Três Cantigas Infantis Brasileiras

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    Trs cantigas infantis brasileiras: memria,experincia simblica e esttica na formaohumanstica e musical da infncia - REVIEW

    CONFERENCE PAPER SEPTEMBER 2014

    DOI: 10.13140/2.1.3529.7605

    READS

    54

    1 AUTHOR:

    Eusiel Rego

    University of So Paulo

    9PUBLICATIONS 0CITATIONS

    SEE PROFILE

    Available from: Eusiel Rego

    Retrieved on: 24 January 2016

    https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_1https://www.researchgate.net/profile/Eusiel_Rego?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_7https://www.researchgate.net/institution/University_of_Sao_Paulo?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_6https://www.researchgate.net/profile/Eusiel_Rego?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_5https://www.researchgate.net/profile/Eusiel_Rego?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_4https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_1https://www.researchgate.net/publication/271196949_Tres_cantigas_infantis_brasileiras_memoria_experiencia_simbolica_e_estetica_na_formacao_humanistica_e_musical_da_infancia_-_REVIEW?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/271196949_Tres_cantigas_infantis_brasileiras_memoria_experiencia_simbolica_e_estetica_na_formacao_humanistica_e_musical_da_infancia_-_REVIEW?enrichId=rgreq-76adc89e-7a80-4548-8dbc-27a9dae5ed8f&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MTE5Njk0OTtBUzoxODgxNzQ4NzM2Njk2MzRAMTQyMTg3NTc5NDc4Mw%3D%3D&el=1_x_2
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    Trs cantigas infantis brasileiras: memria, experinciasimblica e esttica na formao humanstica e musical dainfncia

    *Eusiel RegoEscola de Comunicaes e Artes da Universidade de So [email protected]

    Resumo: Este trabalho visa lanar um olhar a um tempo crtico, e qui potico, sobre

    elementos hoje em vias de abandono e esquecimento, mas que sobrevivem e ainda atuam no

    substrato cultural e folclrico popular do Brasil da segunda dcada do sculo XXI, sob aexpresso e gnero das tradicionais cantigas infantis de roda e ninar. Tentamos interpret-los

    esttica e simbolicamente em sua relao com nosso bero histrico-social e nossa memria

    potico-musical.

    Com isso intentamos contribuir para uma reflexo crtica de educadores j habituados

    sociedade informtica, ao urbanismo ps-moderno e ps-industrial , sejam ou no msicos,

    que se defrontam e convivem com profunda crise do conceito de autoridade, historicamente

    orientado nos modelos iluministas, mas que desta reflexo e interao dependem importantes e

    complexas decises educacionais e culturais de nosso pas.

    A importncia da abordagem das tradicionais cantigas infantis em que esto presentes o

    ldico e o potico-musical, de inegvel valor em nossa cultura cresce na medida que h um

    distanciamento da sociedade informtica, que exige essencialmente do educador sociomusical

    alm de uma ubiquidade histrica da escuta, a conscincia de mltiplos saberes interpretativo-

    disciplinares que possam fornecer ferramentas para a reflexo hermenutica com seus

    educandos.

    Palavras-chave: cantigas infantis, memria, msica folclrica, experincia esttica,sociedade informtica.

    Abstract: Three Brazilian children's songs: memory, symbolic and aesthetic experience

    in the humanistic, musical formation of the childhood.

    This paper aims to cast a glance at a critical time and perhaps poetic about elements of

    today into neglect and oblivion, but which survive and are still active in the cultural substrate

    and popular folklore of Brazil in the second decade of this century, under the expression and

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    genre of traditional nursery rhymes and lullabies. We try to interpret them aesthetically and

    symbolically in their relation to our social-historical birthplace and our poetic-musical memory.

    With this we try to contribute to a critical reflection of educators already accustomed to

    information society, the postmodern and post-industrial urbanism whether or not musicians,

    educators who are facing and live with a deep crisis of the concept of authority,

    Enlightenment-based models historically, however important and complex educational and

    cultural decisions of our country depend on this reflection and interaction.

    The importance of approaching the traditional children's songs where the playful and the

    poetic-musical of great value in our culture are present grows to the extent that the

    information society moves away from them, which essentially requires an awareness of

    interpretive, multiple-disciplinary knowledge the socio-musical educator as well as a historical

    ubiquity of listening, that can provide tools for hermeneutical reflection together with their

    students.

    Keywords: nursery rhymes, memory, folk music, aesthetic experience, information society.

    Introduo

    Neste ano de 2014, tivemos acesso a uma mensagem eletrnica de autoria desconhecida e

    distribuda na Web (consta do cabealho o ano de 2007, porm verificamos recentemente que

    foi distribuda desde 2003), que trazia inscrito no campo assunto Problema do brasileiro de

    infncia (consulte texto na ntegra no Anexo 1). Em outras palavras o autor desconhecido

    bradava no corpo daquela mensagem uma reflexo certamente polmica e aceita por setores

    da sociedade brasileira que afirmava ter o brasileiro trauma de infncia, sendo tais traumas

    causados ou engendrados por ao das cantigas infantis, apreendidas e herdadas por tradio

    oral desde nossa mais tenra idade.

    Assim, interpretamos que, para aquele autor, os brasileiros foram e tm sido histrica e

    psicologicamente desajustados enquanto nao, e isso acontece e tem suas razes, em nosso

    prprio espao potencial (WINNCOTT, 1975): lugar da formao essencial de nossas

    identidades e da construo de nossos mundos significativos. Nele compartilhamos, tomamos

    parte, como deveriam atuar nossas crianas [...] da brincadeira, que se expande no viver

    criativo e em toda a vida cultural do homem (WINNCOTT, 1975, p.152-64). Para o

    psicanalista Winncott, tal espao potencial o local no qual deveramos atualizar

    constantemente nossas vidas, nossa mentalidade e nossa experincia cultural e simblica.

    Em meados do sculo XX lemos publicado em matria de jornal brasileiro o seguinte e no

    comprovado sentimento J algum disse que somos um povo triste e que foi o negro que nos

    ensinou a sofrer (LIRA, 1955). A ideia que determina aqui nossa ateno, por sua mltipla

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    significao e dimenso abismal, parece-nos apontar uma ancestralidade do sofrimento do

    degredo (e no apenas um mero trao cultural), uma dimenso que no cessa de inscrever-se

    todo o tempo entre ns, em nosso horizonte sociocultural, subsistindo no apenas em seu

    sentido histrico cronolgico, mas ontolgico e nunca do mesmo modo , em nossas

    memrias de Brasil, nosso espao potencial. Neste horizonte d-se um encontro com aquilo

    que, a nosso ver, essencializa nossas vises de mundo (BEAINI,1986, p.10-41).

    Assim, vemos aportar lembrana a melancolia saudosa de algumas canes brasileiras,

    carregada desta caracterstica to comum de nossa msica popular. Tomamos como exemplo a

    experincia potica e a escuta da msica A banda (1966) de Chico Buarque de Holanda.

    Mesmo sendo uma persistente marcha alegre espalhada pela avenida que parece evocar

    uma consagrao vida, presenciada ubiquamente pela moa triste, A banda empresta-nos

    seu momentumpor meio do olhardaquela testemunha da dionisaca alegria das ruas, que, ao

    espiar atravs da abertura da janela, comunica-nos que algo ainda acontecel fora, na rua, no

    espao potencialonde crescem nossas crianas, nossas memrias. O que escutamos esquisita e

    paradoxalmente, a um s tempo, , entretanto, o lento e comedido desfile tpico de uma

    marchinha de carnaval ao estilo marcha-rancho.1

    No obstante a expectativa da moa, podemos experimentar emA banda o passar transitrio

    (o devir) da alegria e uma ambiguidade que abriga a essenciale sutil melancolia2potica de seu

    melos. Aquela moa triste, de olhar triste, atravs da janela, em seu recolhimento interior, nos

    comunica em seu testemunho o afetoda angstia que reside na passageiraesperana vinda de

    uma prazerosa alegria das ruas. Uma potica emblemtica, metafrica, rica em significados,

    composta em um perodo sociopoltico esquisito (ou esquizofrnico?) que permeou o cotidiano

    do Brasil, o prometido pas do futuro, um pas que vai pra frente. Naquela poca (e aqui

    poca no pode significar apenas um conceito do tempo puramente quantificado),

    provavelmente ainda no havamos despertado, a no ser com um olharinteriorizado do artista,

    para as decepes e encontros com futuras e insuspeitas (subjacentes) realidades3 em nosso

    espao potencial.

    O autor do e-mail annimo afirma, sobretudo, que nosso cancioneiro folclrico-popular citando canes de bero e de roda muito conhecidas dos brasileiros representa verdadeira

    ameaa a nossas crianas e carrega em suas letras exemplos como incitao ao medo,

    violncia e crueldade, sadismo, desigualdade social, violncia conjugal. Meras

    coincidncias? Pode-se atribuir a nosso mltiplo ba sociocultural os males da atual sociedade

    1Tinhoro (2013, p.153-9) corrobora ser a Marcha Rancho de ascendncia rural, pastoril, resultanteda fuso com os estilos vigentes da vida urbana da sociedade carioca desde fins do sculo XIX,popularizando-se a partir de 1930. De letra geralmente maliciosa ou irnica, lenta e buclica, aMarcha Rancho um gnero de msica carnavalesca paralela a marcha ou marchinha.

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    Que desfila uma profuso de humores. Isso que dizer que o melanclico tem em si, como possveis,todos os carteres de todos os homens (PIGEAUD,1998, p.13).3LINS, 2000, p.13-20.

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    tecnocrtica no Brasil? Um pas continental to multicultural quanto outros diversos pases

    europeus, porm que caminha a largos passos no aprofundamento de diversos processos

    homogeinizadores que tendem a um aculturamento generalizado, um etnocdio histrico que

    tende negar o hibridismo cultural onde se mesclam suas desigualdades, as heterogeneidades de

    tradies e modernidades diversas(COUTINHO, 2000)?

    Segundo o autor da referida mensagem annima (consulte Anexo I), suas reflexes

    resultaram da relao como bab de crianas em lares norte-americanos. Para ele(a), sempre

    ancorado em significaes literais das letras das canes infantis brasileiras (tradicionais

    brinquedos potico-musicais), nossas crianas no aprendem a incentivar o trabalho de equipe

    e o apoio mtuo, [...] as crianas brasileiras so ensinadas a dedurar e a condenar um

    semelhante. Como exemplo, o autor cita a conhecida cantiga Sambalel, personagem que

    mesmo doente e com a cabea quebrada, merece o castigo de umas boas palmadas.

    Tal viso apenas vem endossar a onipresena de uma multifacetada significao que permeia

    as histricas opinies sobre o carter do povo brasileiro, fatigantemente identificado desde as

    entranhas de sua vida colonial: o Brasil, local de degredo e punio, lugar conhecido e

    reconhecido pelas metrpoles europeias pelo mau gnio de suas gentes desassistidas, com

    seus moradores analfabetos, indolentes e desumanizados, porm dono de uma paradoxal e

    romntica natureza paradisaca (MACEDO, 2000), nativismo virgem to poeticamente

    narrado e exaltado pelo romancista Jos de Alencar (1829-1877) em O Guarani,Iracema, entre

    outros.

