Três viagens exemplares na narrativa medieval portuguesa

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Três viagens exemplares na narrativa medieval portuguesa

António Martins Gomes. Universidade Nova de Lisboa

A organização clerical, um tentacular aparelho de propaganda do

teocentrismo medieval, privilegia por diversas vezes a viagem para melhor insinuar os

preceitos morais e religiosos na sociedade. Lenda de Barlaão e Josafá, Visão de

Túndalo e Conto de Amaro, três curtas narrativas enquadradas no mais genuíno espírito

alcobacense, recorrem a um modelo de viagens efectuadas por entre descidas

arrepiantes ao Inferno e ascensões jubilosas ao Paraíso para representar o ser humano na

sua sofrida e fátua passagem pelo mundo terreno, bem como para reflectir sobre o seu

destino após a morte.

São escassas e muito específicas as referências ao tema da viagem

encontradas na literatura produzida ao longo da dinastia de Borgonha; com efeito, em

alguma lírica deste período, mais concretamente nas cantigas de amigo, está presente

tanto a ideia de que o amigo da jovem queixosa se ausentou para longe ou está prestes a

fazê-lo, a fim de combater os inimigos da fé cristã, conforme se observa em “Ai eu,

coitada, como vivo”, de D. Sancho I, e “Como eu vivo coitada, madre, por meu amigo”,

de Martin de Guinzo. Recordemos ainda as cantigas “Mandad’hei comigo” e “Por Deus

que vos non pes”, de Martin Codax e Martin Padrozelos respectivamente, onde a

ansiosa amiga manifesta o desejo íntimo de ir ao encontro do seu amado, regressado dos

trabalhos da guerra, ou até mesmo as cantigas de romaria, alusivas a peregrinações a

espaços sagrados como forma de purificação e como pretexto para ver o amigo.

Contudo, o próprio acto da viagem – seja ela mais ou menos longa – fica-se apenas por

essa mesma vontade, nunca chegando à concretização.

Já em plena dinastia de Avis, a poesia, entendida neste período mais como um

género lúdico e uma forma de transmissão da estética do belo, é relegada para segundo

plano e dá lugar à literatura em prosa, de cariz mais didáctico e utilitário, e iniciada

sobretudo com a tradução de textos latinos, um moroso e delicado trabalho intelectual

efectuado por copistas no scriptorium monástico.

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O Mosteiro de Alcobaça é fundado em 1151 por Dom Afonso Henriques, e

transforma-se desde muito cedo num grande centro cisterciense que “acompanha de

perto a formação da nacionalidade portuguesa” (Buescu 1990: 103), e cujos membros se

reconhecem pelo voto de pobreza defendido pelo austero Bernardo de Claraval. É neste

ambiente clerical que são traduzidas as três narrativas indicadas no início para podermos

observar algumas funções importantes da viagem na Idade Média. Pertencentes ao

Códice Alcobacense, o maior conjunto de manuscritos produzidos em Portugal, estes

textos de edificação moral e religiosa documentam o emblemático teocentrismo da

mundividência medieval e transmitem uma mensagem cristã que propõe uma ascensão

gradual até Deus pela via da sobriedade, com a consequente renúncia ao luxo e aos bens

materiais.

Não é por mero acaso que os protagonistas destes três textos têm um aspecto

social em comum: a riqueza que possuem. De acordo com a doutrina cristã, segundo a

qual é mais fácil passar um camelo pelo buraco duma agulha do que entrar um rico no

reino de Deus (cf. Evangelho segundo São Mateus, 19: 24), também estas narrativas

condenam a acumulação de riqueza e os valores do capital; através dos seus

protagonistas exemplares, todos de elevada condição social, é feita uma crítica implícita

ao negotium, a azáfama dos homens em busca de bens materiais, e a clara apologia do

otium, a prática de vida moderada e de reclusão espiritual: o príncipe Josafá renega a

uma vida faustosa e à sucessão ao trono paterno para abraçar uma via contemplativa, o

bellator Túndalo passa a repartir os seus bens pelos pobres, e o abastado burguês Amaro

desfaz-se de todas as suas posses e parte à demanda do Éden.

