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    A Organizao Social dosMaxakali

    por Frances Blok Popovich

    Dissertao Apresentada aoDepartamento de Sociologia da

    Universidade do Texas em Arlingtoncomo requisito parcial para obteno do

    Grau de Mestre em Sociologia

    Dezembrode 1980

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    Traduo deHelena Vera Flor

    Reviso de

    Edith Maria Abreu Garcia de Oliveira

    Primeira Edio 1993Edio Corrigida 1994

    Endereo para Correspondncia:Sociedade Internacional de LingsticaDepartamento de Programas LingsticasCaixa Postal 12978900-970 Porto Velho, ROBRASIL

    Composto pelaSociedade Internacional de LingsticaC.P. 3006, Coxip da Ponte78060-200 Cuiab, MTBRASIL

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    PrefcioDe acordo com Darcy Ribeiro, os Maxacali mostram dois tipos de valores em relao ao

    mundo fora da reserva. Enquanto uns tentam desesperadamente manter as tradies da tribo,outros esto conscientemente reorganizando a cultura para conciliar o novo com o tradicional, a

    fim de conservar o velho patrimnio cultural dentro de um novo estilo de vida. Os Maxacalimoram em reservas do governo, sob regime de tutela (1977:360).

    "A tribo indgena maxakali de Minas Gerais o nico grupo do Leste do Brasil queconservou o suficiente da sua tradio cultural, a ponto de permitir um estudo do tipo queestamos abordando..." (Ribeiro, 1967:121). Este estudo est indo mesma direo, se bem queem menor intensidade.

    Os Maxacali conservaram-se essencialmente monolnges. Somente neste ano (agosto de1980), o governo iniciou um programa de educao bilnge com o objetivo de diminuir asbarreiras lingsticas existentes entre a sociedade maxakali e a dominante. Eles esto sendoaculturados no uso do sistema de derrubada e queimada na agricultura. Desde 1939 no houve

    caa e pesca capazes de suprir as necessidades alimentares do povo e nem plantaes suficientespara garantir a sobrevivncia fsica da tribo.

    Hoje existem profundas modificaes nos padres de residncia dos Maxacali. Os maisaculturados esto optando por residncias do tipo de famlias nucleares, sendo que a maioriaainda prefere grupos de residncia melhor descritos como "ambilocais".

    A terminologia de parentesco demonstra a fuso bifurcada da gerao dos pais, havendodistines entre primos paralelos e cruzados. No consegui traar os laos de parentesco alm daquinta gerao do ego.

    O casamento ideal na cultura maxakali o de primos cruzados matrilaterais. Uma pessoacasadoura aquela que, dentro da cultura, no seja da mesma linha masculina do ego. Considera-

    se oficialmente tabu o casamento entre primos cruzados patrilaterais, podendo este ocorrer, svezes, sob o pretexto de ser um relacionamento distante.

    Os Maxakali valorizam sobremaneira um ndice alto de natalidade, o que assegura asobrevivncia da tribo.

    Em fevereiro de 1959, comecei a morar e trabalhar entre os ndios maxakali do Nordestedo Estado de Minas Gerais, Brasil. Durante esses vinte anos, eles tm se mostrados dispostos aensinar sua lngua e cultura. Esses professores so to numerosos que difcil nomear todos, porisso, deixo aqui meus cordiais agradecimentos a todos os Maxakali (tikm'n) que meencorajaram durante esse longo perodo.

    Este estudo foi apresentado e aprovado em 1980, como tese de dissertao para aobteno do grau de mestrado em sociologia pela Universidade do Texas, em Arlington, EUA. Omesmo no poderia ter sido escrito sem a colaborao de seis mulheres mais velhas da tribo,especialistas em parentesco: Joana, Joaquina, Maria, Joan, Alcina e Isabel. Elas me ajudaramespecialmente com as genealogias e os dados de parentesco.

    Sou muito reconhecida e grata banca examinadora. De modo especial, agradeo oestmulo e orientao recebidos do meu orientador, Dr. Joseph W. Bastien. Dr. William R.Merrifield generosamente colocou minha disposio seu conhecimento experiente das

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    terminologias de parentesco, bem como sua prtica em redao. Dr. Marvin K. Mayers, apesarde ter um horrio muito sobrecarregado, tambm participou da banca examinadora e me apoioude muitas maneiras, assim como sua esposa, Sra. Marilyn Mayers. Agradeo ao meu marido,Harold, o toque artstico nas ilustraes.

    Alis, mister reconhecer uma dvida muito grande para com todos os meus colegas do

    Instituto, as igrejas que me sustentam h mais de vinte anos no campo, e, sobretudo, a Deus, aquem devo a minha prpria vida.

    Frances Blok Popovich08 de novembro de 1982

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    NDICEPREFCIO -------------------------------------------------------------------------------------------------3

    Lista de Ilustraes----------------------------------------------------------------------------------------6

    INTRODUO --------------------------------------------------------------------------------------------7Metodologia -------------------------------------------------------------------------------------------------7

    Terminologia ------------------------------------------------------------------------------------------------9

    Uso dos Nomes na Cultura --------------------------------------------------------------------------------9

    Os Maxakali ---------------------------------------------------------------------------------------------- 12

    Localizao das Moradias ------------------------------------------------------------------------------- 13

    Grupo Residencial de Micael---------------------------------------------------------------------------- 20

    Descendncia ---------------------------------------------------------------------------------------------- 21

    Organizao Poltica-------------------------------------------------------------------------------------- 22

    Bruxaria ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 23

    Casamento ------------------------------------------------------------------------------------------------- 24

    Jacy e Gilbertinha----------------------------------------------------------------------------------------- 24

    Benvinda Diz "No"-------------------------------------------------------------------------------------- 26

    Procriao-------------------------------------------------------------------------------------------------- 26

    Terminologia de Parentesco Maxacali ----------------------------------------------------------------- 27

    Termos de parentesco para tratamento ----------------------------------------------------------------- 32

    Reciprocidade e os papis-------------------------------------------------------------------------------- 34

    Os Primos Cruzados Matrilaterais e o Casamento ----------------------------------------------- 39

    A Prima Cruzada Patrilateral ---------------------------------------------------------------------------- 40

    Estratgias de Adaptao -------------------------------------------------------------------------------- 43

    Continuidade em Face das Mudanas------------------------------------------------------------------ 45

    Fatores de Estabilizao---------------------------------------------------------------------------------- 47

    Concluses ------------------------------------------------------------------------------------------------ 48Referncias Citadas ------------------------------------------------------------------------------------- 49

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    Lista de ilustraes1. Quadro demonstrativo dos termos de referncia -------------------------------------------- 10

    2. Anotaes genealgicas------------------------------------------------------------------------- 10

    3. Mapa poltico do Brasil Centro-leste --------------------------------------------------------- 13

    4. Mapa histrico do Brasil Centro-leste--------------------------------------------------------- 14

    5. Reservas indgenas maxakali ------------------------------------------------------------------ 17

    6. Os sete filhos de Luizinho e Mariazinha------------------------------------------------------ 22

    7. Principais laos genealgicos do grupo residencial de Mkax Kakak -------------------- 22

    8. Grupo residencial de Micael ------------------------------------------------------------------- 23

    9. Laos genealgicos do grupo residencial de Micael ---------------------------------------- 24

    10. O vnculo genealgico de Jacy com Gilbertinha--------------------------------------------- 3011. Quadro de referncia ---------------------------------------------------------------------------- 33

    12. Termos de referncia (ego masculino) -------------------------------------------------------- 35

    13. Termos de referncia (ego feminino) --------------------------------------------------------- 36

    14. Categoria de avs e netos com uma gerao de distncia ---------------------------------- 38

    15. A categoria de avs e netos da gerao do ego ---------------------------------------------- 38

    16. Parentes afins (ego masculino) ---------------------------------------------------------------- 39

    17. Parentes afins (ego feminino) ------------------------------------------------------------------ 39

    18. Termos de tratamento (ego masculino) ------------------------------------------------------- 40

    19. Termos de tratamento (ego feminino) --------------------------------------------------------- 40

    20. Srie de parentes recprocos ------------------------------------------------------------------- 41

    21. Srie de parentes da mesma gerao e do mesmo sexo ------------------------------------- 41

    22. Uma ligao tpica entre primos cruzados ---------------------------------------------------- 44

    23. Preferncia ao traar o parentesco ------------------------------------------------------------ 44

    24. Parentesco reinterpretado ---------------------------------------------------------------------- 45

    25. Extenses da terminologia de parentesco ---------------------------------------------------- 46

    26. Relao de vnculos matrilaterais (entre maridos e esposas) ------------------------------ 48

    27. Os vnculos de Joviel com Neuza-------------------------------------------------------------- 51

    28. Vnculos patrilaterais entre os casais --------------------------------------------------------- 52

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    IntroduoO "corpus" do material composto por este estudo foi coletado durante vinte anos, tempo

    em que atuei como membro de uma equipe, constituda de marido-mulher, destinada a fazerpesquisas lingsticas de campo, atravs do Summer Institute of Linguistics do Brasil. Fizemos a

    anlise da lngua, elaboramos cartilhas, e traduzimos o Novo Testamento para a lngua maxakali.O fator que me ajudou a obter a confiana das mulheres foi a minha identificao com elasdentro da sociedade, tornando-me, assim, sensvel s normas culturais referente aocomportamento conveniente para as mulheres. O meu papel, como mulher dentro dacomunidade, possibilitou um melhor aprendizado de certos fenmenos culturais, ao passo que,em outros assuntos, o acesso foi relativamente mais difcil. A mulher maxakali no fala sobreassunto ntimos com facilidade, muito menos quando interrogada. Ela no fala sobre sexo nemreligio. Essa situao, aliada ao meu interesse natural, fizeram com que a minha pesquisarecasse mais sobre assuntos de parentesco e casamento, e no sobre idias religiosas, para asquais meu marido, como homem, tinha acesso natural. O prprio estudo de parentesco ecasamento apresentou problemas, visto que nem os homens nem as mulheres se referem com

    facilidade aos mortos. Esse fato, bem como a sua restrio com respeito ao uso de nomespessoais na sociedade, dificultou a obteno de dados genealgicos satisfatrios.

    Baseia-se a ortografia aqui empregada na anlise fonolgica de Gudschinsky, Popovich ePopovich (1970).

    MetodologiaColetou-se os dados atravs de solicitao direta e monolnge, de observao dos

    participantes e conservao de anotaes genealgicas iniciadas em 1962. Fez-se vrios quadrospara conhecer a extenso dos termos de parentesco. Nesses quadros, incli-se todos os nomes daspessoas que eram aparentadas, conforme o meu conhecimento, bem como os nomes das pessoassobre cujo parentesco eu ainda estava em dvida.

    Quando interrogados sobre os termos de parentesco, a primeira reao dos Maxakali ade dar os termos de tratamento pelos quais so chamados. Nimuendaj mencionou esses termos(ver Rubinger, 1963a:47-51), que equivalem culturalmente aos nomes prprios, como so usadosno portugus. Com muita insistncia, consegui descobrir como se usam os termos de referncia ecomo se define a estrutura de parentesco. A frase usada para conseguir os termos de refernciafoi: "O que voc (ou 'X') em relao a 'Y'?" A resposta o termo de referncia: "Ele meuirmo (ou outro termo)."

