma que meu avô trabalhou até aposentar-se.Primeiro trabalhei como servente de moagem, depois como operador de plataformabasculante em duas safras. Como morava com meu pai, e ele cobria meus gastos, que erampoucos, eu consegui economizar um dinheiro e depositar em um banco o máximo queconsegui. Depois de três anos, meus pais decidiram voltar para Macambira e eu vim comeles. Foi quando em 2004 decidi fazer um cursinho pré-vestibular para minimizar minhadefasagem de conhecimento do ensino médio e tentar passar no vestibular. Eu conseguipagar um cursinho (Sala 1) em Itabaiana. Consegui passar no vestibular de 2005 para ocurso de geografia. Para uma família de pessoas pobres ter um membro dela em umaUniversidade é algo raro e ser o primeiro a ingressar em uma instituição como essa traz umpeso muito grande, todos esperam muito dessa pessoa.

Graças aos meus pais, eu consegui guardar o dinheiro necessário para pagar o pré-vestibulare ajudar a manter-me na universidade por um tempo, pois a universidade pública, que é construídacom dinheiro público e deveria ser para o público, na verdade ela é feita e tem sua dinâmica paraas classes mais abastadas que têm conhecimento de sua importância para a formação de umprofissional que irá ganhar, provavelmente, mais que os demais. A formação de cidadão, que é odiscurso mais freqüente, é, em minha opinião, relegado a segundo, terceiro ou quarto plano.

Desde que entrei na UFS, meus horizontes têm se ampliado muitas e muitas vezes, não emtermos materiais ou financeiros, mas em termos de conhecimento, o qual eu não tinha. Fiqueifeliz com meu curso (Geografia), não é de minha natureza olhar para a sociedade com apenas umolhar ou por apenas um viés, gosto de ver as inter-relações entre o econômico, o social, ohistórico, o urbano, o rural, o ambiental etc. isso ajudou na formação de meus objetivos pessoaisnão ligados a minha formação acadêmica. Também tive sorte em ser uma das últimas turmas emque nosso ícone da geografia em Sergipe (Professora Alexandrina Luz Conceição) ministrouaulas antes de se aposentar: as aulas e suas posições me chamaram a atenção sobre diversosaspectos da sociedade o que acredito que iria demorar muito tempo para talvez eu observar.

Quando se estuda em escolas particulares, você está em um meio que lhe mostra apossibilidade de entrar na IES (Instituição de Ensino Superior) e o que se pode alcançar comisso; já em uma escola pública do interior de uma cidade tradicional onde seus professoresnão se comprometeram com o ensino fundamental e médio, não se tem um objetivo e não lheé mostrada esta possibilidade, de ingressar em uma IES e a que ela se destina. Assim entrei naUniversidade Federal de Sergipe: sem objetivos e sem uma noção de que isso poderia fazer designificante na minha vida. Somente quando entrei, é que vi o tamanho e a importância dessainstituição, pena que ela, na prática, não é para os que mais precisam. Quando ingressei noProjeto Conexões de Saberes talvez tenha sido sorte eu entrar na UFS e logo depois entrar emum projeto que se destina a propor soluções de acesso e permanência à Universidade parapessoas oriundas de comunidades populares, algo que vejo que não é da ordem “normal” dainstituição que é muito voltada para a formação de profissionais que gerarão um conhecimentoque traz retorno financeiro à Universidade e isso coloca as Licenciaturas e as Ciências Humanasem desvantagem em relação às Ciências ditas Exatas ou da área de saúde.

Entrar no Conexões de Saberes foi ver as disparidades entre os que vêm de escolasparticulares e públicas e a distância que a Universidade mantém das comunidades popularese essa distância vem da apropriação da instituição pela classe média e média alta de formadireta e/ou indiretamente. Participar deste projeto é como ver uma possibilidade para a

Page 18: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 17

atuação mais próxima da sociedade, não como um discurso demagogo, mas de forma concretae influenciadora de caminhos a serem tomados de hoje em diante, caminhos que o curso degeografia mostra, mas que nem sempre é seguido. Que o projeto mudou muita coisa emmim, isso ocorreu, mas para que caminho mudou, ainda é um tanto obscuro ou nublado.

Enfim, sem a ajuda de meus pais não estaria aqui escrevendo estes fatos e os lendo apúblico. A entrada na Universidade Federal de Sergipe e o ingresso no Conexões de Saberesme possibilitaram confrontar idéias com a realidade e ver o que posso e preciso melhorar emmeus conceitos e conhecimentos. Os próximos passos ainda serão dados e eu estou curiosoem ver aonde isso vai chegar.

Page 19: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

18 Caminhadas de universitários de origem popular

Aragão: experiências escolares

* Graduanda em Pedagogia.

Ana Paula Aragão*

Quando me falaram sobre a possibilidade de escrever um artigo contando a minhacaminhada escolar até ingressar numa universidade pública, fiquei fascinada com a idéia,mas depois com a confirmação vieram as dúvidas sobre o que escrever. Então, resolviescrever sobre pessoas e fatos que me fizeram chegar até aqui e que me fazem lutarconstantemente por meus objetivos sem jamais desistir apesar dos obstáculos que aparecemno nosso caminho.

Chamo-me Ana Paula Aragão, nasci no dia 6 de abril de 1984, na cidade deAracaju. Sou a primogênita de Maria Helena Farias, a pessoa mais importante daminha vida. Uma mulher maravilhosa, trabalhadora que sempre lutou para criar seustrês filhos com dignidade e alcançar seus objetivos. Eu gosto de dizer que ela é umgrande exemplo de pessoa.

Mas voltando a minha trajetória escolar, devo dizer que, ao contrário de muitos amigos,nunca enfrentei grandes dificuldades para ter acesso à educação até tentar entrar nauniversidade, apesar de ter estudado durante toda a vida em escolas publicas. Exceto porum ano, no ensino fundamental, quando por falta de vaga na escola do bairro onde morávamosminha mãe teve que me matricular numa escola particular.

Durante essa caminhada estudei em diversas escolas, acho que foram umas oito, nãosei ao certo. Iniciei meus estudos muito cedo, mais precisamente aos dois anos de idade nacidade de Gracho Cardoso, depois nos mudamos para a capital (Aracaju) e meus irmãos e eufomos matriculados no Jardim de Infância Garcez Vieira. Foi uma época maravilhosa naminha vida, pois marcou minha infância, recordo que me divertia muito com meus colegas.

Mas entre todas as escolas nas quais estudei, posso destacar duas em especial: aEscola Antônio Fontes Freitas e o Colégio Rui Barbosa, onde concluí o ensino Fundamentale Médio, respectivamente. Devo dizer que de todas elas trago boas lembranças, pois tive asorte de ter encontrado pessoas especiais em meu caminho, amigos que fazem parte daminha história e principalmente do meu dia-a-dia.

A minha grande decepção durante essa caminhada e exemplo também, refere-se aminha reprovação no meu primeiro vestibular prestado para ingressar na UniversidadeFederal de Sergipe; tinha acabado de concluir o ensino médio. Recordo que, quando fuiolhar a lista dos aprovados e não vi o meu nome me senti uma fracassada. Simplesmentenão acreditava que não tinha conseguido, porque sempre fui considerada uma ótima

Page 20: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 19

aluna pelos professores. Na verdade, eu realmente me esforçava, chegava a ponto dedeixar de sair com a minha família porque o meu objetivo era ingressar na universidade equando percebi que todo o meu esforço durante anos não tinha sido suficiente fiqueicompletamente arrasada.

Hoje, vejo que naquela época tinha a ilusão de que se estudasse bastante seria o suficiente,não levava em consideração que assim como eu outros estudantes também tinham os mesmosobjetivos e sonhos e que, além disso, eles eram muito mais preparados, pois tiveram aoportunidade de ter um ensino de melhor qualidade, além de não precisarem trabalhar.

Nesse momento, a minha família foi fundamental, me fizeram ver que eu era capaz eque deveria tentar não importasse quantas vezes até alcançar o meu objetivo. No anoseguinte, estudei ainda mais e já no final do ano consegui uma bolsa de um curso pré-vestibular e apesar do pouco tempo que estudei, devo dizer que ele me foi de grande valia.

Prestei vestibular novamente e para a minha felicidade fui aprovada. Quando olhei alista com o resultado final, fiquei estagnada porque não acreditava que havia conseguido.Foi apenas quando retornei para casa, desci do ônibus e encontrei minha mãe e irmã meesperando contentes, me felicitando por minha aprovação que realmente percebi que tinhasido aprovada.

No segundo semestre do ano de 2003, comecei a cursar Pedagogia na UniversidadeFederal de Sergipe. Ao contrário de muitos, tenho o prazer de dizer que sou apaixonada pelocurso, pois através dele tenho aprendido muito sobre o verdadeiro significado da palavraeducação, sobre a realidade na qual estou inserida. Também devo dizer que, após o meuingresso, conheci pessoas maravilhosas com as quais tenho contado para superar os obstáculosque surgem durante a vida acadêmica, pois nem tudo são flores dentro da academia comoimaginamos antes de fazer parte dela.

Além disso, um fato muito importante que aconteceu na minha vida acadêmica foifazer parte do Programa Conexões de Saberes: através dele, tenho aprendido muitas coisas,convivido com pessoas que compartilham os mesmos desejos - como uma universidadepública de qualidade onde todos possam ter acesso, por exemplo.

Page 21: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

20 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em História.

O caminho das mentalidades

Bruno da Silva Santana*

Eu não acredito no passado – apesar de fazer história. O passado sempre nos trai.O presente é sempre duvidoso e o futuro incerto. Não é niilismo, talvez seja preguiça.Mas então, o que resta? Resta algo que eu descobri – ou encontrei – depois de chegaraonde eu nunca me preocupei em chegar. Aonde só soube que ia chegar um ano antesde chegar. E quando se tem 18 anos, um ano é muito pouco (ao menos me pareceu)!. Ese eu falei que “ia chegar” é porque sabia que chegaria. Para alguns é pretensão, paraoutros, incoerência ou mentira, mas tudo o que me disseram que eu tinha de fazer,mesmo sem eu querer, mas sem a escolha de não fazer, eu consegui fazer. Confuso?Bem, resumindo: eu entrei na universidade. Nesse caso, a UFS – Universidade Federalde Sergipe.

Mas voltando ao início, como falar do presente sem falar do passado? Afinal, eu nãopretendo falar de algo porque eu não me interesso. Mas então, o que pode me interessar?Bem, se tenho de escrever sobre o passado, que não sejam os fatos, acontecimentos. Entãoque seja a mentalidade. Mas será que ela é importante? Para mim é. Por isso meu caminhoé por ela.

Sem saber o que esperar...

Eu escolhi fazer o curso de história licenciatura, mas gostava mais de filosofia.Justamente por isso não fiz filosofia: não queria estar preso a uma das poucas coisas que medivertiam naquele momento. Também houve outros motivos para a escolha: a licenciaturafoi uma forma de fugir das prisões. Pelo menos foi a forma mais ampla que eu achei. Com alicenciatura, eu seria dono do meu próprio conhecimento. Dependeria mais de mim que dosoutros ou dos acessórios.

Eu não falei, mas o curso que escolhi é noturno. E escolhi esse turno por doismotivos: 1 – não fazer nada o dia todo; ser dono do meu tempo. 2 (e esse é um poucomenos pretensioso) – trabalhar e poder começar a tentar buscar o que eu queria. Mesmosem saber ainda o que seria.

Esse desconhecimento me acompanhava há uns três anos, no mínimo. Quando termineia 8ª série, com 15 anos, achei que era o fim dos estudos. Na verdade não tinha certeza, mascomo não sabia o que viria, achei melhor não esperar nada. Até porque, quem mora numacidade do interior como eu morava, não há muito a esperar.

Page 22: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 21

Estudar e esperar I - expectativas

Eu gostava da escola onde eu estudava, da cidade onde morava, mas nunca quis ficarpor ali. Sempre soube (ou quis) que um dia sairia dali. Sempre achei que haveria um outrolugar, mas não sabia qual. Só sabia que tinha de esperar, pois um dia eu chegaria aonde eusonhava. E um dia me pareceu que eu havia chegado aonde queria. Eu saí do interior e fuimorar numa capital, numa cidade onde havia um futuro. Onde eu teria uma profissão eminha própria vida. Pelo menos era o que me diziam, mas ninguém me disse que eu teria deestudar mais para ter o que me prometiam.

Novamente estou numa sala de aula e as coisas parecem se repetir. Estudar paraesperar, mas por que esperar tanto se eu só queria uma vida simples? Sem alarmes e semsurpresas. Mas eu estudava. Ao menos sabia que, acabando o 2° grau (agora ensinomédio), eu teria o que sempre esperei: a minha vida simples. Só que no começo do fim,no 3° ano, me lembraram do tal do vestibular. Pois, me lembraram sim, afinal já tinhamme falado. Eu só não me lembrava porque não havia me preocupado com ele. Mas porque me preocuparia?

No 1° grau eu estudava porque gostava. Eu não me preocupava porque não havia comque me preocupar. Eu era um dos poucos alunos que conversava com os professores depoisdas aulas. E isso para mim era normal. A única coisa que me prendia ali, naquele mundo, eraa escola – então depois dela eu estaria livre. Foi aí que tudo mudou e eu preferi recomeçardo zero. Afinal, eu não queria só 2° grau.

Estudar e esperar II - apatia

Nos três anos do 2° grau, eu estudei por obrigação. Salvo algumas matérias, algunsprofessores e alguns assuntos (pouca coisa no geral). Desta vez a espera era para acabar.Mas a obrigação de estudar me afastava cada vez mais da escola e me aproximava da vidaque eu esperava: qualquer trabalho, qualquer lugar, qualquer coisa. Se eu quisesse escolheralguma coisa era isso que havia para escolher. Determinismo? Fatalismo? Eu não conheciaessas coisas para poder reconhecê-las, mas alguém já disse... tá, acho que foi o velhobarbudo, K. Marx, que foi resumido assim: “eles não sabem, mas fazem”. Acho que eraisso. E foi justamente no começo do 3° ano que isso se acentuou. O fim passou a ser ocomeço. Agora eu tinha de passar no vestibular. Eu tinha um lugar para ir. Um lugarchamado universidade...

É claro que eu não queria ir para lá. Talvez eu quisesse quando estava no 1° grau, masagora não. Até porque eu comecei a desconfiar que eu nunca teria o que eu sempre quis: serdono do meu tempo. Como eu poderia ser se sempre teria obrigações? Por que eu tinha deir para a universidade? Para fabricar meu diploma e ter um emprego? Para o que eu desejavanão precisava de diploma – eu não queria muito. Nunca quis. E por que eu deveria querer?Eu sempre desacreditei e nunca me convenceu o dito valor da universidade. Para mim era sóum jogo que eu não queria jogar.

Por que rejeitar a universidade? – uma outra visão

Hoje eu tenho uma nova perspectiva sobre a universidade. Não busco certezas, mascompreensão. Algo assim. O resumo da idéia seria este: eu não queria fazer parte do privilégio.A universidade é um privilégio e isso para mim é indiscutível – mais ou menos... fazer partedesse universo seria contradizer o que eu esperava desde o 1° grau, ou seja, estar entre os

Page 23: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

22 Caminhadas de universitários de origem popular

meus iguais. Bem, isso ainda não está claro. É apenas uma idéia a ser desenvolvida. Massempre achei a universidade um caminho egoísta e omisso. Algo que eu nunca quis, mastambém nunca fui ou quis ser o oposto maniqueísta disso. Acho que sempre preferi oanonimato.

No curso noturno eu podia trabalhar durante o dia e foi o que eu fiz. Para mim, estudarera adiar um futuro que eu podia ter naquele momento; estudar era viver uma vida que eunão queria; mas principalmente estudar na universidade não me mostrava nada quesignificasse mudança, alternância e nem perspectivas para quaisquer um dos meus desejos.Por conta disso, acabei me dedicando mais ao trabalho que aos estudos. Só mais tarde, bemmais tarde, eu iria mudar de opinião. Ao menos consegui mudar.

Como eu achava que a universidade não me oferecia o que eu ansiava, eu também nãoconseguia captar as outras coisas que ela me oferecia. Eu nunca critiquei a UFS, os professores,a estrutura, o curso etc, pois nunca havia me inteirado o suficiente para fazê-lo (apesar daevidência de algumas deficiências). Mal sabia onde ficava o departamento do meu curso; àreitoria eu nunca tinha ido, à biblioteca, só havia ido umas poucas vezes. Toda a minhaatenção estava voltada para o trabalho.

De certa forma, eu acreditava que trabalhar e viver nas condições oferecidas para amaior parte da população era muito mais justo, talvez ético, honesto ou algo assim, do quea luta egoísta que se torna a universidade. Tudo que se apresentava através da universidadeera a busca de uma vida melhor. Vida melhor dada somente àqueles privilegiados queingressam e cursam o nível superior. O fator principal que me distanciava da universidadeera a forte imagem que eu tinha e que só seria desfeita através da proposta do ProgramaConexões de Saberes. O curso universitário era a fuga de uma vida social inferior.Aparentemente, a promessa velada que existe é de que quem tem o nível superior terá umbom emprego, uma boa vida etc. Era justamente essa fuga que eu rejeitava. Eu demorei aperceber que havia outras alternativas nesse caminho que passava pela universidade.

A universidade e seu mundo distante

Antes de entrar na universidade, eu não me lembro de nada referente a ela. No meu 1ºgrau, nenhum dos meus professores era formado por alguma universidade. Bem, não naminha visão daquele tempo. Hoje, eu acho que alguns ou estudavam ou haviam estudadoalgum tempo em alguma universidade. Mas não me lembro de nenhum deles falando acercadisso. Também não me lembro de nenhuma atuação de qualquer universidade onde eumorava. Até hoje, o interior dos Estados está muito distante do mundo universitário. E essadistância de alguma forma me marcou.

Os diversos caminhos

Quando eu falei de estar entre os meus iguais, isso vem principalmente de uma imagemforte que eu tenho do grupo de amigos em que eu me encontrava durante o 1º grau: amaioria dos meus colegas seguiu caminhos diferentes do que eu seguiria – quase nenhumdeles pensou ou foi para a universidade. Isso me marcou. E foi difícil.

Foi tão difícil que até hoje isso me causa espanto. Acho até que perplexidade, pois sóconsigo lembrar sem tomar partido. Outro dia, uma amiga minha disse que não quer ir paraa universidade. Eu sei que o que ela faz não precisa da UFS, mas não sei se é tão simplesassim. Também lembro que alguns amigos de hoje nem o 2º grau terminaram. O máximo que

Page 24: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 23

consigo dizer é para eles fazerem um supletivo. Eles dizem que pensam em fazer, masduvido um pouco. E a universidade? Eles sabem que eu estudo lá e eles admiram isso. Poroutro lado, para eles está bem claro que a UFS não é para eles: “É para quem pode”, comoeu já ouvi muitas vezes deles. Eu só não sei se é a intenção deles, mas essa frase me soaambígua: seria no sentido de “inteligência” – habilidade e dedicação aos estudos; ouseria porque é preciso pagar – cursinho, escola particular – para poder entrar? Ou seriamos dois!? E eu, o que posso dizer para eles diante disso? O que a universidade oferece? Equem vai pagar as despesas dos estudos? Muitos moram longe e só de pensar em voltarmeia-noite para casa depois de um dia de trabalho e uma aula noturna desanimam. Isso éa realidade de muitas pessoas e isso é mais do que comum e conhecido. Mas eu ainda nãosei o que fazer nessas horas...

A universidade dentro de um objetivo

Talvez seja por isso que os meus primeiros tempos na universidade tenham sido tãovazios, sem propósitos. Mal prestava atenção às aulas e muito menos reconhecia qualquervalor na instituição. Para mim, apesar de eu já estar lá dentro, ela ainda se apresenta distante.Isso só mudou tempos depois, quando eu percebi que poderia tirar proveito da universidade.A minha visão não havia mudado completamente, eu ainda achava (e continuo achando) auniversidade uma instituição à parte, distante e mais ainda: um privilégio que leva aocaminho dos privilegiados; caminho que não se preocupa em olhar para trás, para as origens.O que eu havia percebido, e hoje me parece o óbvio, é que eu poderia fazer uso dessemomento, mas não necessariamente fazer parte. Ao menos era isso que eu ia tentar. E de certaforma, ainda tento hoje. Principalmente agora que a universidade tem um programa quebusca justamente olhar para trás: o Conexões de Saberes.

Por uma conjuntura de fatores eu acabei saindo do trabalho e ficando com o dia livre.Acabei me dedicando mais aos estudos; devido à falta do que fazer, resolvi estudar. Foi nessemomento, que comecei a buscar outras atividades que não fossem estudos e trabalho. Foi entãoque eu voltei a me envolver com as comunidades de baixa renda, desta vez como agente atuante.E essa experiência iria mudar a minha forma de enxergar a universidade e principalmente deinteragir com ela. A partir desse momento, eu traçaria um objetivo para a universidade.

Antes de me envolver com as comunidades, eu acabei dando voltas e voltas inúteisna busca de alguma atividade que me despertasse interesse. Eu sempre esbarrava comdetalhes que me distanciavam dessas atividades: eu nunca gostei de depender dos outros,então isso já dificultava os trabalhos em grupo; eu não aceitava fazer trabalhos por interessespolíticos, nem ceder em algum ponto para ganhar em outro – nesses casos eu preferia nãotrabalhar; às vezes discordava da metodologia do trabalho etc. Mas numa dessas voltaseu me encontrei. Trabalhar com comunidades, sem a interferência de políticos, num grupoque tem o mesmo propósito e com liberdade para desenvolver atividades, posso dizer quefoi o começo de uma jornada que ainda não acabou e que está passando pelo Conexões deSaberes agora. Mas esse começo não foi tão simples. Como toda comunidade, nela haviaenormes dificuldades.

E diante das necessidades da comunidade e das limitações do meu trabalho, eu percebique faltavam elementos, ou que havia elementos que poderiam complementar e ajudariama fortalecer o trabalho que eu desenvolvia. Foi quando então eu pensei: “Se eu me formarlogo, eu posso direcionar a minha graduação - e seus benefícios - e a minha profissão para

Page 25: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

24 Caminhadas de universitários de origem popular

essa comunidade”. Agora sim, eu tinha um propósito na UFS. E de certa forma, me lembravado 2º grau; novamente eu tinha urgência em terminar os estudos. Mas dessa vez se diferenciavapois eu sabia exatamente porque queria.

Nesse ponto, eu ainda não deixei de ver a universidade como eu sempre a vi, um lugardistante, para privilegiados. Eu continuava a ver a universidade assim, mas dessa vez eutinha encontrado uma forma de me aproveitar disso. Eu tinha a certeza de que poderiaseguir esse caminho, mas não com a intenção de permanecer nele sem nunca olhar para trás(ou para os lados). Eu seguiria esse caminho para me aproveitar dele e sempre pensando emredirecioná-lo para lugares aonde ele nunca chega.

Graças a isso, eu acabei me encontrando na profissão de professor. Nos primeiros anosna universidade, o curso que eu havia escolhido era tão-somente o curso em que eu haviapassado no vestibular. Agora não. Agora havia se tornado o curso que eu seguiria. Apesar detudo, a minha escolha não foi aleatória e até hoje me surpreendo por ter escolhido o cursode licenciatura e pelos critérios utilizados. Surpreendo-me por dois lados: será que eu tinhaessa percepção tão ampla que me permitiu escolher um curso que atendesse as minhasexpectativas, mesmo elas estando na insipiência? Ou será que eu não mudei nada e nempercebi as coisas ao meu redor? Às vezes, esses pensamentos podem ser atormentadores,mas sempre chego à conclusão de que estou no caminho certo e isso me conforta. E um dosfatores que mais pesa nessas conclusões é o Conexões de Saberes. Nele eu reconheci ocaminho que eu havia escolhido e mais, com ele eu ampliei o meu caminho.

Por outro lado, a escolha de terminar logo o curso estava relacionada com o impasseque se apresentava e sempre se apresentou, diante de minhas escolhas: “sem dinheironinguém vive” – “lugar de sonho é na padaria”... então era isso: eu me formaria, teria meuemprego e voltaria esses dois elementos para os projetos de que eu fazia parte – os trabalhosnas comunidades. Eu sabia também que, com a flexibilidade que o trabalho de professorpossui, isso facilitaria as minhas ações. Sem contar que eu poderia lecionar em qualquercomunidade. Me parecia um plano legal.

Pra que pressa de chegar?

Agora, fazendo parte do Programa Conexões de Saberes, toda aquela pressa perdeu arazão de ser. Nessa caminhada toda, nessas tensões que são as mentalidades, eu consegui meestabilizar no presente. Dessa vez, estou tentando (de verdade mesmo) conciliar trabalho eestudos. Principalmente porque agora os dois estão interligados. Também sei que os planos parao futuro dependem do que fazemos agora. Esperar era uma atitude passiva que não cabe mais.

Não sei bem como acabar um texto sobre uma caminhada que ainda não acabou... nãosei se um dia saberei ou se um dia acabará, mas posso dizer que agora estou caminhando.

