UFRJ MN Tese Bonet Medicos de Familia
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
OS MDICOS DA PESSOA. UM ESTUDO COMPARATIVO SOBRE A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL
Octavio Andrs Ramn Bonet
2003
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OS MDICOS DA PESSOA. UM ESTUDO COMPARATIVO SOBRE A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL
Octavio Andrs Ramn Bonet
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do titulo de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2003
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OS MDICOS DA PESSOA. UM ESTUDO COMPARATIVO SOBRE
A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL
Octavio Andrs Ramn Bonet
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno da ttulo de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente, Prof. Luiz Fernando Dias Duarte
_____________________________
Prof. Otvio Velho
______________________________
Prof. Gilberto Velho
______________________________
Prof. Srgio Carrara
______________________________
Prof. Kenneth Rochel de Camargo Jr.
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2003
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Bonet, Octavio Andrs Ramn Os mdicos da pessoa. Um estudo comparativo sobre a construo de uma identidade profissional.- Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS, 2003. xiii, 363 f.: il. 31 cm. Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional / Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, 2003. Referncias Bibliogrficas: f. 363 1. Medicina de Famlia. 2. Identidade profissional. 3. Pessoa. 4. Emoes. I. Duarte, Luiz Fernando Dias. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. III. Ttulo
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OS MDICOS DA PESSOA. UM ESTUDO COMPARATIVO SOBRE A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL
Octavio Andrs Ramn Bonet
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.
O objetivo deste trabalho analisar o processo de construo da identidade dos mdicos de famlia como um grupo social a partir de dois aspectos: a institucionalizao e a epistemologia. Estes dois aspectos so inter-relacionais, de modo que as mudanas em um produzem mudanas no outro. Estes dois aspectos foram estudados atravs de etnografia realizada nos contextos pblicos e privados, nos mbitos nacionais da Argentina e do Brasil. Isto possibilitou observar as tenses vividas pelos agentes no processo de estruturao dos diferentes grupos e como foi sendo construda uma epistemologia alternativa, baseada na busca de uma viso integral da pessoa. A partir da anlise destes dois enfoques, o institucional e o epistemolgico, possvel concluir que a medicina de famlia, na construo de sua identidade profissional, assume um sincretismo epistemolgico que une elementos individualistas e holistas, assim expressando uma das tenses bsicas do Ocidente entre uma posio mais universalista e outra mais romntica. Palavras-chave: medicina de famlia; identidade profissional; prticas mdicas; pessoa; emoes; Brasil; Argentina.
Rio de Janeiro Fevereiro, 2003
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PERSON-CENTERED PHYSICIANS: A COMPARATIVE STUDY
ON THE CONSTRUCTION OF A PROFESSIONAL IDENTITY
Octavio Andrs Ramn Bonet
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.
The purpose of this dissertation is to investigate the process of identity construction of family doctors as a social group. This inquiry will elaborate on the institutional and epistemological aspects of this type of medical practice. These two aspects are so intertwined that they affect each other. The ideas presented here were arrived at through ethnographic research in the public and private medical sectors, in Brazil and Argentina. It was possible to identify the tension experienced by the agents in the structuring process of different groups and how an alternative epistemology began to be constructed, on the basis of a search for an integral vision of the person. Through these two approaches, the institutional and the epistemological, it can be concluded that family medicine, and the construction of this professional identity creates an epistemological syncretism that combines individualist and holistic elements. This expresses one of the basic tensions of the West between a more universalist position and a more Romantic one. Key words: Family Medicine, Professional identity, medical practice, Person, emotions, Brazil, Argentina.
Rio de Janeiro Fevereiro, 2003
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A meu pai, O primeiro mdico de famlia que conheci. A Tatiana, por tudo o que .
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Agradecimentos
Este foi um projeto de longo flego, sua feitura exigiu muito de mim e dos que
me rodeiam. Mas se hoje estou escrevendo algo que se chama agradecimentos
porque uma srie de pginas deixaram de estar em branco; por essa razo, ao escrever
estas linhas tenho um confuso sentimento de alegria e realizao junto com angstia e
cansao. Em todos estes anos vrias pessoas me ajudaram para que este projeto tenha
alcanado o grau de desenvolvimento que me permite hoje escrever estas linhas. Por
isso gostaria de agradecer a muitas pessoas.
Em primeiro lugar gostaria de agradecer a Luiz Fernando, orientador e amigo j
h nove anos. Ele soube sempre ter a palavra certa, equilibrar minhas tendncias para
um pensamento laxo com uma idia precisa e me dar a mo quando eu deslizava em
uma das escorregadas romnticas.
Aos professores do Museu que em seus cursos me deram a possibilidade de
chegar s idias que hoje compem esta tese. A Gilberto Velho, por suas contribuies
nas etapas da qualificao; a Otvio Velho, por ser aberto e por me ter levado a
redescobrir Bateson. Gostaria tambm de agradecer aos membros da banca, Kenneth
Camargo Jr., Jane Russo e Jos Sergio Leite Lopes por terem aceitado ler esta tese. E,
especialmente, a Srgio Carrara, pelas vrias e espaadas conversas em que foi
contribuindo para este trabalho.
A todos os colegas que em diversos congressos fizeram comentrios sobre
minhas exposies, espero que sintam que foram incorporados a esta tese. Tambm
agradeo ao CNPq por ter me concedido uma bolsa possibilitando que eu me dedicasse
exclusivamente e este projeto.
Um imenso agradecimento a Tnia e Rosa por sempre estarem prontas para
ajudar e resolver questes burocrticas; so elas que nos do respaldo. Tambm
agradeo a Cristina, Carla e Izabel pela pacincia e cordialidade durante todos estes
anos.
Gostaria de agradecer tambm aos amigos e colegas do Museu, com quem
compartilhei cursos, discusses e programas: Gabriela, Stella, Hernan, Juarez, Luiza,
Jorge, Eline, Sara, Nilton, Wilca, Silvina e Pablo, Nora, Pablo, Eloisa, Sergio e
Evangelina. A Fernando, Gustavo e Ludmila porque suas figuras esto sempre no
horizonte e porque sinto muitas saudades.
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Aos amigos Romn e Gorete. A ele por todos os comentrios sobre os meus
trabalhos e a ela por ter sido decisiva para o meu trabalho de campo no Brasil. Tambm
a Rachel, por nossas conversas sobre mdicos e por sua amizade.
Especialmente, aos amigos Santuza e Paulo por todas as noites de msica e
cerveja. A Byron e Juliana por estarem sempre perto. Os quatro so parte importante de
minha vida cotidiana e me deram muita fora em todo este tempo. A Amlia quem
desde j agradeo seu apoio moral e prtico na fase final , Leo, Kika, Bi e Teresa por
terem suportado tantos no posso a suas propostas de sadas, passeios e viagens.
A minha famlia, em seus lados argentino e brasileiro por terem acompanhado,
escutado e encorajado com seu carinho nos momentos de fraqueza. Especialmente a
Pancha, por sua reviso da verso em espanhol velocidade da luz e por sua pacincia
em responder todas as minhas chamadas telefnicas; tambm Tere, Flaca e Lecticia me
ajudaram com seus comentrios. De todos eles, gostaria de agradecer enormemente a
Tatiana, a Tati, porque ao compartilhar seus dias comigo fez com que estes anos sejam
os melhores de minha vida e porque soube dar-me apoio nos momentos de dvidas e
soube ter os ps na terra nos momentos manacos.
Finalmente, gostaria de agradecer muito especialmente a todos os mdicos de
famlia, argentinos e brasileiros, que tiveram a pacincia e o interesse para agentar um
antroplogo fazendo perguntas, questionando e, acima de tudo, observando e anotando
suas palavras e seus mnimos gestos por dias inteiros. queles que me dedicaram seu
tempo para fazer as entrevistas, que abriram as portas de seus encontros privados.
Merecem um agradecimento importante os pacientes que responderam positivamente ao
pedido do mdico para que eu pudesse observar suas consultas. Espero que minhas
observaes estejam altura de sua dor.
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Aqu la gente habla de pobreza, del trabajo que nunca consiguen, de violencia, de chicos que roban para drogarse, de nios abusados, de sueos que nunca se alcanzan, de polticos que no cumplen, de una familia donde suceden cosas que no se atreven a confesar a cualquiera, cosas que necesitan compartir para aliviar la carga. He hecho aqu el mayor aprendizaje de mi vida. Aprend a escuchar sin sancionar, me fui despojando de algunos prejuicios (an tengo muchos), aprend que hay otros cdigos, otros valores, otras creencias tan vlidos como los mos aunque no los comparta. Aprend que ese dolor que oprime el pecho no es del corazn, ni del pulmn, que no necesita de radiografas, ni de electros, que es un dolor que viene de mucho ms adentro, adonde no llega el ltimo descubrimiento farmacolgico. Que slo necesita de alguien que escuche, que comprenda, que no condene. (Julieta, mdica de familia).
