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16 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento E la insiste que nem reparou quando, na pista da BR 101, no trecho conhecido como Niterói-Manilha, um fotógrafo a flagrou de punhos cerrados para o alto. Seus profundos olhos negros, escondidos pelo boné. Seu corpo negro, magro, coberto por uma camisa duas vezes seu tama- nho. Era a “pose” perfeita para aque- la quarta-feira na qual, como Beth, o povo pobre de São Gonçalo vestiu as cores do MTST para pressionar os governos municipal e federal. - Eles tem que cumprir! Tão meio lentos! Ou você deixa as coi- sas fervendo, ou em banho maria. O povo não quer o banho maria. As- sim, a Prefeitura prejudica a gente que tá lá de frente, porque a maioria do povo não pode entrar e ficar cara a cara com eles. O compromisso em que Beth “tá de frente” é a construção de mil apartamentos em parte de um imen- so terreno no bairro Maria Paula, onde São Gonçalo encontra Niterói. O acordo não foi um presente, claro: nasceu do suor deixado na terra e do peso do bambu carregado nas costas por Beth e seus vizinhos. Esforço que levantou, em novembro de 2014, no bairro Santa Luzia, bem perto da fa- vela do Cano Furado, na zona norte de São Gonçalo, a ocupação Zumbi dos Palmares, a primeira do MTST no estado do Rio. Naquele mês de vitória, conversei com Beth pela pri- meira vez. - Eu não conhecia o movimento. Quando eles chegaram lá, ficamos escabreados. Pensamos que era coi- sa de eleição. Pediram até um tem- po para passar as eleições. Quando passou, fomos ver que tudo era de verdade mesmo. Aí nos juntamos e começamos a nossa luta. O grupo insistiu. Sabiam que Beth, liderança inconteste no Cano Furado, seria de extrema importân- cia na construção daquele proces- so de luta que havia começado pela demanda de outros moradores, mas que inevitavelmente chegara nela. Beth havia sido responsável por ou- tros encontros: por exemplo, quan- do um pastor evangélico, vindo de Belém do Pará, no afã de construir uma igreja na favela, a procurou. Ou quando jovens boleiros a convocaram para ser técnica do Esperança, time de futebol da comunidade. Até mes- mo quando foi procurada por uma estelionatária, que pretendia enganar o povo do Cano, o motivo se repe- tia, muito embora o envolvimento com a comunidade e as intenções fossem diversas: todos reconheciam a liderança e o respeito adquiridos por Beth, um fenômeno forjado na comovente dureza da vida. HISTÓRIAS DA LUTA Mãe de santo, militante do MTST e até técnica de futebol: a liderança mais carismática da favela do Cano Furado, em São Gonçalo (RJ) perde a vergonha e revela uma incrível história - a sua vida. Caetano Manenti quem quer ser beth? -Eu fiz pose? Que nada! Eu odeio aparecer em foto! Pode procurar, não tenho uma foto minha em casa.

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16 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Ela insiste que nem reparou quando, na pista da BR 101, no trecho conhecido como Niterói-Manilha,

um fotógrafo a flagrou de punhos cerrados para o alto. Seus profundos olhos negros, escondidos pelo boné. Seu corpo negro, magro, coberto por uma camisa duas vezes seu tama-nho. Era a “pose” perfeita para aque-la quarta-feira na qual, como Beth, o povo pobre de São Gonçalo vestiu as cores do MTST para pressionar os governos municipal e federal.

- Eles tem que cumprir! Tão meio lentos! Ou você deixa as coi-sas fervendo, ou em banho maria. O povo não quer o banho maria. As-

sim, a Prefeitura prejudica a gente que tá lá de frente, porque a maioria do povo não pode entrar e ficar cara a cara com eles.