Sem conclusões ou muitas conclusões

Parece natural uma abordagem acerca da mentalidade terminar com uma conclusão,mas não é esse o caso. Não tive a intenção de interpretar, mas qualquer um pode fazer isso.Alguns elementos são gerais e comuns a muitas pessoas e lugares, outros são maisespecíficos. Mas isso não impede ninguém de interpretá-los. Eu mesmo não creio queseria capaz de fazê-lo, não definitivamente. E é isso que me fascina no estudo dasmentalidades: daqui a algum tempo, provavelmente, eu verei essa abordagem com outrasperspectivas. É isso que me diverte.

Page 26: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 25

Deixe as luzes acesas...

* Graduanda em Filosofia.

Carla Rayane*

Por mais que na batalha se vençaum ou mais inimigos, a vitóriasobre si mesmo é a maiorde todas as vitórias.

José P. Andreeta e Maria de L. Andreeta

Bueno! Que frio mais fora de época!Diz a previsão do tempo que esquenta mais à tarde, mas se for que nem ontem, melhor

nem esquentar, porque o solzinho estava tããão sem graça… faz favor, né?Senti que ontem todo mundo estava meio autobiográfico. Ou eu fui influenciada pela

maré, ou eu influenciei com o postal existencial de ontem. Ou quem sabe, foram as duascoisas. Várias vezes na minha vida fui tomada pelo impulso de começar um diário. E váriasvezes comecei. Não tanto para marcar eventos inesquecíveis de meu dia-a-dia quanto porestar em alguma encruzilhada, íntima ou não, em que me parecia necessário forçar-me aconfessar alguma verdade que, de outra forma, não arriscaria dizer. Ou então, necessitavalevar meus argumentos frente a um tribunal que me entendesse. Ou ainda, queria interpretarminha vida para lhe prometer um futuro ou dar sentido a um presente amoroso.

Então, vou contar um pouquinho da minha jornada. Essa minha caminhada, ainda emprocesso, sem dúvida não foi só minha, mas aparece permeada de personagens que foramessenciais para a localização atual da minha vida.

Minha difícil trajetória iniciou-se bem antes da minha chegada à nova realidade.Meus pais separaram-se bem antes do meu nascimento. Minha mãe, na época muito imatura,teve que aprender a enfrentar os problemas da vida muito cedo. Eu já nasci com um sérioproblema de saúde. Aos seis meses de idade fui submetida a uma cirurgia para retirada de umtumor maligno próximo ao olho esquerdo. Imaginem a situação da minha mãe: jovem,inexperiente, sem dinheiro, somente com um sentimento capaz de superar qualquer obstáculo:o amor incondicional. Na época em que foi diagnosticado o problema o médico falou queeu teria que fazer uma cirurgia imediatamente e percebendo as condições financeiras daminha mãe ele falou que a operação seria por conta dele, minha mãe, só arcaria com as outrasdespesas, tipo curativos, medicamentos. Desesperada, minha mãe vendera alguns objetosdeixados pelo meu avô (infelizmente não o conheci) para tentar cobrir algumas despesas.

Page 27: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

26 Caminhadas de universitários de origem popular

Como somos do interior do Estado, de um município chamado Itabi, ficamos hospedadasna casa da minha prima, Telma. Bom, fiz a cirurgia e graças a Deus tudo se resolveu, conseguisuperar o primeiro obstáculo da minha vida; outros estavam por vir.

Mais precisamente na época do infantil III à 3ª série, sempre fui aquele tipo depessoa que é ignorada pela galera popular do colégio. Sabe aquele tipo de menina tímida,sempre com notas boas e uma única amiga, bem na dela? Então. Sem falar que me chamavamde protegida do diretor (eu odiava isso), porque não cursei a 1ª série, fiz uma prova e fuidireto para 2ª série.

A partir daí, os apelidos e zoações na sala de aula foram muito comuns. Ainda maisquando descobriram que eu venho de uma família de pais separados e morava com minhaavó Alaídes. Pronto, no mínimo, a Carla não era uma boa influência. Engraçado como opreconceito surge das mais variadas formas.

Até à 3ª série, foi o inferno na Terra. Mal eu sabia que o inferno pior estava por vir,somando um pai ausente e anódino a um padrasto falso moralista que não dava a mínima paravalores éticos e morais e que a partir de então eu teria que suportá-lo todos os dias, porqueminha mãe levou-me forçosamente para morar com eles e meu irmão em Aquidabã-SE. Foi opior ano da minha vida, quando me lembro de ter deixado minha voinha para ir convivercom um estranho que detestei desde a primeira instância; acho até que era sexto sentido defilha. Isso tudo culminou na construção das minhas crenças, de um mundo construído apartir de mim mesma.

Meu pai tinha um bom emprego para os padrões da região. Mas para que eu pudesseusufruir dos meus direitos de filha minha mãe foi obrigada a procurar os meios jurídicos.Algo que sempre quando lembro me deixa angustiada foi a negação, inicialmente, por partedele de me registrar, alegando que não era filha dele. Como a vida nos prega peças, né!!! Eusou a cópia fiel dele, nenhum dos outros dois filhos se parece tanto quanto eu. Tem umpueril poema que fiz por volta de 8 anos baseado em um poema de Drummond que retratacom certa grandeza o meu momento de solidão.

Como ser feliz sem um verdadeiro pai?Não há receitas para tal.Todo o saber, todo o meu brilhantismode vaidosa intelectualhesita ante a interrogação,armazenada em mim, estampada no ar.Balas, jóias, patinaçãotalvez bastem para cativar?

Eis que dilacera meu coraçãoE brota como uma flor,a procura de uma ilusão:receber de um pai o amor.

Page 28: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 27

Algumas vezes me sinto angustiada pela cobrança que as pessoas me fazem parademonstrar os meus sentimentos por ele. Tenho ciência de todo o esforço feito por ele paraconquistar o meu afeto, entretanto, é muito difícil aprender a gostar de alguém que na faseprimordial do todo ser humano - a infância - sempre me negou carinho.

Já na 4ª série do ensino fundamental, a situação financeira estava mais equilibrada. Nessetempo, já estávamos residindo novamente em Itabi. Meu padrasto tinha uma ótima estabilidadefinanceira e isso contribuiu para que minha mãe matriculasse meu irmão em uma escolinha particular,típica de interior, achando injusto o posicionamento da minha mãe e sabendo o quão era difícilpara eu ter que estudar com pessoas bem mais velhas. Inconformada, a coordenadora (Tica) decidiuoferecer um desconto de quase 70% para que eu pudesse estudar em uma escola mais preparada eassim aconteceu. Eu ganhei a bolsa e passei a freqüentar o mesmo colégio que meu irmão.

Mas as inconstâncias da vida nos trazem muitas surpresas. Meu padrasto acaboupassando por uma crise financeira e meu pai não mais estava contribuindo financeiramente.Acabei por concluir o ensino básico em um colégio municipal e fui em busca de melhorescaminhos para o ensino médio. Já imaginava que, caso não fizesse um bom ensino médio,dificilmente entraria na Universidade Federal.

Até, então, eu não sabia o que era uma universidade. Meus pais não possuem grausuperior, mas minha mãe, figura importantíssima na minha vida, assim como todos osprofessores que sempre me auxiliaram (em especial Dorinha, Tica e Jeane) sempre meincentivaram a estudar, que eu deveria aproveitar todas as oportunidades.

Entristecia-me muito ouvir minha mãe falar que eu deveria aproveitar muito bem asoportunidades, algo que ela não teve. Dessa forma, prossegui determinada a não passar portodos os transtornos porque passara minha mãe. E surgia uma constante indagação: o quefazer para não perder o futuro de vista?

Em 2000 iniciei uma nova fase da minha caminhada. Aos 14 anos deixei a vida dointerior para residir na capital (local onde resido atualmente). No primeiro ano, morei comuma tia, que convencera meu pai a pagar um colégio particular para mim. O grande sonho daminha vida. Infelizmente o sonho só durou um ano, logo se iniciaram as brigas familiaresentre meus pais acarretando o meu retorno para o interior. Nessa época, eu já havia feito muitasamizades que jamais esquecerei. Sabendo da minha situação, uma grande amiga-irmã, quenão posso eximir-me de citá-la: Rosa Cândida, me convidou a morar na casa dela. Conseguiuma bolsa de 70% de desconto no mesmo colégio onde ela estudava e passei a dar aulas acrianças para conseguir cobrir os gastos. Para completar a minha alegria fui contemplada comuma bolsa integral de pré-vestibular no mesmo colégio. Foi um período de muito cansaço,pois eu estudava pela manhã, dava aula à tarde e à noite ia para o pré-vestibular, semprecontando com a força da minha mãe e o apoio da família de Rosa, que hoje é a minha segundafamília. Foi criando desafios, calculando riscos e avançando sempre que finquei a bandeira daconquista e, nesse mesmo instante, comecei a buscar outros portos.

Depois de anos de muito esforço, muitos obstáculos, vários problemas de saúde emuito estudo, consegui ser aprovada na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Isso me fezsentir-me grande como o mar que é incansável, pois mesmo com os contratempos, sem umaboa base de ensino e tentando vestibular pela primeira vez, consegui concretizar um grandesonho. Sem falar, não posso negar, o sabor da vitória, principalmente o prazer de mostrarpara todos que desacreditaram do meu potencial que venci a batalha, são coisas que aspalavras são incapazes de descrever, expressar.

Page 29: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

28 Caminhadas de universitários de origem popular

É, parecia que estava tudo perfeito, que seria um 2003 primoroso. Infelizmente não,não há como se sentir alegre permanentemente. Dona Creuza (mãe da minha amiga) estavapensando seriamente em ir embora para Brasília. E agora, onde ficar? Foi então que mefalaram sobre o Programa de Assistência Estudantil da UFS para estudantes de baixa renda,oriundos do interior do Estado ou de outros Estados. Pronto, meu problema estava resolvido.Passei a conviver com mais 7 meninas oriundas de diversos municípios do interior, por sinaluma ótima convivência. Somos muito companheiras, uma verdadeira família.

Hoje, minha mãe, está separada do meu padrasto, convivendo com a minha vó Lai e omeu irmão, e eu estou na UFS. Muitas vezes me pego pensando como consegui chegar atéaqui e mais, como a história de vários amigos não teve a mesma trajetória que a minha.Pessoas, que como eu, também precisavam muito de um ensino superior gratuito e dequalidade e que hoje, para tentarem garantir um futuro um pouco melhor, estão sofrendoduras penas para se manterem em universidades particulares e outros que sequer conseguiramconcluir o ensino médio.

A universidade me abriu caminhos. Foi através da instituição que pude conhecer edesfrutar da companhia de várias pessoas que a partir de então, fizeram e fazem parte dosmeus caminhos. Que me deram oportunidade de expandir meus conhecimentos através debolsas integrais nos cursos de Espanhol e Formação em Psicologia e PsicoterapiaTranspessoal. E jamais poderia deixar de citar a grandiosa oportunidade de fazer parte doPrograma Conexões de Saberes que nos permite nortear as reflexões no campo dasrepresentações sociais, da educação e do ser cidadão.

Um sentimento de intensa gratidão me enternece. A Deus pela concessão da minhaexistência. A minha mãe pela acolhida nessa vida, proporcionando-me dar encaminhamentoà verdadeira tarefa de vida que é o despertar da minha consciência; sem ela nada disso seriapossível; a ela, meus profundos agradecimentos. Aos meus queridos irmãos, Ramon,(carinhosamente Lindinho) Murilo e minha irmã Beatriz. Sinto-me grata a todas as pessoasda minha família, amigas (em especial Rosinha, Helenilza e Liene) e companheiras deresidência; aos professores, meus avós (em particular Alaídes), minhas madrinhas Maria eNatércia, meus irmãos, aos meus colegas do Conexões e coordenadoras que estãoparticipando ativamente do meu processo de desenvolvimento pessoal e profissional, aBruno e Flora (meus terapeutas que sempre souberam dar um posicionamento imparcialdiante dos meus questionamentos, com profundidade e sabedoria, estimulando-me aprosseguir), enfim, a todos que fizeram e continuam fazendo parte da minha caminhada.

Resolvi contar alguns trechos da minha história inspirada no que muita gente contoupor aí. E muitos não me conhecem de verdade, nem a minha história. Agora, dá para ter umabase do por que eu precisei jogar a adolescência fora. Para o bem geral.

Hoje em dia, não me arrependo de ter deixado as brincadeiras de roda de lado para mededicar exclusivamente aos estudos ou para segurar a onda da minha mãe, para cuidar doRamon. Porque tudo isso me fez o que eu sou hoje, isso me fez mais forte, mais mulher emais grata pela vida.

Porque a vida é para ser vivida. Viva e deixe viver.Faça o melhor de si todo dia.Pense sempre no bem geral.Viva com um sorriso no rosto. E vença os leões todos os dias.Om tare tuttare ture so ha…

Page 30: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 29

Toda essa caminhada me fez pensar na minha própria vida e viver meu pensamento,me libertei de várias ilusões e esperanças tolas e tudo isso me ensinou a amar mais a vida doque a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança.

Page 31: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

30 Caminhadas de universitários de origem popular

Um dia inesquecível

* Graduanda em Letras Português.

Carla Vanessa Santos Andrade*

“O real eu atinjo através do sonho. Eu teinvento, realidade.”

Clarice Lispetor

“Eu escrevo sem esperanças de que o queescrevo altere qualquer coisa, não alteranada, porque no fundo a gente não estáquerendo alterar as coisas, a gente estáquerendo desabrochar de um modo ou deoutro.”

Clarice Lispector

Pensei infinitas vezes como iria começar esse texto; falar sobre minha vida não étarefa fácil. Que momento! Iguais lembranças precisam ser retiradas das prateleiras do passadoe surgir com toda força, de repente, para mostrar como fui e como sou, desvelando o meu ser!

Difícil. Não sei se seria fiel a todos os fatos, lembranças se perderam ao longo dosanos, outras ficaram guardadas como uma fotografia nas páginas da memória, não estoucerta que quero trazê-los à tona, talvez eu queira, há uma miscelânea de sentimentos queafligem meu coração nesse momento...

Sempre fui uma pessoa de riso fácil, otimista e cheia de sonhos, nunca tive grandesmomentos, no entanto, os poucos foram vividos com intensidade e emoção. Destes, possodizer um que trago bem vivo dentro de mim: o dia em que passei no vestibular 2004 da UFS,para cursar Letras Vernáculas. Foi um dia de alegria incomensurável, numa manhã “gris” deJaneiro todos os receios, ânsias e aflição foram dissipados, prevaleceram as lágrimas defelicidade da minha mãe, o sorriso e as batidas aceleradas do meu coração, foi um momentoúnico (diria mágico), porque era a realização de um sonho.

Não sei quando decidi cursar uma universidade, mas desde muito cedo sabia quequeria ter uma profissão que realmente amasse, acredito ter sido pelo fato de minha mãesempre colocar para minhas irmãs e para mim, que o estudo vinha em primeiro lugar e apesar

Page 32: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 31

de ter estudado todo o ensino fundamental e médio em escola pública e sofrido os percalçosque ela possui, nunca tiraram-me o prazer de estudar e conseguir mudar a minha vidaatravés dele.

É curioso, agora, quando relembro aquela manhã: imagens soltas passam pela minhacabeça, como um “trailer” de um filme. Lembro de como foi difícil chegar até ali e talvezpor essa razão tenha sido tão marcante. A concretude daquele sonho foi um misto de alegriae alívio, claro, o caminho da estrada só estaria começando, no entanto, eu já estava nele,isso é que era o importante.

O ano que antecedeu minha entrada na universidade tinha sido muito difícil, seria aterceira vez que eu iria fazer vestibular, já estava cansada, parecia que nunca iria passar...entrei em um curso pré-vestibular por causa de uma amiga de minha irmã, que deu a idéia defazer “cursinho” no mesmo lugar onde ela estava fazendo.

Foram dias ininterruptos de estudos; como eu não trabalhava, passava quase o diainteiro estudando (e as madrugadas também), comecei a estudar tanto que às vezes chegavaa sonhar com os assuntos, as aulas e até com a prova!

Aquele ano também foi incomum para minha família, todos mudaram sua rotina emminha função, houve uma comoção geral, era como se estivéssemos interligados em um sópensamento, mas sem cobrança, pressão, todos tinham decidido simplesmente sonhar omeu sonho e nada mais; sentia-me tão protegida por aqueles olhares de carinho e confiançaque eu pressentia quase sem perceber, vou conseguir...

O ápice de todo aquele esforço deu-se com o meu nome na lista dos aprovados; foi umgrande dia aquele, não houve espaço para tristeza, receio do porvir, sentia-me leve,transbordando alegria, estava nas nuvens (pode parecer piegas, mas foi assim)!

Hoje estou no último ano da universidade e essas reminiscências ainda pulsamintensamente dentro do meu ser. Vivi e vivo a UFS como se fosse o primeiro dia de aula. Naacademia fiz grandes amigos, conheci verdadeiros mestres, encontro muito saber eobstáculos; muitas vezes fiquei irritada com o sistema, desinteressei-me, voltei a me interessardois dias depois, pois sei que sonhos são assim, difíceis de serem realizados.

Em 2006 fui selecionada e entrei no projeto Conexões de Saberes que me levou parauma nova etapa de minha vida universitária. No projeto, integrei o pólo do pré-vestibular ecomecei a lecionar Literatura, isso foi de fundamental importância, porque vi que realmentetinha escolhido o curso certo, embora o ofício de ensinar seja árduo e cheio de empecilhos.Todavia, nem pensei nisso quando entrei pela primeira vez na sala de aula e vi aquelesolhares ansiosos e cheios de esperança; transportei-me para três anos atrás e vi-me refletidaem cada um deles, só que agora os papéis tinham se invertido, foi incrível poder viveraquele momento. Descobri então que todo esforço valeu a pena, porque “tudo vale a penaquando a alma não é pequena”. Acredito que posso fazer a diferença porque agora tragodentro de mim, mais concreto e vivo o sentimento de transformação e sobretudo “sonhos”(muitos) a serem conquistados!

Page 33: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

32 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Pedagogia Licenciatura.

Caminhada:

caminhar sem olhar para trás

Catia Matias dos Santos*

Minha vida! Difícil de falar tantos obstáculos, amarguras, mas em fim tudo ou quasetudo está bem. Gostaria de registrá-la a partir do acontecimento que mais me marcou. Poisé quando eu era criança, lembro com pouca nitidez, gostava muito de brincar no terreiro deuma casa de barro, lá no Adique num povoado de Malhador-SE. Era lá que eu moravajuntamente com meus irmãos e meus pais. Nós éramos muito felizes, até que um dia minhamãe decidiu se separar do meu pai, para nós, mais precisamente para mim, já que eu era afilha mais velha, com apenas 8 anos de idade, foi muito triste. Tive que escolher com quemficar, minha mãe foi embora, em busca de trabalho, minha irmã ficou com minha avó, meuirmão e eu ficamos com o nosso pai, um homem de sentimentos belíssimos, tinha tudo parase dá bem na vida, mas para ele ter o que comer era suficiente. Daí então, fomos morar emoutra casinha de barro agora um pouco mais distante. Meu pai alguns dias depois da separaçãocasou-se novamente, mesmo assim as vezes minha mãe vinha me visitar. Eu lembro que elaficava na casa de um tio meu, e mandava alguém me chamar, eu saía feito louca correndopela piçarra ao seu encontro. Depois de um tempo não lembro se foram anos, eu fiquei muitodoente, era catapora, meu pai, homem sofredor, não sabia mais o que fazer comigo e memandou para a casa da minha avó, então minha mãe voltou para cuidar de mim. A partir daínada fazia mais sentido, meu coração de criança foi endurecendo, sensibilidade já não sabiamais o que era isso. Tornei-me uma criança rebelde, revoltada com tudo e com todos, naescola uma aluna problema, uma aluna que trazia debaixo do braço um caderninho de 48folhas enrolado em um lápis na mão, piadinha a ouvir muitas as quais sempre reagi de formaagressiva. Nessa época, mainha trabalhava em três casas como doméstica e eu com apenas9 à 10 anos fazia favores para a vizinhança para ganhar um trocado. Durante o meu primeiroano na escola da cidade, Escola Municipal José Joaquim Pacheco, criei uma certa aversãoà escola, lugar cheio de regras as quais eu era obrigada a me adaptar, na terceira sériereprovei e mudei de escola. Na quarta série tive uma professora muito compreensiva,Alessandra era o nome dela, não sei dizer exatamente o que aconteceu comigo mas comeceia criar gosto pelo estudo, ainda muito pouco mas o suficiente para passar de série. Devidoa necessidade comecei a trabalhar como doméstica com 12 anos. Trabalhava de manhã eestudava a tarde, até então estudar para mim estava num segundo ou terceiro plano, porqueas necessidades básicas não tinham sido supridas, durante muitos anos na minha casa tivemos

Page 34: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 33

um prato principal, pirão de água com pimenta do reino e ovos, e agradecíamos muito porter o que comer. No ensino médio minhas amigas às vezes falavam de curso universitário eeu ficava calada, a verdade é que não sabia do que se tratava, só pensava que não poderiafazer, já que não tinha condições financeiras. Não tinha no meu município ensino médioregular, no 1º e 2º ano estudei no SOMEM, um projeto que ofertava um ensino médio pormódulos. Este contava com uma equipe de professores exemplar. Foi aí que comecei a mededicar ao estudo ainda não tinha um objetivo claro, mas tinha esperança de melhorar devida. Então comecei a estudar bastante, parei de fazer fachina e comecei a ensinar banca, nocomeço sem fins lucrativos. Concluí o ensino médio e fiz vestibular para “Letras Português”,escolhi este curso por identificação com a disciplina. A verdade é que eu me identificavamesmo era com a forma que a disciplina era lecionada pela minha professora no ensinomédio, então, uni a admiração com o gosto pela literatura, e fiz a escola, minha mãe conseguiuo dinheiro para pagar a taxa, sem confiar muito no investimento, mas enfim, fiz a prova einfelizmente não passei.

As coisas começaram a ficar difíceis para mim, mas em contrapartida passei a acreditarmais na possibilidade de passar no vestibular da UFSE. Pensei em fazer um pré-vestibular,mas só tinha em Itabaiana e se eu não tinha nem o dinheiro da taxa como poderia pagarpassagens para freqüentar o mesmo. Uma colega se encontrava na mesma situação e eu umcerto dia a chamei para montarmos uma escolinha de reforço escolar, pois é esse negóciodeu certo, nós conquistamos 22 alunos, R$ 10,00 por pessoa, para uma pessoa do interiorisso é muito, ou suficiente no nosso caso para fazermos um cursinho de final de semana,gratuito obviamente, o dinheiro adquirido serviu para livros, e pagar passagens. Tudo foidando certo para mim, fui isenta de taxa do vestibular, comecei a ter contato com a educaçãode Jovens e Adultos, e praticamente no mês a inscrição decidi prestar vestibular parapedagogia, e passei. Fiquei muito feliz, talvez as pessoas que estavam ao meu redor tenhamficado muito mais, pois demorou a cair a ficha, minha mãe falava para todos a novidade,mas ela não compreendia a importância do mesmo para mim. Já trabalhando comalfabetização de Jovens e Adultos, recebi dos meus familiares, namorado (e família), dosmeus alunos e colegas muita força. Eu ia e vinha todos os dias de Aracaju, para ensinar emMalhador. O que recebia era para pagar as passagens, mas Deus abriu muitas portas paraminha mãe, e ela vendendo frango em feira livre, percebeu o meu esforço passou a acreditarem mim, e passamos nós duas a construírmos o meu sonho, o nosso sonho. Nos intervalosdos contratos do meu trabalho eu vinha para a UFS de manhã trazia uma marmita, e biscoitose só voltava pra casa no carro dos estudantes às 23h. Quando não suportei mais o cansaço,fui aconselhada a pedir residência universitária e assim o fiz, vim morar em Aracaju, e pelaprimeira vez tive uma oportunidade de trabalho na UFS, no programa Conexões de Saberes.Quero dizer que para chegar aqui não foi fácil, trabalhei de doméstica, professora de banca,professora de EJA, costurei, bordei, negociei. Mas nem por isso desisti, no fundo nuncaperdi a esperança.

Sonhar é preciso, mas só a ação concretizará seus sonhos.

Page 35: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

34 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Artes Visuais.

Travessias:

da cegueira momentânea à noite da liberdade

Dilma Ramos Lira*

Amar é conceder liberdade ao objeto deseu AmorPermitindo que ele voe e retorne para osseus braçosE não prendendo-o em uma gaioladouradaAchando erroneamente que irá com issoprotegê-lo do mundo...E quem irá protegê-lo do mundo...E quem irá protegê-lo de si mesmo,Do Universo desconhecido que habitaem seu íntimo?Lembre-se de que você pode ajudá-lo adar os primeiros passosMas nunca poderá segurar as rédeas doseu destino...Dilma - Noite da Liberdade

Não é muito fácil contar a nossa própria história... é mais cômodo fantasiar amoresproibidos, discutir sobre política, liberdade de expressão, protestar contra os preconceitossociais que recaem sobre as mulheres... o mais engraçado é que já tentei contar a minhahistória de tantas formas e agora que realmente preciso falar sobre mim, NÃO SEI PORONDE COMEÇAR...

