Trecho do livro "Dicionario de sabores"

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Introdução

Eu não fazia ideia do meu grau de dependência dos livros de culinária, até reparar que o meu exemplar do Cozinha francesa regional, de Elizabeth David, tinha marcas das minhas unhas abaixo das receitas. Aquela era uma prova da minha timidez, uma insistência em me agarrar a um conjunto de instruções, feito um corrimão no escuro, quando na verdade, após passar vinte anos cozinhando, eu já deveria estar suficientemente versada no básico para me permitir confiar no meu instinto. Será que aprendi de fato a cozinhar ou apenas me qualifiquei em seguir instruções? Minha mãe, a exemplo da mãe dela, é uma excelente cozinheira e possui apenas dois livros de receitas e um caderno de recortes, que consulta muito raramente. Comecei a desconfiar de que as dezenas de livros que eu possuo sejam tanto um sintoma quanto a causa da minha falta de segurança ao cozinhar.

Foi em um jantar nessa mesma época que uma amiga me serviu um prato com dois ingredientes que jamais me ocorreria combinar. Fiquei intrigada, como ela poderia antecipar que aquilo daria certo? Havia algo no ar sobre combinações inusitadas de sabor, o tipo de harmonização arrojada intro-duzida por chefs como Heston Blumenthal, Ferran Adrià e Grant Achatz. No meu entendimento, o princípio por trás desta abordagem aos alimen-tos é uma profunda compreensão da conexão entre os sabores. Eu, uma cozinheira amadora, ainda que ligeiramente obsessiva, não disponho dos acessórios ou recursos para explorá-los. O que eu preciso é de um manual, um guia para me ajudar a entender como e por que um sabor pode combi-nar com outro, quais são seus pontos em comum e quais as suas diferenças. Algo como um dicionário de sabores. E como não havia nada parecido, acometida pela mais pura inocência, eu me convenci de que seria capaz de organizar uma compilação eu mesma.

Minha primeira tarefa foi preparar uma lista de sabores. Parar no 99º foi, de certo modo, uma arbitrariedade. No entanto, um dicionário de todos os sabores existentes não só seria inviável como impossível de ser manu-seado com facilidade. À exceção da batata, omiti os carboidratos mais usados, assim como a maior parte dos condimentos. Certamente há uma porção de dados interessantes a respeito dos sabores do arroz, das massas,

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da pimenta-do-reino, do vinagre e do sal, mas eles possuem uma gama tão variada de afinidades que suas parcerias não chegam a surpreender. Outras omissões, como a da abobrinha, podem causar estranheza, mas só me resta pedir desculpas aos fãs da abobrinha e lembrar que este livro não tem a pretensão de dar a palavra final sobre o assunto. Toda obra sobre sabor tende a ser subjetiva, e escrevi sobre as combinações que mais me cativaram ou que mais gosto de comer. Assim, as lacunas inevitáveis são puramente uma questão de preferência.

A maioria dos sabores foi abordada em um verbete próprio. Em alguns casos, onde parecia fazer sentido, juntei ingredientes com sabores seme-lhantes num único verbete. Erva-doce, por exemplo, aborda o funcho, a erva-doce, o estragão, o alcaçuz e o pastis. Da mesma maneira, nem o bacon e o presunto e nem a couve-de-bruxelas e o repolho poderiam ser facil-mente separados. Entre uma ligeira desordem e aborrecer o leitor com um excesso de repetições, optei pela desordem em todos os casos.

Na sequência, dividi os sabores por categoria. A maioria de nós conhece bem o conceito de grupos de sabores, conscientemente ou não. Floral, cítrico, herbáceo: o tipo de descritores encontrados nos rótulos dos vinhos para ajudar a determinar o suposto sabor de alguma coisa. São nestes descritores ou adjetivos que os sabores se encontram divididos. Os sabores em cada família apresentam algumas características em comum; por sua vez, cada uma delas está de alguma maneira relacionada à família adjacente, formando assim um espectro de 360° ou “roda de sabores”, esquematizada na próxima página.

Observe, por exemplo, a família dos cítricos. Ela inclui os sabores dos cítricos pungentes, como a laranja, o limão e cardamomo. Mas o carda-momo, por sua vez, divide alguns compostos de sabor com o alecrim, que é o primeiro item da família de sabor seguinte, frutas silvestres e arbustos. No outro extremo desta família, a amora antecede o primeiro sabor da família dos florais frutados – a framboesa. E assim segue a roda de sabores, condu-zindo um sabor ao outro, família à família, numa sequência que pode se iniciar com limão e terminar com queijos azuis.