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Sumrio
Introduo 1 Parte I: O percurso de uma idia 21
Captulo 1
De como o saber mdico se especializa e se separa da idia de totalidade. 21
1. A. Dos Vitalismos do Sculo XVIII Anatomia Patolgica. 22 1. B. Paris. 25 1. C. A outra histria. Romantismo. Naturphilosophie. 34 1. D. A Medicina Romntica. 38 1. E. Comeos do Sculo XX. O relatrio Flexner. 43
Captulo 2
O Retorno do rechaado. A idia de totalidade na Ateno Primria Sade 46
2. A. Ateno Primria Sade e state-makers. 46 2. B. Heterogeneidade e Fragmentao. O sistema de sade na Argentina. 54 2. C. Da Sade Privada ao SUS. O Sistema de Sade no Brasil. 68 2. d. Continuidades e Fracassos. 83
Parte II: Um grupo em formao 90
Captulo 3: Palavras que separam. O trabalho de incluso e excluso na formao da especialidade. O contexto argentino 95
3. A. O Processo de Especializao como um processo de segmentao. 95 3. B. Um pouco de histria. A formao dos dois grupos: generalistas e
familiaristas. 100
3. B. 1. Os Generalistas. 101 3. B. 2. Os Familiaristas. 115 3. B. 3. As relaes entre os dois grupos. 121
3. C. As disputas pelo reconhecimento da especialidade. 137
3. C. 1. O Colgio Mdico de La Plata. 137 3. C. 2. O perfil da residncia em Medicina Geral Integral do
Ministrio de Sade da Provncia de Buenos Aires. 142 3. C. 3. Uma disputa paradigmtica: com a Sociedade Argentina de
Pediatria (SAP). O Programa Mdico Obrigatrio. 145
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3. D. Disputas, Marginalidades e efeitos performticos. 150 Captulo 4
Rituais e Conjunturas que unificam. O contexto Brasileiro 153
4. A. Uma histria que se repete. Especialistas vs. Generalistas e Generalistas vs. Generalistas. 153
4. A. 1. A medicina em questo. O Congresso Nacional dos Prticos. 153 4. A. 2. Os primeiros grupos. A medicina geral comunitria. 156 4. A. 3. Construindo um espao. Diferenciao das outras especialidades 161 4. A. 4. As primeiras disputas entre generalistas. PSF, uma nova
interveno do Estado. 172
4. B. Congressos Rituais. O renascimento de uma Sociedade. 186 4. B 1. Um ritual de Instituio. I Congresso Luso-brasileiro de
Medicina-Geral Familiar e Comunitria. 188 4. B. 2. A lista de discusso. Uma comunidade imaginada. 198 4. B. 3. Um ritual de consagrao. 1 Congresso de Medicina
de Famlia e Comunidade. 202 Parte III: Prticas Mdicas e Identidade Profissional 206
CAPTULO 5:
Contextos alternativos e sua significao na construo de uma identidade profissional. 207
5. A. Alternatividade e Contracultura. Os comeos da Medicina de famlia nos anos 60. 207
5. B. Contextos alternativos. Formao Alternativa. 217 5. C. Trajetrias Alternativas. 241 CAPTULO 6: Uma epistemologia integral. Anlise atravs de suas manifestaes prticas. 249
6. A. A Dimenso individual. 252
6. A. 1. O modelo Biopsicossocial. 252 6. A. 2. Mtodo centrado no paciente. A importncia da pessoa na
epistemologia da medicina de famlia. 260 6. A. 3. As relaes tranferenciais e emocionais no encontro de
mdicos e pacientes. 278 6. A. 4. Epistemologia, Emoes e Incerteza. 296
6. A. 5. Mdicos, Pacientes e o problema da crena. 302 6. A. 6. A Psicologizao da medicina? 314
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6. B. A dimenso coletiva 325
6. B. 1. Promoo da sade e Aconselhamento Mdico. 330 6. B. 2. A Educao em Sade. 340
Concluso 344 Referncias Bibliogrficas 353
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Introduo Por muitos e diversos motivos, positivos e negativos, a medicina sempre foi uma
referncia para mim. De um modo ou de outro, todos estabelecemos algum tipo de
relao com ela. Em meu caso, comeou sendo uma questo de famlia e, com o passar
do tempo, uma questo acadmica.
O quanto estas duas questes estavam imbricadas nunca chegava a ficar de todo
claro; eu me referia a elas dizendo que na escolha de um tema existem motivos
conscientes e motivos inconscientes. A associao se fazia mais clara quando era
surpreendido por pensamentos como aquele que tive em um dos primeiros dias do
campo. Tinha sado para percorrer com a Miriam, uma mdica de famlia, o bairro que
rodeia o seu centro de sade. Era um desses dias ensolarados e frios de inverno. Eu ia
sentado no lugar do acompanhante, escutando os comentrios que ela me fazia sobre o
bairro e as conversaes que tinha com pacientes com os quais cruzava na rua. No sei,
mas houve algo. Talvez os caminhos descalos, o automvel tentando encontrar a
trilha. No sei. Mas de repente me encontrei pensando naqueles dias frios e ensolarados,
quando em uma pequena cidade perdida na provncia de Buenos Aires, depois do
almoo, eu saa para fazer a ronda dos domiclios com ele.
Para aumentar essas associaes, que tanto eco em mim produziam, uma frase
de meu pai que me disse que, quando a medicina se tecnificou demais, quando uma
anlise complementar comeou a ser mais importante que a escuta e o toque, ele sentiu
que era hora de aposentar-se.
Talvez esses motivos inconscientes operassem maneira dessas fotografias
antigas de que nos fala Bourdieu (1995: 151) e que costumam estar na base de algumas
hipteses. Complementando esses motivos relacionados minha trajetria pessoal,
havia uma srie de razes que se associavam aos temas por mim trabalhados no
mestrado. Por isso, a primeira verso do ttulo desta tese foi Os outros mdicos. Esses
outros eram os que no se formavam nos hospitais, os que no seguiam um modelo
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biologista, os que trabalhavam nos bairros. Em suma, eram os que no faziam uma
medicina tecnologizada. Intuitivamente pensava que esse modelo de mdico no
concordava com aquilo que era mais freqente encontrar na sociedade.
As perguntas nesse momento eram: quem so esses mdicos que querem fazer
uma medicina diferente? Por que querem dedicar-se a uma especialidade que no tem
prestgio? Ao mesmo tempo que me perguntava essas coisas, comecei a ver que existia
toda uma histria por detrs e que, no momento em que iniciei a investigao, havia
uma polmica sobre o lugar desse tipo de mdico nos sistemas de sade.
Assim foram se configurando as duas linhas de fora que atravessam toda a tese;
uma a institucionalizao e a outra a epistemologia. Em outras palavras, meu
interesse era analisar como foi o processo de formao dos grupos de mdicos que se
congregavam ao redor de nomes como mdicos generalistas ou mdicos de famlia
e quais eram as caractersticas epistemolgicas que lhes permitiam situar-se como uma
nova forma de fazer medicina.
1. Caminhos diversos, eleies e questes terminolgicas.
O processo de imerso no campo me levou, pouco a pouco, a definir essas duas
linhas diretrizes. Meu interesse inicial estava voltado para o que chamo aqui
epistemologia. Segundo os discursos nativos, essa epistemologia era distinta daquela da
biomedicina, como freqentemente denominada a medicina hegemnica e, por isso,
lhes permite diferenciar-se.
Rapidamente comecei a me dar conta de que a questo da institucionalizao era
importante para entender a lgica das divises que operavam no campo. Uma das
primeiras perguntas que me alertaram para essa questo foi realizada por um sanitarista
que estava tentando formar, na Faculdade de Medicina da cidade de La Plata, uma
carreira de especialista em Medicina Geral-Familiar: mas voc vai trabalhar com os
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mdicos generalistas ou com os mdicos de famlia? Respondi perguntando quais eram
as diferenas e tentando esconder a minha surpresa.
Nas reunies para a formao da carreira de especialista, s quais pude assistir,
estava sempre presente a discusso sobre os diferentes grupos em disputa. Em todas elas
o sanitarista que me tinha feito a pergunta gabava-se de quo importante tinha sido
poder reunir as autoridades das associaes de mdicos generalistas e de famlia na
mesma mesa.
Muitas dessas reunies foram realizadas com o restante dos mdicos
especialistas e professores da Faculdade; nelas pude observar como se posicionavam
como um novo modelo de prtica mdica e, obviamente, as reaes contrrias que essa
posio despertava. Isso me foi mostrando a relao que havia entre as duas linhas
diretrizes, j que, pelo fato de estarem em um mbito de trabalho que no era cobiado,
os centros de sade marginais, por fazerem uma medicina que no era considerada
especializada, tinham podido reafirmar sua identidade, construindo um modelo de
oposio.
Os mdicos de famlia que trabalhavam na cidade de Buenos Aires, em que pese
terem um maior reconhecimento do que aqueles de La Plata a quem estava observando,
compartilhavam das duas questes. Em primeiro lugar, posicionavam-se como um novo
paradigma para a prtica mdica de uma forma mais radical e, em segundo lugar,
enfrentavam-se com os mesmos estigmas que os mdicos generalistas.
A relao de institucionalizao pelas margens e a nova epistemologia
estavam presentes nos dois grupos, embora com diferente fora. Ambos comeavam a
ter relaes e semelhanas, ento por que trabalhar com um e no com o outro? Quando
comecei a ler sua produo terica, comprovei que a definio de si mesmo de uns e de
outros era semelhante, o que me incentivava a tom-los como uma especialidade em que
h vrias posies em disputa, a fim de definir o que ser mdico de famlia aqui
usado em um sentido genrico.
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Desde o comeo da investigao tinha pensado em realizar a comparao dos
mesmos processos na Argentina e no Brasil. Neste ltimo pas, tinha a referncia do
programa de Niteri, j que, sempre que dizia que meu interesse eram os mdicos de
famlia, falavam-me de Niteri. Ao comear meu trabalho no programa pude vislumbrar
que a diversidade do campo tambm era notria no Brasil e, para minha surpresa, havia
conflitos semelhantes aos enfrentados pelos mdicos na Argentina.
A dimenso comparativa desde os comeos da antropologia foi um dos pilares
bsicos da profisso, o que aumentava o interesse nessa dimenso, mas tambm
aumentava a confuso com as categorias. Por um lado, o nome medicina de famlia
ganhava uma polissemia cada vez maior e, por outro, as vozes nativas se
multiplicavam.
Em que pese as dificuldades crescentes, a dimenso comparativa ia me permitir
analisar como se respondia, em cada contexto nacional, aos esboos gerais ditados pelas
organizaes internacionais que sugerem as polticas para o setor sade. Argentina e
Brasil se mostravam, dessa forma, como dois contextos nacionais que compartilhavam
muitas de suas caractersticas, produto de serem duas variantes nacionais daquilo que
poderamos chamar Cultura Ocidental Moderna. A pergunta que me guiava, nesse
momento inicial, basicamente era: em que medida a institucionalizao da medicina de
famlia e sua relao com as polticas internacionais podem me informar sobre a
argentinidade ou a brasilidade?
A polissemia que estava percebendo nas categorias e a dimenso comparativa
me levaram a procurar realizar o trabalho de campo em vrios contextos, de modo a
observar se essas distines entre os grupos se originavam de prticas diferentes. Por
outro lado, saber se estavam tentando trabalhar a institucionalizao dos diversos grupos
e se a epistemologia fundamentava a prtica de cada grupo; ento, tinha que observar
como trabalhava cada grupo.
