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neps boletim informativo 21 | Setembro de 2001 1 EDITORIAL Tinta anos de reconstitui- ções de paróquias António Amaro das Neves FALANDO DE DEMOGRAFIA HISTÓRICA... Maria Norberta Amorim INVESTIGADOR APRESENTA- SE: Miguel Monteiro Elisabete Pinto APONTAMENTOS DE INVESTIGAÇÃO: O Brasil como destino de emigração Miguel Monteiro ARGUMENTOS: Ser indígena ou assimilado (em Moçambique, até 1951) Luís Polanah Formação do corpo docente e valores na sociedade brasileira: a feminização da profissão Maria Christina S. S. Campos NOTÍCIAS: NOVAS PUBLICAÇÕES DO NEPS Ribeiras do Pico - Microanálise de evolução demográfica , de Maria Norberta Amorim Meadela, Comunidade Rural do Alto Minho: Sociedade e Demografia, de Maria da Glória Solé III Congresso Histórico de Guimarães D. Manuel e a sua época s u m á r i o Trinta anos de reconstituições de paróquias Boletim Informativo Núcleo de Estudos de População e Sociedade|Instituto de Ciências Sociais| U.M.| Guimarães| 21| Setembro de 2001 António Amaro das Neves editorial Nos finais dos anos cin- quenta do último século, a comunidade científica desper- tava o seu interesse para o conhecimento dos mecanis- mos de funcionamento das populações do passado, com a divulgação dos resultados das primeiras reconstituições de família francesas. Inspira- da por esses trabalhos, por essa altura, Virgínia Rau pro- pôs ao Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Le- tras de Lisboa um programa para a investigação demográ- fica portuguesa, que tinha como objectivo a recolha sis- temática dos elementos for- necidos pelos registos paro- quiais de Lisboa durante o sé- culo XVIII, organizando um ficheiro dos assentos dos três tipos de registos: nascimen- tos casamentos e óbitos. Maria de Lurdes Akola Neto, a primeira investigado- ra portuguesa a divulgar re- sultados de estudos de de- mografia histórica baseados no tratamento sistemático de registos paroquiais, constituiu um ficheiro com quase dez mil fichas de actos vitais re- gistados na freguesia de San- ta Catarina, em Lisboa, co- brindo o primeiro quartel do século XVIII. Das conclusões

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neps boletim informativo 21 | Setembro de 2001 1

EDITORIAL

Tinta anos de reconst itui-ções de paróquias

António Amaro das Neves

FALANDO DE

DEMOGRAFIA HISTÓRICA...Maria Norberta Amorim

INVESTIGADOR APRESENTA- SE:Miguel Monteiro

Elisabete Pinto

APONTAMENTOS

DE INVESTIGAÇÃO:O Brasil com o dest ino de

em igraçãoMiguel Monteiro

ARGUMENTOS:Ser indígena ou assim ilado( em Moçam bique, até 1 9 5 1 )

Luís Polanah

Form ação do corpodocente e valores na sociedade brasileira: a

fem inização da profissãoMaria Christina S. S. Campos

NOTÍCIAS:• NOVAS PUBLICAÇÕES DO NEPS

Ribeiras do Pico- Microanálise de evolução

dem ográfica ,de Maria Norberta

AmorimMeadela , Com unidadeRural do Alto Minho:

Sociedade e Dem ografia ,de Maria da Glória Solé

• III Congresso Históricode Guimarães

D. Manuel e a sua época

s u

m

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r

i o

Trinta anosde reconstituições de paróquias

Boletim InformativoNúcleo de Estudos de População e Sociedade|Instituto de Ciências Sociais| U.M.| Guimarães| 21| Setembro de 2001

António Amaro das Neveseditorial

Nos finais dos anos cin-quenta do último século, acomunidade científica desper-tava o seu interesse para oconhecimento dos mecanis-mos de funcionamento daspopulações do passado, com

a divulgação dos resultadosdas primeiras reconstituiçõesde família francesas. Inspira-da por esses trabalhos, poressa altura, Virgínia Rau pro-pôs ao Centro de EstudosHistóricos da Faculdade de Le-tras de Lisboa um programapara a investigação demográ-fica portuguesa, que tinhacomo objectivo a recolha sis-tem át ica dos elem entos for-

necidos pelos registos paro-quiais de Lisboa durante o sé-culo XVI I I , organizando umficheiro dos assentos dos t rêst ipos de registos: nascim en-tos casam entos e óbitos.

Maria de Lurdes Akola

Neto, a primeira investigado-ra portuguesa a divulgar re-sultados de estudos de de-mografia histórica baseadosno tratamento sistemático deregistos paroquiais, constituiuum ficheiro com quase dezmil fichas de actos vitais re-gistados na freguesia de San-ta Catarina, em Lisboa, co-brindo o primeiro quartel doséculo XVIII. Das conclusões

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editorial António Amaro das Neves

apresentadas, começava aalicerçar-se uma certeza in-quietante: em Portugal, nãoera possível a reconstituiçãode famílias.

Nas outras Faculdades deLetras, ao longo dos anossessenta e setenta, foram-selançando projectos de pesqui-sa em Demografia Históricaque visavam a reconstituiçãode famílias, com base na me-todologia criada por Fleury eHenry para o estudo da fe-cundidade legítima das popu-lações francesas do passado.De milhares de horas de tra-balho de arquivo, em grandeparte realizado por jovensestudantes das licenciaturasem História, resultaram enor-mes acervos de fichas de ac-tos de baptismos, casamen-tos e óbitos, cujo cruzamen-to ninguém se revelava ca-paz de concretizar. Desses fi-cheiros, o mais que se pro-duziram foram uns quantosestudos de naturezaagregativa. Mas quase nadade famílias reconstituídas.

O principal entrave à con-cretização das intenções maisambiciosas de tais projectosresidia na natureza das fon-tes paroquiais portuguesas eno modo muito peculiar comoentre nós eram transmitidosos sobrenomes familiares. Ametodologia de Fleury-Henryalicerçava-se da regularidadeda passagem dos nomes defamília de geração para gera-ção. Porém, em Portugal, anorma é a absoluta ausênciade regras nesta matéria,como Norberta Amorimconstatava, no início da dé-

cada de 1970, ao escreverque um pai que assina Pires,pode ter um filho que se cha-m e Fer n an d es e ou t r oEsteves, por exem plo, her-dando estes apelidos da m ãe,avós e até padrinhos.

Encontrado o nó da mea-da, esta investigadora iniciouum tentativa de reformulaçãodas bases metodológicas dapesquisa em Demografia His-tórica, adequando-as àsespecificidades das fontesportuguesas e introduzindoum conjunto de procedimen-tos simples, intuitivos ecomprovadamente eficazes,que irão permitir a reconsti-tuição de famílias em horizon-tes espaciais e temporaisinesperadamente alargados.As famílias passaram a serindexadas não pelo sobreno-me do pai, mas pelo seunome próprio (aquele que éimutável e que acompanha-va os percursos de vida da-queles homens, desde o bap-tismo até à sepultura). Umaoutra inovação frutuosa re-sultou do abandono da reco-lha dos registos de baptismoem fichas individuais, paraposterior cruzamento, queresultava no registo de infor-mação redundante sempreque um mesmo casal tinhamais do que um filho. Foi as-sim que surgiram os ficheirosconstituídos por folhas de pa-pel cavalinho unidas por ar-golas, que são a im agem dem arca do método criado porNorberta Amorim. Neles, asfamílias começavam a ser re-constituídas logo no proces-so de levantamento da infor-

Trinta anosde reconstituições de paróquias

mação no Arquivo, a partirdos registos de baptismo,com um significativo ganho detempo, eficiência e rigor nosresultados finais.

Este conjunto de técnicasde pesquisa e de tratamentode informação, mais tardebaptizado de Metodologia deReconst ituição de Paróquias,lançou as suas bases a partirdo esforço inicial de uma in-vestigadora isolada, foi ga-nhando aderentes (hoje con-tam-se por dezenas os inves-tigadores que baseiam assuas pesquisas nesta meto-dologia), vencendo resistên-cias, conquistando o reconhe-cimento e marcando presen-ça sistemática em publicaçõese encontros científicos nacio-nais e internacionais.

Ao mesmo tempo, esta me-todologia tem revelado grandecapacidade de adaptação aoacelerado processo de trans-formação que atinge a pesqui-sa científica nos tempos quecorrem, abrindo-se à inovaçãoe aproveitando os recursos dis-ponibilizados pelas novastecnologias da informação, como recurso ao precioso contri-buto dos especialistas em in-formática da Universidade doMinho.

O Núcleo de Estudos de Po-pulação e Sociedade, com assuas iniciativas, a produção dosseus investigadores e as suas li-nhas de publicações, insere-senum percurso cujos primeiros pas-sos se deram nos idos de 1971,com o estudo demográfico deNorberta Amorim sobre Rebordãose a sua população nos séculosXVI I e XVI I I . Passam agora trin-ta anos.

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falando de demografia histórica... Maria Norberta Amorim

Nas sociedades tradicionais oLugar em que se habitava cons-tituía o nível de referência em quea individualidade podia ser reco-nhecida e assumida da forma maisaprofundada e abrangente. Situ-ado entre dois outros importan-tes níveis de referência, a Famí-lia e a Freguesia, era no Lugarque se reuniam as melhores con-dições e oportunidades para oconhecimento do outro. No nívelimediatamente inferior de agre-gação, na Família, o pequeno cír-culo e a afectividade seriam sus-ceptíveis de perturbar ou limitaresse conhecimento. Quando con-sideramos o conjunto dos Luga-res, a Freguesia, perdem-se con-dições para uma continuada ob-servação individual e a Famíliaapareceria como uma unidadebásica de referência.

Tradicionalmente, o Lugar sur-gia assim como um espaço privi-legiado de sobrevivência e soci-alização, constituindo o espaçohumano por excelência.

Ao ensaiarmos uma abordagemmicro-analítica da sucessão dasgerações nas Ribeiras do Picoentre os finais do século XVII eos finais do século XX, usandoas metodologias da DemografiaHistórica, fomos dando conta dasdificuldades de aprofundamentoao nível da freguesia, acabandopor preferir a observação a níveldo lugar.

Os lugares das Ribeiras apa-reciam como outras tantas uni-dades em que a consciência depertença dos seus habitantessoubera afirmar uma identidadereconhecida no exterior. RibeiraGrande, Ribeira Seca, Pontas Ne-gras, Santa Cruz, Caminho deCima, Caminho de Baixo, Sta.Bárbara, Cruz ou Arrife, são lu-gares que ainda hoje se distin-guem pela diversidade de paisa-gem, pela relação entre as habi-tações, por construções sociaisidentificadoras, materiais ou sim-

bólicas, ou ainda pelo imagináriocolectivo.

Muitas e diversificadas pode-riam ser as formas de abordagemda história de vida das gentesdo Lugar. De facto, ao Historia-dor colocam-se muito mais op-ções do que aquelas que se po-derão colocar aos seus colegasde outras Ciências Sociais. OTempo traça quadros sucessiva-mente diversificados e susceptí-veis de captar o interesse do in-vestigador. Enveredar por análi-ses transversais ou análiseslongitudinais ou ainda conjugar asduas vias de análise são opçõesde partida que dificilmente sepoderiam colocar em disciplinasnão históricas.

No caso vertente fascinou-nosa possibilidade de, conjugandofontes diversas, jogar com ob-servações sobre três momentosdistintos da vida da comunidade,apoiando-nos sempre na base dedados com a paróquia reconsti-tuída.

Os esteios para a montagemsobre a base de dados paroquialde sequências geracionais dosresidentes no lugar que elegemos,o da Ribeira Seca, foram funda-mentalmente três listas de habi-tantes e as informações de doishomens aí nascidos, o Sr. ManuelSilveira da Silva e o Sr. ManuelHermínio Brum e respectivas es-posas, a quem agradecemos.

Uma lista de habitantes para1838 foi ordenada por fogos, comidades, profissões e relações fa-miliares, mas sem indicação delugar de residência. Um mapa damatriz predial da freguesia data-do de 1885, com nomes e mora-das dos contribuintes, não incluia indicação de idades ou outrosdados identificadores. Um rol deconfessados da paróquia de San-ta Cruz (uma das duas paróquiasem que hoje se divide a fregue-sia) referido a 1925, com indica-

ção de lugar, é ordenado por fo-gos e inclui também idades, pro-fissões e relações familiares.

Situando-se as Ribeiras navertente sul da fragosa ilha doPico, entre as freguesias das La-jes e Calheta de Nesquim, nazona da ilha de formação maisantiga, os seus três lugares maisorientais, Ribeira Grande, RibeiraSeca e Pontas Negras, geografi-camente distanciados dos restan-tes, assemelham-se entre si. Olugar central, o da Ribeira Seca,o lugar escolhido para esta aná-lise, é separado da Ribeira Gran-de pela Ribeira de Martim e é cor-tado pela Ribeira de Maria Antó-nia e pela Ribeira de onde tomouo nome, a Ribeira Seca, contan-do-se ainda três grotas, uma de-las identificada como Grota doSerrado dos Porcos e outra comoGrota de Maria Antónia. Essas ri-beiras que correm frequentemen-te no inverno chuvoso, retendoágua em alguns poços, eram re-cursos muito importantes parausos domésticos e para tirar asede aos animais de porta. Nosm atos, à distância de uma horaou hora e meia das casas, ondeo gado pastava livremente sóconfinado aos limites de cadapropriedade, era feita a reten-ção de água em charcos ou po-ços construídos de lama (de ci-mento num século XX adianta-do) a servir de bebedouros. Nascasas, sempre que os poços dasribeiras estavam vazios e antesda construção nos finais do sé-culo XIX e inícios do XX de cis-ternas de eirado de cimento (oschamadas tanques), era precisoir junto ao mar, aos poços demaré, buscar água salobra paratodos os gastos domésticos. Al-guma água, apanhada dos bei-rais em talhões de barro, era re-servada para gastos especiais,como fazer café (geralmente defavas torradas) ou chá. O poçode maré era na Baía da Abelheira,

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onde havia o poço e o porto daAuada (Aguada) hoje dificilmen-te acessível por terra, mas ondechegaram a varar cinco barcos eonde também no início do séculoXX exímios mestres carpinteirose calafates construíram embar-cações de pequeno porte, bar-cos, lanchas e botes baleeiros,de elegância dita insuperável,conhecidos como os Mestres daAuada.