Sempre sonhei em ser escritora, publicar livros, romances, poesias, prender aatenção dos meus leitores como se eles estivessem conversando comigo e, para isso,tive que criar uma personagem, de personalidade forte, que pudesse falar dos maisdiversos assuntos sem se constranger: daí nasceu a Diva... não dava para ser escritorausando o meu próprio nome: Dilma. Tentei usar o meu apelido, Dinda, mas soavamuito infantil...

Page 36: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 35

Graças a Deus, fui uma criança esperada com muito carinho, o que me rendeu oapelido de “a desejada”, dado por minha avó que era louca por mim. Lamento que elanão esteja aqui, para compartilhar a minha nova vida de dona-de-casa, estudanteuniversitária e estagiária.

Nasci em Ilhéus-BA, na manhã do dia 05/01/1980. Meu pai era militar e foi transferidopara lá havia pouco tempo. O curioso é que quando minha mãe foi para a maternidade, o meupai estava de serviço no quartel e por isso ela foi levada para o hospital pelos nossos vizinhos,que já estavam avisados no caso de alguma emergência. Ele havia tirado férias para aguardaro meu nascimento, mas como boa baiana, a preguiça falou mais alto e eu só resolvi nascer navéspera do dia de Reis. Contam que mandaram celebrar uma missa em ação de graças por tudoter saído bem já que a minha mãe tinha mais de 40 anos quando eu nasci. Minha madrinha fezaté uma feijoada para comemorar a minha chegada com a vizinhança. E após o nascimento daminha irmã, fomos para Recife até virmos morar em Aracaju.

Chegamos aqui em junho de 1986, em plena Copa do Mundo. O meu pai nuncaesqueceu esta data já que o Brasil foi eliminado após um pênalti perdido por Zico.

Desde a infância, sempre fui uma boa aluna, apesar de ser uma criança muito tímida.Sempre estudei em escolas públicas apesar de poder ser considerada de uma família declasse média. Logo após concluir o segundo grau, prestei vestibular de ousada e fiqueicomo excedente para Jornalismo apesar de ter estudado sozinha, com um material que omeu pai comprava em bancas de jornais. No ano seguinte, entrei em um pré-vestibular e fuiaprovada em 2° lugar para o curso de Arte-Educação que, posteriormente, viria a serreformulado, mudando o seu nome para Artes Visuais.

Na transição entre a minha adolescência e a fase adulta entrei em depressão. Foi a fasemais difícil da minha vida, época na qual muitas vezes desejei morrer. Já passei por dores eprovações que muitos desconhecem já que me vêem sempre com um sorriso no rosto e umolhar confiante, sempre incentivando a todos a correrem atrás dos seus sonhos... mas apesarde tudo, havia uma luz dentro de mim que me guiava e que sempre me socorria nos momentosmais difíceis. Fui muito humilhada, pisada, rejeitada, contudo, Deus me fez enxergar que aminha vida poderia ser muito mais do que aquilo e que no meu egoísmo de olhar apenaspara mim, eu acabei magoando pessoas que me amavam muito e que sofriam com a minhadoença. Fico feliz por essas palavras, hoje não me doerem tanto... um dia, uma amiga mefalou que era preciso olhar para as minhas feridas para que elas cicatrizassem. No começofoi muito difícil. Era como se eu enfiasse um punhal dentro de mim sempre que tocava emcertos assuntos. Depois, comecei a sentir apenas arranhões, semelhantes aos espinhos dasflores. E hoje já posso sentir o perfume das rosas... agradeço a Deus pelos meus grandesamigos, que nunca me abandonaram, que sempre me apoiaram e que continuam me apoiandoem todos os momentos...

A minha vida mudou muito quando conheci uma certa pessoa... por ela larguei tudoque eu conhecia e acreditava para viver uma grande história de amor... no começo tudo eramuito difícil e não tínhamos nem mesmo um lugar para vivermos juntos. Através de muitaluta, Deus foi nos mostrando os caminhos que deveríamos seguir, e hoje somos muitofelizes... sou muito apaixonada e grata à vida por ter conhecido o Meu Pequeno, a jóia maispreciosa que Deus me deu, o meu amigo, o meu Amor, o meu eterno namorado, aquele comquen eu divido as minhas alegrias e as minhas tristezas... não gosto nem de imaginar comoseria a minha vida sem ele...

Page 37: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

36 Caminhadas de universitários de origem popular

Outra grande mudança na minha vida foi ter começado a trabalhar no ProgramaConexões dos Saberes. Nunca havia trabalhado e, a partir de uma situação de desespero,encontrei a oportunidade de me inserir no mercado de trabalho de uma forma bastanteproveitosa, já que para muitos bolsistas como eu, esse projeto foi como um grito de liberdade,nos ajudando a dar os primeiros passos em direção a um futuro que espero seja promissorpara todos nós.

Sou casada ha três anos e já passamos por muitos constrangimentos morando em casasalugadas. Certa vez, mudamos para uma casa com os fundos para a maré, praticamente semquintal. Dávamos bom-dia para os caranguejos, enquanto rezávamos para que não chovesse,já que entrava água para todos os lados. O cano da pia de cozinha tinha que ser retiradoquando queríamos lavar roupa, pois apesar de termos um tanquinho, não tínhamos instalaçãopara ele e a casa nem possuía uma lavanderia onde eu pudesse lavar as nossas roupas.Estávamos cheios de dívidas que fomos saldando com muito sacrifício, até que eu decidique deveria trabalhar fora para ajudar o meu marido, que estava se acabando no trabalho devigilante e de garçom. Sempre fiz tudo o que pude para ajudar, economizando o máximoque podia, mas chegou uma hora em que tive que partir pra luta.

Comecei a procurar estágios pela universidade, mas sem sucesso, até que uma colegame avisou da inscrição na véspera do último dia para a entrega dos documentos. Paraconseguir reunir todos os papéis, contei com a ajuda do meu pai e do meu marido queprovidenciaram tudo. Fiz a inscrição bastante ansiosa e cheia de expectativas. Tive umagrande alegria quando soube que fui selecionada e que poderia colaborar com o orçamento emcasa. Além disso, me senti útil em ter uma ocupação, pois, por mais que faça, uma dona-de-casanunca é valorizada por tudo que faz. Eu me sentia muito vazia e triste com essa situação ehoje me sinto mais livre para opinar sobre orçamento doméstico, além de ser vista de umaforma diferente já que trabalho fora. Sempre quis ser uma mulher independente mas nãoachava os meios para tal.

Me inscrevi para dar aulas no pré-vestibular, contudo, fui selecionada para outra área,o que me decepcionou um pouco. No entanto, fui muito bem acolhida no pré-vestibular doCODAP, pelos coordenadores D. Fátima e pelo professor Genivaldo, pessoas muito especiaiscom as quais aprendi, entre outras coisas, que é possível trabalhar com competência semperder o bom humor, num clima leve de muito trabalho e descontração. Trabalho ainda comas minhas companheiras Fátima e Sara, estagiárias muito dedicadas, que tornam o climamuito alegre e divertido... sei que um dia sentirei muita saudade delas, porque trabalhamosem grupo, sempre unidas e nunca tentando puxar o tapete umas das outras, tentando atenderos alunos e os professores da melhor forma possível.

Agora, finalmente, surgiu a oportunidade de dar aulas de Literatura em breve, o queme deixa muito ansiosa, pois sempre sonhei com isso. Não acredito que isso está serealizando, porque sou estudante de Artes Visuais, conheço todos os preconceitos que rondama minha área, e muitos acreditam que os artistas são meros artesãos, completamente alienadose sem nenhuma cultura ou conhecimento específico. Essa é uma luta pessoal e diária:provar que os arte-educadores são capazes de trabalhar integrados às mais diversas áreas doconhecimento, sem serem humilhados e subestimados nas suas capacidades intelectuais.

Quanto ao projeto, aprendi o valor de se trabalhar em grupo, respeitando aindividualidade de cada um, contribuindo para que mais jovens de origens populares possamse sentir contemplados com o acesso a uma educação pública e de qualidade.

Page 38: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 37

Acho muito importante o caráter de inclusão presente no Conexões, que atua comouma política pública com o caráter de tentar promover mudanças. E aproveitando aoportunidade, gostaria de terminar a minha apresentação com outro texto meu que falasobre a educação, demonstrando que devemos estar cientes de que, para que as transformaçõesaconteçam, é necessário o empenho pessoal de cada membro integrante desse processo, nãobastando apenas colocar a culpa no governo quando algo não vai bem.

Numa terra de analfabetos,

quem sabe ler é rei...

Idéias geniais,Somos filósofos e pensadoresAchando que poderemos mudar o mundoCom nossas teses de doutorado...Mera ilusão,Suntuosa utopia,Como poderemos mudar a nação,Se não oferecemos nem o básico para a educação?Somos ideólogos geniais,Sociólogos importantes,Como poderemos conhecer o povoSe estamos tão distantesDa realidade que atormenta e mata os nossos sonhosA cada emenda da Constituição?Vamos celebrar a alegriaDe ver “TODA CRIANÇA NA ESCOLA”Mas não como agora,Sem estrutura e alimentação...Vamos preservar os nossos velhosQue não têm culpa da sabedoriaQue adquiriram com o passar dos anosSerá mesmo o Brasil “O PAÍS DO FUTURO”?E que futuro?Como poderemos julgar o mundoSe não temos uma medida para nós mesmos?É fácil culpar o governo,Fechando os olhos às nossas responsabilidadesQue não são poucas e nem dispensáveisSomos os únicos responsáveisPela vida que nós vamos ter...

Page 39: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

38 Caminhadas de universitários de origem popular

Ainda há tempo de rever o passadoTendo os olhos no futuroObservando o que conta a história,Evitando que os mesmos errosVoltem a acontecer...

Diva Ariadna

Page 40: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 39

* Graduanda em Enfermagem.

Assim eu vim ao mundo

Elizangela Nunes de Souza*

Eu nasci na Bahia, na zona rural do pequeno e jovem município sertanejo de Fátima.Fui a décima oitava vida que meus pais colocaram no mundo. Minha mãe, não queria maisfilhos, mas eu vim. Aos quarenta e um anos, ela já não recebia com alegria os comemorativosde mais uma gestação. Cansada de tantas outras, dezessete gravides; aquela, que seria aúltima, trouxe-lhe muita tristeza. Pensou em impedir, mas minha avó materna logo tratou deaconselhá-la: ora, minha filha, este pode ser um filho que irá te dar muitas alegrias. Minhamãe me contou isto quando estava com sete ou oito anos de idade. Ela disse que tevedepressão, chorava muito, teve uma gestação doentia, tanto que, crendo que morreria noparto, me prometeu a uma vizinha a quem chamo de tia, tia Dalena.

Tudo isso teve um impacto muito forte em minha vida: entrei em crise, tipo aquelas defilhos adotados que se sentem rejeitados pelos pais verdadeiros. Foi assim que me senti,rejeitada. Podia não ter vindo ao mundo... minha mãe não me queria... contudo, como disse,foi uma crise, e como tal foi passageira. Hoje, entendo, perfeitamente, o contexto no qualnasci e as dificuldades pelas qual minha mãe passou naquela época. Embora acredite que decerta forma eu sinto essa rejeição, ficou como um marco nos relacionamentos de hoje, ficosempre me questionando quanto à aceitação de uma nova amizade. E isto a Psicologia doDesenvolvimento explica como uma possível contribuição do período intra-uterino para aformação da personalidade do indivíduo.

Ah! Desculpe-me, caro leitor, por não ter me apresentado. Se já não o fiz, o façoagora. Meu nome é Elizangela Nunes de Souza, tenho 24 anos e sou gente desde sete deagosto de mil novecentos e oitenta de dois. Filha do amor de Maria Nunes de Souza eJoaquim Calixto de Souza que, há muito tempo, já não são mais amores, mas marido emulher. Minha mãe, uma Maria, assim como tantas nordestinas, uma Maria Guerreira,agricultora e dona-de-casa. Festejou dezoito gestações, ou nem todas, algumas simoutras não. Viu onze filhos não vingarem, se foram entre abortos – acredito que devidoàs atividades extenuantes e às preocupações – viu filho morrer do mal de sete dias,viu filho morrer com meses de vida. Hoje, sabemos que o tal mal era o tétano queacometia o recém-nascido devido, principalmente, ao uso de materiais cortantes, semcondições nenhuma de assepsia, para seccionar o cordão umbilical. Por sorte, esse riscoeu não corri, pois nasci no hospital da cidade de Cícero Dantas, a única em casa a teresse privilégio.

Page 41: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

40 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu pai, para não ser ríspida, gostaria de não mencioná-lo. Mas ele não merece sercitado. Desculpe-me, amigo, pela dureza das palavras. Se quiser tem licença para interrompera leitura, passe para outro capítulo, ou mesmo, se tiver muito chato, prossiga à leitura deoutro conexista. Olha! Ficou, né! Eu quase sabia que iria continuar. Se você é filho ou filhade um homem, um cara pobre ou não tão pobre, mas que é alcoólatra e mulherengo, meentenderá. Agricultor, plantador de feijão, milho, mandioca e, por algum tempo fumo;marchante e bodegueiro. Não seríamos tão pobres se ele fosse um homem de bem. Mas, não.Ele era o cara que ia para a feira na cidade e por lá ficava dois, três, quatro dias esbanjandoo dinheiro da safra. E o que teríamos com fartura da nossa roça acabava antes do outroinverno; aí ia minha mãe pedir emprestado na casa dos vizinhos.

Não menos pior, era violento. Quando chegava a casa bêbado, gritava e insultavaminha mãe. As noites de paz eram interrompidas quando ele chegava. Eu e meus irmãoschorávamos apavorados e como que compartilhando a dor de minha mãe, os vizinhos, porvezes, se assustavam e nós, por vezes, éramos obrigados a fugir de casa e dormir no mato.

A escola em casaMeus pais não estudaram em escola regular, porém, aprenderam a ler e a escrever. Meu pai

era do tipo que dizia que o estudo não levava a lugar algum, já minha mãe fez o possível e nãopossível para que seus filhos pudessem estudar. Dos sete irmãos que vingaram, um não estudouporque era doentio, tinha problemas de audição e de visão. Quatro freqüentaram a escola até aquarta série. Outra, Rosângela, concluiu o ensino médio e eu tive a graça de chegar até o ensinosuperior. Rosângela saiu de casa aos nove anos de idade para morar na cidade com uma prima.Lá, minha irmã cuidava de três crianças e teve a oportunidade de estudar.

Eu também saí de casa, aos dez anos. Porém, peço a sua permissão o que aconteceu umpouquinho antes. Ainda pequenina diziam que era uma garota esperta, entrei na escola aoscinco anos. Estudei o “ABC”, a alfabetização e depois fui para a 1ª série do ensinofundamental. Foi tudo muito difícil, não que não gostasse de ir para a escola, sempre tinhaalegria e um sorriso estampado no rosto. É que, na verdade, não tinha escola, durante muitotempo a sala de aula foi a varanda da casa da professora. Carteiras? Só chegaram bem maistarde , no início era mesmo bumbum no chão. A nossa mestra a quem rendo minha homenagempela dedicação e amor ao magistério tinha um irmão com distúrbios psiquiátricos, por issoera necessário prendê-lo num quartinho, pois ao contrário, ele rasgava os deveres e davamãozada em quem ficasse de bobeira, Zé Raimundo era o nome dele. Mas tudo isso nãoimpediu que nossa mestra continuasse na sua missão de dar aulas. Para estudarmos,caminhávamos alguns quilômetros, contudo, não espere que lhes diga que a distância eraruim, pois só tenho boas lembranças. Recordo-me da alegria do primeiro ano que acompanheimeus irmãos mais velhos. Era uma festa... íamos todos juntos, estrada afora, eu meus irmãos,meus primos e meus vizinhos, que em cada casa que passávamos surgiam mais e mais: doisnuma casa, três em outra, quatro em outra e, desse modo, o grupo crescia. Aumentavamtambém a algazarra, as brincadeiras e os corajosos que, pela estrada e arredores, roubavamfrutas típicas, tais como; umbu, manga, goiaba, caju e a festa aumentava.

Na década de noventa, passamos para a escola recém-construída chamada de Dé Pereira,um tradicional fazendeiro da região. O prédio era constituído de cozinha, dispensa, banheirose uma sala de aula na qual nossa mestra continuou lecionando do “ABC” à 4ª série doensino fundamental. Mas eu estava ali de passagem, saí antes do que imaginava. Aos dez

Page 42: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 41

anos de idade, saí da minha casa para a qual nunca mais voltei. Apesar da tenra idade nãochorei, fato que causou admiração. Não encontrava motivo para tristeza, ao contrário, estavafeliz, estava realizando o sonho de continuar estudando, então, para que as lágrimas? Fuimorar com duas velhinhas, minhas tia Zefa e tia Freira, mas por vontade de tia Nazinha aquem sou eternamente grata. O que sou e onde estou agradeço a ela que, desde cedo, meincentivou com seus carinhosos elogios e votos de confiança.

Foi na casa de tia Zefa e tia Freira onde vivi a minha adolescência, dos 10 aos 18 anose estudei da 4ª série ao 3º ano do ensino médio. Delas, recebi a educação religiosa e dosbons costumes. No primeiro ano, fui para o colégio municipal João de Souza Gouveiaporque minha irmã já tinha estudado lá. Tinha medo de não acompanhar o ritmo de estudospor ter vindo de uma escola da roça, mas foi engano. Dediquei-me bastante e na terceiraunidade já estava passada.

No ano seguinte, fui para um Colégio Estadual, era o melhor colégio público dacidade e também o mais difícil de ser aprovado. Não tive medo, fui e nunca reprovei, nemtampouco fiquei em recuperação. Nas reuniões de pais sentia falta de minha mãe, no entanto,era muito trabalhoso para ela ir à cidade só para esse fim, e não queria dar essa preocupaçãoa ela. Elide, a diretora, sempre cobrava a presença das outras mães, mas nunca da minha. Euqueria ser cobrada, mas como sempre fui comportada, ela sempre dispensava minha mãe,dizia que não era necessário.

Na 5ª série, tudo era novidade, colégio maior, novas matérias, muitas matérias... umprofessor para cada, aula de inglês, tudo era diferente. Nesse ano a professora de matemáticaera “carrasco”, mas consegui aprovação direta, sem ir para prova de recuperação. Fuicolocada na 5ª B, sala dos repetentes e bagunceiros; como era muito tímida, fiquei isoladana sala. Para minha felicidade, a professora Lindete conseguiu transferência para a 5ª A.Nesta turma, fiz amizades, duas das quais foram minhas colegas até o 3º ano e são até hojegrandes amigas.

Passou a 6ª, a 7ª e finalmente, a 8ª porque tanto esperei. Foi, realmente, um anoespecial: o colégio foi reformado, ganhou sala de vídeo, uma quadra. Esta, na verdade,era só o espaço depois da terraplanagem. Lá brincávamos de vôlei, futebol e “baleou”.Era o último ano no Navarro de Brito, o melhor de todos. Montamos peça de teatro, nofim do ano, foi a vez de encenarmos o nascimento de Cristo. Fiquei muito feliz porquefui eu que montei a partir de uma bíblia de minha tia e ficou um encanto, tanto quereapresentamos três vezes.

Saí do Navarro com grande pesar, queria continuar lá, mas não era possível, só tinhaensino até a oitava série. Fui, então, para o Colégio Municipal, não gostei. A relação com osprofessores e com os colegas era diferente, eles eram menos amorosos, mais distantes. Oensino era mais precário. Enquanto no Navarro, na disciplina de Português, tinha lidoromance, visto análise sintática, regência, no Municipal, tenho a impressão de que só estudeiortografia e classes de palavras nos três anos.

No 3º ano, comecei a trabalhar numa farmácia e pensava em fazer um curso técnico deenfermagem. Não tinha noção do que era universidade. Apenas três colegas, que os paistinham melhores condições financeiras, falavam em morar em Salvador para continuar osestudos. Passei a ter inveja, inveja de quem podia estudar. Pedia ajuda a Deus, pois sabia queminha mãe jamais poderia me manter na capital. Minha esperança era alimentada por umvelhinho que sempre me dizia que todos têm uma oportunidade na vida e que eu teria a

Page 43: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

42 Caminhadas de universitários de origem popular

minha. Depois que conversava com ele, chegava em casa e rezava pedindo a Deus a sabedoriade reconhecer e a coragem de aproveitar a oportunidade quando ela chegasse. E assim eusonhava, sonhava... hoje, digo com convicção que os sonhos é que nos guiam, o sonho éque nos faz buscar algo que não existe, algo que está além de nós, o sonho é algo que nosalimenta e que nos dá força.

Terminei o ensino médio e continuei trabalhando, sem perspectiva de estudar mais.Em fevereiro do ano seguinte, surgiram boatos que a prefeitura iria abrir uma casa deestudante em Aracaju. Não pensei duas vezes, pedi demissão do trabalho, no outro dia jáestava na Secretaria de Educação, fui uma das primeiras a realizar inscrição. Minha mãeacolheu a idéia de imediato pois sabia que era o meu sonho. Outras pessoas, colegas,criticavam porque a casa iria abrigar homens e mulheres e não ficava bem para umamenina de família morar com homens, “ficaria mal falada”. Isso me entristeceu, mas nãoabalou minha decisão.

A Universidade pode ser uma realidadeVim para Aracaju, onde ainda moro com mais onze pessoas num apartamento mantido

pela Prefeitura. Chegando aqui, matriculei-me num pré-vestibular e fui em busca de emprego.No início queria trabalhar o dia inteiro, depois vi que, se assim o fizesse, não teria tempopara estudar. Quando tive noção do extenso programa do vestibular, do qual estimo terestudado uns 5% no Colégio, resolvi não trabalhar. Decidi-me, logo, prestar vestibular paraEnfermagem, mesmo sabendo que era um curso muito concorrido. Me “atirei” nos livros eapostilas, quando sentia sono ou cansaço, lembrava que iria concorrer por quarenta vagascom quem sempre estudou em bons colégios particulares e que estavam vendo o assunto nopré pela segunda vez, então eu tinha que compensar estudando ainda mais. Não saía paralugar algum, nem à praia eu ia, só estudava. Aliás, ocupei todos os dias da semana, desegunda a sexta-feira tinha aula, sábado era revisão e domingo entrei num curso particularde matemática e física.

Fiz o primeiro vestibular, não passei, fiquei como vigésimo excedente. No ano seguinte,entrei em outro cursinho e sabia que precisava estudar mais. Porque também era minhaúltima chance, se não passasse perderia o direito de permanecer na casa do estudante.Embora existisse a “pressão psicológica” de ser aprovada naquele vestibular, foi um anoagradável, o novo curso do pré me fazia lembrar do Navarro. Era uma Instituição pequena,mas seu Ivan, o dono, era muito presente, conversava e incentivava muito os alunos. Saíamosnum grupo de cinco pessoas para o mesmo pré-vestibular, caminhávamos uns trinta minutos,não íamos de ônibus para reduzir o gasto. Recebia ajuda de tia Freira, tia Nazinha e minhamãe que me dava mais da metade do seu salário.

Chegar à UniversidadeQue alegria! Que felicidade! Fui aprovada em 13º lugar, no curso de Enfermagem

bacharelado na Universidade Federal de Sergipe. Em casa, meus pais tiveram a desbotadaalegria de quem não sabe o que é passar no vestibular de uma Universidade Pública, foicomo se fosse da 6ª para 7ª ou outra qualquer. Na casa de tia Nazinha, foi o inverso, fuiparabenizada pelo enfermeiro da equipe, minha prima, Sonia, não economizando nos elogios,dizia às amigas que eu tinha passado na Universidade Federal. Isso me orgulhava e me faziasentir recompensada pelos sacrifícios.

Page 44: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 43

O primeiro semestre na Faculdade foi como estar vivendo um sonho, um conto defadas. Estudar Anatomia, os ossos com seus forames, sulcos e protuberâncias, os músculos eos órgãos; ver no atlas e nas peças era um encanto. Contudo, em meio a tanta felicidadeexistiam dificuldades, livros caros, muita xérox, transporte alimentação, as despesas sóaumentaram. Imaginava que, quando entrasse na Universidade, ia poder trabalhar, mas oshorários irregulares com aulas pela manhã e pela tarde não permitiam conseguir um empregono comércio nem no shopping. Pensei, então, que logo ia poder arrumar um estágio, mastambém as empresas de estágio requeriam 30 horas semanais o que complicava naacomodação de horários. E assim eu fui vivendo entre uma dificuldade e outra na esperançade conseguir alguma ocupação com remuneração. Foi nesse contexto que me escrevi noConexões de Saberes, pois poderia cumprir uma carga horária de 20 horas à noite. Quandofui chamada, fiquei muito feliz porque ia poder deixar de pedir dinheiro a minha mãe quetem como renda um salário-mínimo e ainda dividia comigo. Hoje, sei que a finalidade doPrograma é sim ajudar estudantes carentes a permanecerem no ensino superior através dasbolsas, mas entendo que vai muito além e que tem uma proposta mais ampla de inclusãosocial nas Universidades Públicas do Brasil.

