Três Velocidades do Direito Penal

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 TRÊS VELOCIDADES, UM INIMIGO, NENHUM DIREITO: UM ESBOÇO CRÍTICO DOS MODELOS DE “DIREITO” PENAL PROPOSTOS POR SILVA – SÁNCHEZ E JAKOBS Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós –graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal. (...) el mundo cambia y sigue siendo como antes”. “También el hilo que divide la inteligencia de la estupidez es mui fino, ya te darás cuenta. Cuando se rompe, ambas cosas se funden (...)”. Oriana Fallaci – Carta a un niño que nunca nació, p. 61 e 82. 1 – INTRODUÇÃO Em sua obra “O Estrangeiro” Albert Camus retrata o personagem Mersault levando uma vida banal, marcada pela indiferença. Ele comete um homicídio, é preso, julgado, mas tudo se processa de forma inexplicada, sem sentido, apresentando-se somente um homem arrastado pela corrente da vida e da história. Um homem sem uma base sólida em que sustentar-se, desprovido de fé, religião, valores morais, em suma, um homem desamparado e, absurdamente, por isso mesmo, livre. E é essa liberdade, essa falta de parâmetros que concomitantemente o liberta e angustia. Encaminhando-se para a execução da pena capital, Mersault revela seus  pensamentos pela escrita de Camus: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”. 1  Efetivamente o homem pós – moderno encontra-se abandonado à própria liberdade, mergulhado na desorientação de um relativismo conglobante a conformar um individualismo exacerbado. 2   Nesse contexto o Direito ganha destaque como instrumento funcional de redução d e complexidades e contingências e “estabilização de expectativas”, intentando um mínimo de segurança e orientação no convívio social. 3  Mas, o Direito não pode garantir infalivelmente a plena satisfação, em todos os casos, das “expectativas normativas”, de modo que o “desapontamento” em relação a estas é previsível e inevitável. Então o que o 1  CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 19  ª  ed. T rad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 126. 2  Para um aprofundamento desse tema: LIPOVETSKY, Gilles. A So ciedade Pós – Moralista. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005, “passim”. 3  LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Volume I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 57.

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TRÊS VELOCIDADES, UM INIMIGO, NENHUM DIREITO: UM ESBOÇOCRÍTICO DOS MODELOS DE “DIREITO” PENAL PROPOSTOS POR SILVA – 

SÁNCHEZ E JAKOBS

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social,Pós –graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor deDireito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na

Unisal.

“(...) el mundo cambia y sigue siendo como

antes”.“También el hilo que divide la inteligencia de la

estupidez es mui fino, ya te darás cuenta.Cuando se rompe, ambas cosas se funden (...)”.

Oriana Fallaci – Carta a un niño que nuncanació, p. 61 e 82.

1 – INTRODUÇÃO

Em sua obra “O Estrangeiro” Albert Camus retrata o personagem Mersault levandouma vida banal, marcada pela indiferença. Ele comete um homicídio, é preso, julgado, mastudo se processa de forma inexplicada, sem sentido, apresentando-se somente um homemarrastado pela corrente da vida e da história. Um homem sem uma base sólida em quesustentar-se, desprovido de fé, religião, valores morais, em suma, um homem desamparado

e, absurdamente, por isso mesmo, livre. E é essa liberdade, essa falta de parâmetros queconcomitantemente o liberta e angustia.Encaminhando-se para a execução da pena capital, Mersault revela seus

 pensamentos pela escrita de Camus:“Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar 

que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem comgritos de ódio”. 1 

Efetivamente o homem pós – moderno encontra-se abandonado à própria liberdade,mergulhado na desorientação de um relativismo conglobante a conformar umindividualismo exacerbado. 2 

 Nesse contexto o Direito ganha destaque como instrumento funcional de redução decomplexidades e contingências e “estabilização de expectativas”, intentando um mínimo desegurança e orientação no convívio social. 3 Mas, o Direito não pode garantir infalivelmente a plena satisfação, em todos os casos, das “expectativas normativas”, demodo que o “desapontamento” em relação a estas é previsível e inevitável. Então o que o

1 CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 19 ª ed. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 126.2 Para um aprofundamento desse tema: LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós – Moralista. Trad. ArmandoBraio Ara. Barueri: Manole, 2005, “passim”.3 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Volume I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1983, p. 57.