O compromisso em que Beth “tá de frente” é a construção de mil apartamentos em parte de um imen-so terreno no bairro Maria Paula, onde São Gonçalo encontra Niterói. O acordo não foi um presente, claro: nasceu do suor deixado na terra e do peso do bambu carregado nas costas por Beth e seus vizinhos. Esforço que levantou, em novembro de 2014, no bairro Santa Luzia, bem perto da fa-vela do Cano Furado, na zona norte de São Gonçalo, a ocupação Zumbi dos Palmares, a primeira do MTST

no estado do Rio. Naquele mês de vitória, conversei com Beth pela pri-meira vez.

- Eu não conhecia o movimento. Quando eles chegaram lá, ficamos escabreados. Pensamos que era coi-sa de eleição. Pediram até um tem-po para passar as eleições. Quando passou, fomos ver que tudo era de verdade mesmo. Aí nos juntamos e começamos a nossa luta.

O grupo insistiu. Sabiam que Beth, liderança inconteste no Cano Furado, seria de extrema importân-cia na construção daquele proces-so de luta que havia começado pela demanda de outros moradores, mas que inevitavelmente chegara nela.

Beth havia sido responsável por ou-tros encontros: por exemplo, quan-do um pastor evangélico, vindo de Belém do Pará, no afã de construir uma igreja na favela, a procurou. Ou quando jovens boleiros a convocaram para ser técnica do Esperança, time de futebol da comunidade. Até mes-mo quando foi procurada por uma estelionatária, que pretendia enganar o povo do Cano, o motivo se repe-tia, muito embora o envolvimento com a comunidade e as intenções fossem diversas: todos reconheciam a liderança e o respeito adquiridos por Beth, um fenômeno forjado na comovente dureza da vida.

HISTÓRIAS DA LUTA

mãe de santo, militante do mtSt e até técnica de futebol: a liderança mais carismática da favela do cano Furado, em São Gonçalo (rj) perde a vergonha e revela uma incrível história - a sua vida.

Caetano Manentiquem quer ser beth?

-Eu fiz pose? Que nada! Eu odeio aparecer em foto! Pode procurar, não tenho uma foto minha em casa.

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quem quer ser beth?

-Eu fiz pose? Que nada! Eu odeio aparecer em foto! Pode procurar, não tenho uma foto minha em casa.

Elisabeth dos Santos Celes-tino nasceu há 52 anos em Nova Friburgo, na Ser-ra Fluminense. Deixou o

ventre de uma adolescente menor de idade para se tornar a fundamental primogênita do que viria ser uma família de mais duas irmãs. Seu pai morreu cedo, de um ataque do cora-ção, quando ela ainda tinha por volta de 8 anos de idade. A morte de “um homem de muito compromisso com a família” , única fonte de renda da casa, desmoronou a vida da mãe de Beth e, por consequência, a sua tam-bém.

- Quando meu pai adoeceu, não procurou o médico. Trabalhava numa firma de roupas e, no domin-go, não descansava, trabalhava ainda mais. Meu pai morreu e ficamos sem chão. Não deu tempo para fazer uma casa para a gente. Minha mãe, com 23 anos e três filhas, não sabia fazer nada. Ela brigou com o mundo, vi-rou alcoólatra, não queria saber de nada. Passamos necessidade.

A família agora se socorria de uma minúscula pensão do INSS. Além da miséria, o trio de filhas ti-nha que sobreviver outro problema grave: a extrema violência do padas-tro de Beth, que espancava a compa-nheira por qualquer motivo. A vida tornara-se um inferno tão insupor-tável que o quarteto resolveu fugir da serra. O destino: esmolar ao relento nas ruas de São Gonçalo, região me-tropolitana do RJ.

Não tardou para o padrasto des-cobrir o paradeiro. Para reconquis-tar a família, o homem revelou que detinha um terreno em São Gonçalo mesmo, onde poderiam construir um barraco de barro. Prometeu que não iria mais ser violento. Meses de-pois, as agressões aumentaram...