Desse modo, ia comparar dois contextos nacionais, Argentina e Brasil, nos quais
se diferenciavam dois subsetores: pblico e privado, sendo que o subsetor pblico ia ser
analisado nos dois contextos nacionais e o privado, s na Argentina.
Se essa era a idia com a qual comecei a investigao, os prprios dados de
campo me foram levando a reconsiderar a importncia dos contextos nacionais como
eixo da comparao. Por um lado, embora os sistemas de sade tenham uma
estruturao diferente, o subsetor pblico imprimia caractersticas semelhantes s
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prticas cotidianas. Existem restries prticas derivadas do contexto e que so as
mesmas nos dois pases; por essa razo, se diluem as diferenas nacionais. Assim, as
diferenas mais importantes no se originavam de um contexto de prtica brasileiro ou
argentino, mas sim se esse contexto est situado no subsetor pblico ou privado.
As prticas nos centros de sade perifricos do subsetor pblico na Argentina
aproximavam-se fortemente das prticas no programa de mdicos de famlia de Niteri,
em que pese o fato de que neste ltimo a estrutura de apoio est muito mais
desenvolvida e h uma busca para realizar as consultas mdicas de forma programada.
Por outro lado, do ponto de vista das opes epistemolgicas, possvel
estabelecer relaes entre os grupos que trabalham em contextos diferentes; assim,
percebi que o grupo do ambulatrio de um dos hospitais de uma comunidade de
imigrantes em Buenos Aires tem uma posio terica prxima ao grupo que trabalha no
ambulatrio de um hospital-escola do Rio de Janeiro, com isso vi que a distino entre
os contextos pblicos e privados, do ponto de vista epistemolgico, tambm se apagava.
O mesmo processo de investigao foi deixando mais claro que existia uma
comunidade de leituras a que se viu incrementada com a inaugurao da lista de
discusso pela Internet. Existem trabalhos e referncias bibliogrficas que circulam pela
rede, de modo que, se algum dos mdicos tem, por exemplo, dvida sobre algum tema,
recebe apoio via Internet. Essa comunidade de leitura foi incentivada, em seus incios,
por relaes que se estabeleceram, por exemplo, com programas de mdicos de famlia
de universidades do Canad. Atualmente, alguns dos grupos de mdicos de famlia
brasileiros escolheram, como um modo de completar sua formao, contratar um
programa de formao distncia de um dos grupos da cidade de Buenos Aires.
A raiz desses cruzamentos, as definies daquilo que um mdico de famlia
deveria ser e das caractersticas que sua prtica deveria ter comearam a delinear-se em
um sentido convergente. Por essa razo, s estabeleci diferenas por contextos nacionais
para os processos de institucionalizao da especialidade, para a estruturao dos
sistemas de sade e os desenvolvimentos de programas apoiados na Ateno Primria
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Sade. No obstante haver diferenciado por contextos nacionais, observei entre eles
linhas de estruturao dos sistemas de sade semelhantes e, nos processos de
institucionalizao, tambm encontrei problemticas convergentes.
O que as linhas de institucionalizao convergentes e essa comunidade de leitura
esto demonstrando que na medicina de famlia est operando uma das caractersticas
da biomedicina, que o seu transculturalismo. Nesse sentido, o que a biomedicina e,
no caso que me ocupa agora, a medicina de famlia esto mostrando uma tenso entre
o local e o global. Nessa transculturalidade existem caractersticas que atravessam as
barreiras culturais e nacionais mas, ao mesmo tempo, a biomedicina e muito
especialmente a medicina de famlia so reinterpretadas de acordo com o saber local.
Sobretudo a medicina de famlia, que tem que responder s doenas e s caractersticas
culturais locais. Contudo, essa releitura no realizada em um vazio, mas existem
formas com diferentes graus de institucionalizao que as orientam.
* * *
J que so as duas linhas que percorrem a totalidade da tese, considero
necessrio, neste ponto, explicitar a que me estou referindo quando falo de
institucionalizao e de epistemologia.
Institucionalizao se refere ao processo pelo qual se estabelecem os limites dos
grupos, ao processo no qual se institui um grupo. o processo atravs do qual se
comea a perceber que existem dimenses comuns por trs de situaes particulares que
isolam os agentes e, a partir delas, constri-se uma identidade social que d a idia de
pertencimento.
Esse processo de institucionalizao supe a construo do princpio de
classificao, capaz de produzir o conjunto de propriedades distintivas prprias do
conjunto dos membros desse grupo e de anular, ao mesmo tempo, o conjunto das
propriedades no-pertinentes que uma parte ou a totalidade de seus membros possui por
outras razes (Bourdieu 1985: 99). Nos dois pases, pude acompanhar como se deu
esse processo de definio de quais seriam as caractersticas que foram distinguir cada
grupo; as disputas e negociaes que levaram a institucionalizar uma definio para a
prtica dos mdicos de famlia e, em conseqncia, definir uma identidade.
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O termo epistemologia usado por mim em um sentido batesoniano. Em
Bateson, esse conceito no alude filosofia da cincia, mas sim a como pensamos, s
regras do pensamento, s premissas em cujas bases percebemos, quer dizer, ao conjunto
de hipteses que esto na raiz de toda a comunicao e interao entre pessoas. A
epistemologia seria uma metacincia indivisvel e integral, cuja matria de estudo o
mundo da evoluo, o pensamento, a adaptao, a embriologia e a gentica a cincia
do esprito, no sentido mais amplo da palavra (Bateson 1982: 79).
A epistemologia, no sentido batesoniano, seria a grande ponte estendida entre
todos os ramos do mundo da experincia, seja intelectual, emocional, de observao,
terica, verbal e no-verbal. O conhecimento, a sabedoria, a arte, a religio, o esporte e
a cincia esto unidos na perspectiva da epistemologia (Bateson 1993: 303). Esta
uma epistemologia abductiva, no sentido de que rene fragmentos similares de
fenmenos novamente nos encontramos comparando.
A forma como Bateson usa o conceito de epistemologia aproxima-nos das idias
de recursividade e retroalimentao, de associao entre indivduo e contexto como
unidade de anlise; a nfase estar nas relaes e no nas unidades. Essa nfase
relacional e a passagem de uma viso linear para uma viso retroalimentada so noes
essenciais na constituio da prpria epistemologia da medicina de famlia.
Se aceitarmos que a concepo de epistemologia batesoniana estende as pontes,
que na citao anterior esto nomeadas especificamente entre as experincias
intelectuais e emocionais e nos nveis tericos, verbais e no-verbais ento, uma
concepo que tem por caracterstica reunir fenmenos em torno dos quais a medicina
de famlia colocou o seu interesse. Uma segunda caracterstica desta concepo de
epistemologia que leva implcita uma idia de recursividade, de sistemas
retroalimentados, noes importantes para a construo da epistemologia da medicina
de famlia.
Por outro lado, essa forma de conceber a epistemologia delineia uma relao
entre o grupo e o indivduo, porque toda epistemologia grupal mas, ao mesmo tempo,
essa epistemologia grupal se manifesta atravs das releituras que dela os sujeitos
realizam. A epistemologia se multiplica em epistemologias que, em parte, so as
geradoras das tenses que se manifestam nos processos de institucionalizao.
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Finalmente, se a medicina de famlia quer deixar de guiar-se por uma
casualidade linear e passar para uma casualidade circular e complexa, ao estud-la
deveramos tentar pensar nessa forma, ou, em outras palavras, utilizar conceitos que se
refiram a essa nova forma de entender a experincia da realidade. A prpria palavra
epistemologia, como ser entendida nesta tese, nos alertar sobre a idia de circuitos
recursivos e retroalimentados que a medicina de famlia prope como uma nova forma
de entender a relao mdico-paciente e o processo de sade-doena.
As bases epistemolgicas sobre as quais os mdicos de famlia iro estruturar
suas prticas retomaro dimenses s quais a biomedicina lhes teria subtrado
importncia. A primeira delas a dimenso da totalidade, que conceitualizada atravs
da idia de integralidade; esta idia os levou, tambm por oposio nfase aos
sistemas parciais da biomedicina, a centrar-se no tratamento da pessoa. Por ltimo, para
conformar-se totalidade da pessoa e para alcanar uma compreenso global do seu
adoecer, deviam incorporar a dimenso emocional que despertada nas relaes
mdico-paciente.
O exposto at agora nos permite ver a complexidade da epistemologia da
medicina de famlia. O interesse na pessoa e nas emoes necessariamente levaro a
delinear-se algum tipo de reflexo sobre o que se quer dizer quando se fala em pessoa
e qual a relao desta com as emoes. E essas reflexes vo estar balizadas pelas
diferentes possibilidades de configurao da pessoa ou mais centradas no indivduo
ou mais relacionais que os sujeitos encontram em seu cotidiano.
A concepo da pessoa e a dimenso emocional so duas das possveis entradas
que podemos fazer na epistemologia da especialidade. A pergunta que me fiz ento foi:
dada a complexidade dessa epistemologia deveria s tomar alguma das dimenses que
ela envolve? Se a resposta fosse positiva, no estaria dividindo analiticamente uma
experincia que na prtica tem condies totalizadoras? Pensei que, se meu objetivo era
ver operar a epistemologia atravs de suas atualizaes nas epistemologias
particulares, deveria tratar todas as dimenses envolvidas.
Paulatinamente foi tomando forma a idia de que o que eu queria tratar era uma
questo antropolgica que estava tomando os contornos de um fato social total.
Segundo Mauss (1971), os fatos que estudamos so todos fatos sociais totais, so
fenmenos ao mesmo tempo jurdicos, econmicos, religiosos e, inclusive, estticos e
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morfolgicos (Idem: 179). Lvi-Strauss disse que o que estudamos na antropologia so
fatos totais e so totais no sentido de estar incorporados em um sistema (Lvi-Strauss
1971: 23). Que esteja includo em um sistema, que seja total implica estar encarnado em
uma experincia individual e em uma antropologia, quer dizer, um sistema de
interpretao que preste conta simultnea dos aspectos fsicos, fisiolgicos, psquicos e
sociolgicos de toda a conduta (Idem: 23; itlico do autor).
Portanto, o fato social total se cristalizar em seus aspectos sincrnicos, na
dimenso diacrnica e fsico-psquica; segundo Lvi-Strauss, essa conjuno s se d
nos indivduos.