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Direito pode fazer é “domesticar” e institucionalizar o “primado da força física no  processamento de transgressões ao Direito” de forma a perseverar na manutenção dasexpectativas lesadas pela conduta desviante. 4 

Em uma sociedade complexa as possibilidades de transgressão tendem a acentuar-see as soluções para que o Direito, especialmente o Direito Penal, venha a enfrentar de forma

satisfatória tal situação podem passar a ganhar contornos extremamente autoritários. Neste trabalho analisar-se-á as propostas de Jesús – María Silva Sánchez (“DireitoPenal de Terceira Velocidade”) e de Günther Jakobs (“Direito Penal do Inimigo”),apresentadas como eventuais opções frente ao fenômeno da criminalidade pós – moderna.Intentar-se-á demonstrar que ambas propostas são incompatíveis com um Estado de DireitoDemocrático e falham totalmente em seus anelos de refrear ou limitar as tendênciasautoritárias que permeiam o discurso jurídico – penal da atualidade.

2 – AS PROPOSTAS DE SILVA – SÁNCHEZ E JAKOBS

Silva Sánchez constata que o Direito Penal na atualidade não opera de formahomogênea. O autor expõe com perspicácia um processo de diferenciação dos ritmos doDireito Penal no que tange à agilidade, desformalização e redução de garantias. Aponta umnúcleo duro do Direito Penal, representado pelas infrações para as quais se impõem penas  privativas de liberdade. Nesse núcleo sobrelevam os procedimentos mais formais egarantistas. Por outro lado, surge um seguimento de infrações penais para as quais não secogita, via de regra, de penas privativas de liberdade. É nesse espaço eu se desenvolveaquilo que Silva Sánchez denomina de “Direito Penal de Segunda Velocidade”, o qualcomportaria uma certa desformalização e redução de garantias. 5 Em seguida o autor acenacom uma suposta “terceira velocidade” do Direito Penal. Neste caso, tratar-se-iam deinfrações penais graves, com previsão de penas privativas de liberdade rigorosas, mas, para

as quais, mesmo assim, seria admitida uma desformalização e sensível redução de garantias penais e processuais. 6 De outra banda, Günther Jakobs também aponta para um Direito Penal menos

formalista e garantista com relação a certos infratores, dando forma ao que chama de um“Direito Penal do Inimigo” em contraposição a um “Direito penal do Cidadão”. Na visão deJakobs o Direito Penal cumpre a função de garantir a “identidade normativa” e a“constituição da sociedade”, de modo que a repressão empregada contra o transgressor reafirma a vigência e a validade das normas. 7 Nessa medida “a sanção contradiz o projetode mundo do infrator da norma: este afirma a não – vigência da norma para o caso emquestão, mas a sanção confirma que essa afirmação é irrelevante”. 8 Por isso, quando aconduta e a subjetividade do agente neguem de forma muito intensa as normas sociais, isso poderia retirá-lo da proteção legal, tornando-o uma “não – pessoa”. Para Jakobs o conceitode pessoa está diretamente ligado à atuação e à postura do agente perante a sociedade e as

4 Ibid., p. 123 – 125.5 SILVA SÁNCHEZ, Jesús – María. A expansão do Direito Penal . Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. SãoPaulo: RT, 2002, p. 144 – 147.6 Ibid., p. 148 – 151.7 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole,2003, p. 1.8 Ibid., p. 13.

