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1 MINI-CURSO: A SEMÂNTICA LEXICAL Profa. Márcia Cançado II CONEL UFES 24/10/2013 1. O que é Semântica Lexical? Valendo-me de Chierchia (1990), comecemos pela diferença entre o objeto de estudo da Semântica Formal e da Semântica Lexical. A Semântica Formal, se esse termo é entendido como um tipo de Semântica Referencial, tem como principal foco a investigação da relação da língua com o(s) mundo(s) sobre o qual(is) nós falamos, trata de questões relacionadas ao “mundo público” e vale-se de noções objetivamente não- linguísticas, tais como valores de verdade. Essas teorias referenciais tratam do significado informacional e tem relação com o que Chierchia chama de “aboutness”(‘sobre o que se fala’). Por outro lado, a Semântica Lexical, vista como uma ampla área de investigação, trata do significado cognitivo que envolve a relação entre a língua e os construtos mentais que de alguma maneira representam ou estão codificados no conhecimento semântico do falante. Teorias que tratam do significado cognitivo olham para dentro do aparato linguístico do falante e não estão preocupadas com o “mundo público”, que envolve a comunicação linguística. 1.1 Tipos de Semântica Lexical (ou semântica representacional) Levando-se em conta esse pressuposto básico assumido pela chamada Semântica Lexical, devemos chamar atenção que dentro dessa área há vários tipos de fenômenos e abordagens que são estudados. Poderíamos afirmar que são muitas “as semânticas lexicais”. Vou seguir brevemente a apresentação de Geeraerts (2010), que apresenta em seu livro Theories of Lexical Semantics, uma ampla trajetória das possíveis teorias e tipos de estudo que são elencados como Semântica Lexical. O primeiro estágio da história da Semântica Lexical pode ser datado de 1830 a 1930 e é conhecido como Semântica Histórico-Filológica. Com uma orientação histórica, a preocupação principal concerne às mudanças dos sentidos das palavras: a identificação, classificação e explicação das mudanças semânticas. Por volta de 1930 a 1960, temos a Semântica Estruturalista, evidentemente influenciada e orientada pelo trabalho de

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    MINI-CURSO: A SEMNTICA LEXICAL Profa. Mrcia Canado II CONEL UFES 24/10/2013

    1. O que Semntica Lexical?

    Valendo-me de Chierchia (1990), comecemos pela diferena entre o objeto de estudo da Semntica Formal e da Semntica Lexical. A Semntica Formal, se esse termo entendido como um tipo de Semntica Referencial, tem como principal foco a investigao da relao da lngua com o(s) mundo(s) sobre o qual(is) ns falamos, trata de questes relacionadas ao mundo pblico e vale-se de noes objetivamente no-lingusticas, tais como valores de verdade. Essas teorias referenciais tratam do significado informacional e tem relao com o que Chierchia chama de aboutness(sobre o que se fala). Por outro lado, a Semntica Lexical, vista como uma ampla rea de investigao, trata do significado cognitivo que envolve a relao entre a lngua e os construtos mentais que de alguma maneira representam ou esto codificados no conhecimento semntico do falante. Teorias que tratam do significado cognitivo olham para dentro do aparato lingustico do falante e no esto preocupadas com o mundo pblico, que envolve a comunicao lingustica.

    1.1 Tipos de Semntica Lexical (ou semntica representacional)

    Levando-se em conta esse pressuposto bsico assumido pela chamada Semntica Lexical, devemos chamar ateno que dentro dessa rea h vrios tipos de fenmenos e abordagens que so estudados. Poderamos afirmar que so muitas as semnticas lexicais. Vou seguir brevemente a apresentao de Geeraerts (2010), que apresenta em seu livro Theories of Lexical Semantics, uma ampla trajetria das possveis teorias e tipos de estudo que so elencados como Semntica Lexical.