    Decidi, ento, fazer quadros e anotar essas informaes. Os quadros so semelhantes aoda Figura 1. Na primeira coluna da esquerda, alistei o nome de cada pessoa como ego, e osmesmos foram todos repetidos na primeira linha superior, como alter. Podemos ver na Figura 1

    que isso se fez de modo hipottico, ao usarmos os termos de parentesco da lngua portuguesa.

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    Figura 1: Quadro demonstrativo dos termos de referncia

    ego\alter Filipe Artur Toms Janete Anete PaulinaFilipe X tio primo prima irm tiaArtur sobrinho X sobrinho sobrinha sobrinha irm

    Toms primo tio X prima prima tiaJanete primo tio primo X prima tiaAnete irmo tio primo prima X tia

    Paulina sobrinho irmo sobrinho sobrinha sobrinha X

    Atravs do quadro, podemos ter uma boa idia do alcance do sistema. No entanto,quando algum tem se casado vrio vezes, como ocorreu com os Maxakali, no podemos estarcertos de que a pessoa que nos informou estava se referindo ao mesmo tipo de relacionamentoentre duas pessoas, em qualquer um dos casos, como ns imaginvamos. Portanto, sempre necessrio verificar o que ainda no est bem claro.

    Outro mtodo usado o das anotaes genealgicas. Anotou-se estatsticas pessoais comdados sobre a vida de cada indivduo num classificador, atualizando-se as informaes de temposem tempos.

    No classificador, basearam-se as anotaes na famlia nuclear maxakali, e, sempre queum filho crescia e formava sua prpria famlia, adicionava-se uma nova folha.

    A Figura 2 mostra esse tipo de anotaes genealgicas com dados hipotticos. As datasreferem-se a nascimentos, mortes e outros acontecimentos de vital importncia na vida doindivduo.

    Figura 2: Anotaes genealgicas

    1928 marido: Haroldo Pai = Andr (morreu 1957) Me = Dorotia (morreu 1981)1929 esposa: Francs Pai =Antnio (morreu 1979) Me =Ana (morreu 1962)

    1957 Masc. Davi = Esmeralda (Pai: Jos) 1980

    1958 Masc. Jaime

    1962 Fem. Anete

    1968 Masc. Filipe

    Os papis de parentesco podem ser percebidos no somente pelo que acontece entreparentes de vrias categorias, mas pelas reaes dos outros ao comportamento. Uma expresso

    de injria de um parente referente ao outro indica que este ltimo violou seriamente uma normasocial. Visto que, durante muitos anos, pudemos observar esse tipo de comportamento nosindivduos ligados por laos de parentesco, isso veio a constituir uma importante parte domaterial no qual se baseia este estudo.

    A confiana exerce um valor importante para os Maxakali, mesmo em assuntos que parans parecem ser de pouca importncia. Geralmente o Maxakali no diz quem lhe deu umainformao. Na convivncia com eles, aprendemos logo que, ao indagarmos algo que dizrespeito aos Maxakali, a nica resposta aceitvel pergunta "quem?" era "o povo", isto , os

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    Maxakali (tikm'n). Desse modo, seria quase impossvel para um Maxakali apresentar umestudo igual ao meu, pois estaria agindo diretamente contrrio aos valores da sua cultura. Sendouma cientista social, tive de, at certo ponto, comear o estudo fugindo das normas maxakali.Assim, espero mostrar neste trabalho, ao descrever o modo de vida dos Maxakali, a minhaprofunda admirao por eles como um povo e como meus amigos pessoais.

    TerminologiaA terminologia tornou-se uma questo delicada. Tradicionalmente, os indgenas das

    Amricas so chamados de "ndios", e suas sociedades, "tribos". No Brasil, os termos "ndios","indgenas" e "tribos" continuam a serem usados sem conotaes pejorativas. Confirmamos issonas seguintes obras: Nimuendaj (1958), Ribeiro (1977), Rubinger (1963b), e Seeger (1980).Seguindo o exemplo desses autores, usaremos os mesmos termos com o objetivo de ser maisclaro.

    A exemplo de antroplogos brasileiros, tais como Nimuendaj (1958:59), Ribeiro(1977:98) e Rubinger (1962:25), usaremos o termo "neobrasileiro" para designar todo e qualquerbrasileiro no indgena.

    Os socilogos brasileiros fazem uso dos termos refinados ao se referir aos vrios tipos demiscigenao. Neste estudo usaremos apenas um termo quanto categoria de indivduos em quesomente um dos pais Maxakali, visto que para ns no importante a origem racial do outroprogenitor. O termo portugus que se encaixa aqui mestio(ver Nimuendaj, 1958:56; Ribeiro,1977:235; Rubinger, 1963b:253).

    Uso dos Nomes na CulturaOs filhos dos Maxakali recebem seus nomes durante o primeiro ano de vida, geralmente

    entre seis meses e um ano de idade. Parece que o nome dado mais por identificao espiritualdo que social. S depois de perceber se a criana tem condies de sobreviver que ela recebeum nome isto na segunda metade do primeiro ano de vida. Ainda hoje, a criana s recebe onome se puder se sentar sozinha ou quando comea a andar. Quem d o nome criana so ospais e os avs. Devido natureza mstica dos nomes, tradicionalmente os Maxakali hesitamresponder pergunta: "Como voc se chama?"

    Alguns dos homens j comearam a usar nomes em portugus quando Nimuendajvisitou a tribo em 1939 (1958:59). As mulheres adotaram o uso dos nomes s anos mais tarde,mas somente para que fossem identificadas pelos neobrasileiros ou pelos funcionrios dogoverno. Em 1940 estabeleceu-se a reserva e, cumprindo o dever, os agentes Servio deProteo aos ndiosderam a cada beb maxakali o nome de um santo em portugus. Visto queos ndios no podiam pronunciar muitos desses nomes, eles os mudaram. Com todas essasimplicaes, a procura de informaes genealgicas torna-se bastante difcil, sem que se

    mencione a proibio cultural de falar sobre os mortos. muito difcil determinar os laos genealgicos por causa do tabu que probe falar sobre

    os mortos. Os pais e avs no se referem a parentes que j morreram e, por isso, as crianas noaprendem os nomes desses. Alcina, ao lhe fazermos uma pergunta sobre algum parente falecido,freqentemente respondia: "Se minha me tivesse me contado o nome dele (ou dela), eu lhecontaria, mas como no contou, eu nunca soube seu nome".

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    Se um parente morresse quando a criana tinha cinco anos ou mais, pode ser que, depoisde adulta, ela lembrasse o nome, ou ao menos o termo que definia o parentesco. As pessoas seinteressam pela genealogia somente medida que esta exerce influncia sobre os indivduosvivos. Por exemplo, o parentesco, como um assunto abstrato, no interessa aos Trobrianders; atendncia deles de simplesmente agrupar pessoas que desempenham o mesmo papel na vida

    (Keesing, 1976:268). O mesmo acontece com os Maxakali, que no se preocupam com sualinhagem em relao aos antepassados.

    A atitude de algumas pessoas mais idosas da comunidade causou problemas. Algumasdelas criticaram as mulheres que me ajudaram a conseguir dados genealgicos, pois estvamosfalando sobre os mortos. Uma das ajudantes contou-me que os crticos estavam admirados poiseu fazia tantas perguntas sobre os ancestrais mortos. No entendiam por que algum fora da triboestivesse interessado neles. Foi necessrio agir com muito tato, a fim de no causar problemaspara as mulheres que forneciam os dados que formam a base deste estudo.

    Figura 3: Mapa politico do Centro-leste do BrasilAdaptao de Hammond's map of Latin America)

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    Figura 4: Mapa Histrico do Brasil Centro-leste As

    datas indicam a locao maxacali nas reas especificas.(Adaptao do Handbook of South American Indians, Vol. 1 P.382,Compilado por Curt Nimuendaju

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    Os MaxakaliA origem do termo "maxakali" desconhecida. No surgiu do prprio povo, pois nem

    consegue pronunci-lo com facilidade. Segundo Nimuendaj, o termo que usavam para designara si prprios era "Monac bm" (1958:54). bem possvel que ele estivesse se referindo ao

    termo para "antepassado"mnyxop. O termo usado para auto-designao tikm'nque tambm um coletivo - "ns".

    A lngua maxakali foi classificada por Loukotka como "Paleo-American", uma diviso doBrasil Central (1968:68,218). Mason, no entanto, usou o termo Macro-G. Este geralmenteclassificava de modo vago todas as lnguas dessa parte do mundo que no haviam sidoclassificadas anteriormente. Ele incluiu a famlia de lnguas "Mashacali", que, segundo ele, eracomposta de seis grupos distintos: 1) Capash, 2) Cumansh, 3) Macuni, 4) Mashacali, 5)Monosh, e 6) Panyam (Mason, 1946:288,295). Por sua vez, Nimuendaj acreditava que alngua e a cultura no estavam relacionadas com G e preferiu usar o termo "no classificada"(Mtraux e Nimuendaj, 1946:541).

    O estudo da organizao social dos Maxakali um que mostra a luta desesperada pelasobrevivncia desse povo h mais de um sculo. Ao estudar esse grupo tnico ameaado,convm fazer uma breve observao sobre a identidade do povo e a histria de sua colonizaopelos neobrasileiros e portugueses.

    Garimpeiros de ouro e outros minerais entraram no vale superior do Jequitinhonha, nosEstados da Bahia e Minas Gerais, em busca de escravos para trabalhar nas minas. Os diversosgrupos tribais que habitavam essa rea to densamente povoada foram submetidos a humilhao,destribalizao, massacre e escravido em no pequena escala. Viajantes e historiadoresencontraram inmeras tribos nessas condies no final do sculo XVIII e no incio do sculoXIX. Encontraram-se na regio do Vale Mucuri e no Vale mdio do Jequitinhonha tribos queviviam anteriormente na rea rica em minerais do Alto Jequitinhonha. Aqueles quepermaneceram na regio alta, embora tendo 'proteo' militar, foram todos extintos (Rubinger,1963b:238-247). Atravs de massacres, tuberculose, lcool, sfilis e varola, os brancos acabaramcom os primeiros donos do Estado de Minas Gerais (Jos, 1958:66).

    No mapa do Brasil (Figura 3), v-se que a foz do Rio Jequitinhonha no dista muito dePorto Seguro, na Bahia. L, os portugueses aportaram em 21 de abril de 1500, ao descobrirem oBrasil. Graas s florestas do vale do Rio Doce, os Maxakali no tiveram a mesma sorte dastribos que habitavam o litoral, as quais foram dizimadas pela ganncia dos invasores (Ribeiro,1977:94).

    O povo maxakali fixou-se no Vale mdio do Jequitinhonha, no extremo Nordeste doEstado de Minas Gerais, justamente na divisa com a ponta sul do Estado da Bahia. A rea

    geogrfica onde vivem de clima tropical (quente) com um ndice pluviomtrico de mais de 2metros ao ano. Ao longo da costa, h pntanos, mangues e palmeiras tropicais (Sauer, 1946:333).O vale foi povoado por fazendeiros de gado que estabeleceram enormes propriedades. As nicaspossibilidades extrativas que poderiam atrair pioneiros eram madeira e peles de animais. Asflorestas densas e no exploradas serviram de abrigo para os ndios e, durante algum tempo,impediram a penetrao dos neobrasileiros no seu esconderijo. Segundo Rubinger, as condiesanteriormente mencionadas, que permitiram os Maxakali tempo necessrio para se adaptarem snovas condies de vida, possibilitaram a sua sobrevivncia (1963b: 128-247).