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normas que a regem. Não uma qualidade inerente qualquer do indivíduo lhe conferiria o“status” de pessoa (v.g. racionalidade, pertencimento ao gênero humano etc.), mas sim suaatitude perante a sociedade e as normas. Assim sendo, “todo aquele que negue aracionalidade de modo demasiado evidente ou estabeleça sua própria identidade de formaexcessivamente independente das condições de uma comunidade jurídica já não pode ser 

tratado razoavelmente como pessoa em Direito, pelo menos não neste momento”.

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 Perdida a qualidade de “pessoa” em Direito, sabemos as limitações quanto àsformalidades legais e garantias que podem a partir desse ponto serem impostas ao infrator.

3 – BOAS INTENÇÕES E CONSEQÜÊNCIAS FUNESTAS

 Nada poderia ser mais injusto e equivocado do que acusar Silva Sánchez e Jakobsde pretensões ao autoritarismo e à formulação de uma teorização justificadora do arbítrio eda crueldade penais. Ambos deixam muito claro em suas exposições que apenas constatam

uma tendência do Direito Penal atual e procuram justamente evitar que esta possacontaminar todo o ordenamento indistintamente. Os autores sob comento assumem que oDireito Penal vai sendo permeado insidiosamente pela redução das garantias eformalidades e que esse processo não permite uma reação que o detenha. A única saída quevislumbram é a contenção parcial dessa tendência, de modo que procuram delimitar situações extremas em que esse novo Direito Penal minimalista quanto às garantias poderiaser aplicado. O intento de ambos os autores é blindar uma significativa parcela do DireitoPenal contra a contaminação autoritária, isolando-a a determinados setores, uma vez que asdemandas atuais da própria sociedade perante o Direito Penal a tornariam inevitável.

Silva Sánchez é bem explícito quando indica o fato de que as chamadas“legislações de emergência” vão dominando o Direito Penal, conformando aquilo que

Moccia denominou de “perene emergência”. Nesse contexto, um “Direito Penal de TerceiraVelocidade” não deixaria de ser encarado como um “mal” (como, aliás, todo o DireitoPenal), mas se apresentaria como um “mal menor” ante a possibilidade de um domínioabsoluto de um Direito Penal não – garantista. 10 

Diverso não é o pensamento de Jakobs ao asseverar que “um Direito Penal doinimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado deDireito, que entrelaçar  todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias doDireito Penal do inimigo”. 11 

9 Ibid., p. 46.10 SILVA SÁNCHEZ, Jesús – María. Ibid., p. 151. Também Zaffaroni menciona esse fenômeno expansivo

das legislações de emergência, destacando que tal ocorre não somente nos países periféricos da AméricaLatina, mas também tem grande incidência nos países centrais da Europa e América do Norte há bastantetempo: “O certo, porém, é que a invocação de emergências  justificadoras de  Estados de exceção não é demodo algum recente. Se nos limitarmos à etapa posterior à Segunda Guerra Mundial, constataremos que hámais de três décadas essas leis vêm sendo sancionadas na Europa – tornando-se ordinárias e convertendo-sena exceção perpétua – tendo sido amplamente superadas pela legislação de  segurança latino – americana”.ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal . Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan,2007, p. 14.11 JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio.  Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2 ª ed. Trad.André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50.

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Realmente as intenções dos penalistas em estudo são louváveis. Visam criar umarepresa contra a inundação do autoritarismo, da despersonalização do homem, procurandoao menos controlá-las, já que não seria possível evitá-las. No entanto, como ensina desdeantanho a sabedoria popular, “de boas intenções o inferno está cheio”.

Em seguida intentar-se-á demonstrar como em seu esforço de racionalizar o

irracional, os referidos autores acabam abrindo as portas para um Direito Penal autoritário eanti – garantista que, aí sim, passará a ser incontrolável e se alastrará como uma praga por todo o ordenamento jurídico – penal.