    Nosso prprio Hino Nacional, uma marcha com seus smbolos iluministas em estilo militar

    francs revolucionrio, foi uma tentativa artstica (composicional) e poltica de inventar, tendo

    por base as imagens de um Brasil isolado em suaprpria natureza, um pas-nao no formado

    e que jamais houvera existido. Musicalmente, sua tpica de marcha militar evoca a escuta da

    autoridade,4do herosmo do povo nos moldes ideais da Revoluo Francesa: o emblemtico

    movimento anacrsico de quarta justa ascendente sobre o tempo forte. Apesar da plasticidade de

    sua confeco esttica musical, comum em fins do sculo XVIII e incio do XIX na Europa, a

    promessa de paz no futuro e glria no passado de seu texto, entre outros, camufla visesidealizadas, smbolos estreis onde tampouco h simbolizados, assim como nossos bosques,

    uma vegetao mais frequente na Europa.

    No e-mail annimo, parece evidente que seu autor teve como motivo para suas observaes

    (incentivar o trabalho de equipe) a tradicional cano Ten Little Indians ou Ten Little

    Nigger possivelmente uma variante no contexto particular norte-americano, mas nos

    4[...] the marchreminded the listener of authority [] (RATNER, 1980, p.16, traduo nossa).

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    referimos aqui a uma variante brasileira5 que diz em seus versos um, dois, trs indiozinhos...

    conte at dez no pequeno bote (contar at dez tem ali tem um valor grupal e pedaggico para

    as crianas), navegando rio abaixo quase, quase virou, afirma indubitavelmente: trabalho

    de equipe!. Tal ideia-conceito baseada na fora quantitativa do conjunto social s pode gerar

    contingenciais vises quantitativas6, correspondendo, alm disso, exigncia moral do apoio

    mtuo com o qual se deve vencer, e acima de tudo, conquistar com uma unio fundada na

    mera quantidade e, a qualquer custo, salvar o bote.

    uma imagem de apologia conquista e ao coletivismo, sem dvida, mas que tambm

    corresponde expectativa de felicidade de uma sociedade perigosamente homogeneizada (em

    srie) em suas mais brandas dissonncias e estimulada ao mostdo extremo consumo, o poder de

    posse, como tm sido norma os modelos norte-americanos e anglo-saxes vigentes.

    Em todo caso, esse parece ser o referencial contido na mensagem do autor desconhecido que

    se sente triunfantemente autorizado a denunciar ao nosso mundo ciberntico que o Problema

    do brasileiro de infncia7. Se h algo que os brasileiros nodeveriam temer, entretanto, a

    crtica e encontro autocrtico com sua multiplicidade cultural e sua inevitvel associao com a

    problematizao da identidade, o carter nacional, especialmente porque sempre conviveu com

    tais vises cristalizadas a seu redor: a estratificao social associada mestiagem como a

    grande causa da nossa doena social, impeditiva dos avanos das modernas instituies

    democrticas globalizadas com os mais legtimos interesses dos movimentos populares

    (COUTINHO, 2000). Refiro-me aqui, inclusive, s recentes manifestaes plurifnicas das

    ruas que trincaram a nossa casca do ovo em 2013, as j histricas jornadas de junho

    (ARANTES; SCHWARZ, 2013). As manifestaes populares de 2013 pareceram apontar para

    um despertar gradual da nao brasileira que, se seguir no sentido tico da busca da verdade

    5H vrias interpretaes e at controvrsias quanto ao original dessa cano, se ndios ou negros. Na1 linha do 1 verso ingls l-se: One Little, Two Little, Three Little Indians. Disponvel em:http://www.oberlin.edu/cgi-bin/cgiwrap/library/ref/folksongindex.php.

    6 Acreditamos que no h, teoricamente e em limite extremo (o que seria raquitismo), quantidade

    desprovida de alguma qualidade ou atributo, apesar de que, para R. Guenn, a reduo ao quantitativo[...] no nosso mundo, e em razo de condies especiais de existncia s quais ele est submetido, oponto mais baixo reveste o aspecto da quantidade pura, desprovido de qualquer distino qualitativa(GUENN, 1989, p.11).

    7Provavelmente o annimo autor desconhece a ternria, singela e doce melodia da cano folclricainglesaRock-a-bye-babyou Hush-a bye-Baby (1765), cujo texto descreve um beb embalado pelo ventono alto (no topo) de uma rvore, quando chega o momento em que o galho se quebra e a criana despencamorrendo entre os destroos do bero. Mais sobre outras canes infantis inglesas consulte MacabreMother Goose: The Dark Side Of Children's Songs:http://www.songfacts.com/blog/writing/macabre_mother_goose_the_dark_side_of_children_s_songs/.

    Outra cano (1784): Goosey Goosey Gander(Ganso, Gansinho) / wither shall I wander?(aonde voucaminhar?) / Upstairs and downstairs(no andar de cima, no andar de baixo) and in my lady's chamber. (eno quarto de minha senhora) / There I met an old man (L vi um velhinho) / who wouldn't say his

    prayers, (que no queria rezar) / so I took him by his left leg(ento eu peguei ele pela perna esquerda) /and threw him down the stairs (e joguei-o escada abaixo). (Traduo: SOGL, Lesley. Outubro 2014.Informao pessoal via e-mail).

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    histrica, tende a comear a tratar seriamente seus antagonismos sociais, ainda que longe de

    instaurar uma profunda reflexo sobre nossa memria sociocultural e conscincia histrica.

    Essa, portanto, a ideia motriz sobre a qual estenderemos nossa abordagem ao e-mail

    recebido, apoiando-nos para isso em elementos meldico-poticos, simblicos e histricos de

    nosso imaginrio cultural, ressaltando sua importncia em uma possvel prtica hermenutica

    que entendemos aqui como a possibilidade de contemplar a realidade vivida em suas diversas

    camadas (ORTEGA y GASSET, 2003, p.36-7): talvez nem sempre positiva para a infncia dos

    brasileiros, como acredita o ciberntico e desconhecido autor.

    No podemos deixar de entrever, contudo, mesmo sob a superficial e despreparada

    constatao do autor annimo, ter ele em seu e-mailmanifestado uma latente inquietao que o

    decepciona profundamente e, em tempo, como diz o mestio Machado de Assis, ter lanado

    desavisadamente um desconfiado e melindroso olharde soslaio, quase desvelando que h ou

    houve em toda sua inquietude algo de ambguo, de estranho e oblquo acerca de si mesmo.

    Percepes estas que continuam, no cessam de se inscrever, de miscigenar nossos brasis

    interiores, nossas mentalidades, ns mesmos: os brasileiros. Nossa pretensa integrao

    idiomtica no implica, necessariamente, integrao social e cultural (VILHENA, 1997. p.62).

    Breve histrico: folclore, experincia brasileira

    As questes sobre identidade nacional envolvem, em nosso pas, problematizaes

    pertinentes ao campo da antropologia e da sociologia, inclusive abarcando conceitos histricos e

    culturais complexos e no menos polmicos como o prprio termofolclore brasileiro. Segundo

    Vilhena (1997, p.65), as [...] utilizaes do termo [folclore] o desvalorizam de diversas formas.

    O folclore associado ao conservador, ao anedtico e, no final, ao ridculo. Esta pejorao, que

    deslegitimiza cientificamente o termo, seria resultado, entre outros, da indistino existente

    entre o objeto de estudo (melodias, literatura oral, danas, festas e folguedos, lendas, ditos,

    costumes, culinria, crenas do mundo rural) e sua disciplina Folclore (VILHENA, 1997, p.30).

    O interesse pelas manifestaes folclricas e populares no Brasil teve como marco inicial osestudos de Slvio Romero (1883) (considerado o primeiro folclorista brasileiro representativo) e

    Amadeu Amaral, surgidos j no fim do sculo XIX8, seguidos posteriormente, entre outros,

    pelos estudos de Mrio de Andrade e, no perodo de 1930-45, intensificado, no campo da

    msica e etnografia com o projeto sociomusical de Heitor Villa-Lobos. Assim, as lutas em

    defesa do folclore brasileiro na dcada de 1950 teria sido parte de um processo de grande

    mobilizao da inteligncia e intelectualidade brasileira, que Vilhena (1997) reconhece como

    8

    Para Vilhena, (1997, p.28) os primeiros folcloristas brasileiros forjaram vises idealizadascometendo vrias distores no material coletado, nas quais os versos so corrigidos e os costumes deseus informantes so suavizados para corresponder mais fielmente a essa imagem.

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    um verdadeiro movimento folclrico. Perodo que culminou com a Campanha de Defesa do

    Folclore Brasileiro (1958), declinou, como muitas outras iniciativas socioculturais e

    educacionais em nosso pas, a partir do Golpe Civil-Militar de 1964.

    Este movimento folclrico ocorrido durante a primeira metade do sculo XX

    aproximadamente, iria fomentar em nosso meio, de forma privilegiada, o debate de nossa

    identidade enquanto nao, formulando conceitualmente uma noo de folclore brasileiro, ou

    seja, uma ao nacional contextualizada em termos brasileiros, construda com recursos

    prprios de nossas tradies populares e inseparvel da vida cotidiana (VILHENA, 1997,

    p.126-47). J dos pareces raciais e populares acerca do Brasil, a ttulo de exemplo, diz Slvio

    Romero: os brasileiros seriam tambm um povo em formao, ainda indefinido. [...] A nossa

    falta de coeso nacional um fato tnico, fsico, antropolgico, porm, Romero reconhece que

    a poesia popular revela o carter dos povos. (ROMERO apud VILHENA, 1997, p.148).

    Conforme Vilhena (1997, p.147-54), foi durante esse perodo (a partir da dcada de 1930)

    que Mrio de Andrade mudou o foco de seus interesses e estudos sobre o folclore nacional,

    direcionando suas pesquisas para o campo musical em vez dos campos da poesia e da literatura

    oral, como havia sido at ento. com as pesquisas de Mrio de Andrade que se consagra a

    contribuio africana na formao de nossa msica. Seu projeto etnolgico teve o af de

    conhecer o Brasil, suas razes, sua msica, a ndole e os dilemas de seu povo (REILY, 2000).

    Como sabemos, foi nesse contexto do movimento folclrico brasileiro, cuja temtica da

    identidade nacional pareceu transpassar todas as buscas e estudos de campo (VILHENA, 1997,

    p.154), que Villa-Lobos intentou transformara sociedade brasileira tendo a msica folclrica e

    popular como fundamento tico e esttico de suas propostas educacionais para o Pas.

    (SANTOS, 2010).

    Para Villa-Lobos, a prtica do canto musical (orfenico) para os brasileiros e, em especial,

    para nossas crianas, seria o ncleo de um processo civilizatrio que (juntamente com as

    diversas vises sociopolticas sobre o nacional e o popular na poca do Estado Novo)9no

    se destinava formao tcnica de msicos, mas popularizao do saber musical (SANTOS,

    2010, p.23).Entre os objetivos do projeto educativo de Villa-Lobos, a perda da noo egosta de uma

    individualidade excessiva, que favorea a noo de solidariedade humana, em que pesem

    crticas contrrias ao modelo socioeducativo seguido pelo compositor brasileiro, revela aqui um

    importante aspecto socializador. Se por um lado havia o risco de uma crescente uniformidade

    em uma nascente sociedade de massas no Brasil, cujo modelo parte do princpio de que todos

    devem estar igualmente aptos para tudo (GUENN, 1989, p.53), por outro lado, a msica

    9 Como por exemplo, a manipulao poltica do Canto Orfenico pelo Estado Novo e pelo

    nacionalismo getulista, alm do surgimento de uma crescente burguesia industrial que pugnava paraevitar a participao popular e o avano democrtico (SANTOS, 2010).

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    tambm contribuiria qualitativamente para a formao de individualidades e tenderia a fazer

    transparecer, no processo educacional, cada ser particular, cada musicalidade.

    tica, esttica, educao e o conceito de patriotismo da poca estariam, portanto, nas bases e

    no sonho de uma reforma que prepararia a mentalidade infantil como propulsora para as

    geraes vindouras. Para o educador Villa-Lobos, a aprendizagem da msica escolar deveria

    pautar-se pela prtica do canto coletivo (a relao na qual se articula o reconhecimento do outro,

    os espaos individual e o coletivo) e por melodias presentes, entre outras, nas cantigas de

    ninar ou [n]as canes de roda (SANTOS, 2010, p.98). Tais melodias folclricas imprimiriam

    nas crianas brasileiras qualidades que, se orientadas com os princpios humansticos

    observados por Villa-Lobos, permitiriam a construo de identidades por meio de uma

    experincia potico-musical alicerada em uma sabedoria ancestral e de autoria popular:

    Quando pequeninas, as crianas adormecem com cantigas de ninar que j embalaram,

    certamente, muitos dos seus antepassados longnquos (SANTOS, 2010, p.98).

    Temos de diferenciar aqui dois aspectos da questo folclrica que emparelhamos ao

    pensamento de Vilhena (1997): a) a prxis social das cantigas infantis das crianas, que as

    transforma constantemente, se diferencia das propostas e orientaes pedaggicas b) as

    orientaes pedaggicas, quase sempre vises idealizadas e decididas parte enquanto projetos

    autoritrios, raramente visam ao crescimento e transformao da infncia e da sociedade.

    Em seu ensaio O rinoceronte na sala de aula, o musiclogo Murray Schafer (1991, p.293-5)

    traa com propriedade um perfil imoral de projetistas pseudo-educadores e politiqueiros

    sociais interessados em educao, ao denunciar [...] o complexo de culpa cultural, que

    impede [tais] pessoas no musicais de expulsar inteiramente [grifo nosso] a msica dos

    currculos, tambm as fora a justificar sua presena [...]. Para Schafer, a mais comum das

    desculpas ou justificativa moral defendida por essas pessoas a de que a msica promove o

    bem-estar social [...]. Pois bem, como na sociedade globalizada ocidental atual no h riscos

    associados [retirada da] arte [no currculo escolar] no h, portanto, o que justifique sua

    prtica e seu aprendizado nas escolas. (SCHAFER, 1991).

    Obviamente, no precisamos ir to longe, basta observarmos o que ocorre com a Lei n.11.769 de 2008 (Lei de Diretrizes e Base da Educao) que obriga (um dever) o ensino de

    msica na educao bsica pblica e privada e agradecermos o fato de mesmo no cumprida a

    lei, a msica ainda no tenha sido inteiramenteexpurgada da educao bsica. Entendemos que

    prtica social e orientao pedaggica no so excludentes mesmo sendo vistas como campos e

    atributos distintos. Para Villa-Lobos, entretanto, a unidade possvel, adquirida por meio da

    experincia folclrico-popular e da ao consciente da escola orfenica, se d quando o popular

    forma o ncleo dos processos educacionais, modificadores da sociedade.

    A conhecida experincia dos compositores hngaros Bla Bartk e Zoltn Kodly(KODLY, 1959 p.11-2) e outros folcloristas europeus no incio do sculo XX, teve como

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    paradigma a classificao, sistematizao esttica e etnomusicolgica dos saberes populares,

    lanando luz em seculares tradies orais camponesas da Hungria, Romnia, Eslovquia,

    Srvia, etc. e outros pases do norte e sudoeste da Europa.

    Os resultados foram importantes e trouxeram estruturais retornos estticos10 e cientficos

    para a concepo da pesquisa folclrica contempornea, alm de contribuir para a

    transformao da sociedade hngara, porque refletia a vida dos povos, seus sentimentos, seus

    costumes e gostos, seu secular espao potencialonde parecia ainda se atualizar constantemente

    a musicalidade daqueles povos. Em outras palavras, as pesquisas restauradoras de campo

    efetuadas por Bartk resultaram em composies musicais coerentes e magistrais sem, contudo,

    o compositor hngaro comprometer as caractersticas principais e originais das canes

    folclricas coletadas.

    Conforme Dragoi (1959), as pesquisas e colees folclricas (inclusive infantis) elaboradas

    pelo movimento impulsionado por Bartk e sua escola nacional incluam essencialmente os

    elementos poticos e meldicos com detalhadas informaes das afinidades culturais e musicais

    e a descoberta constante de possveis mutaes e variantes. A constatao da existncia de

    novas verses (variantes), de perfis meldicos similares11 se dava por meio do reencontro

    restaurador com aquelas tradies.

    Tal seria a unidade dinmica12 que nos referimos anteriormente experincia folclrico-

    popular e ao legado nico, no Brasil, da vivncia da escola orfenica de Villa-Lobos. O

    princpio devolver ao povo ( vida e ao cotidiano comum) na forma de um Bem (tico) o

    movimento criado por este mesmo povo, reconstruindo e comunicando-lhe incessantemente

    identidades nas quais ele possa se reconhecer novamente, des-envolver-se. A incompletude do

    sonho nacional de H. Villa-Lobos em sua experincia musical-orfenica brasileira deveu-se

    mais, a nosso ver, s mazelas sociopolticas das mesquinhas elites econmicas brasileiras, que

    levou, inexoravelmente, falta de aprimoramento e compromisso com as necessidades

    populares. O aprofundamento do movimento folclricono Brasil, estudado por Vilhena (1997),

    que contou com grande movimentao e entusiasmo dos intelectuais folcloristas brasileiros

    desde a dcada de 1930 a par do processo de industrializao, da crescente massivaurbanizao do Pas e de projetos para um desenvolvimento nacional, viu-se brutalmente

    retrogradado e reduzido por meio de golpismos arquitetados revelia da maioria da nao por

    10Sobre as contiguidades entre tica e esttica, consulte Valcrcel, 2005.11Bartok reuniu e sistematizou aproximadamente 3500 melodias folclricas. (DRAGOI, 1959, p.13-

    29).12

    Uma unidade que prev a multiplicidade. Exemplarmente, Nas artes presentativas [como amsica], obra e objeto confundem-se. De sua aparncia fenomenal sua materialidade (suporte fsico),todos seus planos de existncia ou realidade esto em constante fuso (SOURIAU, 1983, p.72).

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    faces civis militares obcecadas pelo poder, pela ideologia da segurana nacional e da

    Guerra Fria, culminando enfim no golpe de 1964.13

    A revoluo cultural(se assim podemos dizer) impulsionada pela Escola Hngara, que teve

    a msica como piloto, s foi possvel porque a sociedade de pesquisadores utilizaram os meios

    tcnicos culturaisnecessrios de sua poca para sistematizar cientifica e eticamente os saberes

    folclrico-populares. A vontade legada por Bartk aos pesquisadores ulteriores residia no

    compromisso essencial de retornar sempre s aldeias e observar a continuidade viva das

    tradies, as novas influncias, modificaes do gosto social e musical a cada nova gerao. A

    presena de variantes do material colhido, o desaparecimento e surgimento, por exemplo, de

    instrumentos populares tpicos, dos sotaques poticos e musicais das comunidades e dos

    costumes substitudos pelo surgimento de outros, conforme as pocas e as tecnologias usadas

    atestam o movimento contnuo do ressurgir humano. Cada variante, cada mutao do material

    folclrico transmite em si marcas de sua gnese, dos dilogos, absores e transformaes que

    presidiram seu nascimento [mesmo porque] a recepo est constantemente transformando a

    leitura desses processos (PERRONE-MOISS, p.97 apud MENDES, 2000, p.71).

    A iluso da arte vem do fato de estarmos atentos a esse fazer e desfazer, a esse desabrochare murchar dos seres, que apenas um reflexo enganador da indiferente atividade danatureza, que de modo algum toma em considerao esse aspecto de seu jogo perptuo.(SOURIAU, 1983, p.45)

    Tanto em Villa-Lobos quanto na experincia hngara, importante notar a relevncia da

    msica em seu enlace profundo com as sociedades. Aqui a msica tambm um conceitopiloto

    que serve comojustificativapara a educao, transformao e construo de outros mundos.

    Memria, educao, o ideal pblico. Duas cantigas infantis

    Pois qual o valor [se que podemos aqui atribuir valores] de todo o nossopatrimnio [herana] cultural, se a experincia no mais o vincula a ns?

    (BENJAMIN, 1994, p.115)

    Escolhemos trs cantigas infantis que acreditamos cultivar, ainda hoje, um saber

    representativo do imaginrio folclrico popular brasileiro, o que nos possibilita uma

    aproximao hermenutica com o mundo real objetivando a elaborao de argumentos estticos,

    sociais e simblicos: talvez pedaggicos e que nos auxiliem a justificar, por fim, sua

    importncia. As cantigas infantis, geralmente de origem rural, encaixam-se ao estilo urbano de

    cano que se espalhou pelo Brasil desde a vida colonial (ROMERO, 1883). So elas: Ciranda-

    13

    A clivagem de duas grandes faces dentro das Foras Armadas e o embate entre elas perdurou at ogolpe militar de 1964, onde a unio dos militares nacionalistas com os partidos polticos orientados pelonacional-desenvolvimentismo foi estrangulada (CARLONI, 2005).

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    cirandinha (cantiga de roda); O cravo e a rosa (cantiga de roda); Se essa rua (cantiga de

    roda).