    O primeiro estgio da histria da Semntica Lexical pode ser datado de 1830 a 1930 e conhecido como Semntica Histrico-Filolgica. Com uma orientao histrica, a preocupao principal concerne s mudanas dos sentidos das palavras: a identificao, classificao e explicao das mudanas semnticas. Por volta de 1930 a 1960, temos a Semntica Estruturalista, evidentemente influenciada e orientada pelo trabalho de

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    Saussure. Em meio a uma variedade de posies tericas e mtodos descritivos que surgem da concepo estruturalista, podemos apontar trs pontos que distinguem essa corrente terica: o aparecimento do conceito campo lexical, a anlise componencial (traos semnticos) e a semntica relacional (sinonmias, hiponmias, antonmias e meronmias). Em 1963, no artigo intitulado The structure of a semantic theory, Katz e Fodor introduzem a noo de anlise componencial na gramtica gerativa. Em meio a vrios problemas enfrentados pelos autores em suas propostas, surge a ideia de se usar o aparato formal da lgica na semntica das lnguas naturais. Essa ideia muito bem recebida por alguns linguistas de formao gerativista (Lakoff, McCawley, Fillmore, Ross, Langacker, entre outros), e com isso surge a Semntica Gerativa. Esse tipo de semntica, em oposio aos sintaticistas gerativos, coloca a semntica, em vez da sintaxe, como a base da arquitetura do modelo formal de gramtica, originalmente concebido por Chomsky. Nesse ponto da histria da semntica, podemos dizer que surge a anlise por decomposio em predicados primitivos, em que se assume que a semntica de um verbo no unitria, mas composta por subpartes e componentes, os primitivos semnticos. A maneira pela qual esse tipo de semntica decomposicional se ajustava estrutura da gramtica, proposta pelos semanticistas gerativos, foi mais tarde duramente criticada na literatura, o que levou a teoria ao seu esvaziamento. Entretanto, a ideia de decomposio do sentido de itens, expressos em um sistema de predicados primitivos, perpetuou-se nos estudos lingusticos. Muitos semanticistas, tais como Jackendoff, Levin, Rappaport Hovav, Van Valin, LaPolla, Wunderlich, Dowty, Parsons, entre outros, continuam a explorar a ideia de que o significado dos verbos pode ser decomposto em elementos bsicos, utilizando-se da noo de predicados primitivos nessas decomposies lexicais. A preocupao central dessas propostas a relao entre a estrutura argumental dos verbos e a estruturao e propriedades sintticas das sentenas. Poderamos nomear essa linha de uma forma mais adequada como sendo o estudo da Interface Sintaxe-Semntica Lexical. Entretanto, segundo a anlise de Geeraerts, esse tipo de estudo se encaixaria em uma vertente do que ele chama de Semntica Neoestruturalista, pois esses estudos, de uma forma ou de outra, do continuidade s ideias estruturalistas e gerativistas. Outras vertentes dessa linha podem ser encontradas em trabalhos de semanticistas tais como Wierzbicka, Jackendoff (em seus trabalhos mais recentes), Bierwisch, Pustejovsky, que tambm se valendo da linguagem decomposicional de predicados tm como principal preocupao a interao entre o lxico e a cognio, podendo ser esse tipo de estudo

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    ligado a estudos de Semntica Lexical Computacional (trabalhos do tipo WordNet). E, finalmente, nos anos 80, surge a Semntica Cognitiva, como parte da Lingustica Cognitiva, um movimento que se ope autonomia da gramtica, assumindo que a distino entre semntica e pragmtica irrelevante. Linguistas como Lakoff, Langacker, Fillmore, Fauconnier, Croft, Goldberg fazem parte desse tipo de proposta que tem como principais orientaes a teoria de prottipos, as metforas conceituais e a semntica de frames (estruturas). Portanto, grosso modo, no podemos falar de uma teoria classificada como Semntica Lexical, mas de vrias semnticas lexicais, e o que teria de comum entre esses estudos ter como principal objeto a relao entre a lngua e a sua representao mental.