Os três textos assemelham-se ainda na forma de encarar a viagem como

elemento catalisador de descoberta, de penitência e de redenção: em Lenda de Barlaão e

Josafá, ela contribui tanto para o despertar interior do protagonista ao tomar consciência

da labilidade da vida como para o consequente acolhimento da mensagem cristã; em

Visão de Túndalo, a viagem da alma pelos três fabulosos mundos do imaginário

medieval serve para auxiliar o protagonista a confrontar os seus próprios pecados e a

arrepender-se de os ter cometido; em Conto de Amaro, a viagem dá lugar à mais ousada

confirmação da teoria criacionista, ao representar o primeiro “berço” da humanidade e

ao exibir a maçã do pecado original como prova evidente, e a partir de cujo espaço

descoberto e longamente contemplado o protagonista torna-se santo e funda uma cidade.

De percursos e distâncias bem diferentes entre si, estas viagens demonstram

ainda o desejo de conhecimento dos protagonistas eleitos por Deus, que, agindo por

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chamamentos e sinais divinos, abandonam o conhecido espaço familiar e despojam-se

da posição social sem a certeza do regresso de lugares estranhos e desconhecidos: é do

desejo de conhecer o mundo que o príncipe indiano toma contacto com o mundo real,

passo determinante para aderir com mais facilidade ao ideário cristão; é do desejo de ver

o Paraíso terrestre que Amaro viaja por mar sem rumo traçado até à visão esperada, a

partir da qual, no regresso, funda uma cidade com uma mão-cheia de terra ofertada pelo

guardião do Paraíso.

A estrutura dos três textos também é similar no que respeita ao duplo

movimento iniciático de descida e ascensão nas viagens efectuadas pelos seus

protagonistas. Neste sentido, a catábase pode ser identificada nos momentos em que

Josafá “desce” à Terra, da torre do palácio onde se encontrava encerrado, para abrir os

olhos para o mundo real e tomar consciência, num enquadramento platónico, da frágil e

efémera condição humana; em que Túndalo baixa aos mais profundos níveis do Inferno

para saber como é o sofrimento eterno de quem vive em constante pecado; e em que

Amaro navega algures num mar “coalhado” e assiste ao tenebroso espectáculo da morte

dos tripulantes de sete naus por um bando de bestas marinhas. Em termos de anábase,

Josafá alcança o supremo grau da ascese, Túndalo é levado ao Paraíso celeste e à

contemplação da sua hierarquia mais elevada, e Amaro satisfaz o seu mais íntimo desejo

quando atinge o altaneiro Paraíso terrestre.

Concentrando-nos agora numa análise mais particularizada destas três

narrativas místicas e redentoras, comecemos pela Lenda de Barlaão e Josafá1, uma

representação literária da lenda adaptada à fé cristã do príncipe Siddartha Gautama2.

Este texto hagiográfico começa por apresentar Avenir, um rei indiano celebrizado pelas

inúmeras vitórias sobre os inimigos, por ser dono de uma imensa fortuna, bem como por

perseguir os seguidores da crescente fé cristã. Ao nascer o seu filho varão, tão

ansiosamente aguardado, dá-lhe o nome de Josafá, e, para contrariar a sua profetizada

conversão ao cristianismo, encerra-o dentro das muralhas do palácio, impedindo-o

assim de ver as misérias do mundo e da vida humana. No entanto, após tanta instância

1 Também intitulada Vida Angélica do Infante Josafat, Filho de Avenir, Rei Indiano.2 Adaptação feita a partir da obra Lalita Vistara, a biografia de Sakyamuni, o iluminado Buda, cujo texto

terá sido levado da Índia no século VI por peregrinos para um mosteiro em Jerusalém, e traduzido mais tarde para diferentes línguas. A versão em português, cujo manuscrito se encontra actualmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, surge por via de uma tradução feita no Mosteiro de Alcobaça pelo frei Hilário da Lourinhã no século XIV, sendo anterior à primeira das três versões castelhanas. Na Península Ibérica, esta história voltará a ser motivo de interesse tanto em Portugal, com a sua inclusão nas duas edições quinhentistas do Flos Sanctorum (1513 e 1567), como em Espanha: na primeira metade do século XVII, são estreadas as peças hagiográficas Barlaan y Josafa, de Félix Lope de Vega e La Vida es Sueño, de Calderón de la Barca.