Page 45: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

44 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Física.

Diário de uma estudante

Emanoela Gonçalves Ramos*

Meu nome é Emanoela Gonçalves Ramos, nasci em 31 de março de 1985, na cidade deAracaju-Sergipe, nordeste brasileiro. Escrevo aqui relatos de minha história, uma históriade sonhos e esperança, coragem e trabalho, perdas e conquistas. Enfim, vou relatar oscaminhos por que passei para chegar até aqui; vou lhes contar a Minha Caminhada.

Sou a filha do meio de uma família de cinco integrantes, os quais fazem parte deminha história assim como, faço parte da deles com quem você, leitor, vai se deparar nodesenrolar de minhas linhas. José (meu pai), Lena (minha mãe), Elaine (irmã mais velha) eKatiuce (irmã mais nova). Essas são as pessoas mais importantes de minha vida e muito doque sou devo a elas.

Meus pais sempre foram pessoas humildes e ambos cresceram trabalhando na roça.Minha mãe nasceu no município de Lagarto-Sergipe e aos 11 anos veio com a família morarna cidade de Aracaju; meu pai nasceu no sertão do Piauí e aos 23 anos vendeu quase tudoque tinha para aventurar melhores condições de vida nessa mesma cidade. Foi aí que eles seconheceram e casaram. Ele investiu todo dinheiro que havia trazido consigo para entrarcomo sócio na construção de uma loja, que depois de alguns anos veio a falir e o que restoudisso foi uma pequena casa onde eles moraram. A situação financeira estava ruim, minhamãe sem trabalho e grávida de Elaine, meu pai perdeu quase tudo que tinha e estavatrabalhando duro para sustentar a casa e foi nesse contexto que depois de um pouco mais dedois anos eu nasci, com uma diferença, a situação financeira estava ainda pior, pois agoraeles tinham duas filhas para criar.

1º CAPÍTULO: as primeiras linhas de meu diário. Como tudo começou?As primeiras lembranças que tenho de minha infância foram de quando eu tinha três

anos de idade. Estava começando a ir para a escola. Lembro que ia a pé, e que era longe.Lembro também que tinha uma professora loura que parecia com a Xuxa e que eu medivertia muito.

Minha mãe conta que naquela época, a escola pública que havia próximo a nossa casanão era boa e que, por causa de seu antigo sonho de estudar e ter uma profissão, queinfelizmente ela não conseguiu realizá-lo. Queria muito que, um dia, alguma de nóspudéssemos realizar o sonho dela. Procurou então outra instituição e matriculou primeirominha irmã Elaine e no ano seguinte a mim em uma escolinha particular simples no nosso

Page 46: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 45

bairro mesmo, só que a quase 2 km de distância de nossa casa. Percorríamos esse caminho apé todos os dias, ida e volta e o pior era a ida porque estudávamos à tarde e saíamos de casapor volta de meio-dia. Apesar de todo sacrifício financeiro e físico que se enfrentava e dasrisadas e deboches que minha mãe escutava de familiares e vizinhos por sermos pobres eestudarmos em escola privada, ela nunca desistiu, e continuou acreditando e investindo emnossa educação por vários anos. Lembro que quando meu sapato estava apertado e minhamãe não podia comprar outro, eu ia de chinelo até à porta da escola e calçava o sapato sópara assistir à aula.

2º CAPÍTULO: mais dinheiro, menos atenção!Passados cinco anos desde o meu nascimento, finalmente meu pai conseguiu montar

seu próprio negócio, abriu a frente de nossa casa, comprou um balcão, algumas mercadorias eaos poucos montou uma pequena venda, pequena mesmo. Daí em diante, minha mãe já tinhaonde trabalhar. Ela passou a tocar a venda enquanto meu pai trabalhava fora o dia todo.

Eles trabalhavam muito e não tinham tempo para cuidar da gente, então cuidávamosumas das outras. Eu e minha irmã Elaine já andávamos sozinhas até à escola e ajudávamosno serviço doméstico. Passados dois anos, a situação financeira finalmente começou amelhorar e meu pai já conseguia juntar algum dinheiro, o que ajudou bastante para quecontinuássemos na escola, pois agora ele pagava mensalidade das três filhas.

Quando completei nove anos, viajei com toda minha família para a cidade natal demeu pai no Piauí. Foi quando, finalmente, pude conhecer minha avó paterna e vários outrosparentes os quais nem sabia que existiam. Passamos pouco tempo lá, acho que menos deuma semana, tínhamos que voltar logo, mas deu para conhecer bastante gente. Lembro que,por causa do trabalho, meus pais nunca compareceram a nenhuma reunião ou evento docolégio, mesmo quando eu chorava para que minha mãe me fosse ver dançar quadrilha ouno dia das mães, ela nunca podia e as vezes que ela tentou ir sempre chegava tarde, quandojá tinha acabado quase tudo.

3º CAPÍTULO: a justiça tarda e falha!Apesar de nossa condição financeira ter melhorado um pouco, ainda passávamos por

diversas dificuldades. Eu e minhas irmãs estávamos crescendo e as necessidades estavamaumentando, inclusive a de ter uma casa maior e ampliar a venda, o que era primordial nosplanos de meu pai. Lembro-me de que, durante o fim da infância e toda a adolescência,meus livros, fardas, mochilas etc, eram de segunda mão, porque como minha irmã maisvelha estudava uma série antes da minha eu sempre ficava com a maioria das coisas usadaspor ela, muitas vezes me sentia incomodada quando percebia que tudo meu era velho, euera pequena e talvez por isso não entendesse.

Em 1997, meu pai comprou um terreno grande, a fim de construir uma casa e um postocomercial e com isso melhorar de vida. O que ele não sabia é que esse terreno nunca serianosso de verdade. Foi com as economias de vários anos de trabalho, os sonhos e a esperançade uma vida melhor que meu pai entrou na maior roubada de sua vida. Comprou umapropriedade que, sem ele saber, era ocupada por um parente do próprio vendedor. Pagoutodos os impostos, fez escritura, mas quando ia começar a construir a casa, uma surpresa, oinvasor não queria sair. Então, meu pai começou a gastar o dinheiro que iria usar na construçãode nossa casa para pagar advogados e conseguir resolver o problema com a ajuda da justiça.

Page 47: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

46 Caminhadas de universitários de origem popular

Um ano se passou e não se resolveu nada, foi quando meu pai descobriu que o processo nuncaexistiu e que por ingenuidade dele, o primeiro advogado desapareceu com seu dinheiro.Então um segundo advogado foi contratado, dessa vez foi indicado por um conhecido.Enquanto esse problema não se resolvia, nos mudamos para uma casa maior, alugada. Cincoanos se passaram e acabamos perdendo a causa e todo o dinheiro investido, pois o invasor seutilizou da ajuda de políticos para, de maneira absurda, conseguir se apossar do terreno. E láse foram todos os nossos planos, sonhos e promessas cultivados por tantos anos.

4º CAPÍTULO: minha vida em meu bairroDepois de perder tudo que tínhamos, todos em minha casa só pensavam em conseguir

recuperar o que tinha perdido criando uma nova fonte de renda. Nós morávamos de aluguel,em uma casa que tinha um ponto comercial na frente, onde meu pai montou uma mercearia.Tentamos tudo. Minha mãe que já trabalhava na mercearia o dia todo, começou a fornecermarmitas, passou a vender cosméticos, jóias, e vários outros tipos de artigos; meu pai passacada vez mais tempo no trabalho, eu e minhas irmãs também trabalhávamos em casa, tantofazendo o serviço doméstico quanto substituindo minha mãe em muitas atividades. Lembro-me muito bem de minha rotina nessa época: acordava cedo, meu pai e minha mãe já estavamtrabalhando, tomava café da manhã, arrumava a casa e ia trabalhar na mercearia para substituirminha mãe que logo cedo começava a cozinhar para fazer a entrega das marmitas meio-dia.Eu sempre levava meus livros comigo, pois o único tempo que eu tinha para estudar duranteo dia era o intervalo entre um cliente e outro. Às vezes almoçava com meu pai, e geralmenteesse era meu único contato com ele durante todo o dia, porque ele saía muito cedo paratrabalhar e chegava tarde, quando eu já estava dormindo. À tarde eu freqüentava a escola equando chegava cansada por conta da distância que percorria a pé da escola para casa, nãotinha tempo para nada, jantava bem rápido e voltava para a mercearia, ia ajudar minha mãecom os clientes até a hora de fechar, lá para as oito horas da noite. E quando tinha prova naescola o resto da noite eu tirava para estudar.

Durante a noite, geralmente, ficávamos todas juntas na mercearia: eu, minhas irmãs eminha mãe, pois meu pai chegava tarde do trabalho. A criminalidade em meu bairro eracrescente, e fomos assaltadas algumas vezes. Era terrível quando isso me acontecia: euficava muito assustada, não podia ver nenhum movimento estranho que já pensava que erauma arma apontada para mim, ficava apavorada. Mas não era só em minha casa que aconteciaesse tipo de coisa, em meu bairro tinha de tudo: tiroteio pela madrugada, furtos a qualquerhora do dia, assassinatos, assaltos, tráfico de drogas e muitas famílias inocentes como aminha convivendo com tudo isso.

Perdi contato com antigas amigas de infância que moravam na mesma rua que eu,algumas engravidaram, outras casaram e pararam de estudar, já não havia mais tanta coisaem comum entre nós.

5º CAPÍTULO: o quase seqüestroEu tinha quinze anos quando aconteceu.Em uma noite normal como qualquer outra, pára um táxi em frente a nossa casa e desce

uma mulher com algumas sacolas na mão: ela entra na mercearia dizendo que o taxista aexpulsou porque ela não tinha o dinheiro para pagar. Comovida com a história minha mãeofereceu dinheiro para que ela pudesse voltar para casa; ela agradeceu e foi embora. Um mês

Page 48: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 47

depois a mesma mulher aparece e pergunta se minha mãe ainda se lembra dela, agradecepelo gesto de bondade, e diz que, por consideração, passaria a fazer compras em nossa casa.Começou então a escolher, depois que terminou, sacou um cheque para pagar. Preocupadacom a validade do cheque, minha mãe disse que não aceitaria o pagamento em cheque,então a mulher fala que está morando em uma casa na rua ao lado e pede para que minha mãechame uma de suas filhas para acompanhá-la até sua casa e pegar o valor. Minha mãe mechama e pede para que eu ajude a mulher a levar as compras e trazer o dinheiro. Sem saberde nada, vou. Andamos, andamos... e a mulher começou a me contar que era amiga de meuspais de longa data e que da última vez que tinha me visto eu era bem pequena... andamos,andamos... e finalmente paramos em frente a um galpão que estava fechado, daí a tal mulherme disse que iria esperar ali sua irmã e seu cunhado que viriam de carro e estavam com odinheiro para pagar as compras. Foi quando eu percebi que ela estava bem nervosa e tentavafalar com alguém pelo celular. Olhei para meu relógio e vi que já estava quase na hora de mearrumar para ir à escola, esperei uns dois minutos e não dava mais, se ficasse perderia um diainteiro de aula. Foi quando eu percebi que ela estava segurando 50 reais, achei estranho (seela está com dinheiro na mão por que quer que eu espere sua irmã?), peguei todas as sacolasque estavam com ela e disse que não poderia ficar esperando porque tinha aula. Ela aindatentou me convencer, mas fui embora. No caminho para casa comecei a pensar em umadesculpa para dizer a minha mãe, a fim de justificar por que eu havia tomado as comprasdaquela mulher “amiga de meus pais”, quando um carro de polícia passou bem rápido pormim, me assuntando. Olhei para minha casa preocupada, percebi que a polícia parou lá eque tinham algumas pessoas. Fiquei preocupada e fui correndo. Só quando cheguei a casafui perceber que aquela mulher era uma farsa, nunca foi amiga de meus pais, era tudomentira. Minha mãe me abraçou chorando e agradecendo a Deus por eu estar bem. Foi umatentativa de seqüestro. Poucos meses depois, uma menina de nove anos foi seqüestrada, elamorava na mesma rua que a nossa e foi levada por uma pessoa que se passou por uma amigade trabalho da mãe, a menina nunca foi encontrada.

6º CAPÍTULO: ingresso na universidadeEm 1999, quando estava cursando a oitava série do ensino fundamental, a Universidade

Federal de Sergipe (UFS) adota o PSS (processo seletivo seriado), e a idéia de fazer umvestibular que parecia tão distante começa a ficar muito próxima, pois, no ano seguinte,faria minha primeira prova referente ao primeiro ano. Apesar de ser uma boa aluna e nuncater reprovado ou ficado de recuperação, minha colocação no PSS do 1º ano não correspondeuas minhas expectativas, mas era tudo tão novo e eu confesso que não entendia muito bemcomo funcionava essa nova prova. Fiz o PSS referente ao 2º ano, no ano seguinte percebique minhas maiores pontuações eram nas provas de Geografia. Essa observação foi o queme levou a escolher o curso de Geografia, apesar de gostar muito mais das matérias deExatas. Então, no ano de 2002 fiz o PSS do 3º ano para Geografia. Fui pré-classificada, masnão passei, fiquei como excedente.

Já tinha terminado o ensino médio, não passei na UFS, e agora?Em maio de 2003, fui ao cursinho com minha irmã Elaine, o mesmo em que ela havia

estudado e ela conseguiu um desconto para mim. Estudei de maio a janeiro e, em 2004,consegui passar para o curso de Física na UFS. Foi uma vitória.

Page 49: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

48 Caminhadas de universitários de origem popular

7º CAPÍTULO: permanência na universidade Quando ingressei na universidade, imaginei que seria como nos tempos de escola,

que eu dava conta do trabalho em casa e dos estudos e fiquei tranqüila, mas não demoroumuito e percebi que ia ter que estudar muito mais do que imaginava. Percebi que talvez aescola em que eu estudei não tivesse me proporcionado uma base firme e então comecei acorrer atrás do prejuízo. Estudava muito e assim conseguia passar em todas as matérias. Otempo foi passando e a falta de livros começou a atrapalhar meu desempenho, não dispunhade dinheiro para comprar livros, que geralmente eram caros, a biblioteca da universidadepraticamente não supria as necessidades, mas conheci alguns amigos que sempre meajudavam e eu corria atrás de livro, de xérox, de tudo.

Comecei a trabalhar em uma agência de eventos, e ganhava um dinheirinho sempreque surgia algum evento, geralmente nos finais de semanas. Logo depois, fui convidadapara trabalhar em outra agência, de eventos. Trabalhava para as duas agências estudava eajudava no trabalho em casa.

No final do segundo período da universidade, aconteceram dois fatos queinfluenciaram drasticamente a minha vida como estudante. Minha mãe adoeceu e ficousem possibilidade de trabalhar, passou uns três meses sem poder levantar da cama. Eminha melhor amiga da universidade decidiu desistir do curso e trancou a matrícula. Daíem diante, o que era difícil passou a ficar impossível. Eu e minhas irmãs tivemos que nosorganizar, para nos ocuparmos de todo o trabalho e das atividades que minha mãedesempenhava. Tinha que acordar bem cedo, fazer comida, alimentar minha mãe doente,trabalhar na mercearia, lavar roupa, era muita coisa!

Entrei no terceiro período e a situação estava ficando insustentável, já não tinha maistempo para estudar e minha amiga da universidade, que sempre me ajudou, conseguindolivros, tirando xérox e me passando as aulas que eu perdia, tinha abandonado o curso e eufiquei sozinha no momento em que eu mais precisava de uma pessoa igual a ela.

Meu pai abandonou o trabalho dele e veio trabalhar em nossa casa tocando a merceariano lugar de minha mãe. A situação financeira estava difícil, os remédios, as consultas e osexames que minha mãe tinha que fazer só pioravam a situação.

Meus contratos nas agências de eventos ficaram mais constantes e alguns duravamuma ou duas semanas em turno integral, fazendo com que eu passasse semanas sem ir paraa UFS. Então aconteceu o inevitável, reprovei em duas matérias.

Todos esses acontecimentos tornaram minha permanência na UFS muito difícil: passeia ficar desgostosa com minha vida acadêmica, cheguei a pensar em desistir do curso.

O tempo passou e minha mãe voltou a andar, conquistei novos amigos e decidirecomeçar. Depois disso, fiz um ótimo período, tirei as melhores notas, aumentei minhamédia e consegui uma vaga como bolsista no Projeto Conexões de Saberes, que tem meajudado a seguir em frente, me oferecendo sabedoria e oportunidade.

Page 50: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 49

* Graduanda em Letras-português.

Uma vida (e) uma lição

Erika Janaina Rolemberg Silveira*

Eu nunca fui cordelistaMas resolvi arriscarPra contar a minha vidaSem fazer ninguém chorarNão que ela seja tristeMas é de emocionar

Desde que meu pai JoséEmbora resolveu irNa minha vida ficouUm tanto difícil rirMainha deu pra beberPra toda noite sair

É uma pena que os paisQueiram eles separarNão se lembram que farãoSuas crianças chorarNão lembram que é difícilQuando querem se casar

Desde muito pequeninaSempre gostei de estudarMas o ânimo faltavaSem meu pai pra ensinarCom mainha mal humoradaMeu irmão a me gozar

Page 51: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

50 Caminhadas de universitários de origem popular

Mãe sempre brigou comigoPor causa desse safadoMe provocava baixinhoNunca ele era culpadoEla então me agrediaPor causa do desleixado

Até hoje é meio assimEle muito ociosoSe alguém fala mal deleSua mãe vem com nervosoPedindo pra não falarDe seu filho preguiçoso

Depois de ter uma filhaEle quase não mudouFaz bico aqui acoláMas ainda não se empregouVou falar de minha irmãQue logo cedo casou

Assim como minha mãeNo primeiro casamentoMinha irmã muito sofreuTanto que eu até lamentoPois até em minha vidaSeu marido foi tormento

Hoje ela já tem três filhosTão novinha que elaCedo casou e descasounamoradeira “feita a pé”mas ela é trabalhadeiraaposto com quem quiser

Diz que em casa de ferreiroO espeto é de pauEm casa ela não faz nadaUm costume maternalCom ela começou agoraMas eu comi do mingau

Page 52: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 51

Esses meus irmãos aíNão são do mesmo pai meuAmbos já são mais velhosVieram primeiro que euAgora já tenho trêsO outro papai me deu

Agora já tá na horaDe voltar a falar de mimContinuar minha históriaSe não ela não tem fimVou voltar do casamentoVai ser bem melhor assim

Todo final de semanaEu meu pai ia visitarMãe dizia pra eu pedirPra ele pra nós voltarMas eu não tinha coragemPra ele não se apoquentar

Numas questões financeirasMinha mãe descontrolouQueria agradar a todosAdoidado ela comprouAcabou cheia de dívidasE até doente ficou

Mainha vivia a cuidarDe minha avó doenteVivia no hospitalEra muito pacientePor isso não trabalhavaE ficou tão dependente

Com a ausência de meu paiEu já tava acostumadaMas só que tava difícilCom mainha endividadaEla ficou depressivaÔ doença desgraçada

Page 53: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

52 Caminhadas de universitários de origem popular

Na verdade a depressãoVeio após se separarPainho com outra casouIsso veio a piorarO sofrer de minha mãeQue em mim quis descontar

A ir de mal a piorDaí tudo começouFaltou água, faltou luzAté comida faltouMas Deus um dia do céuUm enviado mandou

Uma matéria benditaQuase me faz perder anoEu ia bem na escolaMas por ela quase danoFoi quando esse abençoadoMudou todo o desengano

Foi assim que o conheciComo um bom professorQue depois virou amigoE depois tornou-se amorDesde então a Deus eu louvoPor esse meu protetor

Me colocou num cursinhoDesses pré-vestibularEle e meu pai me ajudaramA um sonho realizarDepois disso até em concursosTambém consegui passar

Na UFS tive trabalho,Estudo, alimentaçãoLá se tornou minha casaQue eu amo de paixãoOnde a felicidadeVoltou a meu coração

Page 54: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 53

Agora sei sou capazDe enfrentar essa vidaMesmo que seja difícilOu muito árdua a lidaTenho mil perspectivasDe melhorar minha vida

Vejam! Com tudo na vidaVale a pena sonharNão se pode é cruzar braçosTemos que ir conquistarNão deixar oportunidadeQue chegar também passar

Há muita coisa na vidaDifícil de explicarPessoa que desperdiçaO que outro quer ganharQuem tem muito infelizQuem tem pouco a festejar

Se você tiver ajudaVá então e aproveiteSe estiver desleixadoTome prumo, se ajeiteNo mundo você é genteNão é apenas enfeite

Feliz de quem tem alguémEm quem possa se apoiarIncentivo é sempre bomAjuda a levantarNão importa de quem vemSempre vai te ajudar

Eu ainda não pareiTenho muito a conquistarCom muitas perspectivasDe outros ainda ajudarQuero começar bombeiraProfessora terminar

Page 55: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

54 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu sonho é ensinarEm minha UFS queridaTambém quero sê escritoraUma escritora bem lidaE agradecer a DeusPor feliz ser minha vida

Tem muita coisa que a gentePrefere silenciarExistem alguns detalhesQue não é preciso contarMas muito vocês já sabemAgora vou terminar.

Page 56: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 55

* Graduanda em Letras Português Inglês.

A chave da vitória

Fabiana Bispo de Oliveira*

“Porque a fé sem as obras é morta; nenhumvalor tem para deus...”

É assim que desejo iniciar este trabalho. Sem atitude, jamais conseguiria chegar atéaonde estou. Foi trabalhoso, quero dizer, tem sido ainda, mas...

“Todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam adeus e são chamados por seu decreto...”

Eu, Fabiana, com 22 anos estou prestes a dar à luz. Em breve serei mãe de umalinda garotinha... ando tão ansiosa... agradeço a Deus, primeiramente, poisEle é o ser Supremo por excelência e a mim mesma pela DETERMINAÇÃO que, comoum dos milhares de glóbulos, circula em meu sangue. Como qualquer jovem oriundade classes populares enfrentei grandes dificuldades para realizar um dos meus sonhos:a UNIVERSIDADE.

Filha de um militar e uma cabeleireira dividi o carinho de meus pais com mais trêsirmãos: Junior, Juliana e Diego – na verdade, com oito, sendo cinco deles por parte demeu pai. Joas foi gerador de mais duas famílias antes da minha própria. Na primeira,Marcelo e Marcos, meus irmãos acham-se bem-sucedidos em suas carreiras. Na segunda,Samai, Uziel e Heber, que também batalham para manterem seus espaços. E finalmente aminha família, Ester, minha mãe, sempre cuidadosa, mesmo sem ter tido instrução escolar,e meus irmãos. Hoje, apenas dois de nós têm conquistado e alcançado seus sonhos: Junior,também militar e eu, universitária pela UFS, professora de português e inglês. Julianatambém cursa mas o faz numa faculdade particular e tem que trabalhar para pagar o curso.Diego, o mais novo, segue a vida num outro Estado, estudando para realizar seus sonhode seguir carreira militar.

Fiz esse breve relato para homenagear meu querido pai. Joas Bispo de Oliveira ,70 anos, nos ensinou a lutar e sempre fez o possível para o nosso sucesso;espero que essa carga genética esteja em mim para que meus conhecimentoscontemplem o meu próximo.

Page 57: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

56 Caminhadas de universitários de origem popular

Obrigada, pai.Persistindo e insistindoQuero eu assim estarPra que não me abale o ventoTendente sempre a levantar

Brilha, nome, tente brilharTraga paz, alegria e esperançaFabiana, esse é o nome,Sonhe com os jovens e as crianças.

Esse é o meu desejo. Depois de tudo que vivi, trabalho no intuito de ajudar outrosjovens a alcançarem seus objetivos.

Fui aluna da rede pública de ensino e como a maioria dos que vivem ou viveram essarealidade, não tive o ensino básico como devia, como consta na Lei. Isso, entretanto, não foio obstáculo maior para mim, pois sempre fui uma aluna aplicada e dedicada. Terminando oensino médio, ouvi falar muito nesse tal vestibular. Desejei fazê-lo mesmo sem saber comoera e o que eu iria enfrentar.

Apenas acreditei e dei uma chance para mim mesma. Consegui pagar minha inscriçãopara o processo seletivo com a ajuda de meu tio João Batista (em memória), corri contra otempo porque meus pais não tiveram condições de pagar um pré-vestibular; tive que estudarsozinha faltando apenas 2 meses e meio para o exame. Está aqui a chave da vitória: aperseverança. Estudei sozinha tudo que pude: fiz esquemas de estudo, resumos, resolviquestões... tudo em prol da prova.

Em 2003, garanti meu passaporte para UFS; escolhi o curso de Letras Português eInglês porque eu sempre sonhei em lecionar. Mamãe já havia me presenteado, quandocriança, com um quadro negro e uma caixinha de giz, e eu nem acreditava que pudessechegar lá! Das vinte vagas, conquistei a 18ª: chorei, sorri, gritei, dei até entrevistas... começaagora uma nova fase na minha vida.