Minha forma de delinear a investigao foi justamente essa. O objetivo a que me
propus foi tratar a formao da identidade dos mdicos de famlia como um grupo
social, a partir de dois aspectos, a institucionalizao e a epistemologia, e a partir de
trs dimenses: sincrnica, diacrnica e individual. As dimenses diacrnicas e
sincrnicas so complementares, porque as posies no presente s so compreendidas
em relao s disputas e negociaes que levaram cristalizao desse campo de
posies. E s possvel estudar estas dimenses, sincrnicas e diacrnicas, em relao
s trajetrias dos sujeitos que as vivem.
2. Grupos difusos e campos dispersos.
A escolha de buscar tratar as trs dimenses da construo da identidade da
especialidade medicina de famlia e, ao mesmo tempo, tratar a epistemologia de maneira
total, colocou-me o problema de que ia ter que analisar caractersticas e conceitos que
poderiam dar, por si s, uma tese. Poderia, assim, ter feito uma tese sobre a idia de
comunidade, de famlia, pessoa ou qualquer aspecto especfico dessa epistemologia.
Mas no escolhi esse caminho, porque o meu objetivo era caracterizar a epistemologia e
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a institucionalizao de forma retroalimentar e ver em que caracterstica dessa
epistemologia cada grupo e dentro deles cada mdico dava nfase.
A via de acesso privilegiada para entender as diferentes ressignificaes da
epistemologia eram as consultas mdicas. Mas tinha que estudar grupos variados,
distintos contextos para poder captar as linhas convergentes e divergentes entre eles;
para poder analisar as diferenas significativas.
Tudo isto gerou importantes e novos problemas para o trabalho de campo. A
primeira questo relativa ao trabalho de campo que quero ressaltar a relativa ao tempo.
O fato de fazer campo em casa gera algumas caractersticas diferenciais em relao ao
trabalho de campo tradicional o qual suporia um deslocamento e uma estada
prolongada com um determinado grupo. Nesse novo tipo de campo, fiz com que a
estada com o grupo se dilusse no tempo. Comecei meu trabalho de campo de um jeito,
poderia dizer, informal, no ano de 97, assistindo s reunies dos generalistas de La
Plata, na Faculdade de Medicina e no Ministrio de Sade da Provncia de Buenos
Aires. Essa etapa me permitiu, unicamente, comear a ver a temtica da
institucionalizao.
O trabalho de campo, com uma forma mais estruturada, comeou na Argentina,
no primeiro semestre de 1999, e eu o continuei no primeiro semestre de 2000. Na
primeira fase, continuei com as tarefas de assistir s reunies internas da Associao de
Generalistas da Provncia de Buenos Aires e realizei entrevistas estas aconteceram
com os mdicos de famlia da Cidade de Buenos Aires e fiz as primeiras observaes
em consultas. Dessa forma, comeava a transitar uma nova dimenso do trabalho de
campo e apareciam outros problemas.
No ano de 2000, quando se deu a segunda etapa no campo, na Argentina, realizei
fundamentalmente observaes de consultas, fiz segundas entrevistas com os mdicos
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que tinha contatado na primeira viagem e novas entrevistas com mdicos que ia
conhecendo. Nesse perodo, efetuei observaes em diversos contextos para captar as
diferenas entre as prticas de cada grupo e, tambm, como uma forma de empregar
melhor o tempo.
A questo do tempo diferente; embora seja factvel, quando se tem a
possibilidade de uma estada prolongada com um determinado grupo e se entre no que
Barley chamou de marcha de trabalho de campo, ou seja, perodos em que no
acontece nada, nem sequer o passar do tempo. No tipo de trabalho de campo que estava
traando, devia me adequar aos horrios de trabalho de cada grupo. Talvez, deslocar-me
at um centro de sade, viajando uma hora ou mais, e uma da tarde no ficava
ningum; ou realizava um dia de observaes, uma segunda-feira por exemplo, mas o
mdico s voltava a atender na quarta ou quinta-feira. Isso me levou a ter que trabalhar
com vrios mdicos ao mesmo tempo e, claro, em diferentes lugares; por um lado, no
era bom, porque em muitas oportunidades tive que solicitar autorizao e esperar os
tempos burocrticos; por outro lado, foi positivo, porque circulava na mesma semana
entre os subsetores pblico e privado, o que me ajudou na proposta comparativa.
Em 2001, efetivei, entre os meses de junho e dezembro, o trabalho de campo no
Brasil. Nele fui, ao mesmo tempo, realizando observaes e entrevistas. Comecei no
Programa de Niteri e passei posteriormente para um hospital-escola no Rio de Janeiro.
Em 2002, s realizei as observaes no Congresso de Medicina de Famlia, em Curitiba.
Nessa fase do trabalho, igual ao que tinha sido na Argentina, foi demorado o
incio das observaes de consultas, porque antes me propus a visitar alguns mdulos,
de modo a ter uma idia da variao interna. Posteriormente a essa fase, pude fazer
observaes em trs mdulos diversos, com uma freqncia entre trs e quatro dias por
semana. As questes passaram a ser diferentes, porque tive a oportunidade de realizar
mais freqentemente visita domiciliar, o que me permitiu observar as prticas mdicas
fora do consultrio e perceber o que chamarei dimenso coletiva da epistemologia da
medicina.
* * *
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Uma das questes vividas durante as diferentes entradas em campo, tanto na
Argentina quanto no Brasil, foi a estranha sensao de no ter um campo e de no ter
um grupo. Ao tentar buscar as diferenas e as semelhanas entre os vrios grupos de
mdicos de famlia, deparei-me com a diluio do grupo; comecei a circular, primeiro
na Argentina, entre centros de sade de diferentes cidades da Grande Buenos Aires e da
Grande La Plata e no servio de Medicina de Famlia do hospital, que recebe seu nome
de uma comunidade de imigrantes. Em um segundo momento, no Brasil, a questo
estava mais clara, porque todos pertenciam ao mesmo programa e, finalmente, observei
o servio ambulatorial do hospital-escola.
Nessa circulao, existia uma lgica que respondia importncia que cada grupo
tinha no processo de institucionalizao. Procurei escolher centros de sade para
observar aqueles nos quais trabalhassem mdicos que tinham atuado nas disputas pela
estruturao dos grupos de generalistas; a seleo do hospital em Buenos Aires se deveu
a nele trabalhar uma figura importante da especialidade. Essa mesma lgica segui para
escolher o ambulatrio do hospital do Rio de Janeiro; a isso se somou o fato de que, ao
escutar no Congresso Luso-brasileiro uma conferncia do coordenador do servio,
percebi as relaes epistemolgicas entre os dois grupos e me pareceu interessante
efetuar observaes com eles.
A questo que me apresentava o tipo de trabalho de campo que tinha comeado
era, justamente, o problema das relaes entre o grupo no papel e o grupo real.
Escolhi estudar a diversidade das prticas nos distintos contextos, mas as confluncias e
as divergncias comearam a no respeitar os limites de tais contextos. O problema era,
novamente, as relaes entre o global e o local, ou seja, as reinterpretaes locais de
uma epistemologia global. O que essas reinterpretaes esto gerando so reinvenes
das prticas feitas por sujeitos ativos, que esto longe da idia do ator que repete
mecanicamente um texto (Velho 1995b: 225).
As relaes entre o global e o local possibilitam a coexistncia de vrias
identidades, que se manifestam nos diferentes grupos de mdicos de famlia que entram
em disputas e que negociam a construo de uma identidade que os unifique na
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diversidade. Nesse processo, estavam em relao mais duas preocupaes: a
institucionalizao e a construo de uma epistemologia.
* * *
Merece um tratamento especial o fato de fazer uma etnografia das consultas
mdicas. Os problemas apresentados eram completamente diferentes dos que meu
prprio trabalho de campo me havia possibilitado entrever at esse momento. Em
alguma medida, a presena de um antroplogo sempre um fator de distrbio, no
porque os mdicos mudem sua forma de atender por causa da sua presena, mas sim
porque representa uma figura estranha em um momento que deveria ser de intimidade.
Algumas vezes, essa dificuldade se fez presente quando os mdicos me diziam no
quis falar, porque voc estava presente. Apesar disso, tambm me diziam que os
pacientes estavam acostumados porque, como vrios dos contextos onde observei
consultas eram contextos de ensino, freqentemente havia residentes que as
acompanhavam.
Um segundo problema est relacionado a questes ticas. O consultrio mdico
o mbito de trabalho do mdico, ao qual eu tinha acesso com a sua autorizao; isto
fazia com que dependesse dele para fazer o meu trabalho. Por essa razo, era ele quem
me outorgava uma identidade, a qual era sempre difusa. Algumas vezes, era um
profissional que estava observando o trabalho dos mdicos, outras vezes era um
doutor e, algumas poucas vezes, era um antroplogo que estava estudando os
mdicos. Essa identidade difusa era um problema para mim, geralmente levantado
frente a perguntas dos pacientes em alguns dos momentos nos quais os mdicos
saam do consultrio; por outro lado, tinha claro que de nada servia dizer aos pacientes
que eu era um antroplogo ou um mdico ou, simplesmente, um profissional; para eles
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dava no mesmo. Quando uma mdica disse a um paciente que eu era um antroplogo,
ele respondeu com cara de "o que isso?"; explicar-lhe o que eu estava fazendo ali ia
levar mais tempo que a consulta.
A pergunta importante era aquela que todos os mdicos faziam ao paciente
quando entrava; de vrias maneiras questionavam se ele estava de acordo que eu
observasse sua consulta. Esta pergunta se refere, em primeiro lugar, a um respeito do
mdico pelos direitos do paciente mas, ao mesmo tempo, ao poder da figura do mdico,
j que dificilmente algum paciente diria que no para o seu mdico, diante da pergunta:
O senhor Bonet um profissional que est observando as consultas, voc tem
problemas por ele estar presente? As respostas eram variveis, mas deixavam claro
que, se para ele ou para ela estava bem, eu podia observar.
A questo, talvez a mais problemtica para mim, ao fazer observaes de
consultas, no foi a questo tica, mas sim a questo dos registros das mesmas. Sempre
entendi que, em etnografia, o que dito importante, da deriva minha preocupao por
registrar o discurso da forma mais fiel possvel; para isso, fao anotaes no mesmo
momento em que se produzem os enunciados. Poderia dizer que a preocupao captar
a fala em ao. claro que to importante como o discurso so os elementos a ele
associados, como os gestos e as inflexes da linguagem; ou seja, tudo o que podemos
conectar a uma metalinguagem, aos elementos da linguagem que nos falam da relao
estabelecida entre mdicos e pacientes.