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ao longo de anos, Avenir concede-lhe a liberdade: a partir desse dia, o jovem príncipe

inicia uma sequência de viagens que o conduzirão ao verdadeiro conhecimento do

mundo, adquirido pela sua própria experiência.

Será durante a sua caminhada iniciática, equivalente a uma passagem da

adolescência para o estado adulto, que Josafá irá ver de perto a realidade terrena, numa

sequência trifásica de maturação intelectual e tomada de consciência: primeiro,

observando homens doentes; em seguida, constatando a contínua passagem do tempo e

o incontornável envelhecimento do ser; por fim, a confirmação manifesta da morte. É

deste modo gradual que o príncipe Josafá, ao aprender por si próprio que todos nascem

para amargar e morrer, se prepara para receber a mensagem do cristianismo3.

Surge então uma personagem ascética, através da qual se cumprirá a profecia

inicial: Cristo aparece ao eremita Barlaão e envia-o à Índia para transmitir a sua

doutrina a Josafá. Cumprindo a ordem divina, este clérigo, com um discurso carregado

de marcas retóricas, irá provocar um efeito persuasivo a Josafá, fazendo crescer a sua

espiritualidade, até atingir a solitária via contemplativa e o desprezo do mundo. É neste

preciso momento que assistimos a uma modificação da lenda original, na medida em

que Josafá passa a representar “uma cristianização do jovem príncipe Siddartha e da sua

caminhada em direcção ao Despertar.” (Feitais 2007: 220, nota).

A Visão de Túndalo, também intitulada História do Cavaleiro Túngulo, é um

relato redigido originalmente em meados do século XII por um monge de origem

irlandesa chamado Marcus, e a sua acção, centrada em torno de uma jornada feita em

três dias pela alma de um cavaleiro moribundo, é a antecâmara matricial da estrutura

narrativa representada no tríptico épico de Dante: Inferno, Purgatório e Paraíso. A

peregrinação interior de uma alma até à sua conversão ao ideário católico é o relato

medieval mais pormenorizado dos dois principais espaços transcendentes aqui

3 É neste ponto que o pensamento budista e a mensagem cristã do homo viator se cruzam, ao partilharem a ideia de que entre o nascimento e a morte todo o ser humano está de passagem, como se pode observar no seguinte excerto, que sintetiza a vida de Siddartha Gautama:

Criado pela irmã da mãe (falecida sete dias após o nascimento, devido a uma febre maligna) e pelo pai, o rei Shuddhodana, a criança leva uma vida feliz no palácio. Dá provas, desde logo, de uma inteligência e de uma força fora do comum. No entanto, quatro encontros (com um velho, um doente, um morto e um religioso) levam-no a reflectir sobre a precariedade e o sofrimento da condição humana. Ao ver mulheres adormecidas no palácio (que lhe fazem lembrar o espectáculo de uma carnificina), Siddartha renuncia à condição de príncipe para se tornar num religioso errante… (Bayou et al. 2000: 43. Sublinhado nosso.).

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representados4, e as dezenas de línguas para as quais foi vertido comprovam a sua

procura e popularidade5.

Túndalo é um jovem cavaleiro que não se preocupa o suficiente com a sua

alma, por ser vaidoso, pouco caridoso, e não frequentar a igreja nem orar. Apesar de

todos estas características negativas, este herói é um bellator, um guerreiro que combate

os inimigos da fé cristã e um modelo de comportamento social, e por isso Deus decide

dar-lhe uma nova oportunidade: quando este adoece, é dado como morto e durante três

dias a sua alma, liberta do corpo inerte, efectua uma viagem de purificação.

Como locus narrativo, a descida ao Inferno já tinha sido protagonizada em

algumas representações míticas e literárias: por Gilgamesh, o herói persa da mais antiga

epopeia popular; por Hércules, no cumprimento do seu penúltimo trabalho e de onde

traz Cérbero, o cão tricéfalo que guardava a entrada do Hades; por Orfeu, de cujo reino

dos mortos resgata Eurídice; por Psiqué, para cumprir o último dos quatro trabalhos ao

serviço de Vénus, a sua mãe: pedir um pouco de beleza a Perséfone; por Eneias, onde se

aconselha com o seu pai sobre a continuidade da sua viagem; ou por Cristo, no tempo

antecedente à sua ressurreição e descrita no Evangelho apócrifo de Nicodemos.

