Trecho do livro "Mujica - A revolução tranquila"
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Prefácio à edição brasileira 9
Prefácio à edição brasileira
UM LÍDER NECESSÁRIO
N o excelente prefácio da edição original de Mujica – A revolução tran-
quila, de 2014, o jornalista espanhol Miguel Ángel Bastenier apre-
sentou este livro como “uma investigação de um mistério insondável”.
Seu protagonista é “o desorbitado personagem que aterrissou na pre-
sidência do Uruguai” em 2010, atraindo sobre si, desde então, insaciá-
vel curiosidade internacional. Para Bastenier, uma pergunta resume a
obra: “quem é esse homem?”. Outra, amplia a curiosidade: “como cabe
tanto espetáculo em um recipiente tão pequeno quanto a república
dos orientais?”.
O robusto trabalho histórico, analítico e jornalístico que nos oferecem
estas páginas não desvenda o enigma José Mujica nem responde às mui-
tas indagações suscitadas pelo fenômeno global em que se transformou.
Melhor que isso, Mauricio Rabuffetti fornece os elementos necessários
para que cada um saboreie o prazer de chegar às próprias conclusões. A
missão, entretanto, não é fácil.
Tanto quanto “um mistério insondável”, Mujica é uma excentrici-
dade estatística. Dentre os quase 200 chefes de Estado contemporâneos
com assento na ONU, nenhum despertou tamanha admiração. Mesmo
sem poderio militar ou econômico, oco de relevância estratégica ou ter-
ritorial e conduzindo o destino de menos de 0,05% da população global,
“El Pepe” converteu-se no solitário exemplo de líder que queremos ter.
Depois de cinco anos de exposição planetária, de incontáveis entre-
vistas a todos os meios e, em especial, deste Mujica – A revolução tranquila,
pouco ou nada resta a revelar sobre José Mujica. Criteriosamente,
Rabuffetti esgota nestas páginas as circunstâncias, os fatos e os efeitos
relacionados a Mujica, reservando aos leitores o desafio de identificar,
no comportamento e na pregação do “velho”, como o chamam alguns
companheiros mais jovens, os ingredientes que conquistaram tantas
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mentes e corações. Afinal, o que o fez chegar tão longe? A austeridade
que o ex-Tupamaro professa, assim como sua sucinta lista de pregações
à humanidade, transformaram-no em um astro que, diferentemente
dos que arrastam multidões, é avesso à produção gratuita de novida-
des. Mujica parece cultivar não apenas a notória convicção de que é
possível ser feliz com menos, mas, também, de que bastam poucas
ideias pétreas, sempre as mesmas, para transformar o mundo. A des-
consertante repercussão que causou sugere que está certíssimo.
Muitos compatriotas do rosicultor de Rincón del Cerro não lhe atri-
buem tal dimensão nem tantos méritos. Lembram que a veneração a
Mujica é maior fora do país, onde suas muitas falhas domésticas não sur-
tem efeito, e, compreensivelmente, moldam-no aos malogros de seu
governo. Mas mesmo os insatisfeitos reconhecem que o tsunami midiático
produzido em função de “El Pepe” fez bem ao Uruguai e aos uruguaios.
O sinal que despertou a atenção internacional para Mujica iluminou-se
a partir do momento em que, empossado presidente, permaneceu exa-
tamente como era. Instantaneamente, impôs sua maneira de ser aos dis-
pendiosos aparatos e salamaleques que ornam o poder. Sequer deixou o
casebre em que sempre viveu, na periferia rural de Montevidéu. Quando
ali cheguei ano passado, para entrevistá-lo com Fernando Mitre e Fabio
Pannunzio para a TV Bandeirantes, sua mulher, a senadora Lucía Topo-
lansky, estendia no varal as roupas que acabara de lavar.
— Seus críticos dizem que tudo isso é para atrair holofotes... — provoquei.