Eu reconheço as limitações dessa metodologia. Categorizar determina-dos sabores é um verdadeiro desafio – o coentro em grão, por exemplo, acabou nos florais frutados, mas certamente poderia estar entre os cítricos ou os condimentos. O método de preparo de um ingrediente também pode alterar completamente a sua natureza. O sabor do repolho, por exemplo,

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ainda cru é amostardado, mas cozido é sulfuroso. Em suma, a roda de sabores não foi pensada para ser um esquema objetivo e incontestável para compreensão do sabor; entretanto, ela proporciona uma maneira estimu-lante e instigante de navegar pelo tema.

Em seguida vieram as harmonizações. Evidentemente os pratos não costumam se limitar a apenas dois ingredientes, mas algumas considerações me permitiram fazer dos pares o critério estruturante do meu Dicionário de sabores. Para começar, sanidade (a minha). Mesmo me restringindo a 99 sabores, se eu falasse de trios de sabor, acabaria com 156.849 combina-ções possíveis; 4.851 harmonizações me pareceram mais adequadas para um livro que fosse viável de escrever e prazeroso de ler. Em segundo lugar, clareza. É muito mais fácil para a memória gustativa estimar a compatibili-dade entre dois sabores do que imaginar a interação entre três ou mais. Eu invariavelmente discuto uma combinação de sabores no contexto de um prato que contém outros ingredientes (como é o caso da salsa e da hortelã no tabule), mas procuro sempre enfatizar a principal harmonização que está sendo abordada.

Os verbetes detalham cada uma dessas harmonizações com base na ciência do sabor, história, cultura, sabedoria de chefs e preconceitos parti-culares – qualquer coisa que possa esclarecer o motivo pelo qual certos sabores casam bem entre si, o que eles realçam um no outro, como a mesma harmonização de sabores é apresentada em diferentes culinárias e assim por diante.

Apresentei as receitas da forma mais resumida possível, à moda dos livros de culinária vitorianos – contando que o leitor tenha alguma experiência na cozinha. Caso você caia na tentação de preparar algum prato das páginas a seguir, aconselho ler a receita até o fim antes de começar a prepará-lo (ver Beterraba e porco, p. 111, caso precise se convencer). Presumi que você esteja ciente da necessidade de se adicionar sal a pratos salgados, prová-los e, se preciso, ajustar seu tempero antes de servir; desligar o fogão quando estiver pronto e retirar os ingredientes que possam asfixiar algum ente querido. Se surgir alguma dúvida na receita, pare, reflita e se não encontrar a solução, procure uma receita semelhante e veja se ela lhe dá uma dica.

Eu garanto que quase sempre a resposta aparece do nada. Uma das grandes satisfações em descobrir mais sobre as combinações de sabor é a segurança que isso lhe dá para decidir o que fazer. Seguir as instruções na receita é como imitar as frases de um livro feito um papagaio. Entender

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como os sabores interagem é como aprender um idioma: permite que você se expresse livremente, improvise, encontre substitutos compatíveis para os ingredientes e consiga preparar o prato como o idealizou. A boa surpresa é que os pratos quase nunca dão errado. Mesmo assim, a autora se exime de qualquer responsabilidade se algo for parar na lixeira.

O sabor é inegavelmente subjetivo e difícil de descrever; contudo, vale a pena considerar alguns fatores antes de tentar. Como qualquer pessoa que estudou sobre vinhos pode lhe confirmar, sabor é diferente de gosto. O gosto se restringe a cinco características perceptíveis pela língua e outras regiões da boca: doce, salgado, azedo, amargo e umami (ou gosto completo). Já o sabor é detectado graças ao olfato, através do bulbo olfatório e, em menor intensidade, pela boca. Tampe o nariz e conseguirá distinguir se um alimento é doce ou salgado, mas não descrever seu sabor. Seu paladar lhe dá um esboço de como determinado alimento deve ser, mas é o sabor que fornece os detalhes. Ainda assim, no sentido mais amplo, o termo sabor costuma incorporar o gosto, além das características “trigeminais” dos ingredientes, que são a sensação de calor com as pimentas, pimentões e mostarda, o frescor do mentol e a sensação de boca amarrando com os tani-nos presentes no vinho tinto e no chá.