O Inferno visitado por Túndalo situa-se num vale escuro envolto em grandes

chamas e é descrito de forma bastante apelativa e simultaneamente assustadora, a fim de

transmitir a mais profunda carga de sofrimento e de horror6:

E o fogo fedia com muita intensidade e jaziam sobre ele muitas almas cativas e queimavam-nas em sertãs acesas. E depois de serem derretidas, coavam-nas, assim como coam a cera, e caíam sobre aquelas brasas acesas.

Na primeira parte da viagem, a alma do cavaleiro toma conhecimento de que

o Inferno é hierarquizado consoante a gravidade dos pecados cometidos, tais como a

soberba, o assassínio, o roubo, a luxúria, a gula ou a mentira. Nos momentos de

provação desta aventura penosa, o Anjo da Guarda abandona a alma para que ela se

apavore um pouco com o ambiente de tortura aí vivido e com o castigo eterno dos

pecadores. A meio do percurso agreste surge um medonho animal, descrito com

imagens detalhadas de horror extremo:

4 Nesta altura, o espaço do Purgatório não teria ainda uma importância relevante.5 Existem duas versões portuguesas datadas da transição do século XIV para o XV, feitas a partir de

originais diferentes e conservadas respectivamente na Biblioteca Nacional de Portugal e na Torre do Tombo.

6 A fim de transmitir com a maior clareza possível o conteúdo dos textos originais, opta-se aqui – mesmo contando à partida com a discordância, compreensível, de muitos medievalistas – por uma actualização ortográfica, na qual se substituem os vocábulos mais complexos e caídos em desuso por outros, de igual sentido.

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E tinha dois pés muito grandes e o colo muito comprido e pela boca dela saíam chamas de fogo muito grandes. E esta besta estava sobre a boca de um lago muito grande que estava coberto de geada. E comia quantas almas achava. E, depois que as comia, deitava-as de si naquele lago que estava coberto de geada, e saíam assim de um grande calor para um grande frio. E todas aquelas almas que jaziam naquele lago ficavam todas prenhes, e, quando pariam, tão grandes eram os brados que davam com as dores que tinham que não há homem nascido que as pudesse contar. Tanto as mulheres como todos os homens emprenhavam e pariam. E não pariam pelos lugares por onde costumam parir as mulheres, mas pariam pelos braços e pelos peitos e pelas pernas. E pariam serpentes e bestas que tinham dentes de ferro muito aguçados e mordiam as almas de que saíam. E tinham em si aguilhões tortos como arpões de pescadores com que seguravam as almas. E tornavam as serpentes às almas e comiam-nas com tal ferocidade que tamanhos eram os brados e os gritos e o ruído que faziam que não há homem no mundo que os pudesse contar.

Túndalo prossegue a sua aventura arrepiante, e antes do fim da etapa infernal

ainda é assediado por um grupo de diabos mais negros que o carvão, com dentes mais

brancos que a neve, um rabo de escorpião, asas de águia e unhas de ferro, mas – como

sempre – é resgatado pelo seu protector. Surge então o último nível, onde se pode

observar a extrema fertilidade imaginativa na representação medieval do Diabo:

E aquele Lúcifer era tão grande que superava em tamanho todas as outras bestas e a figura dele era como de homem desde a cabeça até aos pés e era negro como o carvão. E nos braços tinha muitas mãos e tinha um rabo grande e medonho, no qual tinha mais de mil mãos, e cada uma era mais larga que cem palmos. E as unhas dos pés e o rabo estavam cheios de aguilhões muito aguçados, e ele jazia sobre um leito de ferro e sob aquele leito estava muito carvão aceso. E os diabos sopravam aquele carvão e acendiam-no e ao seu redor estavam tantas almas que não há homem que as pudesse contar nem imaginar que tantas almas fossem criadas no mundo.

É chegado o momento em que o Anjo da Guarda, após contar a Túndalo a

história de Lúcifer e da sua queda no lugar eterno de tortura de todos aqueles que

cometeram pecado sem arrependimento, o encaminha para o Purgatório, um irrelevante

espaço intermédio ladeado por um muro muito alto para que ali permaneçam por algum

tempo os que não cumpriram devidamente as recomendações de Deus. Apesar de esta

tradução ter sido feita um século após o tempo de Dante, está ainda longe o papel

primordial atribuído na última parte da Divina Comédia à mulher como intermediária

privilegiada de Deus e guia sucedânea de Virgílio: em todo o percurso instrutório, o

cavaleiro penitente terá sempre a monitorização atenta do seu Anjo da Guarda.