Parte desses elementos metacomunicacionais das relaes entre mdicos e
pacientes so as emoes. Como veremos posteriormente, considero que os instantes de
manifestao das emoes nas consultas eram momentos-chave da expresso do
conflito do paciente. E, em conseqncia, so momentos-chave nos quais o mdico deve
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empregar todo o seu habitus, adquirido no somente mediante conhecimentos, mas
tambm atravs de sua trajetria e de seus anos de prticas.
Nesses momentos, sentia que o tipo de metodologia de anotaes no ato se
manifestava problemtica. Era difcil para mim continuar escrevendo diante de uma
pessoa que estava expondo seu conflito mais ntimo, seus problemas mais dolorosos.
Em princpio, era difcil manter uma atitude distanciada e ficar calado coisa que
sempre fiz, a menos que me pedissem a opinio.
Quando a consulta deixava de ser meramente burocrtica e saa de minha
ateno flutuante, nos instantes em que me via envolvido, encontrava-me diante de um
paradoxo. Era o momento esperado, queria registrar o discurso, mas a mesmo que
sentia que no podia tomar notas. Pouco a pouco, me dei conta de que to importante
quanto o discurso eram as posturas corporais, os gestos, a forma de utilizar a linguagem,
os silncios. Era o corpo o que chamava a ateno nesses instantes e ele me informava
tanto quanto as palavras em si.
Tais ocasies, de irrupo das emoes, representavam cortes para todos os
envolvidos na situao da consulta. O paciente se via assaltado por seu conflito; o
mdico se confrontava com um momento em que o seu saber acadmico, de livro, no
ajudava, a resposta devia vir de seu humanismo, de sua condio de pessoa. E eu me
deparava com o paradoxo de que era a hora esperada, produtiva e, ao mesmo tempo, um
instante que no queria experimentar; meu conflito surgia por manter uma distncia que
me permitisse ter uma viso analtica da interao.
3. Estrutura da tese.
O caminho que segui, ao realizar a investigao, deu lugar posteriormente
estrutura da tese, tal como a apresento agora. Tinha comeado me perguntando quem
eram aqueles que faziam essa medicina da pessoa, por que se dedicavam a essa
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especialidade e no que se diferenciavam dos demais. Essas perguntas me marcaram o
caminho e, assim, cheguei a delimitar os dois focos bsicos de interesse da tese.
Esses mdicos da pessoa que, freqentemente, eram associados intuitivamente
queles velhos mdicos de famlia, procuravam uma viso holstica da pessoa, de seus
pacientes. Poderia dizer que estavam atrs de uma idia que, ao mesmo tempo, um
tipo de prtica: a idia de totalidade. Por essa razo, comeo a tese com uma busca, no
passado, onde se teria perdido essa idia.
Assim, no primeiro captulo, De como o saber mdico se especializa e se
separa da idia de totalidade, o que fao uma historiografia de como a medicina foi
se afastando da filosofia e como foi surgindo um empirismo mdico que se originou na
fragmentao da idia de totalidade. Nessa mesma histria, assinalo o contraponto que
teria existido entre o contexto parisiense e o contexto alemo; um permitindo a apario
da anatomia patolgica e o outro, dirigindo-se para uma medicina romntica, guiada
pela Naturphilosophie.
Essa diviso, que teria levado a medicina a enfatizar as cincias bsicas, recebeu
um ltimo impulso no comeo do sculo XX com as reformas nas escolas mdicas dos
EUA que, posteriormente, se estenderam ao resto do mundo.
No segundo captulo, O retorno do rechaado, pretendo mostrar como a idia
de totalidade volta a entrar em cena pela mo do conceito da ateno primria sade e
das polticas para o setor sade. Este captulo e o anterior tratam, ento, da saga da idia
de totalidade, mas tm caractersticas diferentes; enquanto o primeiro persegue o
conceito de totalidade em torno das idias mdicas, de como essa idia se infiltrava nos
esquemas epistemolgicos, no segundo realizo esse seguimento, embora no mbito de
discusso das polticas pblicas. Isto por duas razes: em primeiro lugar, porque a idia
de totalidade retornou junto com a idia de ateno primria sade e das polticas de
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sade; em segundo lugar, porque a discusso de como a idia de totalidade se cristaliza
em uma epistemologia e em uma prtica mdica o tema do sexto captulo.
Conjuntamente com a implementao dessas polticas pblicas para o setor
sade que comea a institucionalizao dos mdicos de famlia. Ambos os processos
de institucionalizao sero o objeto da segunda parte da tese. O terceiro captulo,
Palavras que separam, tem por objeto o processo na Argentina e o quarto, Rituais
e Conjunturas que unificam, o mesmo processo no Brasil. Em ambos, o que realizei
foi uma etnografia das disputas entre os distintos grupos que lutavam para impor uma
definio e, em conseqncia, uma epistemologia e uma prtica que os identificasse e a
partir das quais pudessem colocar-se como interlocutores no campo das especialidades
mdicas.
A terceira parte, que tambm consta de dois captulos, tem por objetivo
apresentar os sujeitos, seus contextos de trabalho e sua epistemologia. No quinto
captulo, Contextos alternativos e sua significao na construo de uma
identidade profissional, sustento o carter marginal dos incios da especialidade e das
tenses que isso acarretou em sua formao; seguidamente, ressalto caractersticas de
suas trajetrias, que so marcadas pelo carter marginal, ou por terem sido estabelecidas
de um modo que Russo (1993) caracterizou como via marginal. Finalmente, detenho-
me no carter marginal e alternativo dos contextos nos quais os mdicos de famlia
praticam sua medicina e se formam.
O sexto captulo, Uma epistemologia integral. Anlise atravs de suas
manifestaes prticas, uma etnografia das consultas mdicas. O objetivo deste
captulo mostrar, atravs das situaes sociais privilegiadas como so as consultas,
como se estrutura e como opera a epistemologia integral no cotidiano dos mdicos de
famlia.
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Nas consultas mdicas, esto em jogo de um modo no-consciente, no sentido
batesionano ou seja, que o mdico no necessita da verificao mental de quais
caractersticas est acionando as distintas particularidades que formam a
epistemologia da medicina de famlia. No captulo, analiso como essas particularidades
se relacionam nesse conjunto epistemolgico e como nos permitem problematizar
dimenses essenciais para compreender a construo da pessoa no Ocidente.
Essas diferentes caractersticas foram por mim agrupadas em duas dimenses
complementares, as que chamei individual e coletiva; com base nelas, estabelecem-se
dois holismos essenciais na epistemologia: um microholismo, que est voltado para as
dimenses internas da pessoa, e um macroholismo, que se dirige relao da pessoa
com a famlia e a comunidade.
Por ltimo, uma caracterstica fundamental a incluso das emoes como parte
das consultas; sua incluso nos informa sobre um tipo de concepo da pessoa e sua
manifestao possibilita que a medicina de famlia, em algumas situaes, se aproxime
do ncleo relacional e no-consciente do adoecer dos pacientes.
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Parte I: O percurso de uma idia
CAPTULO 1:
De como o saber mdico se especializa e se separa da idia de totalidade.
A medicina prtica, a mesma que no fim do sculo comearia a apresentar as primeiras realizaes prometidas desde sempre pela medicina, encontrou os fundamentos da sua eficcia numa investigao cujas bases so to afastadas da prtica quanto possvel. E assim se encontra completo, concretizado, o desvio ou o deslocamento no termo em que so reconduzidos ao empreo das ideologias os sistemas legados pelos mdicos do sculo XVIII aos do sculo XIX (Georges Canguilhem, Ideologia e Racionalidade nas Cincias da Vida, 1977).
O que aconteceu que o propsito determinou o que tem ou no que ser objeto de inspeo ou de conscincia por parte da cincia mdica. (Gregory Bateson, Passos para uma Ecologia da Mente, 1976).
Em todo o desenvolvimento de uma cincia ou, poderia ser dito, em todo o
desenvolvimento de qualquer projeto, algumas idias suplantam outras; novos
descobrimentos ou mudanas na concepo do mundo fazem com que certas idias
estabelecidas como verdades sejam substitudas por outras.
A medicina, no curso de seu desenvolvimento, teve esse processo de evoluo
das idias. Canguilhem, na epgrafe com a qual abro o captulo, diz que os primeiros
resultados positivos da cincia mdica coincidiram com a superao das idias do
sculo XVIII. Muitos espritos inquisidores foram necessrios para que se produzisse
um dos rompimentos epistemolgicos fundamentais no pensamento mdico,
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rompimento que levou cristalizao de uma medicina positiva. Mas essa ruptura
epistemolgica teve tambm efeitos colaterais. E esses efeitos nos remetem segunda
epgrafe.
Esses resultados auspiciosos, que comearam a tornar visvel a promessa da
medicina de encontrar teraputicas eficazes para as doenas humanas, foram produto e,
ao mesmo tempo, causa da coroao do pensamento guiado por propsitos conscientes.
Estes poderiam ser vistos como atalhos no caminho para um objetivo. Na medicina do
sculo XIX, buscava-se entender o corpo e as doenas que o atacavam, procuravam-se
teraputicas que fossem efetivas para combater o efeito nocivo dos males do corpo,
buscava-se o tratamento para cada mal.
Os espritos inquietos e sagazes dos finais do sculo XVIII e comeos do sculo
XIX encontraram algumas solues; sobretudo, com a bacteriologia, na segunda metade
do sculo XIX, foram achadas teraputicas eficazes, atravs das quais muitas das
enfermidades puderam associar-se a um agente causal.
Mas o uso desse pensamento, guiado por propsitos conscientes, teve um efeito
colateral que nos interessa; a conduo ao empreo do pensamento mdico do sculo
XVIII levou consigo as correntes vitalistas do pensamento mdico e o desenvolvimento
do pensamento do sculo XIX terminou por banir a idia de totalidade na concepo do
homem.
