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UFBA/Faculdade de Comunicação - Habilitação em Jornalismo - 2003.2 •Projeto Experimental: Caderno Especial de Jornalismo Literário crime, violência e perversão no manicômio judiciário A loucura sob custódia Foto: Manoel Porto

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Page 1: UFBA/Faculdade de Comunicação - Habilitação em Jornalismo ... · tulo de uma reportagem publicada no jornal A TARDE do dia 6 de dezembro de 2002. O texto trazia uma declaração

UFBA/Faculdade de Comunicação - Habilitação em Jornalismo - 2003.2 •Projeto Experimental: Caderno Especial de Jornalismo Literário

crime, violência e perversão no manicômio judiciário

A loucura sob custódiaFoto: Manoel Porto

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no Conselho, teria a pos-sibilidade de acesso (pará-grafo único do artigo 5º).

A violênciacontra a vida humanaexpressa pelas condi-ções dos internos, ali-viada pela resistênciados movimentos soci-ais e pela ação doMinistério Público, ea violência contra asociedade e contrao Estado Democrá-tico de Direito, a-través da tentativainaceitável de so-negar informaçãode interesse pú-blico, não deve-riam ser tolera-das em qual-

quer nível. A opção pelojornalismo literário se faz pelo de-sejo declarado de adjetivar, de e-mitir opinião e de manifestar li-vremente inquietação, revolta,indignação. A intenção confessa-mente quixotesca é gerar infor-mação que repercuta e produzaconsciência por entender que esteé o caminho para qualquer possi-bilidade de transformação darealidade.

Para que a sociedade baianapossa superar o limbo de umapseudo-cultura que folcloriza amiséria e a ignorância do nossopovo para transformação disso emproduto exótico de bom apelo co-mercial, é preciso que o direito àinformação se materialize da for-ma mais plena possível. As rea-ções às mazelas sociais, cada vezmais freqüentes e dispersas, sãotambém desorganizadas do pontode vista das ações políticas coleti-vas. Elas serão tanto mais produti-vas quanto maior for o nível deconsciência produzida pela livrecirculação da informação de inte-resse público.

Manicômio judiciárioé sucursal do infer-no”, anunciava o tí-

tulo de uma reportagem publicadano jornal A TARDE do dia 6 dedezembro de 2002. O texto traziauma declaração da assistentesocial Edna Amado, coordenado-ra da Luta Antimanicomial, dizen-do que o Hospital de Custódia eTratamento - novo nome do anti-go Manicômio Judiciário - é amatriz, e que o inferno é a sucur-sal. Certo e errado, Deus e Diabo,céu e inferno; todos esses velhos ebastante conhecidos confrontosbipolares - uso o termo apenaspara fazer uma bem intencionadaprovocação à psiquiatria - escan-caram o quanto de contradição ehipocrisia há na mente humana,dissimuladas com maior ou menorrequinte a depender da habilidadede cada ator na cena social en-quanto desempenha o seu papel.Pouco mais de um ano após a pu-blicação da primeira reportagemdo jornalista Levi Vasconcelos,que marcou o início da denúnciacontra o Hospital de Custódia eTratamento, nenhuma autoridadequer assumir a responsabilidadepelo cenário de absoluta degra-dação humana e completo des-prezo pela vida. Ao mesmotempo, não falta quem queirachamar para si o mérito de terfeito alguma coisa para mudar asituação. Todos estão certos, pro-fessam a fé em Deus e desejam océu. Ninguém quer pagar pelospecados expressos pelas ações eomissões que fizeram daquilo quedeveria ser um hospital, um ver-dadeiro inferno na terra.

O problema é altamente com-plexo e não cabe numa só repor-tagem. Levi Vasconcelos e JoséBonfim fizeram inúmeras maté-rias e não esgotaram o assunto,ainda que sua abordagem tenhaficado, de certa forma circunscritaàs condições objetivas de trata-mento dos pacientes (ou presos?)do HCT. É apenas um dos aspec-tos da questão e já absorveu tantotempo dos dois jornalistas e mui-tas páginas de jornal. Mas aindahá vários outros aspectos igual-mente importantes: o tipo de trata-mento dispensado nos hospitaispsiquiátricos, o questionamento àsua existência e funcionalidade, alegislação que trata dos crimescometidos por portadores detranstornos mentais e a interpre-tação dada pelos juízes e opera-dores do direito, a assistência àsaúde mental como parte do direi-to constitucional à saúde, além nodilema ético que permeia todas aspossibilidades de abordagem doproblema da loucura. Cada enfo-que já seria suficiente para quemse dedicar ao seu estudo produzirtalvez alguns volumes. Este tra-balho, obviamente, não pretendeesgotar nenhum deles, mas provo-car uma reflexão sobre o direito àinformação como condição essen-

rente dos que saem nos nossos jor-nais diários em caráter regular ouespecial. De pronto, anuncio orompimento com a figura quimé-rica da objetividade jornalística,antes de mais nada por estarpessoalmente com-prometi-

do com o movimento pela supera-ção do modelo manicomial. Aoassumir que não tentarei sequervender a idéia de uma imparciali-dade em que não acredito, impor-tante frisar, não renuncio ao prin-cípio da isenção e nem me distan-cio do padrão de conduta estabele-

cido no Código de Ética dosJornalistas.

Isso posto, é preciso declarardesde este primeiro texto, que soutambém personagem da históriaque pretendo contar, e por issooptei pelo caminho do jornalismoliterário. Entrei para o enredoexatamente no dia 19 de dezem-

cial para que a sociedade evolua.Será o fio condutor, o pano defundo de uma história sobre aBahia deste início de milênio,triste e dessemelhante. Um lugarrealmente incomum, onde con-vivem a alegria e a dor, a opulên-cia da sexta maior economia doBrasil e o quinto povo mais mise-rável. A Bahia onde, à

revelia do Estado democrático dedireito formalmente instituído,vive-se sob o império de umaditadura civil policial que, semqualquer cerimônia, serve-se doaparelho estatal para impor a cen-sura através do cultivo à auto-cen-sura pela via da intimidação, ondequalquer contestação é vista comoameaça ao poder estabelecido,que não tolera a divergência talvezpor saber-se incapaz de sobrevi-ver numa arena verdadeiramentedemocrática onde a exposição docontraditório fosse a regra, e não aexceção.

Inicialmente pretendia contaressa história em um livro-repor-tagem - projeto que não foi aban-donado. Mas o calendário acadê-mico não permitiu a conclusão dapesquisa no ritmo possível ao au-tor, que assim, opta pela propo-sição de um formato ainda poucoexplorado pelo jornalismo baiano.Enquanto o livro não sai, faço des-te projeto experimental um pri-meiro exercício, experimentandoa abordagem mais completa do te-ma, ainda assim insuficiente, numcaderno especial um pouco dife-

bro de 2002, quando, fuipela primeira vez, aconvite daC o -

missão de Direitos Humanos daOAB, acompanhar uma visita deinspeção. Duas semanas antes ojornalista Levi Vasconcelos assi-nara a matéria “Manicômio judi-ciário é sucursal do inferno”, comconteúdo suficientemente explosi-vo para detonar as reações de de-fesa da Secretaria da Justiça e Di-reitos Humanos, à qual o Hospitalde Custódia e Tratamento estáadministrativamente ligado. Co-mo seria impossível existir tapetegrande o suficiente para escondertamanha imundice, o primeiromovimento de defesa do secre-tário Sérgio Sanches Ferreira foiimpedir a nossa entrada. Ele, ba-charel em Direito, afrontava aliuma prerrogativa da Ordem dosAdvogados do Brasil. Ao mesmotempo o secretário, que por forçade lei exerce a presidência doConselho Estadual de Proteçãoaos Direitos Humanos, passou porcima de uma prerrogativa dosconselheiros estabelecida na Lei6.699/94 - a mesma que lhe con-cede, “ex-oficio” os poderes depresidente. Como representante daAssociação Bahiana de Imprensa

direito a informação etransformação da realidade

Ninguém quer pagar pelos pecados

expressos pelasações e omissões

que fizeram daquiloque deveria ser um

hospital, um verdadeiro inferno

na terra.

2 Maio de 2004

A pesquisa continua

O projeto de transformar apesquisa num livro-reporta-gem continua, agora sem oscompromissos de um traba-lho acadêmico. O autoragradece comentários sobreesta “amostra grátis”, su-gestões, indicações de fontese entrevistados e qualqueroutra contribuição. É só es-crever para:

[email protected]

Ernesto Marques

EXPEDIENTE

A Verdade é um projeto experimental deconclusão do curso de Jornalismo daFACOM/UFBA. Não é nem pretende serum periódico. Os textos são de inteiraresponsabilidade do autor.

Projeto gráfico e editoração: PardesignFotolito: DigiartImpressão: MultigrafTiragem: 2.000 exemplares

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Mais de 20 anos depois,quando chegou a hora de darforma a este projeto experimen-tal, precisava de um título fictí-cio para um periódico que abri-gasse o caderno especial de jor-nalismo proposto. Resolvi res-suscitar o meu jornal de brin-quedo só para agradecer a todosos assinantes e leitores de AVERDADE que fizeram ummenino teimoso entender que asua vocação era ser jornalista enão engenheiro químico.

com papel carbono. O trabalhoera recompensado porque o jor-nal era vendido. As pautas,invariavelmente, acompanhavamo assunto preferido dos movi-mentados almoços de domingo:política. Em plena vigência doregime militar, um jornal debrinquedo com o presunçosonome de A VERDADE (nada aver com o Pravda soviético, sócoincidência). A tiragem de seisexemplares já não dava conta dopúblico, principalmente adulto,que se divertia mais do que seinformava. Até que Lula, oirmão mais velho, a-presentou umacoisa revolucio-nária: o mimeó-grafo a álcool.Logo depois per-di meu primeirodiagramador, Edu-ardo, um outro ir-mão que entroupara a antiga Es-cola Técnica Fe-deral e só tinhatempo para estudar.Assumi as funções,passei a vender as-sinaturas e o jornalcomeçou a circularem Ipirá.