— Estou velho, doente e sem ambições políticas — respondeu, em um
suspiro de quem já o fizera centenas de vezes. — Se o que faço é teatro, o
que ganho com isso?
Para os brasileiros, como para a quase totalidade dos povos, conhecer
Mujica permite, também, constatar o quanto estamos submetidos a
deformações de poder que transformaram nossos governantes em semi-
deuses perdulários e insinceros, cercados de aparatos e ostentação,
como se estivessem em outra esfera humana, cumprindo (?) missões
além de nossa compreensão. Brasília, com seus palácios e séquitos majes-
tosos, jatos e mansões oficiais, dá a dolorosa visão dessa realidade, que a
comparação com o estoico vizinho torna ainda mais ridícula e anacrô-
nica. A lista de condutas que diferencia Mujica dos demais governantes
é mais do que uma questão de temperamento, de estilo. Trata-se de
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escolha política e didática. Fosse outro seu comportamento e a mística
seria pó. A essência da lição está neste livro, em declaração a um jorna-
lista holandês: “As pessoas acreditam que são o centro do universo e que
quando estamos em um posto importante... Ora... O mundo continua
girando quando partimos. Deixamos o mundo e a vida segue”.
O que pensarão desse “semelhante tão distinto” os demais gover-
nantes? Fazem piadas a seu respeito? Zombam de seus sonhos? Levam
a sério sua quixotesca cruzada contra o consumismo, que o baixinho
uruguaio considera o maior de nossos males? Menosprezam sua oferta
de mediar a busca pela paz em todos os conflitos possíveis? Acham-no
inconsequente quando abriga crianças órfãs da Síria ou dá asilo a presos
de Guantánamo? E o que dizem quando “El Pepe” radicaliza ações pelos
direitos humanos? Têm algo a declarar quanto à corajosa decisão de
mudar a lógica do combate ao tráfico de drogas, criando alternativa à
fracassada doutrina da repressão pura e simples?
Perguntei-lhe se receava parecer “um pouco fora da realidade, aos
olhos das lideranças mundiais”. Ele deu de ombros:
— Estou consciente de que sou exótico no meio em que tenho que
conviver... Acredito que as Repúblicas vieram como uma negação à
monarquia divina, ao feudalismo. Vieram para confirmar que nós, os
homens, somos basicamente iguais. E acredito que os governos se des-
viam e tendem a viver e a criar uma aparelhagem à sua volta, repetindo
o modo de viver dos setores mais acomodados e não o da maioria da
população que devem representar. Eu tenho bem claro meus julgamen-
tos, meus costumes, meu modo de ser. É como o da maioria do meu
povo, uma classe média humilde, gente que vive mais ou menos como
vivo. Opto por viver e gastar o que eles gastam. Não preciso mais, por-
que entendo que as Repúblicas são para isso. Do contrário, as pessoas
começam a deixar de acreditar na política. Não sou contra os ricos. O
que sou é contra os que gostam de riqueza e entram na política. Que se
dediquem à indústria, aos bancos, ao comércio, mas não se metam na
política! Na política gostamos da sorte dos demais. Não é que não tenha-
mos interesses: temos interesses no coração, que é outra coisa, não no
bolso. Essa é uma grande diferença que há...
A montanha de condutas que diferencia Mujica dos demais diri-
gentes políticos, que as páginas a seguir detalham, sugere mais do que
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uma questão de temperamento, de estilo. Para muitos (mas não todos),
trata-se de escolha consciente e didática, empenhada em persuadir,
pelo exemplo e pela palavra, quem puder alcançar.
Na singeleza das colocações de Mujica reside sua sabedoria. Natu-
ralmente, a complexa e terrível realidade de nosso tempo, causa e con-
sequência daquilo em que nos transformamos, assemelha a ilusória
ingenuidade de seus ensinamentos às fantasias que lembram a inocência
hippie dos anos 1960.