Entram, enfim, por uma porta que se abre por si própria para um jardim onde

há uma fonte de água viva e muitas almas. Embora menos hierarquizado do que no

Inferno, o Paraíso apresenta também uma compartimentação rígida: à medida que a

alma ascende ao longo dos sete níveis celestiais, há um aumento da intensidade

luminosa e da profusão de pedras e metais preciosos, através das quais as almas puras e

santas reverberam de forma cada vez mais intensa. Passa a haver então uma euforia

descritiva, apelativa aos sentidos, sobretudo na contemplação extática de riquezas

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intermináveis por almas regozijantes, nos inebriantes aromas nunca no mundo sentidos,

e nos sons melodiosos vindos de aves canoras e de cânticos sacros7.

É neste espaço distante composto por anjos, arcanjos, profetas, apóstolos,

mártires e virgens, que termina a viagem da alma de Túndalo, sendo-lhe ordenado o

regresso ao seu corpo para que dê ao mundo o seu testemunho e para que a sua história

pessoal seja um exemplum8 de conversão e fidelidade à fé cristã. Em corpo e alma já

unido, Túndalo abre os olhos de imediato, pede o sacramento da comunhão, e começa a

louvar a misericórdia divina.

Uma das características tradicionais do herói é a integridade, ou seja, a

extrema constância do seu pensamento e acção, como poderemos confirmar

seguidamente no Conto de Amaro. Contudo, o cavaleiro Túndalo afasta-se do conceito

clássico de herói, na medida em que, apesar do seu passado reprovável, é o melhor

exemplo do arrependimento: este nobre bellator torna-se um modelo perfeitamente

adequado à doutrina cristã ao mostrar-se capaz de autocriticar a sua conduta passada e

de se retractar perante Deus aos seus intermediários terrenos; graças ao livre-arbítrio, o

novo herói torna-se um homem melhor porque opta por uma vida cristã e crê num

mundo arquetípico onde estará no futuro, livre de privações ou maleitas.

A propósito da componente doutrinária presente nestas edificantes narrativas

de viagens, num contínuo empenho na difusão do cristianismo, e como mote

introdutório ao terceiro e último texto, refere Ana Paula Dias o seguinte:

Constituem códigos de uma moral estrita, de acordo com os modelos de religiosidade da época e surgem, simultaneamente, como veículos e repositórios de um sistema de valores e de categorias culturais, definidores da mentalidade e sensibilidade medievais, como modelos de acesso e convivência com o Sagrado. Os valores que neles ressaltam são a pobreza, a obediência, a castidade, a abstinência, o respeito pelas hierarquias, a temperança, consubstanciados em prédicas, exortações ou exempla, em pequenas histórias ou contos exemplares, como no caso do Conto de Amaro. (Dias 1997)

Com efeito, o Conto de Amaro é uma narrativa hagiográfica com uma função

didáctica por excelência, cujos aspectos principais se encontram muito bem

identificados no excerto anterior9. O seu protagonista, um dos mais importantes na

7 Segundo Maria Clara de Almeida Lucas, a propósito do espaço paradisíaco, “a presença dos animais pacíficos, das ervas odoríferas e das árvores de fruto, inexistência de excessos climáticos (que uma permanente Primavera substitui), a ausência, em suma, de todo o desconforto que aterroriza o homem, de maus pensamentos, de tristeza, de fome, de perigo são características paradigmáticas.” (Lucas 2001: 297).

8 “O exemplum surge como uma narrativa curta de significado muito directo: o castigo (que geralmente é a morte, suprema punição ou, até, a apropriação do pecador pelo demónio) ou a recompensa (que, paradoxalmente, surge também por vezes com a figura de morte, mas de morte salvadora e porta da vida eterna).” (Buescu 1990: 104).