Cursando numa turma bastante elitizada, sofri toda a espécie de preconceito: padecipela minha cor – sou parda, por ser de origem popular, por ser aluna proveniente da redepública de ensino e por não dominar o idioma estrangeiro inglês, que era o meu curso.

De tudo, o que mais me condoeu foi o fato de muitos professores também agirem dessamesma forma, discriminando, excluindo alunos que, têm o mesmo desempenho intelectual.Nessa época, entrei em depressão. Na verdade, eu nem sabia o que era isso de fato e nãoacreditava que aconteceria comigo. Cheguei ao fundo do poço, pensando em morte, tendomedo das pessoas, sem amigos, sem ninguém. Para mim a solução era desistir do curso, poisnão tinha amigos e os que se aproximavam de mim sempre tentavam me humilhar, entristecere desfazer dos meus projetos e trabalhos. Deus, que sempre foi meu aliado, pareceu-medistante; meus pais que não são de dialogar eram como se não existissem nessa hora, elestinham problemas demais para me ajudar – pensava. Sem emprego para me manter na UFS,desiludida amorosamente e totalmente desanimada no meu curso. Muitas vezes eu saía dasala de aula para chorar calada, fazia de tudo para não comparecer às aulas, principalmenteàs de língua estrangeira – parecia uma palhaça em que todos riam de mim. Sobrevivi a issopor quase dois anos, acabei trancando algumas matérias, evitando meus colegas de classe,

Page 58: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 57

procurando outros meios. Era como se eu, por ser afro-descendente, de origem popular,fosse indigna de ter sido aprovada num concurso tentando apenas uma vez. Era vista como umnada, mas tudo isso serviu de experiência e amadurecimento. Pude contemplar a crueldade denosso sistema cada vez mais excludente em que muitos padeceram e padecem pelo mesmoproblema. Infelizmente, em nossa sociedade, vale-se pelo que possui e não pelo que se é.

Parei, refleti e tomei uma atitude: olhei para meu interior e deixei de sentir pena demim mesma. Apaixonada por um rapaz há dois anos, desisti e me valorizei. Vi o quanto eutinha potencial e capacidade intelectuais, bastava que me empenhasse. Dei valor a mim, epercebi que meus irmãos precisavam de meu apoio. Dentro de um mês, dei a volta por cima:saí do quarto escuro, voltei a minha rotina, batalhei por um emprego e consegui.

Assumi oito turmas de doze alunos num projeto social chamado Conectando com avida; foi minha primeira experiência profissional. Percebi o quanto foi importante ter vividodiversas situações, pois as mesmas contribuíram para instruir meus alunos – jovens eadolescentes de origem popular – alimentando-lhes sonhos e mostrando-lhe a possibilidadede resolver os problemas da vida. Minha conduta, a metodologia adotada para o ensino dePortuguês, meu carisma e dedicação abriram novos horizontes para os meninos; eles viamem mim uma espécie de fonte de luz; uma pessoa em quem se podia espelhar: “Professora,foi muito bem ter conhecido a senhora, eu pude aprender sobre português. Você é umaexcelente amiga” – comenta um dos alunos.

E realmente era essa a minha realização: saber que minha vida com um todo, queminhas dores e sorrisos tornaram-se jóias preciosas doadas a muitas vidas; ser professor deverdade não é uma profissão e sim uma missão; sigo, portanto, nesse objetivo contribuindoa fim de que nosso Brasil se torne um Brasil bem melhor.

Ainda para completar meu gozo, conheci nessa mesma época, Alexandre de Souza,meu esposo. Nossa! Ele chegara num momento especial em minha vida, é meu tesouro, queme completa, me aceita e me compreende da forma que sou. Hoje, casados, vivemos juntoshá um ano e logo, logo, seremos papai e mamãe; Flavia Alessandra, a Flavinha, já está àsportas... te amamos, filhinha!

Espero que depois de seu nascimento eu, Fabiana, esteja mais sensível às realidadesbem patentes em minha volta, que me prepare para sempre dar o de melhor aos quenecessitarem, a todos os meus alunos, ensinado-os para provas e concursos e para a vida.Penso que, agindo dessa forma, teremos um mundo verdadeiramente civilizado e repleto deprofissionais competentes.

Pensemos naqueles que estão excluídos e sem esperança, os ajudemo-los a se erguereme, certamente, contemplaremos a vitória.

Desejo que esse pequeno relato sobre minha vida contribua para que a sua, queridoleitor, também possa fazer valer a muitos nessa caminhada.

Page 59: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

58 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Engenharia Civil.

Infância

Gilvan Braz Araujo*

Meu nome é Gilvan Braz Araújo e nasci na cidade de Aracaju-SE, no bairro América.Vivia em uma humilde casa num bairro com precárias instalações de água e esgoto, na época.

Meus pais mudaram-se do Maranhão para cá, Aracaju, em virtude de meu pai arranjarum emprego aqui de topógrafo (nível técnico), na Everest.

Desde cedo, minha mãe nos “puxou” no que diz respeito aos estudos seculares. Elamesma, Dona Assunção, me alfabetizou a mim e a meus irmãos, mesmo não tendo boaformação acadêmica, em virtude de precisar trabalhar para ajudar a família e também porcausa do precário ensino primário, com o qual minhas irmãs foram contempladas.

Resumindo, aos 4 anos, eu já sabia ler, escrever, fazer operações matemáticaselementares e outras coisas mais, graças a DEUS e a minha “mãezona” que, ao longo de suavida, foi e continua sendo uma verdadeira guerreira, nos impulsionando a estudarcontinuamente e fazendo tudo que for possível para não pararmos de estudar.

A mais ou menos, 6 anos de idade, nos mudamos para Socorro, mais precisamenteMarcos Freire 2, onde passamos dificuldades quanto à alimentação e outras necessidadesbásicas existentes no momento.

Minha mãe, guerreira, ao contrário de meu pai, que queria jogar-me em “qualquerburaco” para estudar, se preocupou com a minha base de estudos, e com sacrifício conseguiuuma bolsa para mim e meus irmãos estudármos em uma escolinha particular do conjunto...

Passei para a 1ª série do ensino fundamental sem passar pelo rol do berço, maternaletc... e ao chegar ao colégio tudo era novidade para mim.

Mas acho que no ano seguinte, já me adaptei ao clima estudantil, as provas, aí pronto,comecei a melhorar meu boletim e ter um melhor rendimento.

Ginásio

Resultado interessante que convencia alguns professores, de que eu podia ir maisalém nos estudos, mesmo não tendo boas condições para isso, como por exemplo : falta dematerial escolar, má alimentação, enfim, mas eu não me importava com isso, pois tinha umobjetivo pela frente.

Acho importante refletir neste aspecto, quanto a oportunidades que surgem na nossavida e que muitas vezes não sabemos aproveitar e, futuramente, nos queixamos de algo quejá passou e ao avaliar a situação, o dano se torna irreparável: a escola em que estudei

Page 60: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 59

acomodava o aluno, tinha 1000 facilidades de recuperação, então não tive problemas deaprovação nas séries. Mesmo estudando pouco, tinha boas notas, pois, como já frisei, erauma escola deficitária quanto ao aprendizado do aluno.

Ao chegar à última série do ensino fundamental, fiquei sabendo do exame de seleçãoda ETF-SE, agora CEFET-SE e que era uma boa escola pública e também porque era federal;me entusiasmei com o que diziam daquela escola profissionalizante. E minha mother dizia:“Você vai dar o seu melhor para passar” pois, meu filho, eu não tenho condições de custearuma escola particular na capital para você.

Aí eu fiz a minha inscrição no concurso e quando cheguei, não demorou muito parame organizar, quanto às disciplinas que tinha de estudar e do tempo disponível para poderdar conta de todo o conteúdo programático da prova.

Bem, todos vocês, assim eu penso, já passaram por essa fase ou algo parecido, e aí vema expectativa: Será que entro ou não??? E não foi outra, no dia da prova, gelava mais queum “pingüim”, pode crer!!!

Fiz o que pude na prova, mesmo sabendo que não tive base suficiente no ginásio eque dependia do que tinha estudado por conta própria. Após 1 hora do horário previsto parao término da prova, a coordenação apresentou o gabarito e aí acertei 38 questões. Para mim,eu não tinha idéia de que eu ia passar ou não. Bastava o tempo responder a esse impasse equão grande alegria inundou o coração de “mainha e dos meus irmãos” quando souberamque fui aprovado!

Médio

Conheci várias pessoas diferentes de minha realidade (o meu modo de viver), conquisteinovas amizades, aprendi algo sobre relacionamento, sobre quem são seus verdadeiros amigos,essas e outras mais que aprendemos no decorrer de nossa vida.

Bem, no 1º ano, as minhas notas em particular não foram boas, pois como vocês jásabem, minha formação primária foi deficiente e quando fiz o PSS do 1o ano não obtiverendimento satisfatório; a partir desse dia, estabeleci que no ano seguinte as coisasiriam mudar .

Lá na escola técnica não facilitavam tanto como no colégio no qual eu estudei oginásio, mas eu não parei por aí, comecei a estudar por conta própria, a começar com o queeu não tinha aprendido nas séries anteriores durante todo o 2° e 3° anos. Fiz vestibular maisconfiante e aí o resultado estava por vir. E graças a DEUS, realmente veio conforme euesperava.

Hoje estou no 4o período e estimulando os meus irmãos e a outros que não vejambicho de 7 cabeças numa prova, seja um vestibular, um concurso, enfim, seja o que for. Poiso que o homem plantar, é isso mesmo o que ele ceifará.

Page 61: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

60 Caminhadas de universitários de origem popular

Só sei que foi assim...

* Graduanda em Química.

Helenilza Joelma Costa Santos*

(In Memorian)

Fiquei pensando em como escrever minha caminhada, por onde começar?Resolvi começar com a primeira batalha que travei, quando ainda bebê. Segundo o

que minha mãe conta, lutei contra a morte. Lembrei-me dessa história outro dia. Contou-meminha mãe que fiquei internada por duas semanas e os médicos lhe disseram que eu nãosobreviveria. Ela conta ainda que me levou pra casa e sempre que me olhava chorava, poisachava que eu não fosse viver, mas pra surpresa de todos, vivi!!

Lembrei-me da minha infância e das coisas por que passamos eu e meu irmão maisvelho (meu amigo e irmão querido de todas as horas). Tínhamos que ir pro sítio de manhã evoltávamos correndo onze horas para irmos pra escola. Depois chegaram meus irmãos maisnovos, minhas bonecas de verdade. Eu e meu irmão nos revezávamos pra cuidar dos doispequeninos, enquanto nossos pais trabalhavam. Um cuidava dos pequenos, enquanto ooutro ia pra escola e assim seguimos nossa história.

Em 1989, começam a acontecer incidentes que marcaram nossas vidas, a começar peloassalto de nossa casa: ficamos sem nada e minha mãe, coitada, passou a pior madrugada quealguém podia passar, com um revólver apontado pra ela. No ano seguinte, depois de umsegundo assalto, só que dessa vez com minha avó, meu tio e padrinho (irmão de minha mãe)faleceu e uns dois meses depois meu pai, apaixonado por outra mulher, resolveu sair decasa. Este último fato terminou desestabilizando a todos.

Minha mãe, uma mulher fantástica, assume nossa família, e guerreando contra o preconceito,que naquela época era enorme e com as dificuldades financeiras, foi à luta e nós fomos à batalhacom ela. Algum tempo depois, quando as coisas começaram a melhorar, tivemos nossa casaassaltada mais uma vez, e agora durante o dia (morávamos em uma casa próxima da escola,apenas 15 minutos e trabalhávamos no sítio a 30 minutos da casa onde morávamos).

O assalto foi a gota de água para minha mãe que resolveu por morar no sítio.Mudamo-nos e as dificuldades foram muitas: não tínhamos energia elétrica e a casa, eramuito velha (tinha uns 50 anos); o chão de terra batida não permitia que montássemos ascamas. No improviso, colocamos uma tábua em cima do forno de mexer farinha e colocamoso colchão em cima; durante um ano e mais alguns meses essa foi minha cama, e o candeeironossa lâmpada.

Page 62: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 61

Em 1993 depois de muito esforço e sofrimento, minha mãe vende nossa antiga casa,junta tudo que foi possível economizar e inicia a construção da nova casa. Com a mudançapra nossa casa nova veio também a eletricidade. E no fim de 1993, minha bisavó foi morarconosco e nos deu grandes lições. Além da união que tínhamos, ela nos deixou comoexemplo o amor à vida, a alegria e a lembrança de uma mulher que sofreu muito, mas quemesmo cega era extremamente doce e feliz.

Nessa mesma época, cheguei a casa com a idéia do vestibular e logo de cara recebi anegativa: minha mãe me disse que não teria como me manter na faculdade e que tinhadiscutido com meu avô porque ele queria que eu não estudasse mais, pois já sabia ler eescrever e já estava na hora de parar de estudar. Minha mãe apesar de me dizer que não podiame manter na faculdade, pois realmente não tinha condições, disse que eu teria o direito deestudar ate completar o ensino médio, oportunidade que ela não teve, quando era solteira.

Fiquei triste com a perspectiva de parar de estudar ao terminar o ensino médio. Resolvibuscar formas de me manter caso conseguisse entrar na universidade. Vendo a possibilidadede ter um trabalho, resolvi fazer o curso de formação de professores que correspondia aoensino médio. Matriculei-me no curso de formação de professores e logo de início nãogostei do mesmo, mas tinha um objetivo a alcançar. Fui adiante, enfrentei vários problemasna escola que estava quase desabando em nossas cabeças, reformas, falta de professores emais uma série de coisas.

No curso de formação de professores, encontrei grandes e queridas amigas as quaisatribuí o titulo de irmãs de coração (Sandra e Andréa). Junto ao curso, comecei a trabalhartambém para mim na roça, plantei minha primeira lavoura, tudo pensando no vestibular eno sonho que tinha de continuar meus estudos, de buscar um caminho diferente da roça.

No início de 1998, enfrentávamos problemas com a falta de professores no colégio.Fiquei semanas em casa ajudando minha mãe nas farinhadas; no fim de março, a mandiocaque plantei foi colhida. Estávamos fazendo a minha primeira farinhada, seria a primeiraeconomia em busca da realização do meu sonho. Dia 26 de março, quinta-feira, jamaisesquecerei esse dia, tudo corria bem até o incidente que mudaria minha vida de novo. Erammais ou menos umas 15h30m, quando meu irmão me chamou pra ralar a mandioca. Tudonormal, afinal, já havia feito isso outras vezes. Tudo corria bem até uma mandioca escorregae bate na mandioca que, estava na minha mão que por sua vez, escorregou e no fim meusdedos foram no lugar das mandiocas. Num impulso, puxei minha mão, mas percebi quemeus dedos estavam, apesar de não terem se soltado, completamente moídos, minha dor edesespero foram imensos. Fui levada ao hospital onde depois de uma hora meus dedosforam cortados. Passei a pior noite de minha vida, sozinha, chorando a perda de meus dedos.

Minha família (mãe, meus três irmãos, minha avó e minha cunhada Cledja) todostentavam me alegrar, mas não era fácil. Alguns meses depois nasceu Keylla, minha primeirasobrinha, minha paixão, aquela que conseguiu me tirar da tristeza profunda em que meencontrava. Ela trouxe a nossa família novo ânimo e nos fez renovar sonhos e esperançasque andavam adormecidos naquele momento em que a dor era mais evidente.

De volta à vida, voltei-me completamente para o sonho da universidade, estudeiao máximo e na primeira tentativa, fracassei. Não foi fácil ouvir as piadas e risadasque deram pelo meu fracasso, mas o suporte que recebi de minha mãe, irmãos e algunsamigos me motivaram a continuar a batalha. Aquele seria o 5° vestibular e eu quasedesisti, mas Andréa, minha amiga querida, insistiu que não desistisse de meu sonho e

Page 63: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

62 Caminhadas de universitários de origem popular

com a força que ela me deu e o apoio de minha mãe, fiz a 5ª tentativa e consegui,contrariando a todos que riam de mim quando falava do vestibular dizendo quejamais conseguiria.

A partir daí travei outra batalha: minha mãe realmente não podia me manter e agoraera mais complicado ainda; meu avô e minha avó moravam conosco. Ele era paralítico,diabético e hipertenso, e ela lutava contra uma série de problemas, tais como, anemiacrônica, tendo feito nove transfusões de sangue em três anos, sendo também cardíaca.

Pedi residência e por uma graça divina entrei. Pela primeira vez, fiquei longe daquelesque estiveram comigo em todos os instantes, foi difícil quando meu avô deixou de falarcomigo (passou dois meses me ignorando); foi difícil enfrentar as mudanças que viriam:falta de dinheiro pra adquirir material, passe escolar e até mesmo alimentação logo noinício. No fim do 1° período, meu avô faleceu e foi difícil não estar próximo nesse momento.A residência também me deu muitas coisas boas, possibilitou que eu crescesse e começassea ter uma vida independente, sem falar que tive grandes felicidades e encontrei nela pessoasmuito queridas que se tornaram também amigas e irmãs, dividindo alegrias, tristezas,preocupações e sonhos.

O caminho ainda guardava mais batalhas, dessa vez fui apenas ajudante. Em 2004,minha tia começa a lutar contra um câncer e como ela não tinha filhos nem esposo, sendoeu e minha família os únicos parentes e como ninguém podia cuidar dela, ficamos eu eminha mãe nos revezando no hospital. Durante dois anos, lutamos juntas, nós três.Infelizmente perdemos a batalha e ela faleceu; não foi fácil essa derrota, foi muito difícilperceber nossa impotência diante da vida, e nesse momento, não pude deixar de percebera presença de mais uma amiga irmã querida, Carla Rayane, que, esteve conosco, nosajudando e compartilhando momentos muito complexos de nossa batalha. Não possoesquecer também de Liene e Edilma, amigas queridas que, muitas vezes, me ouviram eajudaram a conter a tristeza.

Muitas vezes pensei em desistir, mas a possibilidade de mudar a história que sempre serepetia no meu interior e na minha família em que as mulheres eram somente mães e esposas,me impulsionou a continuar enfrentando todas as dificuldades que apareceram no decorrerdessa história. No início de 2006 quando já estava no limite, surgiu a inscrição para asbolsas Conexões dos Saberes que possibilitaram continuar minha história e quem sabeajudar a mudar outras histórias. Nesse ano, nasceu também minha segunda sobrinha, Kemylle,que veio em um momento em que precisávamos, quem sabe, ver a esperança renascer. Achegada dela renovou nossa esperança e nos fez muito felizes.

De tudo que escrevi sobre as várias coisas que aconteceram e as dificuldades queenfrentei, devo dizer que, sem minha mãe a quem amo incondicionalmente, meus irmãosJoelito, Josenilton e Helena e minha avó Maria, talvez não tivesse conseguido chegar atéaqui para contar essa história. Só posso agradecer a Deus por essa família maravilhosa, antescomposta por seis guerreiros e hoje já bem maior e pelos amigos que estiveram comigo aolongo dessa jornada. Os que citei e os que não citei, foram maravilhosos. Obrigada, Deus,por todos os anjos que foram colocados em meu caminho.

E só posso dizer que, só sei que foi assim...

Page 64: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 63

* Graduanda em Letras Português.

Que história é essa?

Jaqueline Gomes dos Santos*

Ao meu primo BruninhoNão quero ter a sorte, nem a esperança.Quero a vida, quero viver...

Falar da nossa vida não é algo fácil. Desde que anunciaram essa atividade, senti certaresistência, não gostei muito da idéia. Na hora pensei: um artigo seria mais importante, sobretudoporque traria uma análise, uma reflexão e até propostas. Mas o que pode fazer esse texto? Poderá,ao menos, levar ânimo aos outros jovens vitimados por esse sistema? E isso seria suficiente?

Quem será o possível leitor desse texto? Provavelmente não é um dos jovens quepegam “carrego” na feira do meu bairro ou os que trabalham na zona sul. Como chegar aeles, então? Qual é o papel desse texto? O que ele pode resolver? É ilusório pensar que elepode chegar a um jovem de origem popular, a não ser que ele seja um dos 0,001%contemplados, quase como na loteria, que participam de um programa como o Conexões.

Seja quem for o leitor, gostaria que ele pudesse converter suas idéias e voltar-se para aproblemática social que se instaura e resulta na necessidade de uma transformação. E mais: queo leitor não identifique esse texto como a história da guria que “venceu” (aliás essa expressão écarregada de uma ideologia burguesa), isso não seria suficiente, seria até covarde: você é agenteda História, levante e lute. Que essas histórias possam nortear um caminho, amém.

Infância

Da janela do ônibus...

Mundo BreveMundo BruscoMundo IntensoMundo DesconhecidoMundo FundoMundo MudoMundo,Meu Mundo?

Page 65: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

64 Caminhadas de universitários de origem popular

Nasci numa madrugada fria da cidade de São Paulo; a maior parte da minha famíliamorava em Aracaju. Meu pai era movido por uma imaturidade que não sei justificar, aliás,prefiro não precisar citá-lo, é mais cômodo e, na verdade, se esse texto trata da minha vida,não será necessário nem citar seu nome. Minha mãe sempre foi surpreendentementeindependente e forte. Por falar nisso ela é meu sustentáculo, junto com Kevin e minha avóformam a minha família, meu poço de ternura e amor contínuo.

Lembro que tive uma infância difícil, uma pneumonia trouxe muito trabalho epreocupação para a minha mãe. Sozinha, ela precisava trabalhar e cuidar de mim; dessaforma, convidou uma de suas irmãs para ajudá-la, a tia Meure. Não é difícil perceber porquea considero uma segunda mãe, ela é sempre carinhosa e cuidadosa.

Voltando à pneumonia. Como as melhoras não vigoravam, os médicos recomendaramque eu viesse passar um tempo com meus parentes do Nordeste, devido ao clima quente.O frio de São Paulo inibia os avanços da recuperação. Assim, morei com a minha avó pormais ou menos 2 anos, já numa comunidade periférica. Brincava na rua e tinha toda umavivência com às outras crianças. Mas me recuperei totalmente, inclusive comecei a estudarnuma escola em Aracaju. Nessa época, me aproximei muito dos meus tios e tia, por issosou muito ligada a eles.

Com a recuperação, minha mãe quis que eu voltasse. Voltei prestes a completar 4 anose fui recepcionada por uma festa de aniversário, a mais marcante de todas. Em todas as fotoseu apareço com um olhar frio e perdido. Parece que não entendia o ambiente, o retorno;minha mãe e meu padastro pareciam um pouco estranhos, e eu já chamava minha avó demãe, mas logo tudo voltou ao normal.

Já estava estudando quando minha mãe pediu o divórcio. Eu gostava muito do Wal,mas não sofri. Depois, minha mãe engatou um terceiro e último relacionamento, foi aí quesurgiu o meu irmão, o maior dos presentes: Kevin. Infelizmente, o pai de Kevin faleceu.Fomos morar com minha tia Vilma, no Guarujá. A tia era maravilhosa, meu tio Carlos também.Sem falar nos primos.

Toda nossa família voltou para Aracaju em 1992, tinha 6 anos e Kevin alguns meses.Logo comecei a estudar em uma escola pública perto de casa, o “Áurea Melo”. Lá conheciuma grande amiga: Joana D’arc. Fiz seis meses, da 1ª série quando a diretora sugeriu que eufizesse um teste para ficar na 2ª série devido a recomendação da minha professora. A idéiaera ótima: se passasse, freqüentaria a 2ª série com Ray, minha prima preferida. Passei noteste! Sem entender muito, passei para turma de Ray. Era maravilhoso, construímos umaamizade eterna cheia de afinidades.

No ano seguinte, fomos para a 3ª série em outra escola, 24 de outubro, lá o ano foiimpregnado dos vícios do ensino público: a ausência de professores e as greves fizeramcom que minha mãe refletisse um pouco sobre uma nova alternativa. Foi quando ela soubeda existência do SESI, uma escola “quase pública”, não havia mensalidade qualquer, oensino era bom, mas era difícil conseguir vaga, com muita insistência ela conseguiu uma.Em 1994, estava na 4ª F, todos eram mais velhos; foi difícil a adaptação, tinha apenas 8 para9 anos, e os meus colegas com cerca de 11 ou 12 anos. Passei todo o ensino fundamental noSESI, foi uma fase muito importante, lá, fiz e encontrei amigos verdadeiros como Andersone Jaciara. A escola ficava muito próxima da casa de meus padrinhos. Era maravilhoso!

Lembro que fui uma criança meio “séria”, talvez devido à transição, das praças deAracaju para os muros paulistas. Já de volta para Aracaju, minha infância foi decorada pela

Page 66: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 65

presença dos meus primos, se eles não estivessem por perto tudo seria chato, sem brilho esem cor. Além disso, embora fosse uma criança inconstante, carente e mimada, foi o amor daminha família que me fez pisar no chão.

Adolescência: paisagens da memória

A tal fase da adolescência não foi fácil, as respostas que, inconscientemente,procurava na minha infância não foram expostas na adolescência. As carências semanifestavam das formas mais curiosas, não tratava bem os meninos e necessitava dapresença de amigos e de música, como forma de evasão. Mas essa análise não é muitonecessária. A verdade é que perdi muito tempo, não deveria ter lamentado a ausência demeu pai, por exemplo. E deveria ter compreendido mais a minha avó, uma senhora queficou viúva e cheia de responsabilidades aos 40 anos, muito provavelmente ficariaestressada mais cedo.