A exposição das mazelas doHospital de Custódia e Trata-mento, antigo Manicômio Judi-ciário, foi decisiva para iniciar oprocesso de transformação da-quela instituição - ainda longe dofim. As medidas adotadas pelaSecretaria da Justiça e DireitosHumanos a partir das primeirasdenúncias, em dezembro do anopassado, diminuíram a aparênciade “sucursal do inferno”. E, maisimportante, notícias animadorasvindas de fontes confiáveis, dãocomo certa uma reforma emer-gencial nas instalações atuais e,posteriormente, a desativação domanicômio. Ainda não se tem ummodelo definido, mas a primeiraconclusão é realmente pelo fimdaquela casa dos horrores e suasubstituição por um outro mode-lo, inspirado, entre outras fontesde referência, na experiência bemsucedida de Belo Horizonte. Lá,120 loucos que cometeram homi-cídio estão se tratando em regimeaberto sem qualquer reincidênciahá quatro anos. O tempo neces-sário para a morte definitiva deum modelo perverso e absoluta-mente superado, se mais ou me-nos extenso, não pode ser sufici-ente para esquecermos de que ascausas do problema permanece-rão inalteradas se a intervençãoficar circunscrita ao manicômio.

Na Bahia de Juliano Moreira,preto-doutor do século XIX e umdos precursores da psiquiatriabrasileira, sucessivos governostêm mantido o Estado negligentena prestação dos serviços deassistência à saúde mental. Érazoável supor que, entre os maisde 12 milhões de baianos, hajaalguns milhares de portadores desofrimento mental. Amparadospor uma garantia constitucional,esses cidadãos têm direito atratamento adequado numa insti-tuição pública cujos serviçossejam, portanto, gratuitos. É horade apresentar essa fatura aos atu-ais governantes, especialmentequando o combate à pobreza ga-nha centralidade. Entre a parcelamais pobre da população, a ocor-rência de um caso de transtornomental pode resultar em violênciafísica e psicológica, cárcere priva-do e outras coisas tão feias quan-to o próprio HCT. Nem todo“louco” é perigoso, assim comoninguém é perverso porque épobre. Mas não há como exigirque um doente seja corretamentetratado numa casa em que faltacomida.

Ficar indiferente ao problemaé uma atitude comodista e pe-rigosa. Antes de mais nada, poruma questão de solidariedadehumana: acredite, não há quemmereça viver naquele inferno. Emsegundo lugar, por uma razão ló-

gica: ninguém está livre de pre-cisar de atendimento psiquiátricopara si ou para um dos seus. Co-mo é um tratamento caro, é essen-cial que seja acessível pelo SUS.

Por outro lado, a instituiçãomanicômio é absolutamentemonstruosa na Bahia ou em qual-quer lugar. Indefensável. Nãoexiste manicômio melhor ou piordo que o HCT. Existe “aquilo” ououtro modelo. Qual? Ainda nãohá uma resposta conclusiva arespeito, mas há pelo menos duasverdades inescapáveis nessaquestão. Um “hospital” público,onde 20 “pacientes” morrem emum ano, não serve à sociedade.Mais argumentos? É só analisaros números: um suicídio, quatromortes violentas e quinze “mortesnaturais” - entre as quais, casos detuberculose não notificados parafins de controle epidemiológico.Desativar urgentemente o Hospi-tal de Custódia e Tratamento é umimperativo ético que não se res-tringe aos compromissos dos pro-fissionais de saúde, nem às res-ponsabilidades das autoridades.Alcança toda a sociedade. Não sepode tolerar que recursos e servi-dores públicos sejam empregadospara produzir aquela casa de hor-rores. Talvez não se chegue a umnovo modelo em curtíssimo pra-zo, como seria ideal. Mas há mui-tas outras razões para recomendaruma intervenção profunda e ur-gente, durante a transição.

A outra verdade da qual nãose pode escapar diz respeito àimportância do controle social.As condições de habitabilidadedo Hospital de Custódia melho-raram, a farmácia está sendoabastecida e há outros pequenosavanços. Embora sejam absoluta-mente insuficientes para transfor-mar aquela realidade dantesca,são avanços importantes, sobretu-do porque resultam de um esforçotremendo da cidadania. É salutar

que se diga: a pequena melhoraresulta da ação dos movimentossociais, do Ministério Público eda imprensa. O governo veio a re-boque, pressionado pela repercus-são das denúncias.

Aos meios de comunicaçãocoube levar informação na formade imagens e histórias chocantes,a ponto de sensibilizar qualquer

Ernesto Marques

3Maio de 2004

O ano devia ser 1974 outalvez 1975. Nessa época o meupai trabalhava de segunda asexta em Ipirá, e passava os finsde semana conosco em Salva-dor. A família se mudara por-que os filhos mais velhos já es-tavam em idade de cursar o an-tigo científico. Caçula de seteirmãos, ainda estava alfabeti-zando do quando o velho trou-xe uma máquina de escreverOlivetti. Era um objeto de dese-jo disputado avidamente pelosque já tinham trabalhos esco-lares para fazer. Um fedelhoque mal sabia escrever nãopoderia ter prioridade, mas ca-çula sempre tem alguns privilé-gios. Brincando com a Olivettiaprendi a escrever mais rápidoe aos 9 anos fiz a primeiraedição do jornal A VERDADE,com “tiragem” de dois exem-plares - o original e uma cópiaem papel carbono.

Nos fins de semana, nossacasa era o ponto de encontro deparentes e inúmeros amigosque sempre apareciam. O públi-co leitor se ampliou rapida-mente e logo foi preciso au-mentar a tiragem, datilografan-do uma mesma edição pelomenos duas vezes em três vias

Sobre “A Verdade”

clusões numa audiência públicado Conselho Estadual de Prote-ção aos Direitos Humanos, am-plamente convocada, seguida deentrevista coletiva à imprensa.Não há argumento consistentepara impedir que o debate ocorrada maneira mais aberta possível.Vai doer. Principalmente por quenão há como fugir aos questiona-mentos sobre as responsabilida-des civis e administrativas. Afinalde contas, trata-se de uma uni-dade do serviço público, mantidaàs expensas do erário, onde vintecidadãos mantidos sob a custódiado Estado morreram em 2003.

O governo atual tem aresponsabilidade de iniciar oprocesso que leve à efetivaimplantação de uma política deassistência à saúde mental naBahia. Nos dias de hoje isso pres-supõe transparência, paciênciapara ouvir críticas e humildadepara aceitar contribuições da so-ciedade através de suas organiza-ções. A implementação de umnovo modelo de assistência aosportadores de transtorno mentalque tenham cometido algumcrime é só uma parte do processo.Mas, frise-se, uma parte funda-mental e urgente diante de ummodelo perverso, violento e ver-dadeiramente criminoso. O mani-cômio morreu.

o manicômio morreu

pessoa. Para que o controle socialse realize e produza os efeitosbenéficos do exercício pleno e ir-restrito da cidadania, é fundamen-tal que a informação de interessepúblico seja, de fato, pública e a-cessível. A comissão interdisci-plinar criada para diagnosticar oproblema do HCT e indicar solu-ções, deveria apresentar suas con-

Foto: Ag A Tarde

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poder dando, a um só tempo, umgolpe em cima dos portuguesese dos demais agrupamentos or-ganizados militar e politicamen-te. A UNITA (União NacionalPela Independência Total de An-gola), liderada pelo maoísta Jo-nas Savimbi iniciou uma opo-sição sangrenta numa guerra quese arrastou por décadas. O MPLAera apoiado pela União Soviéti-ca e por Cuba, enquanto aUNITA contava com o suporteda CIA e do governo racista daÁfrica do Sul. As aparênciasnem de longe enganavam: o queestava em jogo era o controle so-bre as fantásticas reservas de pe-tróleo e diamante que deveriamter feito do povo angolano, umdos mais ricos do mundo - semfalar nas terras férteis e na abun-dância de água. Em resumo, pode-se dizer com absoluta segurança,que as riquezas daquele paíspoderiam pagar a construção deuma nação próspera, capaz de

assegurar a seus filhos todos osdireitos fundamentais, começan-do por saúde e educação.

Em vez disso, o petróleo e osdiamantes financiaram a destrui-ção de toda a infra-estrutura eproduziram horrores como aque-les que eu presenciaria em maisum dia de trabalho no projeto“Nação Coragem”, idealizadopor uma figura das mais huma-nas que já conheci, o publicitárioSérgio Guerra. Pacífico por na-tureza e amante do reggae, Guer-rinha, como é chamado peloscolegas, se apaixonou por An-gola e pelos angolanos. “NaçãoCoragem” era um programa deTV que deveria revelar Angolaaos angolanos, falar da guerra esemear o desejo de paz. Naqueledia, a minha pauta era mostrariniciativas autônomas de cida-dãos angolanos em favor de seupovo. O primeiro local a ser vis-itado era o Centro de MedicinaTradicional Papa Kitoko, o úni-

co local em toda Luanda - àque-la altura com população estima-da em 4 milhões de habitantes -dedicado ao tratamento de doen-tes mentais.