9 Inspirado na céltica Viagem de São Brandão e traduzido para português em finais do século XIV, a curiosidade deste texto reside no facto de não se conhecerem mais traduções para outras línguas

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hagiografia portuguesa, tinha a enorme aspiração de contemplar o Paraíso terrestre e

pedia a Deus que lho mostrasse antes de morrer.10 Ao escutar uma voz divina a ordenar-

lhe que viaje por mar sem dizer nada a ninguém, desfaz-se então de todos os seus bens e

distribui os lucros da venda pelos pobres, guardando apenas o suficiente para as

despesas iniciais.

Com dezasseis companheiros, Amaro efectua a sua viagem ao longo de

etapas que o preparam para a contemplação idealizada. Pelo meio, percorre seis ilhas

pouco povoadas, encontra-se com monges eremitas e frades, escuta as palavras amigas

de uma misteriosa dama, vê terras malditas e criaturas formosíssimas, e assiste ao

espectáculo tenebroso de monstros marinhos a devorarem as tripulações inteiras de sete

naus. Após esta visão indescritível, agradece a protecção milagrosa da Virgem Maria,

reconhecendo ainda a labilidade da vida e a insignificância do ser humano:

E bem parece que este mundo anda à roda e corre, que desde a hora em que o mesquinho do homem nasce nunca se livra de perigos. Ora é pobre, ora é rico, ora ousado, ora cobarde, ora tem saúde, ora é doente, ora tem contentamento, ora coitas. E assim há-de passar o mesquinho do homem neste mundo, e sobretudo aqueles que Deus ama, e o servem, mas padecem de coitas e tribulações mais que os outros.

Em cada ilha, há sempre quem lhe transmita algum conselho importante, a

fim de prosseguir a sua doutrinação. Com sinais do Paraíso cada vez mais intensos,

como o do convívio sereno entre homens e feras, Amaro chega por fim à sétima ilha, e –

já sem os seus restantes companheiros, para trás deixados – encontra-se com Valides,

uma dama que lhe vale ao validar a sua longa jornada: leva-o ao curso de um rio

proveniente do Paraíso terrestre, situado no pico de uma alta serra. Passado pouco

tempo, Amaro descortina o castelo mais alto e mais belo de todos quantos já vira, com

cinco torres em mármore e um rio a jorrar de cada uma.

À entrada, o porteiro confirma-lhe ser aquele o espaço terreno onde Deus

criou o primeiro homem, diz-lhe que ainda não é chegado o momento de entrar, mas

abre-lhe a porta para ele observar o seu interior. O protagonista tem então o privilégio

exclusivo de apreciar um indizível espaço bucólico povoado de aves canoras, onde se

encontra inclusive a maçã do pecado adâmico, objecto que evoca a queda humana e

europeias, à excepção de duas versões castelhanas, datadas dos séculos XV e XVI.10 Durante o século XIV, há um espaço geográfico imaginário representado pelos cartógrafos em alguns

mapas e cartas de navegação, que se presumia localizar-se algures no Oceano Atlântico, como são exemplos míticos a Avalon arturiana, a Atlântida de Platão, ou até mesmo as Ilhas Afortunadas cantadas por Hesíodo. Este local mítico, com cidades cobertas de ouro, era denominado a Hy Brazil, ou seja, a Ilha do Brasil, que, segundo a lenda, só surgia à vista humana de sete em sete anos e cada vez que um barco se aproximava, logo se afastava no horizonte. Como nota de curiosidade, o termo “Brasil” parece derivar do lexema celta “bress”, que, por sua vez, dá origem a “bless”, ou seja, Hy Brazil significaria “Ilha Abençoada”. Para uma leitura mais aprofundada, cf. Donald S. Johnson, Phantom Islands of the Atlantic: The Legend of Seven Islands That Never Were, Nova Iorque, Walker and Company, 1994.

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transmite à narrativa uma veracidade histórica11. Sem se aperceber da passagem do

tempo e sem envelhecer, Amaro irá aí quedar-se em contemplação extática por duzentos

e sessenta e sete anos.

Ao fim de quase três séculos, Amaro regressa à sua terra natal, onde já tudo

se tinha transformado e nada lhe era familiar. Com uma porção de terra trazida do

Paraíso, decide então erguer uma nova cidade num local onde convergiam três vales e

três rios, espaço perfeito para uma vida dedicada à ascese. Já como senhor dessa nova

cidade, chega a hora da sua morte e a sua alma sobe aos céus para entrar então no

prometido Paraíso celeste.