No ensino médio, consegui uma bolsa de estudos de uma escola particular, maspouco conceituada, gerenciada por um político que distribuía bolsas prevendoreeleição. Lá, conheci outras pessoas, outros costumes. Já era adolescente e isso pareciadifícil, foi lá inclusive o meu “desastroso” primeiro beijo. Lá também encontrei muitosamigos, como Anderson, Eliton, Vanessa Cristiane, Clarisse, Andresa, Cadinha eWanessa. Encontrei também certa crise entre não querer nada e querer estudar. Masesta última prevaleceu.

Depois daquela viagem...(o vestibular).

No primeiro ano, em 1999, anunciaram que o vestibular seria seriado, era um susto,poucos sabiam o que era vestibular e enfrentá-lo já era um pesadelo. Mas com apenas 13anos fui uma das cobaias no primeiro PSS seriado da UFS. Os resultados não foram bons,além do pouco esforço enfrentava problemas familiares.

Minha avó sempre foi muito importante para mim, mas não conseguia me entendercom ela, na época ela não permitia que recebesse telefonemas de meninos ou que assistissetelevisão (exceto canais cristãos). A rigorosa postura religiosa da minha vovó, resultou emconflitos que gostaria de ter evitado. Cheguei a ir morar com meu pai, por três meses, masele, que nunca demonstrou qualquer interesse por mim, não demorou a me mandar de volta.

Diante de tudo, fui para o 2º ano com menos interesse ainda, só no 3º ano algo emmim despertou, é claro que com a ajuda e a inflamação de amigos, como Júlio César, umcarinha divertido e Joana D’arc, a amiga de todas as horas. Como previsto, não passei novestibular seriado.

A idéia de fazer vestibular de novo e de uma vez, me desempolgava. Sabia queprecisava de um cursinho, mas as dificuldades eram várias. Um dia, uma grande amiga,Clarisse, me indicou um emprego. Era uma clínica odontológica, fui lá e me contrataram,com o dinheiro pude pagar o cursinho. Mas logo fui demitida, era muito menina e com 16anos, eles disseram que não podiam assinar carteira, mas sei que não gostaram do meutrabalho e isso foi difícil de superar.

No segundo semestre, freqüentei um cursinho mais barato, que minha mãe conseguiapagar. Foi nessa época que meu amigo Anderson me convidou para o aniversário de Bruninha,“nossa” irmã e lá conheci Cláudio, que, em pouco tempo se tornou uma das pessoas maisimportantes da minha vida.

Page 67: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

66 Caminhadas de universitários de origem popular

O estresse do vestibular tomou conta de mim: eu chegava a chorar quando não entendiaalguma coisa; estudei muito, mas achava que não dava. Sentia-me inibida, meio “mutilada” pornão ter passado no primeiro. Por outro lado, havia uma espécie de torcida, uma motivação quevinha da minha família. Sempre fui muito ligada à minha família (minhas tias, tios e primos),todos me traziam uma energia inexplicável. Consegui passar no vestibular 2003 da UFS.

A universidade

Comecei a cursar Letras e trabalhar ao mesmo tempo e percebi que não dava. Tive quelargar o emprego de recepcionista depois de 8 meses. Sem emprego comecei a fazer bicos,como assistente de entrega de prêmio, monitora e recepcionista em eventos de shopping,até de mamãe Noel: um mico, mas era assim que remediava as despesas. Não posso ignorarque numa dessas atividades-mico conheci a mais doce das amigas, a guria Daniele.

Como não tinha um trabalho fixo, consegui participar um pouquinho mais da vidaacadêmica, foi ao ENEL, Encontro Nacional dos Estudantes de Letras, em São Paulo e meencantei com o Movimento Estudantil. Quando voltei, quis ser colaboradora do CentroAcadêmico e vivia no DCE, participando das atividades da gestão “Viver na Luta”. Foi umafase de intensa aprendizagem, sobretudo na União da Juventude Comunista, com os espaçosde formação e discussão política.

Fui chamada para trabalhar na UFS com uma bolsa de trabalho; que não previa umretorno acadêmico e se sustentava em atividades repetitivas e exclusivamente técnicas, ovalor era irrisório, mas eu ficava mais tempo na universidade e podia estudar mais. Assim,participei mais das demandas políticas e sociais da UFS, principalmente na construção doMovimento Resistência e Luta, foi esse movimento que deu sustentação para a eleição dagestão “Amanhã há de ser outro dia”.

Com o tempo, percebi que o curso Letras-Francês não era reconhecido pelo MEC, alémdo mais o campo de trabalho se reduzia cada vez mais. Dessa forma, resolvi fazer vestibular denovo, fui pré-classificada, mas não passei. No ano seguinte, tentei de novo e nem contava comum bom resultado, era o ano de 2005, estava no Fórum Social Mundial, “morando” há umasemana numa barraca, quando liguei para casa para desejar feliz aniversário para Kevin e elefalou que eu havia passado, foi como sair pela janela de um lugar incômodo.

2005: um instante de fim

Mesmo se fosse forte...Ainda assim, não deixaria de lamentar sua ausênciaAinda assim, não suportaria a saudade que tanto inibe meu sorriso

O ano de 2005 começou como um “fim”: perdi meu primo-irmão Bruno em um terrívelassassinato. Senti uma dor que desconhecia, um misto de indignação e tristeza. Era ele aalma mais pura e o sorriso mais doce que já existiu.

Ele, na infância, passou muito tempo com a minha avó, assim como eu. E tínhamosquase a mesma idade, era um irmão maravilhoso, sempre prestativo e cuidadoso. Lembroque em um natal nos vestimos de mamãe e papai Noel, juntamos todo o troco que tínhamose compramos presentes para todos da família, eram coisas simples, algumas coisas, comobijuterias, nós colocamos numa caixinha de fósforos embrulhadas para presente.

Page 68: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 67

Morro de saudades dele e custo a acreditar que ele, tão jovem, não poderá mais batizarmeu filho, como havíamos combinado numa das barraquinhas que montávamos quase quediariamente no quintal da casa da vó.

“Ainda te vejo em tudo que permanece como se tua pressa de vidaque se extingue ficasse um pouco em tudo ainda”

Alice Ruiz

Conexões de Saberes, a porta

Cursando um curso diurno pude participar mais do Movimento Estudantil e dauniversidade como um todo. Em 2006, fui selecionada para participar do ProgramaConexões de Saberes, fiquei muito feliz, pois iria para o eixo pré-vestibular popular.Sempre fui muito crítica em relação ao vestibular devido ao seu método excludente, massabia que poderia ajudar.

Fui tomada de ansiedade até que começassem as aulas. Encarar a sala de aula pelaprimeira vez não foi fácil, era um misto de insegurança e responsabilidade. Temia que meusalunos não me compreendessem, sabia que deveria ser precisa e andar rápido, pois o vestibularchegaria em seis meses. Com o tempo, me sentia tão à vontade que sentava com eles paradiscutir o assunto.

No Seminário Nacional (RJ, 2006) é que pude perceber a dimensão política e social doprograma, além disso, as bandeiras de luta do Programa se confundem com as bandeiras doMovimento estudantil. Isso me motivou ainda mais na participação do programa, ele tornou-se um importante veículo de luta contra a exclusão social.

O Conexões de Saberes pode ter um papel contínuo de transformação social, pois nãose preocupa apenas com os que já estão na universidade, mas também, com aqueles queainda beiram as vagas nesse processo injusto que é o vestibular.

Somos todos protagonistas nessa transformação social, precisamos lutar não porreformas e programas que amenizam o problema, mas por uma revolução na educação.Assim, deslocando o nosso olhar do problema para a estrutura é que poderemos conquistaruma sociedade justa e democrática.

“Sejamos realista, exijamos o impossível” Ernesto Che Guevara.

Page 69: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

68 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Estatística.

O caminho sou eu quem faço...

Maria de Fátima Ribeiro Menezes*

Não me lembro do dia em que nasci, é óbvio. Mas me disseram que foi num dia de SãoJoão, mais precisamente no dia 24 de junho de 1982. Cresci, como todas as crianças crescem,e fui experimentando aos poucos a experiência da vida. Para mim, entendo que ela quissorrir mais do que o normal. Ora, cresci numa típica comunidade popular, ou numa sociedadecomunitária. Assim, a minha rotina foi se endereçando para o estreitamento das relaçõescom os outros. Na verdade, na sociedade comunitária, quem vive a nossa vida não somosapenas nós, mas todos os integrantes da comunidade, que se satisfazem em penetrar naintimidade alheia, fato que às vezes causa intriga e discórdia.

Pois bem, sabendo disso, vivi sempre rodeado de amigos. Estes partilhavam comigovárias aventuras. Jogar bola e furtar mangas em uma fazenda próxima de nossas casas era onosso cotidiano. Mas não apenas isso, a minha infância foi maravilhosa. Pude experimentartodos os prazeres que as algazarras à porta podem proporcionar. Tudo isso aconteceu commais intensidade até os doze anos. Entre os doze e catorze, entrei num conjunto musicalbatizado de consciência negra. Tocava caixa. Enquanto fazia isso, mostrava na minha cidadeas habilidades com a bola de futebol. Era considerado um dos melhores jogadores da cidade.Entre a música e o futebol, optei pela segunda alternativa. Entrei no clube juvenil “JupsNeto” e conquistei alguns campeonatos. Mas entendia que a música retornaria a ecoar nosmeus ouvidos. Aos 15 anos, aprendi a tocar flauta doce, provando que os sons harmônicosvoltariam para mim. Gostei da experiência. Diante disso, decidi participar da formação daBanda Filarmônica Frei Inocêncio, cuja fundação fora delegada a mim e a mais doze garotosda mesma idade. Entre uma coisa e outra, aos dezoito anos, aprendi a gostar de ler e afilosofar. Desde então, decidi prestar vestibular para a Universidade Federal de Sergipe.Consegui ser aprovado em letras vernáculas. Foi então que resolvi sair da banda, quandotinha 21 anos, certo de que já tinha contribuído muito pela estruturação da filarmônica.

Daí em diante, comecei uma rotina adversa da que tinha antes. Em maio de 2006iniciei os estudos universitários. Os primeiros períodos foram de descobertas a respeito dascaracterísticas do curso. Tudo me agradava inicialmente. Mas a partir do terceiro, comeceia sofrer uma espécie de crise de identidade, cuja maior marca foi um desencontro com aspropostas pedagógicas do curso. Depois desse período, entendi que não poderia maisabandonar os estudos em letras, pois a cada dia me interessava mais pelos conteúdos dasdisciplinas ofertadas.

Page 70: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 69

Então, à medida que o tempo ia passando, eu compreendia que necessitava deuma renda financeira para custear as despesas advindas das atividades acadêmicas. Odinheiro que os meus pais me davam não supria todas as necessidades. Assim, procureium estágio oferecido pela Universidade por intermédio da Proest (pró-reitoria deassuntos estudantis). Comecei a trabalhar na biblioteca central. Lá, fiz amizades queaté hoje cultivo e vivi experiências novas. O melhor ponto de ter estado na BICEN foipoder conhecer boa parte dos livros que contribuíram decisivamente para a minhaformação universitária.

Embora tivesse gostado de trabalhar na BICEN, sabia que necessitava de um outroestágio; um que me pusesse mais dinâmico e que enriquecesse o meu currículo. Foi entãoque soube da existência no projeto Conexões de Saberes: diálogo entre a Universidade eas comunidades populares, oferecido pelo Mec através da UFS. Me inscrevi e não medecepcionei. Fui classificado e escolhido para atuar na área de Pré-vestibular. Isso aconteceuem maio de 2006. De lá pra cá, pude aprender muito com o projeto e me sinto feliz em poderlecionar, ou seja, exercer a minha atividade em tempo conveniente.

Além de adorar o dia-a-dia de professor, me afeiçôo com o projeto, que tenta detodas as formas possíveis oferecer respaldo para a formação dos seus membros.Participamos de vários eventos que contribuíram e contribuem para o nossoaproveitamento acadêmico e profissional. A ideologia do projeto é justa e inteligente:tentar intercambiar o saber acadêmico com o saber popular, visando provocar odesenvolvimento da região onde atua. É tudo que um cidadão consciente desejarianum país como o Brasil, cuja história é marcada por exclusão dos que não nasceramno berço do poder.

Por fim, entendo que somos os construtores dessa caminhada, que se perfaz a medidaque vamos caminhando. Sem o nosso trabalho e efetivo engajamento não poderemos concluiro objetivo central deste projeto, incluir e fortalecer as comunidades populares de saber einstrumentos que levem ao seu desenvolvimento. Eu, então, me despeço satisfeito por estarno presente instante participando desta ação brilhante. Dessa forma, posso dizer: hoje souum conexista. Que o destino me reserve mais oportunidades como estas que vivi, e quenelas eu possa desfrutar da mais alta sabedoria, praticando-a para o bem estar do próximo eda sociedade onde estou inserido.

De Maria de Fátima Ribeiro MenezesFilha de: Raimundo Rodrigues de Menezes e

Maria Edilene Ribeiro MenezesCertamente pessoas anônimas, mas que merecem a minhaexaltação.Com orgulho apresento minha história

Não faz muito tempo, mas muitas coisas mudaram. Hoje vejo minha infância sofridasem revolta; queria que tivesse sido diferente, mas foi do jeito que foi que aprendi a sercomo sou. Lembro-me saudosamente da minha ingenuidade e principalmente da extremacuriosidade que ainda me acompanha. Desde criança, o que mais marca minha vida sãomeus sonhos e, ingenuamente, um dia perguntei a minha mãe: mainha, a gente só morrequando realiza todos os sonhos, não é?

Page 71: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

70 Caminhadas de universitários de origem popular

Que alegria quando chegou o dia de eu ir para a escola. Era meu primeiro contato comoutras pessoas: fiquei com muita vergonha quando a professora perguntou meu nome, poisainda não sabia pronunciá-lo. Contudo aprendi a escrevê-lo na primeira semana de aula.Fui aprendendo tudo muito rápido, não só a matéria escolar como também sobre a vida. Viminha mãe chorar com minha dor e a frieza de quem não me amava. Ao primeiro ano deescola, sofri um acidente que perdi quatro unhas da mão direita, quando um colega fechoua porta da sala com minha mão no fecho da porta do lado de fora.

Nunca tive muitas amizades, sentia-me inferir a todos, morava numa casa de pau-a-pique de muita precariedade. Vi, muitas vezes, meus pais me olharem comer enquanto eleschoravam a dor de não terem o alimento suficiente para eles também; vi meu pai chorar e atése revoltar quando a plantação dele era levada pela chuva e ele ter de ir trabalhar na roça dosoutros ganhando uma miséria semanal que só recebia sob cobrança. Senti uma dor profundaao ver os enormes calos nas mãos de meu pai e seus pés perfurados pelos espinhos e meioapodrecidos pela lama e doía mais ainda, por parecer ser tudo inútil. E tudo isso me fez termais vontade de estudar, de tomar um caminho diferente daquele tomado por meu pai eminha mãe que casou cedo para sair de uma vida sofrida (ela conseguiu sofrer menos).O tempo demorava a passar... tudo me fazia ser mais ansiosa.

Ao terminar o ensino médio, vi que não era o suficiente para conseguir realizar meussonhos. Meus pais questionaram se ainda era possível continuar os estudos, provei que sim.Fiz vestibular, mas não tive o resultado esperado. Começaram às críticas dos parentesprivilegiados financeiramente, diziam que filho de pobre não pode estudar, que era precisodeixar de ser orgulhoso e ir trabalhar em casa de família, casar e ter filhos. Porém, fuipersistente em meus sonhos, trabalhei sim, numa escolinha, causa de espanto para muitos,mas não era tudo que queria, era muito pouco ainda. Chega o fim de ano e faço vestibularmais uma vez. E novamente não passei. Começa mais um ano e dessa vez estava revoltada:pensei em mudar de planos, mas certamente se eu desistisse me lembraria disso como umfracasso meu e uma vitória daqueles que não acreditavam em mim. Saí do emprego quetomava todo meu tempo, as coisas pioraram financeiramente, fui em busca de meus sonhos.

Estudei. Neste ano, tinha que passar, mas não passei. As cobranças foram maiores, poistinha deixado o emprego. Com mais garra ainda, recomecei a estudar. Chamaram-me paratrabalhar num escritório; lá, o trabalho era leve, dava até para estudar. Neste ano sim, euPASSEI NO VESTIBULAR DA UFS. Alegria total, quando ninguém mais acreditava, euconsegui. Foi aí que um novo problema surgiu: como que eu ia todo dia para Aracaju à noitese eu morava num povoado de uma cidade de interior? Foi então que solicitei residênciauniversitária. Preparei todos os papéis, fui para entrevista e planejei tudo. Se eu conseguisseia ter de pedir demissão do emprego, deixar minha família e morar com pessoas que nãoconhecia. Por sorte, uma colega minha também pediu residência, poderíamos ficar numamesma casa. E foi assim!

A realização de um sonho trouxe muitas mudanças em minha vida e desencadeou umasérie de outros sonhos. E parecia um sonho quando pus meus pés na Universidade Federalde Sergipe como estudante universitária. Pisava aquele chão com muito gosto, dizendopara mim mesma que eu merecia, era minha conquista! Os problemas continuaram e ossonhos também. Foi muito difícil acostumar-me com aquela nova vida, com aquele mundodiferente, eu, que parecia ser uma menina de uma visão ampla, apesar de morar em interior,deparei-me com um mundo totalmente diferente do que imaginei. Por um período, fiquei

Page 72: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 71

depressiva. Estava tudo tranqüilo financeiramente enquanto estava recebendo o segurodesemprego (isso porque meu ex-chefe foi compreensivo e me demitiu). Um mês antes determinar o seguro desemprego, fui procurar trabalho, pois em hipótese alguma, meus paispoderiam mandar alguma quantia para mim. Então, comecei a trabalhar na secretaria deuma escolinha, fiquei esperando o mês terminar pra ver quanto seria meu salário. Paraminha surpresa, foi meio salário! Mal dava para comprar passe escolar e alguns lanches.Comecei a procurar outro emprego. Como não tinha tempo, mandava meu curriculum paraas empresas via internet. Foi então que uma empresa de transportes mandou um e-mail paramim pedindo que eu levasse meu curriculum pessoalmente, pois estavam mesmo querendoalguém com meu perfil para estágio em estatística. Fiquei muito entusiasmada, pedi folga elevei meu curriculum, depois de mais de uma hora de reunião da direção da empresachamaram-me e disseram que eu poderia começar a trabalhar naquele mesmo dia. E naquelemesmo dia comecei, fiquei muito feliz, ia ter um bom ganho no final do mês. Mas não sabiada surpresa que viria. Pedi demissão, contei tudo para a dona da escolinha e ela ficou atéfeliz por mim. Porém, no terceiro dia de trabalho na nova empresa, fui mandada para casacom a justificativa de que iam preparar uma sala com computador para mim, pois estavamuito apertada a sala em que estava e nunca mais me chamaram, apesar de ter ido lá quinzedias depois e sustentaram a mesma justificativa e garantiram que eu ia ser chamada. Bateu-me um desespero e resolvi pedir uma bolsa de trabalho na universidade; foi difícil conseguir,pois já tinha a bolsa residência.

Depois de um tempo de sossego, vi um cartaz para seleção de vinte e cinco estudantespara uma bolsa de trabalho de vinte horas semanais no valor de trezentos reais. Era bemmais do que a bolsa que tinha no momento, mas já não acreditava que poderia conseguir, jánão estava com tanta sorte assim! No último dia de inscrição, levei todos os documentosexigidos, depois fui para entrevista. Não coloquei nenhuma expectativa, mas disseram-meque eu tinha sido selecionada. Fui conferir. Tinha um nome igual ao meu. Era eu. Lembrei-me de um ditado popular “gato escaldado tem medo de água fria.” só pedi o desligamentoda outra bolsa quando tive plena certeza de que ia dar tudo certo. Foi a melhor coisa que meaconteceu - o Programa Conexões de Saberes.

E essa história não termina aqui, pois os sonhos continuam...Maria de Fátima Ribeiro Menezes, 23 anos, janeiro de 2007.

Page 73: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

72 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Letras Português.

Vida: um processo de aprendizagem

Maria Lucivânia da Cruz*

Nasci em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, em novembro de 1978. Iniciei minhavida estudantil aos cinco anos, numa escola pública do bairro em que morava. Quandocheguei à primeira série do ensino fundamental fui matriculada em uma escola particularque fica no bairro vizinho ao meu; meus pais só conseguiram essa façanha porque foramagraciados por Deus com um emprego para meu pai que já se encontrava desempregado hádois anos. E foram dois difíceis anos, mas por fim superamos tudo.

Estudei nessa escola até a segunda série e, mesmo sendo escola particular, não eratão boa e meus pais, percebendo isso, matricularam-me então no Instituto Dom FernandoGomes – escola de formação rigidamente religiosa, dirigida pelas Irmãs Terezinhas.Apesar dos princípios rígidos, foi a melhor escola onde já estudei.

Quando cheguei à quinta série, passamos por novas dificuldades financeiras e volteia estudar em escola pública, porém, minha mãe, que sempre nos incentivou a estudar,procurou uma das melhores escolas públicas da cidade – O Colégio Estadual Tobias Barreto.Na primeira semana de aula, senti um grande impacto, pois já havia me acostumado à ordemdas freiras, ao bom estado de conservação da escola e ao rigor dos professores quanto aoensino e à aprendizagem. Na escola pública, como sabemos, à realidade é totalmente oposta.Contudo, não tive outra opção a não ser me readaptar a essa outra etapa da minha vida e mededicar bastante para que os meus estudos também não ficassem defasados.

Concluí o ensino fundamental nessa escola em dezembro de 1995. Em 1996 fui estudarno Colégio Estadual Atheneu Sergipense – atualmente: Centro de Excelência AtheneuSergipense – pois lá tinha um ensino público melhor. Concluí então o ensino médio em1998. Decidida a não parar meus estudos, matriculei-me em um cursinho pré-vestibulardepois de ganhar uma bolsa estudo de 50%. Prestei vestibular pela primeira vez em 1999para o curso de jornalismo que é minha grande paixão. Sem sucesso. No ano seguinte,estudei como uma louca. Renunciei a tudo, até às minhas atividades no grupo de jovens daIgreja à qual eu freqüentava, dedicando-me por inteiro aos meus estudos e às aulas nocursinho que eram custeadas por minha irmã mais velha. Mais uma vez prestei vestibularpara Jornalismo. A concorrência do vestibular daquele ano (2000) foi uma das mais acirradasvisto que era o último processo seletivo com provas que constariam de questões objetivasde múltipla escolha com cinco alternativas de respostas (A, B, C, D e E), das quais somenteuma estava correta. Dali em diante, às provas compreenderiam questões numéricas e/ou

Page 74: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 73

questões de proposições múltiplas contendo cinco itens, numerados de 00 a 44, que poderiamser todos verdadeiros, todos falsos ou alguns verdadeiros e outros falsos, o que tornaria aprova mais difícil e, portanto, o vestibular da UFS mais seletivo do que nunca. Mais umavez, não consegui ingressar na Universidade, apesar de ter obtido pontuação suficiente paraser aprovada em qualquer curso de licenciatura. A decepção foi muito grande diante daminha dedicação durante todo o ano. A cobrança da família também foi grande. Todoscriaram expectativas e se decepcionaram muito também. A notícia da minha aprovação,para a minha família, teria a função de suavizar os problema pelos quais passamos no finaldo ano anterior – à separação de meus pais. Porém, isso não foi possível.

Depois de toda essa turbulência pensei que a universidade para mim era algo muitodifícil de ser conquistado, quase impossível. Mas ao mesmo tempo, pensava: Por que asoutras pessoas conseguem e eu não? Eu não sou diferente delas. Se elas conseguiram, eutambém consigo. Nesse momento, tive o apoio e o ombro amigo de meu irmão Silvio, demeu namorado João (hoje meu noivo) e de meus amigos do grupo de jovens (dentre os quaisse destaca a minha amiga, Angélica).

Precisando de dinheiro para custear o cursinho, comecei a trabalhar como operadorade caixa em uma loja de frios de um conhecido de meu irmão, que era perto de minha casa.Sabia que o meu rendimento no vestibular não seria o mesmo que no ano anterior devido àdiminuição do tempo destinado aos estudos, pois agora teria que conciliá-los com as oitohoras de trabalho. No entanto, precisava daquela aprovação. Então fiz um balanço dasminhas pontuações nos simulados e nos dois vestibulares que já havia prestado. Diante doresultado, decidi então fazer Letras-Português, pois era um curso com o qual eu tambémtinha afinidade e iria me servir de base para o tão sonhado curso de jornalismo. No ano de2001, no meu terceiro vestibular, tive a tão desejada aprovação. Foi uma alegria muitogrande. Finalmente eu havia conseguido conquistar, concretizar, realizar meu tão desejadosonho de entrar na Universidade Federal de Sergipe. Que alegria, que satisfação!!! Dentroda Universidade, deparei-me com o Universo dos saberes e eu agora estava fazendo partedele. Que privilégio e responsabilidade eu tinha agora!