Além dos elementos básicos do paladar, classificar um sabor pode ser tão difícil quanto descrever qualquer outro tipo de sensação. Considerando-se que o sabor de um ingrediente deve-se aos compostos químicos que ele contém, podemos observar com certo grau de objetividade que dois ingre-dientes que compartilham o mesmo composto possuem sabores parecidos. O manjericão-santo e o cravo, por exemplo, contêm um composto chamado eugenol – e o manjericão-santo tem um sabor que lembra o cravo. Mas o que significa ter um sabor que lembra cravo? Para mim, é como chupar um prego doce e enferrujado. Mas não há indivíduos com papilas gustativas ou sistemas olfativos coincidentes, nem com a mesma habilidade para definir em palavras a percepção sensorial.

A origem de uma pessoa e seus hábitos alimentares também são deter-minantes importantes de como ela percebe e descreve os sabores e quais combinações ela está inclinada a fazer. Eu me baseei na opinião de especia-listas para conferir o máximo de objetividade possível aos meus próprios julgamentos, mas é impossível negar que o dicionário de sabores de cada pessoa será ligeiramente diferente. O sabor é, entre outras coisas, um depó-sito de sensações e memória; assim como se acredita que o olfato é o sentido

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mais sugestivo, o sabor de um determinado prato também consegue nos remeter instantaneamente à época e ao local onde o experimentamos pela primeira vez ou de maneira mais memorável. O Dicionário de sabores pode lembrar ou mesmo funcionar como uma obra de referência, mas apesar de todo o conteúdo factual ele é essencialmente subjetivo.

Aprendi muito ao redigir este livro, em especial a manter a mente aberta a combinações pouco valorizadas por outros cozinheiros, em outras culturas. Contudo, minha natureza desorganizada está sempre em busca de padrões e métodos para impor ordem a uma realidade desregrada. Confesso que em parte esperei que o livro se desenvolvesse nesse sentido, uma “ampla teoria unificadora dos sabores”, capaz de reconciliar a ciência com a poesia e as impressões da minha mãe sobre geleia.

Não foi o caso – ao menos não em parte. Eu aprendi diversos princípios gerais, por exemplo, de como usar um sabor para disfarçar, realçar, amenizar ou intensificar outro. Também estou mais atenta à importância de equilibrar os sabores – salgado, doce, amargo, azedo e umami – e de aproveitar ao máximo o contraste entre texturas e temperaturas. Mas a verdadeira virtude deste livro é ter coletado uma variedade de fatos, conexões, impressões e recordações organizadas não tanto para indicar exatamente o que fazer, e sim para estimular a criação de suas próprias receitas ou adaptações. Em resumo, para botar a mão na massa.

Niki Segnit Londres, Março de 2010

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Azeitona

Açafrão

Anis

Pepino

Dill

Salsa

CoentroA

bacateErvilhaPim

entãoPim

entaM

anjericãoCanela

CravoNoz-m

oscadaPastinaca *

CenouraAbóbora-m

enina

CastanhaNoz

Avelã

Amêndoa

Cereja

Melancia

Uva

Ruibarbo **

Tomate

Morango

Abacaxi

Maçã

PeraBananaMelãoDamascoPêssego

CocoManga Laranja Toranja Limão Limão-sicilia

no

GengibreCardamomo

Alecrim Sálvia Zimbro

Tom

ilho

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Cass

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Carn

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Queijo azu

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Queijo duro

Queijo m

acio

Cogumelo

Berinjela

Cominho

Beterraba

Batata

Aipo

Agrião

Alcaparra

Raiz-forte

CebolaAlhoTrufaRepolho

Nabo-redondoCouve-florBrócolisAlcachofraAspargoOvoMariscoPeixe branco

OstraCaviar

Peixe gorduroso

Anchova

Peixe defumado

Bacon

Presunto cru

Amadeirados

Frutas cremosas

Cítricos

Fruta

s silv

estre

s e ar

bustos

Flor

ais f

ruta

dos

Torr

ados

Carn

es

Queijos

Terrosos

Sulfurosos

Marinhos

Salmouras e sais

Verdes e gramíneos

Amostardados

Condimentos

Frutas frescas

* Raiz que se usa como hortaliça. Pode ser substituída por cenoura, mandioquinha ou batata. (N. da T.)

** Planta comestível muito popular na Grã-Bretanha, geralmente usada para fazer doces. Utiliza-se na maior parte das vezes o seu talo, que é rosado, mais tenro e adocicado que o aipo. A textura dele quando cozido lembra a do aspargo. Em receitas salgadas pode ser subs-tituído por aipo ou erva-doce. O cultivo no Brasil é raro, sendo possível encontrá-lo apenas em empórios e mercados mais especializados. (N. da E.)

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