- Ela levantou de novo e tome, tome, tome. Minha mãe desmaiou, muito sangue pelo nariz e pela boca. Joguei ela nas costas para levar para o pronto-socorro de Alcântara. Nin-guém queria ajudar porque ela esta-va ensanguentada. Aí eu tô ouvindo uma pessoa assobiar atrás de mim. Minha mãe disse ‘corre, Beth, ele tá vindo me matar’. Eu respondi: ‘vou morrer aqui com você’. Mas não era ele. Era um moço que vinha ajudar.

Depois do socorro, da queixa na delegacia, de novas brigas e mais quebra-quebra, Beth e sua mãe fi-nalmente conseguiram expulsar sua sina de casa. Mas a vida sem dinhei-ro não melhorava. Não havia escola, não havia estudo. A rotina de Beth era correr atrás de comida, na sobra das feiras, na caridade de açougues e vizinhos.

- Eu achava que era melhor pe-dir do que roubar. A pessoa honesta anda livre. A desonesta anda presa,

mesmo que solta. Sofrimento não leva ninguém a fazer desgraça. Eu tava cansada de só comer pelanca. Não gosto nem de lembrar... aque-le sebo... Eu ia no açougue pedir. Botava num saco e ia toda feliz. Co-mia pelanca no feijão, comia pelanca com macarrão de lacinho. Eu e mi-nhas irmãs catamos muito ferro ve-lho a conta de comprar o macarrão de lacinho.

Beth só chegara aos 13 anos, mas já suportara dificuldade para uma vida toda quando começou a traba-lhar como babá. Agora já estavam em Santa Luzia, do fim da década de 70, com lama por todos os lados. Conseguiram alugar um quarto de barro, “do tamanho de um banheiro pequeno”. Nele, cabia apenas uma cama, um fogão a lenha e a família de cinco pessoas.

- E era ótimo! Uma beleza!- Era ótimo?!- Não tinha briga, não tinha es-

pancamento. Só isso também... O resto...O resto, em uma palavra, era a

fome. O custo do aluguel rareava a comida. A salvação era o filho da proprietária, que desviava um único prato a ser dividido pelas três crian-ças. A mãe sofria com o álcool, in-

vertendo com Beth os papéis de quem cuidava de quem.

Agarrando-se em Deus, Beth sempre evitou as drogas e o crime. Era intransigente até mesmo com seus amigos: criticava, tentava con-sertar, mesmo que fossem “brabos”. Na época, rejeitou oferta de duas co-legas pra ir à Suiça trabalhar.

- Acho que por debaixo do pano era uma imundice de prostituição. Intimidei. Pensei ‘não tô pronta para isso’. Elas falavam: ‘Vem, Beth, você tem tudo em cima. Você é in-teligente, vai se sobressair bem’. Não fui. Elas partiram. Hoje moram em mansão.

De maneira indireta, o sucesso das amigas na Europa também aju-dou a vida de Beth. Elas compraram uma casa para o irmão, e ele con-cedeu à ela a guarda de um terreno que ele cercara não muito longe do cano furado que dá nome à favela.

Sem dinheiro para tijolos e cimento, Beth os substituiu por barro. Levan-tou seu barraco de pau-a-pique. Foi ali que ela deixou de ser uma jovem comum e virou a mais conhecida fi-gura da favela.

Foram precisos dois dias de ocupação, com muita barra-ca surgindo, para Beth per-der o receio e entrar de ca-

beça na luta por uma casa legalmente sua. Afinal, o terreno recebido do velho amigo, assim como quase todo o Cano Furado, não está garanti-do sob documentos. Foi somente quando ela chegou, acompanhada por quase 20 pessoas - entre filhos de santo e parentes de sangue, como seu casal de filhos - que a ocupação Zumbi dos Palmares teve certeza de que aquela luta era para valer.