1. A. Dos Vitalismos do Sculo XVIII Anatomia Patolgica
Durante o sculo XVIII, a medicina estava associada ao pensamento filosfico;
era a aplicao da filosofia na busca de explicaes do processo de sade-doena. No
decorrer desse sculo, foi produzida uma constante promoo da medicina e da figura
do mdico. Essa promoo associou-se ao momento em que as preocupaes naturais
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cediam lugar s preocupaes com o bem-estar dos indivduos, quando a medicina foi
chamada para cumprir um papel social e quando a sade passou a ser uma preocupao
dos governos, motivando reformas no seu ensino e na organizao dos hospitais
(Gusdorf 1978).
O impulso fundamental para a associao entre a medicina e as questes sociais,
que na Frana do sculo XVIII eram questes revolucionrias, chegou com a associao
dos Idelogos medicina, representados principalmente pela figura de Cabanis. Mas
esses mdicos-filsofos do final do sculo foram influenciados pelo pensamento mdico
anterior, que j trazia em seu seio a polmica entre uma corrente mais empirista
cartesiana e uma corrente mais prxima de um pensamento filosfico-vitalista. O
primeiro grupo, os solidistas, representavam a medicina oficial do sculo XVIII e se
apoiavam na viso do homem-mquina, procurando excluir tudo aquilo que no pudesse
ser explicado racionalmente e, fundamentalmente, associar a medicina s cincias da
matria. Esse grupo dividia o espao com os vitalistas que, em que pese as suas
diferenas, encontravam idias de base na irredutibilidade dos fenmenos da vida em
relao s caractersticas do mundo material, em que a existncia biolgica tem aspectos
especiais e necessita, portanto, de explicaes particulares. Ao mesmo tempo que se
ope ao cartesianismo, o pensamento vitalista se fundamentar na observao e na
interpretao dos fatos (Gusdorf 1978: 458) para, desse modo, superar as afirmaes
apoiadas em conceitos arbitrrios, como a medicina tinha feito at ento.
Ao perseguir a saga da idia de totalidade no pensamento mdico dos sculos
XVIII e XIX, no se pode evitar nomear aqueles que escreveram a histria com suas
idias. Isto nos leva desde Stahl a Bordeau e Barthez e destes a Cabanis, Pinel, Bichat,
Laennec, Broussais, Bernard ou, para diz-lo de outra forma, de Montpellier a Paris.
Paralelamente a esse desenvolvimento, na Alemanha, expandia-se o movimento
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romntico que, sem dvida, teve sua influncia na medicina alem.
George E. Stahl (1664-1734)1, professor de Halle, repudiou o dualismo
cartesiano; afirmou que a alma assegura a unidade orgnica e que a ordem vital revela
uma especificidade intrinsecamente diferente, coordenando o conjunto dos processos
vitais: sensibilidade, motricidade, funes diversas para manter a existncia (Gusdorf
1974: 156). Organicismo era o nome que Stahl dava a essa doutrina oposta ao
mecanicismo. No obstante pertencer a um perodo anterior ao que nos interessa, vale a
pena mencionar a figura de Stahl, devido ao fato da sua influncia se estabelecer em trs
direes: para Paris onde, atravs de Cabanis, influiu sobre grupo dos idelogos2; para a
Escola de Montpellier, onde retomada parte de suas idias e, atravs dela, chegam a
Paris pela mo de Pinel (egresso de Montpellier) e de Bichat. A terceira via de
influncia de Stahl deriva da importncia que ele outorga noo de organismo3, que
ser um dos conceitos fundamentais do romantismo, outro dos caminhos pelos quais a
noo de totalidade encontrou expresso.
Bordeu (1722-1776), uma das figuras da escola de Montpellier, defende a
autonomia funcional do ser vivo e desenvolve uma srie de idias que foram
sistematizadas no que se chamou Organicismo. Nele se afirma a existncia de uma
finalidade interna imanente aos seres vivos, que se expressa na ao reguladora das
glndulas e dos rgos. As idias de Bordeu no foram bem aceitas no meio mdico
conservador e foram substitudas pelo vitalismo de Barthez; interessante notar que o
organicismo de Bordeu foi melhor recebido entre os filsofos (Gusdorf 1974).
Nas idias de Barthez (1734-1806), encontramos explicitamente a afirmao da
1 Embora pertena ao domnio alemo, desenvolveremos suas idias neste momento, porque influenciou, tambm, os mdicos franceses de Montpellier. 2 Para Cabanis, Stahl era um dos grandes mdicos da histria da medicina; entre os feitos que enumerava, encontra-se o de expulsar a fsica e a qumica da medicina (Ackerknecht 1967: 6).
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especificidade dos processos orgnicos e da impossibilidade de sua reduo s reaes
qumicas; mas diferente de Stahl, que defendia a presena de uma alma como
reguladora do organismo, o princpio vital em Barthez deve ser entendido como uma
funo propriamente orgnica, cuja interveno mantm entre todas as atividades esta
funo que os ancios explicavam pela interveno de uma simpatia mais ou menos
mtica (Gusdorf 1974: 131). O central no pensamento de Barthez era que essa funo
orgnica, chamada fora vital, era experimental e derivada da observao dos fatos, no
de uma metafsica; com isso, em Barthez, encontramos o ponto de inflexo
epistemolgico que possibilitar a medicina experimental posterior, de Cabanis, Bichat
e, finalmente, Bernard.
O vitalismo montpelleriano propunha uma cincia do homem que explicasse as
implicaes da insero do homem no mundo, opondo-se a uma viso determinista e
fisicalista da realidade humana.
1. B. Paris
No final do sculo XVIII, Paris comea a adquirir uma importncia fundamental
no desenvolvimento das idias mdicas; a fama da Escola Francesa de Clnica passa as
fronteiras da Frana e exerce sua influncia por toda a Europa (posteriormente, veremos
o que acontecia no domnio alemo). Nesse momento, estabelece-se, atravs dos
idelogos, uma relao entre o pensamento mdico e o pensamento filosfico; assim,
Cabanis (1757-1808), afirma que a fisiologia, a anlise das idias e a moral no so
mais que trs ramos de uma mesma cincia que se pode chamar cincia do homem (em
Gusdorf 1978: 362). Esta associao com a filosofia favorece o desenvolvimento de um
pensamento mais rigoroso, tendo como conseqncia a superao dos sistemas mdicos
3 Stahl entender o conceito de organismo como o mecanismo organizado, transformado em instrumento
23
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anteriores que se baseavam em associaes cosmolgicas sem verificao emprica.
No pensamento de Cabanis, figura central do grupo dos idelogos, o
conhecimento devia apoiar-se nas estruturas anatmicas, tendo em conta as regulaes
fisiolgicas e as relaes de equilbrio entre o homem e seu meio. A explicao da
natureza humana devia buscar-se em uma causalidade imanente e no-transcendente
a realidade humana possui sua especificidade prpria e no pode ser compreendida a
no ser a partir dela mesma (em Gusdorf 1974: 296). Desse modo, o humano integrava
a vida psicolgica e moral, reivindicava uma inteligibilidade total do seu domnio; a
investigao devia iluminar as relaes entre o fsico e o moral (relao que aponta para
uma realidade individual monista e j no mais dualista).
No campo do ensino do saber mdico, Cabanis propunha um empirismo
moderado: saber fazer depois de ter visto; a experincia se integra no nvel da
percepo (Foucault 1991: 123). Com esta exigncia da necessidade da experincia na
formao clnica ns nos confrontamos com o outro aspecto do projeto cientfico de
Cabanis, que era ao mesmo tempo um projeto revolucionrio: a reforma hospitalar. Em
1789-90, denunciou a necessidade de uma poltica revolucionria em relao higiene e
sade; para Cabanis, a patologia mdica no mais que um aspecto da patologia
social que as autoridades revolucionrias devem considerar em seu conjunto (em
Gusdorf 1978: 465). Nas diretrizes da poltica proposta, denunciou o gigantismo dos
hospitais gerais, onde se acumulam as doenas e se favorece o contgio, propondo a
criao de hospitais menores.4
Durante o perodo revolucionrio, comea a ser gerada na clnica nascente a
que se distinguir das mquinas pela idia de finalidade (Schlanger 1971: 55). 4 Chama a ateno a atualidade das idias de Cabanis, se colocadas luz da moderna discusso sobre hospitais e sobre a relao da medicina com as patologias sociais que, como veremos, esto no centro da problemtica da medicina de famlia.
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relao entre um olhar que observa e um silncio que se mostra; o mdico e o paciente
se unem diante do leito deste ltimo. O silncio das teorias mdicas e a observao
clnica comearo a dar sentido a um sintoma que se mostra ao ser colocado em uma
relao sistemtica com outros sintomas semelhantes. Em que pese os avanos que essa
clnica representava, em que pese a verdade tornada presente nos dados dos sentidos,
para Foucault, essa clnica impediu por anos o surgimento da anatomia patolgica. Esta
representa a ruptura epistemolgica que permitiu que a medicina adquirisse o carter de
uma cincia positiva. A verdade da clnica e dos sintomas impossibilitava que se
entrasse no corpo e que a medicina associasse a doena a um rgo e a um tecido. O
conflito entre a clnica e a anatomia era um conflito entre as duas caras do novo saber
(Foucault 1991: 180). Esse o momento da figura de Bichat (1771-1802).
Diferentes leituras podem ser feitas de Bichat se, como Foucault, acentuarmos a
anatomia patolgica ou, como Gusdorf, seus aspectos mais vitalistas; em outras
palavras, se enfatizarmos um empirismo segmentrio ou um vitalismo totalizador.
Depende do interesse do investigador que aspecto da figura salientar. Mas se, por um
lado, Bichat vai dar um fundamento anatomia patolgica, afirmando que as doenas
encontram seu locus no nvel dos tecidos e a autpsia que nos informa sobre isso, por
outro lado, elabora o conceito de vida de uma forma mais precisa, defendendo a
especificidade dos fenmenos vitais.