Os serviços de saúde emAngola são terrivelmente precá-rios, mas nem sempre foi assim.Logo após a independência, o go-verno de Cuba manteve umaajuda substancial aos angolanosna expectativa de que o jovem erico país, ao conquistar avançossociais, espalhasse a revoluçãosocialista pelo continente africa-no. Além de tropas de elite, FidelCastro enviou milhares de médi-cos, dentistas, enfermeiros e pro-fissionais de outras áreas parareproduzir a bem sucedida expe-riência cubana na área de saúdepública. O que ainda existe deve-se, em grande parte, ao legadodos cubanos. Mas a situação sedeteriorou com o avanço da guer-ra e a saída dos aliados da ilha deFidel. Para fugir do conflito, mi-

Quando recebi a pautanão imaginava que, apartir daquela matéria,

anos mais tarde, descobriria oreal significado da conhecidaexpressão “pior é na guerra”. Na-quela manhã ensolarada dejunho fazia um calor escaldanteem Luanda, capital da RepúblicaPopular de Angola. O país, deonde partiram centenas de mi-lhares - talvez alguns milhões -de escravos para o Brasil, se li-bertara do domínio portuguêsem 1975, e desde então, os con-flitos iniciados na década de1960, recrudesceram. Enquantoexpulsavam os colonizadores, osangolanos se debatiam numaguerra fratricida cujas moti-vações supostamente ideológi-cas não conseguiam disfarçar oforte componente tribal. Os par-tidários do líder revolucionário epoeta Agostinho Neto e o seuMPLA (Movimento Pela Liber-tação de Angola) assumiram o

Pioré na guerra?

lhões de pessoas migraram para acapital sem que o governo fossecapaz de controlar a explosãodemográfica. Luanda fora cari-nhosamente planejada pelos por-tugueses para 500 mil pessoas vi-verem muito bem. A chegada demais alguns milhões construiuum cenário de caos absoluto: acidade é um grande “mussaki” -termo local equivalente a favela.Sem saneamento, sem coleta re-gular de lixo, água tratada, ener-gia elétrica... Doenças, como amalária, são corriqueiras. E umadas conseqüências da malária,depois de algumas recidivas, é ocomprometimento do sistemanervoso a ponto de levar ao quetodos chamamos simplesmentede loucura.

Papa Kitoko era uma curan-deiro que se auto-proclamavamédico tradicional. Natural daHuila, uma província ao sul deAngola marcada pelo misticis-mo, dizia ter o poder de curar a

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loucura com ervas e infusões.Ouvi dizer que algumas comuni-dades da Huila, lideradas por fi-guras como Papa Kitoko, atri-buíam as mazelas da guerra àsmulheres, e costumavam sacri-ficar meninas logo após o nasci-mento. Ele mesmo foi nos rece-ber na sede da sua Fundação.Falante e muito seguro de si, ocurandeiro disse ser um pródigoempresário com muitos negó-cios em Luanda, mas compro-metido com a ajuda ao seu povo.A fundação ficava numa casagrande, semidestruída e quasetotalmente descoberta. Primeiro,visitamos a “farmácia”, onde asinfusões ficavam estocadas emprateleiras toscas. Eram folhas eraízes de plantas nativas sobre asquais Papa Kitoko não quis re-velar detalhes, embora asse-gurasse a eficiência dos seus re-médios. Como prova, pediu otestemunho de Manoel, um “ne-go-fulo”, como são chamados osmestiços, alto e forte, com umaenorme e profunda cicatriz natesta. Manoel, atestava Papa Ki-toko, era louco, fora curado pe-los seus métodos tradicionais ese convertera no seu braço-di-reito para cuidar dos outrosloucos.

Até então nada havia meimpressionado no tour que fazía-mos pela Fundação depois dealguns meses em Angola, nosquais já tinha visto muita coisachocante. Mas alguma coisa jáme incomodava sem que eu en-tendesse exatamente o que sen-tia. O fato é que a conversa docurandeiro não agradava nemconvencia. Acho que ele percebeua minha reação e ficou meiodesconfiado. Um outro funcio-nário se aproximou, cochichoualguma coisa ao seu ouvido e elepediu licença, deixando-nos como ex-louco Manoel. Passamosentão às “enfermarias”. Eramcômodos amplos, sem telhado,com paredes altas. Em algunsnão havia sequer revestimentono piso. Os “pacientes” estavamvestidos em farrapos, sujos,descabelados e desnutridos. E,ainda mais chocante, eram conti-dos nos seus cômodos com cor-rentes de ferro chumbadas nochão, presas aos tornozelos com

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grilhões. As correntes tinham ocomprimento suficiente paraevitar o contato físico entre osdoentes, que ficaram agitadíssi-mos com a nossa presença. Euera o único “não negro” da equi-pe, e acredito que isso os mobi-lizou mais do que a câmera devídeo. O cinegrafista RobertoGuery, amigo desde os tempos emque iniciei minha carreira derepórter na TV Itapoan, era o outrobrasileiro da equipe, mas é tambémnegão - pelo menos para nós,porque para os angolanos é nego-fulo. - Ai, doutor, eu não sou louca!Pelo amor de Deus, tire-medaqui, tire-me daqui! Eu não fiznada, eu juro que não fiz nada!

A mulher não devia ter muitomais do que vinte ou vinte e cin-co anos, suponho, embora sejadifícil estimar a idade de alguémnaquelas condições. No mesmocômodo, outros pacientes rea-giam de maneiras diferentes. Unsgritavam coisas que eu não con-seguia entender, talvez em algu-ma das mais de cem línguas quese fala em Angola, ou talvez fos-sem apenas expressões de purodesespero. Aquelas primeirascenas me abalaram profunda-mente. Fiquei tonto e tive medode desmaiar. Disse a Guery queiria buscar alguma coisa nocarro e sai por alguns minutos.Abri a porta da carrinha, comoos angolanos chamam as vans, eme joguei no banco. O suor friojorrava pelo meu rosto e se mis-turava com lágrimas de umchoro incontrolável. Mil ima-gens passaram pela minha ca-beça em alguns minutos. Lem-brei de casa, da família, de todosque me confortariam naquelemomento ou que se indignariamcom aquilo. Lembrei dos loucosque me faziam rir ou morrer demedo nos tempos de criança nosveraneios no Sítio do Conde ouem Ipirá, onde nasci. Vi DonaRola, dançando animada atrásdo “bananeira”, uma veraneiocaindo aos pedaços, com o tetocoberto daqueles velhos auto-falantes, fazendo o carnaval da-quela pequena vila de pescado-res onde passávamos as férias.Vi Junília correndo atrás dosmeninos que lhe jogavam

pedras, gritando os piores pala-vrões que já ouvira. Lembrei dasaulas de história, de figuras co-nhecidas do movimento negro ede tanta gente que jamais imagi-naria ver gente presa a grilhões.

Procurei me controlar, enxu-guei o suor e as lágrimas e voltei.Duvidava que a matéria entrasseno programa, mas tinha de con-cluir o trabalho. Por mais queaquilo me abalasse, era precisovoltar, ver todo o resto e, claro,entrevistar o homem que dizia tero poder de curar a loucura comaqueles métodos. Um outro fun-cionário já me esperava na portapara me guiar por aquele labirintode horrores até encontrar a equipe.O funcionário falava sem parar esua voz se misturava aos urros,gritos e ao barulho aterrorizantedas correntes por causa do movi-mento desesperado daquelescoitados, que olha-vam para mim comose pudesse salvá-los.Comecei a rezar si-lenciosamente poreles e por mim - era omáximo que poderiafazer. Encontrei a e-quipe em outra ala nomomento exato emque Guery registravauma cena ainda maischocante. Não pre-cisava dizer nada. Elepercebeu o que sepassava comigo e euentendi a sua men-sagem de força envia-da por um olhar e poruma expressão do seurosto. Nascido e cria-do no Nordeste de A-maralina, Guery já ti-nha visto muita coisana vida em quase vin-te anos de profissão.Estava quase tão cho-cado quanto eu, masmantinha-se firme econcentrado no seutrabalho. Frio comodeve ser todo homemde imagem, meu ami-go chamou minha a-tenção para o diálogobizarro entre dois“pacientes” de PapaKitoko. Um deles, a-gachado, se fartava

como se estivesse num “ban-quete”. De um saco plástico pelametade, tirava com as mãosimundas um farelo de milho grosso,levantava acima da cabeça e,sofregamente, derramava o farelona boca, rindo. Divertia-se com osofrimento do companheiro queimplorava para que comparti-lhasse a iguaria com ele. Final-mente, com desdém, meteu a mãono saco e atirou um punhado nadireção do faminto, que esticou acorrente até o limite e, desespera-do, raspava o chão com as mãos elevava à boca o farelo já mistura-do com terra. O tornozelo sangra-va, ferido pela pressão do gri-lhão, resultado do seu esforço pa-ra chegar perto daquela “re-feição”. Segundo Manoel, a co-mida fora cortada como castigopor mau comportamento.

- É para o bem dele - disse

Manoel. Eu mesmo me curei as-sim, precisei passar por isso paraaprender e hoje estou curado.

Para os angolanos que com-pletavam a equipe, o assistenteBigode e o segurança Felipe, na-da havia de excepcional. Quandoeles nasceram, a guerra já tinhatransformado seu belíssimo paísnum lugar em que cenas comoaquela eram corriqueiras. Eratudo uma questão de parâmetros.Eu não poderia supor que, trêsanos depois, em minha terra, des-cobriria um local tão pavorosoquanto a Fundação Papa Kitoko,onde aconteciam absurdos tãochocantes ou até piores, e com di-versos agravantes. Aqui, em vezde um “filantropo” como PapaKitoko, é o próprio Estado quemantém uma fábrica de horroresdestinada à custódia e tratamento deportadores de sofrimento mental.

Como fim da guerra, os angolanos poderão reconstituir o pais que durante décadas investia qause todos os recursos para sustentar o conflito

Fotos: Fábio Marcone

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6 Maio de 2004

Em dezembro de 2002, pre-cisamente na tarde do dia 18,recebi uma ligação de CristianeGurgel, então vice-presidente daComissão de Direitos Humanosda OAB e representante daOrdem no Conselho Estadual deProteção aos Direitos Humanos,do qual também faço parte, repre-sentando a ABI – Associação Ba-hiana de Imprensa. Ela pretendiafazer uma visita ao Hospital deCustódia e Tratamento para apu-rar as denúncias publicadas namatéria de Levi Vasconcelos, emA TARDE, no começo do mês.Cristiane queria que eu ajudassea mobilizar a imprensa paraacompanhar a visita, mas já pre-via que os repórteres pudessemter dificuldades para entrar – porisso estava buscando ajuda daABI. Como a visita era surpresa,argumentei que seria realmentecomplicado entrar com um bata-lhão de repórteres, cinegrafistas efotógrafos – era previsível quenossa presença causasse algumaagitação entre os internos. Ofe-reci-me para acompanhar a visitacomo membro do Conselho Esta-dual de Proteção aos Direitos Hu-manos convidado pela Comis-são, e assim fazer o registro tudoem foto e vídeo. O material seriadistribuído para toda a imprensanuma entrevista coletiva convo-cada quando eles fossem apre-sentar o relatório. Como membrodo Conselho de Direitos Huma-nos, supus que não poderiam im-pedir a minha entrada. Combina-mos também que as fotos e asimagens seriam tratadas para nãoexpor as imagens dos internos.