    2. A Interface Sintaxe e Semntica Lexical

    Como falei no item anterior, so vrias as semnticas lexicais. E, ainda, se focalizamos nosso estudo em um tipo de semntica, como por exemplo, a denominada Interface Sintaxe-Semntica Lexical, onde se encaixa o meu trabalho, temos ainda vrias possibilidades de teorias de representaes lexicais para o estudo da semntica verbal. Levin e Rappaport Hovav (2005) fazem uma excelente reviso de todas essas representaes, que podem ser dadas por: uma lista de papis temticos, papis temticos generalizados (proto-papis), decomposio em predicados primitivos e estruturas de eventos (noes de movimento e locao, a estrutura causal ou estrutura aspectual). As autoras realam que cada tipo de representao salienta uma faceta cognitiva mais relevante para a realizao argumental, mostrando as vantagens e desvantagens dessas propostas. Neste curso, usaremos as noes de papel temtico para ilustrar rapidamente como se d a representao lexical dos verbos e a sua relao com a sintaxe. Os estudos da Interface Sintaxe-Semntica Lexical tem como preocupao central estabelecer a relao entre a estrutura semntico-lexical dos predicados, principalmente dos verbos, e a estruturao e propriedades sintticas das sentenas. Ou seja, tornar explcito a interferncia da semntica na sintaxe das lnguas. Entretanto, para cumprirmos tal tarefa, uma primeira pergunta se impe: Quais so os critrios a serem utilizados nessa classificao? Ou melhor, o que certos verbos tm em comum de forma a comporem uma

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    classe? Ser apenas uma caracterstica semntica em comum? Essa caracterstica

    pertenceria a que tipo de informao de ordem semntica: sentido idiossincrtico, atribuio de papis temticos, acionalidade (ou aspectualidade)? E seriam essas propriedades semnticas relevantes para reunir os verbos em classes? Ou seriam as propriedades sintticas que classificam os verbos, como, por exemplo, a transitividade e a possibilidade de alternncias e construes? O que , afinal, necessrio para se ter uma classe verbal, e no apenas um agrupamento qualquer de verbos?

    Para respondermos a essas questes, vamos nos basear na hiptese de que apenas a informao semntica, ou seja, o sentido especfico dos verbos presente nos itens lexicais no suficiente para classificarmos os verbos de uma forma generalizada e sistemtica de um ponto de vista gramatical, seguindo as argumentaes de Fillmore (1970, 1977), Levin (1993) e Levin e Rappaport Hovav (2005), Grimshaw (2005 [1993]), Pesetsky (1995), dentre muitos outros.

    Grimshaw (2005 [1993]) mostra que no existe nenhum processo ou generalizao gramatical sobre a realizao morfossinttica dos argumentos de verbos que implicam a ideia de cor em seu sentido (pintar, colorir, amarelar, desbotar). Da mesma forma, Pesetsky (1995) mostra que no existe nenhum tipo de generalizao sinttica que possa ser feita sobre a diferena entre verbos que denotam emisso de sons altos (berrar, urrar) e verbos que denotam emisso de sons baixos (sussurrar, murmurar). Entretanto, a distino entre verbos que denotam a maneira de falar (sussurrar) e verbos que denotam um contedo de fala (dizer, falar, propor) parece ser relevante para uma classificao das classes verbais: somente os segundos aceitam um complemento sentencial em ingls (Mary said that she is hungry Mary falou que ela est com fome, mas no *Mary whispered that she is hungry Mary sussurrou que ela est com fome).

    Godoy (2009), seguindo a hiptese proposta pelos autores acima, identifica para o PB, um agrupamento de verbos que acarretam igualmente a propriedade semntica ter boca ao seu sujeito: gritar, beijar, beber, bocejar, falar e assoviar. A princpio, esses verbos poderiam formar uma classe por terem uma propriedade semntica em comum. Entretanto, ao se analisar os exemplos, poucas caractersticas, tanto sintticas quanto

    semnticas, podem ser atribudas a esses verbos, de uma maneira geral, como se eles formassem realmente uma classe especfica. Por exemplo, com relao a aspectos

    sintticos, apenas beijar forma uma construo reflexiva (Joo se beijou) e apenas beber