Ouvi essa comparação ao elogiá-lo, certa vez, em uma discussão
com colegas de trabalho. Devolvi a provocação com um dilema típico
daqueles jovens movidos a paz e amor: “O que seria do mundo, hoje, se
a humanidade tivesse sido conduzida, desde os primórdios, por líderes
sem exércitos, sem dinheiro, sem arsenais? E estivessem dedicados
apenas a inspirar valores, semear harmonia e praticar solidariedade?”
Meus amigos acharam que eu tinha fumado maconha e puseram-se
a rir; mas não responderam às perguntas. Se eu tivesse dito que “sacri-
ficamos os antigos deuses imateriais e pusemos no templo o deus mer-
cado... Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e,
quando já não aguentamos mais, sucedem a frustração, a pobreza e até
a autoexclusão”, sem dúvida reagiriam da mesma forma.
A frase, que conheci neste precioso A revolução tranquila, é de José
Mujica.
Peço licença para concluir estas linhas com um apelo pessoal:
Vivi minha primeira infância em Montevidéu, onde nasceram três
de meus seis irmãos (brincávamos no parque Rodó). Quando partimos,
lá ficaram até a velhice meus avós, preservando raízes que ainda nos
mantêm ligados àquela terra. Nos anos 1960, viagens regulares de minha
mãe ao Uruguai, para tratamento hospitalar de minha irmã, Beatriz,
resultaram na suspeita de que atuava como “correio” entre os Tupamaros
e grupos que combatiam a ditadura no Brasil. Valho-me desta intimi-
dade nativa para pedir aos meus amigos celestes que, se por soberanas
razões, quiserem se livrar de Mujica, mandem-no para cá.
Longa vida para “El Pepe”.
RICARDO BOECHAT
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Prefácio à edição original 13
Prefácio à edição original
INDAGAÇÃO DO MISTÉRIO
E ste livro é a investigação de um mistério bastante insondável; uma
reportagem feita de reportagens; ou o retrato de um personagem
do país, todos eles envolvidos, por sua vez, em uma globalidade que é
como um cenário mundial. Isto é, muitas coisas e todas elas bem resol-
vidas, de escritura enérgica, prudência de espeleologista para espiar o
oculto, respeitoso com um leitor a quem expõe os prós e os contras, as
opiniões de especialistas, colegas e familiares. E a grande pergunta que
resume a obra é: quem pode ser afinal esse personagem fora de órbita
que foi aterrissar, sem que ele nem ninguém pudesse prever, na pre-
sidência do Uruguai? Como cabe tanto espetáculo em um recipiente
tão pequeno como a república dos orientais?
Hei de confessar que minha primeira construção mental de José
Pepe Mujica foi marcada por uma certa incredulidade. Com quem nos
encontramos? Um exibicionista relativamente frustrado, porque já
não pode continuar se fazendo de guerrilheiro, nem sequer moral, ins-
talado na presidência? Alguém que tem de virar pelo avesso uma polí-
tica que no fundo despreza, como se fosse um par de meias? Ou a vai-
dade mortal daquele que pretende aparecer perante o mundo como a
última versão do filósofo-rei dezoitão, que faz o país e o mundo pen-
sarem cada vez que abre a boca? Ou, simplesmente, é que ele gosta de
se divertir, já com a vida resolvida, montando o teatrinho da austeri-
dade extrema e do Fusca como meio de locomoção? No mínimo, Mau-
ricio conseguiu que eu suspendesse minha “descrença” quase congê-
nita e, como muitos uruguaios, porque santo de casa não faz milagre,
reconhecesse no presidente uma autenticidade inerente. Mujica acre-
dita no que faz e não engana ninguém. Até aí eu concordo. Mas o
melhor do livro é que o balanço final será feito pelo leitor, pelo espec-
tador, pelo interlocutor, pelo uruguaio, pelo cidadão do mundo, par-
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tindo do princípio de que o Uruguai jamais teve um chefe de Estado
que fosse conhecido em todos os cantos.