A alegria era grande, mas as dificuldades financeiras ainda me acompanhavam, pois aloja na qual eu trabalhava fechou e eu fiquei desempregada. Foi então que me inscrevi nosprogramas de bolsa de estágio da Universidade. Um ano depois, comecei a trabalhar na Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (PROEST) e, com dois meses, fui convidada pela pró-reitorapara participar de um sub-projeto de Promoção Social do Idoso no Campus, sendo assimtransferida para o Núcleo de Pesquisa e Ações para a Terceira Idade (NUPATI).

Durante os seis meses, tempo previsto para a atuação do projeto, pude desenvolvereste meu aprendizado acadêmico porque tive a oportunidade de trabalhar namaioria das etapas do projeto. Desde a pesquisa de campo, passando pelas ações eintervenções, até a divulgação dos resultados através de relatórios e produções. Foi umaexperiência enriquecedora.

Ao final dos seis meses, tive a oportunidade de começar a trabalhar como estagiáriada Prefeitura Municipal de Aracaju através da Secretaria Municipal de Educação,atuando como professora de Língua Portuguesa. Era a minha primeira experiênciacomo profissional na minha área (mesmo sendo ainda estagiária). Nesse momento, eujá estava cursando o quinto período. Foi um momento de alegria, orgulho e muitaresponsabilidade e também daquele friozinho na barriga por ocasião da primeira aula

Page 75: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

74 Caminhadas de universitários de origem popular

que estava sendo ministrada. É, foi emocionante! Eu finalmente estava transmitindomeu saber para meus alunos. Mais que isso, eu estava ensinando-lhes os primeirospassos, educando-os para a vida.

Lecionei como estagiária por dois anos, até o término do contrato. Nesse instante,houve a primeira seleção para estágio em um novo projeto oferecido pela universidade - OConexões de Saberes. Fiquei entre os vinte e cinco selecionados. Uma nova oportunidadesurgia à minha frente. Então, agarrei-a com muito entusiasmo e expectativa. Nele, meusconhecimentos estão sendo aprimorados cada vez mais.

Hoje, chegando ao final do curso, percebo o quanto políticas públicas como programasde estágios são importantes na vida universitária, por proporcionarem aos estudantesexperiências de desenvolvimento e avanço no saber: no saber científico, através das teoriase das pesquisas e no saber popular, através das ações e intervenções sociais. E isso émaravilhosamente enriquecedor.

Page 76: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 75

* Graduanda em Matemática.

Minha caminhada: é um orgulho para mim e

uma homenagem ao meu pai...

Marlene Alves dos Santos*

Devemos “amar as pessoas como se não houvesse o amanhã”.Na vida temos perdas: perdas materiais e perdas familiares. Quando sofremos perdas

materiais é triste, porém, nós podemos conquistá-las novamente com muita luta; mas quandoperdemos pessoas próximas de nós por motivos que não conseguimos entender, entramosem um abismo difícil de superá-lo.

Eu passei por uma tragédia imensurável em 2003: perdi o meu pai. Ele cometerasuicídio, até hoje me pergunto quais foram as razões que levaram meu pai a ter essaatitude. Nessa época passamos por grandes dificuldades, porém, não era a primeira vez,desde os dez anos, eu e meus irmãos de 9 e 11 tivemos que trabalhar na lavoura paraajudar nas despesas de casa, pois o meu pai sofreu um acidente e quebrou a perna direitae o braço esquerdo. Antes do acidente, pai trabalhava na lavoura e nas feiras livres deCarira, vendia cereais. Minha mãe ajudava na lavoura e cuidava da casa: esse era onosso meio de sobrevivência. Com o acidente, pai ficou impossibilitado de trabalhar enessa época a família já era grande: seis filhos. Eu e os meus irmãos, que eram maisvelhos e minha mãe, tivemos que trabalhar muito para não passarmos fome. Nessemomento, tivemos ajuda da comunidade que, comovida com a situação que estávamospassando, nos ajudaram realizando um leilão beneficente para nossa família. Com odinheiro do leilão e nosso trabalho, não passamos fome. Nesse ano, plantamos muito ejustamente nessa época foi a melhor colheita que tivemos até hoje. O pai sofreu muito,o braço consertou logo, porém a perna virou uma novela repetitiva de cirurgias, no totalforam seis.

Às dificuldades continuaram mesmo quando pai retornou a trabalhar; os verõescada vez mais quentes com pouca chuva para encher os reservatórios de água, cavamosdois tanques grandes só que nunca encheram quando meu pai era vivo. Não tínhamospoços artesianos.

Todos os anos foram as mesmas dificuldades: no inverno plantávamos e o que podiaguardava para o verão como feijão, milho e farinha. No verão era problema: não tendoirrigação e os tanques com pouca água. Tínhamos que acordar de madrugada para buscarágua numa carroça em tanques e poços artesianos da comunidade. Todos os diasacordávamos a partir das duas, buscando água para podermos trabalhar numa pequenaárea, e podermos sobreviver.

Page 77: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

76 Caminhadas de universitários de origem popular

Eu e meus irmãos não tivemos infância e nem o período de adolescência, pois tínhamosresponsabilidades de adultos. Nós tínhamos que trabalhar e estudar, eles além de trabalhareme estudarem viviam nas feiras livres de Itabaiana vendendo picolé, verduras e todo dinheiroeram entregue para fazer a nossa feira. Eu, com dez anos, já era dona-de-casa e sabia cozinhar,lavar, limpava a casa e tomava conta dos mais novos.

Em 1988, comecei a trabalhar nas feiras-livres de Itabaiana vendendo cereais. A partirdaí, comecei a ter o meu próprio dinheiro; era pouco, mas era meu. E foi também quandotive a oportunidade de comprar às minhas próprias roupas, calçado; até então, o que euusava era doado pelos familiares.

No final de 2002 até 2003, passamos por turbulência, pois o tanque onde buscávamoságua estava secando, os nossos tanques estavam secos, não tínhamos água para beber,íamos buscar água para as necessidades básicas em outro povoado próximo. Pai não tinhatrabalho, a lavoura morrera.

Nesse ano, quem sustentou a família fui eu e meus irmãos: José e Ariano, até começara colheita de 2003. Pensávamos supostamente que as dificuldades iriam diminuir; estávamoserrado, pai começou a beber e as brigas entre mãe e pai eram freqüentes. Mãe não seconformava em ver tanto esforço jogado fora na bebida.

Nesses anos que se sucederam, já tinham falecido meus avós paternos, o casal quecriou mãe e meu avô materno. Minha mãe e meu pai herdaram três sítios, o que minha mãefoi criada e aquele onde foi construída a casa em que mora hoje e dois sítios de três e duastarefas. Pai tinha um amor a esse sítio chegando um dia a dizer a minha irmã que se chegassea vender ficaria louco.

Quando passou a estação do inverno, os tanques continuavam secos, então, pai tomouuma decisão: vender os dois sítios e cavar um poço artesiano. Vendeu, o poço foi cavado sóque ele queria que o poço desse três mil litros de água por hora, porém o poço só deu millitros de água por hora.

Percebemos que pai ficou triste porque ele queria demonstrar que estava feliz. Odinheiro da venda dos sítios daria para cavar e instalar. Pai gastou uma parte em bebida e odinheiro não dava mais para comprar a bomba do poço que era cara.

O poço foi instalado com uma bomba de tanque, o que não é recomendável, poisquebra com facilidade, mas pai fôra avisado; com um mês de funcionamento, quebrou; paicolocou outra bomba do mesmo tipo. O clima de casa era péssimo, muitas brigas, pai cadavez mais chegando bêbado em casa.

No final de 2003, numa madrugada, pai me acordara e me deu oito reais que estavadevendo ao meu patrão e fui dormir. Pai saiu, não desconfiamos de nada, pois era de costumesair de madrugada para ir vender verduras no mercadão. Estávamos errados!

Agradeço a Deus todos os dias a família que Deus me deu. Uma família humilde,trabalhadora; trabalhadora e carinhosa que criou oito filhos. Criaram principalmente pessoasde bem, pessoas trabalhadoras, pessoas que correm atrás dos seus objetivos.

Hoje me arrependo de muitas coisas, uma delas é principalmente de nunca terfalado o quanto eu amava meu pai, de nunca tê-lo abraçado, beijado. Hoje não tenhomais essa oportunidade, porém, se pudesse voltar ao tempo para consertar esse erro...mas isso é impossível.

Ele era um homem analfabeto, ignorante às vezes, porém uma pessoa com o coraçãode ouro que veio à terra com a missão de fazer o bem às pessoas.

Page 78: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 77

Um homem que me ensinou a ser a pessoa guerreira, nunca desistindo de um sonhomesmo que o mundo esteja contra, me ensinou também que sempre devemos seguir ocaminho do bem.

Já se passaram até esse momento três anos e até hoje choro a perda. Nesses anos, foramvários momentos de tristeza e desespero me questionando se tudo isso era verdade. Umadelas foi no meu aniversário de 2006: estava na universidade, entrei em desespero comeceia chorar, chorava sem parar, meus colegas não entenderam o porquê; outro momento estavaescutando música que falava “onde esta você agora, além de aqui dentro de mim”. Choreihoras. Outra vez foi quando estava retornando do Rio de Janeiro: eu estava realizando maisalguns sonhos que era andar de avião e viajar; dentro do avião quando estava olhando asnuvens, lembrei-me de meu pai porque eu sei que ele está ao lado de Deus e, naquelemomento, eu também estava mais próxima do meu pai.

Page 79: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

78 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Engenharia Química.

Página em construção

Mikele Cândica Souza Sant’Ana*

Gratidão é coisa muito séria e é tolhida nesse sentimento que quero, primeiramente,homenagear a pessoa mais importante de minha vida, a dona de todas as minhas realizações,o meu socorro e o meu refúgio; a pessoa por quem eu luto.

À Maria Fausta

Era uma vezUma menina que cresceu forteVenceu barreirasFoi curiosaE de menina a mulherMuitos foram os preconceitosAlguém que nunca alcançouO seu mais secreto objetivoQue não foi felizMas que aprendeuA rir, a chorar,A vencer assimA tomar remédio sozinhaA crescer sem mãeAprendeu a nunca chamar esse nomeA sempre esperar um beijoA cantar a canção de ninar sóA trocar a fralda de seu primeiro filhoUma mulher iluminadaCheia de víciosQue às vezes se torna chataQue não sabe compreender os fatos à sua voltaQue se faz forteE por dentro tem medo

Page 80: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 79

Uma mulher que protege os seusCom todas as suas garrasUma mulher de luta infinitaE que não acredita em um final felizUma mulher que guarda às inúmeras mágoas pra dentro de siMas que dá o perdão a quem pedirUma mulher que dá orgulho de se olharQue faz você se impressionarUm baú de segredos guardados só pra siUma mulher cheia de luasUma mulher que ama e sofreMas que vive mesmo sem deixar de sorrirSem parar de lutarMesmo achando que sua vida não irá melhorarUma mulher que se tornou símbolo de luta, orgulho e amorE a senhora do casteloO apoio procuradoO refúgio e o socorroA cura dos nossos medosO motivo da nossa uniãoA senhora a quem devemos respeitoQue recebe nossa admiraçãoSinônimo de luta à menina virou mulherE o destino ela esperaOlhando através das grades de sua janelaE continua vivendo a olhar...Se um dia à sonhada felicidade irá chegar

E dizem que a vida é aquilo que acontece quando fazemos outros planos e o meunascimento passou bem longe de ser algo planejado. Sou filha de uma mulher forte, guerreira,que luta e sofre... que não teve mãe e que se tornou uma, ainda muito nova e inocente. Meupai conheci aos 12 anos, isso porque ele abandonou minha mãe. Eram jovens namorados, àépoca; à cultura e o regime da casa onde minha mãe foi criada tornou esse fato o início deuma longa luta que dura até os dias atuais.

Maria Fausta, esse é o nome da guerreira que, ao ficar grávida, foi posta para fora decasa e sozinha passou a lutar contra todos que não aceitavam meu nascimento: morou narua, pediu esmolas, foi doméstica, trabalhou em mercadinho e assim foi vivendo; passoufome, mas sempre me alimentou, me agasalhou quando tive frio, me deu remédio quandoquase morri, fez promessa quando não viu saída, me deu amor sem saber ainda o que eraisso, foi humilhada e sofreu preconceitos por causa da barriga, mas a heroína da história foiforte e hoje estou aqui para contar a minha história.

Sempre senti o imenso amor que minha mãe tem por mim, ela não mediu esforços e iaalém... lembro-me bem de certa vez em que ela pediu uma roupa emprestada para participarde um concurso de música; não lembro ao certo o valor do prêmio, o que sei é queprecisávamos muito, pois passávamos necessidade. Minha mãe cantou aquela musica “...você

Page 81: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

80 Caminhadas de universitários de origem popular

pra mim foi o sol de uma noite sem fim e acendeu o que sou e renasceu tudo em mim...”,aliás, ela encantou, venceu o concurso. E muitos milagres aconteceram, acho que me amarera a promessa diária de minha mãe.

Fui crescendo e muitos acontecimentos marcaram minha vida e construíram minhapersonalidade. O nascimento do meu irmão, a formação de uma família, a força de mamãe ea nossa luta por melhores condições de vida, tornaram esses primeiros anos difíceis, foramanos de muita luta, em que minha mãe e meu padrasto tiveram que batalhar muito, unindoforças para sustentar a casa, honrando a família.

Meu supermaninho era minha companhia, brincávamos muito e brigávamostambém, enfrentamos muitas aventuras juntos, encobríamos os nossos erros para quemamãe não brigasse; nessa época ela começou a trabalhar no hospital como servente,foi recepcionista e hoje está no controle de Ráios-X. Na época, ela ficava ausentedurante o dia e às vezes à noite. Eu e meu maninho fazíamos tudo só e nem sempreatendíamos às recomendações: fui uma criança bastante travessa e ainda continuo assim,mas os ensinamentos foram os melhores.

“Felicidade não é um ponto de chegada, é na verdade o caminhoa percorrer.”

E foi o caminho que escolhi para chegar aos meus ideais: sempre estudei e era boaaluna, mas atrapalhava os professores vendendo “bugigangas” em sala, até achei que meufuturo era o comércio.

Aos 12 anos conheci o meu pai: foram momentos diferentes, não sabia o que fazer enem como chamá-lo. Aos 16 anos, passei no concurso para estudar no Centro Federal deEducação Tecnológica de Sergipe - CEFET/SE em Aracaju-SE e foi difícil sair do leito deminha família, que reside em Estância-SE, para começar a caminhar com minhas própriaspernas: aprendi a me virar sozinha, mas sempre que qualquer coisa apertava, eu voltava aprocurar o colo de mainha. Muitos amigos eu arranjei e novas famílias eu fiz, viviaacampando um mês aqui outro ali; meus gastos eram supridos com uma bolsa auxilio doCEFET-SE.

Meu dia era uma correria, fazia estágio de 20 horas semanais, cursava Ensino Médio ecurso Técnico e ainda desenvolvia pesquisas voluntárias na EMPBRAPA. Morei só em umquartinho alugado, e verdadeiros anjos me ajudaram, me deram força e consegui completarmais uma etapa; com essa correria, ainda passei no Vestibular. E cada hora, dia, mês que sepassava, meu sonho ficava mais próximo de se realizar.

Atualmente, sou aluna de Engenharia Química , curso o 4º período, meu maninho estáse preparando para viver tudo o que vivi, pois ele também passou na prova do CEFET-SE eminha mãe já está sentido a ausência do meu irmão; é, mamãe, mas a frase que você semprefala não está tão correta assim “criamos os filhos pro mundo...”, pois as raízes foram sólidase apesar de estarem longe continuam ligadas.

Sempre tive muita sorte, quando uma porta se fechava, vinte janelas se abriam; equando minha bolsa-auxilio chegou ao fim e fiquei sem dinheiro para cobrir minhasdespesas, consegui uma vaga na residência universitária: moro hoje com 7 amigas e auniversidade supre todas às despesas com moradia e parte da alimentação. É importanteressaltar que outra grande porta se abriu e a chave desta foi o Conexões de Saberes: hoje

Page 82: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 81

sou pesquisadora extensionista desse projeto. A minha contribuição é transformar alunosde comunidades carentes em multiplicadores de saber, ser espelho e contribuir para amelhoria de vida dessas pessoas, motivando-as a terem esperança, a lutar pelos seussonhos e fazerem destes realizações.

Dentro desse projeto sou professora e aprendiz; muitos ensinamentos valiosos estãosendo coletados por mim, aprendi a olhar o mundo de forma menos preconceituosa, deforma mais esperançosa e hoje, luto para que tudo dê certo, para não ouvir mais meus“meninos” (alunos) dizerem que a vida não é tão fácil assim, que dignidade é sonho e queo futuro feliz às vezes não chega. Foi duro descobrir à realidade de alguns, mas luto para quedignidade deixe de ser sonho e para que igualdade e paz sejam realidade. Estou tentandofazer a minha parte...

“Tudo que eu quiserEu vou gritar bem alto que já quisEsteja o meu destino onde estiverEu vou tentar a sorte e ser Feliz...”

Xuxa

Sinto que está ficando próximo o dia, cada vez mais meu sonho se aproxima de minharealidade; tenho muitos amigos que se tornaram parte, foram meus pilares; uma grandeamiga eu perdi e “...dói de tanto medir à distância e saber que não vou lhe tocar além dalembrança...” no mais SOU FELIZ e posso afirmar com muita certeza: “essa é a vida que euquis...” e a minha história não termina agora...

“Brindo a casaBrindo a vidaMeus amoresMinha família”

O Rappa

Page 83: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

82 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanada em Pedagogia.

Parte de minha caminhada

Paula Maria Oliveira Santos*

Meu nome é Paula Maria Oliveira Santos, nasci em 1981 na cidade de Capela, interiordo Estado de Sergipe. Hoje, moro em Aracaju, capital do Estado com a minha família;venho de uma família humilde e tenho como exemplo de vida minha mãe, Maria JoséOliveira Santos e a minha avó Maria Dilza Andrade.

Nelas me espelhei para enfrentar todos os obstáculos impostos pela vida, pois elas são muitolutadoras, incapazes de aceitar passivas às dificuldades do dia-a-dia. Sempre estudei em escolaspúblicas, pois meus pais não tinham condições de pagar uma escola particular para três filhos.

Tivemos uma criação em que todos são iguais: o que pode ser feito pra um é feito portodos e comecei a estudar. Desde cedo minha mãe sempre disse que o que temos de maisimportante na vida, claro, que depois de Deus, são os estudos e como não tinha condiçõesde nos oferecer outro bem, pelo menos, não nos deixaria sem o estudo para que pudéssemoster um emprego melhor futuramente.

Ela sempre quis ver todos os filhos cursando uma universidade, mas não poderia serqualquer, uma tinha que ser a Universidade Federal de Sergipe, pois é a melhor para tornaras pessoas preparadas para enfrentar o mercado de trabalho e a vida;

Ao terminar o segundo grau, prestei exame vestibular e não obtive êxito e, com muitoesforço, a minha mãe pagou um cursinho de bairro e com pouca credibilidade, mas foi decoração e pra mim é o que importa, mas no final do ano fiz as provas e consegui ficar entreos classificados, mas não passei para a última fase, porém, a minha mãe não me deixoudesanimar e no ano seguinte, ela novamente pagou um outro cursinho e prestei novamentevestibular: dessa vez consegui ser aprovada.

A felicidade foi tanta que falei primeiro para a minha mãe e a segunda pessoa, a saber,foi a minha avó que ficaram tão felizes ou quem sabe até mais feliz que eu, pois o sonho dasduas era me verem, como também aos meus irmãos, tendo uma oportunidade de estudar emuma universidade e progredir na vida.

No primeiro dia de aula na universidade foi uma loucura: tudo muito novo para mim;tive que aprender a me localizar uma vez que não tinha ninguém para ajudar aos calouros aacharem as salas; nem as didáticas. Peguei meus horários, entrei no Departamento de Direitopensando serem as didáticas. Por essa razão, me atrasei para a aula; acabei no meio daconfusão encontrando uma amiga, do primeiro cursinho que freqüentei que, por incrívelque pareça, também se encontrava perdida.

Page 84: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 83

Então resolvemos nos ajudar e o mais legal é que descobri que ela havia passado parao mesmo curso que eu e no mesmo ano. Então, nós fomos para a sala que achávamos ser anossa sala. Como estávamos atrasadas, tínhamos perdido a apresentação do professor eficamos lá até que em um determinado momento em que o professor menciona o nome damatéria Política II e a minha matéria seria Política I. Ficamos desconcertadas e todosperceberam que estávamos na sala errada e, quando nos levantamos para sairmos, todos osalunos bateram palmas, uma forma de demonstrar que sabiam que éramos calouras.

Com o passar do tempo na universidade, passei a conhecer apenas a estrutura físicadela e achava que era só aquilo a universidade, mas quando tive a oportunidade deingressar no Programa Conexões de Saberes, pude perceber que a universidade vai alémde suas paredes.

Formar pessoas é mais que oferecer leituras e um conhecimento que depois de suaida para o mundo não saberá onde nem como aplicá-los; é dar aos alunos a possibilidadede ingressar em uma universidade, mas também permanecer nela e com dignidade, torná-los cidadãos pensantes e enquanto acadêmico, uma pessoa envolvida com seudesenvolvimento cultural.

O programa me fez ver o quanto é importante compartilharmos os saberes, sejam elescientíficos ou populares, pois é através deles que construímos os saberes da nossa vida; nãopossui nenhuma pessoa que seja somente saber popular ou puramente saber científico, massim, pessoas que unem essas duas vertentes de saber para construir uma vida mais produtivae se constituir pessoa.

Depois do Programa Conexões de Saberes pude ver o papel real de uma pessoa perantea sociedade que não facilita as coisas para alunos de origem popular os quais conseguemingressar em uma IFES (Instituição Federal de Ensino Superior) chance pela qual devemoslutar não só pela entrada dos estudantes de origem popular em universidades, como também,pela sua permanência nessas instituições.

Estou me esforçando para melhorar a minha atuação na universidade já que agora tenhouma ajuda para permanecer nela e cursá-la com qualidade, além de contar com a expectativade conhecer melhor às possibilidades de atuação em minha comunidade de origem.

Page 85: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

84 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Matemática Licenciatura.

Fontes de estímulos

Shirlei Souza Passos*

Sempre tive meus pais como minha fonte de estímulo, eles sempre foram a minha forçae a razão de toda a minha persistência em busca dos meus ideais.

Bem, meus pais são de origem humilde, principalmente minha mãe. Cresci ouvindosuas lições de vida, pois essa mulher batalhadora ainda em sua vida de solteira percorriaquilômetros carregando lenha e água na cabeça juntamente com seus irmãos mais velhos,pois o fogão era à lenha e não havia água encanada. Ela não conseguiu nem concluir aterceira série do ensino fundamental: eram muitas às dificuldades que tinham que enfrentarpara prosseguir estudando.

Meu anjo, ou como queira, meu pai veio de uma família que tinha uma condição umpouco mais favorável, mas só estudou até a quarta série do ensino fundamental.

Ambos casaram aos 19 anos e graças a Deus essa união já dura quarenta e quatro anos.Tiveram quatro filhos, Wellington, Cleverton, Cheila e eu. Os três primeiros filhos nasceramem casa; eu fui a única a nascer na maternidade. Meus pais sempre foram muito presentes,nos deram e nos dão muito amor, atenção e compreensão.

Um Pouco da minha infância

Meus primos foram meus grandes amigos de infância, não tínhamos brinquedos, masisso não era problema, pois meu pai fazia no quintal casinha com pedaço de madeira ecobria com papelão. Era lá que me refugiava em momentos de tristeza e alegria.

Minha primeira boneca ganhei de uma vizinha, era usada, mas ao vê-la, meus olhosingênuos logo lacrimejaram, pois sempre sonhei com uma; até hoje tenho-a comigo. Vivíamoscom a renda de um pequeno bar que se situava em minha própria casa e o dinheiro arrecadadomal dava para nossa alimentação. Lembro-me de momentos muito difíceis e de profundatristeza do meu pai, pois as dívidas chegavam e o pouco dinheiro era insuficiente para fazera feira e arcar com as despesas da casa.

Era uma criança ansiosa, mas muito comunicativa. Aos dez anos, era vendedora, portaem porta, de produtos apresentados em revista. Depois, comecei a vender perfumes parauma vizinha da minha tia. No início era bom, pois ela me pagava a porcentagem certa, mascom o tempo isso mudou: a cada dinheiro que recebia, achava que ia solucionar o problemada minha família.

Page 86: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 85

Apesar de tudo só tenho boas recordações da minha infância, pois era muito amadapor meus pais e sempre contei com a ajuda de minha tia Patrocínia que costurava e faziaroupa para mim.

A escola em minha vida

Comecei a estudar aos cinco anos, na Escola Estadual Sílvio Romero. Só saí dessaquando terminei o ensino fundamental.