Entre a descrição realista e o registo alegórico, estas visões efémeras do Além

são como reminiscências divinas que comprovam a eternidade da alma jubilosa e a sua

recompensa após uma vida terrena arredada das maiores tentações carnais. A propósito

do conjunto de narrativas apologéticas e didácticas, entre as quais se incluem os textos

aqui tratados, tece Maria Leonor Buescu as seguintes considerações:

Valores como a pobreza, a castidade, a obediência, o respeito pela hierarquia, a abstinência e a temperança aparecem veiculados quer em forma da prédica e da exortação quer através de exempla, sob a forma de pequenas histórias ou contos exemplares da mais diversa origem. (Buescu 1990: 103)

Na verdade, estas narrativas apologéticas são elaboradas com o objectivo

estratégico de persuadir o leitor a aderir a um conjunto de valores ou de auxiliar o crente

a aperfeiçoar-se em termos éticos e religiosos. Com o maravilhoso cristão sempre

presente, estes textos respeitantes ao homo viator em penitência pelo mundo anunciam,

sem qualquer ambiguidade interpretativa, a eternidade no Paraíso celeste “como

recompensa de uma vida de sofrimento que acaba sempre, inexoravelmente, com a

morte” (Lucas 2001: 298). É por esta mesma razão que tanto Amaro como Túndalo,

após terem peregrinado pelos espaços mais debatidos pelo intelecto medieval, obcecado

na partição maniqueísta do mundo entre a alvura do bem e as trevas do mal, irão dar o

seu testemunho a toda a comunidade, sendo os seus exemplos de determinação e fé a

prova axiomática da recompensa futura pelo sacrifício individual.

Bibliografia

Edições utilizadas:Conto de Amaro (ed. Otto Klob). A vida de Sancto Amaro, texte portugais du XIVe siècle. Romania.

XXX, 1901. Paris, p. 507-518.

11 “Dans l’universe chrétien, la nature érotique de la tentation apparut dés l’origine, puisque c’est pour se connâitre, dans le sens biblique du terme, que nos premiers Parents croquèrent le fruit de la volupté.” (Villeneuve 1963: 45)

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Lenda de Barlaão e Josafá (ed. G. de Vasconcelos Abreu). História e Memórias da Academia Real das Ciências. Tomo VII, Parte II, Memória I. 1821. Lisboa.

Visão de Túndalo (ed. Patrícia Villaverde Gonçalves). AA. VV., “Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense: Vida de Tarsis, Vida de uma Monja, Vida de Santa Pelágia, Morte de S. Jerónimo, Visão de Túndalo”. Revista Lusitana. Nova Série, nº 4, 1982-1983, Lisboa, pp. 5-52.

Outras obras:Bayou, Hélène, Amina Okada, Bérénice Geoffroy-Schneiter. 2000. ABCedário do Budismo. Trad.

Fernando Correia de Oliveira. Lisboa: Público.Buescu, Maria Leonor. 1990. Literatura Portuguesa Medieval. Lisboa: Universidade Aberta.Dias, Ana Paula P.. 1997. Vida de Sancto Amaro: A representação do Paraíso no imaginário clerical

medieval. Consultado na Internet a 20 de Outubro de 2009 em <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaio40.htm>.

Feitais, Paulo. 2007. Perdição, orientação e a urgência do Caminho: o Budismo e a Cultura Portuguesa – uma abordagem hermenáutica. Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Ano VI, 2007, nº 11, 211-224.

Lucas, Maria Clara de Almeida. 2001. Literatura Visionária. In AA. VV., História da Literatura Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Publicações Alfa, pp. 291-303.

Villeneuve, Roland. 1963. Le Diable. Érotologie de Satan. Paris: Jean-Jacques Pauvert.

Abstract

The travel, often seen an essential act of pilgrimage and soul redemption, is a systematic subject in several medieval prose texts, produced with the explicit intention of persuading the reader to adhere to a set of ethical standards and to respect the Christian faith. Lenda de Barlaão e Josafá, Visão de Túndalo and Conto de Amaro are three exemplar narratives translated into Portuguese in which the descent to Hell and the ascension to Paradise are both allegoric and didactic ways of conveying the punishments and rewards of the human being taken after his short life in the material world.

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