Para Bichat, a matria inanimada teria propriedades diferentes da vida, de modo
que o mecanismo fsico-qumico no daria acesso ao seu conhecimento. A vida deveria
ser a negao da morte, seria a totalidade das funes que resistem morte (em
Ackerknecht 1967: 53). O que rodeia os organismos tende a destru-los, a vida seria a
resistncia: tal de fato o modo de existncia dos corpos viventes, tudo o que os rodeia
tende a destru-los. Os corpos inorgnicos atuam sem cessar sobre eles, que exercem,
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eles mesmos, uns sobre os outros uma ao contnua e sucumbiriam se no houvesse
neles o princpio permanente de reao. Esse o papel da vida; desconhecido em sua
natureza, no pode ser apreciado alm dos seus fenmenos (em Gusdorf 1978: 474).5
Diferente da posio de Gusdorf, em Foucault (1991) ns nos deparamos com
uma anlise centrada no momento em que a medicina aceita uma demonstrao efetiva
das conseqncias fsicas, nos rgos e nos tecidos, da ao das doenas. Para a anlise
foucaulteana da Escola Francesa de Clnica de Paris, foram fundamentais os momentos
em que o hospital adquiriu uma posio central na formao e na prtica mdica; a
clnica, conjuno do domnio hospitalar e pedaggico, estabeleceu-se como um lugar
onde a doena se apresenta ao saber mdico.6 Por outro lado, foi central o momento em
que a verdade passa a estar no cadver; a partir da a vida, a doena e a morte
constituiro uma trindade tcnica e conceitual. A morte ilustrar a vida (Foucault 1991:
205).
Mas, nessa anlise, Foucault coloca em segundo lugar o vitalismo de Bichat; sua
importncia no desenvolvimento da clnica no deriva de suas idias vitalistas, mas sim
de sua experincia como anatomopatologista:
5 Podemos usar as idias de Bichat para exemplificar a existncia das idias que se mantm ativas no horizonte cientfico ao longo das pocas, embora adquirindo formulaes de acordo com cada contexto de discusso. Assim, definir a vida, como o faz Bichat, como os fenmenos que resistem morte, parece-me estar estreitamente relacionado explicao da vida como uma entropia negativa ou negentropia, como foi definido por Schrdinger. Definir a vida por uma tendncia negentrpica o mesmo que dizer que se ope desordem ocasionada pela entropia; a vida funcionaria como uma tendncia ordem e no desordem (Schrdinger 1983). Outra das idias de Bichat, especificamente a diferena dos fenmenos da vida em relao aos da matria inanimada, ou seja, a especificidade dos fenmenos vitais no sentido de no poderem ser reduzidos aos fenmenos fsicos e qumicos, est prxima da diferenciao que Bateson realiza de um mundo do pleroma e de um mundo da creatura. O primeiro ser o mundo dos efeitos causados por foras e impactos e onde no encontraramos distines, seria o mundo inanimado, que pode ser explicado pelas leis da fsica; o segundo, o da creatura, o mundo onde os efeitos so produzidos pelas notcias de diferenas, ou seja, de informao. A creatura o mundo da complexidade, da hierarquia, dos circuitos recursivos e dos sistemas auto-regulados (Bateson 1976: 486; Bateson 1989: 30). 6 A coroao do hospital como lugar por excelncia do ensino da medicina um passo fundamental em um dos pontos conflituosos com que se deparam os mdicos de famlia em seu processo de aprendizagem j que, como veremos posteriormente, a medicina que eles praticam no uma medicina de hospital, o que origina uma tenso permanente em relao sua prpria identidade mdica.
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A morte era a nica possibilidade de dar vida uma verdade positiva. A irredutibilidade do vivo no mecnico, ou no qumico, no mais do que secundrio em relao a este vnculo fundamental da vida e da morte. O vitalismo apareceria sobre um fundo de mortalidade. (Foucault 1991: 206)
Com a anatomopatologia de Bichat, o olhar mdico girava sobre si mesmo e
pedia morte conta da vida e da doena (Idem: 208). Esta a ruptura da histria da
medicina Ocidental, ruptura onde a experincia clnica se converteu no olhar
anatomoclnico e onde a verdade provm da morte, dos cadveres.
A vida, para Bichat, na leitura de Foucault, no seria o esquema de interpretao
dos fenmenos saudveis ou mrbidos do organismo j que, por sua debilidade, no
poderia dar conta da ruptura epistemolgica, mas sim seria o fundo a partir do qual
pode perceber-se a oposio do organismo ao no-vivo (...) a vida no a forma do
organismo, mas sim o organismo a forma visvel da vida em sua resistncia ao que
no vive e se ope a ela (Idem: 218). Mas isso no seria a recuperao de um
pensamento vitalista, inclusive explicitando a relao de Bordeu e Barthez porque, ao
colocar a vida como o pano de fundo absoluto que o sculo XVIII emprestava
natureza, a idia mesma de um vitalismo perdia a sua significao e o essencial de seu
contedo. Ao dar vida e vida patolgica um estatuto to fundamental, Bichat liberou
a medicina do problema vitalista e dos que estavam com ele relacionados (Idem: 218).
Por essa nfase na anatomopatologia, para Foucault, o pano de noite sobre a
verdade , paradoxalmente, a vida e a morte, pelo contrrio, abre luz do dia o negro
cofre dos corpos, obscura vida, morte limpa (Idem: 236).
Essa ruptura epistemolgica que Foucault observou na Escola Francesa de
Clnica acabou por constituir-se com a medicina fisiolgica de Broussais. Nesta,
encontramos um movimento de proximidade com idias anteriores, como a teoria da
estimulao da vida, que seria um legado de John Brown (Ackerknecht 1967: 70), e um
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repdio anatomopatologia de Bichat (Canguilhem 1977: 55). Para Broussais, a
excitao ser um fato vital primordial, o homem s existe pela excitao exercida sobre
seus rgos pelo meio no qual est obrigado a viver (Canguilhem 1982: 33).
Sua medicina era fisiolgica, porque o que se observava na doena era a
mudana na funo; na fisiologia de Broussais, um organismo estava doente em relao
s solicitaes do meio interno; a enfermidade era o movimento dos tecidos em relao
a uma causa irritante; j no h doenas essenciais, nem essncias das doenas
(Foucault 1991: 268). O que se iniciava era uma medicina das reaes patolgicas,
estrutura de experincia que dominou o sculo XIX e, at certo ponto, parte do XX j
que, no sem modificaes metodolgicas, a medicina dos agentes patognicos vir a
nela se encaixar (Foucault 1991: 271).
* * *
Se podemos afirmar que com Bichat, nos finais do sculo XVIII, estabeleceu-se
a ruptura epistemolgica com os sistemas mdicos e com as especulaes do sculo
XVII e XVIII; se aceitarmos que a anatomia patolgica abriu o caminho para uma
medicina positiva e possibilitou a associao entre doenas e tecidos, devemos dizer
tambm que, ao mesmo tempo, iniciou a tendncia que ocasionaria, no sculo XIX, o
divrcio entre a medicina e a filosofia ou a antropologia mdica, transformando a
primeira, paulatinamente, em uma disciplina de laboratrio. O enaltecimento desse
cientificismo, ao mesmo tempo que teria possibilitado a glria da Escola Francesa de
Medicina, teria ocasionado a perda da viso totalizadora, transformando-a na cincia de
laboratrio do sculo XIX. A medicina da totalidade se transformaria, pouco a pouco,
na medicina dos agentes patognicos.
Depois de 1830, perodo conhecido como ecletismo na Escola Francesa
(posterior perda de reputao de Broussais), esse esprito reducionista teve outros
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expoentes, como Pierre Louis, inventor do mtodo numrico que, ao relacionar a maior
quantidade de casos possveis procurando similitudes, representou a primeira utilizao
da estatstica. Era o esprito matemtico instalando-se na medicina (Shryock 1979: 155).
Podemos citar, tambm, a figura de Lannec que, ao inventar o estetoscpio,
proporcionou um novo elemento de anlise racional que favoreceu o emprego de
mtodos numricos e estatsticos.
Este rumo empirista no pensamento mdico coincidiu com uma crescente
importncia do trabalho em laboratrio: a medicina estava se transformando em uma
cincia experimental. Esse movimento se manifestou atravs de trs figuras centrais:
Pierre Magendie, Claude Bernard e Louis Pasteur. Os dois primeiros trabalharam para a
constituio da medicina experimental e o terceiro representou a coroao da medicina
dos agentes causais.
O primeiro conjugou em sua pessoa as figuras de mdico de hospital e homem
de laboratrio; com ele, a medicina havia realizado uma tripla mudana de lugar do
hospital ao laboratrio; de objeto experimental do homem ao animal; e de modificador
externo ou interno do preparado galnico ao princpio ativo isolado composto pela
qumica farmacutica (Canguilhem 1977: 58).
Se para Bernard (1813-1878) a medicina devia ser experimental (apoiada em
uma fisiologia experimental), sua epistemologia se dirigia de forma contrria para o
reducionismo mecanicista da poca; suas idias, longe de representarem a atitude de
esprito mais desenvolvida (...), so em realidade umas consideraes intempestivas ou
inatuais, em contradio com o sentido comum materialista e cientfico da maior parte
dos bilogos da poca (Gusdorf 1974: 354). Se Bernard coloca em cena novamente um
vitalismo, ele o faz ao mesmo tempo que impe uma metodologia rigorosa, pela qual a
medicina e a fisiologia transformam-se em cincias experimentais. Em Bernard,
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encontramos novamente a idia da irredutibilidade da vida s suas condies de
apario e, fundamentalmente, encontramos de volta a idia de totalidade, quando deixa
de dividir a doena em uma multiplicidade de mecanismos funcionais alternados e
passa a consider-los como um acontecimento que diz algo em relao ao organismo
vivo visto em sua totalidade (em Canguilhem 1982: 57). Para Bernard, o fato
patolgico deve ser comprendido como tal no nvel da totalidade orgnica (Idem 64).
Vai alm quando relaciona o sintoma com o contexto, quando se pergunta o que uma
complicao separada daquilo que ela complica? (...), quando classificamos como
patolgico um sintoma ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que
os torna patolgicos sua relao de insero na totalidade indivisvel de um
comportamento individual (Idem 65).
Claude Bernard morreu em 1878, ano em que Pasteur apresentou a teoria dos
germens patognicos, decretando com esse fato a morte de todas as teorias mdicas
anteriores (Canguilhem 1977: 61). Comeava o momento da bacteriologia; as infeces,
de agora em diante, estariam associadas a microorganismos. Tudo isto levou
inoculao e vacinao, importantes instrumentos de legitimidade da medicina
moderna.