    Na sociedade das crianas, a inveno oral e geralmente grafa presente nos brinquedos de

    roda, da qual fazem parte inmeras cantigas, , em muitos casos, uma ao espontnea e livre,

    sejam eles inventados ou no por imitao ao mundo adulto. Tambm a conquista dos espaos

    ldicos e a forma de sua ocupao so geralmente decididos por consenso e coletivamente pelas

    crianas, lugar onde se vivencia a prtica da oralidade e da musicalidade, ressurgindo a

    confiana na palavra humana. Existe uma voz humana, uma voz que seja voz do homem como

    o fretenir a voz da cigarra ou o zurro a voz do jumento? E, caso exista, esta voz a

    linguagem? (AGAMBEN, 2005, p.11). Contudo, nota-se cada vez mais o estreitamento e

    desrespeito s conquistas e convvio (democrtico-sonoro) das crianas, sufocadas em suas

    instncias intelectuais e afetivas. Sob a imposio dos atuais padres sonoros tecnocrticos da

    sociedade de consumo do mundo adulto para quem a palavra(e o som das palavras) no tem

    mais valor algum por vezes em nome de questionveis e arbitrrios aconselhamentos

    didticos, as crianas vm sucumbir seus espaos potenciais.

    Exemplo? O conceito homogeneizante e meramente quantitativo de ordem, entre outros,

    ainda amplamente orientado s crianas da educao bsica por meio da formao de filas

    indianas (em srie ou sucesso) que causam caticas sequelas e incompreenses s relaes

    humanas. Tal conceito um paradigma tecnocrtico inaugurado com a primeira Revoluo

    Industrial no sculo XVIII.

    J presenciamos casos graves em que um professor, no contexto de uma atividade

    artstica, ao invs de orientar as crianas a expressar, por si mesmas, a melodia de uma dada

    cano, as induziu a cantarem e danarem uma coreografia carente de objetivos pedaggicos

    mnimos de carter voluptuoso (dois-pra-l, dois-pra-c) das enfeitadas danarinas de programas

    de auditrio, to comum na TV aberta dos brasileiros aos domingos acompanhada pelo

    irretocvel recurso do playback.14 o grotesco, o pastiche pretensioso do kitsch que se

    retroalimenta das coisas prontas e incentiva com sua pseudopedagogia e sentimentalismo, o

    crescimento da preguia intelectual total de professores, pais e alunos, liquidando, sob aplausosentusiasmados, a possibilidade de as crianas se organizarem espontaneamente e de

    construrem, por meio do canto e do corpo, suas prprias afinaes e divertimentos musicais. As

    crianas no se expressam, os pais aceitam, a escola e os modelos de comunicao atuais

    determinam arbitrariamente, irresponsavelmente, estados de mera passividade, diferentemente,

    como aludimos, da ampla proposta orfenica iniciada por Villa-Lobos, abandonada pela

    letrgica sociedade brasileira h mais de meio sculo.

    14

    Caso verificado em escola particular de So Paulo, o que, a nosso ver, retrata uma prtica comum efrequente em vrias escolas. Tais deformaes tm por base no uma relao educador (escola e pais)educando(alunos), mas uma relao puramente comercial do tipo vendedor-cliente.

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    As brincadeiras infantis, e particularmente o gosto pelas canes ldicas como parte do

    cotidiano domstico, tiveram seu auge no passado e declinaram notadamente de forma

    vertiginosa a partir do ltimo quartel do sculo XX, sendo raro testemunharmos a presena, na

    vida cotidiana, do elemento potico musical em sua forma mais ldica. Nossas cantigas tm

    desaparecido dos lares dos brasileiros, das ruas, enquanto ocupao espontnea das crianas. Ao

    desocuparem seus espaos hbridos nos quais confluem identidades que constituram no

    Brasil ainda colonial (NETO, 2013) o local potencial (WINNCOTT, 1975) onde brotou e

    desenvolveu-se uma multiplicidade cultural que agregou identidades e experincias culturais por

    vezes opostas, tem sucumbido, simultaneamente, sua funo de elemento sociabilizador.

    Assim, no para menos estarmos presenciando o surgimento de diversas formas de

    incompreenses e violncias urbanas motivadas tambm, acrescente-se, pela ausncia e

    inadequao de polticas pblicas como forma de denunciar nossas profundas e histricas

    discrepncias sociais.

    O irascvel embrutecimento de nossos espaos potenciais, gradualmente reduzidos pela

    incessante pulverizao das culturas locais e o abandono total da prtica cotidiana do antigo

    cantar domstico, resultou, entre outros fatores, de irreversveis processos postos em

    movimento desde os primeiros anos da nossa modernizao industrial, tecnolgica e miditica

    fomentada e aprofundada durante toda a segunda metade do sculo XX. Um foco de resistncia

    notvel a esta brbara runa cultural vivenciada por diversas comunidades urbanas e miserveis

    no Brasil, no entanto, tem ecoado juntamente com os movimentos mais recentes de

    mundializao das expresses estticas e multiculturais da negra (Black Power) cultura hip-

    hop, surgida na dcada de 1970 nos EUA. Resistentemente histrica e profunda segregao

    racial e social brasileira, o hip-hop, por exemplo, e suas varianteslocais (instncias simblicas

    contemporneas nas quais se mesclam expresses socioculturais nordestinas, cariocas,

    paulistanas, entre outras manifestaes das periferias) do sculo XXI tem penetrado de forma

    crescente a vida brasileira e encontrado respostas nos espaos miditicos (em especial a

    Internet) a partir das periferias desvalidasdas grandes cidades, incluindo com crtica e msica,

    dana, grafites e poesias conscincias e atitudes sociais libertadoras , jovens, meninas emeninos pobres, ciclicamente marginalizados nas grandes metrpoles.

    Revisitar em nossa poca as antigas cantigas infantis seria assim um ensaio idealizador que

    objetiva partilhar um reencontro com parte dos princpios espirituais de outrora, sopros que

    habitaram os espaos domsticos potenciais hoje subtrados da infncia brasileira. No h

    espaos vazios. Assim, indagar qual a pertinncia desse reencontro, seu papel sociomusical e

    possveis significaes para a atual sociedade uma questo complexa e nos contentamos aqui

    apenas em parcialmente tentar revisit-los e deles extrair uma experincia conectada memria.

    Lembremos que se tal pertinncia (das cantigas) houver, ela se daria nos marcos da atualsociedade informtica e tecnocrtica do sculo XXI, essencialmente urbanizada e caracterizada

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    por sua (talvez) mais marcante caracterstica: a crescente insensibilidadeao conceito tradicional

    de tempoe, portanto memria. Intentamos ento um propsito tico-esttico que noobjetiva

    repetir ou reconstruir o passado, mas reinterpretar o esprito das cantigas infantis e seu

    cancioneiro folclrico em nosso complexo contexto social contemporneo. Agamben (2005)

    expe uma antiga proposta potica, que, eticamente atual, observa o futuro da vida humana

    enquanto experincia de ver o mundo como linguagem, como linguagem que forja, em tempo, o

    mundo: apenas se [...] a vida humana [se der] enquanto ethos, enquanto vida tica. [...] esta a

    tarefa infantil da humanidade que vem (AGAMBEN, 2005, p.17). Em outras palavras, se

    soubermos compor com a sociedade das crianas os elementos vlidos da experincia de

    outrora, uma vida vividaque, ao ser revisitada em suas instncias simblicas, possa contribuir

    para reestruturar, ainda que timidamente, a esquecida confianatica da e na palavra (veja-se,

    por exemplo a esttica do Rap, fundamentada essencialmente na ideia rtmica e sonora das

    palavras).

    Quando ouvimos pela ltima vez uma cantiga infantil em seu contexto ldico?

    Provavelmente ser imperativo enfrentarmos uma releitura e uma reconceitualizao do prprio

    ludismo, presente nas atuais manifestaes infanto-juvenis e populares que emergem das

    periferias pobres do Brasil?

    Sob a forma dilacerante da pesquisa cientfica, a antiga cantiga infantil expresso sui

    generisda inocnciae do compsitoque antes fora a Infncia tem sido assunto de discusso

    acadmica (importante agente na guarda e reflexo terica de nossa memria histrica),

    resgatada do completo esquecimento por recentes tcnicas da cultura miditica. Entretanto,

    longe de seu lcussimblico (e as novas mdias refletem tal desagregao), a cantiga infantil

    no mais retornou criticamente ao lugar de onde saiu, como ousou reconstituira experincia

    hngara de Brtok e um pouco a experincia orfenica empreendida por Villa-Lobos15. A via de

    mo nica desse processo brasileiro (que no restaura, no reconstitui uma experincia ao lugar

    de onde saiu, sua origem sua essncia (BEAINI, 1989, p.3416) barbariza a infncia, torna

    inconsistente a memria em sua relao com o espao potencial.

    A relaooutrora normal de uma me amamentar seu filho, embalando-o com uma velhacantiga de bero (muitas das quais eram mesclas e melodias improvisadas de cor), no mbito

    domstico, parece no configurar mais uma relao (ritual) comum em nossa desagregada

    impaciente poca de emergncias, mesmo se tal gesto singelo abrigasse in actu a fora

    restauradora e contribusse para a sanidade mentalde nossas crianas.

    No apenas conceitualmente, mas no decorrer da vida, a infncia revela o estado trmico

    (febril) e mental (anmico) de uma sociedade. Como verificamos isso? No desaparecimento do

    15

    importante notar que a hipottica mdia pode vir a ser um lcuse que a experincia se d naemergncia do contexto cotidiano das periferias brasileiras.16BEAINI, T. C.A memria:medida ontolgica do cosmos. So Paulo: Palas Athena, 1989.

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    elemento sutil contido na dinmica velada da unio-recusa amorosa (potico-meldica) entre

    me-filho. A ruptura brutal e artificial dessa relao secreta e profundamente musicalentre me-

    filho, afeta a dimenso humana que, no contexto da relao normaltende a construir sutilmente

    o entendimento e aceitao do outro, instaurando, naturalmente na criana, o momento (o

    tempo) do desapego, da separao. O desapego ntimo da natureza da relao me-filho se d

    Quando chega o tempo do desmame, [e] a me enegrece o seio, porque manter o seu atrativo

    ser prejudicial ao filho que o deve abandonar, refletiria o solitrio Kierkegaard (1979, p.198)

    em seu sofisticado romantismo humanista e sua tica sobre a natureza da f em um mundo

    conceitualmente j dominado pela irresponsabilidade racionalista. preciso dizer que h nveis

    de conexo desse estado de rupturas promovidas na e pela sociedade brasileira contempornea

    com a atual condio de arrogncia e violncia social (em todos os nveis) das metrpoles?

    Acrescentemos ainda que raramente ouvimos as cantigas infantis (sempre em um contexto de

    criao ldica que pressupe o individual e o coletivo) nas escolas de educao bsica, sejam

    elas pblicas ou privadas.

    No mbito educacional e escolar h, todavia, excees alentadoras (importantes de serem

    mencionadas), que desafiam no sculo XXI os modelos canonizados pelo idealismo da

    atualssima educao quantitativa (GUNON, 1989) e a consequente uniformizao do

    aprendizado hoje em vigor. A experincia viva da Escola da Ponte, em Portugal, um caso

    exemplar. As relaes ideologicamente tensas (uma verdadeira luta de classes) dessa escola

    com o sistema educacional vigente naquele pas revelam, conforme Sarmento (s.d., p.48),

    contradies e vises distorcidas aplicadas escola pblica atual. O projeto da Ponte ao

    defender a escola pblica e pugnar em promover um corpo tico educacional destinado a

    repensar a educao em Portugal, opta por uma prxis que, almejando a construo democrtica

    da memria coletiva, identifica constantemente, na escola contempornea, um modelo

    paradoxal de escola pblica de massas gerada na modernidade [que tem] constitudo o aluno

    atravs da morte simblica da criana que nele habita (SARMENTO, s.d.).

    Na Escola da Ponte, cada Criana-aluno e aluno-criana tendem a equivaler-se e no mais a

    dissociar-se; assim, desaparece na prtica o paradoxo da escola da modernidade que, para seimpor, teve de matar a criana para fazer nascer o aluno (SARMENTO, s. d., p.52).

    No Brasil, assistimos (julho de 2014) ao lanamento de um documentrio independente que

    discute caminhos e propostas prementes para a educao pblicabrasileira. Quando sinto que

    j sei: prticas educacionais inovadoras que esto ocorrendo pelo Brasil (2013). Quando sinto

    que j seiaponta, entre outras reflexes, para um necessrio revisitar aos substratos da nossa

    memria cultural to presentes nas brincadeiras e cantigas folclricas brasileiras, encarando-os

    como agentes transformadores de nossa realidade educacional.

    Importante citar aqui tambm a valiosa experincia da Escola Vocacional durante a dcadade 1960 em So Paulo. O documentrio na Web Sete vidas eu tivesse... (OLIVEIRA, 2011)

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    ressalta, com entrevistas de professores, alunos e educadores da poca, as propostas perseguidas

    pelo ideal da Educao Vocacional para a escola pblica brasileira. Uma proposta de

    libertao educacional que pugnava em levar o jovem descoberta de sua personalidade e a

    desempenhar seu papel de homem transformador. Uma experincia inovadora de renovao

    do ensino da rede pblica paulista nos anos 60. A Escola Vocacional foi extinta em junho de

    1969 pelo Golpe Civil-Militar de 1964 em nome da Segurana Nacional, com punies

    arbitrrias e violentas contra professores e alunos, sufocando o ideal pblico vocacional que

    reunia, entre outros, o conceito de unidade estudo-trabalho dos jovens. Conforme o

    documentrio, tal iniciativa ameaava a ganncia das escolas particulares, a ponto de ser

    rotulada, na poca, de escola comunista. Segundo alguns de seus atores, a Escola Vocacional

    (pblica) fora uma proposta de libertao educacional e um projeto esttico de vida.

    luz de tais reflexes, comentemos inicialmente dois casos de cantigas infantis tomadas das

    afirmaes enviadas por e-mail pelo desconhecido autor (consulte Anexo I): a cantiga de roda

    Atirei o pau no gato. Inveno, artimanhaprpria das crianas uma variantepotico-musical

    que se coaduna a uma tradio oral local e um momento histrico, como so, obviamente, as

    demais cantigas de roda brasileiras. notrio que no muito antigamente ainda viam-se muitos

    daqueles bichanos urbanos (os gatos de telhado, a presena sempre mal agourenta, diablica e

    reverenciada dos pretos) nas periferias brasileiras. Castrados para o convvio social (como se faz

    com os ces) desapareceram no apenas como smbolo, por qu? Sade pblica? Modismo?

    Surgimento de gatos virtuais alimentados com bits? Em todo caso, a cantiga de roda Atirei o

    pau no gato no corresponde quela racionalista interpretao da mensagem eletrnica annima

    e distribuda na Web que traz no campo assunto a epgrafe Problema do brasileiro de

    infncia comentada logo no incio deste artigo. O autor(a) desconhecido(a) atribui, entre

    outras, conhecida variante folclrica Atirei o pau no gato a transmisso de valores morais

    violentos, malvados e arbitrrios praticados pelos brasileiros. Porm, mesmo que certa vezuma

    criana tenha idealizado atirar e no conseguido matar (assim diz a letra) o arisco animal, o

    insubordinado e traioeiro felino com um toco de pau, isso no autoriza inferir que a

    violncia endmica (sob seus vrios aspectos) que historicamente convive a atual sociedadebrasileira tenha como causa as cantigas infantis. O gato de rua, de telhado, dava sinal de

    agilidade, esperteza, insubordinao. Mas tambm de gatunagem, mau agouro e logro (consulte

    HOUAISS, 2002, verbete gato) desse emblemtico bichano. Lembremos aqui seus berros, sons

    e miados extravagantes cuja expresso nos induzia outrora, muitas vezes, associ-lo ao choro de

    bebs: geralmente intensos os notvagos miados so parte de rituais de cpula.

    Os problemas brasileiros e de sua gente certamente tm na infncia trgica e roubada as

    consequncias de sua lamentvel formao, mas no podemos atribuir s brincadeiras, poesias e

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    msicas, e especialmente s cantigas infantis, as causas; mas o meio, o efeito17. As cantigas de

    roda ou rondas infantis brasileiras, de origem portuguesa, africana, indgena e algumas de

    influncia francesa, comportam geralmente coreografias simples e ingnuas, muitas delas

    enraizadas no horizonte rural do Brasil, comportam um sistema singelo de regras criadas pelas

    prprias crianas e sofreram, desde o perodo colonial, fuses e constantes transformaes

    (variantes). Algumas ainda persistem na cultura popular infantil e diferenciam-se conforme a

    regio e caractersticas socioculturais (CASCUDO, 2001, p.593-7).

    Outro caso citado (consulte Anexo I) a cantiga Sambalel, tambm de roda e

    possivelmente uma variante que carrega em seu contexto domstico ldico, uma histria de

    transgresso18. Entretanto, sua interpretao contempornea se d em um mundo e por meio de

    uma concepo que apela incessantemente ao elemento visual, encarregado de racionalizar (e

    tornar imagem) tudo que possa atravessar os ouvidos (ou a memria) passando a considerar os

    fenmenos separadamente de sua realidade sonora especfica, contexto de onde surgiram e ao

    qual se remete aquela variante folclrica. Para a infncia, muitas vezes o que importa em seu

    processo de apreenso do mundo o movimento sonoro do motivo potico-musical, o prazer da

    repetio ritual e o canto, o timbre, os gestos que compem uma cantiga. A prpria clula

    rtmica, o batuque, as quilteras como diz Ratner (1980, p.74) um agrupamento rtmico (Alla

    Zoppa), que consiste em um distrbio do ritmo normal formado por uma nota longa entre

    duas curtas do lendrio Sambalel (um deslocamento que suspende momentaneamente o

    tempo no s cronolgico suspenso que no apenas quantitativa, mas uma qualidade, um

    imbrglio19 interior , o ritmo prprio do samba ao qual ele se remete. Se lel quer dizer

    tambm confuso, falta de entendimento (HOUAISS, verbete lel), ento o menino da

    embrulhada que intumos aqui (seria uma entidade negra lendria como o saci?) metfora20

    provavelmente de um menino pobre, escravo e peralta que aprontou alguma traquinice e algum

    lhe atirou uma pedra, ou ento, talvez, tenha levado uma queda e ficou doente. No importando

    se as coisas ocorreram (ou ocorrem?) como descreve ou narra o p da letra, Sambalelsabeou

    17A poesia fundao do ser pela palavra. HEIDEGGER, M. In: Approche de Hoelderlin, 1962,p.52 Apud BEAINI, T. C. A memria, medida ontolgica do cosmos. So Paulo: Palas Athena, 1989,p.33.

    18 Recentemente encontramos uma possvel estrutura rtmico-meldica similar ao Sambalel,classificada como Samba de Ciranda, registrada por Padre Jaime Diniz em seu livro: Ciranda de roda deadultos no folclore pernambucano. DINIZ, J. Pe.Ciranda de roda de adultos no folclorepernambucano, 1960, p.45, Apud As Cirandas Brasileiras e sua insero no ensino fundamental e noscursos de formao de docentes: Maristela Loureiro e Sonia R. Albano de Lima.. Acesso 17jul2014.

    19 Uma tcnica composicional do sculo XVIII (RATNER, 1980). O termo imbrglio (umaembrulhada) remete-se tambm a um Enredo confuso e intrincado de uma pea teatral (HOUAISS,2002, v.1). Todo imbrglio almeja, portanto, um reequilbrio dos elementos em conflito.

    20

    A metfora no descobre a similaridade, mas a constri [...] A metfora impe uma reordenaodo nosso saber e das nossas opinies [e ] pe sob os olhos [a] relao imediata entre duas coisas (ECO,2013, p.73).

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    deveria intuir que merecia umas boas palmadas21porque expressa, com sua msica-texto, que

    provavelmente tenha aprontado algo no texto potico. O carter de punio e as doenas a que

    estiveram submetidos os escravos em nosso perodo colonial pode ajudar a endossar e nos fazer

    compreender melhor tal episdio do imbrglio. Do ponto de vista potico-musical e folclrico,

    o tema Sambalel compe os fundamentos desse diversificado gnero chamado samba, cujo

    fonema Sambalel carrega em seu prprio ritmo () (o de coco, de roda, de breque, de

    morro, entre outros) sua essncia, traos de sua gnese. A expresso e transmisso de toda a

    experincia, de toda vivncia, esquece o autor do apcrifo e-mail, sempre ser transposta para

    uma simblica prpria do mundo (atual ou no) ao qual se remete, ao qual comenta.

    Assim, a variante potico-musical SambaleleAtirei o pau no gatopodem ser remetidos a

    um contexto histrico e simblico longnquo (horizonte de outrora), de complexa significao e

    difcil localizao para a atual sociedade brasileira urbana do sculo XXI. S podemosinterpret-lo parcialmente e tentar contextualiz-lo em nossa poca respeitando o conjunto texto

    potico e melodia (o que inclui obviamente o ritmo) e apontar suas possveis significaes, se

    houver, em nossa poca. Ao no mais vincular-se a ns, Sambalel e as antigas canes

    folclricas perdem parte de seu sentido ldico potico e sobrevivem enquanto legado potico-

    musical, porm que acena ao nosso horizonte de outrora. O que antigamente fora parte da vida

    domstica, tornou-se um clssico da antiga esttica colonial, artefato secular, esquecimento,

    porque perdeu seu poder de significar (ECO, s.d., p.47). Lembremos que o problema da

    significao no s em msica espinhoso e complexo.

    O declnio deste poder de significar corroborado pela histria humana, porm quando a

    perda de significados torna-se consequncia da eliminao constante e deliberada dos espaos

    cotidianos, do elemento entrpico (SCHAFFER, 1991, p.313-4), do imprevisvel elemento

    utpico, exigente de novas formas e reordenao de novos conceitos, ento algo atpico e

    esquisito se desenha no horizonte tico-esttico da sociedade. Sem a noodo bem (ethos) nada

    se pode significar. Valcrcel (2005, p.3 e p.5) nos diz que Onde h fatos no h tica. A tica

    algo intrinsecamente sublime. Os termos que a designam so simulacros. Vo alm do mundo.

    [...e] diz algo sobre o sentido ltimo da vida.

    A criana do sculo XXI subvivenum mundo tecnocrtico como lugar no qual nada pode ser

    efetivamente feito (ato) enquanto elaborao da experincia (BENJAMIN, 1994, p.117). O

    fazer, que deve ser entendido aqui sob o conceito humanstico do artifex ou aquele que

    indiferentemente faz, constri, confecciona sem desassociar ou dissecar seus elementos, ,

    uma arte ou ofcio no sentido tradicional que remete o termo poiesis. Assim, a atividade da

    criana de nosso tempo pode ser comparada aqui ao operrio que no tem nada a acrescentar de

    21Tal atitude atualmente renderia um processo custa da Lei 2.654/03 (Lei da Palmada), que temcomo epgrafe: Educai as crianas para que no seja necessrio punir os adultos.

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    si prprio ao processo de construo do mundo [...] e at seria impedido, se tivesse a menor

    veleidade em o fazer (GUNON, 1989, p.61). Aqui no importa se o que ele coloca em

    movimento uma mquina ou um dispositivo digital. A fabricao em srie tem como fim, e

    isso no novidade enquanto metodologia bsica do processo de industrializao, a produo de

    grandes quantidades de objetos [...] e o mais parecido entre si, destinados a serem usados por

    homens que se supe [tambm] serem todos parecidos (GUNON). Esse seria, por extenso,

    sob a mscara da multiplicidade mercadolgica, nosso atual modelo uniformizante de educao

    quantitativa. Fugir, evadir-se da escola, no mais apenas uma aventura de cabularaula, uma

    experincia transitria e comum de transgresso em uma sociedade afetada pelo medo, mas tem

    se tornado necessidade de ruptura e liberdade de consumo (e toda ruptura interrompe

    perigosamente) para a maioria de nossa juventude desassistida, vitimas totais da quantificao

    atual.

    Espao rural e urbano, a memria, o folclore

    A sociedade informtica contempornea compreende e trata, no contexto da sociedade

    urbana brasileira (um fenmeno global), a experincia como experimento classificatrio, como

    estatstica. Dessa forma deseja-se uma experincia pronta, classificvel, uma coletnea

    racional quantificvel de resduos e experimentosjamais tidos, vividos, experimentados, jamais

    tocados (AGAMBEN, 2005).

    O que constatamos ento o fato de nossas crianas no serem estimuladas a processos

    criativos(h, como temos observado na sociedade informticade consumo, motivos para isso),

    mas manipuladas inclusive com as mais recentes tecnologias, comprometendo a capacidade de

    invenoe significao formal (a forma enquanto ordenao interior) entendida aqui tanto no

    sentido moderno do termo quanto no antigo sentido do humanstico dialtico:22 o prazer da

    busca, a transformao e substantivao de seus prprios brinquedos (O brincar), o fazer, a

    modelagem dos espaos e do tempo vinculados s suas novas necessidades de desenvolvimento.

    Assim, os caracteres metafricos e essencialmente simblicos (modos de expresso) dasbrincadeiras infantis so para o entendimento da sociedade informticaatual, mero esquema

    conceitual de valor histrico cognoscitivo, chegando mesmo tais metodologias a colocar em

    22 O Humanismo dialtico que compreende a necessidade da busca e a possibilidade do fracassoenquanto construo (o fazer) da experincia (BARCE, inSCHNBERG, 1974) se contrape instruoenciclopedista, cientificista e tecnicista atual que prega o sucesso, o empreendedorismo a todo custo. Aconcepo humanista privilegia domnios poticos como a fantasia, a imaginao e o fazer, evocandouma tradio retrica (inventio) viva, por exemplo, na obra musical contrapontstica de J. S Bach(KRISTELLER, 1995); (MOISS, 2008, p.277-8), mas tambm compositores de ofciocomo o cubanoLeo Brouwer (1939 -). Como exemplo nosso, reafirmamos tambm a inovadora experincia humanista da

    Educao Vocacional surgida em So Paulo na dcada de 1960, brutalmente eliminada pelo Regime civil-militar de 1964. Uma concepo moderna de educao humanista e dialtica, que teve como ideal ohomem livre, sujeito transformador de sua histria (OLIVEIRA, 2011).

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    dvida as realidades subjetivas que escapam a toda objetivao e limitante quantificao

    estatstica (BURCKHARDT, 1979, p.9-47)23.

    Benjamin (p.114-9) em seu ensaio Experincia e Pobreza discute a liquidao da

    transmisso da experincia (a herana dada pelas tradies orais) enquanto autoria e

    consequentemente autoridade, lanando seu olhar em um ambiente (o mundo de meados do

    sculo XX) sobre o qual nada teramos a fazer nele e por ele, porque ele, o mundo

    conceitualizado e pronto, no pode convocar mais experincia do fazer, do brincar, do

    participar. Tal negao seria fruto da recusa de princpios fundamentais do humanismo

    (SOUZA, 1988, p.7). Pois bem, no mais cantar (um ato psicolgico reflexivo para diversas

    tradies humanas) no significa apenas a recusa de significados e da transmisso da

    experincia, a recusa(conceitual) da posio que ocuparia o elemento humano na ordem do

    mundo, um indcio, um vestgio de sua presena aqui.

    Assim como a orao religiosa, a contemplao ou a reza, os brinquedos sonoros (entre os

    quais se inclui o cantar) tm opoderde refletir o movimento anmico e contemplativo das e nas

    crianas: o mundo adulto contemporneo teria perdido a capacidade de cantar ou mesmo

    construir suas prprias experincias e, por isso mesmo, deslegitima tudo aquilo que

    supostamente tenha apreendidono passado. Algum j disse que s apreendemos aquilo que

    lembramos.

    A pior de todas as associaes psquicas das modernas geraes que resistiram sob a falta de

    liberdade e de expresso no Brasil de quase toda segunda metade do sculo XX aquela que

    funde ou (con)funde o conceito de antigo e antiquado. Tememos o passado? Tal incongruncia,

    fortemente presente em nossa sociedade, s pode ser identificada com um latente estado de

    esquizofrenia (DELEUZE; GUATARI, 2004), resultado da crescente banalizao e

    quantificao da vida, porque promove indiscriminadamente a mistura de planos psicolgicos e

    moralidades no mbito do cotidiano, impedindo, no mnimo, a construo da mais raqutica

    experincia: a experincia do fracassoenquanto fundamento da busca, enquanto construo e

    reflexo. Giorgio Agamben argumenta a expropriao cotidiana da experincia:

    Todo discurso sobre a experincia deve partir atualmente da constatao de que ela no mais algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia,o homem contemporneo foi expropriado de sua experincia (...) [Assim]O homem moderno volta para casa noitinha extenuado por uma mixrdia de eventos divertidos ou maantes, banais ou inslitos, agradveis ou atrozes , entretanto nenhumdeles se tornou experincia. (AGAMBEN, 2005, p.21-2)

    A citao seguinte foi retirada da cano Nowhere man (Rubber Soul, 1965) dos Beatles.Nela o autor parece reconhecer que nem o fracasso seria experincia suficiente ao homemmoderno. Assim, a recusa da experincia a recusa da autoridade, do autor. Tal niilismo

    23 Ainda conforme Burckhardt (1979, p.10), o entendimento conceitual um modo de ser doesprito.Ciencia moderna y sabiduria tradicional. BURCKHARDT, Titus. Madrid: Taurus, 1979)

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    essencial deNowhere manem grau elevado chega ao limite absurdo de uma criao ex nihilo,ou ocorrida a partir do nada. Para Agamben (2005, p.25), a expropriao da experinciaestava implcita no projeto fundamental da cincia moderna.

    He's a real nowhere manSitting in his nowhere land,

    Making all his nowhere plansFor nobody.

    Ele verdadeiramente um homem sem rumoSentando numa terra sem propsito,

    Fazendo todos seus planos sem objetivoPara ningum24. (BEATLES, 1965)

    Rouanet (1987) infere sobre o surgimento no Brasil destes perigosos estados de latncia

    em nossa memria (conceito freudiano de amnsia parcial com relao ao passado) visveis

    particularmente em diversos graus na sociedade brasileira e identificveis cotidianamente em

    nossa vida domstica nesses anos ps-regime militar (1964-1985). Caracteriza-se basicamente

    por no termos aprendido nada, a no ser a onipresente sensao de algo que sempre est para

    ser resolvido (uma suspenso), mas, e por isso mesmo, no cessa de acenar em nosso horizonte

    sociocultural, nosso espao potencial. Assim, grande parte dos brasileiros parece viver sob um

    grave estado de insensibilidade, esquecimento (sono), obscurantismo histrico e latente

    promessa (ROUANET, 1987, p.11-36). Isso refora a ideia de que os grandes temas

    sociopolticos e culturais vigentes em 1964 (e de todo o sculo XX) ainda so, para os

    brasileiros de 2014, os grandes temas de hoje.25

    Cada poca argumenta o realcom seu prprio instrumental e deve ver-se refletida nele, o

    mundo ao qual conferimos realidade. A atual sociedade da informao, em que pesem todos os

    benefcios conquistados por meio da microeletrnica, microbiologia e microgentica, do

    hipottico aumento das capacidades intelectuais do ser humano, traz em seu interior, conforme o

    neomarxista Adam Schaff, o perigo de um inevitvel cataclismo social (com o recurso

    violncia), com srias consequncias para o bem-estar psquico dos homens. Especialmente em

    pases com profundas desigualdades socioeconmicas como o Brasil.

    A viso de Schaff (1995) no mbito da atual revoluo ciberntica e tcnico-cientfica otimista sob alguns aspectos para com os pases ricos, mas no para com os pases pobres ou

    emergentes (Terceiro Mundo) aponta para o abandono pelas diversas sociedades do marco de

    sua cultura nacional tradicional e uma tendncia progressiva a uma ampla internacionalizao e

    interpenetrao de diversas culturas locais em nveis cada vez mais supranacionais, provocando

    o desaparecimentodo folclore nos pases ricos e mais abertos s transformaes tecnolgicas

    em curso (SCHAFF, 1995, p.78).

    24

    SOGL, Lesley (Tradutora profissional). Informao pessoal fornecida por e-mail, outubro 2014.25Palestra proferida por Francisco Weffort, entre outros, em maro de 2014 na Universidade de SoPaulo, intitulada FFLCH Discute o golpe de 1964.

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    Isso se reflete no mundo atual, e particularmente no Brasil, na conduta desvencilhadora e

    irracional sobre tudo que nos chega aos ouvidos, que considerar os fatos e no caso especfico

    de nossas cantigas infantis separados de seu contexto e vida sociocultural de onde surgiu

    determinada variante potico-meldica. Ao separar do contexto passamos a entend-los (os

    fatos) como paradigma, como fez o autor do annimo e-mail.

    Apenas para complementar, h um tema sociologicamente complexo que interessa para

    posterior reflexo. Seguindo o pensamento de Schaff (1995) a questo atinge diretamente os

    tradicionais conceitos de folclore no Brasil, parecendo justificar, portanto, o conceito de

    Folclore ps-moderno26(WARSHAVER, 1991). Tal tema parece ter norteado a formao e

    integrao do conceito de brasilidade a partir das seculares relaes entre uma viso (por

    vezes idealizada, outras no) do Brasil do campo e do Brasil das cidades. Cristalizou-se desde o

    perodo colonial e intensificou-se no perodo da industrializao do Pas em meados e fins do

    sculo XX o xodo rural , a incessante comunicao entre o mundo agrcola e o urbano.

    O espao rural brasileiro, cuja cultura sempre esteve ligada s riquezas terra e sua

    desordenada explorao, defrontar-se-, cedo ou tarde, com a crescente e progressiva

    industrializao do campo seguida atualmente pela informatizao (interao homem-mquina e

    dispositivos eletrnico-digitais semicondutores compostos de silcio) e a radical sofisticao das

    mdias industriais que lidam com biotecnologia e Inteligncia Artificial (IA). O mundo do

    campo e da cidade tende a uma interpenetrao cada vez maior, no havendo mais limites entre

    suas esferas culturais, mas o surgimento de inmeros poros ou vias de comunicao que se

    ampliam continuamente. O consequente surgimento, em vrios nveis, de experimentos

    biogenticos prometem a elaborao de uma complexa teoria ciberntica, inclusive fornecendo

    sustentabilidade a construo de uma Esttica Digitalna ps-modernidade (a Media Art) que

    lida com sistemas de comunicao e vida artificial (ALife).

    Estes movimentos da vida contempornea (que atropelam no Brasil do sculo XXI nosso

    centenrio dbito social de uma prometida Reforma Agrria), postos em marcha j na primeira

    revoluo industrial europeia, sugerem transformaes socioculturais mais profundas no Brasil

    do interior paralelamente crescente excluso dos camponeses dos processos de modernizaoe mecanizao do campo. Desenraizado e sem terra, o homem do campo, tornado suprfluo

    pela revoluo agrcola, sobrevive na iminncia de ver destruda sua cultura, seu passado

    (HOBSBAWM, 1995, p.403-4/537-63)27. O fim do folclore ou de seu tradicional conceito

    26Conforme Goss (s.d.), se o modernismo foi marcado pelo refinamento terico, o sentido central deautoridade e pelo determinismo histrico e cientfico, o ps-moderno caracteriza pela ruptura, peladesfocalizao do sujeito, pelo indeterminismo, pela incluso, pelo paradoxal e pela idia de cultura

    compartilhada.27Na histria ocidental, os camponeses formaram a maioria da populao humana (HOBSBAWM,1995).

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    dependente das tradies orais e camponesas? H um conceito de folclore que abarque a atual

    sociedade urbana tcnico cientfica?

    Quando o saber popular vivo torna-se objeto de conhecimento racional, ele deixa de ser

    experincia realidade vivida (ORTEGA y GASSET, 2003, p33-36) e torna-se um corpo

    passvel de ser dissecado, analisado, jamais recomposto: o saber (do ingls, lore) no pertence

    rbita do racionalismo cientfico, mas esfera da experincia vivida em suas instncias

    simblicasmais profundas (WARSHAVER, 1991, p.219-29).

    Assim, o projeto de uma inteligncia artificial [IA], de uma vida artificial, deve superar a

    limitao biolgica da humanidade no seria mais algo para um longnquo futuro. Conforme

    Andr Gorz (2003), os projetos que envolvem IA tratam, fundamentalmente, de uma busca pela

    emancipao completa de toda materialidade, como emancipao da natureza, tem seu fim

    tico ltimo o desprezo pela mquina de carne humana (GORZ, 2003, p.13). Primeiro,

    desumanizou-se a arte (ORTEGA y GASSET, 2003), desse modo, seria o momento de

    desumanizar o humano?

    importante notar que no intentamos aqui nada de condenatrio ou uma avaliao

    moralista em nossas reflexes. Para Ortega y Gasset (2003, p.42-6), desumanizar um conceito

    que promove o triunfo sobre o humano. A desumanizao na arte, j no incio do sculo XX,

    que coincide com a progressiva destonalizao do tonal na msica ocidental, estilizou e

    reformouo real, instaurando uma nova sensibilidade (ORTEGA y GASSET, 2003) na qual

    seria possvel capturar um aspecto do real que no remetesse o observador a uma miragem

    (romntica) de si mesmo. Por isso, o fazer de conta da brincadeira infantil tambm esse

    escapulir do real, porque retira o sujeito, o elemento humano no contexto da arte, do centro de

    gravidade para simularuma realidade por trs, (melhor, para alm?) da vida cotidiana.

    Abordar a questo desse modo tem como intuito contrapor e trazer reflexo a

    complexidade em tratar um assunto que envolva os conceitos de permanncia e mudana no

    marco das tradies culturais do Brasil. Expressamos assim o dilema de um pas no qual se

    aprofundam fortes tendncias transformistas que apontam para uma emergente superao de

    nossas caractersticas socioculturais, resvalando perigosamente na possibilidade doesquecimento histrico e homogeneizao cultural (inclusive na histria recente), quando ainda

    vivemos a discrepncia de no termos superado nossa vergonhosa segregao social.

    As manifestaes folclricas, a produo dos saberes populares onde subjaz o alegrico e o

    simblico tem passado por grandes transformaes e as cantigas folclricas infantis no

    estariam em condio diferente. Ricas em variantes, as cantigas de bero, roda, mar, entre

    tantas, sofrem as mutaes das experincias trazidas por cada gerao (pais, avs, bisavs), as

    transformaes do gosto na estrutura rural e urbana, da condio sociocultural, dos sotaques e

    vocabulrios dos agrupamentos humanos no Brasil.

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    Warshaver (1991) sugere um esquema tridico para a conceitualizao de Folclore Ps-

    Moderno. O saber (Lore de FolkLORE), experincia humana conectada memria funo

    especfica de acesso ao passado, a presena do ausente (RICOEUR, 2007). Trata-se da

    aporia platnico-aristotlica cujo dilema reside em que ns nos lembramos daquilo que no

    est presente: a presena da ausncia. Para Schafer (1991, p.282-93), quando uma experincia

    bem-sucedida, ela deixa de ser experincia.

    Entretanto, na era do silcio e dos dispositivos digitais, das tcnicas de simulao e emulao

    ciberntica, do corpo como interface e do racionalismo esttico atual (GIANNETTI, 2006), h

    uma forte tendncia a convencer a mentalidade humana de que possvel (suprimindo toda

    contextualidade do mundo real analgico) repetir indefinidamente os eventos. Tecnicamente,

    suprime-se qualquer distino entre original e cpia. Esta indistino liquida o espectro

    tradicional do conceito de autoria e de experincia. Ao desconsiderar os contextos possveis nos

    processos de imitao e cpia processados por algortmicos (software),realmente dois sons, por

    exemplo, podem ser repetidos indistintamente (e quanto maior a redundncia, menor a

    complexidade da informao, GIANNETTI, 2006, p.56); assim, o artifcio da emulao pode

    levar ao trmino ou pelo menos transformao, no contexto tcnico ciberntico atual, do que

    se entende por experincia, crescentemente substituda por um automatismo generalizado.

    Lembremos que abordamos aqui os elementos que se encontram no mbito de entidades ou

    modelos artificiaisque conforme as pesquisas de Giannetti no tem equivalncias estruturais

    na esfera do humano28, uma vez que toda referncia espacial e matrica [...] desaparece no

    mundo de dados digitais, tampouco sobrevive a concepo de estrutura espacial e fsica fechada

    do corpo (GIANNETTI, 2006, p.128).

    Contudo, do ponto de vista de uma Esttica da Percepo, arte e vida e nesse compsito

    habita a infncia, seu imaginrio ldico-emocional cujos processos estticos desempenham

    importante papel convivem em uma relao imanente e inseparvel (GIANNETTI, 2006)

    que deveria se impor ao automatismo fsico-mental e nossa crescente alienao cultural.

    Para o esquema tridico de Warshaver (1991), a camada de estudos do folclore onde se

    produzem os saberes populares, dizamos, mais prximos a terra e geralmente oriundo domundo grafo pastoril e agrcola, inaugura e configura o primeiro nvel. No segundo nvel,

    como comentado, o saber popular (folklore) torna-se objeto da cincia moderna (que,

    prevalecendo, tem se caracterizado pela excluso de outros modelos de conhecimento), da

    academia. Teorizada e elitizada, nesse nvel, a sabedoria popular passa a ser submetida a

    esquemas tcnicos e investigaes formais. Este nvel cientfico, formal, que tenta dialogar com

    o primeiro, esfora-se por controlar e legitimar, na sociedade tcnico cientfica contempornea,

    as tradies culturais em suas instncias simblicase, portanto, mnemnicas. No terceiro nvel

    28O que pode definir esfera do humano? Algo seria capaz de faz-lo? Cf. BLOOM, Harold.Abaixoas verdades sagradas. So Paulo, Cia das Letras: 2012, p.127.

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    de estudos do folclore, entendemos, reconceitualiza-se o segundo sob o que Lyotard intitulou de

    condio ps-moderna, convivendo, atualmente, com uma crise nos dispositivos de

    legitimao e no imaginrio moderno: a noo de ordem. Uma desconstruo de conceitos.

    Assim, aos estudos do folclore na ps-modernidade cumpriria investigar as transformaes

    tecnolgicas que alteram os esquemas sociais. Se o segundo nvel no pode reconstituir o

    primeiro em suas instncias simblicas, sob as mais recentes condies do pensamento ps-

    moderno das sociedades contemporneas, no terceiro nvel (o nvel ps-moderno), a tentativa de

    dialogar com o primeiro nvel pode no mais configurar uma evidncia, acenando para uma

    probabilidade, dado o reconhecimento do acelerado grau de transitoriedade das diversas culturas

    primrias no sculo XXI.

    1. O fazer de conta de Ciranda-cirandinha: um paradigma das brincadeiras e

    cantigas de roda

    Fazer de conta a presena de uma situao ausente, a memria (RICOEUR, 2007)

    como, por exemplo, quando a criana faz de conta que dorme uma metfora 29to mtica

    quanto a expresso Era uma vez, por seu carter essencialmente no quantitativo, que escapa

    toda temporalidade, a quantificabilidade histrica. Era uma vez inaugura a narrativa mtica e

    sempre um fazer de conta, aberto ao imaginrio e completamente desassociado da imagem

    preconcebida de uma pretensiosa evoluo do homem (SOUZA, 1988, p.9), como tem sido o

    prprio preconceito de que a criana evolui e torna-se adulta. , como argi Fernando Bastosem sua apresentao aoMitologia 1de Eudoro de Souza: o Era uma vez, o mito, ao firmar-se

    como argumento-origem de quase toda alegoria [...] menos a narrativa das origens do que a

    origem de toda narrativa [...] (SOUZA, 1988, p.1). O fazer de conta aponta outro ente que

    no aqui, lonjura, mas continua sendo sempre como ao que est aqui. Assim parece ser a

    brincadeira do faz de conta: simulao, forjar-fingir, inveno do real. Toda brincadeira infantil,

    para alm de qualquer possvel teatralidade, manipula, com a criana, o tempo do eterno

    presente e coloca metaforicamente prova o real, e nisso reside toda a graa (a gratuidade da

    busca), toda a questo shakespeariana que articula a condio transitria do humano no

    infinitivo serou estarno mundo? No isso que aponta ciranda-cirandinha?

    Vai, vai, vai, disse o pssaro: a espcie humana no pode suportar tamanha realidade.Tempo passado e tempo futuro. O que poderia ter sido e o que foi indicam um fim, quesempre presente (T. S. Eliot, Quatre/Quatuors, 1950 apud SILVA, 1984, p.27)

    29

    H uma discusso conceitual aqui que escapa ao escopo de nosso tema no momento. Para Santos(1959, p.27) [...] o smbolo precisa ter uma analogia [grifo nosso] de atribuio intrnseca com osimbolizado. Do contrrio metfora e no smbolo.

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    A convocao inicial ao coletivo de vamos todos cirandar,30 em Ciranda-cirandinha,

    coloca em movimento a roda infantil em um sentido giratrio determinado por seus prprios

    atores. Diferentemente do personagem, a criana atua, escolhe, constri seufazerde conta.

    O que Ciranda-cirandinha nos pode comunicar mais? Qual a ideia transmitida pela

    quadrinha31recitada ao centro por seu ator principal, que solitrio, a um s tempo, percebe-se

    parte do mltiplo e do transitrio? O drama ldico narrado por Ciranda-cirandinha o daquele

    mais fortemente banalizado e confuso dos conceitos utilizados pelas miditicas sociedades

    urbanas da ps-modernidade: a temtica do amor. Ldico, mtico, singelo e no sensual, como a

    prpria msica que o embala, associado memria (Ser, pois, o meu amor uma obra de

    memria? - KIERKEGAARD, 1979) temtica recorrente das canes infantis.32

    Eis a importncia do tema do amor, em que pesem as cantigas infantis, assim como quase

    tudo que se refere ao elemento folclrico, serem sistematicamente consideradas pela sociedade

    moderna humildes demais para merecer nossa submisso (ZIMMER, 1988, p.9): ele pode nos

    revelar a gnese do smbolo e sua complexidade em ns. Da que o amor primeiro (e essa a

    condio esquemtica de Ciranda-cirandinha) o primeiro nvel do real, onde h uma

    tendncia de fuso e identificao com o objeto amado, com o outro, portanto, o prazer da

    imitao (SANTOS, 1969, p.18-29). NO Cravo e a Rosa, que veremos mais frente,

    entretanto, tal identidade com o objeto amado se v interrompida, separada e no momento

    seguinte, confirma o falso brilhante ilusrio do anel de vidro, convertendo-se, com o tempo, em

    um processo de relao insuportvel entre amantes. Dessa forma, os smbolos apreendidos,

    pressentidos (ZIMMER, 1973, p.223) pela criana podem constituir a configurao de novas

    ordenaes interiores cuja educao e maturao dos sentidos se do por meio, neste contexto,

    do conjunto alegrico e potico-musical. importante destacar aqui que os smbolos, no

    contexto das cantigas, devem ser entendidos no como algo que signifique alguma qualquer

    outra coisa que no si mesmo. O amor despetalado de O Cravo e a Rosa ele mesmo e no algo

    que deva significar outra coisa. Nas cantigas aqui comentadas o amor no algo que inexista,

    ou seja, que seja distante ou exterior ao fator humano.

    bvio que o primeiro falso brilhante remete-se presena do outro, num momentopsicologicamente complexo, porque o anel era vidro assim como a roda, smbolo do tempo

    30Referimo-nos variante mais conhecida em So Paulo, muito prxima variante coligida no sculoXIX, por transmisso oral, por Sylvio Romro: Oh ciranda, oh cirandinha/ Vamos todoscirandar;/Vamos dar a meia volta/Volta e meia vamos dar;/Vamos dar a volta inteira,/Cavalleiro, troque opar./Ciranda Cirandinha/O annel que vs me destes/Era de vidro, quebrou-se;/amor que tu me tinhas/Erapouco, j acabou-se. Essa variante rene em sua sequncia uma mistura de temas do folclorepernambucano. Outras quadrinhas aparecem em Romero (1883). Melodicamente as variantes so muitoprximas coligida porVilla-Lobos. Consulte tambm a partitura emA obra pedaggica de Heitor Villa-Lobos (VILA, 2010. p.134-5).

    31Quadrinha ou quadra. Poema com estrofe de quatro versos. Composio verdadeiramente popular

    e mesmo folclrica, caracteriza-se por sua brevidade e por sua singeleza (MOISS, 1974, p.425).32 possvel entrever, nas cantigas infantis brasileiras, o papel de mediador do elemento ldico-singelo entre o sagrado e o profano na sociedade brasileira do perodo colonial (NETO, 2013).

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    cclico e do transitrio 33e, por isso mesmo, quebrou, rimando com acabou, porque o amor

    era pouco, transitrio. A simblica da roda est presente tambm na forma do anel simblico

    (aliana) cuja funo a lembrana.34Aqui, conforme Ricoeur (2007), trata-se do dilema grego

    da memria que desvela, no nvel ldico-simblico, a convico de que s a prpria memria

    (um momento entre viglia e sono) pode dar acesso ao passado e verdade, promovendo em

    seguida o esquecimento (que caos simblico)35 enquanto necessidade. Porque o recurso de

    significar, seja qual for a verdade da criana, cumpre seu papel. Fim da experincia. Outra

    criana sai da roda, da periferia, e vai ao centro. O centro idealmente o mesmo, o insuportvel

    tempo presente [...] condio transeunte e frgil do homem (SILVA, 1984, p.27), mudam-se

    os atores. Da tambm o anel, uma roda, uma aliana ser a indumentria necessria da

    lembrana da presena do ausente (RICOEUR, 2007). O amor pode persistir, porm, seu objeto

    no.

    Perguntamos se tal multiplicidade (camadas) de significados em seu contexto potico-

    musical nos autoriza a criar um espao hermenutico que dialogue com o atual quadro social

    brasileiro, essencialmente urbanizado, com todos os benefcios tcnicos que isso possa trazer,

    porm profundamente desigual e repleto de patologias psicossociais correlatas no qual subvivem

    nossas crianas? Obviamente, no podemos esquecer o papel e o impulso possvel que deveria

    cumprir a educao pblica.

    A roda-mundo e aqui evocamos novamente outro tema de Chico Buarque, compositor

    emblemtico da melancolia brasileira smbolo do transitrio que sutilmente aponta a

    permanncia do ser enquanto muda o mundo, to singelamente reconstitudo pelas crianas nas

    rodas das cirandas-cirandinhas, reside nesse ritual de alegoria potica e musical que comenta

    com e pela infncia, toda uma complexidade simblica, contribuindo para o equilbrio social e

    emocional das crianas. E que lhes prov, no esqueamos, uma dignidade de saberes e

    percepes do jogo do real, que pode ultrapassar numa simples volta e meia, o racionalismo

    adulto, que julga as coisas apenas pelo ponto de vista do conceito de bem-estare do bom senso.

    A criana parece ser iniciada aqui ao entendimento do mundo como o lugar de experincias

    e iluses e mesmo com uma vivncia coletiva e alegre propiciada pela multiplicidade da roda-mundo, levada a suspeitar que mesmo fazendo aquilo que o corao dita, [...] esse mundo

    33 A palavra grega para indicar ano [...] designa todo objeto circular como um anel. A idiatemporal de ano, por si mesma j primitivamente ligada de crculo (cf., v.g., Lat. annus, nus e annulus),exprime-se aqui redundantemente como um circuito, como um retorno cclico [...] (TORRANO, 1995,p.34).

    34O jogo do anel tambm uma brincadeira tradicional das crianas brasileiras, em que um anel passado por entre as mos at uma receb-lo discretamente, sem que ningum perceba. (CASCUDO,2001, p.15-6).

    35

    Enquanto designam o Esquecimento, Sono e Morte se irmanam ainda mais, no ato mesmo deperder a lembrana, de deixar escapar da Memria. BEAINI, T. C. A memria, medida ontolgica docosmos. So Paulo: Palas Athena, 1989.

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    cheio de maldade e iluso (CAYMMI, 1957). Entretanto, o cuidado em tocar a fragilidade

    desse mundo que a est parece sempre acenar nas entrelinhas das cantigas infantis.

    Em seu texto Olhar e memria (FILHO, 1988, p.107), o autor considera que nossa

    subjetividade constitui uma interioridade inscrita nas formas sociais de existncia. Isso quer

    dizer que correntezas do passado podem reviver numa rua, numa sala [...] uma maneira de

    pensar, sentir, falar, que so resqucios de outras pocas. H maneiras de [...] cultivar um

    jardim, [...] de preparar um alimento, que obedecem fielmente aos ditames de outrora. H

    maneiras... e Ciranda-cirandinhaao explicitar o transitrio, com seu centro imutvel, aponta o

    elemento permanente. A criana que se situa ali, no centro, recita de cor (do latim, corao,

    simbolicamente como sede da alma, HOUAISS, 2002. AURLIO, 2004) ou improvisa uma

    quadra potica.

    Assim, a roda, provavelmente, seja o elemento de forma geomtrica e coreogrfica mais

    essencial da expresso e da experincia simblica de ordenao na atividade ldica, porque

    impede o processo entrpico e natural do tempo. Porque tendo ela, a roda, forma cclica a todos

    pertence, democratiza e compartilha. Do ponto de vista da criana tende a simbolizar a

    ordenao do prprio mundo em volta; como vimos, traa a rotao do mundo, sua rotina, que

    se contrape enquanto ordem cclica ao transitrio-temporal, presente na vida e na natureza

    prpria das coisas que nos cercam. Segundo Schaffer, [...] se desejarmos que a ideia de ordem

    ocorra criana, devemos comear com um pequeno caos, porque nele reside a possibilidade

    de uma nova ordenao do pensamento, ante a profuso do real (1991, p.313-4).

    Ao encontrar um mundo pronto, acabado, a criana tende, no mximo, a experiment-lo

    (diferentemente da construo e do fazer da experincia