4 – A GÊNESE DE UM “NÃO – DIREITO” PENAL

Em um mundo dominado pelo “fazer” o “pensar” vai perdendo terreno e até mesmotornando-se um empecilho à agilidade das decisões e atuações. O tempo no mundoglobalizado da atualidade impõe um ritmo veloz que não condiz com a maturação das

idéias necessária para a intelectualidade. Constata-se, por assim dizer, o fenômeno do“silêncio dos intelectuais”, que vão sendo calados, suplantados e relegados a peças demuseu pelos políticos, administradores e técnicos. Até mesmo nas universidades quedeveriam ser o manancial por excelência da produção do pensamento, ocorre uma nítidadominação de um tecnicismo meramente pragmático – funcional, transformando-as pouco a pouco em produtoras de “fazedores” muito mais do que de “pensadores”.

  Nesse contexto não é surpresa o surgimento de uma concepção meramentefuncional do Direito, inclusive do Direito Penal, como obra de uma pragmática oca que  passa ao largo da intelectualidade e que, por isso mesmo, se dirige inexoravelmente aoabismo dos grandes erros daqueles que agiram sem pensar ou pensando pouco, rápido eequivocadamente.

  Não há realmente susto com o surgimento desse fenômeno na atualidade. O queassusta é que do seio da intelectualidade emirja um conformismo que tende a adaptar-se àirracionalidade de um tecnicismo acrítico e amoral (ou imoral?). Se já era lamentável aconstatação do “silêncio dos intelectuais” perante a realidade dinâmica da sociedadecontemporânea a não conceder-lhes o tempo necessário para o exercício do pensamento, oque dizer de sua pusilanimidade, aceitando a irracionalidade como inevitável pelo medo detornar-se Quixote? O que dizer da postura assumida num típico “se não pode com eles,então junte-se a eles”?

As grandes obras do intelecto advieram de Quixotes idealistas e sonhadores, atémesmo loucos em seus tempos. Jamais foi mister dos intelectuais a conformação perante aavalanche dos acontecimentos e a adaptação das idéias às circunstâncias. Isso sempre foicaracterístico dos covardes portadores de “consciências de aluguel”. 12 O intelecto estádiretamente ligado à posição ereta do homem, portanto jamais deve ser instrumentalizado para curvar sua espinha dorsal ante os acontecimentos, por mais devastadores e poderososque sejam. O medo, a timidez jamais foram bons conselheiros. Como lembra OrianaFallaci, é preciso ser valente para ser otimista. 13 

12 Usa-se a expressão cunhada por Dostoiévski no romance “O Adolescente”, ao referir-se justamente àatuação de certos juristas.13 Ibid., p. 81. No original: “Yo no era optimista porque no era valiente”.

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Acatar, ainda que de forma limitada ou controlada, uma concepção permissiva dasupressão de garantias básicas, até mesmo da configuração de todo ser humano como“pessoa”, é permitir o desmoronamento do Estado Democrático de Direito com todas assuas orientações humanistas.

É bem verdade que sob uma ótica funcionalista de matriz luhmanniana torna-se

difícil estabilizar expectativas a respeito do comportamento de indivíduos que se mostramtenazmente avessos às normas. 14 Talvez sob esse prisma pareça incoerente dispor garantias derivadas de normas legais àqueles que perseveram em afrontá-las e agir emfranca oposição a elas. Não uma oposição eventual ou pontual, mas um completo desalinhocom o sistema legal.