Hoje a Ribeira Seca, mais ain-da do que acontece na RibeiraGrande ou nas Pontas Negras,encontra-se fortemente penali-zada pelo envelhecimento e peladesertificação. Em finais de 2000,contava apenas 41 habitantesdistribuídos por 14 habitações,havendo 19 casas desabitadas oude habitação secundária (emi-grantes que passam algum tem-po na sua casa de origem). Des-ses 41 habitantes, apenas 2 ti-nham idade inferior a 15 anos;sendo 13 os indivíduos com 65ou mais anos.

Substituindo as lavouras, acriação de gado bovino alastroudas pastagens altas do mato paraa beira das casas, constituindoo maior recurso do lugar, com seisfamílias a depender dessa explo-ração. À excepção de um maríti-mo, a construção civil ocupa osrestantes homens activos. Ospensionistas valorizam a possibi-lidade de envelhecer olhando umlarguíssimo horizonte sem a an-gústia da exclusiva dependênciados recursos de uma naturezacaprichosa.

Entrando no Lugar, de orientepara ocidente, iremos desenvol-ver a tentativa de ligação entreas gentes de hoje e as gentesque no mesmo lugar as precede-ram, apoiando-nos na documen-tação disponível para as três da-tas atrás referidos – 1838, 1885e 1925 e na memória privilegiadados nossos informantes. Dadas as

dificuldades de identificação doscontribuintes para 1885, a au-sência de referência ao lugar deresidência na lista de habitantesde 1838 e as dificuldades geraisde identificação de pessoas nopassado, a algumas interrogaçõesnão sabemos dar resposta.

A forma que encontrámos paraarticular a informação entre asgentes de hoje e aqueles que jápassaram nesse lugar da RibeiraSeca assentou nas casas con-servadas ou arruinadas, patrimó-nio construído que pode aindasuportar a nossa observação.Neste momento iremos identifi-car gentes que vivem ou vive-ram nas três primeiras casa dolugar.

Para a primeira casa da Ribei-ra Seca, quem sai da RibeiraGrande, no sítio das Ordimalas,não encontramos transmissãofamiliar. Foi comprada nos finaisdos anos de 1960 a emigrantesque saíram para os Estados Uni-dos. Foi comprador um agricul-tor/proprietário da freguesia daPiedade que optou por vender osseus bens e comprar na oportu-nidade casa e terrenos nas Ri-beiras, onde a mulher tinha raí-zes. A comunidade aceitou-oatribuindo-lhe a mesma alcunhaque fora do sogro, o Cacena.

Trata-se hoje de uma das ca-sas com maior número de pesso-as no lugar. Contamos a viúva doreferido comprador, um filho ca-sado, trabalhador na construçãocivil, a mulher deste, doméstica,e três netos, tendo o mais novoidade inferior a 15 anos.

Recuemos a 1925, altura emque na Ribeira Seca se conta-vam 120 residentes. Nessa casaencontramos um viúvo de 88anos, Francisco Silveira Cardosoe duas filhas solteiras, Maria da

Glória, de 57 anos e Maria Au-gusta, de 56 anos, tendo estaperdido o juízo já adulta.

Francisco Silveira Cardoso ca-sara aos 27 anos com Clara deJesus, filha de um casal das Pon-tas Negras. Apesar de FranciscoSilveira tirar passaporte para osEstados Unidos aos 34 anos(conhecemo-lhe um outro regis-to de passaporte para o mesmodestino quando contava 65anos), a sua primeira estadia foibreve e o casal teria sete filhos,nenhum casado nas Ribeiras. Fa-leceu um filho em criança e umafilha aos 20 anos e ausentaram-se três outros. De notar que afilha demente, Maria Augusta, ti-rou passaporte para os EstadosUnidos quando tinha 20 anos.Também aos 20 anos emigrou paraos Estados Unidos a filha que sechamaria, por casamento, Tere-sa da Silva Garcia, seguindo omesmo destino, aos 21 anos, ofilho José Silveira. Do filho Manu-el não temos registo de passa-porte, mas admitimos que tam-bém tenha emigrado para os Es-tados Unidos.

Falecida Maria Augusta e de-pois o pai, Glór ia de FranciscoSilveira, como era conhecida afilha mais velha, fez papel do queera seu a um familiar e vizinho,Manuel Cardoso da Silva, filho deoutro do mesmo nome que en-contramos residente na terceiracasa do lugar em 1925. Uma mu-lher idosa sem herdeiros força-dos encontrava um jovem casalaparentado que a velaria e tra-balharia as suas terras.1 .

Manuel Cardoso da Silva Jr.,nascido em 23 de Agosto de1910, além de trabalhar a terracom esmero exerceu a profissãode ferreiro. Na Ribeira Seca comona Ribeira Grande ou Pontas Ne-gras, neste período, tornava-seimperativo para o chefe de famí-lia complementar a agricultura desubsistência com um ofício ou aactividade de pescador. Casou

1.º CASO

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aos 25 anos com Isaura Emília daSilva, de 18, mulher conhecidapela sua força física (fazia a pro-eza única de trazer duas latasde 20 litros cheias de água à ca-beça pela íngreme canada quesubia em distância de cerca deum Km. do poço da Auada à casaonde vivia, bem no extremo daRibeira Seca). Tiveram oito filhos,tendo uma filha falecido em cri-ança. Nos anos sessenta emigra-ram todos, o casal e os filhos. Ofilho mais velho, Manuel, emigrouem 1963, já casado, para o Ca-nadá, onde depois se juntaramJosé e Maria. O casal e os filhosmais novos emigraram para osEstados Unidos em 1968.

Na segunda casa do lugar, vivehoje uma viúva isolada, com umapensão de reforma, aparentadacom os antigos proprietários daprimeira casa. Havia casado aos21 anos com um homem naturalda freguesia de S. João, de quemteve seis filhos, três residentesno lugar de Santa Cruz da mes-ma freguesia, dois nos EstadosUnidos da América e um outro emLisboa.

Em 1925 encontramos comoresidentes nessa segunda casaos pais da actual proprietária, umcasal com muitos filhos, vivendocom alguma dificuldade. Tratava-se de Domingos Cardoso de Meloou Domingos Cardoso Luís, a tra-balhar de agricultor, de pedreiroe ainda de pescador (o peixe,além de enriquecer a mesa, po-dia ser vendido ou trocado poroutros bens essenciais), entãocom 44 anos, sua mulher, MariaIsabel de Ávila, doméstica, de 36anos, e oito filhos, dos dez quenasceriam. Integrava ainda omesmo fogo a mãe de DomingosCardoso, Isabel Josefa, de 88anos, viúva de Manuel Cardosode Melo. A proprietária actual

seria o décimo filho do casal. Des-ses dez filhos apenas um faleceuna infância. Conhecemos o ca-samento de sete, ausentando-seantes do casamento duas filhas.De notar que esta família comopraticamente todas as outras nãoescapava a uma alcunha, nestecaso a alcunha de Gatas.

Em 1885 Manuel Cardoso deMelo, pai de Domingos Cardosode Melo, tinha de rendimento co-lectável a modesta quantia de2$448 réis. Sua mulher, IsabelJosefa, era a filha mais nova deManuel Silveira Cardoso e RosaJosefa, sendo Manuel SilveiraCardoso tio de Francisco SilveiraCardoso que encontrámos em1925 na primeira casa do lugar.

Na terceira casa do lugar vivehoje um casal idoso com um filhosolteiro. Foi herdada do pai daactual proprietária, António Pe-reira Cardoso, que a adquiriu porcompra.

Em 1925 encontramos comoresidente Manuel Cardoso da Sil-va, agricultor, casado, de 43anos, sua mulher, Maria do Rosá-rio da Silva, doméstica, de 38anos, e cinco filhos, quatro fi-lhos e um filha, entre os 14 e os4 anos de idade (uma outra filhanascera e morrera num mesmodia). Não teriam mais filhos eManuel Cardoso da Silva falece-ria em vésperas de atingir os 50anos. Todos os filhos casaram nafreguesia. Já referimos o filhomais velho, Manuel Cardoso daSilva Jr., como proprietário da pri-meira casa do lugar.

Maria do Rosário da Silva foifilha única de Francisco José Gon-çalves e Isabel Maria da Concei-ção, esta irmã de Francisco Sil-veira Cardoso já identificado.Eram ambos filhos de Matias Sil-veira Cardoso e de Maria da Con-ceição.

Na matriz predial de 1885 en-contramos, no mesmo sítio dasOrdimalas, um Matias Silveira Car-doso com um rendimento colec-tável de 24$396 réis, sendo omaior proprietário do lugar. Teria81 anos em 1885 e fora pai desete filhos. Falecendo um filho denome Matias aos oito anos deidade, Manuel, o filho mais ve-lho, emigrou para o Brasil aos 29anos e de José não temos infor-mação. Além de Francisco e Isa-bel, mais duas filhas casaram nafreguesia.

Na lista de habitantes de 1838encontramos referido ao fogo nº47 o pai de Matias Silveira Car-doso, chamado Matias Silveira,trabalhador (identificado comolavrador num mapa da populaçãodatado de 1836), sua mulher Isa-bel Josefa, fiadeira, e seu filhoFrancisco, solteiro, trabalhador.

Matias Silveira era o filho maisvelho de outro Matias Silveira ede Isabel Silveira, casal muitopobre (seguindo a informação dopároco à morte de Isabel Silvei-ra), e havia nascido em 20 deAgosto de 1778. A sua mulher,nascida em 15 de Outubro de1775, era filha de Francisco Viei-ra de Lemos e Isabel Josefa, ca-sal que supomos remediado.

O casamento de Matias Silvei-ra e Isabel Josefa realizara-se em4 de Fevereiro de 1801 e havi-am-lhe nascido oito filhos, trêsjá casados em 1838, tendo-lhesfalecido criança uma filha, um fi-lho falecido solteiro aos 25 anose tendo ainda uma outra filhacujo destino desconhecemos.

Casando uma filha para o vizi-nho lugar das Pontas Negras, osoutros dois filhos já com famíliaprópria viviam em fogos contíguosaos pais e possivelmente na mes-ma residência ou suas dependên-cias. O filho Francisco, referidoao mesmo fogo dos pais, viria acasar aos 24 anos e em 1885 ti-nha ele próprio de rendimento

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2.º CASO

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colectável 9$873 réis, o que ocolocava entre os proprietáriosremediados das Ordimalas.

O filho mais velho, Manuel Sil-veira Cardoso, nascido em 25 deDezembro de 1801, casara aos24 anos com Rosa Josefa, de 31anos, filha de José Garcia e Bár-bara Josefa, das Pontas Negras,lugar onde residiram algum tem-po. Em 1838 encabeçavam o fogo46. Haviam baptizado já os seusseis filhos, um deles falecido cri-ança. Manuel Silveira é identifi-cado como trabalhador (sem pro-priedade, segundo o mapa de1836) e sua mulher comofiandeira. Sendo já falecido em1885 a sua viúva não figura nomapa dos proprietários da Ribei-ra Grande.

Noutro fogo contíguo vivia ofilho Matias Silveira Cardoso, en-tão trabalhador (sem proprieda-de, segundo o mapa de 1836),casado com Maria da Conceição.Matias Silveira Cardoso, nascidoem 24 de Fevereiro de 1804, ca-sara nas vésperas de perfazer 26

anos, quando Maria da Concei-ção tinha 19 anos. Esta era filhade José Francisco Goulart e Ma-ria da Conceição, casal pobre queintegrava o fogo 51 do mesmolugar da Ribeira Seca. Tinham trêsfilhos menores em 1838 dos seteque registariam.

Não conseguimos perceber aorigem da propriedade de MatiasSilveira Cardoso em 1885, quan-do os seus ascendentes erampobres ou remediados. Notemos,no entanto, que na matriz predi-al de 1885 são identificados doisindivíduos com o nome de MatiasSilveira Cardoso, um residentenas Ordimalas e outro, com al-cunha de Janeiro, residente nolugar da Ribeira Grande. Apesardeste último ser pobre, tendo derendimento colectável apenas3$239 réis, dificilmente o identi-ficamos com Matias Silveira Car-doso, filho de Matias Silveira.Numa altura em que o crescimen-to populacional, os hábitos derepartição igualitária de proprie-

falando de demografia histórica... Maria Norberta Amorim

O NEPS iniciou recentementea publicação regular de trabalhoscientíficos dos seus investigado-res. Intitulada Cadernos do NEPS.,esta série de publicações preten-de trazer à estampa novas pes-quisas, contributos científicospara o enriquecimento da produ-ção bibliográfica dos membros doNúcleo.

De autoria de Maria NorbertaAmorim, com a colaboração deManuel Cardoso, saiu agora a obraRibeiras do Pico (Finais do séculoXVI I a finais do século XX) – Mi-croanálise da evolução demográ-fica. Este trabalho desenvolve-se articulando três pontos prin-

dade e a dureza do solo limita-vam as possibilidades de progres-são social, achamos muito difícila aquisição avantajada de novaspropriedades sem o recurso àemigração de sucesso. Sabemosque as idas aos Estados Unidoseram frequentes e podiam não serprolongadas. Fica-nos neste casoa dúvida.

1 Nem sempre terá sido fácil a convi-vência entre Glória e o primo (se-gundo os hábitos do lugar, sendode geração diferente, Manuel Car-doso trataria Maria da Glória portia). Trabalhado com esmero porManuel Cardoso o vasto aposentoda casa (quintal), duas galinhas damadeira (garnizés), muito do gos-to de Glória esgaravatavam e es-tragavam as culturas, o que irrita-ria o jovem. Um dia as galinhasforam mortas e penduradas natranca da porta, bem em evidên-cia. Esse gesto terá condicionadauma forte zanga da dona e um afas-tamento temporário da família deManuel Cardoso. Mais tarde a situ-ação acabou por compor-se.

publicações do neps neps

n.º 2 dos Cadernos Neps

Ribeiras do Pico – Microanálise da evolução demográfica,de Maria Norberta Amorim

cipais de reflexão já amplamentelevantados. O primeiro prende-secom a pertinência de acompa-nhar, utilizando metodologias e in-dicadores coerentes, a evoluçãodos comportamentos demográfi-cos do Antigo Regime aos diasde hoje. O segundo diz respeitoà abordagem das interacções dosfenómenos de nupcialidade, fe-cundidade, mobilidade e mortali-dade, após a análise correntedesses mesmos fenómenos. Porúltimo, a contribuição empíricaaporta ao debate em torno docomplexo problema da transiçãodemográfica.