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    Os Maxakali aprenderam a se retrair do ataque violento dos colonizadores, sempre vidospara conseguir mais terras. Quanto mais o territrio diminua em tamanho, tanto mais fricohavia entre grupos tribais, que eram assim forados a uma coexistncia com seus tradicionaisinimigos. Eles sofreram por causa de doenas, fome e combates. Na primeira parte do sculo,muitos grupos tribais maiores foram extintos quando os neobrasileiros comearam a assaltar com

    fria as terras que consideravam "sem dono".Os Maxakali estimavam-se em cerca de 1.000, divididos em quatro grupos distintos na

    poca em que um certo Joaquim Fagundes, que se auto-denominava amansador dos ndios,vendeu muitas terras indgenas. Isso ocorreu por volta de 1921, e nos anos seguintes, os recm-chegados derrubaram as florestas a fim de prover pastagens para o gado. Com isso, os Maxakaliperderam o seu meio tradicional de subsistncia.

    Em 1939 Nimuendaj encontrou os Maxakali no local onde ainda se acham hoje (verFigura 5), e estavam reduzidos a 120-140 indivduos. Estavam rodeados por fazendeiros e nohavia mais para onde fugir. A doena veio com a invaso dos neobrasileiros. Houve umaepidemia de varola que, por sua vez, foi seguida de outra de sarampo qual no puderamresistir. Em 1941, o Servio de Proteo aos ndios (SPI) estabeleceu um posto para prestarassistncia tribo, que estava em perigo iminente de extino. De acordo com o censo feito peloposto em 1942, havia somente cinqenta e nove sobreviventes. Depois de o posto colocar cercaspara evitar o saque das roas indgenas por parte do gado, a populao comeou a crescerlentamente. Em 1943 havia 118 Maxakali, e em 1957, Moretzsohn mencionou um censo em quehavia 189 indivduos (Rubinger, 1963b:241-253).

    Nimuendaj deixou uma lista dos termos de tratamento de parentesco com o MuseuNacional, os quais Rubinger descreve como "termos de parentesco Dakota com terminologia deprimos Iroqus" (1963a:47-55). Pelo que se saiba, no se fez mais pesquisas sobre a organizaodos Maxakali.

    Localizao das MoradiasOs Maxakali vivem espalhados em duas reas distintas da reserva indgena: uma estsituada num pedao de terra chamado gua Boa, onde se instalou um posto indgena em 1940. Aoutra chama-se Pradinho e, at julho de 1980, estava sob a jurisdio administrativa de guaBoa. Recentemente, criou-se um novo posto para prestar assistncia a Pradinho, onde se encontrao grupo mais tradicional da tribo.

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    Os Maxakali de gua Boa tm mantido contatos constantes com funcionrios do governoe trabalhadores do posto. Portanto, esto bem familiarizados com a cultura brasileira local e odialeto regional do portugus. Ali encontramos os mestios e os poucos indivduos da sociedademaxakali que so realmente bilnges. O grupo est em processo de aculturao ou de se tornaragricultores, e um dos valores que almejam serem iguais aos vizinhos neobrasileiros('yuhuk), mantendo, ao mesmo tempo, sua identidade maxakali. O fato de morarem em guaBoa deu-lhes a garantia de atendimento mdico do governo e mais oportunidades de trabalho

    como diaristas. Essa dependncia, cada vez mais crescente, trouxe conflitos entre as duas normasculturais, tanto dentro como fora dos grupos domsticos.

    Com o tempo, as mudanas radicais que ocorrem nas "culturas particulares" dosindivduos do origem a novas necessidades que no podem ser satisfeitas pela "cultura pblica".Talvez ainda haja um consenso quanto s normas, mas o comprometimento geral a elas estmuito diminudo. medida que se diminui o consenso, existe um desvio cada vez maior do

    Figura 5: As reservas indgenas maxacali

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    comportamento em relao aos padres estabelecidos. Esse desvio isso aumenta os problemas dasociedade, suas frustraes e seu comportamento "delinqente" (Goodenough, 1963:280).

    Em Pradinho, os indivduos resistem a mudanas. H bvios ressentimentos contraexploraes dos neobrasileiros, e o processo de aculturao mais lento. O que esse grupo exibechamamos de "nativismo reformativo". Esta uma "tentativa relativamente consciente... que visa

    a reintegrao pessoal e social atravs de uma rejeio seletiva, de modificao e de sntese doscomponentes culturais tradicionais e alienadas" (Dohrenwend, 1957:78).

    Esse grupo tem recebido pouca assistncia mdica e, portanto, no desenvolveu a mesmadependncia do grupo de gua Boa.

    Nimuendaj relata que h uma transio livre entre os dois grupos (1958:56), econtinuava assim duas dcadas atrs quando os visitamos pela primeira vez. Hoje, porm, j noocorre essa migrao de uma rea para outra. Existem ainda prolongadas visitas entre parentes,pois os costumes de casamento demandam visitas constantes aos pais dos recm-casados. Mascertos grupos de famlia dizem pertencer a uma rea ou a outra, e se orgulham disso. Osmoradores de gua Boa orgulham-se de pertencer ao "elemento mais progressivo", enquanto os

    de Pradinho orgulham-se de pertencer ao elemento mais tradicional os verdadeiros Maxakali(tikm'n ynmn).

    Nimuendaj acreditava que a ocupao dos dois setores distintos tinha a finalidade degarantir a posse permanente de ambos os setores do territrio (1958:56). Essa observao muito vlida porque a reserva est sendo constantemente invadida por neobrasileiros, oschamados intrusos, sempre em busca de terras para estabelecerem pequenas fazendas ou roas.

    Jos Silveira de Souza comeou a trabalhar no Posto Engenheiro Mariano de Oliveirapouco depois de sua fundao entre os Maxakali. Foi um dos poucos funcionrios que aprendeua lngua e afirma que, durante a primeira metade deste sculo, alguns pequenos grupos tribaisforam forados a se unirem, visto que foram cercados pelo mundo de fora (Ribeiro, 1977:97).

    Ele acredita que os remanescentes dos grupos lingisticamente relacionados, entre eles osManax, os Malali, bem como os Maxakali, eram basicamente hostis. Nos meados da segunda eterceira dcadas, todos esses grupos viram-se obrigados a se retirar para a parte superior do RioItanham, na fronteira entre os Estados de Minas Gerais e a Bahia. Aparentemente, algunsmaxakali nunca saram da regio, e a eles se juntaram outras tribos vadias que procuravamescapar da iminente extino. Segundo Silveira de Souza, os Maxakali sempre tero brigas entresi por causa da incompatibilidade desses grupos. Qualquer que seja a extenso desse problema, certo que a facilidade com que se mudam de uma parte da reserva para outra serve para diminuiros conflitos.

    De acordo com Ribeiro (1977:94), dos grupos localizados desde o extremo Sul da Bahiaat o Vale do Rio Doce, s os Maxakali possuam algo semelhante a residncias permanentes,

    praticando uma forma de agricultura muito simples. Os Maxakali preferem estabelecer-se numarea de fcil visibilidade, mas de difcil acesso. Isso os garante maior segurana contra invasores.

    Os Maxakali que residem em gua Boa tm basicamente trs tipos de residncias:1) casas individuais ou residncias para famlias nucleares ou extensas; 2) pequenos gruposresidenciais de duas ou trs moradias constitudas de patriarca/matriarca e um ou mais filhoscasados com famlias; e 3) um grupo grande, constitudo de patriarca/matriarca com filhoscasados e suas famlias, e uma casa religiosa dos homens.

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    O primeiro tipo de residncia est se tornando mais popular hoje, sendo encontrado entreos Maxakali mais aculturados e entre aqueles que tm fortes tendncias no conformistas. Opadro neobrasileiro de uma s unidade residencial fez com que houvesse liberdade na escolhado prprio estilo de vida, em vez de se conformar ao grupo maior. uma maneira de evitarconflitos devido s diferentes normas. Uma viva pode escolher uma residncia individual para

    se livrar das obrigaes sexuais a que est exposta caso permanecer com os parentes de seumarido falecido. Uma residncia individual pode incluir um filho ou filha casada e os filhosdestes. Este tipo residencial mais comum em gua Boa do que em Pradinho. Jlio Marianomora a uma certa distncia de sua irm viva, Joan justamente no lado oposto da margem dorio. Com ele, moram duas filhas casadas, alm de sua prpria esposa e seus filhos menores. Acasa de Joan distante o suficiente para que esta seja ouvida quando se grita, mas que a permitasentir se vontade com suas filhas adultas e solteiras, dois filhos adultos e dois netos rfos.Isabel tambm mora sozinha com sua filha "separada", outra filha viva e os filhos menores deambas. Seu filho casou-se com uma moa neobrasileira e tem um filho pequeno; ele optou peloestilo de vida da esposa.

    Os grupos residenciais pequenos de duas ou trs moradias talvez sejam provisrios. No

    h quase nenhuma necessidade de alojar outras pessoas, se bem que sempre h ajuda e abrigodisponveis. Damos como exemplo os irmos Luiz, Jos Antoninho e Rondon. Foram inovadoresa ponto de comearem a criao de gado. No vivem mais em grupos maiores, e isso se devetalvez incompatibilidade de criar gado com o valor tradicional de repartir tudo com os parentes.A tendncia tradicional de compartilhar qualquer tipo de gado tem sido em retalh-lo paraconsumo. Quando comeou a criar gado, Rondon se separou do grupo maior para que pudessecomear um novo sistema de repartir coisas dentro de um grupo menor.

    Durante muitos anos, Jlio, seu irmo Alfredo e seu cunhado Otvio formaram um gruporesidencial relativamente estvel. Enquanto outros parentes entravam e saam, os trspermaneceram juntos. Com os anos, as presses da aculturao, do trabalho assalariado, dotrabalho de produzir para vender (cash crops) etc, aumentaram a tal ponto que os indivduos maisprogressistas da gua Boa j moravam um pouco mais afastado dos outros. Eles viram quepoucos parentes ajudavam a plantar e a colher, mas muitos chegavam para receber um parte dacolheita, e no fim todos terminavam com fome. Tradicionalmente, as mulheres plantavam umpouco de batata, milho e mandioca; tambm colhiam frutas e nozes. Os homens caavam, e spoucos representantes de cada grupo precisavam sair para prover comida para o grupo deparentes. S depois que a carne terminava e quando o grupo j estava com fome novamente que saam para caar. Talvez esse mtodo tenha servido para uma sociedade de caadores, pormos Maxacali tiveram vrios anos improdutivos, vendo que esse sistema no se aplicava aagricultura. Os inovadores perceberam que era impossvel sustentar um grupo maior e, aospoucos, comearam a formar grupos menores.

    Entre os grupos maiores, h um padro tradicional de residncia do qual o de Micael um bom exemplo (Figuras 8, 9). Sob a firme liderana de Micael, seus filhos e filhas casadospermaneceram juntos, formando uma famlia forte, com a exceo de algumas ocasies quandoum dos filhos se afastou por algun tempo. Esse grupo maior o tipo de grupo residencial quetambm possui uma casa de religio (kuxex). O grupo est disposto mais ou menos na forma deum crculo, tendo ao centro uma rea para as danas. Hoje h somente dois ou trs grupos dessetipo. Existe o grupo de Micael em gua Boa, o grupo grande emMkax Kakake o grupo em

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    Xax Kunut (ver o mapa da reserva indgena). No do meu conhecimento se o ltimo aindapertence ao mesmo tipo de grupo residencial.

    Os irmos Mariano formaram tambm um forte grupo residencial fraternal at 1959,quando um dos irmos, Luizinho, espancou a esposa at a morte, e, em represlia, foi morto apancadas como "pagamento do seu ato". Que ns saibamos, as irms Mariano nunca fizeram

    parte desse grupo. A irm mais velha era a esposa de Micael e morava naquele grupo. A irmmais nova ficou viva quando seu marido foi morto ao estilo maxakali. (Em 1959 encontramo-nos com Isabel pela primeira vez, e na poca ela j possua um "protetor" neobrasileiro, comquem teve trs filhos. Ela tinha uma casa de taipa, construda por empregados do posto, e hmuitos anos j gozava da sua independncia.)

    A morte pode causar uma sria desintegrao do grupo. A morte de uma criana queainda no recebeu o nome uma perda para a tribo, bem como para a famlia. Porm a morteviolenta de uma pessoa um acontecimento dramtico na vida de toda a comunidade, ocasio emque, antes do pr do sol, todo o grupo residencial deve abandonar as casas e queimarcompletamente a casa do morto.

    Quando Luizinho Mariano espancou sua esposa, Mariazinha, na estrada at a morte,ambos estavam bbados. O corpo dela, enrolado numa esteira, foi levado para casa pelos filhos.A famlia foi convocada para lamentar a trgica morte. Uma ordem do governo exigiu que elafosse enterrada num caixo de madeira e num cemitrio especfico. Depois do sepultamento, afamlia quebrou os utenslios de cermica dela e colocou suas roupas e redes de pescar no meioda casa. Logo em seguida deixaram o lugar, entre choros e prantos, queimando toda a casa.Assim que o marido percebeu o que havia feito, e as conseqncias que poderiam advir do seuato, fugiu para a casa de sua irm, Maria. Exatamente um ms mais tarde, ele foi morto apancadas enquanto dormia na casa da irm. O castigo compensou o crime e "estava pago". OsMaxacali exercem justia atravs da morte recproca. Lvi-Strass (1969:60) afirma que areciprocidade social est inerente no conceito de reciprocidade material, o que contm a idia de

    retribuir o bem com o bem, e o mal com o mal.O grupo Mariano dividiu-se na noite em que a casa foi queimada, e a sua unio nunca

    mais foi restabelecida. Um dos motivos foi o perodo que se dava para "esquecer" essa tragdia.Durante esse perodo, os enlutados tentam esquecer os acontecimentos para evitar o retorno doesprito desalojado. Os sobreviventes, especialmente noite, evitam falar do morto e dos lugaresonde este freqentava. Uma alma recm-sada de um corpo, segundo eles, fica desorientada poralgum tempo e tenta voltar quele corpo, procurando o parente mais prximo. Infelizmente,qualquer contato com esse esprito errante resulta em desgraa, doena e morte. O luto da famliapela perda de um ente amado se complica com o medo aos perigos que lhe vm atravs daapario da alma uma representao maligna daquele que era antes amado e confiado.

    A desintegrao da famlia Mariano deve se tambm ao fato de que o assassnio da mepelo pai dividiu a fidelidade dos filhos. Dos sete filhos, s trs eram do casal. A fidelidadeparentesca o que mantm a tribo maxakali unida. Nesse caso, porm, a fidelidade dividiu osfilhos em um grupo "do pai" e outro "da me". Somente os trs filhos biolgicos de Luizinhoficaram fiis a ele. Os outros quatro ficaram no lado de Mariazinha. Nem mesmo depois doperodo de "esquecimento" a famlia se reumiu como uma unidade residencial (veja f. 6).

    O grupo residencialMkax Kakakdifere dos outros por no constituir uma famlia depatriarca/matriarca com filhos casados, cnjuges e netos. A maioria dos residentes ou so

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    descendentes de Yy Xexka ou esto ligados a estes por laos de afinidade. Eles juntamesforos para fins mutualmente vantajosos, sendo um desses a construo de uma casa dereligio (kuxex), situada na residencial.

    Figura 6: Os sete filhos de Luizinho e Mariazinha

    Fixar residncias emMkax Kakakno algo muito estvel; mudana sua mais bvia

    caracterstica. Quando h uma briga, um ou ambos os lados envolvidos deixam o local por algumtempo. Sempre algum est fora da residncia, visitando parentes em gua Boa. s vezes,ocorre uma morte e o grupo se divide novamente. Tentamos reconstruir as famlias que faziamparte desse grupo de 1976 a 1977. Segundo nossas melhores recordaes, todos foram includosno diagrama que segue logo abaixo.

    Figura 7: Principais laos genealgicos do Grupo residencial de Mkax Kakak

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    Figura 8: Grupo residencial de Micael

    Os residentes de Mkax Kakak so basicamente s os descendentes e parentes dos trsfilhos de Yy Xexka: Cascorado, Paxix e Capito Joo. A Figura 7 mostra os elos de parentescoexistentes entre os habitantes de Mkax Kakak.

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    A Figura 9 apresenta, por ordem de nascimento, um diagram do grupo residencial deMicael.

    Figure 9: Laos genealgicos do grupo residencial de Micael

    Grupo residencial de Micael

    De acordo com um censo feito em 11 de agosto de 1980, o grupo residencial de Micaelconsta das seguintes choas, alistadas uma a uma.

    1 choa Clemente (filho de Micael); sua esposa, Didi; e seis filhos menores.

    2 choa Tot (filho de Micael); sua esposa, Toniza; duas crianas; uma filha casada,seu marido e o filhinho deles.

    3 choa Micael (patriarca da famlia); sua esposa, Maria; sua filha Ludiana e as trsfilhos desta.

    4 choa Maria Luisa (filha de Micael); seu esposo, Koktix; quatro filhos pequenos;duas filhas casadas e os respectivos maridos; e um neto pequeno.

    5 choa Bid (filho de Micael); sua esposa, Lina; e trs filhos. (Uma filha casadacom um mestio, empregado do posto, e mora no estilo neobrasileiro; dois filhos casados moramcom as famlias das esposas.)

    6 choa A casa de religio dos homens (kuxex) possui trs paredes, sendo que a partede trs permanece aberta. A casa no tem sido usada nos ltimos tempos, pois a parede queimpede os meninos no iniciados e as mulheres de verem as atividades do culto secreto est emmau estado.

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    mesmo se alguns se lembram dos bisavs com muita dificuldade. E, raramente lembram osnomes dos parentes femininos alm das avs, como o caso dos Maxacali.

    As afiliaes aos dez grupos cerimoniais dos Maxacali so herdadas dos pais aos filhos,tanto do lado materno quanto do paterno. possvel que no final do sculo passado, quando osMaxacali somavam 1.000 indivduos (Ottni, 1858:236), esses grupos cerimoniais

    representassem tambm cls. Tambm possvel que, com a dizimao da populao, tornou-senecessrio filiar cada menino como membro de mais de um grupo cerimonial, a fim de preservara prtica de sua religio e manter a funo desta dentro da sociedade. Seja qual for a razo, taissuposies fazem parte de um passado mtico e no se pode consider-las reais, diz Malinowski(1945:28,29).

    Parece que os Maxacali determinam o lao de parentesco em termos do vnculo doparente mais chegado. Visto que no gostam de falar sobre os mortos, eliminou-se apossibilidade de descobrir o antepassado real ou fictcio. No h indcios para descendnciasunilineares. Alguns indcios que apoiam uma terica descendncia patrilinear, ou pelo menosunilinear, so: 1) casamento entre primos cruzados unilaterais (Keesing, 1975:118); 2) fuso-bifurcada de termos de parentesco da gerao dos pais (Murdock, 1947:60); 3) uma tradicionalsociedade caadora e semi-nmade, que geralmente patrilinear (Keesing, 1975:25,46); e4) existncia de uma "afiliao complementar" em que o homem estabelece ligaes ntimas comos parentes do lado materno.

    Esses aspectos so encontrados entre os Maxacali, mas no creio que haja provassuficientes para comprovar a hiptese de descendncia patrilinear entre eles.

    Organizao PolticaNas tribos G, os velhos tm papis especficos e geralmente gozam de muita estima

    (Seeger, 1980:62). O mesmo acontece com os Maxacali. Os ancies e os chefes de famliasextensas exercem grande influncia atravs de suas opinies.

    Nimuendaj diz que na sua visita de 1939 encontrou dois "chefes" maxacali; ambospossuam status e exerciam influncia sobre o seu povo. Ele os considerou especialistas emreligio e em rituais. interessante notar que, durante os vinte anos que tivemos contato comesse povo, no conseguimos descobrir a palavra para "chefe". Parece desconhecerem at oprprio conceito que o termo expressa. Talvez antigamente a tribo possusse esse tipo de lder,mas sob a presso de aculturao forada, este tenha sido substitudo por uma pessoa indicadapelo governo. Isso possvel, embora na nossa opinio no seja provvel. O grupo independente demais para se render de modo to fcil. Parece mais provvel que os Maxacalinunca dispuseram de tal tipo de liderana, mas que os oficiais da sociedade dominanteimpuseram-no ao povo, a fim de govern-lo com mais facilidade, como tambm de lhe suprir oque aos oficiais parecia uma deficincia cultural.

    Foi impossvel distinguir tal categoria de pessoa na sociedade, tampouco um termoreferente a algum como "muito importante". Os sbios so os ancios (tik kutut xop) e osavs (xuxy xop), que possivelmente so os mesmos. Nenhum deles so lderes indicados.

    Usa-se na regio o ttulo portugus capito para referir-se ao cacique indgena. Naprimeira metade do sculo, alguns homens levaram esse ttulo como parte integrante do seunome portugus, dando a entender que alguns de fora os haviam nomeado "caciques". Com

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    muita dificuldade, pessoas se lembram desses nomes hoje. Alguns deles so: Capito Antnio,Capito Joo, Capito Jos, Capito Miguel, e Joo Capitozinho, que ainda vive.

    Em 1959 o chefe do posto em exerccio nos apresentou Adolfo, um homem musculoso,com cerca de 30 anos. O chefe do posto explicou que Adolfo era o "capito" dos Maxacali, o queeste confirmou com toda solenidade. Ele era casado com uma moa neobrasileira, filha de um

    intruso da reserva, e era o indivduo mais bilnge que encontramos. Porm, no passou muitotempo para percebermos que ele no tinha prestgio dentro da tribo da qual era representante eque no tinha voz ativa nos assuntos internos. Sua av paterna foi uma cativa ou uma refugiadada terrvel tribo botocudo (conhecida historicamente como inimiga mortal dos Maxacali), e seupai foi morto por ter praticado feitiaria. Alguns homens se surpreenderam ao descobrir queAdolfo era chamado de "capito", e perguntaram: "Quem lhe contou que ele o capito?"Procurei recompor-me diante da pergunta inesperada e gaguejei: "O chefe do posto me contou, eAdolfo confirmou isso." Os homens entreolharam-se e riram. Um deles acrescentou: "Se Adolfoconfirmou isso, ento deve ser a verdade." E ambos saram dali rindo.

    Atravs das observaes, comeamos a ver que os cabeas dos grupos patrilineares eramos lderes cuja opinio exercia maior influncia. Nunca encontramos uma pessoa que sedestacasse como sendo mais responsvel ou mais importante que outras. Os Maxacali possuemum governo muito igualitrio; os lderes formam um conselho que expressa opinies de consensogeral, e no um grupo de pessoas que d ordens aos outros. As habilidades individuais variammuito; uns tm mais influncia e carisma que outros, mas ningum tem o direito de dar ordensaos outros.

    Parece que os antigos chefes de posto foram muito astutos pois descobriram quem eramos homens mais influentes da sociedade antes de indicarem algum como chefe. Conseguiram,de algum modo, comunicar com o grupo monolnge. Anos mais tarde, os oficiais dos governosseguintes queriam somente contar com algum que transmitisse suas ordens aos subordinados dasociedade, e, para isso, era primordial que a pessoa escolhida para ser "capito" fosse um tanto

    bilnge. Em troca de servios prestados ao agente do posto, esse "capito" recebia certos favoresespeciais tais como uma casa de taipa, um cavalo e talvez um pouco de comida. Adolfo nuncateve de trabalhar nas roas para sobreviver, como outros faziam. Ele sabia como conseguirfavores polticos como qualquer poltico do interior. Entretanto, mais de uma vez, ele foi acusadode praticar magia negra, e por pouco escapou com vida.

    Nos ltimos anos, houve outras tentativas de designar certos homens como "capites" afim de preencher uma lacuna considerada pelos agentes do posto como uma deficincia daestrutura social dos Maxacali.

    A nossa posio quanto a isso, correspondente de Baldus (1977:224), que aorganizao social e poltica de uma sociedade sempre sofre dano quando o agente do governo

    desrespeita os tradicionais lderes do grupo, ao nomear uma pessoa do seu agrado para executaros servios de chefia.

    BruxariaOs Maxacali no tm um xam que pratica sozinho as magias e os rituais. Todos os

    rituais so atividades coletivas em que atuam um ou mais dos dez grupos cerimoniais. Os ritos demagia realizados individualmente so considerados perigosos sociedade, e uma acusao defeitiaria muito grave. O pai de Adolfo, como j mencionamos, foi morto por causa disso.

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    Em 1965, surgiu um problema srio entre dois irmos Mariano Dominguinho e Totni e dois filhos de Santa Alqueirinho e Zezinho. A questo em debate era um pedao de terradestinado plantao, ao qual ambos os partidos diziam ter o mesmo direito. No auge dadiscusso, Alqueirinho acusou Dominguinho de ter praticado uma feitiaria, causando assim amorte da sua filhinha e do marido da sua prima cruzada. Ento, Totni pegou o revlver e atirou

    no brao de Zezinho. Em seguida, Dominguinho correu para a casa vizinha do Justinho, e "pegouemprestada" uma espingarda para atirar em Zezinho. Alqueirinho perseguiu os dois irmosMariano e matou-os com um faco.

    Ser acusado da morte de algum significa que o parente da vtima tem o direito e aresponsabilidade de "pagar" por essa morte, matando aquele considerado responsvel. Para osMaxacali, a feitiaria considerada to perigosa e anti-social como um verdadeiro assassinato.Aps a matana dos irmos Mariano, no houve tentativa de vingana por parte dos parentes,fato que comprova a aceitao daquele ato como justo pela sociedade.

    CasamentoOs Maxacali consideram o casamento como um processo e no um ato realizado num

    momento certo. Todo esse processo, que envolve um namoro discreto e uma negociao,acontece sem alarde. O primeiro ano de vida em comum passado na casa da noiva e no considerado definitivo, pois muitos casais se separam durante o primeiro ano.

    No h nenhum rito de iniciao para indicar que as meninas esto aptas para ocasamento. A iniciao dos meninos, aos doze anos, no est relacionada com a aquisio dematuridade fsica, e sim com a sua capacidade de assumir responsabilidades religiosas. Asmeninas geralmente se casam aos doze ou treze anos de idade, e os rapazes, quando so cinco asete anos mais velhos que elas.

    Nos ltimos anos, no houve vestgio de levirato ou sororato. Uma criana semprepermance com a me quando morre o pai. Mas quando morre a me, a criana fica praticamente

    abandonada.Tradicionalmente, a irm da me falecida cria a criana como se fosse sua, fato

    confirmado como normal por algumas pessoas mais idosas. Joana disse que, depois da morte desua me, a irm desta, Maria Xexka, levou-a para a famlia dela. No entanto, quandoAmbrosinha faleceu h poucos anos, a me do marido ficou com as crianas. Sendo a av umaviva e suas condies de subsistncia muito precrias, as crianas eram lamentavelmentemagras e maltrapilhas. O pai casou-se novamente, com uma prima paralela de sua primeiraesposa, mas a nova esposa achava muito repugnantes as meninas maltrapilhas, at o ponto de nopermiti-las perto dela. Era muito evidente que vestia seus prprios filhos melhor do que ascrianas da primeira esposa.

    Mariazinha ajudou no arranjo de casamento para quatro de seus filhos. Ela relatou comoisso foi feito. A iniciativa do rapaz: ele escolhe a moa e diz aos pais quem ele quer paraesposa. Se os pais no aprovarem a escolha, ele pode insistir ou procurar outra. O caso seguinteilustra bem o que geralmente acontece.

    Jacy e GilbertinhaJacy sentia uma forte atrao por Gilbertinha, cuja me era Benvinda. O pai dela era um

    neobrasileiro negro que havia violado Benvinda. Esta recusou-se a entregar o beb famlia do

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    pai, preferindo cri-lo como uma maxacali. Gilbertinha era uma criana adorvel, mas no tinhaa aparncia de uma Maxacali. Os ancestrais paternos eram descendentes de escravos africanos edeles ela herdou a cor da pele, o tipo de cabelo, uma personalidade alegre, assim como seiosredondos e fartos. Os Maxacali sentiam-se constrangidos com a presena de algum cujaaparncia era to diferente deles. Eles tinham medo de serem acusados de furtar uma criana

    neobrasileira, mas Benvinda insistiu em ficar com a filha.

    Figura 10: O vnculo genealgico de Jacy com Gilbertinha

    Jaime, pai de Jacy, e Benvinda eram primos cruzados matrilaterais, e Jacy no eraculturalmente relacionado com Gilbertinha, portanto, pela genealogia, eles eram nbeis. Aprincipal objeo ao casamento foi de ordem social: Gilbertinha poderia ser vista como umamulher neobrasileira decada que estava se casando com um ndio, considerado o indivduo maisbaixo na hierarquia social. A famlia de Jacy temia que seu filho viesse a ter dificuldades dedefender sua mulher das provocaes indecentes quando forem cidade. A reao de Jaime e suaesposa foi a mesma de qualquer outro casal na mesma situao: "Voc est maluco! Casar-secom uma moa que no uma verdadeira maxacali! De jeito nenhum!"

    A av materna confidenciou me essa histria, dizendo que o pai opunha fortemente essaunio.

    A esta altura, Jacy tinha trs alternativas: l) esquecer tudo; 2) convencer Gilbertinhaque ela devia ser sua amante, apesar da desaprovao da tribo; ou 3) insistir at que os paisviessem a aceitar o seu ponto de vista. Jacy optou pela terceira alternativa, e meses depoiscasou-se com Gilbertinha.

    Assim que os pais de um jovem consintam na escolha de uma esposa para o filho, elesvo casa da moa para discutir a viabilidade do assunto com os pais dela. possvel que nessaocasio a me do jovem determine os laos de parentesco que a liguem aos pais da moa. (Jconstatamos que as relaes consangneas existentes entre duas pessoas podem ser

    determinadas de at quatro maneiras diferentes.)Depois de os pais consentirem o casamento, a provvel noiva pode ainda manifestar suas

    opinies sobre o seu destino. Os Maxacali so sensveis ao mencionarmos as presses que soimpostas nas filhas para aceitarem casamentos arranjados, em vez de as deixarem se casarem poramor. Por isso, no deixam de nos dizer que nesses casamentos as moas "desejam se casar".

    H, no entanto, muita presso social para a jovem aceitar o casamento, uma vez aprovadopelos pais do noivo e da noiva. Uma jovem que no se casa nos primeiros anos de puberdade

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    dificilmente consegue um noivo. O caso de Benvinda mostra que pelo menos uma moa noconcordou com os planos dos pais.

    Benvinda Diz "No"Em 1959, Benvinda j tinha quinze anos e ainda era solteira. No se sabe quantos rapazes

    j haviam sido recusados de se casar com ela. Um dia, seu pai Luizinho chamou-a e disse-lhe:"J est resolvido. Voc vai se casar! vergonha para uma moa de sua idade estar aindasolteira. Pedro, que um moo muito bom, quer se casar com voc e vir morar com voc comoesposo. Voc deve se conformar com isso."

    No meio da noite, fomos despertados por gritos altos, vindos da direo da casa deLuizinho, uns duzentos metros de distncia da nossa casa. O que nos intrigou foi um fogoincandescente, indo ao redor da casa, suspenso a um metro do cho. O movimento do fogo e osgritos pararam ao mesmo tempo, mas as vozes zangadas continuaram por algum tempo. Depoishouve silncio s se ouviam rudos normais da noite. Pela manh, conseguimos decifrar o quehavia acontecido.

    Conforme o plano, o rapaz chegou para requerer a noiva. Ela o repudiou categoricamente.O noivo ficou furioso, como tambm Luizinho. Este pegou um pedao de lenha da fogueiraacesa, correu atrs da filha em volta da casa, procurando bater nela at que se sujeitasse aocasamento. A essas alturas, Pedro no queria mais nada com Benvinda. E, assim, encerrou-se ocaso.

    ProcriaoAs esposas, vivas e mulheres no casadas, todas elas, aparentemente, do luz filhos em

    intervalos regulares, mesmo assim o ndice de mortalidade infantil muito alto. Para asobrevivncia dos Maxacali, necessrio o ndice de natalidade ser maior que o de mortalidade.Nas conversas com as mulheres maxakali, deduzimos o valor de ter muitos filhos na sua cultura.

    Vinte anos atrs, quando perguntei a Isabel por que os Maxacali no permitiam asmeninas se tornarem um pouco mais maduras antes de se casarem, ela disse: "Se as meninas nose casarem bastante jovens, no seriam capazes de gerar filhos."

    Recentemente, perguntei a Alcina sobre Rosinha, que tem vinte e cinco anos, solteira eno tem filhos: " bom ela no ser casada?" Alcina deu um sorriso relutante e admitiu: "Para ela bom no ser casada!" Insisti: " bom ela no ter filhos?" Alcina ficou sria e respondeu: "No,no bom que ela no tenha filhos. Cada mulher deve ter filhos para no ficar sozinha."

    Embora haja muita presso social para ter filhos a cada 2 ou 3 anos, gravidezes maisfreqentes so desaprovadas. Eis a opinio dos Maxacali: "S as pessoas de fora e os cachorrostm filhos a cada ano. Nosso costume esperar at a criana atingir dois anos de idade."

    Isso representa um valor cultural, mas a principal razo para esse intervalo entre umacriana e outra a dependncia do leite materno para o sustento da criana. Privar o beb danica fonte de nutrio j no seu primeiro ano de vida, , por certo, conden-lo morte. OsMaxacali valorizam a vida da criana para o bem-estar da sociedade, pois cada criana que morreimplica a extino iminente da tribo.

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    Terminologia De Parentesco MaxacaliDois termos-chave so xape epukng. Xape algum que est dentro do grupo de

    parentesco, sendo tratado e referido pelo termo apropriado. O termo xape inclui o conceito deamigo "algum que age como um parente deve agir". A palavrapukng, "no parente",tambm tem um significado mais amplo, usada para se referir a um estrangeiro ou um inimigo

    "algum do qual no se pode esperar bondade ou considerao". Isso indica a tamanhaimportncia do sistema de parentesco na sociedade Maxacali. No entanto, restringiremos aosignificado central desses termos a fim de estudar o sistema de parentesco. Xape designa umparente, epukng, um no-parente. Esses termos so muito importantes na compreenso dasformas de casamento dos Maxacali.

    O termo xape pode ser modificado para indicar distncias genealgicas. Um parenteprximo (linear) chamado de xape xe'e, "parente verdadeiro"; um parente colateral chamado de xape max, "parente bom"; um parente mais longnquo um xape hptox h,"parente distante".

    O sistema de anotao usado neste trabalho o tradicional, como segue abaixo:

    = laos afins (por casamento) laos consangneos

    Indicam Parentes Masculinos Indicam Parentes Femininos

    P = pai m = me

    M = marido e = esposa

    F = filho f = filha

    I = irmo i = irm

    Mais adiante, quando necessrio, essas anotaes sero modificadas atravs do acrscimodos prefixos (em) ou (ef) para indicar ego masculino e ego feminino, respectivamente. AFigura 11 dispe em forma de tabela os termos de referncia junto com uma glosa em portuguse uma lista incompleta dos tipos de parentesco, divididos em distncias genealgicas, conformeas trs expresses anteriormente mencionadas. As Figuras 12 e 13 dispem de forma grfica aextenso desses mesmos termos, quando so usados respectivamente pelo ego masculino oufeminino.

    Cdigo Termo Glosa Prximo Intermedirio Distante

    Termos de parentesco para os mais velhos

    1 'tak "pai" P IP FIPP, FimP,2 tut "me" m im fimm, fIPm,3 xuxy "av" PP, Pm PPP, PPm, PmP,

    Pmm, IPP, IPm,Im, IPPP, IPmP, IPPm, IPmm,

    ImPP, ImmP, Immm,4 xukux "av" mP, mm mPP, mmP, mPm,

    mmm, imP, imm,iP, fiP (em), iPPP, imPP, iPmP,

    iPPm, iPmm, immm,

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    Cdigo Termo Glosa Prximo Intermedirio Distante

    Termos para os siblings5 takny "irmo" I (em) FIP (em),

    Fim (em)FFIPP (em), FfIPm (em),

    Ffimm (em), FFimP (em),

    6pit

    "irmo" I (ef) FIP (ef),Fim (ef) FFIPP (ef), FfIPm (ef),FFimP (ef), Ffimm (ef),Fffimmm (ef),

    7 hex "irm" i (em) fIP (em),fim (em)

    fFIPP (em), ffIPm (em),fFimP (em), ffimm (em),

    fFFIPPP (em), 8 tutny "irm" i (ef) fIP (ef),

    fim (ef)fFIPP (ef), ffIPm (ef),

    fFimP (ef), ffimm (ef),

    Termos de parentesco para os mais novos9 kutokpit "filho" F FI (em),

    Fi (ef)FFIP (em), FFim (em),FfIP (ef), Ffim (ef),

    10 kutokhex "filha" f fI (em),fi (ef)

    fFIP (em), fFim (em),ffIP (ef), ffim (ef),

    11 putix "neto" FF, Ff FFI (em),Ffi (ef)

    Fi (em), FFFIP (em),FFFim (em), FfIP (em),

    Ffim (em), ..FI (ef),FIm (ef), FFIP (ef),

    FFim (ef), 12 putixix "neta" fF, ff fFI (em),

    ffi (ef)fi (em), ffI (em), ffFIP (em),fFim (em), fI (ef), fFIP (ef),

    fFim(ef),

    Termos para os primos cruzados e cnjuges13 'kto'y "primo" FiP (em), FIm (em), FiPm (em),

    FImP (em), FiPP (em),FImm (em), FfiP (em),

    14 kto'kux "prima" fiP (ef), fIm (ef), fIPP (ef),fImm (ef), fImP (ef),

    fiPP (ef), fFIM (ef), 15 ypxox "marido" M16 xetut "es osa" e

    Termos para os cnjuges em potencial

    17 pukng "no-parente"

    fIm (em), FiP (ef);todos os tipos consideradosno-parentes do sexo oposto

    Figura 11: Quadro de Referncia

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    Figura 12: Termos de referncia (ego masculino)

    Figura 13: Termos de referncia (ego feminino)

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    Xape Xe'e "Parente verdadeiro"

    Entre os parentes prximos ou "verdadeiros" esto includos os parentes lineares: pais,avs, siblings, filhos e netos. Essa categoria tambm inclui siblings que tm em comum com oego pelo menos um dos pais.

    Xape Max "Parente bom"Entre os parentes intermedirios ou "bons" constam os pais e siblings do mesmo sexo dos

    avs do ego, a tia materna, o tio paterno, e os filhos de cada os primos paralelos, os filhos dosprimos paralelos, os netos dos siblings classificatrios do mesmo sexo do ego, e os filhos dossiblings do ego.

    Xape Hptox H "Parente distante"

    Parentes distantes incluem outras extenses geracionais dos termos j mencionados acimae os afins em potencial, tais como o tio materno, a tia paterna, os primos cruzados, e os filhos dossiblings do ego do sexo oposto.

    O ego classifica certas pessoas como parentes distantes por permanecerem, no transcorrerde sua vida, margem do sistema de parentesco (Keesing, 1976:269). Dessa categoria deparentesco, designam-se os parentes que se tornaro seus afins: seus futuros sogros, cunhados,cunhadas, genros e noras. Mas o ego escolher sua cnjuge de outra categoria: a de "no-parente", (pukng).

    s vezes, parece que esta terceira categoria no s chega a se fundir com a categoriaintermediria, a de xape max, "parente bom", mas parece estar vagamente margem dosegmento da populao chamadapukng. Esse fato facilita a compreenso das formas modernasde casamento. Ao ver uma moa com quem o ego masculino tenha uma relao parentesca, no to difcil para este argumentar assim: "Ela uma parente to distante que quasepukngparamim, (no-aparentada comigo). Ento, no seria errado se me casasse com ela".

    A ltima categoria de parentesco inclui os afins que se enquadram nas categoriasconsangneas. No caso de um casamento ideal, a prima cruzada matrilateral, o primo cruzadomatrilateral do ego torna-se o seu cunhado. Quando a irm deste se casa com o filho da tiapaterna, o primo cruzado patrilateral do ego torna-se tambm seu cunhado. Assim como a esposado pai chamada de "me" por extenso, da mesma forma o cunhado, que no parenteconsangneo do ego, chamado de primo cruzado. Na gerao descendente do casamento ideal,o filho da irm de um homem, a quem ele chama de neto, (putix), torna-se o marido da filha.Por conseqncia, o genro, que no aparentado com a famlia, tambm chamado de "neto".Termos afins so suprfluos, pois os afins simplesmente empregam termos consangneos dentroda estrutura normal de parentesco.

    O casamento com a prima cruzada matrilateral se encaixa no padro consangneo jexistente, sem precisar de reajustes dos termos, da mesma forma que peas de um quebra-cabease encaixam um com outro.

    Os princpios que se seguem podem ser definidos conforme a distribuio de parentesconos prprios termos maxakali.

    I. Distinguem-se todos os parentes, em termos da terminologia, atravs do sexo de alter.

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    II. Distinguem-se todos os parentes da gerao do ego, e todos os parentes colaterais dasgeraes descendentes conforme o sexo do ego.

    III. O sexo dos parentes intermedirios distingue os parentes paralelo dos parentescruzados.

    IV. No h termos especficos para designar os afins. O parentesco advindo atravs docasamento enquadra-se na categoria de parentes cruzados, dando a entender que o casamentoentre primos cruzados matrilaterais o ideal.

    V. Distingue-se a gerao do alter atravs da terminologia. Os termos de parentesco dacategoria de avs e netos referem-se a todos os parentes afastados por duas ou mais geraes doego. Referem-se tambm aos parentes de outras geraes por um dos dois princpios deequivalncia:

    A. 1 princpio:A distino existente entre uma gerao afastada do ego e mais de umagerao no se aplica no caso dos parentes cruzados. Aplicam-se os termos de parentesco dacategoria de avs e netos a todos os tipos de parentes cruzados correspondentes primeiragerao, a partir do ego.

    B. 2 princpio: No h distino de termos entre a gerao do ego e uma geraoafastada do ego quando se trata da prima cruzada patrilateral do ego masculino: elas soclassificadas do mesmo modo que os parentes cruzados do sexo feminino mais velhos que elas, eos parentes, masculinos do mesmo modo que parentes cruzados mais novos que eles (Merrifield,1980).

    Figura 14: Categoria de avs e netos com uma gerao de distncia

    Figura 15: Categoria de avs e netos da gerao de ego

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    Figura 16: Parentes afins (ego masculino)

    Figura 17: Parentes afins (ego feminino)

    Termos de Parentesco para TratamentoOs vocativos ou termos de tratamento so mais simples que os termos de referncia. O

    ego masculino faz uso de dez termos para se dirigir aos indivduos do seu grupo de parentesco.Ele trata a irm e a filha pelo mesmo termo, mas distingue os demais parentes como no caso dostermos de referncia (Figura 18). Segue-se uma lista resumida dos termos de tratamento usadospelo ego masculino. Os nmeros do cdigo, esquerda, correspondem aos termos de referncia(Figura 11).

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    Cdigo Termo Glosa Especificao

    1 tak "pai" P, IP, FIPP,

    2 my "me" m, im, fimm,

    3 yy "av" PP, Pm, Im,

    4 xukux "av" mP, mm, iP, fiP,

    5 'gny "irmo" I, FIP, Fim,

    7, 10 tukm "irm" i, f, fI, fIP, fim

    9 xnn "filho" F, FI, FFIP,

    11 'gnix "neto" FF, Ff, Fi,

    12 nixix "neta" fF, ff, fi,

    13 tiktak "primo" FiP, fIm,

    Figura 18: 'Termos de tratamento (ego masculino)

    Os cnjuges no tm termos de tratamento um para o outro. Parece que os vocativostendem a variar de uma casal para o outro. Um termo, porm, se que podemos cham-lo assim, muito usado para chamar a ateno do cnjuge: xok 'm, que equivale culturalmente a "ei, voca!"

    O ego feminino usa bem menos termos, principalmente com relao a parentes da suaprpria gerao e das geraes descendentes. Os termos usados para designar os pais e avs soidnticos queles usados pelo ego masculino, mas o ego feminino classifica muitos parentes namesma categoria, usando somente um termo para todos os parentes da sua prpria gerao ouabaixo, com exceo dos primos cruzados.

    Cdigo Termo Glosa Especificao

    1 tak "pai" P, IP, FIPP,

    2 my "me" m, im, fimm,

    3 yy "av" PP, Pm, PPP, Pmm, Im,

    4 xukux "av" Pm, mm, mPP, mmm, iP,

    6, 9. 11 xnn "irmo" i, FIP, Fim, F, Fi, FF, Ff, Fi,

    8, 10, 12 tukm "irm" i, fim, fIP, f, fi, ffim, fP, ff, fI,

    14 tiktut "prima" fiP, fIm,

    Figura 19: Termos de tratamento (ego feminino)

    possvel atribuir a equivalncia terminologica de tantos tipos de parentes (Figura 19) aoideal cultural de que a mulher zela e ama seus parentes. Isso no indica que ela no trate seusprprios siblings de linha genealgica e seus prprios filhos biolgicos com mais cuidado ededicao do que, por exemplo, os filhos de seu irmo. Seria raro encontrar uma mulher assim,mas os termos parecem indicar o ideal dos Maxakali: a menina ou mulher manifesta um amor

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    zeloso e protetor para com grande parte de seus parentes, auxiliando-os num mundo hostil ecruel.

    Cdigo Termo Glosa Especificao Cdigo Termo Glosa Especificao

    Pai filho

    1 'tak "pai" (P, IP, ) 9 kutokpit "filho" (F, )

    2 'tut "me" (m, im, ) 10 kutokhex "filha" (f, )

    Av neto

    3 xuxy "av" (PP, Pm, ) 11 putix "neto" (FF, Ff, )

    4 xukux "av" (mP, mm, ) 12 putixix "neta" (fF, ff, )

    Siblings do sexo oposto

    6 pit "irmo" (I, FIP, Fim, ) 7 hex "irm" (i, fIP, fm, )

    Cnjuges15 ypxox "marido" (M) 16 xetut "esposa" (e)

    Figura 20 : Srie de parentes recprocos

    Cdigo Termo Glosa Especificao

    Siblings do mesmo sexo

    5 takny "irmo" (I, FIP, Fim, )

    8 tutny "irm" (i, fIP, fim, )

    Primos cruzados do mesmo sexo13 'kto'y "primo" (FiP (em), FIm (em), )

    14 kto'kux "prima" (fiP (ef), fIm (ef), )

    Figura 21: Srie de parentes da mesma gerao e do mesmo sexo

    Reciprocidade e os PapisSegundo Meyer Fortes (1969:15), um termo de parentesco "um conjunto de definies,

    regras e normas para a conduta. um armazenamento de informaes, bem como uminstrumento que conduz ao". Pode-se dizer tambm que um termo de parentesco traz consigo

    muitas expectativas culturais em relao ao comportamento.Todos os termos de parentesco tm os seus recprocos (Figura 20) ou auto-recprocos,

    como no caso dos termos aplicados aos parentes da mesma gerao e do mesmo sexo (Figura21). Cada termo denota, atravs do seu uso, as implicaes dos papis tanto para o ego comopara o alter.

    Espera-se que a pessoa a quem se dirige como "pai" providencie a comida necessria: acarne, atravs da caa, nos tempos anteriores; arroz, milho e feijo, atualmente, atravs de

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    plantaes. O homem tem menos deveres para com aquela a quem chama de "filha" do que paracom aquele a quem chama de "filho". A este ele deve ensinar a fazer arcos e flechas e a caar,bem como os mitos, lendas e rituais dos Maxakal. Esses aspectos Joan e Isabel ambasconfirmaram, mas Isabel acrescentou que o trabalho de ensinar a fazer artefatos era do av.

    Por sua vez, espera-se que aquele a quem chamam de "filho" ajude ao que ele chama de

    "pai". Ele deve ajudar o pai a limpar a roa e confeccionar artefatos; precisa aprender a valorizaros itens culturais que foram um presente sobrenatural para seu povo. Ele precisa decorar aslendas, visto que o povo possui somente a tradio oral. Por volta dos doze anos, espera-se queele esteja preparado para a iniciao nos rituais religiosos dos adultos do sexo masculino. Eleaprende a ser um maxakali, imitando e observando aqueles parentes que considera como "pais".

    A mulher que chamada de "me" deve cozinhar os alimentos bsicos para sua famlia:arroz, feijo, batata-doce e milho. Se a criana encontrar pequenos roedores, tartarugas oupeixes, ela mesma os prepara para si. Aquele que chamado de "filho" deve providenciar umareserva de lenha para que a "me" possa preparar a comida dele. A me tambm tece pequenossacos de malha para o filho carregar as bolotas de barro queimado. Ela tambm lava as roupas domarido e dos filhos mais novos. Tem maiores responsabilidades para com os parentes a quem elase refere como "filhas" do que para com os que considera como "filhos". Suas demais obrigaesso: ensinar a filha a tecer os saquinhos de malha, a lavar as roupas dos irmos, a enrolar a fibrade casca da rvore e a fazer panelas e potes de barro.

    A filha aprende a ser uma verdadeira mulher maxakali, observando e imitando aquelas aquem ela chama de "me". O filho aprende a ser um homem maxakali, observando e imitando osparentes ele considera como "pais". A dade me-filha provavelmente a mais ntima dasrelaes nessa sociedade. Tradicionalmente, espera-se que uma mulher tome conta dos rfos desua irm falecida, fazendo-os parte de sua famlia. A me maxakali est sempre perto do seubeb enquanto este no for desmamado, ocasio a partir do qual outros membros da famliacomeam a dar ajuda e proteo que a criana antes recebia da me biolgica. Essa a fase mais

    crtica da vida da criana, pois o maior ndice de mortalidade est justamente entre crianas dedois a trs anos de idade. Nesse tempo, geralmente sua me est grvida ou j deu luz outrofilho.

    A me maxakali prepara sua filha para assumir o papel que deve desempenhar nasociedade, e deve continuar aconselhando-a por toda a vida. O primeiro neto nasce geralmente nacasa da av materna, e assim firmam-se os laos com mais uma gerao. Mesmo quando a filhase muda para morar com a famlia do marido, ela visita com freqncia e por tempo prolongadona casa de sua me.

    Os pais no usam disciplina corporal com as crianas, embora a me possa chegar a usaruma vara quando precisa valer-se de sua autoridade. O pai restringe-se a ralhar com o filho

    desobediente. A verdadeira disciplina (e por sinal, muito severa) ministrada pelos siblings maisvelhos, siblings mais novos dos pais, e pelos companheiros. Estes so os que tomam conta dascrianas menores durante o dia. A disciplina exercida atravs de ridicularizao, excluso ecoero.

    O papel desempenhado pelo indivduo chamado de "av" mais variado. Se ele estivernuma casa onde falta o pai, assumir as responsabilidades do pai. Alm disso, ele ensina ofolclore secreto da tribo e os mitos queles a quem chama de "netos". Ele muito indulgentecom esses: enquanto as geraes ascendentes tm de dar, as descendentes tm de receber. Dentro

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    de suas possibilidades, um bom av no deixa de atender um pedido. A av tambm preparacoisas especiais para os netos, assim como as avs no-indgenas. A criana goza desse mesmocarinho e aceitao por parte do tio materno e da tia paterna, quem ela identifica como "av".

    Em 1959, visitei pela primeira vez os Maxakali, e logo comecei a estudar a lngua deles.Em poucas semanas, as pessoas vinham a minha casa fazendo-me vrios pedidos, dirigindo-se a

    mim com o termo xukux, termo que algum disse significar "tia". Eu j ouvira o termorelacionado com mulheres mais velhas, mas nenhuma moa americana apreciaria ser chamadapor um termo cujo significado ela desconfia ser "av". Aconteceu que as mulheres mais velhaschegaram a mim chamando-me tambm de xukux. Isso foi demais, e perguntei: "Quem, eu?"

    Logo aprendi que o termo tinha um significado mais amplo. Compreendi que no eratanto um termo de respeito, mas um que implicava minhas obrigaes como uma xukuxadotiva,e por isso, eu era obrigada a dar aquilo que pediam.

    A prima cruzada patrilateral de um homem tambm considerada "av". De acordo coma terminologia, ela identificada com a me dela. Ao tratar essa prima cruzada patrilateral comoav, a sociedade atribui lhe um papel de proteo e de tolerncia com relao ao parente

    considerado seu "neto".Existem poucos papis de parentesco entre indivduos da mesma gerao do ego (Figura

    21). Cada um possui um correspondente anlogo, como se um refletisse o outro: siblingmasculino com sibling masculino (takny), sibling feminino com sibling feminino (tutny),primo cruzado com primo cruzado ('kto'y), e prima cruzada com prima cruzada('kto'kux). Esses papis exigem um nico requisito, o da reciprocidade.

    Os siblings do sexo oposto mantm fortes laos de amizade, tendo tambm muitalealdade um para com outro. A irm lava a roupa do irmo, e este a ajuda a limpar o leito do riopara pescar. Ela tambm trana os saquinhos para ele.

    As obrigaes que as geraes mais novas tm para com as mais velhas so poucas eparece que diminuem mais medida que aumenta a distncia genealgica. Para assegurar asobrevivncia do povo maxakali, as geraes mais novas so dadas todo o apoio possvel.

    Figura 22: Uma ligao tpica entre primos cruzados

    Os Maxakali tm se casado uns com os outros de forma to variada que a grande maioriadeles tem mais de um elo de ligao com qualquer um de seus parentes. Surge ento umapergunta inevitvel: "Se h mais de um elo de parentesco, qual o mais importante?" No tenhouma resposta fcil para dar, nem posso dizer que estou totalmente certa, mas, aparentemente,tende-se a considerar a relao mais prxima de maior importncia do que a mais distante(Figuras 22 e 23).

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    Figura 23: Preferncia ao traar oparentesco

    Certa manh, Isabel estava me ajudando a esclarecer algumas genealogias. Havamoscomeado a analisar os laos de parentesco entre os filhos de Joan e os de seu irmo, Jlio.Pareceu-nos um caso tpico de primos cruzados (Figura 22). Quando Joan nos visitou,perguntamos-lhe sobre esses laos, mas meramente para que esta tomasse parte da conversa.Espervamos que ela nos desse os termos normais para os primos cruzados matrilaterais.

    "No", respondeu Joan, "eles no so aparentados desse jeito. Meu filho, Marcelo, primo paralelo (pit max,"bom irmo") da esposa de Jlio."

    Tanto eu como Isabel, sua tia, fomos tomadas de surpresa. Isabel disse: "Mas isso eu nosabia."

    Nesse caso, o parentesco de sibling por extenso valeu mais que o de primo cruzado.

    possvel que haja outros fatores determinantes para essa interpretao. Um dos maissignificativos talvez seja o fato de as famlias morarem na mesma rea residencial durante vriosanos aps o assassinato de Raimundo, marido de Joan. Talvez os prprios filhos tivessem seconsiderado mais como sendo siblings do que como potenciais cnjuges, e da a interpretao deJoan. Veja a reinterpretao desse relacionamento (Figura 24).

    Figura 24: O parentesco reinterpretado

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    Em geral no se traam os laos de parentesco alm da quarta gerao ascendente oudescendente. O diagrama que segue, Figura 25, mostra as ampliaes colaterais e limitaes dosistema.

    Figura 25: Extenses da terminologia de parentesco

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    Os Primos CruzadosMatrilaterais e o Casamento

    Como j vimos anteriormente, a aliana ideal em relao ao casamento dos Maxakali entre fIme FiP. Tambm j mencionamos que o prprio sistema de terminologia de parentescoencaixa nesse tipo de casamento. Em suma, fizemos uma rpida reviso do modelo terico.

    Farber (1968:14) menciona que os livros-texto abordam o sistema de parentesco emtermos ideais ou mitolgicos, mas que, na realidade, as estruturas existentes mostram muitascontradies e variaes da norma terica. A seguir, trataremos ento dos padres de casamentousados atualmente.

    Os primos maxakali so classificados como sendo paralelos ou cruzados, de acordo comas categorias de bifurcao suru (Merrifield, 1980), ou seja:

    paralelos (suru): dentro dos limites da cadeia genealgica que vincula o ego a um

    determinado parente, quando houver dois parentes da mesma gerao dentro da cadeia, essesdois parentes so do mesmo sexo;

    cruzados (suru): dentro dos limites da cadeia genealgica que vincula o ego a umdeterminado parente, h pelo menos um par de parentes de sexos opostos da mesma gerao.

    No caso dos Maxakali, essas definies precisam ser mais claras quando o ego e o alterso da mesma gerao.

    Uma pessoa casadoura qualquer maxakali do sexo oposto que seja classificada pelo egocomo sendo um no-parente (pukng). O exemplo mais apropriado de tal pessoa o primocruzado matrilateral do sexo oposto. Quando o ego e o alter so da mesma gerao, a cadeiagenealgica pode ser estendida colateralmente ou desviada para uma gerao ascendente ou

    descendente que a compe.Realizou-se um estudo de 131 casamentos maxakali para descobrir as atuais tendncias

    em relao ao casamento. Desses, eliminaram-se 28 casos por falta de dados que dizem respeitoaos parentes matrilaterais do ego masculino. Dos 110 casos que restaram, 21 eram suspeitosdevido s vrias irregularidades ou por serem considerados filhos ilegtimos. Assim, nossosdados so baseados em 89 casamentos num grupo de 500 pessoas, o que representa 22% dapopulao, cuja a maioria tem menos de vinte anos de idade.

    Nas cifras que se seguem, esto relacionados os dados concernentes s relaesgenealgicas existentes entre os cnjuges. Examinou-se cada um dos 110 casos a fim de sedeterminar a relao genealgica mais prxima entre o homem e sua mulher atravs da me do

    homem. Nos quadros, no se incluram outras relaes genealgicas que fossem mais distantesda me do homem. Nos casos em que por ventura ocorra tambm um vnculo entre o homem e aesposa atravs do pai do homem, as relaes mais prximas so descritas na seo seguinte.

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    Vnculosmatrilaterais

    N deocorrncias

    Ocorrnciassuspeitas

    Vnculosmatrilaterais

    N deocorrncias

    Ocorrnciassuspeitas

    at segunda gerao ascendente at quarta gerao ascendente

    fIm 8 1 fImPm 1 0fFIm 6 0 fFImPm 2 2ffIm 3 0 fFIPmm 1 1

    fFFIm 1 0 fFiPmm 1 0ffFIm 2 0 ffImmm 1 1fFfIm 1 0 fFimmm 1 0

    fFfIPPm 1 0at terceira gerao ascendentefFFiPPm 1 0

    fiPm 2 1 ffFImPm 1 0fImm 4 3 fFfImPm 1 0

    fFIPm 6 0 fFFIPmm 1 0fFiPm 1 0 fffiPmm 1 1ffiPm 2 1 fFFImmm 2 0fFImm 18 6 ffFImmm 2 0ffFmm 8 0 ffFimmm 2 0fFFiPm 1 0 fFfimmm 0ffFiPm 1 0fFFImm 1 0

    at quinta gerao ascendente

    ffFImm 1 0 fFfImmmm 1 1fffImm 1 0

    fFFimm 2 0ffFimm 2 0fFfFimm 1 0

    Figura 26 : Relao de vnculos matrilaterais entre maridos e esposas

    A Prima Cruzada PatrilateralOs Maxakali no consentem um homem casar-se com sua prima cruzada patrilateral.

    Protestam dizendo: "Ela a av dele (xukux)!" Para eles, uma boa razo, suficiente para nose contrarem esse tipo de matrimnio.

    Scheffler e Lounsbury (1971:175) abordam a proibio de casamento com a fiPentre osSirion, afirmando que a mesma considerada como sendo uma irm do ego. Eles citamHomberg, segundo o qual os Sirion consideram as relaes sexuais com a fiPcomo incestuosas.Tambm citam Leach, segundo o qual as mulheres so identificadas com as mes e os homenscom os pais, por isso as relaes sexuais com a prima cruzada patrilateral parecem incestuosas aohomem. No caso dos Maxakali, possvel que no aceitem casamentos com a fiP, mascertamente o homem no considera a fiPcomo sua irm!

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    De acordo com a terminologia, a prima cruzada patrilateral maxakali identificada com ame dela. Este sistema no do tipo Crow, pois o desvio no se estende alm da categoria deprima cruzada da filha dela, e nem est o termo restrito linha paterna do ego. No hcorrespondncia no desvio dos termos na linha materna do ego masculino. O ego masculinorefere-se a esses parentes como 'kto'y, e dirige-se a eles como tiktak. Aplica-se o

    mesmo sistema ao ego feminino. Um sistema Crow puro faria a diferena entre o parentescopaterno e o materno. No se inclui a prima cruzada matrilateral do ego masculino na linha deparentesco, de maneira que no poderamos fazer suposies em relao ao padro de desviounilateral, tomando como base a prima cruzada patrilateral do homem. A afirmao feita porScheffler e Lounsbury (1971:108f) em relao aos Sirion tambm apropriada aos Maxakali:"O mximo que podemos dizer que esta terminologia s vezes associa uma dos parentes do egofeminino com a me dela."

    Um exame minucioso dos 110 casamentos maxakali revelou os seguintes fatos:

    1. A maioria dos casais maxakali pode traar seus vnculos de parentesco de trs a cincomaneiras diferentes.

    2. A maioria dos casais (talvez at todos) tambm est ligada pela linha paterna dohomem.

    3. Houve muitos casos em que o ego masculino casou-se com um parente patrilinear(xape).

    Podemos destacar um caso recente. Joviel casou-se com Neuza. Eu sabia que o pai deJoviel era meio-irmo da me de Neuza. Na verdade, Neuza era fiP, fflPPe fFiPmem relao aJoviel. A Figura 27 mostra os vnculos patrilaterais e matrilaterais existentes entre o casal.

    Figura 27: Os vnculos de Joviel com Neuza

    Ao constatar a relao entre o casal, protestei dizendo: "Mas Neuza a 'av' (xukux)dele! Pode um homem casar-se com sua av?" A coitada da Joan desconcertou-se por alguns

    minutos, mas voltou a explicar: "No, um homem no pode se casar com sua 'av', mas, naverdade, Neuza somente um "parente distante" dele (xape hptox h) como se eles nofosssem aparentados (pukng)."

    No nos pareceu prudente insistir nesse assunto. Parece, que as regras de casamento noso to rgidas que no podem ser adaptadas ao desejo de um casal. Embora a rigor no seaprovem os casamentos com as primas cruzadas patrilateral, parece que toleram alguns vnculosprximos patrilaterais quando a ligao com o lado materno est em ordem. Entre os 89 casos

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    anteriormente mencionados, que fazem parte dos nossos dados, observaram-se diversoscasamentos cujos cnjuges, embora no "parentes" pela linha matrilateral, possuam estreitosvnculos patrilaterais.

    Em seguida, apresenta-se um estudo estatstico desses casais, tendo como base os 89casos dos nossos dados. Estas so as relaes genealgicas mais prximas entre um homem e sua

    esposa, traadas atravs do pai do homem.

    Vnculo patrilateral Total Vnculo patrilateral Total

    mais remoto na primeiragerao ascendente

    mais remoto na terceiragerao ascendente

    fFi 1 fImP 2

    fimP 1mais remoto na segundagerao ascendente

    fFIPP 2fFIP 1 ffIPP 2

    ffIP 1 ffiPP 3

    fFiP 4 ffImP 2

    ffiP 7 ffimP 1

    ffim 1 ffFIPP 1

    ffFIP 1 fFfIPP 1

    fffIP 1 fffIPP 1

    fffiP 1 fffiPP 1fffimP 1ffFfIPP 1

    Figura 28: Vnculos patrilaterais entre os casais

    Consideremos alguns desses casamentos. O primeiro da lista, fFi, a neta da irm do egomasculino, certamente um parente distante (parentesco cruzado), sendo um tipo de casamentomuito raro entre os Maxakali. Se levarmos em considerao as idades de alguns dos filhos dela, possvel que ela se casou em 1917.

    Em meados daquela poca, os Maxakali viram suas terras em Ribeiro do Rubim,

    atualmente local da vila Unio, ocupadas por invasores. Em 1921, eles foram forados a evacuardessa regio e, um aps o outro, finalmente chegaram s cabeceiras do Rio Itanham. Tambm,por volta de 1915, houve uma epidemia de varola que reduziu, em pouco tempo, a populao aum s grupo, equivalente a um quarto do seu nmero original. Esse grupo foi reduzido aindamais com outra epidemia de sarampo. Como se isso no bastasse, um homem que se declarou"domador de ndios" ganhou a confiana da tribo e, aproveitando-se da situao, vendeu oterritrio dos Maxakali aos neobrasileiros, vidos procura de terras (Rubinger, 1963b:252).

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    Em questo de duas dcadas, a populao decaiu de milhares para menos de sessentaindivduos. Famlias inteiras foram dizimadas pelas epidemias, bem como nas lutas desesperadaspara a reteno de terras necessrias sua sobrevivncia. Diante disso, onde que os homenspoderiam encontrar as mulheres para que a sociedade pudesse subsistir? O que restaria aohomem fazer se as nicas mulheres solteiras da tribo lhe eram ligadas por laos de parentesco

    no-permitveis ao casamento?Outro exemplo o casamento entre Mnn e Sian, a neta (putixix), ou ffim dele.

    Diversos casamentos ocorridos nessa mesma poca comprovam um afastamento radical dasnormas tradicionais da tribo.

    Nos meados de 1945, Corio casou-se com Ana, sua ffiP, fime fFIm. Como so primosparalelos, ela era considerada sua irm, caso que poderia ser visto como incestuoso. No entanto,conseguiram dar uma nova interpretao s regras de casamento, beneficiando assim a sociedadeao enfrentar uma crise de sobrevivncia.

    Estratgias De Adaptao

    De acordo com Malinowski (1945:60), a desintegrao da famlia e do parentesco simplesmente o resultado da presso advinda da misria econmica. Quando o ser humano passapor necessidades extremas, o seu pensamento no se estende alm da sua prpria sobrevivnciabiolgica. Quando a estrutura social existente no consegue satisfazer as necessidades dasociedade, h uma tendncia em modificar aquela estrutura. Devemos levar em consideraotanto a mudana como a continuidade do sistema (Firth, 1961:39,40).

    Para qualquer sociedade, uma mudana cultural , sem dvida, dramtica, e as foras queresistem s mudanas fazem o possvel para preservar o equilbrio do grupo (Foster, 1969:11).Quando mencionamos mudanas que ocorrem com relao a cost