Aparentemente restaria inviabilizada até mesmo a comunicação através de umdiscurso entre seres livres e racionais. Por exemplo, o “inimigo” de Jakobs não permitiriaum “agir comunicativo” concebido por Habermas 15, na medida em que sua interação ésempre violadora das normas, inclusive aquelas que regem a legitimidade procedimental dodiscurso que atribui validade às normas. A atuação do “inimigo” não é comunicativa, masmeramente contestadora ou melhor dizendo agressiva, violenta, irracional, de forma que, ao

contrário de participar da comunicação, justamente a inviabiliza.Acontece que isso tudo pouco importa quando se chega à percepção de que a base  principiológica do Direito independe do comportamento daqueles que atuam de formaavessa a ele. Se o homem justo se pautasse pelo comportamento do injusto, já não seriadigno de ser chamado de justo. Da mesma forma se o Direito se orienta por suas violações ereage a elas relativisando os princípios que o regem, já não é mais “Direito” e converte-se,em verdade, em um “Não – Direito”.

Durkheim já observou que o crime não é uma patologia social e sim integrante dafisiologia normal de qualquer sociedade sã. A infração à norma não serve para invalidá-la,mas para reafirmá-la em sua vigência. 16 Ora, admitir que a postura do infrator venha a ser o guia para a aplicação das garantias legais ou não a certos indivíduos, inclusive

  procedendo à distinção entre “pessoas” e “não – pessoas”, “sujeitos de direitos” e“excluídos dos direitos”, é conceder que o criminoso é quem dita a aplicabilidade, vigênciae validade do Direito. A partir daí o Direito não se impõe em sua legitimidade ao corposocial e a si mesmo, mas é submetido ao crivo do próprio desviante que passa a ter o poder de excepcioná-lo, criando para si um campo de “Não – Direito” reconhecido elo próprioDireito.

Mesmo no que tange à insustentabilidade de expectativas válidas perante certosindivíduos, deve-se ter em mente que Luhmann parte exatamente dessa dificuldade deconhecer e expectar os comportamentos e reações humanas, de modo que o Direito nadamais é do que um instrumento através do qual se pretende reduzir complexidades econtingências, criando um razoável espectro de expectativas sujeitas a menosdesapontamentos. No entanto, o Direito jamais poderá impedir totalmente osdesapontamentos, sendo temerário e a nosso ver pouco funcional, que em face dedesapontamentos mais intensos venha o Direito a recuar em seus mandamentos como se decerta forma admitisse a violação e se adaptasse a ela, cedendo espaço para a atuação de um

14 LUHMANN, Niklas. Ibid., p. 57.15 HABERMAS, Jürgen.   Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volumes I e II. 2 ª ed. Trad.Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, “passim”.16 DURKHEIM, Émile.  As regras do método sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,2001, p. 82 – 90.

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“Não – Direito”, ainda que aplicável contra o suposto infrator. Se é difícil em sociedadescomplexas prever e avaliar as motivações individuais e a atuação de cada um, ao menos oDireito deve permanecer expectável, seguro. Pelo menos o “ordenamento jurídico” deve  permanecer “abstratamente assegurado frente a conteúdos desconhecidos e variáveis”.Dessa forma o Direito se compatibiliza “com a ampla diferenciação entre as morais e as

consciências individuais”.

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E isso sem submeter-se a uma relativização que o tornariainócuo em face de sua fluidez. O Direito impõe “expectativas normativas”, de forma que ainfração indica a validade da norma e a necessidade de sua imposição. 18 O Direito deve  permanecer intacto frente aos “desapontamentos”. Permitir que o Direito seja atingido  pelos “desapontamentos”, modificando sua operacionalidade é apresentá-lo como umconjunto de regras que constituem meras “expectativas cognitivas”. Estas, diversamente das“normativas”, admitem uma certa adaptação e não são necessariamente rechaçadas oureprovadas, permitindo ajustes que as incorporem à sociedade. 19 

Por outro lado, retomando o pensamento de Habermas, o qual atribui centralrelevância à ética discursiva democraticamente moldada, alicerçando a legitimidade doDireito no “agir comunicativo”, deve-se lembrar que não importa o fato de que certos

indivíduos permaneçam de fora da comunicação, desde que o façam por livre escolha. Noentanto, é imprescindível que haja um ambiente que permita sempre a livre manifestaçãodos indivíduos. Dessa forma, qualquer normatização que venha a alijar indivíduosarbitrariamente, ainda que baseada em sua auto – exclusão, mas impedindo a partir daí suaintegração no discurso racional entre pessoas, carece de legitimidade. Qualquer norma queexclua alguém do atributo de “pessoa” lhe tolhe a “fala” e, por isso, fere a ética do discursodemocrático, o que a torna inválida e ilegítima.