A medicina comeava a poder cumprir com mais eficcia suas promessas de
cura, como menciona a epgrafe com a qual abrimos o captulo. Surgia naquele
momento a idia de que para cada doena h um agente causal. o momento da
discusso com os higienistas que, nessa poca, defendiam o movimento oposto
contagiosidade das doenas; o momento culminante do processo reducionista. a
aceitao do propsito, que mencionamos na segunda epgrafe, sobre a totalidade
sistmica que representa o homem em relao com o seu contexto.
Ao dar continuidade a esse processo de reduo, uma idia foi deixada no
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caminho: a possibilidade de que as doenas tenham causas sociais. Esta idia era
conhecida na Frana na primeira metade do sculo XIX (em 1848, cunhado o termo
medicina social). J na poca da revoluo, a sade comeou a ser pensada como um
direito dos cidados7; a medicina tinha nesses momentos uma orientao social.
Foucault afirma que, ao contrrio do que se cr, a medicina em seu desenvolvimento
no sofreu um processo de estatizao, mas sim que a grande medicina do sculo XIX
j era uma medicina estatizada ao mximo (Foulcaut 1996: 96).8
O caminho de estatizao da medicina social havia tido trs estgios: a medicina
de Estado, a medicina urbana e a medicina da fora de trabalho. Esses trs momentos
podem ser lidos como uma medicalizao de diferentes esferas da vida social, o que
demonstra um maior interesse do Estado, atravs de seus agentes (os mdicos), pela
sade das populaes (Foucault 1996). O sculo XIX v instalar-se uma moral do corpo
e uma higiene das habitaes; a limpeza ser uma obrigao para garantir a boa sade
do indivduo. A medicina toma o carter de biopoltica.
Apesar de, na metade do sculo XIX, ser forte o movimento higienista, este se
encontrava em disputa com a crescente importncia da bacteriologia; a resoluo dessa
disputa est em estreita relao com a aceitao da possibilidade do contgio nas
transmisses das doenas. O movimento higienista, que sustentava uma teoria social da
enfermidade, era anticontagionista; essa posio era contrria a dos bacteriologistas, os
quais tinham comeado a mostrar os seus resultados. Isso teria ocasionado, para
Ackerknecht, um certo receio na defesa do higienismo que derivou no esquecimento da
7 Com esse objetivo, foram criadas as maternidades para mes solteiras e se procurou fazer cada distrito ter seu mdico, sua parteira e sua loja de medicamentos (Rosen 1980: 26). 8 O processo de estatizao que a medicina de famlia representa na medicina atual pode ser visto como um segundo momento de estatizao, ou uma recuperao atualizada dessa antiga orientao social que tinha na primeira metade do sculo XIX. Voltarei a esta questo no segundo captulo.
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totalidade do movimento.9
1. C. A outra histria. Romantismo. Naturphilosophie.
Um poeta escreveu um dia: se a histria escrita pelos que ganham, isso quer
dizer que h outra histria. Existe outra histria: a das idias que so deixadas para
trs, que so descartadas por aquelas que, em uma determinada poca, manifestam-se
como mais eficazes.
Est perfeitamente claro que at aqui meu desenvolvimento das idias mdicas
esteve centrado na Frana; todos os autores com os quais trabalhei concordam em tomar
a Escola Francesa de Clnica e, fundamentalmente, a Escola de Paris, como a medicina
de avano na passagem do sculo XVIII para o XIX. Mas nessa poca existiam outros
contextos de discusso, existiam outros pensamentos que procuravam uma explicao
que colocava no centro a idia de totalidade. Estou me referindo Alemanha de 1798 e
ao nascimento do movimento romntico, bero da Naturphilosophie.
A importncia das idias romnticas para o progresso da medicina
freqentemente posta em questo: suas atitudes passam por um grande esquecimento,
como em Foucault, ou simplesmente se afirma que, no obstante os mdicos pudessem
ter atitudes romnticas, estas no influenciaram a prtica da medicina. Esta a forma
com a qual Shryock relaciona o romantismo com a medicina. Ele, em seu livro The
development of modern medicine (1979), dedica um captulo cincia na idade
romntica, cujo objetivo sublinhar como a medicina no foi influenciada pelas idias
9 Para o mesmo autor, no obstante a clnica tambm tivesse uma orientao de anticontagista, era associada aos avanos tcnicos, como o estetoscpio, e com instituies, como o hospital, o que teria resultado em um destino diferente (Ackerknecht 1967: 160).
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romnticas. Cita Mesmer (1734-1815)10 e as curas romnticas para concluir que o que
os mdicos repudiavam, a populao aplaudia (Shryock 1979: 115), ou quando os
mdicos se tornavam romnticos (...), a objetividade cientfica no parecia estar
comprometida pelo entusiasmo artstico (Idem: 119).
possvel pensar que, no contexto alemo, a medicina conseguiu manter-se
inclume ao clima cientfico da poca romntica? Se respondermos com uma negativa,
se acreditarmos que as idias romnticas influenciaram o seu desenvolvimento, a
historicidade das idias mdicas pode ser aprofundada. Para essa direo se orientam os
desenvolvimentos de Gusdorf que aceita a existncia de uma medicina romntica,
quando relativiza a ruptura epistemolgica que significou a cristalizao da anatomia
patolgica:
a existncia de uma medicina romntica faz aparecer a falsidade da tese segundo a qual a abertura do sculo XIX proporia, na histria da medicina, uma ruptura epistemolgica marcada pela consagrao do mtodo antomo-clnico e o triunfo de um positivismo de referncia cientificista. A medicina romntica, durante meio sculo, consagrou o renascimento do vitalismo e, inclusive, do animismo tradicional de inspirao crist. No houve tal ruptura, mas sim uma maior inflexo, que no impediu a continuidade e as recorrncias na histria da medicina (Gusdorf 1984: 308).11
* * *
Pode-se afirmar que, ainda levando em conta as variaes nacionais e
10 Mesmer praticava a teraputica chamada magnetismo animal; nesse esquema, a doena era causada pelas restries circulao do fluido magntico no corpo e, pelo contrrio, a sade era igualada a um estado de harmonia. A vida humana era tomada como parte do movimento universal aplicado a uma poro de matria e a morte, ausncia de movimento. Por suas caractersticas corporais, o animal receberia as influncias dos corpos celestes e da ao recproca daquilo que o rodeia (Schlanger 1971: 113) Em 1784, por ordem do rei da Frana, foi estabelecida uma comisso para provar o magnetismo, o que resultou no Relatrio Bailly. Como o que se podia ver eram unicamente seus efeitos, tentam provar a existncia do magnetismo, concluindo que os resultados se davam por causa da imaginao dos pacientes. Em sua defesa, Deslon critica a inadequao do tipo de raciocnio utilizado pelos avaliadores e o raciocnio da rea mdica (Cazeto 2001: 102). 11 Explicitamente, Gusdorf afirma que a histria da medicina se esquece em seu relato da medicina romntica: a medicina romntica est ausente no captulo que trata desta matria, onde a maior parte est reservada escola francesa. A mesma amnsia, ou a mesma ignorncia se afirma no livro de Michel Foucault, O Nascimento da Clnica; a histria da medicina, no incio do sculo XIX, parece contornar o
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individuais que impediriam dar uma definio nica, o romantismo dos comeos do
sculo XIX expressou uma sensibilidade que se ops ao iluminismo12. A oposio ao
universalismo racionalista e materialista , para Duarte (2002), uma caracterstica
fundamental do romantismo. Desse modo, o movimento romntico s pode ser
analisado como um contraponto ao universalismo individualista caracterstico do
Ocidente.
A revoluo romntica, derivada da desiluso que se seguiu Revoluo
Francesa por no ser o que tinha prometido ser (Gusdorf 1982: 61) no representou
unicamente uma esttica, mas sim o estabelecimento de uma epistemologia da relao
do homem com o mundo. Abordou-se uma inteligncia do homem e do mundo que foi
gerada em oposio ideologia dominante do sculo XVIII. Os romnticos procuravam
uma compreenso total do homem que repudiava isol-lo do cosmos onde vivia
(Gusdorf 1985: 16).
O projeto romntico se apoiava em uma intelegibilidade, na qual o sistema em
questo deveria ser um tudo orgnico e a cincia seria uma cincia da totalidade, uma
antropo-cosmo-teologia, englobando a humanidade, a natureza, a histria e mesmo
Deus (Gusdorf 1982: 364). Est claro que tal projeto se choca diretamente com
qualquer sistema de idias que se sustente no dualismo cartesiano mente-corpo. Diante
desse pensamento separador, o pensamento romntico prope um conhecimento
baseado na presena, em que a oposio entre o dentro e o fora, interioridade e
exterioridade, material e espiritual perde o melhor de sua significao (Gusdorf 1982:
365). A base fundamental do romantismo era esse monismo ontolgico e
continente germnico, reduzido terra de ningum... A escola de medicina se situa no Quartier Latin... (Gusdorf 1982: 349). 12 Duarte (2002), apesar de reconhecer a polissemia da categoria romantismo, considera que existiria uma srie de caractersticas-chave que permitiriam defini-lo; entre elas, situa a nfase na totalidade
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epistemolgico. Da se derivou a frmula bsica do romantismo que a denncia da
perda [da totalidade] implicada por essa fragmentao do mundo, por essa nfase na
segmentao dos elementos constitutivos de todos os entes (Duarte 2002: 8).
Os romnticos no desconheciam a possibilidade de uma intelegibilidade
racional, mas se negavam a outorgar-lhe uma validade exclusiva; ao terem em vista uma
intelegibilidade totalizadora, propunham a existncia de um tipo de experincia que
fosse alm da existncia dos fenmenos, pretendendo compreender os segredos da
essncia dos fenmenos (Gusdorf 1982: 421). A prpria aceitao da totalidade, da
unidade de sentido no mundo, reclamava pela necessidade de compreenso do simples
atravs do complexo e sustentava que absurdo pretender dar conta do conjunto a
partir do elemento; o elemento no mais do que uma conseqncia do conjunto, uma
parte morta, onde o sentido se perdeu (Gusdorf 1982: 423).
No mbito da cincia, essa viso romntica do mundo cristalizou-se na
Naturphilosophie. Nela, o conhecimento era derivado tanto das cincias, da razo, da
poesia