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NOME: Miguel Teixeira Alves MonteiroIDADE: 46 anos

NATURALIDADE: Celorico d e Bas toACTIVIDADE PROFISSIONAL: Docen te no Ens ino S ecund ário e S uperior

investigador apresenta-se Elisabete Pinto

Com a tese de mestradointitulada Migrantes, Em igrantes eBrasileiros (1834-1926), o investi-gador Miguel Monteiro procurou orasto dos indivíduos que duranteesse período saíram de Fafe. Umtrabalho que retoma uma pesqui-sa efectuada pelo autor, antes dafrequência do Curso de Mestradoem História das Populações.

Em 1991, a publicação de Fafedos Brasileiros – um a perspect ivah ist ó r i ca e p at r im on ia l , MiguelMonteiro apresenta informaçõesvariadas sobre o papel desempe-nhado pelos “brasileiros” de retor-no na comunidade local, com dife-rentes repercussões na dinâmicasocial e urbanística de Fafe. Areceptividade evidenciada por di-ferentes quadrantes científicos le-vou Miguel Monteiro a abraçar odesafio de aprofundar a problemá-tica emigratória, enveredando poruma visão mais micro-analítica.

Recorrendo a fontes manuscri-tas como guias de trânsito e outradocumentação referente aofenómeno da mobilidade existen-te no Arquivo Municipal de Fafe, noGoverno Civil de Braga e em arqui-vos particulares, Miguel Monteiroprocurou reconstituir as trajectóri-as daqueles indivíduos que aban-donavam, na maior parte dos ca-sos temporariamente, a sua comu-nidade de origem. Neste fluxo mi-gratório, o investigador, na suatese de mestrado, identifica duasrealidades distintas, “aqueles quepartem para outras regiões dopaís, num processo de migraçãosazonal, e aqueles com caracterís-ticas sociais mais vincadas querumam ao Brasil, aí permanecemalgum tempo, e regressam à suacomunidade – os brasileiros”.

Enquanto ao primeiro caso apa-recem associados homens com ca-tegorias profissionais indife-

renciadas, no segundo, “são so-bretudo proprietários, agriculto-res, cirurgiões e negociantes quesaem e retornam, permitindo queos seus filhos, a geração seguin-te, implementem mudanças no es-paço social, com umarepresentatividade bem definidanas mais importantes instituiçõeslocais e alterações nas tradiçõesvigentes”.

Ultrapassado o trabalho queconsubstancia a dissertação demestrado, apresentada em 1996,Miguel Monteiro está a preparar atese de Doutoramento sobre amesma temática, embora procuran-do uma dimensão mais ampla dofenómeno migratório. Além das tra-jectórias dos indivíduos querumaram ao Brasil, o investigadorpretende também conhecer osimpactes provocados pela emigra-ção para outros destinos, como aFrança e outros países de acolhi-mento dos habitantes de Fafe.

Na senda das investigações jáefectuadas, a Câmara Municipal deFafe convidou Miguel Monteiro aelaborar o projecto do Museu daEmigração e das Comunidades Por-tuguesas. Trata-se de uma iniciati-va que conta com o apoio da Se-cretaria de Estado das Comunida-des Portuguesas, aberta à colabo-ração com outros municípios e en-tidades que queiram participar noprojecto.

No fundo, elucida o investiga-dor, a ideia que preside à organi-zação da proposta visa areconstituição da história de vidados emigrantes, através da cria-ção de uma base de dados o maiscompleta possível desses indiví-duos que saíram de Fafe.

Bibliografia do investigador:

-Fafe dos Brasileiros (1860-1930 ) – per spect iv a h ist ór ica epat r imonial, Fafe, 1991

- “Cultos e Ocultos de Mon-te Longo”, separata – Minia, Braga,1995, pp. 103-135

- “Migrantes e Emigrantesde Fafe (1834-1926) – Territórios,Estrutura Social e Itinerários, Fafe”,Primeiras Jornadas de História Local,Fafe, Câmara Municipal de Fafe,1996, pp.373-419

- “Migrantes, Emigrantes eBrasileiros” Actas do 2º CongressoHistór ico de Guimarães, vol. 7, Câ-mara Municipal de Guimarães – Uni-versidade do Minho, 1996, pp. 285-330

- “Mobilidade geográfica edesigualdade social – Brasil desti-no de distinção”, Bolet im de LaAsociacón de Demografia Histór ica,XVI – I, Asociación de DemografiaHistórica, 1998, pp. 95-136

- “Migrantes e Emigrantesde Fafe: dois comportamentos so-ciais diferenciados”. Actas do Con-gresso I nternacional de DemografiaHistór ica, Logroño, 1998

- “Marcas da arquitectura deBrasileiro na paisagem do Minho”,O Brasileiro Torna Viagem , ComissãoNacional para as Comemoraçõesdos Descobrimentos Portugueses,Lisboa, 2000

- “O Publico e o Privado”, OBrasileiro de Torna Viagem , Lisboa,Comissão Nacional para as Come-morações dos Descobrimentos Por-tugueses, Lisboa, 2000

- Migr an t es, Em ig r an t es e“Brasileiros” (1834-1926) , Fafe, ed.Autor, 2000. •

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apontamentos de investigação Miguel Monteiro

O Brasil como destino de emigração

Não são conhecidos muitosestudos que, sem descurar a es-trutura sócio-económica e polí-tica, se debrucem sobre as di-versas vertentes das migraçõese do retorno vistos como práti-cas e representações sociais di-ferenciadas, com efeitos visíveisnas trajectórias de mobilidade e/ou reprodução social.

O facto de as migrações emPortugal apresentarem aspectosde regularidade e persistência,com variações regionais e sazo-nais, e assumirem característicasgerais e contornos específicos,impõe o aprofundamento da suainvestigação, nas vertentes so-ciológica, antropológica e histó-rico/demográfica.

Deixando de lado concepçõesmíticas sobre o carácter aven-tureiro dos “Lusitanos”, a tradi-ção científica dominante tem vin-do a reproduzir a ideia de que aemigração para o Brasil era cons-tituída, predominantemente, porindivíduos de estratos sócio-eco-nómicos desfavorecidos, que fu-giam à condição de pobres.

Porém, em “Migrantes, Emi-grantes e “Brasileiros” (1834-1926) - Territórios, Itinerários eTrajectórias”, (Monteiro, 1996),apresentei argumentos julgadosbastantes para dizer que os gru-pos sócio-profissionais médio ealto, ocupados em diversos sec-tores, no século XIX e primeirasdécadas do XX, constituíram ogrupo predominante dos que emi-gravam para o Brasil.

Alguns, depois de uma longaestadia no Brasil, regressavamcom sucesso definitivamente aFafe: eram os filhos da elite localde proprietários, que confirmam,reproduzem e reforçam os esta-tutos sociais dos ascendentes.

Por outro lado, os que prati-cavam a migração interna sazo-nal, predominantemente para oAlentejo e Carvoarias da Chamus-ca, eram os de mais baixa condi-

ção social (criados, trabalhado-res e jornaleiros). Ou seja, taissituações diferenciadas deverãoinduzir à construção de uma ti-pologia dos migrantes, evitandoassim generalizações abusivas oudiscursos ideológicos sem supor-te factual.

Para além das diferentes ver-tentes e aspectos que distinguemo ciclo do fenómeno migratório,outras diferenças existiram, ten-do em conta a idade, o sexo, oestado civil, a saída directa de

Fafe para o Brasil, a saída para acidade do Porto como lugar in-termédio de saída para o Brasil.

Acresce ainda que, em “Fafedos «Brasileiros» (1860-1930) -Perspectiva Histórica e Patrimo-nial, (Monteiro, 1996)”, procureiindagar a dimensão material eimaterial do retorno, visível naconstrução das casas dos “Bra-sileiros”, da filantropia pública esocial, do investimento de capi-tais nas primeiras indústrias lo-cais, como evidências de práti-cas e representações de um novoestatuto social: o “brasileiro”“burguês, “capitalista”, publica-mente assumido sob a forma decomendador.

Nesse primeiro trabalho pro-curei ainda percepcionar alguns

aspectos da estruturação urba-na e a respectiva configuraçãodas praças, ruas e jardins; su-gerir alguns indicadores da es-trutura social, administrativa,cultural e económica decorrenteda acção daqueles emigrantes deretorno; identificar as iniciativasindustriais/empresariais dos “bra-sileiros”; enunciar algumas carac-terísticas arquitectónicas e de-corativas das suas casas; pro-ceder à localização cartográficadas casas urbanas e identificaros seus proprietários/construto-res, designadas de “brasileiro”,bem como os equipamentos so-ciais a eles devidos; enumeraralgumas notícias do jornal “ODesforço” sobre a personagem do“brasileiro”.

Nesse trabalho reduzi ao mí-nimo a intervenção analítica,apresentando extractos de tex-tos, de documentos e imagensda época, ilustrando as principaisiniciativas dos “brasileiros” e domunicípio durante o período emestudo.

Surpreendentemente, e ultra-passando as modestas finalida-des e objectivos do referido tra-balho, a imprensa portuguesa, dobrasil e algumas revistas nacio-nais, nomeadamente das univer-sidades produzirem um conjuntode recensões e críticas, cujapertinência me conduziu à Uni-versidade do Minho onde encon-trei o suporte teórico, científicoe metodológico para dar respos-tas fundamentadas às questõesque aí eram formuladas.

Como dissemos, na cidade deFafe, existem evidências materi-ais e simbólicas que justificam,só por si, o estudo da emigraçãopara o Brasil. Tais evidências sãoa consequência explícita e visí-vel dos investimentos daquelesque aí fizeram “fortuna” e que,

NOVOS DESTINOS DAEMIGRAÇÃO PORTUGUESA

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Abro este artigo com duastranscrições que servirão de en-quadramento histórico e socioló-gico destas memórias de vida emMoçambique:

1- Sobre o perfil das actuaisnações negras em África, escre-ve o professor Ilídio do Amaral oseguinte a respeito das frontei-ras que geraram os novos paísesafricanos: - A carta geopolít icade Áfr ica result ou de acordosest abelecidos ent re pot ênciaseuropeias que part ilharam o con-t inente depois da célebre Confe-r ên ci a d e Ber l i m d e 1 8 8 4 -1885.Em regra geral, ignoraramos direitos dos povos afr icanos,as suas realidades h ist ór icas,linguist icas e religiosas, e, porvezes, até m esm o a reconheci-da im portância de acidentes ge-

ográficos indelevelmente marca-dos no t er reno. A Áfr ica, m alconhecida, foi tom ada com o umcont inente esvaziado de civiliza-ções. Os Europeus, detentoresdos prodígios da civilização oci-dental, achavam -se em condi-ções privilegiadas e com direitospara definirem as fronteiras dosseus terr itór ios afr icanos, olv i-dando a existência dos Africanos.(Fronteiras Internacionais Africa-nas, p.13, in As Fronteiras deÁfrica, edição da Comissão Naci-onal para as Comemorações dosDescobrimentos Portugueses, Lis-boa 1997)

2-Quanto ao esforço civiliza-dor dos Portugueses em África,Gerald Bender, sociólogo da his-tória de Angola, observou o se-guinte quando ali investigou en-

tre 1968 e 1970: - O Portuguêsencarou o processo de assim ila-ção repart ido por t rês fases: -adest ruição das sociedades t ra-dicionais, seguida pela inculcaçãoda cultura portuguesa e, final-m ente, pela integração dos Afr i-can os d est r i b a l i zad os eapor t uguesados na sociedadeportuguesa. I sto foi precisamen-te o procedimento dos Portugue-ses no Brasil e t odos sabiamcom o os Negros hav iam sidoassim ilados.(Angola under thePortuguese, the Myth and t heReality, Heinemann, London 1978,p. 219-220)

3- Em Angola, os Portuguesesmostraram-se incapazes de rea-lizar sequer a primeira fase doprocesso de assimilação. A sub-

Ser Indígena ou Assimilado(Em Moçambique, até 1961)

argumentos Luís Polanah

em tempo de “Torna- Viagem”ou no seu regresso definitivo, aquise instalaram.

Em “Fafe dos «Brasileiros»(1860-1930) - Perspectiva His-tórica e Patrimonial, 1991”, re-gistei as manifestações culturais,urbanísticas, industriais, familia-res expressas no tecido urbano,sugerindo que a localização es-pacial do concelho, e particular-mente a da antiga Vila e actualcidade de Fafe, onde sempre seencontrou instalado o assento daAdministração Pública concelhia,terá influenciado a escolha feitapelos emigrantes do Brasil, paraque aí viessem a construir os re-ferentes materiais e simbólicosque reflectissem os seus trajec-tos, estatutos e respectivas re-presentações simbólicas.

Não ignoramos que a emigra-ção se reflectiu noutras manifes-tações materiais e simbólicas dis-persas pelas trinta e seis fregue-sias do concelho, as quais, aindaque menos evidentes, se inte-

gram igualmente nos mesmospressupostos estratégicos desaída e retorno.

Assim, para além do Brasilcomo destino predominante daemigração intercontinental, exis-tiram outros destinos migratóriosde carácter regional, particular-mente para o Alentejo, que ex-primiam, por sua vez, estratégi-as sociais e familiares particula-res, que também resultavam dedeterminados constrangimentosque importa certamente apurar.

Contudo, o fenómeno das mi-grações e retorno prolongou-seaté aos nossos dias, apresentan-do, logo após a 1.ª Grande Guer-ra, uma nova orientação no quese refere ao destino, dirigindo-se particularmente para a Euro-pa, atingindo as saídas valoressignificativos depois a 2.ª Gran-de Guerra. Se até à década decinquenta, o Brasil prevalececomo destino emigratório domi-nante, a partir de então são ospaíses europeus e particularmen-

apontamentos de investigação Miguel Monteiro

te a França, o destino principaldos migrantes portugueses e cer-tamente também de Fafe. As mi-grações e o retorno configuram,na diacrónica, a existência decausas e motivações, cuja per-manência marca a natureza es-trutural e interactiva do fenómenomigratório e do retorno.

Deste modo, impõe-se umapesquisa aprofundada que arti-cule a migração, a emigração e oretorno, no quadro de uma ar-quitectura social, económica,política e simbólica que, além dosdiscursos e políticas oficiais, dêconta, não só das próprias moti-vações e vivências, estratégiase discursos dos protagonistasmigrantes e suas famílias, dosecos e efeitos dos empreendimen-tos migratórios nas respectivaspopulações, como também dasnecessidades e potencialidadesdo país de acolhimento, dos cons-trangimentos estruturais, sobre-tudo a nível da microsociedadede Fafe e freguesias concelhias.

O Brasil como destino

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jugação física dos Africanos nãose completou antes das primei-ras décadas do século XX e, talcomo todos os colonizadores emÁfrica, os Portugueses foram in-capazes de erradicar os funda-mentos morais e sociológicos dassociedades africanas.(Ibidem,p.220)

4- Enquanto o número de Afri-canos inscritos nas escolas au-mentou para dez vezes mais du-rante o último quarto de séculodo colonialismo, a fraca qualida-de e rigidez do sistema educaci-onal apenas permitiu a escassos5 por cento dos Africanos inscri-tos completar os quatro anos dainstrução primária. (Ibidem,p.220)

5- O conhecimento que a mai-or parte dos Africanos do meiorural tinha do contacto com osPortugueses não era do tipo quemesmo remotamente contribuís-se para a sua assimilação. Osadministradores locais, os comer-ciantes do mato, soldados, colo-nos fazendeiros e criadores degado pouco interesse tinham naassimilação dos Africanos. Pelocontrário, estavam mais interes-sados em cobrar impostos, an-gariar mão-de-obra barata, im-por culturas comerciais,vigarizando lavradores e criado-res de gado em transacções co-merciais, expropriando terrascomunais e impedindo os protes-to que estas e outras activida-des similaressuscitavam...(Ibidem, p.222)

6- Estas citações da acçãocivilizadora no tempo colonial re-flectem idêntico processo de ac-ção em Moçambique, de que ape-nas me limitarei a esboçar algunstraços das dificuldades que umNegro experimentava para obtero estatuto de equiparado a umcidadão português.

A BUROCRACIA DA ASSIMILA-ÇÃO

Creio ser oportuno proceder a

uma breve reflexão sobre a soci-edade moçambicana no períodocolonial. Como se sabe a popula-ção era predominantemente for-mada por grupos de raça negra(uma grande parte cultural e et-nicamente distinta entre si). Eramos chamados indígenas do terri-tório colonial. Uma vasta multi-plicidade de pessoas e famílias deoutras origens, nomeadamente,asiáticos e europeus, completa-va o quadro populacional da co-lónia.

Do encontro biológico dessasminorias com as mulheres indíge-nas havia resultado uma comple-xa descendência mestiça comcaracterísticas somáticas bas-tante variada, destacando-seentre os mais favorecidos osmestiços de branco. Sob o pulsoda administração portuguesa acoexistência civil foi relativamentepacifica para todos os habitan-tes de Moçambique. Mas esta

tranquilidade foi, talvez, ilusó-ria e fez a autoridade colonialpersistir na sua política colonialsurda e cega ante as transfor-mações que o mundo vinha so-frendo.

Efectivamente, vivia-se comose o ordenamento humano e oseu futuro não pudessem ser dis-cutidos em qualquer das suasmúltiplas vertentes (racial, reli-gioso, económico, cultural, soci-al, etc.). O Estado era proféticoe absoluto no seu direito históri-co, esmagando quem levantassea sua voz para apontar o preci-pício para advertir contra o pre-cipício que aguardava o Impérioalguns passos mais adiante!

Na cúpula da sociedade colo-nial sobressaia a imagem do ho-mem branco como presença que,não tendo grande peso demográ-fico, representava, contudo, ofundador histórico daquela novaentidade regional e herdava odestino dos seus habitantes con-forme ficara decidido na Confe-rência de Berlim, em 1885.

A mobilidade vertical dos es-tratos subalternos era bastantelimitada e, para isso, não só asleis estavam habilmente conce-bidas para não acelerar o pro-gresso das populações como am-plas barreiras de preconceitos efalsas ideias se interpunham pro-tegendo a camada privilegiadaque representava a imagem dasoberania portuguesa. O exem-plo do Brasil e de toda a AméricaLatina era realmente muito incó-modo para a filosofia colonial doEstado Novo, cujo esforço missi-onário, por si só, não se mostra-va capaz para servir os fins dapolítica colonial, mas não apazi-guar as crescentes aspiraçõesdas populações nativas.

O discurso colonial, porém,proclamava que a nação imperialestava empenhada na ascensãosocial e cultural das populaçõesnegras sem outros entraves se-não aqueles derivados da inca-pacidade natural dosafricanos...Era uma esperançaque parecia abrir horizontes desonhos para aqueles poucos que,já conscientes dum certo desti-no colonial, aceitavam a trans-formação dos sistemas de vidatradicionais e desejavam o pro-gresso, assumindo eles tambémo exercício de mais competênci-as, imunes ao risco de qualquertipo de exclusão, a pretexto daraça, origem social, cor da pele,língua ou confissão religiosa.

Porém, as autoridades coloni-ais não tinham percebido que oatraso e clausura cultural dos in-dígenas moçambicanos se rom-pia com a emigração dos traba-lhadores para as minas dasRodésias e da África do Sul, ondeo mais labrusco dos negros to-mava conhecimento das mudan-ças que iam, por esse mundo, naluta por uma relação humana maisequitativa e solidária,

principalmente entre o Negroe o Branco.

Dizendo isto, pretendo apenas

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recordar algumas situações dopassado colonial em que o Negroesbarrava para alcançar um es-tatuto político e social equipara-do ao de um cidadão. O EstadoNovo havia aberto uma portapara o Negro se tornar um cida-dão, aparentemente com os mes-mos direitos de um portuguêsnativo, desde que satisfizessedeterminadas condições num de-creto-lei de 1954.. Mas opostulante africano via, com fre-quência, frustradas as suas pre-tensões, principalmente se nãoencontrasse simpatia por parteda autoridade administrativa queo examinasse.

Possuir a 4ª classe da Instru-ção Primária, saber escrever efalar correctamente a língua docolonizador, apresentar-se de-centemente vestido, ter modossociais de um cidadão, viver numahabitação condigna (não empalhota), não comer no chão ecom as mãos, mas, à mesa, comcolher, faca e garfo, etc., e, sen-do casado, sê-lo segundo as leiscivis dum bom cidadão ou pelaIgreja, constituíam alguns dosmais importantes requisitos paralhe ser outorgado o alvará deassimilado.

Como esta pretensão dos Afri-canos fosse preocupante tantopara o Africano como para asautoridades territoriais a quemnão agradava o afluxo de candi-datos, em sua maioria do sul dacolónia, escrevi, entre 1958 e1959, alguns artigos no semaná-rio O Brado Afr icano, órgão daAssociação Africana da Provín-cia de Moçambique, com a pru-dência que as circunstâncias exi-giam...

Numa desses escritos tereidito: -Não sei até que ponto aexigência de um processo de as-sim ilação se pode justificar. Vá-rios são os sintomas de que, maiscedo do que se presume, essaexigência perversa para o enqua-dramento político e social dos in-

divíduos de culturas diferentes,não terá de ser virá a sersimplificada ou totalmente bani-da, pelas dificuldades que ela

levanta à integração do Afri-cano com os mesmos direitos deum cidadão originário.

Na verdade, não era fácil de-cidir quando um africano indíge-na estava em condições de sepropor como um cidadão- se pelacorrecção como falava a línguaportuguesa, se pela cama em quedormia, se pelas pessoas comquem habitualmente convivia, sepela fatiota que vestia, ou se peloDeus que venerava, os rituais ecrenças africanas de que provas-se haver abjurado...

Quanto ao falar e escrevercorrectamente a língua portugue-sa, tratava-se de saber moderara sua exigência. Para qualquerafricano a língua portuguesa erauma outra língua muito difícil, so-bretudo de a escrever com a cor-recção desejável. Ficava-se aténa duvida de como situar o cida-dão português analfabeto ou pre-cariamente escolarizado, escre-vendo com erros e expressando-se com a linguagem rural da suaregião, onde, certamente, nun-ca chegara a escola!

Por outro lado, a prova de ren-dim ento necessário para o sus-tento próprio e das pessoas defam ília a seu cargo, era uma exi-gência sem sentido, dado o con-ceito de rendimento entre osAfricanos e aquele como era en-tendido pelo legislador colonial.Sabendo-se, para mais, como,por sistema, o salário de um tra-balhador Negro não era nuncaequiparado ao de um Branco. Apretensão do Negro baseava-se,principalmente, na expectativaque ele alimentava de poder vi-ver melhor como assimilado e umvencimento de Branco, num pos-to profissional de nível correspon-dente. Para o Negro representa-va essa conquista vencer a apa-rente fatalidade da sua inferiori-

dade racial, podendo equiparar-se socialmente a um Branco. Eletinha a certeza de que não che-garia a alcançar as condições devida de um europeu, mas sabiatambém que podia estar a alturade enfrentar o Branco no mesmoplano, quando ocorresse algumincidente pessoal. O Negro ali-mentava a expectativa de pas-sar a ser mais respeitado...

A convicção de que o Negroestava longe de possuir as ca-pacidades intelectuais de umBranco era de tal ordem que nosanos 30 ou 40 houve reacçõesde incredulidade quando se sou-be que estava de visita a Mo-çambique um jornalista ou escri-tor negro de S. Tomé! Essa per-sonalidade foi recebida com mui-ta honraria nas estancias com-petentes, e com grande gáudioda massa africana, principalmentemestiça...

Alem disso, só o homem tinhacondições para obter o estatutode assimilado, visto só ele ter maisoportunidades para adquirir ins-trução e no leque de serventiasa que ele podia ter acesso nãohaver lugar para as mulheres. Pormúltiplas razões de caracter es-trutural, a mulher negra estavapresa às obrigações da vida tra-dicional, muito mais do que o ho-mem, cuja mobilidade era grandee a sua importância no mercadodo trabalho publico e privado era,por bem dizer, total.

Para as autoridades portugue-sas o conceito de civilizado pres-supunha comportar-se como al-guém cujas competências e com-promissos sociais tinham de es-tar evidenciados pelos padrões dopaís soberano. Portanto, possuirilustração, consciência cívica dumeuropeu e um comportamentomoral, despojado das crenças epráticas da sua tradição tribal,era fundamental. Tudo o que ficadito vinha expresso ou subenten-dido no referido Estatuto. Ora aprodução de prova para estas

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condições era apreciada pela au-toridade administrativa que, parao efeito, dispunha de um campodiscricionário com que o candi-dato não podia competir. Só estaautoridade era competente paraatestar as capacidades do can-didato. Mas para o processo fi-car completo era também preci-so ouvir a autoridade tradicionalda localidade de nascimento docandidato para que esta infor-masse sobre os antecedentesmorais do candidato.

Na parte que dizia respeito àcultura do candidato, esta provadependia exclusivamente dos di-plomas que apresentasse, do tra-balho que vinha exercendo, etc.e de não ter também anteceden-tes policiais e ser conhecidocomo pessoa de bem e de vidadecente. Do questionário a queo candidato era submetido a au-toridade era tentada a pergun-tar porque requeria ele a cida-dania. Havia-os que respondiamao agrado da autoridade: - Por-que considero que a m inha m a-neira de v iver não é a de umpreto do m ato: com o, visto-m e,com porto-m e, falo, v ivo com oqualquer branco civilizado, m aspobre. Se não vivo melhor é por-que não ganho para isso. Vivercom o um negro do m ato, selva-gem , ou os m eus antepassados,é quero cont inuar a viver! Algunsousavam acrescentar: - Eu nãoestou a dizer que vou deixar deser negro, ficar com o um Bran-co, ou ignorar o resto da m inhagente, parentes e am igos, queperm anecerão indígenas. I ssonão posso! Mas havia outros quese justificavam, dizendo que eramobrigados a pedir a sua assim ila-ção, porque pretendiam concor-rer a um lugar da função publicapara o qual se julgavam

habilitados. Nos Caminhos deFerro havia lugares para os quaisera suficiente possuir a 4ª clas-se, e onde não tinham ingressoBrancos que não fossem porta-

dores duma instrução primaria.Outros candidatos pretendiam serassimilados para poderem auferiro abono de fam ília, a que o res-pectivo lugar dava direito, e as-sim poderem viver em melhorescondições. Quase sempre eramais a ambição de mudar da con-dição de indígena, que já consi-deravam humilhante, para a deum cidadão, ficando assim maisprotegidos contra a arrogância dacamada branca, crescentementemais discriminatória...

Todos sabiam que não era deum dia para outro que alcançari-am maior consideração social...Oassimilado não era portador dumsinal exterior anunciando a suanova condição sócio-política eque o distinguisse de qualquerindígena servindo no meio urba-no. Muito embora deixasse de seidentificar com uma cadernetaindígena para passar a usar umbilhete de ident idade, não esta-va livre de ser interceptado parase identificar. Era apenas munidodesse certificado que o deixari-am ingressar num cinema ou numcafé...Como indígena, nunca!

Nas provas a que eram sub-metidos, apareciam, por vezes,questões insólitas como esta: -Conhece algum a lei sobre terre-nos? Uma pergunta que, certa-mente a maior parte das gentespoderia não saber responder, masque alguns podiam contestar, di-zendo: Quando precisassem , re-cor rer iam às inform ações dosserviços com petentes! A maiorparte dos candidatos não des-conhecia que as leis que regiama distribuição e exploração deterras no âmbito dos povoadostradicionais eram distintas dasque regulavam a propriedade pri-vada, esta apenas acessível aocolono, ou supostamente a umassimilado (se este ganhasse parapagar os encargos fiscais), enunca a um indígena!

Muitos dos proprietários tra-dicionais de terras onde tinham

suas palhotas, criação de animais,lavras e arvores de fruto, nãoestavam interessados em adqui-rir o estatuto de assim ilados por-que, de acordo com a definiçãode assimilado, a sua vida passa-ria a ser condicionada pelas leisaplicadas ao comum dos cida-dãos. Receavam ser alvo de vá-rias pressões sociais capazes deos pôr em conflito com os seusprojectos de vida, a família ou asua aldeia!

Concorrentes houve que pos-suíam o Curso de Professor mi-nistrado na Escola do Alvor, quefalavam e escreviam razoavel-mente bem o português, mas quenão tinham o menor desejo deabandonar o seu estatuto de in-dígenas.

Outra questão inconsequente,que revelava o espirito com quese pretendia dificultar o progres-so civil do Negro, estava paten-te nesta questão que, por ve-zes, era apresentada aos candi-datos: - Qual foi a lei prom ulga-da durante o governo do snr .General Bet tencourt , a qual be-neficiou a m ulher indígena? Opovo não lia os boletins oficiais,como a maioria dos cidadãos.Quantos Portugueses (homens emulheres), ilustrados, a conhe-ceriam? E que benefícios teriamsido esses para a mulher indíge-na que um candidato devesseconhecer para merecer a cida-dania?!