Para Habermas Direito e Moral imbricam-se “numa relação de complementaçãorecíproca”, de forma que “uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar   princípios morais”. 20 E é bem difícil imaginar imoralidade maior do que excluir sereshumanos do conceito de pessoa, seja por que razão for. Aliás, sabe-se bem através das

lições da história a que atrocidades essa espécie de pensamento conduziu.

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 O ordenamento jurídico não se impõe às consciências, mas às ações. Até mesmo oexercício da comunicação deve revestir-se de uma opção do sujeito, que pode perfeitamente recusá-lo sem ser alijado do mundo do Direito. Não há necessidade de que oindivíduo siga as normas jurídicas com convicção pessoal, o importante é que ele  possa seguir as normas com discernimento. 22 Desse poder, através da ética do discurso, resultaque “cada um deve ser protegido contra a subtração unilateral dos direitos de pertença; porém ele deve ter o direito de renunciar ao status de membro”. 23 Conferir esse “direito”não se coaduna com a concomitante ameaça concretizável de destituição da condição de pessoa pelo seu efetivo exercício.

17 LUHMANN, Niklas. Ibid., p. 130 – 131.18 Ibid., p. 62.19 Ibid., p. 56.20 HABERMAS, Jürgen.  Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volume I. Trad. Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 140 – 141.21 Somente o exemplo do Nazismo e do Holocausto basta para demonstrar a verdade da imoralidade ínsitanessa espécie de pensamento.22 Ibid., p. 158.23 Ibid., p. 161.

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A chave da questão não está na efetiva participação no discurso democrático, masno estabelecimento de “procedimentos que garantem a todos os interesses iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca”. 24 Trata-se da criação de uma pré – condição a conferir validade a tudo o mais que se siga, e tal pré – condição, conformeresulta claro, não pode admitir em qualquer hipótese, a exclusão de certas parcelas da

 população da condição de pessoas que, a qualquer momento, possam optar pelo uso e gozode seu direito de comunicação e ação legítimos.Os modelos de Direito Penal do Inimigo e de terceira velocidade constituem, na

realidade espécies de Direito Penal de Autor em contraposição ao Direito Penal do Fato.  Note-se que, por exemplo, um indivíduo será classificado como “inimigo” não pela suaconduta lesiva de bens jurídicos, senão por sua postura íntima perante o ordenamento jurídico, o que implica em uma atuação espúria do Direito Penal sobre as consciências, umaespécie de penalização do pensamento. E não se pretenda opor a esta afirmação a alegaçãode que somente se poderá apurar a contradição do agente com relação ao ordenamento jurídico através de suas condutas lesivas insistentemente perpetradas e de suma gravidade.Isso porque, na verdade, não são as condutas, mas realmente as convicções íntimas do

sujeito o fiel da balança que o penderá para a condição de “cidadão” ou de “inimigo”. Adistinção de tratamento é dada verdadeira e profundamente não pela conduta externa, mas pela subjetividade do agente perscrutada por intermédio de suas ações. Ao final e ao cabo, aretirada do homem da condição de pessoa se dá mesmo não por aquilo que ele faz, mas por aquilo que ele é.