O autor, jornalista uruguaio, aproximou-se do personagem com
um plano triplo, cada um contendo ou sendo contido pelo seguinte.
Primeiro está Mujica em si mesmo, com informação biográfica sufi-
ciente sem ser excessiva, portanto nada semelhante a uma biografia
convencional; prosseguindo, chegamos ao nível uruguaio e, nesse sen-
tido, o livro é também uma biografia do país, e, finalmente, encerrando
e amarrando tudo, desembarcamos no mundo das ideias, da reflexão
sobre a sociedade ocidental, tarefa que não intimida o autor na hora de
debater problemas e soluções. A interação entre esses três níveis é exce-
lente, de forma que um momento da vida do protagonista envolve a
sociedade que o viu nascer, e essa sociedade tem à sua volta a matéria-
-prima do cenário global, no qual Mujica tem mostrado passos com a
perícia de um dançarino de salão.
Depois de ler o livro, atrevo-me a comparar o presidente ex-guer-
rilheiro, considerando certas distâncias talvez inconsideráveis, com
José Luis Rodríguez Zapatero, que foi chefe do governo da Espanha
pelo Partido Socialista. Mas Zapatero pouco tinha de artista do
trapézio, poderão me dizer. É que a semelhança é de outra natureza.
Tanto o uruguaio como o espanhol se acham, inclusive hoje, genuina-
mente homens de esquerda, e ambos no exercício do poder tiveram
que descobrir, presumo eu, que uma verdadeira política progressista,
aquela em que a esquerda é a esquerda, a que afeta a redistribuição
da renda e a igualdade de oportunidades, é virtualmente impossível
em um mundo dominado pelo capitalismo neoliberal. Por isso, esten-
deram a mão à imitação perfeita: a esquerda moral, a dos direitos
individuais que se encarna na proposta de liberação do consumo de
uma droga branda como a maconha; o matrimônio entre pessoas do
mesmo sexo — mal-chamado de “casamento gay” —; e reformas pare-
cidas que deixam o pobre tão pobre como antes, mas nem por isso
são menos valiosas. Mauricio não disse isso tudo textualmente, mas
de sua indagação creio que se deduz essa construção de um esquer-
dismo suplementar por um cara legal que não podia ficar no cargo
como um enfeite, ainda que possivelmente existissem urgências e
carências maiores na república.
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Prefácio à edição original 15
Como informação de utilidade ao leitor — que, se chegou até esta
página, provavelmente já manuseia o volume em seu poder —, direi
que esta forma de cercar e encurralar o mistério utiliza de maneira
inteligente todos os recursos literário-histórico-editoriais: ilustrações,
entrevistas com conhecedores da matéria inseridas entre capítulos,
mais réplica e tréplica de suas próprias inquisições sobre os grandes
problemas do nosso tempo.
De qualquer forma, o que eu mais gostei é que Mauricio não pre-
tende conquistar nenhum Everest, que as pessoas possam fechar o
livro após ler a última página sem que ninguém tenha pretendido ven-
der “um Mujica” com preferência sobre outras possibilidades. Há um
presidente do Uruguai que faz demonstração quase de ascética pobreza;
outro que ama as questões densas que provocam seguramente man-
chetes na imprensa; um outro mais que se permite dar conselhos à
humanidade e aos grandes poderes que a representam e, para cúmulo
do otimismo, até acredita que pode mediar com êxito o conflito colom-
biano. E o autor faz uma completíssima viagem em torno do persona-
gem — afinal de contas, o que a imprensa anglo-saxã chamaria de um
news analysis — que é um dos caras mais notáveis de nosso tempo.
“Pitoresco” para o descrente e modelo de um novo tipo de estadista
para os admiradores. Mas sempre “Pepe” para todos eles.
MIGUEL ÁNGEL BASTENIER
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