Com tudo acertado, combina-mos o encontro para as duas datarde do dia seguinte, na OAB.De lá sairíamos juntos para oHospital de Custódia e Trata-mento. Liguei imediatamente pa-ra o meu amigo Guery, que tinhavivenciado aquela experiênciainesquecível em Angola. No diaseguinte, às 14 horas, estávamoslá na OAB.

Cristiane Gurgel, grávida desua primeira filha, se desculpoupor não estar em condições decoordenar a visita, já prevendo oque iria encontrar, e nos apresen-tou a Domingo Arjones Neto, umjovem advogado que também in-tegrava a Comissão de DireitosHumanos da OAB, àquela alturajá envolvido com a luta antimani-comial. Coube a ele coordenar acomissão integrada por mais al-guns advogados e um grupo deestudantes do Patronato de Pre-

sos e Egressos, instituição desti-nada a prestar serviços de as-sistência judiciária gratuita adetentos e ex-detentos do siste-ma penitenciário.

Eu nunca tinha ido ao ma-nicômio. O primeiro choque foilogo na entrada, antes de cruzar oportão. O prédio, construído nadécada de 1920 para ser umapenitenciária, passou a abrigar omanicômio a partir de 1973. Já éassustador visto de fora. Em voltadele, há outras construções me-nores. Em um mesmo galpão fo-ram instaladas a lavanderia, a co-zinha e os refeitórios dos internose dos funcionários. Em frente aoprédio principal, junto a um dosmuros, as salas dos serviços desegurança e da guarnição da PM.Bem próximo ao portão de aces-so, o prédio da administração, oúltimo a ser construído, que re-presenta um marco na história dainstituição porque até a sua inau-guração ficava tudo no mesmoprédio assustador onde vivem osinternos. Paramos os carros aolado da administração e entramos

imediatamente. Centenas de in-ternos estavam espalhados pelopátio no mais completo ócio.Guery já queria começar a gravarali mesmo, mas eu não deixei,ainda duvidando que haveria obs-trução ao nosso trabalho.

Não precisou muito tempopara ver que o meu amigo estavacerto. O diretor ainda não tinharetornado do almoço, e quem nosrecebeu foi a vice, Dra. AnneMota. Educadamente, ela disseque não poderia permitir o nossoacesso sem o conhecimento dodiretor.

Ao tentar justificar a minhapresença, acho que acabei poraumentar o “susto” da vice-dire-tora e, conseqüentemente, redu-zir ainda mais a chance de con-seguir entrar. Expliquei-lhe que omaterial seria oferecido a todosos veículos de comunicação. “Euqueria passar para vocês a minhasituação neste momento: eu soudiretora adjunta desta unidade,tenho um cargo ligado à Secre-taria da Justiça, eu estou me ven-do diante de duas frentes”, disse.

Bem intencionada, mas leal aocargo, a Dra. Anne deu uma pistado que levaria tantos profissio-nais comprometidos com o jura-mento de Hipócrates ao silêncioconivente com a barbárie que,não tardaria muito, seria reveladaà sociedade através da imprensa.

A sala da diretoria estava lo-tada. Logo depois de nós, che-garam Ludmila, advogada doGrupo Tortura Nunca Mais, Ed-na Amado, assistente social ecoordenadora da Luta Antima-nicomial e Aladilce Souza, sin-dicalista e membro do ConselhoEstadual de Saúde. Era muitapressão, muita gente falando aomesmo tempo e uma ansiedadegeral para entrar e chegar aosinternos. Acuada, Dra. Annetentava manter a calma diante dobombardeio.

Em meio aos debates sobre anecessidade ou não de autoriza-ção prévia para o acesso de ór-gãos de controle social, Dra.Anne Motta revelou o que, poucodepois descobrimos, era uma re-gra criada pelo secretário Sérgio

Ferreira: “a determinação é que,caso as pessoas venham à uni-dade, devemos pedir que vãoantes à Secretaria da Justiçaexpor quais são os objetivos davisita”. Naquela altura já estavaclaro: a determinação, na prática,era uma espécie de censura pré-via. O secretário condicionara oacesso dos órgãos de controle so-cial, como a Comissão de Di-reitos Humanos da OAB ou opróprio Conselho Estadual deProteção aos Direitos Humanos,à prévia exposição de motivosque justificariam uma inspeção.Um completo absurdo que obacharel Sérgio Ferreira certa-mente sabe, mas não admite, étotalmente ilegal.

Pouco depois das três horasda tarde, o Dr. Paulo Barreto, di-retor do HCT, chegou do almoço.Depois dos cumprimentos e daapresentação dos motivos da visi-ta, ele foi explícito: “Eu teria deouvir o secretário para agendaressa visita.” Era apenas mais umaconfirmação de que a ordem eracontrolar a informação, evitarque se mostrasse a realidadedaquele inferno que uma leiestadual decidiu chamar de hos-pital. Arjones repetiu mais umavez todos os argumentos legaissobre as prerrogativas, a Cons-tituição etc. Paulo Barreto erametralhado por argumentos eprovocações, mas mantinha-se –pelo menos aparentemente – con-trolado, contido, com um meiosorriso congelado como se fossecapaz de suportar os piores insul-tos sem se alterar. “Sou capaz deenfiar a faca nas costas de al-guém com este mesmo sorriso”diria ele mais de um ano depois,quando o entrevistei naquelamesma sala. Tolerância extrema-da de alguém que lida com pa-cientes psiquiátricos há quasetrinta anos? Cinismo? Só quem oconhece bem pode dizer. O fato éque nenhum argumento o sensi-bilizou – nem os apelos para anecessidade ética de denunciaraquela situação, nem o legalismodos advogados que insistiam emafirmar as tais prerrogativas daOrdem dos Advogados do Brasile de sua Comissão de DireitosHumanos. Nada. O médico cum-pria ordens com uma disciplinafervorosa que não se ensina nasuniversidades e só se impõe nacaserna.

“A ninguém é dado desco-nhecer a Lei, vocês não podemfazer isso”, brandiu um advoga-do, indignado. A advogada do

barrados no manicômio

A verdade que se tentava esconder: gente doente e sem tratamento

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Grupo Tortura Nunca Mais, Lud-mila Cerqueira Correia foi maisprovocativa ao dizer que naBahia não existe lei, e olhandopara o retrato do ex-governadore então candidato ao senado,César Borges, disparou: “nãotem nenhuma lei dizendo quetem que botar o retrato de CésarBorges aqui, no entanto ele estáem todas as delegacias e uni-dades prisionais.”

Enquanto o debate prosse-guia, eu tentava, por telefone,falar com o secretário SérgioFerreira. Sua secretária informouque nem ele, nem a chefe degabinete estavam. Pedi o númerodo celular e me foi negado. Comoúltima tentativa, expliquei a si-tuação a falei da necessidadeurgente de um contato direto como secretário. A informação che-gou aos ouvidos do secretário,mas ele estava concentrado nainauguração da sede do Conselhode Desenvolvimento da Comu-nidade Negra que aconteceria na-quela mesma tarde, na Rua doPaço, no Centro Histórico. Cer-tamente subestimou a persistên-cia daquele grupo que insistia ementrar no HCT.

A essas alturas, mais do queencurralado, o Dr. Paulo Barre-to, abriu um pouco a guarda,talvez para aliviar a pesadaresponsabilidade que tentavamlhe imputar, diluindo o ônus pelamanutenção daquele verdadeiroInferno de Dante. “Uma parte de-pende do governo, outra partedepende do Judiciário, vocês sa-bem disso. Dos 150 que estão aícom laudos prontos, 120 estão aihá mais de seis meses sem julga-mento” disse o médico. De fato,o problema da superlotação sedeveu sobretudo aos dois fatores– primeiro a demora na realiza-ção das perícias e depois, a co-nhecida morosidade da Justiça noandamento dos processos. A pe-rícia psiquiátrica é uma atividadeque não seduz muitos profissio-nais. Pelo contrário, há os queabominam a idéia de assinar umlaudo conclusivo sobre sanida-de/insanidade ou cessação de pe-riculosidade, especialmente pelarepercussão daquele julgamentopretensamente técnico na vida deum paciente. Ainda mais naque-las condições: como não ficarabalado num inferno superlotado,com alimentação de péssimaqualidade, sem direito a um leitocom um mínimo de conforto ehigiene, dormindo e acordandoem meio a um mar de fezes eurina? O Dr. Paulo Barreto é umaexceção, um caso raro de alguémque desde os tempos de facul-dade sonhava em trabalhar noManicômio Judiciário – oficial-mente ainda se chamava assimquando ele era estudante – paralidar com psiquiatria forense e,como ele mesmo disse na entre-vista, perseguir o “desafio de

120 que mofavam na podridão doHCT. Como não tiveram acesso àeducação básica, não conhecemseus direitos fundamentais e, ob-viamente nunca ouviram falar notal princípio jusnaturalista do di-reito a ter direitos. A ausência daDefensoria Pública, na prática, éa negação da possibilidade de rei-vindicar o mínimo naquela situa-ção: que o juiz julgue dentro doprazo – nada mais do que a obri-gação dos magistrados. Isso nãoocorre por desleixo dos defen-sores baianos, e as razões desseoutro crime contra a cidadaniasão outras. Embora tenha 460vagas para advogados, a Defen-soria Pública da Bahia tem ape-nas 102 em atividade. Fora a de-ficiência de pessoal, o clássicoproblema da falta de recursos.