Outro aspecto a ser destacado é o de que não se trata de uma formulação de modelos penais a incidirem sobre condenados, senão um sistema de exclusão de direitos que atua emum momento anterior, iniciando sua aplicação na fase investigatória, passando por todo o processo para só depois alcançar a fase de cumprimento de pena. Assim sendo, a eleição da“Terceira Velocidade” ou a atribuição do anátema de “inimigo” a alguém arrasa totalmente,sem deixar qualquer vestígio, o Princípio da Presunção de Inocência. Além disso,

 praticamente administrativiza a decisão sobre a aplicação desse formato autoritário, vez quena maioria das vezes tal se operará desde a fase investigatória pré – processual. Mesmoquando alguma decisão judicial seja a que determine ou corrobore semelhante tratamento, éincontestável que tratar-se-á invariavelmente de uma escolha arbitrária como uma petiçãode princípio 25 ou uma profecia que se auto – realiza. Ora, se o Juiz ou uma AutoridadeAdministrativa atribuem ao réu ou investigado a pecha de “inimigo” ou lhe impõem por quaisquer critérios um “Direito Penal de Terceira Velocidade”, suprimindo-lhe garantias  básicas, inclusive referentes à sua ampla defesa, como poderá, a partir de então, ser taldecisão eficazmente combatida? Todo o raciocínio torna-se circular (um círculo vicioso): ésinimigo; portanto, não há para ti garantias defensivas; portanto, és inimigo...

Enfim, a própria expressão “Direito Penal do Inimigo” é contraditória, pois que ferede morte o “Direito Penal”. Este tem uma função eminentemente garantista, limitando, jamais liberando das amarras o poder punitivo. 26 Os princípios penais, ao lado do ProcessoPenal, são fatores imprescindíveis de contenção do arbítrio estatal, de forma que um

24 Ibid., p. 208.25 Petição de Princípio é a conhecida “falácia”, analisada por Aristóteles, que “consiste em pressupor, nademonstração, um equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário

de Filosofia. 4 ª ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 763.26 Neste sentido: FERRAJOLI, Luigi.  Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002,“passim”.

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impropriamente chamado “Direito Penal do Inimigo” destrói toda a concepção daquiloque seria um genuíno “Direito Penal”, para conformar em seu lugar um campo isoladoonde Direito algum penetra ou sobrevive, um campo onde só pode existir um “Não – Direito”.

5 – CONCLUSÃO

As teorias que preconizam a aceitabilidade, ainda que limitada, de um “DireitoPenal de Terceira Velocidade” (Silva Sánchez) ou de um “Direito Penal do Inimigo”(Jakobs) são absolutamente inadmissíveis frente ao Estado Democrático de Direito.

O fato concreto de que tais fenômenos são constatáveis em uma terrível expansãodo Direito Penal com supressão de garantias na atualidade, não é motivo para o recuo e aconformação daqueles que pretendem formular um Direito Penal cientificamentesustentável e democrático.

 Não obstante, a idéia de uma contenção dessas tendências teve seu mérito. Autorescomo Silva Sánchez e Jakobs colocaram a descoberto, sem sutilezas ou subterfúgios a presença ameaçadora de um “Direito Penal do Inimigo” destruidor de garantias e corroedor impassível do Estado Democrático de Direito. Antes deles poucas vezes se teve a coragemde admitir abertamente tal fenômeno, de maneira que suas iniciativas tiveram a virtude desuscitar uma discussão aberta e franca do problema.

O grande equívoco de ambos os autores está em considerar a hipótese de transigir em relação aos Princípios Democráticos e Humanísticos que devem reger o Direito Penal eo Processo Penal. Mais ainda, seu erro está em acreditar ser possível como um “mal menor”a “contenção estática” de um Direito Penal anti – garantista, olvidando o fato de que se aexpansão de um modelo autoritário não tem sido contida pela reação contrária, muito

menos o será pelo recuo, cedendo terreno. É ilusão pensar que um Direito PenalAutoritário em expansão vai estagnar, satisfazendo-se com o pouco espaço que se lheconceda. Isso é desconsiderar o fato de que o Direito jamais é estático e sim dinâmico. 27 