Para quem viveu na rua e em bar-raco de barro, lutar por moradia não era jornada inédita, claro. Muito an-tes de saber o que é o MTST, Beth já ajudava seus vizinhos. Certo dia, acordou disposta a dar fim no lixão que apodrecia na mata fechada em frente à sua casa. Limpou, capinou, pediu reforço dos homens da família e cercou o terreno. Em vez de tomá-lo para si, o dividiu entre os neces-

sitados da região, para “não deixar ninguém dormir na rua”. Foi amea-çada por autoridades armadas, quase morreu de medo, foi corajosa, bateu o pé e escapou dessa. Todos seguem lá.

Pouco tempo depois, o santo pro-tetor de Beth teve que trabalhar duro novamente. Procurada por uma mu-lher “muito arrumada e muito es-tudada”, foi enganada. A conversa fiada era de que se tratava da possibi-lidade de regularizar casas e terrenos em troca de algumas centenas de re-ais. A verdade é que a moça era uma estelionatária. A decepção daqueles dias só seria superada ao ver tanta gente unida na ocupação Zumbi dos Palmares.

O dia mais marcante foi o 5 de novembro. Naquela quarta-feira, o povo da Zona Norte de São Gonçalo desembarcou em peso no centro da cidade. Era dia de, cara a cara, pres-

sionar o prefeito. Beth foi eleita para subir ao gabinete de Neílton Mulim, na comissão de negociação. Sentado à imensa mesa de vidro da luxuosa sala, Beth percebeu quão longe havia ido em sua vida. O próximo desafio era falar algo que balançasse o polí-tico.

- Eu pedia: ‘Senhor, me dá pala-vra’. Eu nem me lembro da pergunta que me fizeram, mas lembro bem o que respondi: ‘eu tô aqui represen-tando o povo, o povo que confiou no senhor, o povo que votou no senhor. A gente tá aqui para levar uma res-posta de verdade. Não estamos para levar meia taça’. Depois, ele ficou toda hora me olhando. Os secretá-rios, tudo de gravata, ficaram todos me olhando. Mandei bem.

- Sinto saudade da gente no ter-reno, fazendo aquela cavação. Não importava da onde você era, que tipo, que raça, se era preto, se era pobre, da onde era. A gente junta-va comida, a gente arrastava bambu, parece que até hoje tem um pedaço da gente ali. Sabe por quê? Porque caiu nosso suor ali.

Tudo o que se passou naquele terreno é guardado com carinho. Era domingo quando a ocupação Zumbi dos Palmares promoveu um evento ecumênico. Beth confessa que fi-cou nervosa ao ser a responsável por celebrar a umbanda à frente de tan-ta gente - alguns católicos, muitos evangélicos. Engoliu a timidez e ba-teu forte o tambor. Saiu do terreiro improvisado ainda mais relevante do que entrou.

A crença africanista de Beth sur-giu depois de uma extensa procura por resolver seu “problema espiritu-al”. Já ajudou até mesmo a levantar uma igreja evangélica em sua rua, mas, dentro de uma outra, recebeu uma entidade e percebeu que o ca-minho era outro. Hoje é mãe de san-to de um barracão em homenagem a Zé Pilintra da Estrada. A cada dois sábados, lidera um culto que reúne cerca de 25 pessoas. Mais do que isso, a religião deu a Beth uma pro-funda responsabilidade: a de receber, às vezes em sua própria casa, as filhas de santo que ainda não têm teto ade-quado. Tanta responsabilidade quase não cabe no corpo frágil de Beth.

- Eu não queria ser quem eu sou. Eu queria ser livre. Não posso errar. Acho muito pesado: “só você pode me ajudar”. Eu não gosto, tira a mi-nha liberdade. Tira o meu eu. Você vai precisar ser carrancuda, outras vezes carinhosa.

Beth pode até não querer ser ela mesma. Mas, certamente, tem muita gente que gostaria de ter a força que ela tem.•

- Sinto saudade da gente no terreno, fazendo aquela

cavação. Não importava da onde você era, que tipo, que raça, se

era preto, se era pobre, da onde era. A gente juntava comida, a gente arrastava bambu, parece que até hoje tem um pedaço da gente ali. Sabe por quê? Porque

caiu nosso suor ali.