No caso específico, não porfalta de dinheiro: a verba decusteio, ou seja, o orçamentopara bancar o funcionamento doórgão, equivale a aproximada-mente 25% do valor de um con-vênio firmado entre a Secretariada Justiça e Direitos Humanos ea OAB para bancar o funciona-mento de um serviço de as-sistência judiciária gratuita –justamente a razão da existênciada Defensoria.

De volta à sala do desvenda-dor de mentes, exatamente noponto da conversa em que estáva-mos, o Dr. Paulo Barreto evocouo testemunho dos estudantes eadvogados do Patronato de Pre-sos e Egressos, que, na completaausência da Defensoria Pública,assume o desafio de assistir aosinternos no campo jurídico. “Vo-cês têm participado do dia-a-diaaqui e sabem o quanto a gentetem lutado” disse Barreto. Citoucomo exemplo da sua abnega-ção, o caso de uma paciente cha-mada Lúcia. Enviada para lá soba acusação de maus tratos contraos filhos, estava com o laudopronto há um ano e meio quandochegou um simples despacho di-zendo que a denúncia não foi a-catada e que a pena a que elaestaria sujeita era de seis meses.Entre a sua chegada e a publi-cação do despacho de juiz, pas-saram-se dois anos e meio. “Ela éde Pindaí, a 800 quilômetros deSalvador, e agora eu estou arreca-dando dinheiro para manda-la devolta” informou o diretor. Era, aomesmo tempo, uma prova deespírito de solidariedade e maisuma revelação comprometedora.Depois de prender indevidamen-te uma pessoa e trancafia-la pormais de dois anos ali, o Estadonão assumia sequer as despesascom o transporte até sua casa. Abenevolência do Dr. Paulo Bar-reto, se não conseguia resolver oproblema de Lúcia, ainda con-tribuía para perpetuar a inérciaestatal na hora de reparar o danocausado na vida de uma cidadã.Ela bem que poderia processar o

O mesmo livro aponta que 95%dos pacientes de Franco da Ro-cha sequer concluíram o ensinofundamental. A realidade é maisou menos a mesma em todo oBrasil, e este é o perfil das men-

tes que estão àdisposição doDr. Paulo Bar-reto para seremdesvendadas.Não é sequerrazoável suporque negros epobres são maissusceptíveis àocorrência dedoenças men-tais, mas se po-de afirmar com

absoluta segurança que a po-breza em nosso país exclui aspessoas do que a ConstituiçãoFederal apregoa como direitosde todos, a começar por saúde eeducação.

Se, em dezembro de 2002, odiretor do HCT informava que120 pacientes estavam com oslaudos prontos e aguardavampronunciamento da Justiça hámais de seis meses, a razão dissoé justamente o processo exclu-dente que alija milhões de bra-sileiros de uma vida digna. Omesmo Estado que não lhe pro-veu educação, foi incapaz de a-poiá-los - a si e a suas famílias. O

desvendar a mente humana”. Ao longo dos 15 meses entre

aquela primeira ida ao HCT e omomento em que comecei a es-crever, em diversos momentosme vi diante de conflitos éticosna busca de al-gum equilíbrio,um caminho domeio. O mili-tante dos direi-tos humanos e ojornalista se de-batiam em situ-ações como aentrevista como diretor doHCT, feita nodia 10 de marçode 2004. Difícilouvir aquela declaração de boasintenções e apenas registrar parasó comentar depois, diante docomputador. Desvendar o que,cara pálida? O que se fez até hojeem termos de investigação cientí-fica, de pesquisa, dentro doHCT? Na melhor das hipóteses,experiências semelhantes às deJoseph Mengele com os judeusnos campos de concentração da IIGuerra Mundial. Aliás, além daaparência dantesca, outro traçocoincidente entre o HCT e oscampos de concentração é ocomponente étnico.

Se as cobaias de Mengeleeram judeus, apenas judeus, asvítimas da perversão institu-cionalizada do HCT são quasetodas negras. É raro ver um “não-negro” entre os internos. É a par-te da população que sempre tevenegados os direitos fundamentaise, no caso específico, não teveacesso aos serviços públicos desaúde mental.

Segundo o jornalista Dou-glas Tavolaro, autor de “A casado delírio: reportagem no Mani-cômio Judiciário de Franco daRocha”1, um levantamento feitoem 1996 revelou que 52% dosdelitos cometidos pelos internosdo Manicômio da cidade paulistade Franco da Rocha, ocorreramapós surto psicótico agudo. Antesde matar, agredir ou cometerqualquer tipo de crime, os pró-prios doentes ou suas famíliasbuscaram ajuda nas instituiçõespúblicas e não foram atendidos.

mesmo Estado que foi eficientepara prender e encarcerar, não écapaz de limpar aquele prédiotenebroso com água e sabão etampouco foi capaz de manter osestoques da farmácia do que de-veria ser um hospital não apenasno nome. É justamente esse Es-tado que, organizado por um sis-tema jurídico cheio de leis bemintencionadas, diz que o cidadãoque não puder pagar um advoga-do tem direito a um defensorpúblico. A informação dada peloDr. Paulo Barreto é preciosa econverte-se em grave e irrefutá-vel denúncia: os pacientes doHCT estavam sem a assistênciada Defensoria Pública, órgão damesma Secretaria da Justiça eDireitos Humanos. Na prática,significa que eles, negros e po-bres, estavam sem condições dereclamar os mínimos direitos quetem uma pessoa confinada numHospital de Custódia e Tratamen-to – ou Manicômio Judiciário -,como o cumprimento dos prazos.Se, num processo judicial qual-quer uma das partes perde umprazo, sofre as conseqüências.Mas quando a própria Justiçadescumpre prazos nos processosenvolvendo os “loucos infrato-res”, quem perde é o paciente, ir-remediavelmente condenado acarregar por toda a vida o duploestigma de louco e infrator numasociedade que discrimina um eoutro. Sem dinheiro para contra-tar um advogado, os 120 internosa que o diretor do HCT se referiujá estavam lá por mais tempo doque seria aceitável, sem que oEstado tomasse conhecimento dodano que lhes causava por sub-metê-los àquelas condições cru-éis. Em vez de tratamento, ape-nas uma custódia perversa e semprazo para terminar.

O acesso à Justiça é condiçãoessencial para a existência efetivado tal Estado Democrático de Di-reito. Infelizmente, a nossa Jus-tiça é cega e suas vistas não al-cançam brasileiros como aqueles

7Maio de 2004

O mesmo Estado que

foi eficiente para

prender e encarcerar,

não é capaz de limpar

aquele prédio

tenebroso com

água e sabão

O secretrário da Justiça (E), Sérgio Ferreira

Foto: Manoel Porto

Foto: Gildo Lima / Ag A Tarde

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quema político para compro-meter o governo”.

Todos na sala concordaramcom a Dra. Ludmila e começa-ram a sair em direção ao pavo-roso pavilhão. Eu os interrompipara fazer um registro com a câ-mera de Guery, que gravou toda ac o n v e r s a :“são cinco ho-ras e nós es-tamos aquihá mais deduas horastentando che-gar a um a-cordo e o a-cesso é ne-gado. Pergun-to ao Dr. Pau-lo se a nossaentrada seráimpedida pela segurança?” O di-retor voltou a falar com o supe-rintendente pelo telefone. Repitoa pergunta e, atônito, o diretor doHCT afasta o telefone do rosto, jásem o sorriso padrão com o qualdisse ser capaz de “enfiar a facaem alguém” – em sentido figura-do, lógico – e depois de ouvir amesma pergunta mais uma vez,responde com um lacônico “vai”e retorna ao telefone. Advirto-ode que o grupo iria entrar e ele as-sumiria a responsabilidade peloque ocorresse. “Você assume jun-to comigo”, disse.

Saímos juntos em direção aotenebroso prédio onde ficam as“enfermarias”. Ludmila se ante-cipa e vai conversar com Albéri-co, chefe da segurança. Ele já ti-nha recolhido os internos ao pa-vilhão e disse, sem vacilar, quenão nos permitiria o acesso.

Naquela altura o Manicômioestava no auge da superlotação,com quase 500 internos para umacapacidade de 280. Eles tinhamentrado minutos antes e muitosainda estavam no pátio entre orefeitório e o prédio principal.Perceberam a nossa movimen-tação, viram as câmeras e noschamaram através de um portãode ferro. Eu e Guery deixamos ochefe da segurança para trás enos aproximamos. Um deles,branco de cabelos lisos, usava ó-culos e tinha um dente incisivosem a coroa, apenas com o pino.Parecia ter alguma liderança so-bre os demais porque falou e foiobedecido: “afastem-se para queeles possam ver melhor”, disse.“É importante ver o estado dosbanheiros e a superlotação. Bom,também observo que deve ser umdos poucos lugares do Brasil on-de se prescreve finobarbitol co-mo hipnótico, como indutor dosono. É um absurdo psiquiátri-co”, sentenciou.

Outros internos começaram ase aproximar, atraídos pelas câ-meras e pelo discurso do colega,que falava com autoridade. O Dr.Paulo Barreto ressurgiu, como senão acreditasse que, após deixar-

mos a sua sala, realmente tentás-semos entrar e reagiu ao ver queestávamos entrevistando seus pa-cientes: “vocês não podem filmaros presos sem autorização, elestêm direito à preservação de suaimagem!” Duas coisas interes-santes na fala do diretor. Primei-

ro, referiu-seaos pacientescomo “pre-sos”. Eu, se jánão tinha qual-quer dúvida deque aquilo nãoé um hospital,fiquei aindamais convic-to. Além dis-so, confessoque quase riao ouvi-lo fa-

lar em preservar a imagem dos“presos”. Como um médico, quepermite que pessoas sob seuscuidados ultrapassem os limitesda indignidade, ainda pode falarem preservar a imagem daquelagente vestida em trapos sujos,muitos deles com a pele cobertapor escabiose resultante do ambi-ente imundo onde estavam confi-nadas? Mas o discurso intrigantedaquele paciente, um dos poucosde pele clara, português impecá-vel e cheio de termos técnicos depsiquiatria me chamava mais a-tenção: “os pacientes defecam naAla C. Há graves problemas emrelação aos banheiros – estão pú-tridos. Exceto os da Ala E, todosos outros estão pútridos.”

“Breno não pode dar entrevis-ta” – protestou Paulo Barreto. Sóentão a ficha caiu e eu percebique conversava com Breno Má-rio Mascarenhas de Castro, pro-fessor de Estética da Faculdadede Filosofia e Ciências Humanas,psiquiatra graduado pela Univer-sidade Federal da Bahia, mestreem Comunicação pela Faculdadede Comunicação da mesma uni-versidade. Ensaísta, poeta e falsa-mente modesto, Breno diz apenasque tem “veleidades literárias”,mas já havia publicado alguns li-vros antes de matar o próprio pai,o também professor Auto José deCastro. Apesar de ser um ho-mem extremamente inteligente eculto, infelizmente ele ficoumais conhecido por ter cometidoo parricídio do que pelo seu bri-lho intelectual.

Continuei a entrevista e já mereferi a ele tentando restituir-lheo título e a dignidade subtraídapela condição de interno do Ma-nicômio Judiciário: “Dr. Breno,como estes problemas são trata-dos pela direção?” Atento, elereagiu ao ser chamado de doutor.E prosseguiu: “eu sou paciente, oque eu noto é que se fala de ummodo talvez patriarcal com ospacientes. O acesso que os paci-entes têm a médicos atendentes éraríssimo. Sei que muitos estãohá quatro ou cinco meses aqui

8 Maio de 2004

Estado da Bahia pelo crimecometido contra si e contrasua família, mas talvez desco-nheça o seu direito e, com cer-teza, não tem dinheiro paracontratar um bom advogado,nem pode contar com a De-fensoria Pública.

Passado um tempo razoávelnaquele debate longo e impro-dutivo, o Dr. Arjones, da OAB,conseguiu contato com o seucolega Arnaldo Agle, então su-perintendente de Assuntos Pe-nais da Secretaria da Justiça echefe imediato do Dr. PauloBarreto. Mesmo coberto de ra-zão e “revestido de legalidade”,Arjones não conseguia conven-cer o superintendente. Para jus-tificar a afronta à legislação, obacharel em Direito ArnaldoMaron Agle alegava estar cum-prindo uma determinação do se-cretário Sérgio Ferreira. “O se-cretário então está legislando emcausa própria” – provocou Arjo-nes. “A Lei não diz que essaautorização é necessária, e se eusair daqui hoje sem ter entrado,eu fui impedido”, concluiu orepresentante da OAB. “É umainterpretação sua” – disse osuperintendente.

Constrangido, Arnaldo Agle,pessoa gentil e cordata, baixou aguarda diante da insistência “masArjones, há uma recomendaçãoexpressa do secretário de só per-mitir uma visita como essa comautorização dele”. Foi pior. O ad-vogado questionou se a ordemfora dada por escrito e Agle ad-mitiu que era verbal. “O secretá-rio não pode fazer isso verbal-mente, dar uma recomendação deque a gente deva conversar comele antes de visitar um lugar co-mo o HCT, que é público. O Dr.Luiz Vianna Queiroz, presidenteda Comissão de Prerrogativas daOAB está ciente disso, a secre-tária-geral, Dra. Joselita Leão es-tá ciente disso, a vice-presidenteda Comissão de Direitos Huma-nos, Cristiane Gurgel também.Eu estou aqui fazendo o meu pa-pel e sei que o Senhor entendeisso porque é advogado também.Espero que o Senhor entenda queo que nós estamos fazendo é líci-to.” Infelizmente, a OAB, sob apresidência do Professor ThomasBacelar, um dos mais brilhantesadvogados em atividade, nem sepronunciou a respeito, depoisdaquele dia.

Diante da falta de argumentospara justificar o injustificável, osuperintendente começou a ape-lar e a conversa, que já começarasem prometer algum avançochegava ao fim em clima menosamistoso do que no início: “eunão posso permitir que vocês vãoai para transformar o assunto nu-ma questão política, ainda por ci-ma me fazendo ameaças – disseArnaldo Agle, tentando passar àcondição de vítima de algum es-

Sou capaz de enfiar a

faca nas costas de

alguém com este

mesmo sorriso

Paulo Barreto, Diretor do HCT

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9Maio de 2004

sem receberem atendimento mé-dico. Sei também – não sei atéque ponto isso é inconveniente –que os auxiliares de enfermagemprescrevem. Isso é ilegal, mas emCuba isso seria aceitável. O piorde tudo é a falta de atendimentomédico, a inexistência de trata-mento com psicoterapia, o maufuncionamento da DefensoriaPública – há pessoas que já nãodeveriam estar aqui e estão – oque piora o problema da super-lotação. Basicamente isso e a vio-lência. Eu já testemunhei trêscasos de agressões físicas, coinci-dentemente, logo depois de umareportagem publicada em ATarde. Pacientes foram agredidoscom murros e chutes por agentes.Isso foi denunciado à direção,não sei com que conseqüências.Os agentes da segurança agredi-ram pacientes com murros e chu-tes. Um, porque estava se atra-sando para o café e os outrosdois, não sei por que motivos.”Encorajados pelo depoimento deBreno, outros pacientes come-çam a falar e denunciar os maustratos: “não tem papel higiênico,não tem colchão, a gente dorme

no chão,” disse um deles. Brenoretomou a palavra, mas foi logointerrompido pelo Dr. Arjones,que atendeu ao argumento do di-retor e disse que Breno não pode-ria dar entrevistas.

Em lugar de Breno, apareceno portão um paciente completa-mente dopado, babando, com orosto voltado para cima. Ao seulado, um negro idoso de barba ecabelos brancos que o conduziu,fala com raiva, com se buscassevingança: “ai, ó, olha a prova ai,as pessoas ficam assim, olha aprova aí para vocês verem essasdesgraça”, gritava, apontandopara o diretor que mantinha omesmo sorriso congelado. “Metire daqui, me tire daqui peloamor de Deus” – dizia outro pelocobongol ao lado do portão.

Um outro interno não gostoue interveio para tirar a “prova” decena. Empurrou o dopado paradentro do pavilhão e saiu emdefesa da instituição: “tira essecara daqui e bota ele pra lá! Euquero dizer uma coisa: aqui eusou muito bem tratado.”

“O diretor está me impedin-do de falar”, disse Breno, entreirônico e resignado, afastando-se. Por que Arjones, justamenteele tinha interrompido a entre-

vista? Por que Breno lhe obede-ceu? Só depois, na saída fuisaber que Arjones era o seuadvogado.

O diretor toma a frente da câ-mera com aquele mesmo sorrisocongelado e empurra Guery semsaber com quem ele estava me-xendo. Se tem uma coisa que tirao meu amigo e quase todo cine-grafista do sério, é alguém obs-truir seu trabalho tomando afrente da câmera. E botar a mão

no equipamento é o mesmo quechamar para a briga. Antes quehouvesse uma confusão aindamaior, cheguei junto, tirei o Dr.Paulo Barreto de perto e come-çamos a caminhar para o esta-cionamento.

Mais algumas farpas de ladoa lado e finalmente decidimospartir para encontrar com o se-cretário Sérgio Ferreira na inau-guração da sede do Conselho deDesenvolvimento da Comuni-dade Negra. Chegamos quase nomesmo instante que o prefeito deSalvador, Antônio Imbassahy, e oentão governador eleito PauloSouto. O secretário já estava lá, eo procuramos imediatamente,mas disse não poder nos atenderpor causa da chegada dos seusconvidados e que conversaría-mos após a solenidade.

Achei estranho que a placa deinauguração estivesse do lado defora do velho casarão reformado,e só depois que o prefeito e oentão governador Otto Alencarpuxaram juntos a bandeira daBahia que a encobria, pudeentender. A placa mencionava apresença do “ex-presidente doCongresso Nacional, AntônioCarlos Magalhães”. Pouco tempoantes ACM tinha sido obrigado a

renunciar ao mandato de senadorpara não ser cassado por causa daviolação do painel de votações doSenado. Sem mandato, ficarapermanentemente na Bahia eparticipava de todas as soleni-dades oficiais. Seu nome estavanaquela e em todas as placas deobras inauguradas naquele perío-do. A placa da sede do Conselhode Desenvolvimento da Comuni-dade Negra fora colocada do ladode fora porque ele estava doente

e não poderia subir as es-cadas do casarão. Mas osenador não apareceu, ea cena ficou meio ridícu-la por causa da mençãodo ex-presidente do Con-gresso Nacional quenaquela altura não exer-cia qualquer mandatonem cargo importante. Descerrada a placa, to-

dos entraram e forampara o terraço, com vistabelíssima para a Baia de

Todos os Santos. Lá encontramoso superintendente de AssuntosPenais. “Falamos com o Senhoragora há pouco e viemos tratar doassunto com o secretário,” disseArjones. “Pronto, melhor assim”respondeu, afastando-se para irao encontro do secretário, que es-tava próximo a Otto Alencar ePaulo Souto. Os dois conversa-ram longamente. Arnaldo ouviamais do que falava, e o se-cretário de vez em quando olha-va para nós, desconfi-ado. Depois de algunsminutos o superinten-dente volta e puxaconversa. “Que inte-resse há em impedirque vocês tenham a-cesso à unidade penalse a gente é que é res-ponsável pela custó-dia dos presos queestão lá?” A perguntado Dr. Arnaldo játrazia a resposta, masconfesso que não re-sisti e mandei outrapergunta com respos-ta embutida: “o dolo-roso é assumir a res-ponsabilidade por a-quela situação. Sim,porque alguém é res-

ponsável por aquela situação, oSenhor não concorda?” Semresponder, ele voltou a insistir nanecessidade de pedirmos autori-zação do secretário para fazer-mos a visita, enquanto o promo-tor Lidivaldo Brito, da Promo-toria de Combate ao Racismo,tentava botar panos quentes nadiscussão para evitar constrangi-mentos. Já nos conhecíamos des-de o tempo em que ele era oporta-voz da Polícia Federal naBahia. “Deixem para tratar dissoamanhã, agora não é o momentopara tratar desse assunto”, disseo Dr. Brito.

A transcrição quase literaldos acontecimentos daquele diatem o propósito de mostrar a for-ma como as autoridades baianastratam, não só o problema daloucura e toda a carga de subje-tividade que o tema carrega, mastambém as organizações da so-ciedade civil e mesmo as instân-cias de controle social. É óbvioque este modus operandi expres-sa uma ideologia, uma maneiramuito peculiar de ver a socie-dade, segundo a qual a vida seorganiza a partir dos simulacrosadequados às conveniências dequem está no poder. Isso passapor negar o óbvio, o que salta aosolhos, como a afirmação insis-tente de que não houve impedi-mento à visita. Vejam um trechodo discurso do secretário SérgioFerreira: “Às vésperas do iníciodo seu mandato, Sr. Governador,deixa Vossa Excelência para onosso estado, esta nova sede queserá lembrada – voltada que estápara a parte antiga da cidade,tendo aos fundos a Baía de Todosos Santos – como um símbolo daliberdade e um marco no resgateda auto-estima da nossa popu-lação afro-descendente”.

Resgate da auto-estima? Oque dizer das centenas de famí-lias de negros expulsos do Cen-tro Histórico pela violência doaparelho de Estado para dar lu-gar ao Pelourinho limpo, pintadoe policiado “para inglês ver”? Oque dizer dos negros loucos que

chafurdavam no mar de fezes eurina do Manicômio Judiciário?Uns e outros deveriam aceitar osofrimento ancestral como desti-no ou rebelarem-se como nostempos dos quilombos? Aquelasolenidade fora um duro golpecontra o Conselho de Desenvol-vimento da Comunidade Negra,que ficaria 14 meses sem sereunir

2e sem poder tratar das

mazelas da nossa sociedade,resultantes da ideologia escondi-da por trás de espetáculos bemmontados e bem noticiadoscomo aquela inauguração, mui-tas vezes com a colaboração denegões como os cantores LazzoMatumbi e Aloízio, que empres-taram suas vozes para emocionara platéia com o Hino ao Senhordo Bomfim e com um belo sam-ba sobre a negritude:

Um abraço negroUm sorriso negroTraz felicidadeNegro sem emprego fica semsossegoNegra é a raiz da LiberdadeNegro é uma cor de respeitoNegro é inspiraçãoNegro é silêncio, é lutoNegro é a solidãoNegro que já foi escravoNegra é a voz da verdadeNegro é destino, é amorNegro também é saudade

Pedi a Guery para gravartodo o canto e fiquei editandoum clipe na minha cabeça, con-trastando a alegria dos negrosembevecidos com toda aquelapompa e os esquecidos naqueleinferno manicomial – isso épleonasmo.

1 TAVOLARO, Douglas. A casa dodelírio: reportagem no ManicômioJudiciário de Franco da Rocha.Editora SENAC São Paulo, 2002.

2 CELESTINO, S. Jornal A Tarde,Salvador, p. , 17 mar. 2004.

Foto: Xando P. / Ag A Tarde

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marcasse para vocês irem lá napróxima semana.

- O Sr. tem informações sobrea situação?

- Tenho. Estamos com dificul-dades nesse setor, não só a Bahia,mas todo o Brasil. Mesmo porquenós temos pacientes sem referên-cia alguma. É um hospital psi-quiátrico em que metade dos pa-cientes não tem referência, nempai, nem mãe, nem família, nemcasa para levar. São pessoas que oEstado assumiu tomar conta e vaitomar conta até o último dia devida dessas pessoas, procurandofazer o melhor.

- Da forma como está toman-do conta?

- Tomar conta é dar toda a as-sistência necessária. Quando você

Enquanto o jornalista e o mi-litante se debatiam na minha cons-ciência, resolvi deixar dilemaséticos para depois e chamei o go-vernador Otto Alencar para umaentrevista. Comecei questionandoa atitude do secretário:

- O secretário me falou, mashoje ele não tinha tempo paraconduzir vocês todos. Mas eufalei com ele que agendasse e le-vasse vocês sem nenhum proble-ma, mesmo porque ele não vaiimpedir que a OAB nem a im-prensa tenham acesso. Dificulda-des com o Manicômio todo oBrasil tem, mas nós estamos pro-curando fazer o melhor. Hoje nãohouve oportunidade porque eleestava comprometido com este e-vento, mas eu mandei que ele

for lá, você faz o diagnóstico. Nãofaça o levantamento sem a infor-mação, vá constatar – e ele vaideixar você ir lá.

- Nós tentamos.- Mas então você teria de

mudar a agenda do secretário.Ele deixaria de estar aqui na i-nauguração para lhe atender? Aífica difícil – disse com um sor-riso sarcástico.

Otto Alencar terminou a en-trevista dizendo ter orientado ex-pressamente o seu secretário amarcar dia e hora para “permitir”a visita. Como era final de dezem-bro e poucos dias depois PauloSouto tomaria posse, parti paraentrevistá-lo. A primeira perguntafoi direta sobre a sua orientaçãopara os diretores do sistema peni-

10 Maio de 2004

tenciário quanto às inspeções dosórgãos de controle social. Menosarrogante e bem mais habilidoso,Souto marcou seu estilo bemdiferente:

- Olha, eu tenho certeza que ogovernador atual como o futuro,vão obedecer a Lei. Agora, o go-verno tem que tomar cuidado por-que esse problema exige sempremedidas de segurança. O governo,tanto o atual quanto o futuro, nãotem nada a esconder. Se há proble-mas, o objetivo é resolver. Se o ob-jetivo de vocês é esse, seguramen-te o do governo também será. Evi-dentemente há problemas, podehaver questões relativas a super-lotação, isso acontece no Brasil to-do. O que interessa é que nós esta-mos interessados em resolver o pro-

blema e precisamos nos unir pararesolver esse problema. Se há umbom entendimento, uma boa inten-ção, eu tenho certeza que nós pode-mos caminhar para uma solução.

- Quanto às prerrogativas dosconselheiros, de ter acesso às uni-dades, o Sr. garantirá o exercíciodessa prerrogativa?

- O governo tem a respon-sabilidade de cumprir a Lei, mastambém tem a responsabilidadede zelar por questões de segu-rança. Não foram poucas as vezesem que visitas desse tipo que nãotiveram o devido cuidado, aca-baram com conseqüências ruinspara as próprias pessoas que fi-zeram. Não há qualquer intençãode esconder nada – tenho certezaabsoluta disso.

- Que Conselho?- O Conselho Estadual de

Proteção aos Direitos Humanos.- Você está falando como

conselheiro? Ah, mas eu não sa-bia que você estava lá.

- Mas o diretor do HCTsabia.

- Agora, por que diante dis-so, vocês não vão lá no gabinetepara marcar, agendar e fazer avisita? Nós temos uma rotina naunidade, não pode chegar assimna porta e dizer vamos entrar.Não é assim. É só isso que euquero, não tem nada a esconderem unidade prisional nenhuma.As portas não estão abertas, hásegurança. Agora, desde que se-

ja solicitado, vai.- Mas não é uma prerrogativa

nossa, o livre acesso, a Cons-tituição não fala isso? – Arjonesperguntou.

- Nossa de quem?- Da Comissão de Direitos

Humanos da OAB. Como mem-bro da comissão, eu não tenhoessa prerrogativa?

- Prerrogativa de que? –indagou o secretário.

- De poder entrar.- Onde?- Nas unidades prisionais.- É prerrogativa de Lei? A

Comissão tem prerrogativa deLei para entrar? Me diga quedispositivo, me mostre. A hora

que quiser?- Não – escorregou Arjones,

dando a brecha que o secretárioqueria usando a tática dedevolver as perguntas para con-fundir quem o questionava.

- Então eu nem vou discutirmais. Você está admitindo quenão é a hora que quer, não temmais o que conversar.

- Doutor, não é assim – disseArjones, tentando se recompor.

- Então passe e requeira.- Secretário, e quanto à Lei

que instituiu o Conselho? A Leinão fala em autorização prévia.

Diálogo insólitoO secretário Sérgio Ferreira, se postara atrás do governador

durante a entrevista e tentava ouvir tudo, apesar do burburinho daspessoas em volta. Outros auxiliares do governador fizeram o mesmopara pressionar pelo fim da entrevista. O governador finalmente saiu,acompanhado pelo secretário. Fomos atrás e o encontramos do ladode fora, em frente à placa da inauguração. O diálogo a seguir nãopode ser considerado uma entrevista. Arjones o questionou sobre oimpedimento à visita da comissão da OAB e ele negou. Eu pergunteisobre a impedimento a um membro do Conselho:

O Senhor há de convir que,quando a polícia faz uma blitznão divulga porque o objetivo échecar situações, é averiguar seas leis estão sendo cumpridas ouse há alguma coisa errada. Damesma forma, a prerrogativa doConselho é essa.

- O CEPDH? Segunda-feiraeu marco, agora, você vai lá erequer. Compreenda que aquilolá não é um hotel.

- Não é mesmo!- Nenhuma unidade prisional

é, nem você pode esperar queseja, nem a sociedade pode

esperar que seja. É uma unidadeque envolve segurança, envolvetrabalho de ressocialização, en-volve a imagem dos internos.Você não pode filmar os internosporque eles têm direito – vocêsabe disso – de não serem filma-dos. Tudo isso nós temos depreservar. Se, de um lado existeo direito da sociedade entrar ever, do próprio Conselho, deoutro existe o direito do interno,de não ter a sua imagem divul-gada. Isso para mim é funda-mental e você sabe que eles seconstrangem quando alguémchega lá para filmar, parafotografar.

- Nós tentamos lhe localizarfora daqui e só viemos até aquiporque seus auxiliares não noscolocaram em contato com o Sr.

- Você não me ligou.- Nós vamos conversar sobre

isso no Conselho, na próximareunião – avisei.

Sérgio Ferreira questionou a competência legal daComissão de Direitos Humanos da OAB para fiscalizar o manicômio

Foto: Gildo Lima / Ag A Tarde

Otto Alencar, que assumiu o governo no lugar de César Borges, estava a poucos dias da posse do governador eleito, Paulo Souto, quando surgiram as primeiras denúncias sobre o Manicômio Judiciário.

Doisgovernadores, um

só governo

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dição de laudo de sanidade mental.Questionado sobre a equipe, Bar-reto informou haver apenas 10 psi-quiatras, sendo 2 concursados, 6em cargos de confiança e outrosdois trabalhando com contratostemporários do REDA (RegimeEspecial de Direito Administra-tivo). Apenas quatro fazem perí-cias – incluindo o próprio diretor.Segundo ele, seriam necessáriospelo menos 22 médicos: 7 planto-nistas, 7 assistentes e 8 peritos.Uma categoria profissional essen-cial para qualquer hospital tam-bém vivia no limite: havia apenas40 auxiliares de enfermagem tra-balhando nas piores condiçõespossíveis. Quase todas são mulhe-res. Elas passavam os plantões no-turnos em postos de enfermagemdesprotegidos, bem no centro dasalas, com mais de cem internos,sem alternativa de fuga em caso deemergência e sem comunicaçãocom o pessoal da segurança, quenão fica dentro do hospital.

A ausência das chamadas te-rapias coadjuvantes, apesar depatente, foi também questionada, ea resposta veio em números: haviaapenas 3 psicólogos e 3 assistentessociais. Sem qualquer atividade,os internos passavam o tempo en-tre o pátio e o horror dos aloja-mentos. O único lazer era o futebolorganizado por um motorista dopróprio hospital. “Fico com penadeles porque não têm nada para seocupar” disse Marcus Oliveira.Ele lamenta não poder fazer mais:“se eu tivesse mais instrução, fariaoutras coisas, mas só posso pro-mover o baba e eles adoram”.

Dadas as explicações iniciais,todo o grupo saiu para finalmentevisitar as instalações do Hospitalde Custódia e Tratamento. Nemfoi preciso passar da porta parasentir o fedor insuportável que vi-

nha da Ala A, a mais próxima daentrada. Respirei fundo e entreiconcentrado para não me deixarabalar como na experiência deAngola. Havia leitos pelo corredore as enfermarias estavam lotadas.Tinha até paciente deitado naquelechão imundo, quase todo cobertopor uma mistura da água quetransbordava dos banheiros en-tupidos, com fezes e urina. Ascamas, velhas e enferrujadas, es-tavam quase todas sem colchões.Algumas estavam cobertas apenaspor mantas de feltro e outras tin-ham pedaços de colchão.Perguntei a uma auxiliar de enfer-magem se os pacientes rasgavamos colchões em momentos de crisee ela explicou que eles tiravampedaços da espuma porque nãohavia papel higiênico.

De máquina fotográfica empunho, a Dra. Cláudia Villar, doDepartamento Penitenciário Na-cional (Ministério da Justiça), re-gistrava tudo para o seu relatóriode inspeção. Ela explicou quehavia uma determinação de nãoinvestir na ampliação dos atuaishospitais de custódia em todo opaís, nem na construção de novasunidades. “Vamos ter de pensardireitinho no que fazer pararesolver essa situação emergen-cial, porque as coisas não podemficar assim”, disse a Dra. CláudiaVillar. Era só o começo. Na saídada Ala A, os nossos “cicerones”daquele tour macabro queriamlevar o grupo direto para a ala dasmulheres, mas eu insisti parasubirmos a escada apertada que dáacesso à ala C. “É tudo igual lá emcima”, ponderou o agente peniten-ciário que estava com as chavesdos cadeados nas mãos. Comecei asubir mesmo assim, ele veio emseguida e teve de abrir a grade. Oquadro era ainda pior, embora

naquele momento houvesse me-nos pacientes porque a maioriaestava no pátio. Caminhando até ofinal do corredor cheguei aos fa-mosos quartos individuais os QI´s,como são chamados no jargãopenitenciário. Os dois estavamocupados por pacientes que nãosabiam explicar exatamente arazão de estarem ali, nem eramprecisos na informação sobre otempo em que estavam confina-dos. Não sei se seria correto dizerque os QI´s eram a coisa maischocante do HCT, diante de tantasaberrações. Mas confesso quepoucas vezes vi coisa tão impres-sionante. O único atenuante emrelação ao “hospital” de Papa Ki-toko era a ausência dos grilhões.Os QI s devem ter cerca de 10metros quadrados, não têm cama,nem sequer uma manta de feltro eo paciente fica completamente nupara evitar que se enforque com aspróprias roupas ou lençóis. Numdos cantos, uma latrina daqueletipo em que a pessoa se agachapara usar. Todas estavam que-bradas e entupidas. O chão estavasujo, como nos corredores, comfezes, urina e restos de comida. Naparede de um QI, uma pichaçãofeita com fezes dava idéia da dorde Getúlio, paciente que se agarra-va à fé para conter o desespero: “ÓDeus, quantas perseguições / que-ro paz, luz e amparo”.

Finalmente fomos para a alafeminina, onde aconteceu umacena quase cômica, se não fossetambém trágica. As internas cer-caram o grupo e uma delas falavacarinhosamente com o diretor,com sotaque carregado de algumacidade provavelmente da regiãonorte da Bahia: “Dotô Palo, porque o Sinhô nunca mais trouxe umremedinho pra nós, eu to com tantador de cabeça!” Atônito e cons-

Passaram-se mais de sessentadias depois da primeira visita, emdezembro, até chegar a oportu-nidade de finalmente entrar na “su-cursal do inferno”. Soube por aca-so que haveria uma inspeção doMinistério Público, junto com re-presentantes dos Ministérios daJustiça e da Saúde, cancelei umcompromisso e fui para lá. Hou-vera tempo suficiente para fazeralguma coisa, mas a situação era amesma de quando saiu a primeiradenúncia – um quadro verdadeira-mente pavoroso. A sala do diretorficou pequena para o grupo, quealém dos representantes dos ór-gãos oficiais, tinha pessoas dosmovimentos sociais, que, comoeu, aproveitaram para pegar umacarona na visita oficial.

Havia 416 internos naquela al-tura, sendo 376 homens e 40 mu-lheres, vivendo naquela situaçãolastimável. As condições eramparticularmente perversas para asmulheres. Confinadas na menospopulosa das alas, um pouco me-nos imunda que as demais, esta-vam há meses sem banho de solporque não é permitido o contatocom os homens e o pátio delascontinuava interditado e sem pre-visão de reabertura. Elas só podi-am circular na área externa depoisque os homens eram recolhidos nofim da tarde, pouco antes de o solse por.

O Dr. Paulo Barreto estavamenos sorridente do que emdezembro, quando cumpriu asordens do secretário da Justiça eDireitos Humanos, Sérgio San-ches Ferreira, e impediu a entradada Comissão de Direitos Humanosda OAB e de um membro doConselho Estadual de Proteçãoaos Direitos Humanos. Recebeuum bombardeio de perguntas,quase sempre feitas num tom deindignação até mesmo pelos quenão estavam ali como militantes.“O Ministério Público quer saberdetalhes do quadro funcional e daestrutura física,” advertiu a promo-tora Itana Viana, coordenadora daPromotoria de Cidadania. Elatinha participado da primeira visi-ta, e disse que pessoas da suaequipe preferiram jogar fora ossapatos que usaram naquele dia.“É uma questão da maior emer-gência, o que eu vi aqui eu nuncavi nem em filmes”, disse. O diretordo HCT informou que, naqueladata, havia 111 internos submeti-dos ao cumprimento de medida desegurança e 108 aguardavam reali-zação de perícia médica para expe-

trangido, diante da insistência damulher o médico repetia “eu voutrazer, eu vou trazer”. “E por que oSinhô não dá umas vassoura pranós limpar esse chão, Dotô Palo,traz umas vassoura que nós lim-pa”. “Vou trazer, vou trazer”. “Vaimermo?” perguntou a paciente,com um sorriso ingênuo e con-tente. “Ô Dotô Palo, eu gosto tantodo Sinhô!”.

O tour foi concluído antes devisitarmos as outras alas, no pavi-mento superior. Só as conhecibem depois, em outras visitas,quando passei a adotar o procedi-mento de percorrer todas as alas epassar em cada posto de enferma-gem. Na E a sujeira era menor,mas os problemas estruturais doprédio eram mais evidentes, em-bora o que fora visto fosse bas-tante para abrir as discussões nanova reunião que ocorreu após oretorno à sala do diretor. Um téc-nico do Ministério da Justiça eum engenheiro da Secretaria daJustiça e Direitos Humanos discu-tiam a possibilidade de se fazeruma reforma emergencial. Alémdisso, o que seria feito dos paci-entes durante a reforma, se não háoutro hospital semelhante? A pro-motora Cristina Seixas começoua sistematizar as discussões parafazer a ata da reunião. Foramfeitas exigências de ações imedia-tas, como a limpeza e a compra demedicamentos em caráter emer-gencial. “Se nada for feito, só res-tará ao Ministério Público impe-trar uma ação civil pública contrao Estado”, disse a Dra. CristinaSeixas. Já a Dra. Itana Viana esta-va indignada com a situação ecom o fato de o superintendentede Assuntos Penais, ArnaldoAgle, não ter respondido aosinúmeros ofícios que ela en-cam-inhou e, ainda mais grave, com oisolamento do secretário SérgioFerreira, que não atendera oMinistério Público até aqueladata. Mais de um ano depois,embora o Ministério Públicotenha desempenhado um papelrelevante na evolução dos acon-tecimentos, a opção foi por umcaminho mais negociado. Os in-quéritos sobre as vinte mortes o-corridas em 2003 não foram con-cluídos, o Termos de Ajustamen-to de Conduta – alternativa paraevitar o ajuizamento de uma AçãoCivil Pública – não foi celebradoe não foi impetrada a Ação CivilPública.

Dezembro de 2002: corredores inundados por uma mistura de água, fezes e urina.