Noutros casos, faziam estapergunta alternativa: - Conhecealguma lei do Código Penal?. Ha-via uma noção geral de que aquiloque, consensualmente era con-siderado crime ou transgressão,merecia ser punido. Por isso, al-guns não temiam responder as-sim :- Como indígena sei que nãodevo m atar, nem roubar, nemde qualquer m aneira lesar os in-teresses do m eu próxim o. Com ocristão ainda sei m ais; só nãosei o que diz o Código Penal!

A outros candidatos foi apre-

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argumentos Luís Polanah

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sentada esta questão: - Que di-nast ias teve a Histór ia de Portu-gal? Se naquela época a taxa deanalfabetismo em Portugal ron-dava os 90%, porque seria tãoimportante que um Negro, emMoçambique, para provar a suacapacidade de se comportarcomo um cidadão (e não comoum selvagem) seria mesmo fun-damental conhecer as dinastiasde Portugal?

Não menor era também a pre-ocupação das autoridades colo-niais em contrabalançar a cama-da africana a duras penas evolu-ída com uma substancial presen-ça de colonos precariamente al-fabetizados. Curiosamente a lin-guagem do Africano, mesmo sen-do ele indígena, era mais decen-te do que o falar grosseiro, aindahoje audível, do colono trazidodo interior obsoleto de Portugal...

Contava-se também que aautoridade teria feito, algumasvezes, a seguinte pergunta: -Prom ete abandonar os usos ecostum es indígenas no caso delhe ser concedida a cidadania?Um dos candidatos teria respon-dido assim: - Mas, se, desde quenasci, tenho vivido sem pre emcontacto, com o qualquer afr ica-no, com a m inha gente, m ent i-r ia se dissesse que vou ser com oum Branco! Ter consciência dosm eus deveres com o cidadão nãovai im pedir de eu cont inuar arespeitar as leis das m inhas t ra-dições fam iliares. I sso não signi-f ica que não t enho condiçõespara m e com por t ar com o umcidadão junto da gente civiliza-da! Que posso fazer? O que éque eu posso prom eter depoisde tudo isso? Eu não quero m aisdo que ser t ratado como os Bran-cos t ratam out ros Brancos...

Nesse passado recente, osprincipais protagonistas represen-tavam duas categorias socioló-gicas distintas. Em Moçambique,os Portugueses estavam numasituação de inferioridade numéri-

ca, mas coesos e determinadoseram sociologicamente dominan-tes. Os Negros, pelo contrario, apesar do seu peso demográfico,não tinham a unidade duma na-ção nem um projecto de vida co-lectivo comum dotado de meios,política e sociologicamente pon-derosos, para ousarem medir-secom o colonizador.

Procedendo o candidato Ne-gro da camada dita indígena, eramuito difícil para ele reunir total-mente as condições materiais ecívicas que satisfizessem o quea lei ou a autoridade exigiam dele.No entanto, fazendo apelo aosrecursos da sua aldeia, ao tra-balho da mulher, muitos dessescandidatos potenciais, pela edu-cação recebida numa missão re-ligiosa, mereciam ser assimiladose ser admitidos num lugar deamanuense de secretaria, tele-fonista, guarda-fios ou aspiran-tes dos CTT, motorista, interpretede administração, encarregadode armazém, policia de seguran-ça publica, mecânicos, etc. como vencimento que se daria a umBranco... Mas se acaso fossemadmitidos, eram pagos como in-dígenas sem os suplementos e asregalias correspondentes, a queo lugar dava direito.

Outra das condições para aassimilação do Negro incidia so-bre o seu casamento civil ou re-ligioso, e obrigatoriamentemonogâmico. Porém, devido aimperativos das suas leis tradici-onais, como hoje toda a gentenão desconhece, não era fácilpara o Negro cortar com certosdeveres de ordem familiar, base-ados na descendência e que con-trariavam a moral do colonizador.Em determinadas circunstâncias,o direito consuetudinário exigia,por exemplo, que alguém assu-misse como esposa a viuva doseu irmão e gerasse descendên-cia em nome do falecido. Ou sen-do a primeira esposa estéril, ca-bia aos sogros ceder outra filha

ou moça da mesma linhagem, sema obrigação de o genro se divor-ciar da primeira esposa, ou depagar um suplemento do preçode noiva (lobolo).

Para a filosofia do Negro nãoera por motivos de concupiscên-cia dos homens que um homemse casava com mais de uma mu-lher, coisa que a moral do coloni-zador recusava compreender,entrincheirada em princípios reli-giosos excessivamenteetnocêntricos. O grupo familiarperpetuava-se na descendênciae como a mortalidade era gran-de, um número considerável defilhos assegurava a sobrevivên-cia de herdeiros e sucessoresduma linhagem...

O acesso ao estatuto de as-similado estava reservado ape-nas aos homens, simplesmenteporque a mulher se mantinha pri-sioneira dos filhos por criar e dahorta familiar. Era já num tempoem que a mulher branca dava osprimeiros passos no trabalho forade casa, nos finais dos anos 30e princípios de 40. Mesmo asmulheres negras que eram edu-cadas em missões católicas ouprotestantes, supostamente ini-ciadas para a constituição dumafamília segundo o rito dos civili-zados, não mudavam a sua con-dição de indígena, nem eram apoi-adas e defendidas para formaruma família legal com um homemde outra procedência racial, emparticular com um Português.

Com o estatuto de assim ila-do, instituído pelo Estado Novo,não era fácil para o homem en-contrar meios ou condições paraeducar os filhos numa escola ofi-cial, tão-pouco, fazê-los chegarao liceu existente em LourençoMarques, então, único na coló-nia. Quem vivesse fora dum cen-tro urbano, numa localidadeinterioriana, onde apenas existis-se a escola duma Missão cristã,

seus filhos não tinham qual-quer possibilidade de progredir

Ser Indígena ou Assimilado

argumentos Luís Polanah

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numa formação profissional e cí-vica, senão resignar-se na roti-na de vida no mato, ganhandopratica num oficio qualquer ou,se fosse mestiço e perfilhado, tra-balhando com o pai...

Em parte esta estratégia eranecessária para que ofícios e ex-periências de vida ao nível pri-mário fossem preenchidos essen-cialmente por indígenas e outrosdas camadas maisdesfavorecidas, sendo assim maisfácil entrosar com elementos dapopulação branca menoseducada. Mas também era ne-cessário que noutros patamaresda vida colonial, no comercio, naadministração, nos serviços maisgraduados, no ensino, na eco-nomia, no exercito, etc. come-çassem a ser integrados elemen-tos representativos das minoriasétnicas locais, de quaisquer cre-dos religiosos, cristãos ou nãocristãos...

Ao contrario, o que se cons-truía eram barreiras para dificul-tar o progresso e a integraçãodos f ilhos da terra, não se lhesdando nunca a oportunidade deocupar um lugar na administra-ção publica, com outra visibilida-de profissional, política e social-mente relevante. As pretensõesdum indígena em alcançar o es-tatuto de assimilado também des-pertavam reacções contraditóri-as no meio social indígena. Emalguns, por inveja ou cepticismoquanto aos benefícios possíveiscom a mudança de estatuto so-cial; mas outros orgulhavam-sepor poderem mostrar ao Brancoque a cor de pele, ou a raça,não eram sinais de incapacidadepara um Negro comportar-secomo um civilizado competenteem lugares de quadros públicos,até então vedados aos Indíge-nas. Ocorreram também casos emque, recusado o estatuto de as-sim ilado, o candidato teria pro-curado recorrer da decisão oumanifestado a sua

inconformidade com a decisão daautoridade. Interpretada a suareacção como um acto de into-lerável insurgência do indígena,a autoridade teria punido o can-didato, deportando-o com outroselementos incómodos para SãoTomé, ali silenciados como ele-m entos perigosos, de onde tan-tos jamais haveriam de regressara Moçambique!

Tais ocorrências provavam quenão havia grande vontade porparte dos poderes coloniais empromover uma rápida e salutarintegração social dos naturaisafricanos, cuja condição moralparecia condenada a permane-cer nos estratos subalternos dasociedade que se gerava em Mo-çambique.

Quando aconteciam as situa-ções que acabo de recordar, es-crevi ainda alguns artigos com aintenção de sensibilizar o Gover-no colonial para os problemas queestavam a ser gerados em cer-tos sectores da população afri-cana onde o Negro se apresen-tava muito consciente da sua si-tuação. Sabia-se que facilitaruma maior mobilidade social dapopulação nativa significava abrircaminho a um crescente prota-gonismo do Africano nos diver-sos sectores da sociedade colo-nial. Um risco que as autoridadescoloniais não pretendiam correr,porque certamente tinham cons-ciência das suas debilidades de-mográficas e socioculturais, queo país não tinha pressa em sa-nar.

O problema da discriminaçãoracial era nos finais dos anos 50um facto flagrante na vizinhanação sul-africana. Recordo umincidente ocorrido em 1957 ou1958, entre o Brasil e a África doSul, cujo regime assente numapartheid fundamentalista, eraimplacável, especialmente contrao Negro. A selecção de futebolbrasileira devia defrontar-se coma selecção da União da África do

Ser Indígena ou Assimilado

argumentos Luís Polanah

Sul, neste pais. A fama da turmabrasileira era internacionalmenteconhecida e o interesse era enor-me também entre osmoçambicanos. Quando tudo pa-recia prestes a ser concretiza-do, soube-se que os Sul-africa-nos haviam exigido que fossemexcluídos da equipa brasileira osjogadores de cor, entre os quais(se não erro) jogavam estrelascomo Garrincha ou Didi! A impo-sição dos Sul-africanos fez o en-tão presidente do Brasil,Kubitchec de Oliveira, determinarde imediato o cancelamento doencontro! Os Brasileiros só sedefrontariam com a equipa quetinham, ou não haveria encon-tro! É claro que não houve en-contro!

Este incidente teve uma re-percussão estrondosa e a revis-ta brasileira, mais lida em Moçam-bique, era o Cruzeiro, que fez ecodo acontecimento, com discretarepercussão na imprensa moçam-bicana do sector europeu.

Por outro lado, sempre quetocava a vez de Moçambiquedeslocar-se ao país vizinho, osjogadores de cor eram expurga-dos da selecção. Esta humilha-ção não era comentada pela im-prensa branca e feria a dignida-de da colectividade desportivadominada pelos Africanos. Nãoobstante Portugal recrutar, emMoçambique (e noutras colónias)alguns dos seus melhores joga-dores de futebol, entre negros emestiços!!

A colectividade africana, emLourenço Marques, exultou coma decisão do Brasil. O semanárioO Brado Afr icano aproveitou oincidente para exaltar a coerên-cia dos Brasileiros que repunham,assim, na sua integridade moral,a form a de estar dos Portugue-ses no m undo como GilbertoFreyre tanto exaltara, sem, con-tudo, se fazer qualquer alusão àvergonhosa subserviência dasautoridades moçambicanas! •

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Para compreender o processode feminização do magistério noBrasil é imprescindível remontar-seà história da educação brasileira eda formação dos professores, oque permitirá entender os papéisdesempenhados pela educaçãoformal no transcorrer de sua his-tória, assim como os valores quesempre lhe estiveram subjacentes,que explicam em grande parte afeminização da profissão docentenesse país. Isso, por um lado, pos-sibilitará a compreensão dos pro-blemas que o Brasil enfrenta atéhoje nesse campo, que demanda-rão grande empenho para seremsuperados. Muitas vezes terão queser consideradas situações parti-culares, já que o âmbito do ensinoprimário e normal (destinado à for-mação dos professores para asclasses elementares) praticamen-te somente esteve sob a respon-sabilidade das províncias e, depoisda Proclamação da República(1889), dos estados. Sendo impos-sível referir-se a todos os estados,optou-se por exemplificar o casode São Paulo, que foi mais estuda-do por nós2 .

Durante todo o período colonialbrasileiro, que durou de 1500 até1822, predominou no Brasil umaeducação dirigida à elite, ditadaprincipalmente pelos padres jesuí-tas, que se dedicavam, por umlado, à educação dos filhos das fa-mílias tradicionais voltadas para aactividade produtora rural e, poroutro, a ensinar os meninos indí-genas, como meio de concretiza-ção de sua actividade missionáriade evangelização das populaçõesautóctones. Isso se fazia tanto noscolégios fundados por eles em al-gumas cidades litorâneas, comonas escolas elementares, erigidasjunto aos colégios destinados àformação da elite culta e religiosaou nas aldeias de indígenas recémconvertidos.

Os beneficiários desses dois ti-pos de instrução estabelecidos na

colónia eram somente os indivídu-os do sexo masculino, dentro dospadrões sociais em vigor. As mu-lheres permaneciam em casa, deonde saiam exclusivamente paraas práticas religiosas e festas daIgreja. Segundo relatos da época,“os primeiros mestres se dedica-vam apenas a ensinar os varões,já que para as mulheres não fica-vam bem as artes e a leitura. Ain-da em pleno ciclo do Bandeirismo(século XVIII), ao nomear-se umtutor, ele se comprometia a ensi-nar aos machos a ler, escrever econtar e às fêmeas, a costurar, la-var, fazer compras e demais miste-res que as mulheres fazem porsuas mãos”3 . No próprio séculoXIX, depois de haverem as mulhe-res conquistado o direito de ler, ha-via muitos pais que as impediam“para não aprenderem o que nãodeviam saber”4 . Sua condição deignorância intelectual não as dife-renciava das mulheres de Portugal,que também raramente aprendiama ler e escrever. A timidez e a igno-rância foram seus traços caracte-rísticos até o século passado, so-mente combatidas pelos jesuítasque, em seus sermões na luta con-tra o concubinato, eram a únicaforça que se opunha contra a au-toridade e a omnipotência do gran-de senhor rural.

Nos primeiros séculos da colo-nização distinguiam-se, como mes-tres, em primeiro lugar, os religio-sos jesuítas, professores das pri-meiras letras, a cuja tarefa se de-dicavam inclusive antes de seremordenados sacerdotes. Depois desua expulsão em 1759, por inicia-tiva do Marquês de Pombal, minis-tro do rei de Portugal D. José I,passaram a exercer essa função osmembros das outras ordens religi-osas instaladas no país, queatufavam em escolas monásticas,os capelães de engenho5 e algunspoucos “mestres-escolas”, leigosnomeados para cobrir os lugaresvagos6 .O estado do ensino era la-mentável, conforme o informe deprofessores nomeados para visitaras aulas e informar ao governo por-tuguês a respeito. As vagas nasescolas de primeiras letras erampreenchidas por pessoas não pre-

paradas e sem instrução, já que acapacidade avaliada para o desem-penho da função se resumia à pos-sibilidade de ler e escrever com“boa letra”. Esses mestres legaramaos professores atuais odesprestígio da profissão, assimcomo uma tradição de má remune-ração conjugada com a não prepa-ração e inclinação para improvisa-ção.

A escola desempenhou, na so-ciedade colonial, inicialmente umafunção de internalização de valo-res, de natureza principalmentereligiosa e moral, ao mesmo tem-po em que transmitia, através dela,a tradição cultural portuguesa. Ain-da que tenha havido ao lado des-sa transmissão de valores tambémalfabetização, esta não derivou deuma necessidade social e, portan-to, não se pode falar do desempe-nho do papel de ensino da escritapor parte da escola. Em relação àclasse elevada, ainda que não hajaatingido todos os seus membros,teve principalmente um papel decultivo, exercendo, pois, uma fun-ção de prestígio. A educação rece-bida era, essencialmente, um bemde consumo, que somente aospoucos se foi expandindo e aten-dendo a camadas mais amplas,constituindo um potencial que, noséculo XVIII, complementado porestudos na Europa e sob a influ-ência das ideias iluministas aí en-tão disseminadas, começou a re-velar-se de forma crítica no com-bate ao poder da metrópole atra-vés de diversos movimentos revo-lucionários de cunho separatistaque irromperam na colónia. Segun-do F. de Azevedo, o estudo, “quan-do não era um luxo do espírito,para o grupo feudal e aristocráti-co, não passava de um meio declassificação social para os mesti-ços e para a burguesia mercantildas cidades”7 .

A independência em relação àCoroa portuguesa somente se re-flectiu muito lentamente na educa-ção da nova nação. Todo o esforçodo governo imperial foi empenha-

Formação do corpo docente e valores na sociedadebrasileira: a feminização da profissão

argumentos Maria Christina S. Souza Campos

INTRODUÇÃO

A ACTIVIDADE DOCENTENO PERÍODO COLONIAL

A INDEPENDÊNCIA E SEUSREFLEXOS NA FORMAÇÃO

DE PROFESSORES

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do principalmente no desenvolvi-mento do ensino superior, até en-tão proibido de se instalar na coló-nia, sem haver uma base sólida queo sustentasse em forma de umaescola média preparatória a essenível de ensino. A urbanização de-corrente da instalação do poderpolítico no país e a transformaçãolenta dos valores e padrões decomportamento levaram à apariçãodas primeiras escolas secundáriaspara senhoritas. Como a situaçãodo ensino continuava calamitosa,começou-se a pensar em formar osprofessores que deveriam actuarnas escolas elementares e foramdados os primeiros passos para odesenvolvimento de um sistemaeducacional no Brasil.

A primeira lei que estabeleceulinhas gerais para a instrução nopaís independente data de 1827,determinando, entre outros pon-tos, que se instalassem escolasprimárias em todas as cidades, vi-las e lugares mais povoados e seautorizando a abertura de escolasde meninas, cargos que deveriamser cobertos por mestras de meni-nas. Continuava, pois, dominantea ideia de uma educação distintapara ambos os sexos e, ainda queessa lei procurasse dar melhorescondições de trabalho aos mes-tres, aumentando-lhes a remune-ração e exigindo concurso para oingresso no magistério público,como não havia escola de prepa-ração para a actividade docente,essa exigência legal permaneceusem eficácia.

Como a responsabilidade pelainstrução, de acordo com o AtoAdicional de 1834, passou a serdas províncias no âmbito primárioe secundário, a desigualdade en-tre as diferentes regiões logo setornou muito evidente. Entretanto,a ambiguidade do texto legal fezque os governos das unidades fe-derais interpretassem como de suaresponsabilidade somente o ensi-no primário e a formação do ma-gistério para o mesmo, visto comoextensão daquele. Algumas provín-cias decretaram a obrigatoriedadedo ensino primário, mesmo que emoutras tenha permanecido comooptativo.

Nessa época a escola exercia

basicamente uma função de pres-tígio na sociedade, visando à for-mação das elites. Com a expansãodo serviço público, entretanto, pas-sou a ter também um papel demediação na formação profissional,que não derivava somente de ne-cessidades reais de conhecimentosistemático especializado, mastambém ultrapassando largamen-te esse âmbito, servindo principal-mente como meio de ascensão so-cial para a camada livre não direc-tamente relacionada com a aristo-crática família ligada à proprieda-de rural. Havendo se iniciado umarelativa expansão da escola ele-mentar, a função de alfabetizaçãocomeçou a mostrar-se mais evi-dente, enquanto que ainternalização de valores perdeusua importância no contexto socialcom o passar da fase inicial de for-mação da sociedade.

De acordo com Silva, “a compre-ensão da importância do problemada formação dos professores pri-mários, enquanto condição do de-senvolvimento da educação popu-lar, ocorreu no Brasil em fase rela-tivamente tardia e de forma len-ta”8 . A primeira escola normal doBrasil data de 1835, havendo sidoa primeira da América Latina e,enquanto instituição pública, a pri-meira do continente americano,pois as existentes nos EstadosUnidos eram organizações priva-das9 . Somente muito lentamenteforam criadas escolas nas diversasprovíncias brasileiras e as datas di-vergem um pouco ao se confron-tarem diferentes autores. É preci-so notar, no entanto, que essa di-vergência pode ser devida, princi-palmente, ao fato de que transcor-ria muitas vezes bastante tempoentre a data de apresentação doprojecto, a lei que decretava suacriação e sua instalação efectiva,reflectindo directamente as conse-quências da descentralização doensino, instituída pelo Ato Adicio-nal.

As primeiras escolas normais,surgidas no século XIX, seguiam omodelo francês – ainda que bas-tante bem distantes deste – e nãopoderiam escapar às mesmas ca-racterísticas dos outros estores eníveis de ensino. Essa formação

era ministrada de uma forma mui-to difusa, sem nenhum método queindicasse uma maior preocupaçãocom a preparação dos professores.Reflectia uma tendência geral daépoca de que o magistério nãoconstituía uma profissão, mas sim,uma vocação, para a qual eramnecessárias dedicação, qualidadesmorais e aptidão. Conhecimentosespecializados não eram muito im-portantes e um sinal disso foi aausência da disciplina Metodologiado Ensino muitas vezes, que nãoaparecia no conjunto das discipli-nas existentes no currículo da es-cola normal. A visão da suficiênciada preparação empírica do profes-sorado todavia permanecia a mes-ma, limitando-se a uma repetiçãodo currículo das escolas elementa-res, somando-se a uma metodolo-gia superficial de alfabetização.

Uma boa parte das primeirasescolas normais era destinada ex-clusivamente ao sexo masculino,como era comum nessa época emtodos os níveis de ensino, somen-te mais tarde surgindo cursos des-tinados à formação de professoras.Sem dúvida, data de 1830 um pro-jecto de lei determinando que “nomagistério primário das escolaspúblicas se dará preferência àsmulheres”10 , somente aos poucoselas puderam frequentar as esco-las formadoras e somente aos pou-cos passaram a dominar sua clien-tela. Nota-se uma contradição nosvalores então vigentes na socieda-de: de um lado, o sexo femininoencontrava dificuldades considerá-veis de acesso ao ensino, pois aeducação formal não era conside-rada necessária para as funçõesque iria desempenhar na socieda-de; por outro, o exercício da activi-dade docente, especialmente noque se refere às crianças, era vis-to como sendo função própria dasmulheres, para a qual teriam habi-lidades inatas.

A sessão feminina da escolanormal de São Paulo, criada em1847, nunca funcionou e somentevoltou a ser aberta efectivamenteno ano de 1875. Inicialmente sur-giu como meio de encaminhar assenhoritas órfãs criadas no Semi-nário das Educandas, a expensasde donativos públicos e particula-

argumentos Maria Christina S. Souza Campos

Formação do corpo docente e valores na sociedade brasileira

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res. Todas aquelas que, aos dezoi-to anos, não tivessem sido pedi-das em casamento e não quises-sem se empregar como domésticasem casas de famílias de bons cos-tumes, deveriam ser colocadas noslugares vagos para o sexo femini-no. Delas não se exigia nenhumexame, mas sim aptidão para omagistério, ainda que não fique cla-ro como seria verificada tal aptidão.Provavelmente essa aptidão eravista como tão natural que não seprecisava verificar.

Um relatório do presidente dapresidente da província em 1852mostra que o destino das mulhe-res na época somente apresenta-va duas possibilidades: o casa-mento e o magistério11 . Esta acti-vidade, considerada adequada aosexo feminino, de acordo com ospadrões familiares e morais daépoca, seria uma espécie de pro-longamento das actividades do lar.Dada a existência na época deduas únicas instituições destinadasao acolhimento de órfãs em SãoPaulo e devendo ser grande a bus-ca de lugares nelas e, por outrolado, não podendo as autoridadessimplesmente colocar na rua mo-ças sem destino, o encaminhamen-to do sexo feminino inicialmentepara o magistério aparece, possi-velmente, como uma forma deabertura de vagas para novas pre-tendentes nos seminários de órfãs.Em 1862, um relatório de outro pre-sidente da província voltava aabordar o assunto, destacando anecessidade de instituir-se de qua-tro a seis dotes para as moças doSeminário das Educandas “paraque possam sair da lá para um dosdois destinos mais naturais (negritoda autora) da mulher: casamentoou professorado”12 .

O currículo da primeira escolanormal feminina em São Paulo émuito elucidativo a esse respeito:Gramática da Língua Nacional, Arit-mética Teórica e Prática até as qua-tro operações, Princípios da Dou-trina Cristã, Língua Francesa, Mú-sica Vocal e Instrumental. Ainexistência de matérias de natu-reza pedagógica deixa entreverprovavelmente a ideia de que àsmulheres estava inerente a “artede educar”, enquanto que a pre-

sença da Língua Francesa e Músi-ca mostra que essa escola tenta-va imitar a educação dada pelaspreceptoras às jovens no seio dasfamílias abastadas.

Em 1875 a sessão masculinadessa escola tinha trinta e três alu-nos, dos quais vinte e cinco foramaprovados. Em 1876 esse númerose elevara a setenta e cinco noprimeiro ano e vinte e cinco no se-gundo, no entanto na sessão fe-minina havia quarenta e nove alu-nas matriculadas13 . Por medo deque brevemente a província pudes-se estar formando maisnormalistas do que poderia pagarcom os escassos recursos do or-çamento, já em 1876 uma lei (nº55) estabelecia requisitos “mais ri-gorosos” para a matrícula no cur-so normal de São Paulo: ser maiorde dezoito anos (diferentementede dezasseis, como antes), termoralidade notória, saber ler, es-crever e as quatro operações arit-méticas e praticar a doutrina cris-tã. Por essa lei foi designada umavaga de primeiras letras para osexo masculino e outra para o fe-minino, enfatizando-se os exercí-cios práticos. Também por essa leias mulheres passaram a poder daraulas para crianças do sexo mas-culino de até dez anos. Em 1877foi expedido um novo regulamen-to para essa Escola Normal, destavez incluindo já as duas secçõespara ambos os sexos com os mes-mos professores, mas com funcio-namento separado. Em maio de1878, entretanto, devido às dificul-dades criadas pela falta de recur-sos, a escola foi fechada provisori-amente, até que fossem votadosos fundos necessários para seufuncionamento regular. No curtoperíodo de funcionamento da Es-cola Normal de São Paulo antes desua abertura definitiva em 1880,ela formou quarenta e seis alunos,dos quais trinta e nove do sexomasculino e sete do feminino.

Sua reabertura definitiva em1880 trouxe uma novidade impor-tante, que foi o estabelecimento declasses mistas para os dois sexos,sem levar em conta a reacção dadirectora do Seminário da Glória -instituição para meninas órfãs queas enviava para a Escola Normal a

fim de que adquirissem uma quali-ficação profissional adequada - queameaçou tirar as educandas ma-triculadas. Essa ameaça, entretan-to, não surtiu efeito, pois a deci-são do presidente provincial per-maneceu inalterada, forçando aaceitação das classes mistas. En-tretanto, essa decisão foi objectode muitas discussões e críticas,tanto por parte de um director in-terino da escola em 1883, como depresidentes provinciais em seusdiscursos na Assembleia Provinci-al, que não perdiam oportunidadede criticar o sistema de aulas mis-tas. Foi o caso do Conselheiro JoãoAlfredo, que considerava que nãodevia prevalecer o sistema de clas-ses mistas, embora defendesseuma formação intelectual mais am-pla para as mulheres e a supera-ção dos preconceitos que impedi-am o acesso do sexo feminino àsactividades produtivas14 , o que fazsupor que a forte oposição àcoeducação na escola normal nãoderivava da vontade de conservara mulher presa ao lar, mas prova-velmente a convicção a respeitodos prejuízos para o sexo femini-no do contacto mais íntimo com osexo oposto. Em outro discurso,esse mesmo presidente se referiaao atraso do ensino na província,cujo remédio seria, entre outros, amultiplicação das escolas normaise a ampliação da participação fe-minina na actividade docente. Per-cebe-se que nessa época já secomeçava a ver o interesse de es-timular a orientação das mulherespara as escolas formadoras de ma-gistério primário, entre outros mo-tivos, certamente pelo fato de quea má remuneração paga aos mes-tres não poderia atrair os repre-sentantes do sexo masculino, queprecisavam sustentar a família,além de considerarem a mulhercomo tendo as qualidades inataspara o desempenho da actividadedocente.

Essa mentalidade estava pre-sente em todo o país. O exercíciodo magistério não se constituíanuma profissão, sim verdadeira-mente numa vocação. Segundotoda a tradição cristã, o trabalho eespecialmente o ensino eram en-carados não como “uma combina-

argumentos Maria Christina S. Souza Campos

Formação do corpo docente e valores na sociedade brasileira

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ção de realizações específicas oucapacidades e habilidades para seatingirem essas realizações”15 ,mas uma vocação que deveria serseguida de acordo com a inclina-ção e talento de cada indivíduo, emresposta a um chamado interior deorigem divina. Em diferentes rela-tórios dos presidentes das provín-cias dirigidos às Assembleias, as-sim como nos dos Inspectores Ge-rais de Instrução Pública percebe-se uma linguagem denotando essavisão. Em 1870, o Ministro do Im-pério assim se dirigia às Câmaras,descrevendo o lamentável estadodo ensino: “em nenhuma provín-cia satisfaz seu estado... pela fal-ta de vocação para o magistério,pelo zelo e dedicação dos profes-sores”16 . Do mesmo modo se ex-pressava na lei n.º 54, de 15/04/1868, de São Paulo: “Os [profes-sores] que não demonstram voca-ção para o ensino, com aproveita-mento dos alunos, perderão [a gra-tificação concedida pela li ao ma-gistério]”17 .

O presidente da província deSão Paulo, em um relatório àAssembleia provincial de 1873, di-zia: “O professorado se rebaixouao ponto de não ser mais um sa-cerdócio, e sim exclusivamente umgénero de vida, uma indústria e umcomércio”18 . A impressão que setem é que a criação de uma sériede escolas normais em diversasprovíncias obedecia mais à vonta-de de não ficar atrás de outras quejá haviam decretado sua criação,sendo, portanto, mais uma ques-tão de prestígio que propriamenteresultado do desejo de atender àsnecessidades prementes de for-mação do magistério primário. Aprópria acentuação da necessida-de de se provarem os bons costu-mes dos candidatos para a inscri-ção nas escolas normais, que podeser encontrada na legislação vigen-te em todas as províncias, reflectemuito mais uma preocupação evi-dente na época com os padrõesmorais do que com a necessidadede uma base prévia de conheci-mentos. Nas diversas escolas nor-mais procurava-se dar aos alunos-mestres uma formação rápida, logoa seguir ao ensino primário, comoforma de prolongamento da cultu-

ra geral e uma sumária formaçãotécnica, reduzida a questões mui-to gerais de Pedagogia, sem ne-nhum significado profissional. Paraensinar, segundo a concepção ge-neralizada da época, bastava sa-ber o conteúdo do ensino a sertransmitido. Como ensinar, toda-via, não chegava a constituir umapreocupação dominante. “A des-preocupação com que qualquerpessoa, no Brasil, se arroga o títu-lo de professor e, mais, o fato denossos costumes e nossas leis otolerarem demonstram que, na pró-pria consciência pública, não há di-ferenças para os que tinham pas-sado por um instituto de prepara-ção para o magistério. Compreen-de-se, assim, que se pode chamarde “professor” qualquer um, saibaou presuma saber, e não somente‘ao que saiba ou deva saber ensi-nar”19 . Na prática, como a activida-de docente era muito mal remune-rada, acabava atraindo, em muitoscasos, simplesmente aqueles quepodiam exercê-la como actividadeparalela ou que tinham a famíliapor trás como apoio (é o caso dasmulheres, como aos poucos foiacontecendo) ou, ainda, os quenão haviam encontrado qualqueroutra actividade mais bem remu-nerada.

O quadro abaixo mostra que aofinal do governo imperial não ha-via ainda predomínio do sexo fe-minino entre os alunosnormalistas, tendendo ora para umsexo, ora para o outro o maior nú-mero de matrículas, mas já se pre-nunciava a feminização, conside-rando-se o número de matrículas

desse sexo na escola preparató-ria ao curso normal já em seu pri-meiro ano de criação (1880), esco-la essa que funcionava anexa àEscola Normal (cinquenta e cincohomens e setenta e duas moças)20 .

Ao fim do Império, podiam serencontrados os seguintes tipos deprofessores de escolas elementa-res: os formados pelas escolasnormais, que eram em certas pro-víncias obrigados a prestar concur-so e em outras não (como São Pau-lo), a não ser em casos de mais deum candidato a um lugar vago; pro-fessores nomeados posteriormen-te ao concurso, cuja seriedade va-riava bastante de um lugar paraoutro e professores contratadosprovisoriamente para cobrir os lu-gares vagos. Segundo Tanuri, apreferência pela admissão de alu-nos pobres como professores ad-juntos ou auxiliares, constatadaem quase todas as províncias, sedevia ao “hábito de considerar omagistério, não como refúgio dosmais capazes, senão como apoioaos mais pobres”21 . Tal ideia podeestar também na base das medi-das que destinavam as senhoritaseducadas nos seminários de órfãs,na impossibilidade de contrataremcasamento por falta de dote, aomagistério.

A má remuneração dos profes-sores, que não é fenómeno exclu-sivo do Brasil, a falta de condiçõesdas escolas e os escassos fundosconcedidos à educação reflectemcertamente o preconceito em rela-ção à actividade educativa, nãoconsiderada como um investimen-

ANOS

ALUNOS MATRICULADOS DIPLOMADOS

Masc.-%

Femin.-%

Total

Masc.-%

Femin.-%

Total

1880

40,98 59,02 61 - - - 1881

60,00 40,00 65 85,71 14,29 7 1882

66,18 33,82 68 55,00 45,00 20 1883

62,37 37,63 93 66,67 33,33 18 1884

58,16 41,84 141

77,78 22,22 18 1885

59,05 40,95 232

59,46 40,54 37 1886

51,55 48,45 291

50,00 50,00 26 1887

52,14 47,86 257

73,08 26,92 52 1888

39,82 60,18 339

50,00 50,00 64 1889

47,78 52,22 293

44,35 55,65 115

Quadro 1Matrículas na Escola Normal de São Paulo de 1880 a 1889

Fonte: Tanuri, 1979, p. 41.

argumentos Maria Christina S. Souza Campos

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to produtivo relevante. Daí a pe-quena importância atribuída à edu-cação, em geral, e aos professo-res, em particular, que não recebe-ram, nem recebem até hoje, salá-rios merecidos nem desfrutam deprestígio na sociedade. A preocu-pação com o equilíbrio do orçamen-to no século passado era tão gran-de e, por outro lado, com a educa-ção muitas vezes tão pequena, quegrande parte dos dispositivos le-gais relativos ao ensino vinham in-seridos em artigos da lei do orça-mento.

Ao longo do período que se es-tendeu desde a chegada da famí-lia real portuguesa (1808)22 até ofim do Império (1889), a evoluçãono sistema de formação dos mes-tres das primeiras letras passoupor três fases bem distintas: de umsimples processo de selecção en-tre os julgados “mais dignos” oucom “mais vocação” para “tão altocargo” passou-se para um perío-do em que essa preparação deve-ria fazer-se na prática, pela obser-vação e aço simultâneas. Posteri-ormente, ao haver-se percebidoque o emprego de certos métodosde base intuitiva não produzia oefeito desejado, começaram astentativas de organização de umensino mais sistemático atravésdas escolas normais. Dado o pe-queno número de candidatos quese dirigiam a essas escolas e onúmero ainda menor dos que de-las saíam formados e o númeromenor ainda dos que, havendoobtido o certificado de habilitação,se dirigiam à carreira para a qualse haviam preparado, continuarama ser escolhidos mestres por meiode concursos ou simples nomea-ções. A história das primeiras es-colas normais constituiu-se em umasérie de tentativas mais ou menosfrustradas para a formação domagistério que se fazia necessá-rio para a provisão de um númeroenorme de cadeiras primárias cria-das, mas vagas por falta de mes-tres. A actividade docente não ad-quiriu prestígio na sociedade pelamá remuneração que oferecia, cri-ando assim um círculo vicioso queimpedia que indivíduos mais bempreparados se dirigissem a ela. Seupapel acabou sendo o de satisfa-

ção de uma necessidade quetampouco era considerada impor-tante, já que a formação da eliteestava assegurada pela existênciados colégios e professores parti-culares. Numa sociedade aristocrá-tica, toda voltada para os interes-ses da oligarquia latifundiária, aeducação popular não chegou aadquirir significação, a não ser noque poderia interessar à classedominante. No caso brasileiro,como a maioria dos serviços eradesempenhada pela mão de obraescrava23 , que estava afastada doensino por dispositivos legais atéquase o fim do Império, o ensinoelementar não chegou a ter rele-vância.

As mesmas ideias que difundi-ram o ideal republicano no país(positivistas) tornaram-se respon-sáveis por uma preocupação acen-tuada com o nível educacional dapopulação e pelas primeiras medi-das no sentido de uma efectivaconcretização em terras brasileirasda mentalidade liberal-democráti-ca surgida na Europa no séculoXVIII. Somente nesse momento,então, é que se tornou patente anecessidade de criação de estabe-lecimentos de ensino normal efici-entes, destinados à preparação docorpo docente das escolas primá-rias em expansão.

1 Professora doutora do Departamen-to de Economia da Faculdade deEconomia, Administração e Conta-bilidade da Universidade de SãoPaulo - FEA/USP, Campus de ribei-rão Preto - e Diretora-Presidente doCentro de Estudos Rurais e Urba-nos - NAP-CERU.

2 Ver a respeito Campos, 1982, 1990,1991.

3 SÃO PAULO, Departamento Estadualde Informações. Centenário de En-sino Normal em São Paulo, 1946,p. 1.

4 Id., ibid, p. 1.5 Os capelães de engenho eram pa-

dres geralmente pertencentes à pró-pria família dos senhores rurais, quedesempenhavam tanto funções re-ligiosas como educativas no com-plexo da propriedade rural.

6 É interessante relatar como ocorreua eleição do primeiro professor nãoreligioso em São Paulo. A primeiraescola pública nessa capitania foifundada em 1768, quando foi en-tregue a José Carlos dos Santos

Bernardes, seu primeiro mestre-es-cola, o “diploma de nomeação”,depois que este havia sido propos-to pela Câmara como pessoa ca-paz e culta e conseguido do gover-nador da capitania o direito a re-muneração a ser paga pelos alu-nos. Foi exigido dele cumprir as leisde ensino e as demais obrigaçõescorrespondentes. Ao mesmo tem-po foi ordenado o fechamento detodas as escolas, cujos professoresnão pudessem apresentar o “diplo-ma de nomeação” (Rodrigues, J. L.,1930).

7 Azevedo, F., 1964, p. 554.8 Silva, 1969, p. 343.9 Bittencourt, 1953, p. 44.10 Moacyr, 1937, vol. 1, p. 229.11 Id., 1939, vol. 2, p. 328.12 Moacyr, 1939, vol. 2, p. 341. A res-

peito da representação vigente nasociedade sobre ser a atividade do-cente uma função adequada aosexo feminino, consultar o livro deBlay (1978) sobre aprofissionalização da mulher na in-dústria em São Paulo, no qual aautora mostra que inclusive as re-presentantes desse sexo ocupan-do funções em atividades industri-ais na região mais industrializadado país consideravam o magistériocomo o melhor lugar para a mulherexercer uma atividade remunerada.Essa imagem foi encontrada tantoentre as profissionais de nível uni-versitário como entre aquelas queexerciam outros cargos que não ode secretária (p. 262ss).

13 Moacyr, 1939, vol. 2, p. 374.14 Moacyr, 1939, vol. 2, p. 396.15 Hartfiel, 1972, p. 70.16 Holanda, 1971, p. 37.17 Moacyr, 1939, vol. 2, p. 352.18 Moacyr, 1939, vol. 2, p. 364.19 Lourenço Filho, 1955, p. 45.20 Rodrigues, J. L., 1930, p. 112.21 Tanuri, 1970, p. 300.22 Por causa da invasão napoleônica,

em 1808, a família real portuguesase transferiu com toda a corte e aadministração do império para oBrasil, o que teve como conseqü-ência mais tarde a declaração da in-dependência por iniciativa do prín-cipe D. Pedro, que se tornou o pri-meiro imperador do país indepen-dente.

23 A escravidão somente foi abolidano Brasil em 1888, um ano antesda proclamação da República.

NOTAS

argumentos Maria Christina S. Souza Campos

NOTA DO EDITOR:A autora deste artigo (cuja publicaçãose conclui no próximo número do Bole-tim) integra o Centro de Estudos Ru-rais e Urbanos, da Faculdade de Eco-nomia, Administração e Contabilidadeda Universidade de São Paulo - FEA/USP, Campus de Ribeirão Preto.

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notícias neps

Organizado pela Câmara Mu-nicipal e pelo Núcleo de Estudosda População e Sociedade daUniversidade do Minho, o III Con-gresso Histórico de Guimarãesesta iniciativa visa “aprofundaro conhecimento histórico dePortugal dos séculos XV e XVIna perspectiva do seu espaçoeuropeu, excluindo a parte re-ferente à expansão portugue-sa”.

Outro dos objectivos desteevento, é o de “estimular a con-vergência da investigação demedievalistas e modernistasem clássicas abordagens his-tóricas”.

O Presidente do Congresso fezquestão de sublinhar que estasiniciativas não têm de tratar ape-nas de temas ou de figuras liga-das à história vimaranense e, porisso, a escolha deste evento re-caiu este ano em D. Manuel I.

De resto, tratou-se de umaescolha consensual na ComissãoCientífica do Congresso cujo pre-sidente é o professor BaqueroMoreno: “significa a escolha deum tema importante na histó-ria de Portugal”.

Recorde-se que D. Manuel Ifoi um dos monarcas cujo reina-do e cuja época “se revela dasmais interessantes efrutuosas de estudar e apro-fundar do ponto de vista his-tórico”. Aliás, tendo em conta umreinado que foi “tão rico e tãovasto”, a Comissão Organizado-ra e a Comissão Científica viu-se

na contingência de instituir umarestrição, a de que não se abor-daria a parte relativa à expansãoultramarina portuguesa.

De acordo com Freitas doAmaral, esta matéria “foi recen-temente objecto deaprofundada investigação”, etem sido abundantemente trata-da noutros Congressos e noutrassedes: “é pois fundamental-mente sobre o Portugal Metro-politano que o Congresso vaifazer incidir a sua análise”.

O Congresso está dividido emquatro secções que trabalharãoseparadamente e cada uma de-las subordinada a um tema. A pri-meira secção tem como tema,“Administração, Justiça e Direi-to” e será coordenada pelo pro-fessor Baquero Moreno. A segun-da secção incidirá sobre “Igrejae Assistência” e será coordena-da pelo professor José Marques.Quanto à terceira secção, temcomo tema “População, Socieda-de e Economia”, estando a coor-denação a cargo das professo-ras Norberta Amorim e Ana MariaRodrigues. Por último, a quartasecção tem como tema “Arte eCultura”, sendo coordenada peloprofessor Fausto Martins.

Com estas matérias, e exclu-indo a parte ultramarina, a Co-missão Organizadora e a Comis-são Científica estão convictas deque o Congresso “abrangerá oessencial” do que se passou noreinado e na época de D. ManuelI, um monarca que está na

III Congresso Histórico de Guimarães, de 24 a 27 de Outubro

D. Manuel I e a sua época

D. Manuel e a sua épocaIII Congresso Histórico de

Guimarães

LocalUniversidade do Minho, Camous

de Azurém, Guimarães.

Data24 a 27 de Outubro de 2001.

OrganizaçãoCâmara Municipal de GuimarãesNEPS – Universidade do Minho

Presidente do CongressoProf. Doutor Diogo Freitas

do Amaral

Comissão CientíficaProf. Doutor Humberto Baquero

Moreno (Presidente)Profª Doutora Maria Norberta

Amorim (Secretária-Geral)Prof. Doutor José Marques

Prof. Doutor José Viriato CapelaProfª Doutora Ana Maria

RodriguesProfª Doutora Isabel dos

Guimarães SáProfª Doutora Maria da

Conceição FalcãoProf. Doutor Fausto S. Martins

“charneira” entre o final da Ida-de Média e o início da Idade Mo-derna. Segundo Freitas do Amaral tra-tou-se de um reinado “particular-mente rico e interessante de to-dos os pontos de vista”.•

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notícias neps

PROGRAMA

1ª SecçãoAdm inistração,Justiça e Direito

CoordenadorProf. Doutor Baquero Moreno

2ª SecçãoI greja e Assistência

CoordenadorProf. Doutor José Marques

3ª SecçãoPopulação,

Sociedade e Econom iaCoordenadoras

Profª Doutora Maria NorbertaAmorim

Profª Doutora Ana MariaRodrigues

4ª SecçãoArte e Cultura

CoordenadorProf. Doutor Fausto

S. Martins

23 de Outubroterça-feira

17h00/23h00Abertura do Secretariado

Entrega de pastase documentação

24 de Outubroquarta-feira

09h00-11h00Entrega de pastase documentação

Cerimóniade Abertura do Congresso

-Auditório Nobre

15h00 - 18h001ª Sessão de Trabalho

18h30Inauguração da Exposição

“D. Manuel e a sua épocanas colecções do Museu”-Museu de Alberto Sampaio

21h45Concerto

pela Orquestra do Norte- Igreja de S. Francisco

25 de Outubroquinta-feira

09h30 - 12h302ª Sessão de Trabalho

15h00 - 18h003ª Sessão de Trabalho

18h30Apresentação da publicação

“Cortes de D. Manuel”, do Cen-tro de Estudos Históricos daUniversidade Nova de Lisboa

-Auditório Nobre

21h45Teatro: “Auto da Índia”, de Gil

Vicente - Teatro OficinaAuditório Nobre da Universidade

do Minho

26 de Outubrosexta-feira

09h30 - 12h304ª Sessão de Trabalho

15h00 - 18h005ª Sessão de Trabalho

18h30Apresentação da

“Base de Dados Genealógicada Cidade de Guimarães”,

pelo NEPS-UM-Auditório Nobre

21h45Ciclo “A Memória do Cinema”

Palavra e Utopia,de Manoel de Oliveira

-Auditório Nobre

27 de Outubrosábado

09h00Feira Medieval de Guimarães

-Centro Histórico

11h30Cerimónia

de Encerramento do Congresso-Paço dos Duques de Bragança

Secretariado

Largo Cónego José Maria Gomes4810-242 GUIMARÃES

tel.: 253 51 83 94fax: 253 51 51 34

[email protected]

III Congresso Histórico de Guimarães, de 24 a 27 de Outubro

D. Manuel I e a sua época

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notícias neps

Acaba de ser lançado o livroMeadela, Com unidade Rural doAlto Minho: Sociedade e Dem o-grafia (1593-1850) , sendo já onº 12 da série Monografias doNEPS.

A autora, Maria Glória ParraSantos Solé, analisa as estrutu-ras sociais e demográficas deuma paróquia rural do concelhode Viana do Castelo, procurandoestabelecer a relação entre aevolução demográfica e socialdesta paróquia, através de umaabordagem comparativa de dife-rentes fontes, desde registosparoquiais, fontes fiscais (con-tribuições da décima), visitas edevassas, testamentos, guias depassaporte, etc.

Para a elaboração da pesqui-sa, Maria Glória Parra Santos Solérecorreu à metodologia de recons-tituição de paróquias. Um méto-do que permitiu cruzar a “basede dados” com outras fontes quepossibilitaram a compreensão doregime demográfico, mas tambéma realidade cultural, económica,social e religiosa desta comuni-dade. Assim, enveredou por umainvestigação de tipo micro-his-tórico, utilizando o nome comoponto de referência e partindo decritérios identificáveis, privilegi-ando o estudo de casos, suscep-tíveis de constituir uma amostrasignifdicativa, reveladores decomportamentos estatisticamen-te frequentes e portanto normais,como pela sua capacidade de re-velarem vivências e práticas hu-manas eventualmente “excepci-onais”.

Segundo a autora, nesta mo-nografia da Meadela, a pesquisaincidiu no estudo demográfico dapopulação, através do estudo dasvariáveis de nupcialidade, fecun-didade, mortalidade e mobilida-de, recorrendo para isso aos re-gistos de nascimentos, casamen-tos e óbitos, que possibilitou re-constituir esta comunidade, para

Um livro de Maria Glória Parra Santos Solé

Meadela, Comunidade Rural do Alto Minho:Sociedade e Demografia (1593-1850)

o período entre finais do séculoXVI a meados do século XVIII.

O crescimento demográfico dapopulação apresentou-se ao lon-go deste período moderado, in-terrompido por fases depressivasno segundo quartel do século XVIIe primeiro quartel do século XVIIe primeiro quartel do século XVIII,resultante de uma diminuição dovolume de nascimentos antece-dida pela diminuição dos casa-mentos e por ligeiras crises demortalidade nas décadas de 1660,1700, 1750, destacando-se agrave crise de 1784. A recompo-sição demográfica iniciada em1766, e que se mantém até ao

fim da observação deve-se emlarga escala ao aumento do nú-mero de concepções/nascimen-tos e à estabilização do fenóme-no da mortalidade. A partir do úl-timo quartel do século XVIII aparóquia da Meadela revela umconsiderável dinamismo demográ-fico.

A nupcialidade na paróquia re-velou um casamento tardio paraambos os sexos, prevalecendo aolongo da observação uma idademédia ao primeiro casamento su-perior da mulher em relação à doshomens.

A elevada idade média ao ca-samento das mulheres não afec-ta, contudo a descendência es-perada numa época de fecundi-

dade não controlada. Encontrá-mos, por isso, uma alta taxa defecundidade, concentrando-senos grupos etários dos 20 aos 34anos. A infecundidade não foi umproblema detectado nesta paró-quia. O mesmo não se pode dizersobre a ilegitimidade, que seapresentou significativa, particu-larmente para o século XVIII.

Relativamente à evolução damortalidade, a investigadoraconstatou a existência de re-gistos de mortalidade infantil parao período de 1720 a 1780 que seapresentou pouco gravosa.Quanto à mortalidade dos maio-res de sete anos, concluiu que aépoca mais afectada por crisescoincidiu com o último quartel doséculo XVIII, registando-se os-cilações de menor amplitude norestante período.

Através da exploração dostestamentos procurámos compre-ender melhor a realidade econó-mico-social, a mentalidade e re-ligiosidade desta comunidade,através dos usos e costumes edas atitudes perante a morte to-madas pelos testadores.

Podemos ainda analisar o fe-nómeno da mobilidade. A limita-ção dos registos paroquiais so-bre as informações acerca damobilidade levou Maria Glória Soléa consultar outras fontes, nome-adamente, passaportes internos(de 1761 a 1767 e de 1808 a1832) e guias de passaporte(1837 a 1850).

Através destas fontes verifi-cou a existência de indivíduos deoutras localidades, fixando-senesta paróquia por motivos quese prendem com questões matri-moniais e/ou laborais. A aberturada paróquia em 1880 é reforçadae generalizada, verificando-seuma maior entrada de mulheresna paróquia. Mas a saída da pa-róquia processava-se também,sendo os destinos mais escolhi-dos Lisboa, Galiza (Espanha) eAlentejo.•

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neps boletim informativo 21 | Setembro de 2001 23

ficha de inscrição neps

IDENTIFICAÇÃO

Nome Data de Nascimento

_____/_____/_________

Endereço

Telefone Fax E-mail

Naturalidade

BI n.º Data / / Arquivo N.º Contribuinte

HABILITAÇÕES ACADÉMICAS

Doutor XX Doutorando XX

Mestre XX Mestrando XX Licenciado

XX Estudante XX

Cursos [indicar instituições e anos de conclusão]

ACTIVIDADE PROFISSIONAL

Profissão

Instituição

Endereço

Telefone Fax E-mail

INTERESSES DE INVESTIGAÇÃO

Fontes XX

Análise demográfica XX Reconstituição de Paróquias XX Registos paroquiais ou de estado civil Outra documentação paroquial Documentação fiscal Passaportes Dotes Testamentos Doações Outra documentação notarial Cruzamento de fontes diversas Migrações História da família Genealogias História da criança abandonada Análise social História da alfabetização Outros

Data Assinatura

_____/_____/_______

Depois de preenchida, esta ficha deverá ser remetida ao Neps, com uma cópia do currículo do investigador.

Autor:

Título:

Publicado Policopiado Inédito Artigo Livro Dissertação Trabalho académico

Editor Ano de edição

Local de edição N.º de páginas

Revista N.º/ano Páginas /

Se se tratar de uma comunicação apresentada em encontro científico, indique a identificação completa do evento (título/temática/secção onde o trabalho foi apresentado; entidade organizadora; local e data de realização):

Resumo

Para que o possa divulgar, o Núcleo de Estudos de População e Sociedade necessita de manter actualizada o seu ficheiro bibliogáficocom as produções dos seus membros. Para tanto, agradecemos que esta ficha seja preenchida e remetida para o NEPS sempre queproduza ou publique um novo trabalho, fazendo-a acompanhar, sempre que possível, por uma cópia do mesmo.

ficha de actualização bibliográfica neps

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Boletim Informativonº 21 n Setembro de 2001

PUBLICAÇÃO DO:NÚCLEO DE ESTUDOS

DE POPULAÇÃO E SOCIEDADEInstituto de Ciências Sociais

Universidade do MinhoPólo de Azurém

Guimarães

DIRECTORA:Maria Norberta Amorim

EDITOR:António Amaro das Neves

COORDENAÇÃO DA REDACÇÃO:Elisabete Pinto

COLABORADORES DESTE NÚMERO:Miguel Monteiro,

Maria Norberta Amorim,Luís Polanah, Maria Christina S.Sousa Santos, Elisabete Pinto,

António Amaro das NevesSECRETARIADO:

Isabel Salgado, Daniel Freitas,Fátima Dias, Natália Silva, Só-nia Fernandes, Vítor Oliveira

DEPÓSITO LEGAL

n.º 125306/98

Núcleo de Estudosde População e Sociedade

Universidade do Minho,Pólo de Azurém

4800-058 Guimarães

Telefone/Fax:253510187

e-mail:[email protected]

Mailling list:•endereço:

[email protected]•subscrição:

[email protected]

http://sarmento.eng.uminho.pt/~nepsO Boletim Informativo do NEPS é

uma publicação bimestral dedicada àdivulgação das actividades do Núcleode Estudos de População e Sociedadee dos trabalhos relacionados com De-mografia Histórica e História das Po-pulações. Agradece-se toda a colabo-ração que nos seja enviada, a qual serásubmetida à apreciação dos editores.Solicita-se o envio de notícias acercade eventos, publicações e investiga-ções nas áreas de Demografia Históri-ca e afins.

Os textos assinados são da exclu-siva responsabilidade dos respectivosautores.

publicações do neps neps

AMORIM, Maria Norberta e CORREIA, Al-berto, Francisca Catar ina (1846-1940) . Vidae Raízes em S. João do Pico (Biografia, Genea-logia e Estudo de Comunidade) , Neps/ICS –Universidade do Minho, Guimarães, 1999.

[3 800$00] - [18,95 €]

BARBOSA, Maria Hermínia Vieira (com acolaboração de Anabela de Deus Godinho),Crises de mortalidade em Portugal, desde me-ados do século XVI até ao início do século XX,Neps/ICS – Universidade do Minho, Guima-rães, 2001.

[1 250$00]- [6,23 €]

CARVALHO, Elza Maria Gonçalves Rodri-gues de, Basto (St.ª Tecla) - Uma Leitura Ge-ográfica (do século XVI à contemporaneida-de) , Neps/ICS – Universidade do Minho,Guimarães, 1999.

[3 800$00]- [18,95 €]

FARIA, Inês Martins de, Santo André deBarcelinhos. O difícil equilíbrio de uma popula-ção – 1606-1910, Neps/ICS – Universidadedo Minho, Guimarães, 1998.

[3 000$00]- [14,96 €]

GOMES, Maria Palmira Silva, Estudo De-mográfico de Cortegaça – Ovar (1583-1975) ,Neps/ICS – Universidade do Minho, Guima-rães, 1998.

[3 000$00]- [14,96 €]

NEVES, António Amaro das, Filhos das Er-vas - A ilegit im idade no Norte de Guimarães,séculos XVI -XVI I I , Neps/ICS – Universidadedo Minho, Guimarães, 2001.

[3 000$00]- [14,96 €]

MACIEL, Maria de Jesus, I magens de Mu-lheres, Câmara Municipal de Lajes do Pico/ICS – Universidade do Minho, Guimarães,1999.

[1 800$00]- [8,98 €]

SANTOS, Carlota Maria Fernandes dos,Sant iago de Romarigães, comunidade rural doAlto Minho: Sociedade e Demografia (1640-1872) , Câmara Municipal de Paredes de Cou-ra - Neps/ICS – Universidade do Minho, Gui-marães, 1999.

[3 000$00]- [14,99 €]

SCOTT, Ana Sílvia Volpi, Famílias, Formasde União e Reprodução Social no Noroeste Por-tuguês (Séculos XVI I e XI X) , Neps/ICS – Uni-versidade do Minho, Guimarães, 1999.

[3 800$00]- [18,95 €]Aos membros do Neps é concedido um desconto de 20% sobre o preço de capa. Os pedi-dos (acompanhados de cheque correspondente ao valor dos livros solicitados) devem serencaminhados para a Secretaria do Núcleo de Estudos de População e Sociedade(Campus de Azurém da Universidade do Minho).

Page 25: Trinta anos - repositorium.sdum.uminho.pt · alicerçar-se uma certeza in-quietante: em Portugal, não era possível a reconstituição de famílias. Nas outras Faculdades de Letras,

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