Torna-se imperioso neste ponto transcrever a lição de Zaffaroni:“O senso comum mais elementar indica que a limitação dos direitos de todos os

cidadãos para conter o poder punitivo que se exerce sobre estes mesmos cidadãos não

 pode ser eficaz . A admissão resignada de um tratamento penal diferenciado para um grupode autores ou criminosos graves não pode ser eficaz para conter o avanço do atualautoritarismo cool  no mundo, entre outras razões porque não será possível reduzir otratamento diferenciado a um grupo de pessoas sem que se reduzam as garantias de todosos cidadãos diante do poder punitivo, dado que não sabemos ab initio quem são essas  pessoas. O poder seletivo está sempre nas mãos de agências que o empregam segundointeresses conjunturais e o usam também com outros objetivos”. 28 

Portanto, a limitação da supressão de garantias a certas pessoas é, desde o início,absolutamente ilusória, a partir da constatação de que qualquer um pode a todo tempo ser rotulado como “inimigo” ou envolvido em suspeitas da prática de infrações abrangidas por 

27 Ver a respeito: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ibid., p. 155 – 183.28 Ibid., p. 191 – 192.

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um “Direito Penal de Terceira Velocidade”. Ninguém está imune ao arbítrio dessacatalogação sem defesa possível.

  Nesse contexto, conforme prevê Zaffaroni, legitima-se a ofensa aos direitos doscidadãos (todos eles), concedendo-se “ao poder a faculdade de estabelecer até que pontoserá necessário limitar os direitos para exercer um poder que está em suas mãos”. E isso

eqüivale à abolição do Estado de Direito.

29

 É preciso ter em mente que se é lastimável que um ou alguns indivíduos atuem àmargem da lei, da moral e da justiça, incomensuravelmente mais lamentável será toda umasociedade que abdique dos mais básicos princípios humanistas e democráticos.

Urge reagir à irracionalidade da expansão punitiva e lembrar com Brecht que muitasvezes é justamente aquele que fala do inimigo o verdadeiro inimigo. 30  Na verdade jáestamos mais do que atrasados em rever e conter essa expansão indevida. Sabe-se que umdia haverá a profunda percepção dos equívocos cometidos, mas certamente o saldo de prejuízos já será enorme e talvez irreversível. O mesmo Brecht nos fala poeticamente dasgrandes catástrofes que passam sim, mas deixam seus rastros indeléveis em “LendoHorácio”:

“Mesmo o dilúvio Não durou eternamente.Veio o momento em que

As águas negras baixaram.Sim, mas quão poucos

Sobreviveram!” 31 

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola.   Dicionário de Filosofia. 4

 ª

ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo:Martins Fontes, 2000.

BRECHT, Bertolt. Poemas. 3 ª ed. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 19 ª ed. Rio de Janeiro: Record,1999.

FALLACI, Oriana. Carta a un niño que nunca nació. Trad. Atílio Pentimalli. 20 ª ed.Barcelona: Noguer, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002.

HABERMAS, Jürgen.  Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volumes I e II.2 ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

29 Ibid., p. 192.30 “No momento de marchar,/Muitos não sabem/ Que seu inimigo marcha à sua frente./A voz que comanda/ Éa voz de seu inimigo./Aquele que fala do inimigo/É ele mesmo o inimigo”. BRECHT, Bertolt. Poemas. 3 ª ed.Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 160.31 Ibid., p. 316.

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JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas.2 ª ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2007.

JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes.

Barueri: Manole, 2003.LIPOVETSKY, Gilles.  A sociedade pós – moralista. Trad. Armando Braio Ara. Barueri:Manole, 2005.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Volume I. Trad. Gustavo Bayer. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1983.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús – María.   A expansão do Direito Penal . Trad. Luiz Otávio deOliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal . Trad. Sérgio Lamarão. Rio deJaneiro: Revan, 2007.