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    forma uma construo medial (Essa cerveja se bebe muito no Brasil). Gritar, bocejar e assoviar so intransitivos e beijar e beber, transitivos. No parece haver um trao do comportamento sinttico desses verbos que lhes seja comum. Do ponto de vista da estrutura argumental, beijar tem dois argumentos obrigatrios, um agente e um paciente, enquanto gritar apresenta somente um agente, como argumento obrigatrio. Aspectualmente, assoviar uma atividade, mas beber (uma coca), por exemplo, um accomplishment. Portanto, a caracterstica semntica ter boca no parece relevante para nenhum tipo de generalizao gramatical.

    Diferentemente, a propriedade semntica agir com inteno assumida na literatura como sendo relevante para o comportamento gramatical dos verbos. Podemos listar sumariamente inmeros verbos do portugus que acarretam tal propriedade, ou seja, que contm essa ideia entre as suas informaes semnticas: escrever, comer, cozinhar, desenhar, dentre muitos outros. Todos esses verbos aceitam, por exemplo, a formao de passivas: a carta foi escrita, a ma foi comida, a carne foi cozida, a casa foi desenhada. Contrastem-se esses verbos com verbos como preocupar e sentir, que no acarretam a propriedade agir com inteno para o seu argumento externo e no aceitam a formao de passivas: *a me foi preocupada (pelo filho), *fome foi sentida (pelo menino). Portanto, agir com inteno parece ser uma propriedade semntica relevante a ser estudada na anlise gramatical das lnguas. Seguindo, pois, essa linha de anlise, vamos assumir que classificar verbos implica agrup-los em classes que partilham certas propriedades no s semnticas, mas tambm sintticas, ou, ainda, implica agrup-los por propriedades semnticas que tenham impacto no seu comportamento gramatical.

    3. Papis temticos: uma linguagem para a representao lexical dos verbos

    O estudo da relao entre as funes semnticas que um item lexical estabelece com as funes sintticas de uma sentena, em realidade, tem sua origem no estudo do snscrito pelo gramtico indiano, Pnini, por volta dos sculos 600 e 300 a.C. Entretanto, s bem mais tarde, o tema retoma seu interesse entre linguistas, com os trabalhos de Gruber (1965), Fillmore (1968) e Jackendoff (1972, 1976), entre alguns outros. Os autores alegam que necessrio assumir essas funes semnticas em estudos

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    gramaticais, pois as funes gramaticais de sujeito, objeto e outras so insuficientes para traduzir certas relaes existentes entre algumas sentenas do tipo:

    (1) a. O Joo quebrou o vaso. b. O vaso quebrou. c. O vaso foi quebrado por Joo.

    Em (1a, b e c), o vaso tem a mesma funo semntica de ser o paciente de uma ao, ou seja, aquele objeto que sofre a ao feita por um determinado agente; mas, em (a), exerce a funo sinttica de objeto, e, em (b) e em (c), de sujeito. J o Joo tem a mesma funo semntica de ser o agente da ao em (a) e (c), entretanto, sintaticamente, est em posio de sujeito em (a) e em posio de adjuno (c). Pode-se perceber ento que, apesar de os argumentos estarem em posies sintticas distintas, as oraes no so distintas e sem relao. Na realidade, as trs sentenas descrevem um mesmo evento, sob diferentes perspectivas. Existe algum tipo de dependncia nas sentenas acima entre a ao de quebrar e as entidades Joo e vaso. Essas entidades, relacionadas pelo verbo, assumem uma mesma funo semntica dentro das trs sentenas. Por exemplo, o argumento o Joo em (1a) e em (1c) tem a mesma funo semntica de ser o agente da ao de quebrar; e o argumento o vaso em (1a), (1b) e (1c) tem a funo semntica de ser o paciente da ao, o que sofre a ao de quebrar. Repetindo, os exemplos acima so diferentes formas sintticas de apresentao de um mesmo fato: existe o evento de quebrar, cujos participantes so Joo e vaso. As diferentes relaes sintticas apresentadas em (1) nada podem dizer a respeito dessa relao de dependncia. Portanto, a dependncia est nas relaes de sentido que se estabelecem entre o verbo e seus argumentos (sujeito e complementos): o verbo, estabelecendo uma relao de sentido com seu sujeito e seus complementos, atribui-lhes funes, um papel para cada argumento. So a essas funes que chamamos de papis temticos. Podemos perceber que no existem apenas eventos relativos s aes, como quebrar, abrir, fechar etc. O homem tambm experimenta sentimentos, sensaes, tem percepes, capaz de relacionar coisas etc, e isso tambm expresso na lngua. Essas experincias podem ser relativas s questes psicolgicas (2a), perceptivas (2b), ou cognitivas (2c):

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    (2) a. O Joo ama a Maria. b. O Joo enxergou a luz no fim do tnel. c. O Joo acreditou no jornal.

    No se pode dizer que o Joo tenha o papel de agente nos eventos descritos acima, visto que ele, simplesmente, passa por um processo de experincia mental. Isso se torna mais claro, se compararmos (3a), em que se tem verbos de processos mentais e (3b), em que se tem verbos de ao:

    (3) a.? O que o Joo fez foi amar a Maria/enxergar a luz no fim do tnel/acreditar no jornal.

    b. O que o Joo fez foi quebrar/abrir/fechar o vaso.

    Quanto aos processos relacionais, tambm impossvel pensar no sujeito como tendo o papel de agente do processo, ou mesmo como tendo o papel de experienciador desse processo. Nesse tipo de orao, simplesmente relacionam-se dois estados de fato:

    (4) a. O Joo ficou em casa. b. O Joo tem uma casa.

    Fica evidente, pois, que as relaes semnticas, ou os papis temticos, estabelecidas entre os verbos e seus sujeitos e complementos (seus argumentos) podem ser de diferentes tipos. A partir desses estudos iniciais, a noo de papel temtico foi incorporada a vrias teorias gramaticais, das mais variadas formas. Os primeiros autores a estudarem essas noes adotavam a posio de que os papis temticos eram informaes primitivas, semnticas, que um item predicador j trazia marcadas em suas informaes lexicais. Por exemplo, o verbo quebrar traria como informao que seu sujeito e que seu complemento seriam associados aos papis temticos de agente e paciente, respectivamente. A definio dessas noes semnticas era dada por uma lista de papis temticos. Autores como Fillmore (1968, 1971), Chafe (1970), Halliday (1966, 1967), Gruber (1976), Jackendoff (1972), entre outros, propem uma extensa lista para a classificao dos diferentes tipos de papis temticos. Baseadas nessa literatura, elaborei uma lista mais

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    geral e abrangente de papis temticos (os argumentos que recebem os papis temticos apontados so marcados em itlico nos exemplos):

    a) Agente: o desencadeador de alguma ao, capaz de agir com controle.

    (5) O motorista lavou o carro. (6) A atleta correu.

    b) Causa: o desencadeador de alguma ao, sem controle.

    (7) As provas preocupam a Maria. (8) O sol queimou a plantao.

    c) Paciente: a entidade que sofre o efeito de alguma ao, havendo mudana de estado.

    (9) O Joo quebrou o vaso. (10) O acidente machucou a Maria.

    d) Tema: a entidade deslocada por uma ao.

    (11) O colega jogou a bola para a menina. (12) A bola atingiu o alvo.

    e) Experienciador: ser animado que mudou ou est em determinado estado mental, perceptual ou psicolgico.

    (13) O namorado pensou na amada. (14) O colecionador viu um pssaro diferente. (15) As provas preocupam a Maria.

    f) Resultativo: o resultado de uma ao que no existia e passa a existir ou vice-versa.

    (16) O pedreiro construiu a casa. (17) A bruxa comeu a ma.

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    g) Beneficirio: a entidade que envolvida na ao descrita, sem desencade-la ou por ela ser afetada.

    (18) O patro pagou o funcionrio. (19) O pai deu um presente para o filho. (20) A mulher perdeu a carteira.

    i) Objetivo (ou Objeto Estativo): a entidade a qual se faz referncia, sem que esta desencadeie algo, ou, seja afetada por algo.

    (21) O aluno leu um livro do Chomsky. (22) O marido ama a mulher.

    j) Locativo: o lugar em que algo est situado ou acontece.

    (23) Eu nasci em Belo Horizonte. (24) O show aconteceu no teatro.

    k) Alvo: a entidade para onde algo se move.

    (25) A Sara jogou a bola para o policial. (26) O professor colocou os livros na mesa.

    l) Fonte: a entidade de onde algo se move.

    (27) A modelo voltou de Paris. (28) O motorista tirou o carro da vaga proibida.

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    4. Relao entre papis temticos e sintaxe

    4.1 Posio dos argumentos

    Pode-se afirmar com um grau de certeza bem grande, que os argumentos, nas mais diversas lnguas, que esto associados ao papel temtico de agente ocuparo a posio de sujeito da sentena na voz ativa:

    (29) O Joo comeu uma banana. (30) John ate a banana. (31) Jean a mang une banane.

    Portanto, alguma influncia deve ter a propriedade de ser agente, ou alguma propriedade relacionada a essa, para a estruturao sinttica das sentenas. Tambm, parece ser bem geral a observao de que locativos, em vrias lnguas, ocupam a posio de objeto indireto ou adjuno:

    (32) a. O Joo colocou o livro na mesa. b. A soprano cantou no Palcio das Artes.

    (33) a. John put the book on the table. b. The singer sang in Opera House.

    (34) a. Jean a mis le livre sur la table. b. La chanteuse a chant lOpra.

    4.2 Alternncia Verbal

    O termo alternncia verbal muito amplo e usado de diferentes formas. Geralmente, o termo refere-se possibilidade de um verbo apresentar mais de uma representao de estrutura argumental e duas formas de transitividade. Por exemplo, o verbo quebrar pode aparecer em duas sentenas diferentes e com diferentes estruturas argumentais, como nos exemplos abaixo:

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    (35) a. O Joo quebrou o vaso. b. quebrar: {causa, paciente}

    (36) a. O vaso (se) quebrou. b. quebrar: {paciente}

    Pode-se dizer das representaes acima que o verbo quebrar alterna entre duas estruturas argumentais: uma causativa e outra incoativa (ou ergativa). Esse seria um fenmeno tpico de alternncia verbal. Entretanto, no so todos os verbos que permitem essa alternncia:

    (37) a. O Joo jogou a bola. b. jogar: {agente, tema)

    (38) a. A bola jogou. b. *jogar: {tema}

    O que Fillmore (1970) argumenta que verbos como quebrar e jogar diferem em relao ao tipo de papel temtico de seus complementos e por isso apresentam distintos comportamentos de realizao argumental, ou seja, o primeiro pode apresentar uma alternncia em sua realizao argumental e o segundo no apresenta essa possibilidade. Uma das hipteses correntes na literatura que verbos que tem como complemento um paciente, entre outras restries, aceitam esse tipo de alternncia verbal; os que no apresentam um paciente na posio de complemento no permitem a alternncia.

    4.3 Passivas

    A propriedade de ser agente de uma ao tambm est estreitamente relacionada ocorrncia da formao de sentenas passivas. Sentenas transitivas que tm um agente aceitam a propriedade de passivizao, em vrias lnguas. Observe que no estamos afirmando que todas as sentenas transitivas que aceitam passivas tm que ter um agente na sua forma ativa, mas, estamos afirmando que, aquelas que tm um agente, com certeza, podem ser passivizadas:

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    (39) Uma banana foi comida por Joo. (40) A banana was eaten by John. (41) Une banane a t mange par Jean.

    Outros exemplos em portugus seriam:

    (42) a. A cozinheira apimentou a comida. {agente, paciente} b. A comida foi apimentada pela cozinheira.

    (43) a. O aluno escreveu sua tese. {agente, resultativo} b. A tese foi escrita pelo aluno.

    (44) a. O professor encaixotou seus livros. {agente, tema} b. Os livros foram encaixotados pelo professor.

    Se o verbo exigir que seu sujeito seja somente uma causa, em outras palavras, seja um verbo estritamente causativo, este no aceitar a construo passiva:

    (45) a. A doena preocupou a me. {causa, experienciador} b. *A me foi preocupada pela doena. (46) a. A ginstica cansou o atleta. {causa, paciente}

    b. *O atleta foi cansado pela ginstica. (47) a. Os gastos excessivos empobreceram o Joo.

    b. *O Joo foi empobrecido pelos gastos excessivos.

    Entretanto, h mais nuances a respeito da relao papel temtico e passivas. Por exemplo, Canado (2005) e Canado e Franchi (1999) lanam a hiptese de que no somente o papel temtico, como um todo, que restringe a possibilidade de um verbo aceitar a passivizao. Os autores propem que toda sentena transitiva, cujo sujeito tenha como acarretamento a propriedade semntica do controle ou o desencadeamento direto, aceita a propriedade sinttica da passivizao. Portanto, a hiptese restringe a passivizao ocorrncia de propriedades especficas contidas ou atribudas composicionalmente a papis temticos. Nas sentenas abaixo, em que a propriedade do controle no est associada ao sujeito da sentena, as passivas no so aceitas:

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    (48) a. O fazendeiro possui cem alqueires de terra. b.*Cem alqueires de terra so possudos pelo fazendeiro.

    (49) a. O Joo recebeu um tapa. b.*Um tapa foi recebido pelo Joo.

    Mas observe que, em sentenas nas quais se pressupe o controle por parte de seus sujeitos gramaticais, a passiva aceita:

    (50) a. O diabo possuiu o homem totalmente. b. O homem foi possudo pelo diabo.

    (51) a. O Joo recebeu uma herana. b. A herana foi recebida pelo Joo.

    (94) a. Joo recebeu um tapa com prazer. b. Um tapa foi recebido pelo Joo com prazer.

    5. Observaes finais

    Portanto, os exemplos dados acima so evidncias de que propriedades semnticas dos itens verbais, ou mais especificamente, os tipos de papis temticos tm relevncia direta na estruturao sinttica apresentada pelos verbos. Tem-se a outra forte motivao para se investir em estudos sobre os papis temticos, ou mesmo, outros tipos de linguagem para se falar em representao lexical. Um estudo bem aprofundado sobre essa linguagem e a relao sintaxe e semntica lexical, encontra-se no livro Catlogo de Verbos do PB , (Canado, Godoy e Amaral, 2012), em que temos um amplo estudo sobre os verbos do portugus brasileiro e as relaes da semntica e sintaxe, usando para tal anlise a linguagem em decomposio de predicados primitivos. Com um conhecimento mais profundo dessas noes, com definies mais explcitas e formais, pode-se compreender melhor a real relevncia da semntica na estruturao sinttica das sentenas.

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    6. Algumas Referncias

    CANADO, M. Manual de semntica: noes bsicas e exerccios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Reeditado pela Editora Contexto em 2012.

    CANADO, M; GODOY, L; AMARAL, L. Catlogo de verbos do portugus brasileiro classificao verbal segundo a decomposio de predicados. Parte I: Verbos de mudana. Belo Horizonte: Editora UFMG, ps.404.

    CHIERCHIA, G; MCCONNELL-GINET, S. Meaning and Grammar: An Introduction to Semantics. Cambridge: MIT Press, 1990.Chierchia (1990),

    FILLMORE, C. The Case for Case. In: BACH, E.; HARMS, R. (eds). Universals in Linguistic Theory. New York: Holt, Rinnehart and Winston, 1968, p. 1-88.

    LEVIN, B.; RAPPAPORT HOVAV, M. Argument Realization. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

    OLIVEIRA, A. S. Resenha de Theories of Lexical Semantics, de Dirk Geeraerts. ReVEL, v. 9, n. 17, 2011. [www.revel.inf.br].