Enquanto aluna, sempre fui dedicada, gostava de estudar. Meus pais não sabiam meensinar, pois a escolaridade era pouca e meus irmãos não tinham paciência. Então, conteicom a ajuda da minha vizinha Nivalda que, com muita singeleza, me ensinou a ler e escrever.

Ainda na 6ª série do ensino fundamental por influência da professora Auxiliadora queministrava tão bem as aulas de matemática, despertei o desejo de estudar e ver essa disciplinade forma especial. A partir desse momento, sempre tive uma certeza: quero ser professora dematemática. Quando, na sétima série, revelei isso a uma outra professora da mesma disciplina,fiquei surpresa com sua resposta, pois falou-me que não era tão simples, pois era necessáriaminha aprovação no vestibular, pois além dos sergipanos na disputa tinham pessoas deoutros Estados, e o número de alunos da rede pública que conseguiam passar nesse exameera pouco. Foi a primeira vez que ouvi a palavra vestibular e isso me fortaleceu bastante,pois sabia que meu desejo não era tão simples como imaginava. E, no meu íntimo, tinha acerteza de que um dia ia conseguir.

Nessa escola, na época só tinha o ensino fundamental. Foi então que, após o final da oitavasérie, pedi a meu pai que me inscrevesse no exame de seleção do CEFET/UNED-Lagarto, poisdesejava fazer meu ensino médio lá. Consegui ser aprovada, meus pais ficaram muito felizes,pois viam como era disciplinada nos meus estudos. Por ser uma escola pública de boa qualidade,estudei com pessoas de diversas classes sociais, mas nunca me senti inferior.

A partir do segundo ano, na mesma escola, comecei a fazer o curso técnico deConstruções Prediais. Gostava muito, mas ao final do terceiro ano, tomei a decisão de fazero trancamento desse curso profissionalizante e ir em busca do sonho de ingressar em umauniversidade pública.

Com o dinheiro que ganhava dando aulas de reforço em minha casa e com a ajuda demeu pai, consegui pagar o pré-vestibular. Foi um ano muito difícil, a situação financeira emminha casa estava cada vez mais crítica e eu cobrava de mim essa aprovação. Estudavatodos os dias, renunciei a finais de semana e minhas madrugadas de sono, pois precisava serbem-sucedida profissionalmente e proporcionar uma vida melhor aos meus pais. Comoestava com um ritmo muito intenso de estudo e me cobrava bastante, fiquei ansiosa e onervoso me possuiu.

Como não tinha parentes em Aracaju, fui fazer as provas todos os dias num táxilotação. Todos contavam com a minha aprovação, pois me dediquei muito, mas não consegui.Além da insegurança, no terceiro dia de prova, esqueci meus documentos no táxi. Sem eles,minha entrada na escola não seria possível. Após muitos transtornos e momentosinesquecíveis de desespero, consegui entrar no colégio, porém, não tinha mais condiçãoemocional para fazer o exame e acabei desmaiando.

Fiquei decepcionada, mas contei com o apoio do professor Guido que me arrumoubolsa de estudo integral em um pré-vestibular. Gostava das Exatas, logo decidi fazer umcurso de concorrência menor, pois não queria correr o risco de ser reprovada e continuar

Page 87: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

86 Caminhadas de universitários de origem popular

trabalhando nas lojas do comércio da minha cidade, pois o dinheiro que recebia mal davapara a xérox. Foi então que decidi por Química Industrial. Eu e minha família ficamos muitofelizes com a aprovação, confesso que até hoje não experimentei sensação melhor. Mas ocurso era diurno e eu não tinha onde ficar, nem como me manter em Aracaju. Recorri aoprograma de Residência Universitária que me acolheu, e atualmente divido apartamentocom sete pessoas além de mim.

Ao iniciar o curso, percebi que tinha feito a escolha errada, pois só gostava das aulasde cálculo. Revelei aos meus pais o que estava acontecendo comigo e tive apoio. Masinfelizmente o dia da compra do formulário de inscrição passou, e não tive dinheiro paracomprá-lo. No último dia de levar o formulário preenchido com a escolha do curso na UFS,minha amiga Ana Maria me ligou e pediu que eu fosse pegar um envelope com um coleganosso. Para minha surpresa, ao abri-lo, deparei-me com a inscrição e além disso, todo o seuapoio, pois sabia o quanto isso era importante para mim. Fui aprovada novamente, sou aúnica universitária de toda minha família.

Agradeço a Deus por tudo que tem feito em minha vida, especialmente por ser bolsistado Conexões de Saberes, Programa que possibilita minha permanência na UFS e que meproporcionou o prazer de ter minha primeira turma de alunos, firmando assim minha vocação.

Page 88: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 87

A árvore da minha vida

* Graduanda em Serviço Social.

Thaís Feitosa Teixeira Rodrigues*

Não foi fácil, mas até aqui cheguei. O caminho percorrido é passado, mas jamaisesquecerei. Afinal, não me sai da memória, o tempo bom de interior, a cidade de Propriá,onde nasci e me criei. É claro que nem tudo foram flores: quando eu nasci em 11 de junhode 1985, meus pais além de serem novos, ainda dependiam de seus pais para o seu própriosustento. Foi numa casa cedida pelos meus avós paternos que construímos o nosso cantinho,lugar onde reside toda a nossa história, onde se encontra aquela parede rabiscada pelaemoção de se conhecer às primeiras letras do alfabeto, a cadeirinha feia que eu tanto canseide visitá-la. Foi lá também que presenciei as discussões dos meus pais na busca de soluçõespara os problemas financeiros, inclusive onde eu iria estudar, já que as escolas infantis nasua maioria eram pagas, até que uma senhora de muita sabedoria chamada Maria de Lourdescomeçou a ajudá-los não só no aspecto financeiro, mas de qualquer outra forma possível,foi a minha querida vovó, o pilar sustentador da minha família nos primeiros anos. Comauxílio de uma bolsa pude realizar meus estudos numa escola católica da cidade durante 15anos. A mesma escola onde estudavam os filhos dos políticos, comerciantes de toda aredondeza do baixo São Francisco. Esse convívio fez nascer em mim uma certa vergonha daminha origem, perdi as contas de quantas vezes inventei uma desculpa qualquer para nãolevar os meus coleguinhas para a minha casa, de quantas vezes escondi os meus livros doresto da turma para que eles não percebessem que eram de segunda mão, com receio de sertaxada de pobre e ser discriminada. Foi todo esse processo que me fez tomar consciência dequão é excludente a sociedade, como também, que a maioria das pessoas julgam pelo quevocê tem e jamais pelos valores e princípios que possui e assim deixei de dar importância aoque iam pensar ou falar de mim e me dediquei ao máximo para ser eu mesma. Foi assim queconheci pessoas que conjugavam o meu pensamento; daí, se formaram verdadeiras amizades,e que almejavam um mesmo sonho: o ingresso na Universidade Federal de Sergipe. Umsonho que, para mim, seria uma forma de agradecimento aos meus pais que tanto sesacrificaram por mim e pelos meus dois irmãos. Ter passado no vestibular foi um dosmomentos inesquecíveis da minha vida, mas só foi o primeiro passo. As atenções se voltarampara como seria a minha permanência numa cidade desconhecida e sem os meus pais; asegunda batalha vencida foi ter sido selecionada no Programa de Residência da UFS em 1°lugar. Mudanças extraordinárias aconteceram na minha vida entre 2003 e 2004 e quandome percebi estava morando numa cidade diferente, estudando na UFS e academicamente

Page 89: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

88 Caminhadas de universitários de origem popular

feliz, totalmente apaixonada pelo Serviço Social. A entrada no Conexões em 2006 reforçoutodas as transformações intelectuais que vinham fazendo parte do meu processo deamadurecimento, no sentido de fortalecer os valores nos quais acredito como essenciaispara a formação de um mundo melhor, de pessoas realmente humanas no modo de agir.Acredito que todos podem fazer a sua parte: a árvore tem que ser plantada por cada um denós, mas não de qualquer jeito, pois se lhe podarem as folhas, a árvore deverá ter forças parabrotar novamente e mais viçosa;

o seu caule deve conter aquilo que se tem de mais precioso:

honestidadehumildadeesperançaliberdade

famíliaamizade

justiça éticaamor, garra, uniãovontade de vencer

e as suas raízes dizem tudo:Á R V O R E D A M I N H A V I D A

Page 90: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 89

Retalhos do eu... por mim mesmo

Graduando em Filosofia.1 BILAC, Olavo. Poesias.Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1916, p. 220. (Sexta edição revista).

Tiago do Rosário Silva*

Olha estas velhas arvores, mais bellasDo que as arvores novas, mais amigas:Tanto mais bellas quanto mais antigas,Vendedoras da idade e das procellas...

O homem, a fera e o insecto, à sombra dellasVivem, livres de fomes e fadigas;E em seus galhos abrigam-se as cantigasE os amores das aves tagarellas.

Não choremos, amigos, a mocidade!Evelheçamos rindo! EnvelheçamosComo as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,Agasalhando os pássaros nos ramosDando sombra e consolo aos quepadecem!1

Do caos deriva o turbilhão de possibilidades de formação das coisas, ou seja, a partirdo emaranhado de átomos que se movimentavam de forma desordenada, formaram-semundos, dos quais um deles é o nosso, este mundo bizarro, no qual somos obrigados a ser.Não apenas ser, mas ser Ser. Podemos pensar nos milhões de espécies de vida que existem nomundo, toda a flora e a fauna apenas existem, diferentemente, o ser humano precisa de umsentido para viver, não nos basta viver, é preciso viver vivendo. Foi dessa forma que seconstitui a história de um jovem de origem popular, que não é só minha, mas também daminha família e das pessoas que fazem parte de minha vida.

Escrever sobre mim mesmo é sempre algo difícil, que requer toda a atenção possível.É reviver o já experimentado, de modo que tenho a possibilidade de sentir prazer, tantoquanto de ferir-me novamente. Porém, faz-se necessário dizer algo sabre aquilo que podeser a minha história. Posso escrever em duas pessoas verbais: na primeira, sendo que, com

Page 91: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

90 Caminhadas de universitários de origem popular

esta comprometo toda minha fala, ou na terceira, na qual me ausentaria de mim mesmo,tornando-me apenas um outro que fala de mim. Mas ainda que recorresse ao lirismo dapoesia não seria possível dar a conhecer aquilo que se vive; toda experiência é extremamentepessoal, mesmo que compartilhada com outros tantos que se nos aproximam. São tantos osmodos que a linguagem nos permite expressar o que somos que nenhum deles diz o nossoser. Nesse momento, recorremos ao que foi posto por Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”.Essa foi, é e será a eterna ânsia de conhecer do ser humano.

Reviver em memória

Primeiro saiba que eu poderia não ser hoje esse que sou... Tiago, já que dizem que oque nos identifica é o nome. Não o vejo assim, o que nos diferencia do outro é o eu mesmo,de modo que sendo Bartolomeu, Zé da Silva, Tertuliano, Xiculino ou qualquer outro que aminha mãe, Maria Francisca do Rosário Silva com o consentimento do meu pai, José deCarvalho Silva, quisesse convencionar que fosse o meu nome, não me diferenciaria do quesou, apenas seria chamado de forma diferente (do que sou), pois sendo outro, seria apenasoutro (exteriormente). E sendo assim (mesmo outro), continuaria sendo o irmão mais novodo meu irmão mais velho, João Marcos, até que nascesse o meu irmão mais novo, JoãoDiego, formando o trio que construía fazendas com pedaços de pau e comercializava boisde barro ou de búzios.

Meus seis primeiros anos de vida foram vividos na roça, como se diz por aqui. E nessetempo, lembro-me muito bem de cada tanque seco com suas rachaduras poéticas. Desdeessa época, algo em mim já era diferente, sentia um impulso que me levava mais longe,recordo-me que admirava as pedras e nelas via algo muito diferente do que são. Penseimuitas coisas em relação à elas, imaginei grandes construções e possibilidades de infinitude,no entanto, tudo isso era o que não conhecia. Rememoro também que podia ver o mundoalém dos brinquedos que nunca tive. A certeza de que a natureza tem regras próprias e nãopermite que as injustiças sejam eternas, já era um consolo. E isso me permitia toda a alegriado mundo quando meu pai chegava da feira aos sábados e trazia bolachões; essa alegria eraainda maior quando, em vez de qualquer outra coisa, trazia doces, pois uma bala que fosseeternizava meu sorriso, como o de qualquer criança do interior.

Tudo isso só foi possível depois do que chamo de “ressuscitamento do eterno”. Eunasci com um tumor na cabeça e este foi sinal de incômodo inigualável em minha primeiravida, diz minha mãe que foram dias de “choro eterno”. Eu não posso recordar esse sofrimento;foi no meu primeiro mês de vida, destarte, posso reconstruir a partir dele a possibilidade deuma vida, a que vivo, oposta a uma não existência no mundo, ou de uma simples existênciavegetante. Esta vida, além de ser debitada no íntimo daquele que é o ordenador de tudo, eua agradeço, por meio d’Ele, a duas mulheres de fibra, tia Ávila e vovó Joana. Hoje, apenaso que tenho desse sofrimento, são marcas que não me possibilitam raspar a cabeça... risos.

A certeza de que a nossa pobreza nunca seria o bastante para tornar-nos grandes, era amesma da força para a luta que poderia nos eternizar. Foi isso que impulsionou meus pais amandarem primeiro meu irmão mais velho para a cidade, deixando-me com uma inveja boa,que teria satisfação no ano seguinte, quando todos nós fomos morar na cidade, na casa deJosina Francisca, minha avó materna. Nesse momento, começa para mim uma jornada deesperança depositada nos estudos. Posso dizer sem ressentimento, não tinha o menor jeitopara a lavoura e isso foi percebido pelos meus pais. E tinha um sonho que não me era

Page 92: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 91

permitido realizar por muito tempo, qual seja, o de cavalgar. Quando pude fazer isso pelaprimeira vez, foi longe de casa, num sítio de meus tios. A experiência foi unificadora, ocavalo disparou em tamanha velocidade que pude sentir ainda mais o quanto a naturezacorresponde ao respeito devotado pelos homens. Sentir o vento contra mim, me aproximavada natureza, isso era gratificante já que a possibilidade de cair me fazia segurar mais nasrédeas que quase não existiam; assim, veja como tem sido a minha existência.

Os primeiros anos na cidade

Quando fui morar na cidade, Poço Verde-SE, comecei na primeira série do EnsinoFundamental. Fiquei encantado com a professora e nesse tempo já era dedicado, poisnenhuma criança de seis anos queria ver a professora nua na sala de aula. A minha professora,Ana Rita, ameaçava que se fizéssemos bagunça, ela iria tirar a roupa.

Por saber que o meu caderno teria que durar o ano inteiro, jamais arranquei uma folhapara futilidades. Para os rabiscos que gostava de fazer eu conseguia bilhetes de loteria, e usavao verso das folhas de exercício. Isso provocava um amontoado de papéis velhos que eusempre admirei. Gostava de me imaginar com muitos papéis e livros espalhados perto de mim.

É bom lembrar que, paralelamente à educação escolar, veio também a formaçãoreligiosa, inicialmente muito pesada para uma criança. Minha avó materna já estavaesclerosada e se perdia todos os dias ao voltar da Igreja; e olhe que morávamos a apenasuma quadra da Matriz. Desse modo, fui obrigado a acompanhá-la todos os dias e dormirdurante às inacabáveis homilias do padre, o que depois se tornar menos pesado por mesentir útil recolhendo os cadernos de canto ao final da missa. Isso se tornara prazerosoporque depois de algum tempo comecei a ir para a catequese e lá tive aproximação com asIrmãs de Santa Maria de Namur, que foram as formadoras religiosas de gerações na minhacidade. Como sempre fui muito danado, algo que parece comum aos Tiago-s, de vez emquando Irmã Gabriela chegava para ter conversas sérias comigo, o que me deixava muitotemeroso, mas logo passava.

Lembro-me de que na escola, minha turma e eu éramos um pouco exaltados ebuscávamos além daquilo que nos era proporcionado. A vida escolar além de dedicação aosestudos foi uma grande aventura. Talvez o leitor possa duvidar de nossa sanidade, porém,tudo o que vivemos fôra excepcionalmente emocionante. Na quinta série, a professora deredação pediu que criássemos um produto e fizéssemos a propaganda deste. Aqueles amigosmais próximos tinham algo em comum e depois da propaganda resolvemos ter uma (maluca)experiência de um casamento extraterrestre, no qual alguns eram marcianos e outrosjupterianos. Pode ser loucura, mas esse ato movimentou a turma inteira. Então, marcamos adata do casamento, ao qual sabíamos que ninguém compareceria, assim como acontececonstantemente na vida humana. É como se estivéssemos apenas interpretando uma grandepeça teatral: a vida. Nela, quando queremos simplesmente não comparecemos, nãoassumimos as responsabilidades de uma vida pautada na virtude, chegamos a desconsiderartodos os nossos valores apenas para não corrermos riscos. É muito fácil estar isento depronunciar, de manifestar nossas concepções e confrontá-las com as de outros, desse modo,a lógica individualista nos põe cada vez mais afastados uns dos outros e sem perspectivasde ações em comum. Na atualidade, a luta tornou-se muito pessoal e não se pensa mais notodo; desse modo, somos obrigados a nos dedicar exclusivamente ao que nos propomospara crescermos, porém, sozinhos.

Page 93: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

92 Caminhadas de universitários de origem popular

E depois...

Na seqüência vêm as quatro moças com seus potes de água nordestina, minhas quatroirmãs Maria Aparecida (supracitada), Ana Taynara Silva, Josynadlla e Josefa Mirian, àsquais tenho um carinho muito especial, mas que ainda não sei o que farão de suas vidas. Aodizer “potes de água nordestina” quero ressaltar o orgulho de fazer parte desta terra, oNordeste. Uso essa metáfora para expressar a esperança e a luta por um futuro promissor.

Triste de quem vive em casa,Contente com o seu lar,Sem que um sonho, no erguer de asaFaça até mais rubra a brasaDa lareira a abandonar!Triste de quem é feliz!Vive porque a vida é dura.Nada na alma lhe dizMas que lição da raiz –Ter por vida a sepultura.Eras sobre eras se somemNo tempo que em eras vêm.Ser descontente é ser homem.2

Existe um tempo na vida em que o ser se torna agonizante, é o momento das grandesdúvidas. Nele não sabemos o que somos, nem se somos; tornamo-nos encarnação da dúvidae nela nos questionamos: O que sou? Quem sou? E o mais angustiante, o que quero ser?Nesse estágio da vida humana, o tempo se torna eterno e nunca acreditamos chegar a umaconclusão, talvez porque não se chega ao fim senão pela morte. No entanto, não é possívelviver sem decisões e elas sempre são escolhas, através das quais sempre que as efetuamosganhamos algo, mas também perdemos outra coisa. Só saberemos se realmente foi válido terescolhido depois de fazer a experiência e isso requer tempo vivendo o que se quer viver.Desse modo, se passou meu tempo de ensino médio e minha primeira escolha foi fazervestibular para filosofia. Meus pais não aceitavam porque sabiam que jamais iriam poderme manter na capital, mas eu era teimoso e sempre acreditei em minhas possibilidades, luteipelo que acreditei; é tanto que eu trabalhava na feira fazendo carrego (como se diz emminha cidade: pegando frete) porque sabia que não seria possível tirar do orçamento familiaro dinheiro para pagar a taxa de vestibular e comprar os livros de que eu iria precisar. Merecordo muito bem que nem na biblioteca municipal, nem na da escola, existia um exemplarque fosse dos livros de literatura exigidos para o concurso. Trabalhei seis semanas paracomprar o primeiro livro, (o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles) o qual licom muita dedicação, assim como, fiz com os outros.

2 PESSOA, Fernando. O eu profundo e outros eus. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1994, pp. 60-61.

Page 94: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

Universidade Federal do Sergipe 93

Nessa época, fiquei sabendo de uma prova de seleção para o Projeto Alvorada, queenglobava cinco bolsistas e duas coordenadoras, pessoas de comunidades popularespara trabalhar com as comunidades populares. A vaga se deu devido ao fato de um dosbolsistas ter se afastado, pois o projeto já estava sendo executado há algum tempo. Meinscrevi, fiz a prova e a entrevista e enfim ao receber a notícia de que havia passado paraocupar a única vaga em pleito, fiquei muito feliz, foi mais um motivo continuaracreditando em mim. O trabalho foi gratificante, pois eu me reconhecia no meio e sentiaprazer no que fazia.

No Processo Seletivo Seriado (PSS 1ª e 2ª séries) da Universidade Federal deSergipe, fiquei numa colocação que considero boa. Era meu sonho entrar para aUniversidade, e o Seminário também fazia parte dos meus sonhos. Estava disposto aabandonar o sonho da Universidade (pelo menos no momento) para me dedicar à vidareligiosa. Fiz os encontros vocacionais na Diocese de Estância, decidi pela caminhadareligiosa e passei no vestibular.

Ao receber a notícia da aprovação no curso de Filosofia da UFS, fiquei muito feliz, eragratificante receber um bom resultado do investimento feito durante tanto tempo. Porém,levei a fundo a decisão de ir para o seminário e desisti da Universidade e no mês de fevereirode 2004, mais precisamente no dia 21, viajei para a cidade de Estância-SE. Para isso, tive oapoio de minha família, da comunidade e do padre da minha paróquia. Deus teria reservadoalgo novo para mim: o Reitor do Seminário (Pe. Adeilton) e o Pároco (Pe. Ribeiro)conversaram com o Bispo e me foi permitido fazer o curso de Filosofia na UFS, sendoseminarista. Sempre busquei corresponder à tal oportunidade, talvez incompreendida poralguns. Foi um tempo enriquecedor, a vida religiosa nos ensina a viver em comunidade, adividir alegrias e tristezas, tornando comum o que é particular e preservando aindividualidade de cada um. Buscava conciliar o Seminário e o Curso de Filosofia, o quenão é fácil, porém não se pode dizer ser impossível, sempre conseguir.

Entrei no Seminário por uma certeza e permaneci por uma dúvida. Uma ajuda enviadapor Deus foi a direção espiritual do Pe. Humberto, pessoa que sempre pareceu justa e dignapela peculiar coerência ao Evangelho. Foi uma das principais pessoas com quem converseie pude partilhar todas às angústias em relação a mim mesmo, à religião, e ao mundo, poisnem sempre as pessoas estão dispostas a ouvir questionamentos sobre aquilo que fazem. Afilosofia sempre me fez questionar sobre a religião, sobre Deus, porém, nunca pôs dúvidasquanto a minha fé n’ELE. Isso foi bastante para conseguir tomar a decisão de sair do Semináriopor minha conta, na hora certa, sei o quanto deve ser de doação a vida sacerdotal e nãoestava preparado para tal, muito menos para ser incoerente ou irresponsável. Foram doisanos de constante insatisfação com a dúvida que me corroía, seria trágico se não fossecômico, mas essa angústia me presenteou oito meses de enxaqueca diária antes de tomar adecisão. O que de certa forma prejudicou o meu rendimento tanto na no curso quanto noâmbito da vida religiosa por não conseguir me concentrar.

Tudo correu bem de modo que foi se confirmando que a decisão estava certa. Nomesmo mês em que saí do Seminário, consegui me inscrever para o Programa de ResidênciaUniversitária da UFSE e para o Programa Conexões de Saberes, do qual não tinha nenhumareferência. Fui selecionado para ambos os programas e, enquanto esperava a convocaçãopara ocupar a vaga de residente, morei com alguns amigos de infância que se mantêmtambém com dificuldades.

Page 95: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões

94 Caminhadas de universitários de origem popular

Na universidade enfrento grandes dificuldades, as quais não vou enumerar aqui, masé bom lembrar que muitos jovens passam por isso devido ao sistema de exclusão que asuniversidades desenvolvem, tudo isso também se dá devido ao sistema educacional nãoproporcionar bases sólidas. Mas quero dizer que o Conexões é uma porta pela qual aindamuitos estudantes de origem popular irão passar e terão oportunidades, mesmo não sendoele suficiente para resolver os problemas da educação brasileira.

A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que járecitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minhaatenção está presente e por ela passa o que era futuro para setornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima se abrevia, atéque esta fica totalmente consumida, quando a ação, já todaacabada, passar inteiramente para o domínio da memória.3

Enfim, este momento dá azo a diversas possibilidades de rememoração, mas não podemosaqui dizer muito. O que foi dito é apenas parte do que pode ser um todo que não é todo.

3 AGOSTINHO. Confissões. Trad. De j. Oliveira Santos, S. J., e A. Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo: AbrilCultural, 1980, p. 229.

Referências Bibliográficas

PESSOA, Fernando. O eu profundo e outros eus. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 1994.BILAC, Olavo. Poesias.Rio de Janeiro: Francisco Alves e Cia, 1916, p. 220.(Sexta edição revista).AGOSTINHO. Confissões. Trad. De j. Oliveira Santos, S. J., e A. Ambrósio de Pina, S. J. SãoPaulo: Abril Cultural, 1980, p. 229.

Page 96: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões
Page 97: UFSobservatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Caminhadas... · Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões